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Rev. Bras.

Adolescência e Conflitualidade, 2011 (5): 52-58 52

JUSTIÇA: PENSANDO ALTO SOBRE

Jimenez
VIOLÊNCIA, CRIME E CASTIGO.
(RJ: Nova Fronteira, 2011, 196p.)

É o oitavo livro do antropólogo Luis Eduardo Soares que conta


Luciene Jimenez 1 entre as suas publicações com obras como Meu casaco de
general: 500 dias no front da Segurança Pública do Estado do
Rio de Janeiro, Elite da Tropa I e II e Cabeça de Porco. Mais
uma vez, o autor traz para a discussão os temas da violência e
da segurança por meio de uma linguagem coloquial,
objetivando atingir diferentes públicos, sem com isso perder o
vértice teórico e conceitual da discussão. Além de escritor e
professor universitário, o autor foi Secretário de Segurança
Pública do Rio de Janeiro (1999/2000) e Secretário Nacional de
Segurança Pública (2003).

Jimenez
1 Doutora em Saúde Pública (USP) O livro está dividido em treze capítulos nos quais são narradas,
e docente do Programa de de forma sutil e progressiva, situações do cotidiano, possíveis
Mestrado Adolescente em Conflito de serem vivenciadas pelo leitor; fato que promove
com a Lei, da UNIBAN. identificação e aproximação com o texto. A partir de tais
narrações, o autor fundamenta os argumentos que
desconstroem as noções presentes no senso comum sobre o que
é crime, o que é violência, o que é justiça, o que representa a
prisão para as pessoas que ali vivem e para a coletividade que
precisa dela e, por fim, quais são as alternativas possíveis para
uma convivência mais pacífica na nossa sociedade.

Os jovens vão herdar o Brasil que estamos construindo. Um país que


encarcera cada vez mais e o faz seletivamente porque a lei que vale para
uns, na prática, não vale para outros. Um país que está se credenciando para
se tornar campeão mundial do encarceramento e que se esmera em produzir,
nas prisões, o espetáculo grotesco da barbárie (p.11).

A violência exerce fascínio sobre todo mundo, por


atração ou repulsa, conecta-nos às nossas emoções mais
profundas. A violência tem assumido lugar nas manchetes e
constituído preocupação inclusive entre os jovens, já que a
maioria dos que morrem vítimas da violência tem entre 15 e 24
anos, ou 15 e 29, são, em geral, pobres, do sexo masculino,

Autor para correspondência:


lucienejimenez@hotmail.com
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moram nos bairros menos valorizados e, frequentemente, são negros.


A partir desta reflexão, Luis Eduardo relata o discurso,
indignado e emocionado, de um motorista de táxi sobre o assassinato
de seu querido amigo de infância dentro do ônibus do qual era
condutor. Deixara mulher e filhos, qual seria o futuro destas cinco
crianças tornadas órfãs por um monstro?
As duas pontas da história se encontravam: as crianças órfãs
terão que sair para as ruas e ganhar algum dinheiro, expostas a toda
sorte de situações e a “tudo de ruim, coitados”. Quem sabe, um dia
desses, um deles, desesperado atrás de dinheiro, entra em um ônibus e
...
O sentido de uma história depende do ponto a partir do qual
começamos a contá-las, as histórias envolvendo situações de violência
são, invariavelmente, narradas a partir do ato violento, ignorando todo
o passado e anulando as possibilidades futuras.
Historicamente, a tortura e os suplícios abomináveis fizeram
parte de uma espécie de diversão pública e macabra com tom
educativo de advertência preventiva. Cesare Beccaria (Dos delitos e
das penas, 1764) e alguns pensadores iluministas fundaram a visão
moderna da punição destacada da ideia de suplício físico. Todo
indivíduo deve ser tratado com respeito, ainda que traia seus deveres,
isso não autoriza a sociedade ou o Estado a imitá-lo. “Nesse caso,
justiça seria apenas outro nome da vingança” (p. 25). Essa dimensão
simbólica que associa justiça com vingança permanece destacada no
imaginário popular quando se fala, por exemplo, na necessidade de
redução da impunidade (p. 98).
Crime é tudo aquilo que uma sociedade define como crime. O
autor nos conduz por um caminho no qual desconstrói a possível
fixidade da noção de crime, mostrando que o próprio Estado tutela e
produz situações consideradas criminosas, tais como as guerras,
expropriações em nome do interesse público, entre tantas outras. Um
ato ilegal não constitui necessariamente um crime, pois “Se você
puxar muito o fio da meada, vai acabar encontrando a violência na
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raiz do direito e da propriedade, dos países e dos Estados. Por trás da


retórica legal corre um rio de sangue” (p. 41).
No entanto, a violência, geralmente relacionada aos atos
identificados explicitamente como violentos, está presente não apenas
nas ações do Estado, mas também no dia-a-dia das pessoas comuns.
O autor exemplifica a proteção como prática de violência por
meio de uma situação corriqueira em que dois meninos são
surpreendidos em jogos sexuais no banheiro da escola. Um deles
consegue escapar sem ser identificado e o outro não. Sobre o segundo,
recaem toda sorte de “cuidados”, atenções psicológicas e pedagógicas,
providências institucionais para que o mal não se repita, rotulações,
controles e exames antieducativos e contraproducentes que promovem
sofrimento, estigma e revelam “uma força poderosa e castradora: eis a
violência operando, fazendo seu trabalho sujo, talvez imperceptível
para quem observa de fora, mas profundamente doloroso e marcante
para quem o sofre” (p. 47). Há um limite tênue entre o cuidado e a
produção de um estigma, entre a brincadeira e a hostilidade.
Dependendo do contexto e do lugar, a violência pode estar escondida
sob as práticas de cuidar, proteger, defender, educar.
Em uma segunda situação, dentro de uma padaria, estão dois
adolescentes: um branco de classe média, o outro negro e mal vestido.
Por diferentes razões, ambos portam alguma quantidade de maconha.
Quando alguém anuncia que sua carteira sumiu, as atenções do
público presente se voltam para o adolescente negro. Enquanto a
polícia o aborda, o adolescente branco sai de fininho. Ao ser
identificado que o adolescente negro portava maconha, os presentes
pedem sua prisão como expressão de justiça. E todos se retiram sem
que a carteira tenha sido encontrada, mas felizes porque a justiça foi
feita.
O cumprimento da medida socioeducativa em meio fechado,
dadas suas condições, levam os adolescentes à certeza de que não
valem nada. A violência está no tráfico de drogas, nos efeitos danosos
das drogas, na intervenção policial, no sistema socioeducativo, na
legislação, na sociedade que pede penas mais duras.
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Os fatos dependem de quem os vivencia e interpreta.


Descrever fatos, dar testemunhos são situações submetidas às
interpretações, e estas dependem dos contextos e histórias de vida
mais abrangentes. É neste sentido que a pena de morte é inaceitável,
pois aniquila com qualquer dúvida e produz a irreversibilidade, “não é
por brincadeira que tantos historiadores declaram que o passado é tão
imprevisível quanto o futuro” (p. 72).
“A Justiça não deveria ser compreendida como punição ou
castigo, mas como o reconhecimento do mérito identificado com
objetividade” (p.86). Fazer justiça, portanto, nada tem a ver com
punir. Garantir a igualdade de oportunidades para todas as crianças é
uma expressão da justiça; se o Estado não garante estes direitos torna-
se cúmplice da injustiça e promotor das desigualdades.
Justiça, portanto, pode ser definida como equidade, isto
é, como um princípio moral ou – para alguns – ético,
segundo o qual os seres humanos, por serem iguais em
sua natureza, deveriam receber tratamento igual em
todos os aspectos que se refiram à sua condição
elementar de ser humano e de membro de uma
sociedade (p. 89).

No entanto, a desigualdade da justiça é identificada na


aplicação das leis fiscais e da política tributária, bem como na
desproporcional concentração de terras no Brasil. Isso, no entanto, não
justifica a desobediência às leis, fato que poderia levar ao medo e à
desconfiança coletivos, mas legitima que se busque a mudança.
Em um Estado democrático, diferentes instâncias são
responsáveis pela criação das leis, pela execução e pelo cumprimento,
não ficando na dependência de um único indivíduo essa
responsabilidade. A equivalência continua sendo mantida na medida
em que se busca equalizar a suposta gravidade do crime com a
dimensão da pena. Escolhe-se para as penas uma gradação de
severidade que varia numa proporção correspondente à gradação dos
crimes.
Acreditar que existe proporcionalidade entre crime e pena é
negar os valores embutidos nos atos. A associação entre determinado
crime e certo número de anos de prisão é totalmente aleatória.
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É como se o crime trouxesse embutido em si o castigo


(...). Esquecemos que não há qualquer base objetiva, ou
qualquer razão ou fundamento natural, para que a
sociedade troque, como se fossem equivalentes e
proporcionais, atos que considera criminosos por tempo
de prisão (p. 113).

No entanto, “a hipótese de um mundo sem polícia e sem prisão


resultaria em uma sociedade atravessada pelo horror, devolvida à
barbárie, regida pelos sentimentos mais primitivos – sobretudo o medo
– que ditariam a luta pela vida mesmo ao preço da vida alheia” (p.
125). A questão não é isentar as pessoas que transgrediram os acordos
mas, antes, trocar o canal: da culpa individual para a responsabilidade
coletiva.
Esta operação não é simples porque se, por um lado, desde o
sistema econômico até os traumas psicológicos fazem parte da
formação dos cidadãos, por ouro lado, mesmo nas circunstâncias mais
adversas há uma chama de consciência e liberdade acesa.
Com relação ao tráfico de drogas, consumidores
endinheirados, políticos indiferentes, escolas de péssima qualidade,
falta de perspectiva no mercado de trabalho, falta de oferta no
mercado formal de trabalho, opções atraentes no tráfico - não só
financeiramente, mas também na promoção da autovalorização - todos
estes elementos constituem os ingredientes que compõem a realidade
dos adolescentes e jovens responsáveis pelo varejo do tráfico. Quem é
o responsável? O lícito e o ilícito se interpenetram, direta ou
indiretamente, envolvem a todos e têm relação não apenas com
aspectos materiais, sociais e econômicos, mas também com elementos
simbólicos e psicológicos. Sem subestimar os fatores materiais, mas
há que se considerar a devastação da autoestima, a fome de
reconhecimento, de valorização e acolhimento, os benefícios do
pertencimento, o papel do sexo e do desejo na dinâmica do tráfico.
Veja como o tráfico recruta os adolescentes. O líder da
facção criminosa costuma ser uma pessoa
empreendedora, isto é, cheia de iniciativa – pena que
usa mal essa capacidade. Ele e seus comandados atraem
jovens para sua facção, aproveitando para convidá-los
quando eles estão sem nada para fazer, desempregados,
com baixa autoestima, fora da escola, cobiçando as
camisas e os tênis de marca que encantam as meninas,
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mas que eles não podem comprar. Isso não significa que
o líder bata na porta de quem deseja atrair para seu
grupo. Nada disso. Em geral acontece o contrário.
Quem pede autorização para ingressar no ‘movimento’
é o jovem interessado. Mesmo assim, a sedução existiu
com as exibições diárias de poder e a ostentação das
conquistas. Fazer parte de um grupo unido produz uma
sensação de que se é alguém, de que se tem um lugar no
mundo, de que se tem poder e valor, de que o afeto que
venha a receber e a admiração que venha a provocar são
merecidos. E a união de um grupo muitas vezes depende
da rivalidade com outros grupos. Quanto mais forte for
a rivalidade, a disputa e até mesmo o conflito, mais
intenso será o sentimento de união, de coesão, de
identidade com seu grupo. (...) Depois que se ingressa
numa facção ou num grupo criminoso, pular fora do
barco não é simples (p. 154-5).

Na prisão, o controle do uso do espaço e do tempo apontam,


em coro, para João como sujeito do verbo matar. João matou. O verbo
está no passado, mas a pena (João é criminoso) está no presente e o
arrasta consigo futuro adentro. É certo que matar constitui um ato
abominável, irreparável e monstruoso, mas não justifica que todos os
atos anteriores e posteriores se percam definitivamente, transformando
um sujeito em um eterno assassino. Atarraxar o sujeito ao seu ato
criminoso não o impede de agir com violência, pelo contrário, incita-
o.
O desejo de vingança e a vontade de criar bodes expiatórios só
promovem os padrões de comportamento criminosos e violentos.
Abrir-se à naturalidade da mudança é o desafio que se coloca, caberá
ao perdão desatar a corrente que prende o sujeito ao verbo.
Neste caso, não é justo que a culpa se distribua em partes
iguais entre a vítima, o agressor e a sociedade. 1º) Deve-se pensar na
vítima, minorar o sofrimento ou a perda; 2º) O autor deve participar da
reparação; 3º) Evitar que a experiência se repita; 4º) Co-
responsabilizar toda a sociedade, o que é diferente de inocentar o
agressor, mas reconhecer que os circuitos das ilegalidades estão
dispersos por toda a sociedade, envolvendo todas as pessoas, ainda
que com diferentes expressões.
“Nesse novo enredo, quem perdoa deixa de ser vítima – isto é,
o objeto passivo de um ataque degradante – para se tornar
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protagonista que dá novo significado a seu destino” (p. 164). Por outro
lado, para o agressor, o efeito deste processo é o de quebrar os
grilhões que o amarram às narrativas do seu passado,
responsabilizando-o pelos seus atos, promovendo a reparação das
consequências do ato cometido, e abrindo para novas possibilidades
de futuro. Isto não o inocenta, nem tampouco o exime de reconhecer
sua dose incomparavelmente superior de responsabilidade sobre a
situação, pelo contrário. “Quem agiu de forma monstruosa terá de
encontrar em si vestígios de humanidade pelos quais se sinta
estimulado a acreditar que merece ser estimado, amado e admirado”
(p. 169). Haveria ainda que se ter em cena a comunidade, a fim de que
esta percebesse como contribuiu, ainda que involuntariamente, para o
crime, comprometendo-se a promover as mudanças.

A leitura do livro se faz fundamental para os estudiosos do


tema que encontrarão clareza e veemência nos caminhos pelos quais o
autor apresenta a nossa sociedade atada aos modos medievais de
pensar a Justiça e sobre quais são as possibilidades de transformação.
Mas, principalmente, faz-se importante para os leigos por trazer à luz
o quanto as práticas de violência e de justiça concebida como punição
e humilhação se encontram cristalizadas no cotidiano das escolas, das
famílias, das relações e das instituições, de tal modo que partilhamos
todos, cotidianamente, da promoção e manutenção destes modelos.
Mais do que a prisão que encarcera por meio de muros e grades,
humilha e degrada em nome da ressocialização, nós nos defrontamos
com a prisão dos discursos produzidos e reproduzidos em nome do
cuidado, da saúde, da educação, enfim, das melhores intenções.
Quando um (a) jovem vê-se embaraçado na prisão de
um adjetivo, uma acusação, uma classificação jurídica
ou um diagnóstico moral/psicológico (o atrapalhado, o
rebelde, o problemático, a desequilibrada, o violento, a
devassa, o criminoso), deve aprender esta lição: a
sociedade, as instituições e seus agentes – família,
escola, comunidade, rede de colegas, justiça, polícia,
quando não os profissionais da medicina e do mundo psi
– tendem a trabalhar com enorme energia para bloquear
o turbilhão vital das mudanças (p. 162).

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