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A única saída

Entre ser derrotado por Napoleão ou ver o Brasil


invadido pela Inglaterra, D. João VI escapou dos dois.
Marieta Pinheiro de Carvalho

7/1/2008

 O poderoso exército napoleônico às portas da fronteira. Espreitando o porto de


Lisboa, navios ingleses prontos para atacar. Do outro lado do oceano, a enorme
e rica colônia brasileira exposta a uma possível invasão. Pressionado por duas
potências rivais, a escolha de Portugal era das mais difíceis. Fosse qual fosse a
decisão, o castigo do inimigo era certo.

Pois naquele fim de 1807, o que se viu foi uma fuga. Uma fuga em massa de
nobres que se apinharam no porto em busca de lugares nas naus que rumariam
para o Brasil. Vários atropelos aconteceram: bagagens ficaram em terra,
pertences de pessoas que não viajariam foram parar nos navios, parentes foram
separados durante a viagem.

Mas a impressão de retirada covarde e atabalhoada não se justifica.


Historiadores do século XX demonstram que a transferência da Corte não foi
nada improvisada. Cogitada em diversas outras ocasiões (veja o conteúdo
complementar no fim deste texto), a mudança deve ser entendida de acordo com
a política externa lusitana do período. O reino optava pela neutralidade nos
conflitos diplomáticos para evitar choques maiores com as duas principais
potências políticas e militares da época: França e Inglaterra. A primeira
desfrutava de poderio terrestre, enquanto a segunda gozava de supremacia
marítima. Muitas vezes, entretanto, era impossível manter a neutralidade - daí a
necessidade de eleger uma aliança mais sólida.

Havia aqueles que defendiam a opção pela França. Um dos principais expoentes
desta idéia era Antônio de Araújo de Azevedo (1754-1817), futuro conde da
Barca, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra entre 1804 e 1807. Ele
defendia a aproximação com o regime napoleônico, o que se tornou
insustentável em 1807, quando se intensificaram as ameaças inglesas e
francesas.

A coligação com a Inglaterra é explicada basicamente pelo temor de um ataque


às colônias (principalmente o Brasil), diante do forte poderio naval britânico. O
receio não era infundado, afinal o primeiro-ministro da Inglaterra, William Pitt
(1759-1806), em discurso no Parlamento, defendera que convinha à “Grã-
Bretanha fazer assentar o trono do império português” na América, onde d. João
reconquistaria seu reino e ditaria “as leis à Europa, e com o cetro de ferro
poderia castigar a França dos seus crimes, e a Espanha [aliada da França] da sua
perfídia”. O primeiro-ministro inglês defendia abertamente, em hipótese de uma
aliança luso-francesa, a invasão do Brasil.
Os portugueses foram obrigados a agir rapidamente. D. Rodrigo de Souza
Coutinho (1755-1812), político experiente que estava há quatro anos afastado do
governo, foi chamado em 1807 a reintegrar o gabinete de d. João como
conselheiro de Estado. Ele defendia a tese de que Portugal dependia inteiramente
do Brasil. Desde 1803, aliás, alertava para a necessidade de defesa contra os
franceses. Os domínios portugueses corriam o risco de serem dilacerados entre
França e Inglaterra, caso uma postura pró-britânica não fosse assumida. D.
Rodrigo destacava a relevância da América portuguesa como a “mais essencial
parte da monarquia”. Em hipótese de invasão francesa, existiria “a certeza de ir
em qualquer caso V.A.R. [Vossa Alteza Real] criar no Brasil um grande
império, e segurar para o futuro a reintegração completa da monarquia em todas
as suas partes”. A transferência da Corte, para o futuro conde de Linhares,
aparece como último recurso e associada à necessidade de defesa da soberania
real. A opinião era compartilhada por outros estadistas que em períodos de
maior iminência de invasão francesa enunciavam tal idéia. Foi o caso do
marquês de Alorna (1754-1813), que em 1801 propôs ao príncipe: “V.A.R. tem
um grande Império no Brasil, e o mesmo inimigo que ataca agora com tanta
vantagem, talvez que trema e mude de projeto, se V.A.R. o ameaçar de que se
dispõe a ir ser Imperador naquele vasto território”.

De qualquer forma, estava claro que, na iminência de um ataque, a mudança


seria a melhor opção para preservar o trono português, independentemente de
que lado se fizesse a aliança. Mas era hora de decidir. O conflito na Europa se
agravava, e o debate político em Portugal buscava uma definição: afinal, a quem
se aliar? Em julho de 1807, Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da
França, insistiu que o governo português prendesse e seqüestrasse os bens dos
súditos britânicos, fornecesse dinheiro para sustentação da guerra e reunisse suas
forças navais às franco-espanholas. E deu como prazo-limite 1o de setembro. A
Inglaterra, por sua vez, estacionou navios na frente de Lisboa, sufocando o
comércio e ameaçando uma intervenção militar.

As reuniões no Conselho de Estado português se intensificaram. D. João de


Almeida de Melo e Castro (1756-1814) perguntava: valeria a pena “os terríveis
golpes” ao comércio, “o retardo da correspondência com nossas colônias, [...]
para saciar a ambição e animosidade da França”. Melo e Castro, que havia sido
embaixador de Portugal em Londres, observava a necessidade de o príncipe
regente retirar-se para o Brasil, de forma a preservar a monarquia.

Chegou-se a preparar uma frota para a transferência do filho de D. João, o


príncipe da Beira, d. Pedro de Alcântara (1798-1834), futuro imperador d. Pedro
I do Brasil. O príncipe, que tinha apenas 9 anos, deveria ser acompanhado ao
Rio de Janeiro por d. Fernando José de Portugal, que governou a Bahia e foi
vice-rei do Brasil. Tal medida chegou a ser informada à França, mas segundo o
historiador Enéas Martins Filho era apenas uma cortina de fumaça para ocultar a
trama secretamente organizada: a mudança de toda a família real.

Longe de ter sido uma fuga impensada, a transferência da sede do governo


português para seus domínios americanos possibilitou a permanência do trono
de Portugal nas mãos da Casa de Bragança. Do outro lado do Atlântico,
inaugurou um novo momento na história do Brasil.
Conteúdo complementar: Uma idéia fixa

Marieta Pinheiro de Carvalho é doutoranda em História Política pela UERJ e


autora da dissertação Uma idéia de cidade ilustrada: as transformações
urbanas da nova corte portuguesa (1808-1821), defendida nessa mesma
universidade em 2003.

Saiba Mais:

MANCHESTER, Alan K. “A transferência da Corte portuguesa para o Rio de


Janeiro”.In.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1968, vol. 277, pp.3-44.

MARTINS FILHO, Enéas. O conselho de estado português e a transmigração da


família real em 1807. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1968. (deixar)

LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.


LYRA, Maria de Lourdes Viana A utopia do poderoso Império. Rio de Janeiro:
Sette Letras, 1994.

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