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INTRODUÇÃO

V a m o s d a r a q u i u m a s l i n h a s g e r a is s o b r e a o r ie n t a ç ã o d o C u r s o d e
Filosofia, que será dado em cinco anos. Eu vou enunciar aqui, vagamente, um programa
que – é claro – poderá ser mudado, dependendo do aproveitamento dos alunos ou de
o u t r a s c i r c u n s t â n c i a s q u e s u g ir a m i s s o .

E m t e r m o s g e r a i s , a id é i a é e q u i p a r o s a l u n o s p a r a q u e p o s s a m
r e a g i r f i l o s o f i c a m e n t e – r e a g i r d e u m a m a n e ir a i n t e l e c t u a l m e n t e v i á v e l – à s m u d a n ç a s
culturais e históricas que estamos vivendo hoje.

V a m o s p a r t i r d a s e g u i n t e c o n s id e r a ç ã o : t o d a s a s g r a n d e s m u d a n ç a s
d a m o d a c u lt u r a l a o l o n g o d o s t e m p o s , a c o n t e c e m d e u m a m a n e ir a p e c u l i a r . D i f i c i l m e n t e
um conjunto de idéias, valores e símbolos é abandonado por ter sido atacado
diretamente, refutado ou superado.

O que acontece é o surgimento de uma nova camada de


i n t e l e c t u a is , s o c i a lm e n t e d i s t i n t a d a q u e a n t e r i o r m e n t e e r a d o m i n a n t e , e e s t a n o v a
c a m a d a , e n t ã o , v e m c o m n o vo s i n t e r e s s e s e d i r i g i n d o a s u a a t e n ç ã o p a r a o u t r o s t e m a s ,
outras questões, de tal modo que, num prazo relativamente curto, a cultura anterior se
t o r n a i n c o m p r e e n s í v e l e i n a c e s s í v e l, e a n o v a o c u p a o s e u e s p a ç o .

E n t ã o , j a m a i s s e p o d e c o n f u n d ir a i d é i a d e u m a s u p e r a ç ã o h i s t ó r ic a
– do fato de que uma nova moda cultural tomou conta do espaço – com o confronto
i n t e l e c t u a lm e n t e v á l id o e n t r e d o i s c o r p o s d e i d é i a s : n u n c a p o d e m o s a c h a r q u e u m a
i d é i a , s i m p l e s m e n t e p o r q u e e l a f o i a b a n d o n a d a h i s t o r ic a m e n t e , ( e l a ) t e r á s i d o r e f u t a d a
o u im p u g n a d a d e m a n e i r a a l g u m a .

Essa impugnação nunca acontece; não há nenhum caso de moda


c u l t u r a l q u e t e n h a m u d a d o , p o r q u e a s id é i a s a n t e r i o r e s f o r a m e f e t i v a m e n t e e x a m i n a d a s
e refutadas. Se elas fossem examinadas e refutadas você ainda estaria dentro do mesmo
quadro, estaria discutindo o mesmo corpo de questões.

I s s o N i e t z s c h e o b s e r v o u b e m : “ vo c ê s ó s u p e r a a q u i l o q u e v o c ê
substitui”, quer dizer: não se trata de discutir ou de refutar idéias, mas de colocar
o u t r a s n o l u g a r d e la s e f a z e r c o m q u e a s a n t e r i o r e s s e j a m e s q u e c i d a s . N a m e d i d a e m q u e
s ã o e s q u e c i d a s , e n t ã o j u s t a m e n t e p o r i s s o ( . . . ) e n q u a n t o e l a s e s t ã o d o m i n a n d o e la s n ã o
foram refutadas, depois que elas são esquecidas não precisa refutar mais.

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O efeito disso é que o chamado “progresso” da cultura,
“ p r o g r e s s o ” d o c o n h e c i m e n t o , n a v e r d a d e é u m a s u c e s s ã o d e e s q u e c im e n t o s , u m a
s u c e s s ã o d e p e r d a s a b s o l u t a m e n t e f o r m i d á v e is .

Também, na medida em que as novas idéias ocupam o lugar das


a n t e r i o r e s e j á n ã o t e m m a is s a t is f a ç õ e s a p r e s t a r a e l a s , e n t ã o i s s o s i g n i f i c a q u e o
n ú m e r o d e p e r s p e c t i v a s q u e v o c ê t e m p a r a j u l g a r a s id é i a s v i g e n t e s v a i d im i n u i n d o . I s s o
a í é u m p r o c e s s o m a i s o u m e n o s u n if o r m e n a h is t ó r i a d o O c i d e n t e .

Quer dizer: a gente pode observar uma série, uma tendência geral à
u n i f o r m i z a ç ã o : n a m e d i d a e m q u e vo c ê v a i a b a n d o n a n d o a s p e r s p e c t i v a s a n t e r i o r e s e q u e
as novas vão ocupando todo o espaço, as anteriores se tornam inimagináveis ou
i m p e n s á v e is , e x c e t o p a r a u m n ú m e r o m u i t o p e q u e n o d e p e s s o a s .

J u s t a m e n t e p o r i s s o , a s n o v a s i d é i a s q u e o c u p a m o c e n á r io , e l a s o
fazem com uma grande liberdade de ação: não têm satisfações a prestar à cultura
a n t e r i o r e , p o r t a n t o , e la s s ó a d m it e m s e r c o n t e s t a d a s o u d i s c u t id a s d e n t r o d a s u a
p r ó p r i a p e r s p e c t i v a . E n t ã o i s s o , n a t u r a lm e n t e , t e n d e a f e c h a r o e s q u e m a .

Por outro lado, como as novas gerações já são educadas dentro das
novas idéias, elas não são capazes de imaginar, quer dizer, há um processo de
esquecimento e depois há um outro processo de eliminação completa, ao ponto de que a
p r ó p r i a c u lt u r a a n t e r i o r s e t o r n a i n i m a g i n á v e l , e x c e t o s o b a f o r m a d e e s t e r e ó t i p o s
s i m p l i f i c a d o s , c o n c e b i d o s p e l a n o va c u l t u r a s ó p a r a f i n s d a s u a p r ó p r i a a u t o g l o r i f i c a ç ã o .

E n t ã o , i s s o é a m e s m a c o is a q u e d i z e r q u e o p r o g r e s s o c u l t u r a l , o
progresso intelectual é constituído de uma série de empobrecimentos, de uma série de
p e r d a s , d e p e r d a s d e m e m ó r i a , p o r a s s im d i z e r , e q u a n d o a p e r d a d e m e m ó r i a s e
p r o l o n g a p o r t e m p o s u f i c i e n t e e la s e t o r n a u m a p e r d a d e c a p a c id a d e , d e t o d a s a s
capacidades intelectuais, imaginativas requeridas para a compreensão da cultura
a n t e r i o r ; e l a s s ã o r e a l m e n t e e l im i n a d a s .

P o r o u t r o l a d o , o f a t o d e q u e e s s a s n o v a s id é i a s v e n h a m c o m o
poder avassalador de quem ocupa um espaço vazio, faz com que facilmente elas se
transformem em instrumentos de ação social, e produzam, então, mudanças sociais de
m a n e ir a m u i t o a c e l e r a d a . P o d e - s e o b s e r v a r i s s o a o l o n g o d o s ú l t i m o s q u a t r o o u c i n c o
séculos. Por exemplo, quando aparece, por volta de 1400, de 1500, a camada dos
c h a m a d o s “ h u m a n is t a s ” .

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Os humanistas eram pessoas que já não tinham a formação
f i l o s ó f i c a e s c o l á s t ic a , m a s t i n h a m u m a f o r m a ç ã o r e t ó r ic a b a s e a d a n o s r e t ó r ic o s d e
antigamente, principalmente Quintiliano e Cícero. Eram pessoas dedicadas à arte
literária, às línguas etc. Portanto, a área específica de capacitação deles era justamente a
arte da persuasão.

E começaram também a aplicar as regras da antiga Retórica às


literaturas nacionais, começaram a escrever nos idiomas nacionais, então,
evidentemente, tiveram uma penetração muito grande na classe nobre que é uma classe
q u e a n t i g a m e n t e , a n t e s d is s o , n a I d a d e M é d i a , e r a t o t a l m e n t e a l h e i a a o m u n d o d a
cultura superior.

Os nobres medievais eram caracterizados pela sua profunda


ignorância. Só para dar um exemplo, Carlos Magno, sobretudo o governo em que se
lançou o primeiro projeto de alfabetização universal, permaneceu analfabeto até os
trinta e dois anos e só muito dificilmente consentiu em aprender alguma coisa.
C o n s id e r a v a - s e q u e o a p r e n d i z a d o d a s l e t r a s e r a u m a c o is a o u p a r a o s m o n g e s , o u p a r a
as mulheres: os nobres não iam se dedicar a uma coisa dessas.

P o r é m , a p a r t ir d o s u r g im e n t o d o s h u m a n is t a s , q u e f a l a m n a s
l í n g u a s n a c i o n a i s , e j á n ã o u s a m c o m o i n s t r u m e n t o a q u e l a s t é c n ic a s l ó g i c a s a l t a m e n t e
c o m p l e x a s d o s e s c o l á s t i c o s , m a s u s a m i n s t r u m e n t o s d e p e r s u a s ã o – n ã o d e p r o v a –,
i n s t r u m e n t o s , n a v e r d a d e , d e a ç ã o p s i c o l ó g ic a ; e n t ã o , e v i d e n t e m e n t e , a n o v a c u l t u r a s e
e s p a l h a m u i t o r a p id a m e n t e e n t r e a c l a s s e d o m i n a n t e , e n t r e o s n o b r e s .

Então, se procurarmos nesse período e falarmos: houve alguma


c o n f r o n t a ç ã o i n t e l e c t u a l e n t r e o s h u m a n i s t a s e o s e s c o l á s t ic o s ? N ã o , d e m a n e i r a a l g u m a ;
o q u e h o u ve é a o c u p a ç ã o d e u m e s p a ç o v a z i o e , n a t u r a l m e n t e , a e x p l o s ã o d a c u l t u r a
anterior.

Quando surge, logo em seguida, a chamada cultura cientifica


m o d e r n a , c o m N e w t o n , B a c o n , G a li l e u e t c . , a c o n t e c e , n o v a m e n t e , a m e s m a c o i s a . Q u e r
d i z e r : o q u e p u d e s s e r e s t a r d a c u l t u r a e s c o l á s t i c a é n o v a m e n t e p r e t e r id o e m f u n ç ã o d e
uma nova cultura emergente, que ainda vinha com a promessa de aplicações técnicas que
resultariam diretamente num acréscimo de poder das classes dominantes.

Então é t o t a lm e n t e errado nós dizermos que aí houve um


“ p r o g r e s s o ” d o c o n h e c im e n t o . N ã o ; h o u v e u m a m u d a n ç a s o c i a l m u i t o p r o f u n d a ; m a s , o
conhecimento, ao contrário, você não pode dizer que “progrediu”, porque só existe

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p r o g r e s s o q u a n d o a q u e l e t e r r e n o c o n q u i s t a d o é c o n s e r va d o , a b s o r vi d o e a m p li a d o ,
vamos dizer, absorvido e superado dentro de uma estrutura maior. E (isso nós podemos
dizer que) os casos em que existe um progresso objetivamente verificável na História são
bem diferentes dessas grandes mudanças, daquilo que o Thomas Kuhn chama de as
“revoluções científicas”.

As revoluções científicas não trazem progresso de espécie alguma,


elas trazem uma mudança de perspectiva. Veja: você mudar de direção, não é você
a v a n ç a r n e c e s s a r i a m e n t e . A v a n ç a r é a v a n ç a r n a m e s m a d ir e ç ã o . Q u e r d i z e r , v o c ê m u d a
de atividade completamente, muda de assunto, você não tem nem como comparar o que
v o c ê e s t á f a z e n d o c o m o q u e s e e s t a v a f a z e n d o a n t e s , p o r q u e s im p l e s m e n t e n ã o t e m n a d a
a ver um com o outro.

Existe algum exemplo histórico de avanço, de progresso (...)?

T e m . Q u a n d o v o c ê p e g a , p o r e x e m p l o , a e vo l u ç ã o d a d o u t r i n a
c r i s t ã , d e s d e o s p r im e i r o s p a d r e s a t é a E s c o l á s t i c a , a í v o c ê p o d e d i z e r q u e h o u v e
e f e t i v a m e n t e u m p r o g r e s s o p o r q u e n a d a s e p e r d i a , a c o is a e r a ( . . . ) t u d o o q u e t i n h a n a
e t a p a a n t e r i o r e r a a s s im i l a d o e f u n d i d o n u m n o v o a r r a n j o c o m o s e l e m e n t o s n o v o s , p o r
e x e m p l o , a q u e l e s q u e e le s a b s o r v e r a m d e A r i s t ó t e le s .

Quando Sto. Alberto Magno, Sto. Tomás, começam a ler Aristóteles


e a tentar formular a doutrina cristã em termos aristotélicos, eles não abandonam a
doutrina cristã anterior. Eles simplesmente fazem um arranjo dela dentro de um novo
quadro. Nada se perde. A idéia é exatamente não perder nada.

Então, nesse caso, você pode dizer que, desde os primeiros padres
a t é a E s c o l á s t i c a , h o u v e u m c a s o d e p r o g r e s s o r e a l. M a s , v e j a : i s s o é d e n t r o d a m e s m a
c u l t u r a , n ã o h o u v e u m a r e v o l u ç ã o c u l t u r a l, n ã o h o u v e u m a r u p t u r a .

Agora, quando aparecem os humanistas, aí tem uma ruptura


m e s m o . Q u e r d i z e r , p a r a m i m u m a d a s c o i s a s m a i s c la r a s a l i , é q u e o s h u m a n i s t a s ,
quando você lê Erasmo, por exemplo, está na cara que Erasmo não entende os
escolásticos, ele não (...) ou o próprio Descartes, embora tivesse estudado com os
escolásticos, ele não sabe exatamente o que eles estavam fazendo.

Então, eles criam uma nova imagem dos escolásticos que não tem
n a d a a v e r c o m o q u e s e p a s s o u h is t o r i c a m e n t e , c o m a r e a l i d a d e h i s t ó r ic a . M a s t e m a v e r
c o m a a u t o j u s t i f ic a ç ã o e a a u t o g l o r i f i c a ç ã o d a n o v a c u l t u r a e m e r g e n t e .

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Quando aparece também a cultura do Iluminismo, você tem
n o v a m e n t e u m a m u t a ç ã o d e s s e t i p o , q u e r d iz e r , q u e u m a n o v a c l a s s e e m e r g e n t e d e
i n t e l e c t u a is , m a s q u e a g o r a j á n ã o e r a m m a i s n e m h u m a n is t a s , n o s e n t id o d e E r a s m o ; n ã o
eram estudiosos, no sentido de Erasmo: não eram escolásticos, não eram humanistas e
t a m b é m n ã o e r a m c i e n t is t a s n a t u r a is .

E n t ã o é u m q u a r t o t i p o d e i n t e le c t u a l q u e s u r g e , c o m o p r e c u r s o r d o
j o r n a l i s m o m o d e r n o , c o m o V o l t a ir e , p o r e x e m p l o , q u e é o p r im e ir o j o r n a l is t a m o d e r n o .
Quer dizer: ele não era um retórico de estilo antigo, não era um filósofo escolástico, não
era um cientista natural, o que ele era? Ele era um jornalista.

Então, a formação do intelectual como formador, a idéia do


formador de opinião pública, aparece justamente aí no Iluminismo. E é uma classe social
t o t a l m e n t e d i f e r e n t e , d e u m a o r i g e m s o c i a l d is t i n t a , q u e r a p i d a m e n t e c r i a u m a s é r i e d e
n o v a s m o d a s e o c u p a o e s p a ç o , t o r n a n d o v i r t u a lm e n t e i n c o m p r e e n s í v e l n ã o s ó a
Escolástica, mas também os antecessores imediatos do Iluminismo.

Quando você pega, por exemplo, a obra de Newton e aquilo que de


Newton, Voltaire resumiu no livro “Elementos da Filosofia de Newton”, você vê que
e x i s t e u m N e w t o n h i s t ó r i c o e e x i s t e u m N e w t o n d e V o l t a ir e , q u e j á é u m N e w t o n
adaptado às finalidades do Iluminismo.

E contrasta de tal m a n e ir a , tão brutalmente com o Newton


h i s t ó r ic o , q u e r e a l m e n t e u m a c o is a j á n ã o t e m n a d a a v e r c o m o u t r a . Q u e r d i z e r :
h i s t o r ic a m e n t e , a f i n a l i d a d e b á s ic a , o q u e N e w t o n q u e r i a ? N e w t o n q u e r i a r e s t a u r a r u m a
espécie de ciência profética que lhe permitisse interpretar a História à luz da Bíblia; é
i s s o q u e e le q u e r i a . É p a r a i s s o q u e e l e f e z t u d o , i n c l u s i v e t o d a a F í s i c a , f o i f e i t o t u d o
para isso.

Agora, no tempo do Iluminismo, o que o pessoal faz? Separa só a


parte da física de Newton, joga o resto do Newton fora e cria um Newton pseudo-
h i s t ó r ic o c o m p r o p o r c i o n a d o à s n e c e s s i d a d e s d a n o v a c u l t u r a .

I s s o q u e r d iz e r q u e , e m c a d a e t a p a h i s t ó r i c a , o i n d i v í d u o q u e b u s c a
a d q u ir ir uma cultura superior, seja ele um estudante universitário, seminarista,
q u a l q u e r c o i s a , a p r i m e i r a c o i s a q u e e l e v a i r e c e b e r é u m c o n j u n t o d e f a ls i f i c a ç õ e s e
e s q u e c i m e n t o s . Q u e r d iz e r : a m e n t a l i d a d e d e l e s e r á m o ld a d a d e a c o r d o c o m a c u l t u r a
contemporânea, no que ela tem de excludente.

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Quer dizer: a autoglorificação da cultura contemporânea é parte
d e s s a m e s m a c u l t u r a . E d e n t r o d is s o , p o r e x e m p l o , a i d é i a d e p r o g r e s s o j á e s t á e m b u t i d a
c o m o u m m e c a n i s m o d e a u t o l e g i t im a ç ã o p e r m a n e n t e .

A c o is a m a i s i n c r í v e l é q u e q u a n d o v o c ê p e g a p e s s o a s q u e s ã o
r e l a t i v i s t a s – r e l a t i v i s t a s h i s t ó r ic o s – , q u e n ã o d e v e r i a m a c r e d i t a r e m p r o g r e s s o d e
m a n e ir a a l g u m a – e l e s d e f a t o d i z e m q u e n ã o e x i s t e p r o g r e s s o h i s t ó r i c o , q u e v o c ê n ã o
p o d e r a c i o c i n a r n e s s e s t e r m o s – m a s , n a p r á t ic a , e l e s s e c o n s i d e r a m m u i t o s u p e r i o r e s a
todos os seus antecessores. Quer dizer: não saem dessa visão criada pela ideologia do
p r o g r e s s o . N ã o c o n s e g u e m s a i r d e la .

Q u e r d i z e r , a e x i s t ê n c ia d e p r o g r e s s o é u m f a t o , v o c ê n ã o p o d e
n e g a r : à s v e z e s a s c o is a s m e l h o r a m . M a s à s v e z e s a s c o i s a s t a m b é m p i o r a m . E n t ã o , a
e x i s t ê n c i a d e a l g u n s e x e m p l o s d e p r o g r e s s o e f e t i v o é u m a r e a l i d a d e h i s t ó r ic a i n e g á v e l ,
você não pode ser contra a idéia de progresso. Nem contra, nem a favor.

Progresso é uma unidade de medida que você deve aplicar aos


antecedentes históricos para saber aonde ele se realizou e aonde ele não se realizou.
Qual é o contrário de progresso? Vamos dizer, é o atraso? Ou a regressão? Não; porque o
tempo só vai para frente, o tempo nunca vai para trás, isso é absolutamente impossível.
E qualquer processo temporal, ele é constituído sempre de mudança. E sempre haverá
deterioração de alguma coisa e a emergência de alguma outra coisa.

E n t ã o , p r a t ic a m e n t e q u a l q u e r é p o c a p o d e s e r v i s t a , o u c o m o d e
p r o g r e s s o , o u c o m o d e d e t e r io r a ç ã o , m a s n u n c a d e a t r a s o . A t r a s o n ã o e x i s t e , p o r q u e n ã o
e x i s t e u m r e l ó g i o h i s t ó r ic o q u e p o s s a m e d i r t o d a s a s c i v i l i z a ç õ e s , t o d a s a s s o c i e d a d e s e
d i z e r : o l h a , à s t a n t a s h o r a s vo c ê t e m d e e s t a r e m t a l l u g a r , p o r q u e e u e s t a r e i l á . A i d é i a
d e “ a t r a s o ” é u m s u b p r o d u t o m e c â n i c o d a id é i a d e p r o g r e s s o . P r o g r e s s o e x i s t e , a t r a s o
não.

V o c ê n ã o p o d e d i z e r q u e u m a s o c ie d a d e q u e f i c o u e s t á t i c a d u r a n t e
cinco mil anos está “atrasada”. Está atrasada em relação à outra, mas ela não faz parte
d a o u t r a . I s s o q u e r d i z e r q u e , p a r a e l a s e r u m a s o c i e d a d e q u e e s t á e m p r o g r e s s o e la t e r i a
q u e a b a n d o n a r a s u a p r ó p r i a a u t o - r e f e r ê n c i a e s e m e d ir p o r u m a o u t r a , m a s i s s o s e r i a a
extinção dela.

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Denotar essa idéia do atraso é uma idéia autocontraditória. Atraso
h i s t ó r ic o não existe, de maneira alguma. Progresso ainda pode ser uma noção
cientificamente aceitável, atraso não é.

Dentro de uma mesma cultura, por exemplo, você pode medir... uma
maneira de medir é aquela sua teoria dos patamares, não é, que você vê se a nova geração
apreende os patamares anteriores?

Sim, mas isso dentro de uma cultura determinada. Mas mesmo no


caso quando você perde de vista o patamar não quer dizer que você “atrasou”. Quer
dizer que você deteriorou.

Q u e a s c o i s a s d e t e r io r a m ? E u f a l o : b o m , q u a l q u e r p e s s o a q u e j á
esteve doente e já sarou, sabe o que é deterioração. Qualquer sujeito que teve dinheiro e
perdeu, sabe o que é deterioração.

Então, a existência de deterioração também é um fato permanente


d a e x i s t ê n c ia h u m a n a , u m a p o s s i b i l i d a d e p e r m a n e n t e d a e x i s t ê n c i a h u m a n a , e n t ã o e l a
corresponde a alguma coisa. Mas “atraso”, você só pode falar em atraso quando existe
uma escala predeterminada.

D i g a m o s , s e v o c ê p r e t e n d e r e a l i z a r a l g u m a c o is a , e e l a d e m o r a
mais tempo do que você esperou, você diz que está atrasado. Mas eu acho que isso –
h i s t o r ic a m e n t e – n u n c a a c o n t e c e u c o m u m a s o c i e d a d e .

O q u e s e f a la d e a t r a s o é p o r q u e v o c ê m e d e u m a c e r t a c u l t u r a , u m a
c e r t a s o c ie d a d e , p e lo p a r â m e t r o d a o u t r a , b a s e a d o n o p r e s s u p o s t o – i n t e i r a m e n t e im b e c i l
– d e q u e u m a d e v e r ia e s t a r i g u a l a o u t r a , q u e v o c ê n ã o s a b e ( p o r q u e ) n ã o e s t á .

E s o b r e t u d o p o r q u e m e d i r u m a p e la o u t r a s i g n i f i c a j á d e s t r u ir a
p r im e ir a . S e u m a c u l t u r a p e r m i t e s e r m e d id a n a r e g r a d a o u t r a , e l a j á p e r d e u s u a
autonomia, ela já se transformou numa subcultura da outra. Então quer dizer, o
progresso seria (...) para você entrar na linha do progresso, você teria que se
a u t o d e s t r u ir .

I s s o q u e r d i z e r q u e , h i s t o r ic a m e n t e f a l a n d o , p r o g r e s s o n ã o é o
contrário de atraso. Agora, raciocinar em termos de progresso e atraso, você sabe que é
uma coisa que está tão arraigada na nossa cultura atual que já virou quase um
automatismo.

7
Falam sociedades “atrasadas”. Pegam a sociedade na Zâmbia: está
“atrasada”. Está atrasada em relação a o quê? Você acha que Zâmbia deveria ser Nova
Iorque? De onde você tirou essa idéia? Que uma coisa deveria ser a outra? Não tem
s e n t i d o . V o c ê p o d e d i z e r q u e a s it u a ç ã o d a Z â m b i a e s t á m u i t o r u i m , q u e e l e s e s t ã o
morrendo de fome, que está tudo estragado. Mas, “atrasado” não.

A idéia de atraso se transformou num substitutivo de outros


t e r m o s n e g a t i v o s , d e e s p é c ie d e j u lg a m e n t o n e g a t i v o . P a r a v o c ê n ã o d i z e r q u e e s t á r u im ,
você diz que está “atrasado”.

O problema é quando as pessoas entram no estudo – no mundo da


cultura superior – o que eles recebem em primeiro lugar é o impacto da cultura presente.
E j u n t o c o m e l a , e l e r e c e b e t o d a s a s l i m i t a ç õ e s , a s v is e ir a s , a s p r o i b iç õ e s , o s p r e c o n c e i t o s
e t c . , q u e s ó v ã o p e r m i t i r q u e e l e e vo l u a e m d e t e r m i n a d o s s e n t i d o s .

Q u e r d i z e r , a v i g ê n c i a d e u m a d e t e r m i n a d a c u l t u r a im p l i c a t a m b é m
a e x i s t ê n c i a , p o r a s s i m d i z e r , d e c a r r e i r a s i n t e le c t u a i s p r e d e t e r m i n a d a s , q u e r d i z e r , u m
esquema predeterminado da carreira intelectual.

Você, naquela entrevista para a entrevista Atlântico, você falou que ao


invés de a gente pensar em termos de direita e esquerda, você devia pensar em termos de
revolucionário e contra-revolucionário, aí você incluiria elementos improváveis de esquerda e de
direita que num sentido corrente as pessoas costumam classificar. Nessa coisa de atrasado e
evoluído, vamos dizer, de progresso e atraso, tem alguma chave de compreensão que você
recomende, como essa que você deu de revolucionário e contra-revolucionário?

Não, não tenho isso. Eu estou só destruindo um par de conceitos,


dizendo que eles não formam um par. Embora, em termos de vocabulário –
semanticamente – progresso seja o contrário de atraso, isso se aplica só às palavras, só
aos conceitos, e não às realidades correspondentes.

V o c ê f o r m a u m a i d é ia d e p r o g r e s s o , c o m o u m a c o is a q u e v a i p a r a
frente, de atraso, como uma coisa que vai para trás. Mas acontece que o tempo nunca
v o l t a a t r á s , n ã o t e m c o m o v o c ê f a z e r is s o .

Q u e r d i z e r , o e s t a d o p r e s e n t e d e u m a s o c i e d a d e p o d e p io r a r , m a s
ele não pode voltar ao estado anterior, pelo simples fato de que ele já esteve no outro
estado.

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Quando as pessoas dizem: não, nós vamos voltar à Idade da Pedra.
E u d i g o , b o m , m a s u m a c o is a é v o c ê t e r n a s c i d o n a I d a d e d a P e d r a ; o u t r a c o i s a ,
completamente diferente, é você ter que viver com instrumentos da Idade da Pedra
d e p o i s d e vo c ê t e r t i d o t o d a e s s a t e c n o l o g i a q u e n ó s t e m o s . I s s o n ã o é u m a I d a d e d a
Pedra. É completamente diferente. Isso é uma deterioração, não é um atraso.

E s s e s im p l e s p a r d e c o n c e i t o s – p r o g r e s s o e a t r a s o – q u e e s t ã o e n t r e
os mais usados, entre os mais imaginativamente poderosos na nossa cultura, mais
impregnados na nossa cultura, eles já são praticamente a garantia de que você não vai
entender uma série de processos históricos. Quer dizer, se você os vê como progresso ou
a t r a s o , v o c ê n u n c a v a i e n t e n d e r o q u e r e a lm e n t e a c o n t e c e u .

À medida que você vai entrando no mundo da cultura superior, o


c o i t a d i n h o d o j o ve m e i n o c e n t e a l u n o – e u q u e r o s e r u m i n t e l e c t u a l , q u e r o s e r u m
historiador, quero ser um filósofo – e para isso entra num treco chamado universidade.
Você veja bem o impacto de toda essa malha de impedimentos mentais (...)

Claro que você vai receber também uma série de conhecimentos


positivos. Mas, entre o conjunto de conhecimentos materiais – conteúdos que você
a d q u ir e – e a m a l h a d e c o n c e it o s q u e o s a r t i c u l a , a m a l h a d e c o n c e i t o s é m a i s p o d e r o s a ,
p o r q u e a l i e s t ã o r e l a c io n a d o s c o m o f o r m a e m a t é r i a , n o s e n t i d o a r i s t o t é l i c o . O q u e v a i
predominar é a forma, o que dá a forma do conjunto é o que determina o que ele
significa.

E n t ã o , j u s t a m e n t e , o e s t u d o d a F i l o s o f i a é p a r a v o c ê c r ia r a s u a
p r ó p r i a m a lh a , d e a c o r d o c o m a s n e c e s s id a d e s e f e t i v a s d a b u s c a d o c o n h e c im e n t o . E n ã o
d e a c o r d o c o m f i n a l i d a d e s s o c i a i s j á e s t a b e l e c id a s d e a n t e m ã o , v o l t a d a s à c r ia ç ã o ,
expansão, conservação de determinadas modas culturais.

A Filosofia é um meio de você criar uma estrutura conceptual que


p o s s a a b a r c a r e t r a n s c e n d e r a e s t r u t u r a d a s m o d a s c u l t u r a is v i g e n t e s . N e s s e s e n t i d o , a
F i l o s o f i a é d e s a c u l t u r a n t e . V o c ê v a i t e n t a r e n x e r g a r a c im a d o h o r i z o n t e d a c u l t u r a e m
que você está.

P a r a f a z e r is s o , a p r i m e i r a c o i s a é v o c ê a p r e n d e r a r e c u p e r a r a s
possibilidades cognitivas e intelectivas de outras épocas, que foram perdidas.

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Como é que você faz isso? Em primeiro lugar, você precisa ter os
m a t e r i a is à s u a d i s p o s i ç ã o , v o c ê p r e c i s a t e r o s t e x t o s , o s d o c u m e n t o s , a q u i l o q u e s e
p a s s o u , ( n u m l u g a r ) . E v o c ê v a i p r e c is a r e m s e g u i d a f a z e r u m e s f o r ç o i m a g i n a t i v o q u e
lhe permita – não (é) compreender os autores antigos como eles mesmos se
compreendiam, mas – compreender a sua própria situação como eles a compreenderiam.

Se você vai estudar, por exemplo, Platão, desde o ponto de vista da


cultura contemporânea, você nunca vai entender Platão. Vou dizer por quê: no Século
XX, nós passamos por uma série de mutações culturais importantes; mas agora nós
estamos passando por uma gigantesca.

Esta uma é o seguinte: toda a cultura moderna, a sociedade


moderna, é determinada por um fator chamado “tecnologia”. O impacto da tecnologia,
n a s o c i e d a d e e n a c u l t u r a , e le s ó f o i ( s e n d o ) p e r c e b i d o e i n t e g r a d o n a c o n s c iê n c i a
humana aos poucos.

I s s o q u e r d i z e r q u e n ó s e s t a m o s n a c i v i l i z a ç ã o t e c n o ló g i c a ? N ã o
e s t a m o s a i n d a . A t e c n o lo g i a d e c id e e d e t e r m i n a a m a i o r p a r t e , u m a p a r t e i m p o r t a n t e d o s
p r o c e s s o s s o c i a is , m a s n ã o d e t e r m in a t o d o s . A i n d a t e m m u i t a c o i s a q u e é b a s e a d a e m
processos que não têm nada a ver com a tecnologia.

Por exemplo, você vê o número enorme de pessoas que são


r e l i g i o s a s . E l a s e s t ã o v i v e n d o , p e l o m e n o s p a r c i a lm e n t e , d e n t r o d e u m a a t m o s f e r a
c u l t u r a l o n d e a t e c n o l o g i a n ã o t e m n a d a q u e ve r c o m a e s t ó r i a . A t e c n o l o g i a n ã o é n e m
contra, nem a favor. Isso aí é outro departamento.

Mas, uma coisa é você viver num universo onde você acredita que
existe um Deus que criou o mundo e que vai levar o processo da História do mundo até
uma (certa) meta, na qual haverá o fim desse mundo e a passagem de tudo para a escala
da Eternidade. Isso é uma coisa. Outra coisa é você viver dentro de um mundo onde
tudo é um problema tecnológico.

N a m e d i d a e m q u e o im p a c t o d a t e c n o l o g i a n a s o c i e d a d e a u m e n t a ,
a tendência da cultura é encarar tudo sob a categoria da tecnologia.

A p r i m e i r a e m a is i m e d i a t a c o n s e q ü ê n c i a q u e i s s o t e m : “ im e d i a t a ”
n ã o é r á p i d o , i s s o l e v a m u i t a s d é c a d a s , p e l o m e n o s , p a r a q u e i s s o a c o n t e ç a . A p r im e ir a
conseqüência é que tudo aquilo que esteja fora da possibilidade de ação tecnológica
acabe ficando fora da imaginação também. Porque, se a tecnologia é a grande chave,

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então nós só vamos pensar naquilo que está ao alcance da tecnologia. Ou o que você
supõe que possa estar ao alcance da tecnologia, amanhã ou depois.

I s s o q u e r d iz e r q u e a e s f e r a d a a ç ã o m a t e r i a l h u m a n a s e t o r n a d e
a l g u m m o d o o h o r i z o n t e ú l t i m o d a r e a l i d a d e : n a d a e x i s t e p a r a a l é m d is s o .

É claro que existe uma esfera de ação muito grande, na qual a ação
t e c n o l ó g ic a h u m a n a é v i á v e l . D i g a m o s : t o d a s a s d o e n ç a s a t u a l m e n t e e x i s t e n t e s , n ó s
podemos esperar que elas serão curadas, por meios tecnológicos. Não foram ainda. Mas,
nós podemos esperar isso e as pessoas têm essa esperança.

Qualquer doença que você pegue, se não existe cura ainda, o que as
pessoas fazem? Nós vamos sentar e esperar que pode ser que dentro de dois, de três, de
quatro, de cinco, ou dez, ou vinte anos eles descubram a cura para isto. Cada aidético no
mundo vive com esta idéia. Existe essa esfera da existência sujeita à ação tecnológica,
ela existe. E ela é muito grande.

Porém, se a tecnologia é a chave da existência, então, naturalmente,


tudo aquilo que esteja fora da possibilidade teórica de ação tecnológica, deixa de ter
interesse para as pessoas. O mundo se torna como se fosse um laboratório, onde nós
fazemos experimentos – alguns podem dar certo, outros podem dar errado – mas, tudo
a q u i l o q u e n ã o p o s s a s e r o b j e t o d e e x p e r im e n t o n ã o i n t e r e s s a .

Isso quer dizer que dimensões inteiras da existência, onde a


t e c n o l o g i a n ã o p o d e a g ir d e m a n e i r a a l g u m a , s ã o t i d a s c o m o i n e x is t e n t e s o u i r r e le v a n t e s .
A começar pelo fenômeno da morte. Hoje em dia as pessoas são incapazes de pensar a
m o r t e , e x c e t o n o s e n t id o d e v i v e r u m p o u c o m a i s . Q u e é p r o l o n g a r a e x i s t ê n c i a h u m a n a .

Prolongar a existência humana é uma possibilidade que a


t e c n o l o g i a t e m . E , d e f a t o , e l a a t é t e m f e i t o is s o . M a s , e a m o r t e ? M a i s d i a , m e n o s d i a ,
você vai morrer. Então quer dizer: você vai viver um ano a mais, ou um ano a menos, e
não vai mudar em nada a estrutura da Realidade.

Isso quer dizer que o fenômeno da morte, não podendo ser objeto
d e a ç ã o t e c n o l ó g i c a , e le n ã o t e m c o n c e it o s o c i a l m e n t e i n t e g r a d o , e n t ã o n ó s v i v e m o s
numa cultura sem morte. A morte, durante séculos, foi tema quase predominante da
cultura. De repente, não. Não se fala mais. Só se fala de saúde, de prolongar a vida etc.,
de eliminar as dores e assim por diante.

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Se você já entra na busca da cultura superior numa situação assim
definida, você já entra com um escotoma, você já tem um pedaço imenso da realidade
que não existe para você. E que, justamente, o estudo superior, o estudo da Filosofia,
visará a reconquistar para você. Fazer com que você se torne capaz de imaginar aquilo
q u e d e n t r o d a s u a c u l t u r a n ã o é g e r a l m e n t e im a g i n a d o .

Acontece que a aquisição de cultura superior freqüentemente se


i d e n t i f ic a c o m a a q u is i ç ã o d e u m a a u t o r i z a ç ã o d o E s t a d o p a r a o e x e r c í c i o d e c e r t a s
profissões, de ensino ou de pesquisa.

E n t ã o , a í vo c ê t e m u m s e r i í s s i m o p r o b l e m a : s e v o c ê q u e r u m a
cultura superior no sentido de adquirir a capacidade de compreender a Realidade,
s o b r e t u d o a r e a l i d a d e d a H i s t ó r i a , d a C i v i l i z a ç ã o , a r e a l id a d e d a e x i s t ê n c i a h u m a n a a o
longo dos milênios; é uma coisa.

E s e v o c ê q u e r a c u l t u r a s u p e r io r n o s e n t i d o d e p o d e r e x e r c e r e s t a
o u a q u e l a p r o f i s s ã o , v o c ê e s t á i n d o n o s e n t id o e x a t a m e n t e c o n t r á r i o . V o c ê p r e c is a r á s e
adaptar à cultura presente, o mais possível para que você possa representá-la
profissionalmente.

Este é o motivo p e lo qual eu considero que a i n s t i t u iç ã o


u n i v e r s i t á r ia é a g r a n d e i n i m i g a d o s e s t u d o s s u p e r i o r e s h o j e e m d i a . E o m o t i v o d e ( e u )
t e r m e m a n t i d o à m a r g e m d e s t a i n s t i t u iç ã o d u r a n t e t o d a m i n h a v i d a , p o r q u e e u t i n h a
medo dela, eu sabia que o que eles estavam fazendo lá não era fortalecer as consciências
para que compreendessem a Realidade; mas, moldá-las para o exercício de determinados
papéis sociais.

Eu vejo que o papel social da profissão universitária, de cientista,


d e a c a d ê m i c o , e le p o d e s e r t ã o h o s t i l à c o m p r e e n s ã o d a r e a li d a d e , a o p o n t o d e q u e a t é o s
melhores cérebros, as melhores inteligências, na medida em que buscam se adaptar e ser
b e m s u c e d i d a s n e s s a c a r r e ir a , e l e s t ê m q u e s e m u t i l a r i n t e l e c t u a lm e n t e , p a r a n ã o d i z e r
c o is a s q u e s e j a m i n c o m p r e e n s í v e is o u c h o c a n t e s d e n t r o d a q u e l e a m b i e n t e .

As exceções, os camaradas que conseguem fazer as duas coisas ao


mesmo tempo, ao mesmo tempo criar uma carreira universitária e se manter apegados à
realidade, são muito poucos.

E u e s t a v a v e n d o e s s a g r a v a ç ã o d o E r ic V o e g e l i n e m T o r o n t o –
conferência que ele deu lá em Toronto – participando de mesas redondas onde estavam,

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e n t r e o u t r a s f i g u r a s , B e r n a r d L o n e r g a n e H a n s - G e o r g G a d a m e r . S ã o f i g u r a s d e p r im e ir o
p l a n o . M a s v o c ê c o m p a r a n d o – o q u e e l e s d i z ia m , c o m o q u e o V o e g e l i n d i z i a – e l e s
estavam discutindo questões acadêmicas profissionais. E o Voegelin estava falando de
realidades. Ao ponto de que aqueles não chegaram a compreender o que ele dizia,
p o r q u e e r a g r a v e d e m a i s , e r a s é r io d e m a is .

E a gente não pode esquecer que a universidade é uma escola. E


numa escola – tudo o que se passa na escola – é fingido. A escola não é a realidade.
A s s im c o m o , p o r e x e m p l o , n u m a a c a d e m i a m i l i t a r v o c ê n ã o v a i f a z e r g u e r r a d e ve r d a d e ,
v o c ê n ã o v a i d a r t ir o d e v e r d a d e n o s s e u s c o le g a s . V o c ê v a i f a z e r e x e r c í c i o s , m a n o b r a s
e t c . ( . . . ) f a l a n d o c o m o P ir a n d e l l o : “ m a n o n é u n a c o s a s e r i a ” .

Séria é quando você vai para o combate mesmo. E lá – no combate –


o i n i m i g o n ã o e s t á a f im d e t e e n s i n a r c o is a n e n h u m a , e l e q u e r a p e n a s m a t a r v o c ê . Q u e r
dizer: entre o soldado que tem uma boa formação militar na escola e o soldado que tem
experiência de combate, a diferença é quase de planeta.

E n t ã o ( is s o q u e r d i z e r q u e ) , t u d o a q u i l o q u e t e n t a s e a d a p t a r à
m e n t a l i d a d e e s c o l a r , e s t á i m i t a n d o a r e a l i d a d e , m a s i m it a n d o d e l o n g e , v o c ê e s t á d e n t r o
de muros que o protegem da Realidade. Você é apenas um estudante ou um professor e
você não será cobrado pelo conteúdo do que você diz. Porque tem a famosa liberdade
acadêmica.

E n t ã o , s e v o c ê é u m p o l í t ic o , u m m i n i s t r o , u m p r e s i d e n t e d e
empresa, tudo aquilo que você fala tem conseqüências. Agora, se você é um professor ou
u m e s t u d a n t e n a d a d o q u e v o c ê f a l a t e m c o n s e q ü ê n c i a s , p o r q u e é t u d o p a r a f in s d e
ensino. Um professor pode ensinar numa classe exatamente o contrário do que ele
a c r e d i t a . N a d a o im p e d e d e f a z e r i s s o . P o r q u ê ? É p a r a f i n s d i d á t i c o s , é t u d o
e x p e r im e n t a l , p o r a s s i m d i z e r , n a d a é v á l i d o , n a d a é d e f i n i t i v o .

Se você quer compreender a realidade do que está acontecendo,


b o m , a R e a li d a d e , e m p r i m e ir o l u g a r , n ã o v a i s e e n q u a d r a r n a s e x i g ê n c i a s c u r r i c u l a r e s e
disciplinares. Você não tem como reduzir a Realidade àquela articulação de enfoques
padronizados e correspondentes aos nomes das várias disciplinas e muito menos
c o r r e s p o n d e n t e s à s v á r ia s g r a d a ç õ e s c u r r ic u l a r e s d o a p r e n d i z a d o .

N ã o e x i s t e , p o r e x e m p l o , u m a g u e r r a p a r a o p r i m e ir o a n o d a
f a c u l d a d e , o u t r a g u e r r a p a r a o s e g u n d o a n o d a f a c u ld a d e ; n ã o . E x is t e u m a g u e r r a s ó ,

13
meu filho, está entendendo? Não existe uma guerra para os economistas, outra para os
s o c i ó l o g o s , o u t r a p a r a o s c ie n t i s t a s p o l í t i c o s ; n ã o . E x i s t e u m a g u e r r a s ó .

A g o r a , s e e u , p o r e x e m p l o , e u s o u u m c i e n t i s t a p o l í t ic o e e s t o u
d a n d o a u l a p a r a o p r im e ir o a n o d a f a c u l d a d e , e n t ã o e u v o u t e r q u e s e l e c i o n a r d e s s a
g u e r r a a q u il o q u e c o m b i n e c o m a m i n h a d i s c i p l i n a , v o u t e r q u e r e c o r t a r d e a c o r d o c o m
as exigências de minha disciplina, e não com as exigências do fenômeno objetivo
chamado Guerra.

E u q u e r o d i z e r q u e , q u a n t o m a i s a i n s t i t u iç ã o u n i v e r s i t á r i a c r e s c e e
se torna ela própria um instrumento essencial de manutenção do funcionamento da
própria sociedade, menos ela se presta à busca do conhecimento.

Então isso aí virou uma tragédia já. A grande tragédia do Século


X X . T a n t o ( q u e ) v o c ê vê q u e a s u n iv e r s i d a d e s n a s ú l t im a s d é c a d a s , n ã o s ó n o B r a s i l , m a s
p o r t o d a a p a r t e , s e t r a n s f o r m a r a m m a i s e m c e n t r o s d e a r r e g im e n t a ç ã o p o l í t ic a , d e
f o r m a ç ã o d e m i l i t â n c i a p a r a a d e f e s a d a s id é i a s m a i s i m b e c i s q u e e x i s t e m n o u n iv e r s o ,
d o q u e p a r a s e r v i r p a r a a f o r m a ç ã o d e i n t e l e c t u a i s d e p r i m e ir o p l a n o . P r a t i c a m e n t e n ã o
existe nenhum intelectual de primeiro plano que esteja bem integrado no meio
u n i v e r s i t á r io . O s m e l h o r e s e m c a d a á r e a , e l e s s e m p r e e s t ã o , n o m í n i m o , u m p o u c o f o r a .
No mínimo têm um conflito (com eles).

Também não podemos esquecer que a universidade é uma


instituição educacional de massas; não de elite. Para ser de elite cada vez mais (...) a
massa indistinta, quer dizer, todo mundo pode ser bacharel, pode ser doutor, pode ser
professor etc., (esse é) considerado um dos direitos fundamentais da Humanidade, o
direito a um canudo.

É claro que isso aí torna ainda mais difícil a articulação entre a


educação universitária e busca do conhecimento. Você veja: esse que eu estou falando é
u m p r o b l e m a e s t r u t u r a l, u m p r o b l e m a i n e r e n t e à n a t u r e z a d a s c o i s a s e n ã o e s t o u l e v a n d o
e m c o n t a , n o m a i s m í n im o q u e s e j a , a p o s s i b i l i d a d e d a c e n s u r a d e l i b e r a d a , d o b o i c o t e
d e l i b e r a d o ; m a s q u e is s o t a m b é m e x i s t e . E e x i s t e p o r q u ê ? P o r q u e i s s o r e f l e t e u m
c o n f l i t o e s t r u t u r a l q u e j á e r a a n t e r io r .

Quer dizer: mesmo que todo mundo agisse com a maior idoneidade
possível, a estrutura da coisa já é problemática. Mas, o fato é que as pessoas não agem
c o m a m a i o r i d o n e i d a d e p o s s í ve l . E x i s t e t o d o u m a s p e c t o a l i d e d i s p u t a d e p o d e r , d e
conservação do prestígio de classe etc. E tudo isso, se você pegar esse conjunto de

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i m p e d im e n t o s e s t r u t u r a i s e m a i s a m á i n t e n ç ã o e a s a c a n a g e m ( q u e ) s e m i s t u r a m a l i ,
então aí acabou.

Isso significa que a possibilidade de investigação da realidade


d e n t r o d o m e i o u n i v e r s i t á r i o é p r a t ic a m e n t e i n e x i s t e n t e . A n ã o s e r p a r a a q u e l e s q u e s ã o
( . . . ) e x is t e u m a p o s s i b i l i d a d e : v o c ê s e r u m g ê n i o , u m a p e s s o a d e u m a p e r s o n a l i d a d e t ã o
impressionante, que ninguém ousa mexer com você. Então eles deixam você fazer o que
quiser, (dizem:) não o professor aí é louco, então é melhor não mexer nele.

E r a o c a s o d o E r ic V o e g e l i n . T o d o m u n d o t i n h a m e d o d e l e . E n t ã o ,
n u n c a o im p e d i u d e f a z e r a s c o i s a s d e l e , m a s s e m a n t i n h a u m a d i s t â n c i a , p o r q u e
r e a lm e n t e n ã o c o m p r e e n d i a o q u e e l e d i z i a . T e m u m c a s o f a m o s o , q u a n d o e l e f o i f a z e r a
conferência pela primeira vez na universidade de Munique, que aí lá tinha a
i n t e l e c t u a l id a d e d o m i n a n t e e t i n h a o R a l p h D a h r e n d o r f , q u e e r a o g r a n d e c i e n t i s t a
p o l í t i c o d o m o m e n t o e e l e o u v i u a c o n f e r ê n c i a d o V o e g e l i n e s a i u p e r p l e x o . E l e d is s e q u e
não tinha entendido uma palavra do que ele disse: “ele não falou nada sobre o problema
da Constituição, o problema dos direitos humanos etc., que raio de Ciência Política é
e s s a ? É o u t r a c o is a , e u n ã o s e i d o q u e e l e e s t á f a l a n d o ” .

Naturalmente, isso não resultou em nenhum boicote para o Eric


V o e g e l i n . M a s , q u e e l e f o s s e u m a p e s s o a m e n o s r i g o r o s a d o q u e f o i , e l e t e r ia s i d o
e s m a g a d o n o m e io u n i v e r s i t á r i o . E l e n u n c a f o i e s m a g a d o , e le s i m p l e s m e n t e f i c o u ( . . . )
f i c a r a m c o m o s a c o c h e io ( . . . ) e i n g ló r i o ( . . . ) t a n t o q u e e l e p r e f e r i u v o lt a r p a r a o s E s t a d o s
U n i d o s , d e i x a n d o t o d o s o s s e u s a l u n o s a l e m ã e s a b s o l u t a m e n t e d e s a r v o r a d o s , p o r q u e e le s
viram (ali) uma luz nas trevas. Mas ele não agüentou – veja – a mediocridade da
universidade alemã.

Essa é outra coisa incrível. Quando as instituições acabam, quando


e l a s p e r d e m o s e u v i g o r , e l a s c o n s e r v a m o p r e s t í g i o , t ê m u m p r e s t í g i o r e s id u a l c o m o d e
múmia. A universidade alemã, até hoje, você fala pelo mundo, as pessoas pensam que é
a l g u m a c o is a , e l a s p e n s a m q u e e s t ã o n o s a n o s 2 0 a i n d a .

M e s m o n o s E s t a d o s U n i d o s , q u a n d o v o c ê f a la e m H a r v a r d ( . . . )
H a r v a r d h o j e é u m a e s c o l i n h a d o M S T , n ã o é n a d a m a i s d o q u e is s o . N o e n t a n t o , a s
p e s s o a s f a l a m : o h , e l e f o i d ir e t o r d a R e v i s t a d e D i r e i t o d e H a r v a r d . A R e v i s t a d e D i r e i t o
d e H a r v a r d é u m s e m a n á r io d o M S T , u m a c o is a d e a n a l f a b e t o – c o m u n i s t a a n a l f a b e t o –
mas ainda tem o prestígio.

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C u r i o s a m e n t e , o s m e s m o s c a r a s q u e ( m a is ) a j u d a r a m a d e s t r u ir a
i n s t i t u i ç ã o u n i v e r s i t á r ia , ( q u e s ã o ) a q u e le s a t i v i s t a s d o s a n o s 6 0 , ( e l e s m e s m o s ) u s a m o
prestigio da universidade que eles mesmos destruíram. Quer dizer, é usurpação mesmo:
mata o sujeito e assume o título dele, parece com a estória do “Máscara de Ferro”.

Este curso meu – não só o meu curso, mas tudo que eu estou
fazendo – é concebido em vista de responder ao seguinte problema: supondo-se que eu
q u i s e s s e a d q u i r ir u m c o n h e c i m e n t o d a H i s t ó r i a , d a C u l t u r a , d a F i l o s o f i a , d a R e l i g i ã o ;
que respondesse àquela famosa exigência do Leopold von Ranke – “eu quero conhecer as
c o is a s c o m o e f e t i v a m e n t e s e p a s s a r a m ” – p o u c o i m p o r t a n d o s e e u v o u p o d e r u s a r i s s o
n u m a p r o f is s ã o a c a d ê m ic a o u s e , a o c o n t r á r i o , i s s o s ó v a i m e t r a n s f o r m a r n u m s u j e i t o
esquisito, que ninguém compreende.

Se você tem a coragem para isso, vo c ê pode chegar ao


conhecimento da Realidade, você pode chegar ao conhecimento objetivo. Porém, note
bem, quanto mais coisa você conhece, isso significa que você conhece coisas que os
o u t r o s n ã o c o n h e c e m . D e c a r a . S a b e r m a is é s a b e r o q u e o s o u t r o s n ã o s a b e m .

Então, quanto mais você sabe, menos você será compreendido por
aqueles que não sabem. Se você quer pagar esse preço, se você acha que o conhecimento
vale isso – eu acho que vale, eu dediquei a isso minha vida e não estou nem um pouco
a r r e p e n d id o , e s t o u a c h a n d o ó t i m o , m a s e u t i v e q u e a p r e n d e r a o l o n g o d o t e m p o a n ã o
esperar ser compreendido pelos ignorantes, (eles) não têm como compreender – então
e s s a é u m a p r i m e ir a c o i s a .

Segundo: se você quer isso para você ser efetivamente um


estudioso sério e não necessariamente para ser tido como tal pelos ignorantes que posam
d e e s t u d i o s o s , e n t ã o v o c ê v a i t e r q u e s e g u ir u m a s é r i e d e p r á t i c a s e d e p r o t o c o l o s d e
a p r e n d i z a d o q u e l h e p e r m it i r ã o c h e g a r a o n d e v o c ê q u e r . E f o i i s s o q u e e u f i z a m i n h a
v i d a i n t e ir a e é o q u e e u g o s t a r i a d e e n s i n a r a o s o u t r o s a f a z e r .

E n t ã o , ( e u ) q u a n d o c o l o c o u m p r o b le m a n a m i n h a c a b e ç a , e u q u e r o
a resposta efetiva, (eu sempre penso) essa frase do Ranke não me sai da cabeça: “eu
quero conhecer as coisas como efetivamente se passaram”. E eu acredito que a
i n t e l i g ê n c i a h u m a n a é e f e t i v a m e n t e c a p a z d e f a z e r is s o .

Porém, “as coisas como efetivamente se passaram” não são


necessariamente como as pessoas gostam de imaginar que elas se passaram. E quando

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v o c ê d e s c o b r e c o is a s d o p a s s a d o , v o c ê m o d i f ic a a v i s ã o q u e v o c ê t e m d o s p e r s o n a g e n s d o
presente, você os olha dentro de uma outra perspectiva.

Q u e r d i z e r : a s u a e s c a l a d e c o m p a r a ç ã o c r e s c e f o r m id a v e l m e n t e ,
porque aquilo que para os outros pode ser uma novidade e tal, você já tem elementos de
comparação anterior, já não é tão “novidade” assim. Muitas coisas nas quais a maior
parte das pessoas depositam grandes esperanças, você já vai saber – de antemão – que
n ã o v ã o d a r c e r t o . P o r q u e v o c ê j á t e m a e x p e r iê n c i a h is t ó ri c a a c u m u l a d a .

E, também, pode acontecer o pior de tudo: que quando você tiver


c o m p r e e n d i d o u m a s é r ie d e p r o c e s s o s , t i v e r a d q u ir i d o u m a c u l t u r a f i l o s ó f i c a , h i s t ó r ic a
( . . . ) m o n u m e n t a l, a s p e s s o a s n ã o q u e i r a m s a b e r q u a l é a s u a o p i n i ã o . Q u e e l a s p r e f ir a m
se ater aos seus preconceitos, às suas ideiazinhas. Isso de fato acontece. Então, aí você
v a i f i c a r n u m a s i t u a ç ã o u m p o u c o e s q u i s it a .

E u m e l e m b r o q u e u m a v e z e u v i u m a s e n h o r a n a r u a , e la t i n h a
caído no chão e ela estava se debatendo e tendo uma crise histérica, acho que até uma
c r i s e e p i l é t i c a . E f u i l á a j u d á - l a a s e l e v a n t a r e t a l. D a í e l a c o m e ç o u a m e e s m u r r a r ,
gritando assim: “eu odeio homem, eu odeio homem”. E o que eu posso fazer minha
senhora? Então, quer saber? Foda-se. Não, não vou ajudar mais, a senhora não quer que
eu a ajude, eu não a ajudo.

Muitas vezes perante os p o l í t ic o s , os homens públicos, os


formadores de opinião, líderes empresariais, militares etc., você vai ficar nessa situação
e f a l a r : “ o l h a , e u s e i a s o l u ç ã o p a r a o s e u p r o b le m a , a g o r a s e v o c ê n ã o q u e r , o p r o b l e m a
é seu, eu só quis ajudar”. Você vai ficar na posição do consultor indesejado.

Isso também pode acontecer, mas ainda assim eu acho que a busca
d o c o n h e c im e n t o é a m e l h o r f i n a l i d a d e d a v i d a , n ã o t e m c o is a m e l h o r . E é m e l h o r v o c ê
e s t a r e n t e n d e n d o , p o r q u e v o c ê n ã o v a i s o f r e r c o m o u m b ic h i n h o . S o f r e c o m a d i g n i d a d e
do ser humano, você sabe o que está acontecendo.

A m i n h a i d é i a p a r a e s t e c u r s o é t r a n s m i t ir p a r a v o c ê s u m a p a r t e
d e s s a e x p e r iê n c i a . O p r o b l e m a q u e a g e n t e c o l o c a é o s e g u i n t e : o q u e n ó s e s t u d a m o s n ã o
é Filosofia. O que nós estudamos é um negócio que chama Realidade.

A Realidade é aquilo que todo mundo conhece, que já está dado


para você, no conjunto da sua experiência externa e interna desde que você nasceu. A

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R e a l i d a d e é a o n d e v o c ê v i v e . A o n d e v o c ê s e m o v e . É a o n d e v o c ê s e a le g r a , c h o r a , t e m
e s p e r a n ç a , lu t a , t e m v i t ó r i a s , d e r r o t a s e t c . , i s t o é a R e a l i d a d e .

E a Filosofia quando ela surge, ela surge exatamente como uma


i n v e s t i g a ç ã o s o b r e a R e a l i d a d e . N ã o s u r g e c o m o u m a d i s c i p l i n a a c a d ê m ic a , o n d e v o c ê
t e m q u e c u m p r ir c e r t o s r i t o s p a r a v o c ê s e r a c e i t o n u m a d e t e r m in a d a c o m u n i d a d e
profissional. Comparado com a Filosofia, como estudo da Realidade, essa “filosofia” no
s e n t i d o p r o f i s s i o n a l é a p e n a s u m a b r i n c a d e i r a d e c r i a n ç a . É u m a c o is a q u e a g e n t e n ã o
p o d e l e v a r a s é r i o n e m p o r u m m i n u t o . E n ó s d e v e m o s n o s m a n t e r à d is t â n c i a d e l a .

Você veja (que) a idéia mesma de tornar-se um filósofo – tornar-se


um filósofo é fazer aquilo que Sócrates, Platão e Aristóteles faziam (...) Você pode
d i s c u t ir m u i t o s o b r e o c o n c e i t o d e F i l o s o f i a , o q u e é a F i l o s o f i a , o q u e n ã o é ( . . . ) m a s i s s o
a í é a p e n a s u m a e s p e c u l a ç ã o . N ó s v a m o s p a r t ir d e u m f a t o , u m d a d o h i s t ó r i c o . O d a d o
h i s t ó r ic o é q u e n ó s u s a m o s e s t a p a l a v r a “ f i l ó s o f o ” p o r q u e t e v e t r ê s f u l a n o s c h a m a d o s
S ó c r a t e s , P l a t ã o e A r is t ó t e l e s , q u e c o m e ç a r a m a f a z e r i s t o .

E n t ã o o n o s s o o b j e t i v o , e m p r im e i r o l u g a r , é f a z e r a q u i l o q u e e l e s
faziam. É se dedicar à mesma coisa que eles faziam. E, o que eles faziam era exatamente
u m a e s p e c u l a ç ã o s o b r e a n a t u r e z a , f u n d a m e n t o e e s t r u t u r a d a R e a li d a d e , d e m o d o a
p e r m i t ir q u e a e x i s t ê n c ia h u m a n a t r a n s c o r r e s s e d e u m a m a n e i r a i l u m i n a d a e e s c l a r e c i d a .

Q u e r d i z e r : v o c ê c r ia r u m a c e r t a z o n a d e c l a r id a d e n o m e io d a
c o n f u s ã o e o b s c u r i d a d e d a e x i s t ê n c i a h u m a n a e m g e r a l. N ã o h á a m e n o r p o s s i b i l i d a d e d e
d u v i d a r q u e e r a is t o q u e e l e s f a z i a m , p o r q u e e l e s d i z e m q u e é i s t o q u e e l e s e s t ã o
f a z e n d o . E q u a n d o v o c ê v a i v e r a p r á t i c a d e l e s , é e x a t a m e n t e is t o .

N o s t r ê s c a s o s , e l e s v ê e m a F i l o s o f ia c o m o u m a b u s c a d a S a b e d o r i a .
E a Sabedoria consiste exatamente em tornar a Realidade translúcida. Quer dizer: você
saber o que está acontecendo, você entender do que se trata na sua existência. Quer o
“ser”, o que você está fazendo ali e o que é este universo que te rodeia e qual é a melhor
m a n e ir a d e v o c ê v i v e r d e n t r o d i s t o . I s s o é o q u e e le s f a z i a m e i s s o é o q u e n ó s v a m o s
fazer.

M u i t o b e m . C o m o o p o n t o d e p a r t id a d e s t e c u r s o é a c o n s t a t a ç ã o , a
descoberta daquele estado de coisas que eu estava descrevendo no começo da aula,
e n t ã o , o p ri m e i r o p a s s o é t e n t a r r e s t a u r a r n o s a l u n o s a p o s s i b i l i d a d e d e q u e e l e s
compreendam o pensamento, a cultura de outras épocas e de outros lugares não desde o
p o n t o d e v i s t a a c a d ê m i c o d e h o j e , m a s d e s d e u m p o n t o d e v i s t a f i l o s o f ic a m e n t e v á l i d o .

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Você não terá acesso nenhum, a nenhuma filosofia de outras
épocas, se você fizer questão de encará-la apenas desde o ponto de vista da cultura
a t u a l . E x i s t e m m u i t o s a s p e c t o s d a f i l o s o f i a d e P l a t ã o , A r i s t ó t e l e s , S ó c r a t e s – s e m f a la r d e
o u t r o s e d e o u t r a s c u l t u r a s d e a c e s s o m a i s d if í c i l – q u e n ã o t ê m l u g a r , n ã o c a b e m n a
cultura contemporânea, porque você não pode compreendê-los desde um horizonte de
r e a l i d a d e d e t e r m i n a d o p e l a t e c n o lo g i a . E l e s e s t ã o f a l a n d o d e c o i s a s s o b r e a s q u a i s a
t e c n o l o g i a n ã o t e m a c e s s o d e m a n e ir a a l g u m a .

Se você fala de “estrutura da Realidade”, “ordem total da


Realidade” (...) qualquer ser humano sabe que ele vive dentro de um universo que
e x i s t i a a n t e s d e l e c h e g a r a q u i. S a b e q u e e s t e U n i v e r s o , e m p r i n c í p i o , c o n t é m t u d o o q u e
aconteceu e o que está por acontecer. Este tudo implica a totalidade dos processos
f í s i c o s , b i o ló g i c o s e t c . , e a t o t a l id a d e d o s a c o n t e c im e n t o s h i s t ó r i c o s e a t o t a li d a d e
daquilo que foi sentido, pensado etc., ao longo do tempo.

Todos nós sabemos que isto constitui a Realidade. E também


s a b e m o s q u e i s t o n ã o c h e g a a t é n ó s d e u m a m a n e ir a c a ó t i c a , m a s c h e g a c o m o u m a
estrutura. A estrutura se repete para cada novo ser humano que chega no cenário.
Embora existam muitas coisas que mudem, têm uma (certa) estrutura que é
a b s o l u t a m e n t e i n v a r ia n t e .

Todo mundo sabe que vai ter um certo tempo para viver e que
depois ele vai morrer. Isso aí todo mundo sabe. Todo mundo sabe – de cara – que da
totalidade do que acontece, só uma parte ínfima chega ao seu conhecimento, mas a parte
que não chegou está presente. Ela não é uma pura ausência. Ela é uma latência.

Por exemplo, vamos supor: fulaninho se apaixonou pela fulaninha.


O cara chega lá e pediu para ela casar com ele. Ele não sabe se ela vai querer ou não.
Isto é a zona de ignorância. Isto é apenas uma ausência? Se fosse uma ausência não seria
problema nenhum. Mas é uma tensão. Quer dizer: dentro da cabeça dela, tem alguma
idéia que, em algum momento, ela vai dizer para você. Então, o conjunto do que nós não
s a b e m o s é u m c o n j u n t o d e l a t ê n c i a s , é u m a p r e s e n ç a t ã o i n t e n s a q u a n t o d a q u il o q u e
estamos vendo.

V o c ê e s t á a n d a n d o a q u i p o r u m a r u a e t e m a l i u m c a c h o r r o d e it a d o .
O c a c h o r r o , o q u e e l e v a i f a z e r ? E le v a i a b a n a r o r a b o p a r a vo c ê ? V a i l a t i r p a r a v o c ê ? V a i
te morder? Você não sabe. Mas o conjunto do que o cachorro não fez ainda, está tão
presente para você quanto a própria presença física do cachorro. Às vezes até mais. Se

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v o c ê t e m m e d o d e c a c h o r r o , a p o s s ib i l i d a d e d e o c a c h o r r o t e m o r d e r , t e a f e t a m a i s a t é d o
que a mera presença física do cachorro.

Então, o conjunto do que nós não sabemos é um conjunto de


enigmas potencialmente explosivos. E todos nós, então, vivemos dentro de uma
estrutura de Realidade que não é constituída só das presenças óbvias, mas de uma
infinidade de latências.

E s s a s l a t ê n c i a s n ã o e x is t e m s ó n a n o s s a m e n t e . S e e x i s t i s s e m s ó n a
n o s s a m e n t e ( . . . ) v e j a : u m a c o is a é o q u e e u p e n s o q u e o c a c h o r r o v a i f a z e r , e u p o s s o
f a z e r a s q u a t r o h i p ó t e s e s , o u e l e m e a b a n a o r a b o , o u e l e r o s n a p a r a m im , o u e l e l a t e , o u
ele me morde. Pelo menos tenta me morder. Essas quatro hipóteses existem na minha
c a b e ç a . M a s s e e l a s e x is t i s s e m s ó n a m i n h a c a b e ç a , n ã o t e r i a n e n h u m p r o b l e m a , p o r q u e
um cachorro mental não morde.

Não é da minha idéia sobre o cachorro que eu estou falando, mas é


do que o cachorro vai fazer efetivamente. É lá que está a latência e não na (...). Claro que
e u c r i o u m a l a t ê n c i a e q u i v a l e n t e m e n t a l : e u p e n s o n is s o . M a s s e r i a r id í c u l o e u d iz e r q u e
e s s a s l a t ê n c i a s s ó e x i s t e m m e n t a lm e n t e . E u t e n t o c o n h e c ê - l a s m e n t a l m e n t e , m a s e l a s
estão na Realidade do mundo. Se elas não estivessem na Realidade do mundo não seria
problema algum e pensar nelas seria apenas um jogo mental sem importância.

Por exemplo: quando que eu vou morrer? Quantos anos eu vou


viver? Não tenho a menor idéia, mas a minha morte é só um pensamento meu? Se a
m i n h a m o r t e f o s s e s ó u m p e n s a m e n t o , e u n ã o m o r r e r i a j a m a is . E n ã o s e r i a u m p r o b l e m a .
Seria apenas uma brincadeira. Mas eu sei que um dia eu vou morrer.

Então daí eu penso assim: não, mas quando eu morrer, eu terei


deixado uma situação melhor para minha família ou vai ficar todo mundo desamparado?
O que vai acontecer? Todo mundo pensa nisso. E isto são coisas reais.

É destas latências que eu estou falando e não da sua mera


representação mental. Essas latências são presenças. E mais ainda: a quase totalidade do
mundo real é constituído dessas latências. Das coisas que você não sabe, mas que estão
presentes de algum modo.

Mesmo coisas do passado. Porque conforme o que tenha acontecido


no passado, pode modificar o futuro. E eu não sei o que aconteceu no passado e, por isso

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mesmo, não sei o que vai ser o futuro. As latências se prolongam para o passado e para o
futuro.

Também elas se prolongam espacialmente. Por exemplo, agora nós


estamos aqui nesta sala, então daí nós temos uma certa idéia do círculo que tem em
v o l t a , o b a i r r o o n d e n ó s e s t a m o s , a s c a s a s d o s v i z i n h o s e t c . M a s n ó s s a b e m o s q u e e s t ão
acontecendo coisas mais para adiante. Pode ser mais perto ou mais longe, mas isso tudo
s ã o c o i s a s q u e e s t ã o n a R e a l i d a d e . A p r o v a d e q u e e l a s e s t ã o n a R e a l id a d e é d e q u e a
fração delas que nós conseguimos pensar é mínima. E nos chegam notícias novas sobre
c o is a s q u e n ó s n ã o t í n h a m o s p e n s a d o .

T o d o s o s s e r e s h u m a n o s , d e s d e o p r im e i r o q u e n a s c e u a t é o ú l t i m o
que está nascendo nesse momento, eles já entram dentro desta situação. Nenhum nasceu
numa situação diferente. Nem um único. Isto é um dado – um dos muitos dados – que
compõe a estrutura da Realidade.

Se o que nós queremos é conhecer a estrutura da Realidade, então


(isso) significa que nós necessariamente teremos que transcender os limites da cultura
reinante hoje.

A possibilidade dessa transcendência existe – por incrível que


p a r e ç a – d e n t r o d a p r ó p r i a c u l t u r a . P o r q u e j u n t o c o m a m a s s a i n t e ir a d e l i m i t a ç õ e s q u e
ela te traz, ela também te traz elementos positivos, entre os quais o acesso às
informações de outras épocas. Mas o fato dela te dar o acesso à informação, não quer
d i z e r q u e e la t e d á o s m e i o s d e c o m p r e e n s ã o t a m b é m .

P o r e x e m p lo : q u a n t a s e d iç õ e s v o c ê t e m h o j e d o s l i v r o s d e P l a t ã o ?
M i l h a r e s . E n t ã o , m a t e r i a l m e n t e , e s s e m a t e r i a l e s t á à s u a d is p o s i ç ã o . Q u a n t a s p e s s o a s
você tem que podem ajudar você a ler Platão de uma maneira útil e frutífera? É muito
menor. Quantas dessas pessoas você vai encontrar durante a vida? Uma, duas – e se tiver
muita sorte.

E m g e r a l, o q u e v o c ê v a i t e r ? V o c ê t e m o a c e s s o m a t e r i a l à s o b r a s ;
mas você vai ter um monte de professores que só vão te confundir a cabeça. Porque eles
v ã o t e o f e r e c e r u m P l a t ã o à i m a g e m e s e m e l h a n ç a d a l im i t a ç ã o m e n t a l d e l e s . S o b r e t u d o
(...) você imagina (você) ler Platão à luz de uma cultura definida pela tecnologia. É
impossível, porque quase tudo o que Platão fala está fora disso aí. Então, ou se torna
i n c o m p r e e n s í v e l, o u v o c ê t e m q u e r e c o r t a r a q u i l o p a r a r e d u z i - l o à m e d i d a d a q u i l o q u e a
cultura contemporânea pode abarcar.

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E n t ã o , q u e r d i z e r : o s e s t u d o s s u p e r io r e s q u a n d o s ã o e m p r e e n d i d o s
d e m a n e ir a s é r i a , e l e s s ã o , e m p r i m e i r o l u g a r , d e s a c u l t u r a n t e s ; q u e r d i z e r , v ã o c o l o c a r
v o c ê f o r a e a c im a d a s u a c u l t u r a . C o l o c a m v o c ê f o r a e a c im a d a s u a c u l t u r a m e d i a n t e a
assimilação de elementos de outras culturas. Mas esses elementos de outras culturas, se
eles forem colocados dentro da perspectiva da nossa, já não são o que eles eram, e são –
sim – a sua redução à perspectiva de hoje.

Como é que nós resolvemos este problema? Nós resolvemos este


p r o b l e m a a d q u ir i n d o e s s e s m a t e r ia i s d a s o u t r a s c u l t u r a s , n ã o c o m o c u r i o s i d a d e s q u e
hoje estão colocadas à disposição da cultura contemporânea para enfeitá-la, mas como
m a t e r i a is q u e t ê m i m p o r t â n c i a v i t a l p a r a n ó s m e s m o s e n q u a n t o i n d i v í d u o s v i v e n t e s .

Então, quando eu vou ler Platão, eu vou ler Platão não de acordo
c o m a q u i l o q u e d e P l a t ã o i n t e r e s s a a o m e u p r o f e s s o r d e f i lo s o f i a d a U S P . M a s e u v o u l e r
P l a t ã o p a r a s a b e r o q u e P l a t ã o p e n s a d e m i m . E u v o u u s a r e s s e s m a t e r ia i s c o m o e s p e l h o s
d a m i n h a p r ó p r i a p e s s o a . Q u e r d iz e r : e u s o u u m a p e s s o a r e a l , h i s t o r i c a m e n t e e x i s t e n t e ,
num momento x e então me reaparecem essas pessoas de outras épocas, que me falam
sobre mim.

E n t ã o e s t e é o p r i m e ir o p r e c e i t o : v o c ê v a i t e r q u e a p r e n d e r a s e
o l h a r a s i m e s m o , a s i p r ó p r io , c o m o s o l h o s d o s f i l ó s o f o s d a s o u t r a s é p o c a s e n ã o a
o l h a r e l e s c o m o s o l h o s d a s u a c u l t u r a . P o r q u e e s t a ú l t im a c o i s a é f á c i l , o l h a r c o m o s
olhos da cultura, bom, é só você pegar qualquer manual aí ou pegar o que se diz de
P l a t ã o e A r is t ó t e l e s n a c u l t u r a , n a m í d i a p o p u l a r , e p r o n t o : vo c ê t e m e s t a i m a g e m .

Agora, nós vamos tratar de fazer o contrário. Eu vou começar por


m e o l h a r a m im m e s m o , d e a c o r d o c o m o q u e e l e s e s t ã o m e e n s i n a n d o , e e m s e g u id a e u
vou olhar a minha cultura com os olhos deles.

Aí você vai ter as duas perspectivas. Do presente para o passado e


do passado para o presente. Do lugar onde você está para outros lugares e dos outros
lugares para o lugar onde você está. Da sua cultura para as outras e das outras para a
s u a . À m e d i d a q u e v o c ê v a i c r u z a n d o e s s a s c o i s a s v o c ê v a i d e s c o b r ir u m a s é r i e d e
elementos tensionais, de enigmas, de perguntas, de d i f i c u ld a d e s , que elas sim
c o n s t i t u i r ã o a v e r d a d e ir a t r a m a d a h i s t ó r i a c u l t u r a l.

O nosso negócio é propiciar ao aluno a efetiva experiência da


c o n q u i s t a d a C u l t u r a H u m a n a ; n ã o d e s t a o u d a q u e l a c u l t u r a e m p a r t ic u l a r , m a s d a

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Cultura Humana. Você vai abrir e ampliar e ampliar e ampliar (...) e cada novo elemento
que você integrar ali, seja proveniente dos próprios antepassados da sua cultura ou seja
d e c u l t u r a s e s t r a n h a s , s e r v ir ã o c o m o s u p e r f í c i e s , c o m o e s p e l h o s n o s q u a i s v o c ê s e
r e c o n h e c e r á . E r e c o n h e c e n d o - s e a s i p r ó p r io , v o c ê f i c a r á , e n t ã o , h a b i l i t a d o a r e c o n h e c e r
a s u a p r ó p r ia c u l t u r a s o b o s o l h o s d e s s a s o u t r a s m e n t e s .

P a r a r e a l i z a r is t o , n ó s p r e c i s a m o s d e u s a r m u i t a i m a g i n a ç ã o .
P o r q u e a e x p e r i ê n c i a i n d i v i d u a l h u m a n a e l a é m u i t o l im i t a d a , q u e r d iz e r , o c o n j u n t o d e
c o is a s q u e t e a c o n t e c e m , q u e v o c ê p o d e a s s i s t i r p e s s o a l m e n t e , m e s m o s u p o n d o - s e q u e
tenha uma vida que nem a minha, que (eu) assisti milhões de coisas, que se eu fosse
contar tudo o que eu vi (...) os caras falam: por que você não escreve as suas memórias?
E u f a l e i: p o r q u e n ã o d á , p o r q u e a c o n t e c e u c o i s a d e m a i s . N ã o é q u e a c o n t e c e u c o i s a
d e m a is , e u v i c o i s a d e m a i s . E n t ã o n ã o d á p a r a c o n t a r .

Mas, mesmo supondo-se que a sua vida seja isso – “já vi as coisas
mais esquisitas que existem” – mesmo aí é limitado, isso aí é um nada. Você vai ter que
suplementar isso com a Imaginação. Nós temos que começar com a cultura da
imaginação, nós temos que tornar a sua imaginação rica e flexível o suficiente para que
v o c ê p o s s a , a m a n h ã o u d e p o is , s e c o l o c a r d e n t r o d a s p e r s p e c t i v a s a b e r t a s p o r e s t e s
f i l ó s o f o s d e o u t r a s é p o c a s e e n x e r g a r - s e c o m o s o l h o s d e le s .

Como se você virasse um personagem dos Diálogos de Platão. Você


que está lá discutindo com Platão e se aproveitando – tirando o proveito – das
p e r s p e c t i v a s q u e e l e p o s s a a b r i r p a r a v o c ê . P a r a i s s o , ( e u v e j o q u e ) o p r i m e ir o e l e m e n t o
a f a z e r é d a r u m c o m p le m e n t o p a r a o s a l u n o s e m m a t é r i a d e c u l t u r a h is t ó r i c a e l i t e r á r i a ,
antes de você entrar nas discussões filosóficas propriamente ditas.

I s s o q u e r d iz e r q u e o p r im e i r o a n o d e n o s s o c u r s o é p r a t ic a m e n t e
um curso de História e Literatura. Não um estudo especializado de História, no sentido
de transformar você num historiador, mas simplesmente transformar você num leitor de
História. E também não um curso especializado de Letras, no sentido de transformar
v o c ê n u m f il ó l o g o o u c o i s a a s s i m , m a s n o s e n t i d o d e e q u i p a r v o c ê c o m e s s e s g r a n d e s
produtos da imaginação humana que funcionam como espelhos – não da realidade
h i s t ó r ic a – m a s d a R e a l i d a d e p o s s í v e l , q u e r d i z e r , d a s p o s s i b i l i d a d e s d a v i d a h u m a n a .

Aristóteles já dizia que a base da arte literária é a especulação do


possível. Não daquilo que e f e t iv a m e n t e aconteceu, mas daquilo que poderia ter
a c o n t e c id o .

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Ora, a História e a Literatura têm que ir (muito) juntas, porque a
História é aquilo que efetivamente aconteceu, mas qual é o significado daquilo que
a c o n t e c e u ? Q u a l ( é ) a im p o r t â n c i a e o v a l o r d a q u i l o q u e a c o n t e c e u ? V o c ê n ã o t e m c o m o
s a b e r i s s o , a n ã o s e r s e v o c ê p u d e r e s p e c u l a r o q u e p o d e r i a t e r a c o n t e c id o , q u e r d i z e r , s e
você não imaginar outras hipóteses.

P o r e x e m p lo : vo c ê f ic a s a b e n d o q u e o s e u v i z i n h o b a t e n a m u l h e r
todo dia. Por que você acha isso ruim? Ora, se todos os maridos batessem nas mulheres,
todo dia, desde o começo dos tempos, ninguém repararia e seria uma coisa inteiramente
normal. Você acha isso ruim por quê? Porque você, (se nunca foi casado), você é capaz,
p o r e x e m p l o , d e im a g in a r u m a o u t r a m a n e i r a d e v o c ê t r a t a r a s u a m u l h e r s e m v o c ê b a t e r
n e l a t o d o d i a . S e v o c ê n ã o f o r c a p a z d e im a g i n a r is s o , v o c ê n ã o v a i e s t r a n h a r a c o n d u t a
d e s e u v i z i n h o e q u a n d o a m u l h e r c o m e ç a r a g r i t a r , v o c ê va i a c h a r a q u i l o u m a c o i s a t ã o
banal quanto as galinhas cacarejarem no galinheiro.

A especulação das possibilidades humanas nos dá a chave para a


avaliação daquilo que efetivamente aconteceu. E aquilo que efetivamente aconteceu nos
d á o l im i t e d a e s p e c u l a ç ã o i m a g i n a t i v a ú t i l : a t é o n d e v a l e a p e n a e s p e c u l a r . E e x i s t e u m
ponto para além do qual a especulação se torna vã?

Eu, muito jovem ainda, percebi que o negócio da Literatura era o


“ p o s s í v e l ” . E e x i s t e o p o s s í v e l q u e é m a i s p r o vá v e l e e x is t e o p o s s í v e l q u e é t ã o r e m o t o ,
q u e v o c ê e s p e c u l a r a r e s p e it o é p u r a p e r d a d e t e m p o .

A imaginação tem que ser treinada para ela se tornar um


instrumento de compreensão da Realidade; e não uma atividade ociosa que vai fazer
você ficar especulando sobre coisas que não vão acontecer jamais, que não têm a menor
possibilidade e que são somente um jogo.

A grande Literatura do mundo, (ela) contém um material que, para


o e s t u d a n t e d e F i l o s o f i a , é a b s o l u t a m e n t e p r e c i o s o . A L i t e r a t u r a é u m a m a n e ir a d e v o c ê
amadurecer na sua visão da Realidade. Claro que, pelos processos atuais de ensino da
Literatura nas universidades, a experiência imaginativa pode se tornar totalmente
i m p o s s í v e l . I m p o s s í v e l. P o r q u e , v a m o s d i z e r , q u a n d o v o c ê l ê D o s t o i e v s k i , T o l s t o i ,
Shakespeare, você está tendo acesso ao que essas grandes mentalidades conceberam
sobre as possibilidades da vida humana.

Agora, se você começa a encarar aquilo apenas como estrutura


t e x t u a l, começa a encarar aquilo sob o ponto de vista estruturalista ou

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desconstrucionista etc., o elemento de experiência sumiu. Então aquilo não é mais um
espelho da vida. Aquilo é apenas uma atividade formal a que o individuo se dedicou por
– sei lá – frescura. Isso quer dizer que o que se chama de “o estudo de letras” na
universidade hoje, pode se tornar um meio seguro de você se vacinar contra a Literatura
c o m o i n s t r u m e n t o d e a c e s s o im a g i n a t i v o à R e a l i d a d e .

Nessas conferências do Voegelin em Toronto tem uma mesa


redonda sobre a arte da leitura. Então todos que estão falando lá sobre leitura e etc., e o
Voegelin é o único que vem e diz: olha; nós só lemos estas coisas porque elas dizem
respeito à nossa vida. Se não dissessem, pra que a gente ia estudar essa porcaria?

Por exemplo, quando a gente lê esses grandes escritores alemães do


Século XX – Jakob Wassermann, Hermann Broch, Robert Musil e outros – eles estão
falando sobre formas de alienação da Realidade, que são a própria circunstância moral
n a q u a l n ó s v i v e m o s . É d i s s o q u e e l e s e s t ã o f a la n d o . E n t ã o , s e e u f o r e s t u d a r o t e x t o –
apenas como um texto – eu estou evitando o contato com essa realidade, eu estou
fugindo do assunto. Eu estaria entrando, justamente, dentro de uma das modalidades de
a l i e n a ç ã o q u e e l e s m e s m o e s t ã o t e n t a n d o d e s c r e v e r a l i . E u m e t o r n a r i a m a is u m
personagem do Robert Musil do que um leitor dele.

A minha idéia nesse primeiro ano é dar uma série de leituras de


obras históricas e literárias, que rapidamente permitam a vocês: primeiro, formar uma
i d é i a d o c o n j u n t o d a d u r a ç ã o d a s é p o c a s h is t ó r i c a s ; i s s o é m u i t o im p o r t a n t e . A m a i o r
parte das pessoas não têm isso, pessoas inclusive das classes “cultas”. O tipo de
imaginação histórica que está presente na nossa cultura é 100% (cem por cento)
c o n s t i t u í d o d e e s t ó r i a s d a c a r o c h i n h a . A vi s ã o e s q u e m á t i c a q u e a s p e s s o a s t ê m d o
passado histórico e aquela ao qual elas apelam nas discussões públicas etc., é
c o n s t i t u í d a s o m e n t e d e f a l s i f ic a ç ã o . S ó . N ã o h á m a i s n a d a . N a d a . T r a t a - s e d e e m b o r c a r
n a s c a b e ç a s d a s p e s s o a s u m a v i s ã o c r o n o ló g i c a a b s o l u t a m e n t e d e f o r m a d a , a b s u r d a , n ã o
a p e n a s ir r e a l , m a s i m p o s s í v e l .

Hoje em dia, quando as pessoas falam – nessas discussões públicas


que tem sobre totalitarismo, democracia, liberdade etc. – as pessoas sempre citam como
u m e x e m p lo d e o p r e s s ã o o t o t a l i t a r i s m o , p o r e x e m p l o , o s o v i é t i c o , n a z is t a e ( . . . ) d a S a n t a
I n q u i s i ç ã o . “ A i n t o le r â n c i a p a r a c o m o d i v e r g e n t e ” .

S e v o c ê e s t u d a r a h is t ó r i a d a I n q u i s i ç ã o i n t e i r i n h a , v o c ê v a i v e r
que ninguém jamais foi condenado pela Inquisição por ser “divergente”. A Inquisição
j a m a i s c o n d e n o u o s u j e i t o p o r s e r m u ç u lm a n o o u j u d e u . I s s o e r a a b s o l u t a m e n t e

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inconcebível na época. (No entanto,) a Inquisição – você pode gostar dela ou não – é um
fenômeno totalmente diferente dos totalitarismos modernos, não tem nada que ver. Sob
certos aspectos era até o contrário.

M a s i s s o é u m e x e m p l o . Q u a n d o v o c ê , t e n t a n d o e x p r im ir o s e u
sentimento para com um fenômeno atual que te choca de alguma maneira, (então) você
d e f o r m a t o t a l m e n t e a p e r s p e c t i v a h i s t ó r ic a e a c a b a p o r n ã o c o m p r e e n d e r a q u e l e m e s m o
f e n ô m e n o d o q u a l vo c ê e s t a v a f a l a n d o . É c l a r o q u e a í , v o c ê j á e s t á f a l a n d o , n ã o d a
r e a l i d a d e , m a s d a q u i l o m e s m o q u e o p r ó p r io R o b e r t M u s i l c h a m a va d e u m a “ s e g u n d a
realidade”: quer dizer, você inventou uma “história humana”, e você toma posições
m o r a i s e m f a c e d e s s e s a c o n t e c im e n t o s p u r a m e n t e im a g i n á r io s .

A idéia de um controle total da sociedade, de um controle total


s o b r e a o p i n i ã o p ú b l i c a , j a m a is p o d e r i a t e r s u r g i d o a n t e s d e s u r g ir a i d é i a d e o p i n i ã o
pública! Essa idéia de opinião pública só aparece no Século XVIII. Como que a
I n q u i s i ç ã o p o d e r i a t e n t a r c o n t r o l a r a o p i n i ã o p ú b l i c a , s e e l a n e m s a b i a q u e i s t o e x is t i a ?

I s s o q u e r d iz e r : é m a is f á c i l v o c ê im a g i n a r u m f e n ô m e n o , c o m o é a
I n q u i s i ç ã o , a p a r t ir d e d a d o s d a c u l t u r a c o n t e m p o r â n e a , d o q u e v o c ê s a b e r – a q u i l o q u e
dizia o Ranke – “como as coisas efetivamente se passaram” e o que foi efetivamente
aquele fenômeno, ou conjunto de fenômenos diferentes.

Quando nós imaginamos a Inquisição à luz dos totalitarismos


contemporâneos, nós perdemos de vista o fato de que fenômenos como os totalitarismos
c o n t e m p o r â n e o s j a m a is e x i s t ir a m a o l o n g o d e t o d a a h i s t ó r i a h u m a n a , m e s m o n a s
c i v i l i z a ç õ e s m a is b á r b a r a s . A s c o i s a s q u e H i t l e r , S t a l i n , P o l P o t e o u t r o s f i z e r a m , o s
piores tiranos da Antigüidade não seriam capazes – não digo que não seriam capazes de
f a z e r – e l e s n ã o s e r i a m c a p a z e s d e i m a g i n a r . E n t ã o , s e n ó s n ã o p e r c e b e m o s i s s o , n ó s n ão
entendemos a diferença específica dos fenômenos que nós estamos vivendo hoje.

H o j e e m d i a , p o r e x e m p l o , o p e s s o a l t e m u m a id é i a b a s t a n t e
pejorativa a respeito da civilização islâmica. Então, eles acham que os islâmicos, (que)
eles cortam as cabeças de todo mundo que diverge etc., e de fato às vezes acontece num
lugar ou num outro. Porém, a civilização islâmica tem 1.400 (mil e quatrocentos) anos. E,
e m n e n h u m l u g a r q u e e l a o c u p o u , e l a j a m a i s t e n t o u is l a m i z a r t o d o m u n d o . N u n c a f e z
i s s o . O u s e j a : a id é i a d e t o t a l i t a r i s m o n ã o e x is t e d e n t r o d o I s l ã .

De todas as civilizações (...), que ainda estão vivas, a mais


r e g u l a t i v a , a q u e m a i s m a n d a n a v i d a d a s p e s s o a s é o I s lã . M e s m o a s s i m a p e r s p e c t i v a

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t o t a l i t á r i a é t o t a lm e n t e a u s e n t e d o i s l ã , e l a n ã o e x i s t e n o I s l ã . N o m o m e n t o e m q u e
a l g u n s g r u p o s is l â m i c o s s ã o i n f l u e n c i a d o s p o r i d e o l o g i a s t o t a l i t á r i a s e l e s p o d e m t e n t a r
adaptar o Islã a isso. Mas, ainda assim, ainda é um fenômeno localizado.

Por exemplo, você imagina uma sociedade totalitária, o Irã. Você


acha que o Irã tem instrumentos de controle da população como a KGB tinha na União
S o v i é t ic a ? N ã o , i s s o c u s t a m u i t o d i n h e ir o , m e u D e u s d o c é u , a K G B f o i a m a i o r
organização de qualquer tipo que já existiu na história humana. E se você somar a Igreja
Católica, a Maçonaria, todos os partidos políticos, todos os clubes de futebol (...) não dá
o t a m a n h o d a K G B , c o m o e s t r u t u r a a d m i n is t r a t i v a . O ( p o b r e d o ) A h m a d i n e j a d , e l e p o d e
a t é q u e r e r f a z e r i s s o a lg u m d i a . M a s e l e n ã o t e m a m a i s m í n i m a c o n d i ç ã o d e e x e r c e r
aquele controle como a KGB exercia.

Esse controle não chegou a existir nem mesmo dentro da Alemanha


nazista. Ou seja: a perfeição do controle totalitário só foi feito num lugar: na KGB, na
Rússia. O Hitler quis fazer. Nunca conseguiu. Isso quer dizer que, entre as várias
polícias secretas da Alemanha, você tinha uma verdadeira guerra. Você tinha feudos.
Ora, u m r e g i m e t o t a li t á r i o é i n c o m p a t í v e l c o m f e u d o s , não pode haver poderes
secundários, concorrentes. Na Rússia soviética eles foram t o t a lm e n t e eliminados.
Centralizou tudo.

A g o r a , a R ú s s i a s o v i é t ic a t e v e s e s s e n t a a n o s p a r a f a z e r e o H i t l e r
teve doze. Doze não, porque a guerra começou em 39. Para construir o estado totalitário
e l e t e v e s e is a n o s – d e 3 3 a 3 9 – e n t ã o , e v i d e n t e m e n t e , ( e l e ) n ã o p o d e t e r c o n s e g u i d o
aquele controle totalitário que conseguiu o Stalin na Rússia e que depois foi imitado em
o u t r o s l u g a r e s . P o r e x e m p l o , e m C u b a e l e s c h e g a m a t e r e s s e c o n t r o le . M a s e m C u b a é
bem mais fácil, Cuba não é do tamanho de um continente, é uma lingüiçinha.

O fenômeno do totalitarismo é um fenômeno e s p e c i f ic a m e n t e


moderno, desconhecido por toda a história humana. Se você comparar com os impérios
da Antigüidade, os faraós não tinham este nível de controle. Você não esqueça que no
Egito dos faraós, estavam lá dentro os judeus e mesmo sendo escravos eles tinham os
s e u s p r ó p r io s r it o s , s u a p r ó p r i a r e l i g i ã o e t c . , e n u n c a o f a r a ó t e n t o u m u d a r a c a b e ç a
d e l e s . E s s a i d é i a s i m p le s m e n t e n ã o o c o r r e u à c a b e ç a d o f a r a ó . E l e s e r a m e s c r a v o s , m a s
eles tinham a sua cultura separada, quer dizer, eles tinham um enclave cultural dentro
do império egípcio. Aliás, no império egípcio existiam vários desses enclaves culturais.
I m a g i n a s e i s s o p o d e r i a s e r a d m i t id o n a R ú s s i a s o v i é t i c a . É i m p o s s í v e l.

27
Essas comparações são feitas na base apenas da ênfase, baseada no
horror que você sente. Quer dizer, o horror que você sente de uma coisa que você
conhece, você compara ao horror que você sente por uma outra coisa que você não
c o n h e c e e q u e v o c ê s i m p l e s m e n t e im a g i n o u . E q u e v o c ê i m a g i n a q u e é t ã o r u i m q u a n t o .

É claro que toda discussão pública baseada nisto é constituída


inteiramente de fantasmagorias. Porque essas coisas não funcionam apenas como figuras
d e r e t ó r ic a . N ã o . E l a s e x p r e s s a m a p r ó p r i a f o r m a m e n t i s d a s p e s s o a s e n v o l v i d a s . É o q u e
aquelas pessoas estão realmente imaginando. O que elas acham que realmente aconteceu.
E os seus julgamentos, as suas decisões, suas reações, seus sentimentos, são
determinados por este mundo no qual eles vivem, que é um mundo totalmente
imaginário.

O u t r o f e n ô m e n o , p o r e x e m p lo , q u e m e c h a m a a a t e n ç ã o : o p e s s o a l,
p o r e x e m p lo , r e v o l u c i o n á r i o , e s q u e r d i s t a , e l e s v i v e m s e m p r e s e s e n t i n d o p e r s e g u i d o s e
a m e a ç a d o s p e l a d ir e i t a , p e l o s r e a c i o n á r i o s e t c . e l e s v i v e m n u m p e r m a n e n t e e s t a d o d e
alerta, como se sua vida estivesse (...) mesmo quando eles estão no poder, eles se sentem
ameaçados. Quer dizer que o Stalin se sentia ameaçado o tempo todo. Fidel Castro se
sente ameaçado o tempo todo. Fidel Castro diz que os americanos fizeram mais de
quarenta tentativas de matá-lo. Na verdade não fizeram nenhuma. E, se fizessem uma,
e l e t e r i a m o r r id o .

Mas eles se sentem assim acossados o tempo todo pela direita.


A g o r a v o c ê v e j a q u e , d a s p e s s o a s q u e f o r a m a s s a s s i n a d a s p e l o s r e g im e s c o m u n i s t a s , n a
Rússia, nos países satélites, na China, no Vietnã, na Coréia do Norte, no Camboja, em
Cuba, Nicarágua etc., a maior parte é constituída de comunistas. Não eram burgueses
reacionários. Quantos burgueses reacionários tinham ainda na Rússia na década de 40?
N ã o t i n h a m a i s n e n h u m . E n t ã o e l e s m a t a v a m o q u e ? S e u s p r ó p r io s m i l i t a n t e s o u
simpatizantes etc.

Soma o número de comunistas que foram mortos pelos regimes


comunistas e você vai ver que é imensamente maior do que os comunistas que foram
m o r t o s p o r q u a l q u e r o u t r o r e g i m e . I n c l u i n d o o s n a z is t a s . Q u a n t o s c o m u n i s t a s o s
nazistas mataram? Não chega a dois milhões. Agora, dos 75 (setenta e cinco) milhões que
Mao Tsé-Tung matou, mais 60 (sessenta) milhões que foram mortos na União Soviética,
mais não sei quantos (...) dá aí uns 50 (cinqüenta) milhões de comunistas. Me diz, então,
por que eles vivem com tanto medo dos outros, se o lugar mais perigoso para eles é o
Partido Comunista?

28
É perigosíssimo você participar de uma revolução comunista
porque no dia seguinte os caras que tomaram o poder vão te matar. Claro que a vida
d e l e s é p e r i g o s a . E l e s e s t ã o c o n s t a n t e m e n t e a m e a ç a d o s . M a s o p e r i g o n ã o ve m d o
adversário. O perigo vem da militância. Esta é a situação real e objetiva na qual eles
estão.

Q u e r d i z e r : s e v o c ê p a r t ic i p a d o m o v im e n t o c o m u n i s t a , v o c ê p o d e
correr algum risco nas mãos da burguesia enquanto você está na militância. Mas depois
q u e a c o n t e c e r a r e v o l u ç ã o , o r i s c o c e n t u p l ic a ! I s s o n ã o a c o n t e c e u e m u m l u g a r .
Aconteceu em todos, sempre. Os maiores inimigos dos comunistas são os comunistas. É
i s s o q u e e le s t e r ia m q u e t e m e r . E n t ã o , p o r q u e e l e s t ê m t a n t o m e d o d o a d v e r s á r i o e s e
s e n t e m t ã o c o n f o r t á v e i s n o m e i o d a s u a m il i t â n c i a ? P o r q u e e l e s v i v e m n a “ s e g u n d a
r e a l i d a d e ” . E l e s n ã o e s t ã o c o m m e d o d o p e r i g o r e a l. M a s s ó d o p e r i g o i m a g i n á r i o , q u e
s e r v e ( p a r a e l e s ) d e a n e s t é s ic o c o n t r a o p e r i g o r e a l .

Isso é freqüentemente comum: quando você está vivendo um


g r a n d e r i s c o , vo c ê i n v e n t a r u m o u t r o r i s c o i m a g i n á r i o p a r a a l i v i a r o r is c o r e a l , p a r a q u e
v o c ê n ã o t e n h a q u e p e r c e b e r o r i s c o q u e c o r r e . P o r e x e m p lo , n e g o v a i m o r r e r d e c â n c e r e
e l e e s t á c o m m e d o d e n ã o t e r d i n h e i r o p a r a p a g a r a c o n t a ( n o ) f im d o m ê s . E l e s e a p e g a a
esta preocupação para não pensar na outra. Isso aí é uma “segunda realidade”.

Claro que esse v í c io não e x is t e só na esfera das idéias


c u l t u r a lm e n t e r e l e v a n t e s , m a s e x is t e n a p r ó p r i a v i d a p e s s o a l , p o r e x e m p l o , n a s u a
própria percepção pessoal das coisas você cai nesse tipo de esparrela e isso é a origem,
evidentemente, de mil e uma neuroses. Entre outras coisas, o trabalho da Filosofia vai te
c u r a r d is s o ; m a s t e m u m p r e ç o . O p r e ç o é v o c ê n ã o t e r m e d o d e s a b e r o n d e e s t á o p e r i g o
de fato.

N o p r i m e i r o a n o , v o u d a r a v o c ê s u m a s é r ie d e l e i t u r a s d e o b r a s
literárias e nós não vamos analisá-las como se analisa em curso de Literatura; nós vamos
u s a r u m s is t e m a q u e m a i s o u m e n o s f o i u s a d o n u m c u r s o d e a r t e s li b e r a i s – e d u c a ç ã o
liberal – que eu dei lá em Curitiba. Quer dizer: você não vai analisar a obra literária;
você vai analisar-se a si mesmo e a vida em torno à luz dessa obra literária. Na verdade
este é o único método que funciona.

Analisar obras literárias é mais ou menos como você decompor um


s í m b o l o . E n a h o r a q u e v o c ê d e c o m p õ e u m s í m b o l o , o s í m b o l o n ã o f u n c i o n a m a i s e e le
n ã o s i g n i f i c a m a i s n a d a . S e r i a c o m o v o c ê , p o r e x e m p l o , o m é d ic o t e d á u m r e m é d i o p a r a
v o c ê t o m a r , p o r q u e ( vo c ê ) e s t á r e s f r i a d o , e a o i n v é s d e v o c ê t o m a r o r e m é d io , v o c ê

29
manda para um laboratório para analisar e decompor. Então eles quebram a pílula,
d e c o m p õ e m e d a í v o c ê f i c a s a b e n d o a f ó r m u l a i n t e ir a ; s ó q u e v o c ê n ã o t o m o u o r e m é d i o .

O que se faz em cursos de Literatura é exatamente isso:


Shakespeare, Goethe, Dante, construíram uma série de coisas para iluminar a alma
humana, iluminar a experiência humana. Se em vez de engolir a pílula – não – você fica
a n a l i s a n d o e n ã o t o m a a p í l u l a j a m a i s . V o c ê f o g e d a q u e l a e x p e r iê n c i a i m a g i n a t i v a
c o n c e b i d a p a r a i l u m i n a r a e x p e r i ê n c i a r e a l. E x i s t e m a l g u n s p r o c e s s o s d e e s t u d o d a o b r a
literária que escapam disso e esses processos é que nós vamos usar aqui. Do mesmo
m o d o , n ó s va m o s l e r l i v r o s d e H i s t ó r i a u s a n d o u m m é t o d o q u e e r a d o g r a n d e h i s t o r i a d o r
inglês Macaulay.

Macaulay dizia que você primeiro tem que entender a coisa


h i s t ó r ic a c o m o n a r r a t i va i m a g i n á r ia e d e p o is s ó c o m o r e a l i d a d e . L e r a s o b r a s d e H i s t ó r i a
c o m o s e f o s s e m n a r r a t iv a s l i t e r á r i a s . O u s e j a , n a r r a t i v a s a p e n a s d o p o s s í v e l . E d e p o i s –
comparando várias visões do possível – você vai estreitar até você chegar a compreender
mais ou menos o que efetivamente se passou.

Hoje em dia, o fato de que os historiadores usem métodos de


n a r r a t i v a f ic c i o n a l p a r a c o n t a r a s s u a s e s t ó r i a s , é u s a d o c o m o u m a r g u m e n t o e m f a v o r d a
hipótese de que não há realidade; há somente narrativas. Mas isso é uma estupidez,
porque se existissem apenas narrativas, você não precisaria criar instrumentos
narrativos para narrá-las.

A s i m p l e s e x i s t ê n c i a d e v á r io s i n s t r u m e n t o s n a r r a t i v o s m o s t r a q u e
você está falando de uma realidade que não se resume à narrativa. Senão você só poderia
fazer a narrativa da narrativa da narrativa da narrativa (...) e isso se diluiria muito
r a p i d a m e n t e . É j u s t a m e n t e p o r q u e e x i s t e p a r a a l é m d a n a r r a t i v a – e x i s t e o m is t é r i o d a
R e a l i d a d e – é q u e v o c ê p r e c is a d a s v á r i a s t é c n i c a s n a r r a t i v a s c o m o q u e m u s a , v a m o s
dizer, várias lentes diferentes, para projetar diferentes visões sobre o objeto, para poder
localizá-lo no espaço, exatamente como um desenhista faz.

Por exemplo, eu quero desenhar um de vocês aqui. Então o que eu


f a ç o ? O d e s e n h i s t a p e g a u m lá p i s e c o m e ç a a t o m a r v á r i a s m e d i d a s e m a r c a r n o p a p e l
p a r a f a z e r u m r o s t o m a i s o u m e n o s c o m a s p r o p o r ç õ e s d o s e u . E s s a s t é c n i c a s q u e e le e s t á
usando, nada têm a ver com o seu rosto. Você não foi construída por essas técnicas. Não
f o i u m d e s e n h i s t a q u e f e z a s u a c a r a . F o r a m p r o c e s s o s e m b r i o l ó g ic o s , g e n é t i c o s e t c . , q u e
nada têm a ver com a arte do desenho.

30
Então, você tem a estrutura real do objeto que está sendo
d e s e n h a d o e v o c ê t e m a e s t r u t u r a d o d e s e n h o , q u e s ó c o in c i d e m n o q u e d i z r e s p e i t o à s
proporções. Mas isso não quer dizer que o desenho seja uma estrutura em si totalmente
independente do objeto desenhado.

Claro; o desenho terá uma estrutura e uma ordem interna, sem


sombra de dúvida. Porém, se eu desenho uma figura imaginária, eu meço somente as
proporções da figura imaginária. E posso mudá-las a qualquer momento. Mas, se eu
estou desenhando uma coisa – como se diz, “do natural” – eu estou inteiramente
submetido ao sistema de proporções que eu não inventei, mas que está na minha frente.

Claro, também, que um mesmo rosto, uma mesma figura, uma


mesma paisagem, pode ser desenhada desde distintas perspectivas. Se você pegar dez
pintores diferentes, mostrar a mesma paisagem para eles, você vai ter dez pinturas
d i f e r e n t e s . M a s e l a s s e r ã o t o t a lm e n t e d i f e r e n t e s ? N ã o , p o r q u e s e n ã o n ã o s e r i a m p i n t u r a s
da mesma paisagem. Esta diferença de perspectivas, mostra que para além das pinturas,
existe um algo. E que os dez pintores sabem do que eles estão falando, quando eles se
referem a este algo.

O e s t u d o d a H i s t ó r ia t a m b é m é isso. Nós vamos ver várias


narrativas. Você tem de saber que por trás das várias narrativas existe uma estrutura
que não foi inventada pelas narrativas. Essa estrutura não pode ser expressa em si
mesma. Por quê? Porque a expressão “expressar em si mesma” não quer dizer nada. O
que eu expresso só pode ser o que eu percebo, o que eu penso. Porque o fato mesmo
e x p r e s s a d o j á e s t á e x p r e s s o n o q u e ? N o p r ó p r io f a t o . E o q u e e u v o u f a z e r ? O n a r r a d o r
v a i f a z e r o q u e ? E le v a i s i m p l i f i c a r i s s o a í , p a r a t o r n a r a q u i l o i m a g i n á v e l p o r u m a
p e s s o a q u e n ã o v i u a q u i l o . I s s o q u e r d i z e r q u e , o le i t o r , e l e v a i t e r q u e , p a r a a l é m
d a q u i l o q u e e s t á e s c r it o , f a z e r u m e s f o r ç o d e im a g i n a ç ã o , d e r e s t a u r a r a r e a l i d a d e
daquela experiência.

E s t a c a p a c id a d e d e p e r c e b e r i m a g i n a t i v a m e n t e a R e a l i d a d e , t o d o s
nós temos. E é justamente no cruzamento entre as várias imaginações que está o perfil da
realidade presente. Do mesmo modo que, quando você vai desenhar o objeto, você não
toma só uma medida. Você toma várias; em várias direções. Para que? Para você capturá-
lo numa rede de referências que permite lhe mostrar onde ele está e que tamanho ele é.
O c o n j u n t o d a s n a r r a t i v a s t a m b é m é is s o . É c o m o u m a s é r i e d e m e d id a s q u e f o r a m
tomadas em relação à realidade.

31
Se você não tivesse visto a paisagem, mas você tivesse visto as dez
p i n t u r a s ; vo c ê c o n s e g u i r i a i m a g i n a r e s s a r e a l i d a d e . S e v o c ê f o s s e p i n t a r o q u e v o c ê
i m a g i n o u , vo c ê n ã o i a p i n t a r e x a t a m e n t e o q u e v o c ê i m a g i n o u , m a s s ó a q u i l o q u e o s s e u s
p r o c e d i m e n t o s t é c n i c o s p e r m i t e m r e p r o d u z ir d a q u i l o . V o c ê t e r ia , p o r a s s i m d i z e r , d u a s
traduções. Uma tradução da experiência para a imaginação e memória e outra da
m e m ó r i a e im a g i n a ç ã o p a r a o d e s e n h o .

E m v e z d i s s o q u e r e r d iz e r q u e a R e a l i d a d e n o s é i n a c e s s í v e l , q u e
nós só temos acesso àquilo que nós mesmos imaginamos e desenhamos, é justamente isso
que prova a existência da Realidade. Por quê? Se nós só tivéssemos acesso àquilo que
nós mesmos imaginamos – prestem atenção – é este nosso conteúdo imaginário que se
t o r n a r i a a “ r e a l i d a d e ” p a r a n ó s . E n ó s t e r í a m o s q u e p o r s u a v e z r e im a g i n á - l o . E e s t a
s e g u n d a i m a g i n a ç ã o t a m b é m s e r i a u m o b j e t o , e n ó s t e r í a m o s q u e r e im a g i n á - l o e
reimaginar (...) e seria a imaginação da imaginação da imaginação (...) e você nunca
chegaria a nada. Seria um processo infinito.

E l e é f i n i t o p o r q u ê ? P o r q u e e x is t e a r e f e r ê n c ia d a R e a l i d a d e . E a
referência da Realidade dá o limite do trabalho imaginário a ser feito em cima. Se dez
pintores, em vez deles pintarem a mesma paisagem, eles pintassem cada um a pintura do
outro, a paisagem desapareceria.

V o c ê s v ir a m a q u e l e f i l m e q u e t e m n o Y o u T u b e , d e u m e l e f a n t e
desenhando um elefante? Mas notaram como um elefante percebe a estrutura de um
elefante exatamente como nós a percebemos? Com uma pequena diferença: você vê que
p a r e c e q u e a p e r s p e c t i v a d o e le f a n t e é m a i s v e r t ic a l d o q u e h o r i z o n t a l . I s s o q u e r d i z e r
q u e o e l e f a n t e é a n t e r io r a G i o t t o .

Giotto é o sujeito que fez toda a perspectiva horizontal.


Antigamente para você representar que uma coisa estava mais longe do que a outra, você
c o l o c a v a e m c i m a . Q u a n t o m a i s l o n g e m a i s e m c i m a n o q u a d r o . G i o t t o ( é q u e ) e n s in o u a
fazer tudo no mesmo plano horizontal. O elefante não estudou Giotto; então a
p e r s p e c t i v a d e l e a i n d a é v e r t i c a l. M a s , o e l e f a n t e t e m q u a t r o p a t a s , t e m u m a t r o m b a , t e m
o r e l h a ( . . . ) e n t ã o – v o c ê v ê – n ã o h á m u i t o q u e d is c u t i r q u a n t o à e s t r u t u r a o b j e t i v a d o
elefante. Porque você pode perguntar isso ao próprio elefante.

O conjunto desses estudos l i t e r á r io s e históricos são para


a p r i m o r a r a s u a im a g i n a ç ã o e t r a n s f o r m á - l a n u m m e i o d e in v e s t i g a ç ã o d a R e a l i d a d e . I s s o
e m q u a l q u e r d o m í n i o d a c i ê n c i a o u d o c o n h e c i m e n t o é a c o is a p r i n c i p a l . I m a g in a r a s
a l t e r n a t i v a s , i m a g i n a r a s p e r s p e c t iv a s p o s s í v e i s , i r c r u z a n d o a t é q u e v o c ê e n c o n t r e u m

32
l i m i t e d a r e a l i d a d e : i s t o a í é a e s s ê n c i a d o m é t o d o c i e n t í f ic o . S e m i s s o v o c ê j a m a i s
chegará no negócio.

U m a c o is a q u e e u g o s t a r i a m u i t o d e d e s e n v o l v e r n o s a l u n o s d e s s e
c u r s o é , t a m b é m , e s t e s e n s o d a r e a l i d a d e c o m o u m a c o is a q u e n ã o f o i v o c ê q u e i n v e n t o u .
N ã o f o i v o c ê q u e c r i o u . M a s d e n t r o d a q u a l vo c ê e s t á e q u e e l a t e d e t e r m i n a e e l a t e
impõe os limites e ela te abre as possibilidades reais.

Q u e r d i z e r , e m c a d a s i t u a ç ã o , v o c ê t e m , p o r a s s i m d i z e r , u m a s é r ie
de elementos que estão fechados e que já são imutáveis – não podem ser mais mudados –
e você tem em aberto uma série de outros elementos. E, no cruzamento desses dois
dados, é que você vai entender a estrutura da ação humana.

Quer dizer: o que um sujeito pode fazer num determinado


momento e o que ele não pode. Mais ou menos como num jogo de xadrez, onde você (...)
– no jogo de xadrez é esta mesma situação simplificada – há uma série de movimentos
q u e v o c ê p o d e f a z e r e o u t r o s q u e vo c ê j á n ã o p o d e m a i s . D e n t r o d o s q u e v o c ê p o d e , t ê m
a l g u n s q u e a b r ir ã o o u t r a s p o s s i b i l i d a d e s d e m o v im e n t o e m s e g u id a e t ê m a l g u n s q u e
fecharão essas possibilidades. Este mesmo tipo de análise é possível fazer em qualquer
situação, por exemplo, na análise das situações políticas, quer dizer, o que é possível
acontecer.

E s t o u m e b a s e a n d o n o m é t o d o d o S h e r lo c k H o l m e s : e x c l u a o
i m p o s s í v e l e d o q u e s o b r a r a l g u m a c o is a d e v e s e r v e r d a d e i r o . M a s q u a l é o im p o s s í v e l ?
O i m p o s s í v e l e s t á d a d o n a q u e l e s t r a ç o s d a R e a l i d a d e o n d e j á n ã o é p o s s í v e l m o v im e n t o
algum, onde já não cabe fazer movimento algum.

Esse exercício do imaginário é para, por um lado, ampliar o


imaginário; mas, ampliá-lo e e s t r u t u r á - lo . Ampliar no sentido de você conceber
possibilidades que não fazem parte da sua vida cotidiana, nem da sua cultura, mas estão
presentes no conjunto das possibilidades humanas. E fechá-lo, estruturá-lo no sentido de
n ã o e s p e c u la r n o v a z i o , m a s e s p e c u l a r d e n t r o d a q u i l o q u e a p r ó p r i a s i t u a ç ã o e s t u d a d a
a d m i t e . E s t e é o p r o g r a m a d o p r im e i r o a n o .

Nós vamos s e g u ir , mais ou menos, a estrutura dos quatro


d i s c u r s o s . P r i m e i r o , o m u n d o d o im a g i n á r i o . E m s e g u i d a o m u n d o d a s d e c is õ e s , d a a ç ã o
humana etc. No terceiro, o mundo da própria investigação filosófica: teoria do
conhecimento, a lógica etc. E assim por diante. Este que é o programa. Alguma dúvida?

33
Para os que devem estar curiosos quanto a isso, nós já temos aqui
m o n t a d a m a i s o u m e n o s a s o l u ç ã o t é c n i c a p a r a p e r m i t i r a i n t e r a t i v i d a d e c o m v á r io s
alunos, cada um nas suas casas. Não será necessário aquilo que eu tinha dito em
p r im e ir o l u g a r , d e r e u n i r a s p e s s o a s e m g r u p o s , p o r q u e n ó s d e s c o b r i m o s a í u m
instrumental técnico que permite a interatividade com algumas centenas de pessoas de
m o d o s im u l t â n e o .

Então, aguardem que dentro em breve isto aí estará montado e


começarão os testes já para as aulas. Inicialmente eu pensava em começar as aulas
apenas em fevereiro, março do ano que vem, mas como surgiu essa solução técnica,
talvez nós possamos abreviar isso aí para dentro de um mês, dois meses no máximo
(para começar). Em fevereiro, (ou) talvez ainda em dezembro.

Não há dúvidas? Bom, por hoje é só.

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