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Mobilização e mudança social:

experiências de participação política na sociedade contemporânea

Projeto, Produção e Capa


Coletivo Gráfico Annablume

Imagem da Capa
*****

Conselho Editorial
Eduardo Peñuela Cañizal
Norval Baitello Junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Celia Maria Marinho de Azevedo
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)
Pedro Roberto Jacobi
Lucrécia D’Alessio Ferrara

1ª edição: novembro de 2013

© Sílvia Helena Zanirato

ANNABLUME editora . comunicação


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SUMÁRIO

7 Apresentação
11 Estruturas de Governança no Setor Público e a Gestão
Participativa:Dilemas e Possibilidades no Brasil Contemporâneo.
37 Dimensão socioambiental, mudança social e participação política
63 Territorialidades, políticas públicas e conflitos na conservação de
patrimônios
85 Região metropolitana de São Paulo: do cinturão caipira ao verde e
cinza
105 Política patrimonial, uma política participativa?
127 Comunicação e Controle Social Global
141 Educação, Sociedade e Políticas Públicas: Concepções da Teoria
Histórico-Cultural
159 Maternidade, Paternidade e Direitos Sexuais e Reprodutivos de jo-
vens que vivem e convivem com HIV/ aids.
179 A identidade queixada como símbolo de mudança social e partici-
pação política
199 Sobre os autores
APRESENTAÇÃO

Sílvia Helena Zanirato

Si el riesgo de la política clásica fueron el ideologismo, la polarizaci-


ón y hasta el fanatismo, el riesgo de hoy son la banalidad, el cinismo
y la corrupción […] la gran tarea del futuro es la reconstrucción del
espacio institucional, la polis, en que la política vuelve a tener senti-
do como articulación entre actores sociales autónomos y fuertes y un
Estado que recobra su papel de agente de desarrollo (GARRETÓN,
2001, p. 35)1.

O final do século XX, início do XXI trouxeram à tona outras formas de


ação coletiva expressas em explosões urbanas, movimentos com fortes
componentes étnicos e de gênero, com múltiplas demandas. Essas ações
indicam que as propostas de mudança social estão ligadas a novas formas
de participação, que incluem novos atores sociais e que requerem a redefi-
nição do sentido da política nas sociedades democráticas.
Com esse sentido é que a presente obra se apresenta, a de pensar a par-
ticipação política como uma atividade dos cidadãos com vistas a intervir
no processo de discussão e de produção da decisão política. As formas de
participação contempladas nas análises consideram a atuação organizada
dos indivíduos, grupos e associações que expressam interesses, aspirações
e valores através dos quais se constroem consensos, definem dissensos e se
regulam conflitos.

1 Manuel Antonio Garretón, Cambios sociales, actores y acción colectiva en América Latina. Naciones
Unidas, Santiago de Chile 2001.
São ações que propagam a mudança social, aplicada a múltiplos aspectos da
sociedade, além do econômico e político. Como exemplo, as mudanças nas
formas de gestão pública, nos costumes e modos de representar cultural-
mente a realidade. Essas modificações expressam as novas formas do fazer
política, que não são elaboradas unicamente pelo Estado, mas que reque-
rem um nível satisfatório de participação da sociedade civil.
Com esse entendimento o livro se propõe a articular saberes especiali-
zados em participação cidadã, contemplando as ações da esfera civil na
produção de decisões políticas para responder de melhor forma aos inte-
resses sociais.
Para Ursula Peres, Ana Fracalanza, André Galindo e Raquel G. Rizzi, a go-
vernança participativa é palavra-chave. Ao abordarem a economia insti-
tucional aplicada ao setor público, as autoras desenvolvem uma discussão
teórica sobre estruturas de governança no setor público, utilizando o mo-
delo analítico desenvolvido em Peres (2007) e da governança participativa
a partir de Avritzer (1994, 1997, 2008), Gurza Lavalle (2011) e Pires (2000).
Com base nesse arcabouço teórico analisam o Orçamento Participativo de
São Carlos, e tratam das dificuldades e possibilidades da gestão participati-
va, com destaque para o papel do controle externo no desenvolvimento de
políticas públicas.
A dimensão socioambiental nos processos de mudanças sociais e no estí-
mulo à participação política é contemplada no texto de Marcos de Carva-
lho, Érico Pagotto, Atílio Neto e Gustavo Meyer. Para os autores, a emersão
de um grande número de movimentos sociais por todo o mundo na virada
do século XXI é reveladora de uma insatisfação com os aparatos político-
-partidários e institucionais em vigor, que se mostram incapazes de dar
respostas à série de problemas sociais, entre os quais os ambientais. Para
eles, toda e qualquer proposta de mudança social tem que contemplar a
dimensão socioambiental. Com esse entendimento abordam formas alter-
nativas ao modelo democrático dominante, entre as quais as empreendidas
pelas comunidades tradicionais.
Sidnei Raimundo e Neli Mello-Thiery também discorrem sobre as políticas
públicas relacionadas às questões ambientais analisando os conflitos terri-
toriais presentes nas ações em prol da conservação e proteção ambiental. O
interesse dos autores é o de destacar as atividades de segmentos da socie-
dade que atuam na relação com a natureza, o que envolve conflitos, enlaces
e formas de interferência nas dinâmicas socioambientais, tanto no espaço

8
urbano e rural, quanto em áreas protegidas (unidades de conservação). Em
sua análise, consideram fundamental as categorias território e poder que
expressam as relações ocorridas no espaço. A elas agregam ainda o conflito,
um campo importante para pensar as mudanças sociais e a participação
política.
Os diferentes atores que participam das políticas públicas voltadas à agri-
cultura urbana e periurbana desenvolvidas no município de São Paulo são
avaliados no texto de Diamantino Pereira, Gerardo Kuntschik, Ana Val-
diones, Ivini Ferreira e Renato Abdo. Para os autores, as políticas públicas
municipais voltadas para a agricultura são fruto de um processo recente,
ainda em curso, que busca influenciar a adequação ambiental dos sistemas
produtivos com a adoção de boas práticas agroambientais, criação de ca-
nais diretos de comercialização da produção a permanência de moradores
na periferia e organização de base dos produtores, dentre outros aspectos.
Sílvia Zanirato e Edegar Tomazzoni, por sua vez, discutem a politica de
proteção do patrimônio cultural, responsável pela conservação, difusão e
conservação dos bens herdados do passado em sua relação com a política
do turismo. Para eles, ambas políticas pressupõem a participação da socie-
dade civil, na expectativa de sejam considerados os usos sociais dos bens
culturais e não exclusivamente a geração de renda advinda do fato de um
lugar tornar-se patrimônio cultural, justificativa mais usual para a proteção
dos bens herdados do passado. Para isso, é imprescindível a participação
social, um meio de evitar tanto o predomínio de valores definidos pelo
mercado, como o privilegio de determinados segmentos beneficiários do
financiamento estatal.
A preocupação com a esfera econômica da política é igualmente contem-
plada no texto de Dennis de Oliveira e Marco Bettine, que discorrem sobre
o poder global contemporâneo. Para esses autores, o poder é sustentado
por um tripé de monopólios: o monopólio do dinheiro, o monopólio das
armas e o monopólio da voz. Trata-se de um poder que emerge do processo
civilizatório da globalização neoliberal e que tem um pé nas corporações
privadas, outro na indústria bélica e um terceiro no monopólio da indústria
da comunicação e da cultura.
Maria Eliza Bernardes, Sandra Batistão, Sandra Assali, Isabel Hamada e
Eliane Pereira abordam as concepções teóricas que organizam as pesqui-
sas sobre Educação, Desenvolvimento Humano e Políticas de Estado, com
destaque para o papel da educação, uma atividade essencialmente humana,

9
que medeia a formação dos sujeitos e da própria sociedade e os orienta à
participação social.
Na interface com a educação e agregando questões de saúde coletiva e re-
lações de gênero está o texto elaborado por Elizabete Cruz. O estudo apre-
sentado por essa autora enfoca o exercício da sexualidade e a vivência da
paternidade e maternidade por jovens que convivem com HIV/AIDS, em
especial os limites e as possibilidades do exercício de seus direitos sexuais
e reprodutivos.
Andrea Viude e Soraia Ansara, por sua vez, tratam do movimento dos
Queixadas, uma análise da história de luta dos operários da Fábrica de Ci-
mento Perus. Para as autoras o movimento dos Queixadas se distingue pela
orientação da “não violência ativa” e pela resistência e pressão para que
seus direitos fossem respeitados. Temas como reivindicações trabalhistas,
fraudes, corrupção e solidariedade de classe são contemplados na análise
das autoras, para as quais o grande legado desse movimento é a construção
de uma memória coletiva de luta e resistência, expressão da vitória dos tra-
balhadores contra os atos repressivos e as injustiças que sofreram.
Em síntese, os textos aqui reunidos oferecem um percurso para uma leitura
múltipla sobre a mudança social e a participação política. A expectativa é
a de que os conteúdos aqui expressos contribuam para o aperfeiçoamento
da participação civil na condução dos negócios públicos e no exercício de
seu papel político

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ESTRUTURAS DE GOVERNANÇA NO SETOR PÚBLICO E A GES-
TÃO PARTICIPATIVA: DILEMAS E POSSIBILIDADES NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO.

Ursula Dias Peres, Ana Paula Fracalanza,


André Galindo da Costa, Raquel Gammardella Rizzi

Introdução

A discussão sobre a evolução de diferentes políticas públicas no Brasil,


como as de educação e saúde, é algo frequente tanto no meio acadêmi-
co, como na própria gestão pública. É interessante notar, no entanto, que é
mais fácil conseguir mapear a demanda dessas políticas, em geral, o déficit
de atendimento, do que suas estruturas de oferta.
A estrutura de governança das políticas públicas, que é fundamentalmente
determinante de suas possibilidades de oferta, dá-se a partir da construção
de um arcabouço institucional que envolve aspectos legais, políticos, so-
ciais e econômicos, nem sempre de fácil compreensão e muitas vezes tam-
bém de difícil operação.
O objetivo deste capítulo é apresentar a abordagem da economia institu-
cional aplicada ao setor público. Trata-se de um ensaio teórico-empírico,
fruto de debates do grupo de pesquisa em políticas públicas e gestão par-
ticipativa do PROMUSPP/ EACH/ USP. A partir da discussão teórica so-
bre estruturas de governança no setor público, utilizando modelo analítico
desenvolvido em Peres (2007) e da governança participativa, de Avritzer
(1994, 1997, 2008), Gurza Lavalle (2011), Pires (2000) e outros, buscou-se
construir um arcabouço teórico que permitisse, em conjunto com o levan-
tamento de um caso empírico – o Orçamento Participativo de São Carlos,
trazer alguns apontamentos sobre as dificuldades e possibilidades da gestão
participativa.
Estruturas de Governança no Setor Público

Da literatura da Nova Economia Institucional sabe-se que estruturas de go-


vernança são mecanismos desenvolvidos nas organizações, pelos agentes
econômicos para lidar com os custos de transação1, buscando reduzi-los
(WILLIAMSON,1985).
Como apresentado em Peres (2007), são utilizadas pelas organizações, ba-
sicamente três tipos de estruturas de governança: a que se dá através do
mercado, uma forma híbrida e a forma hierárquica.
A estrutura de governança a partir do mercado tem um controle menor sobre o
comportamento dos indivíduos e o sistema básico de ajuste é via preço. A híbrida
é uma forma de coordenação dos indivíduos através de sistemas de incentivos
e contratos que permitam o controle da racionalidade limitada e do comporta-
mento oportunista. Já a estrutura hierárquica se dá quando há a internalização
total das atividades em uma única organização (WILLIAMSON, 1985).
Da teoria de Coase (1937), temos que a mudança institucional do mercado
para a hierarquia – analisando apenas os dois extremos possíveis de estruturas
de governança – tem impacto muito significativo no comportamento indivi-
dual. As instituições simultaneamente determinam as regras do jogo (ambiente
macro institucional) e condicionam as escolhas individuais sob estas regras.
Se considerarmos um ambiente de informação perfeita, o comportamento dos
indivíduos deverá apresentar-se como o de agentes maximizadores de resulta-
dos; será diferente, porém, em outros tipos de ambiente institucional (numa
hierarquia, por exemplo). Miller (1992) acredita que, a depender da incerteza e
assimetria de informações do ambiente organizacional, a coordenação desta se
dará mais em função do direcionamento hierárquico do que pelo mecanismo
de preços ou por sistemas de incentivos. (PERES, 2007)
Analisando os três tipos possíveis de estrutura de governança, tem-se que
a estrutura que mais se adapta e melhor explica as organizações do setor
público é a hierarquia.
Em uma estrutura hierárquica, a autoridade é importante, o ajuste não
se dá via preços, a informação tende à assimetria e é necessário entender
que nem sempre o resultado mais eficiente é o que maximiza o bem-estar

1 Para compreensão da teoria dos Custos de Transação ver AZEVEDO (2000).

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os agentes. Nesse ambiente são necessárias outras habilidades individuais
para o relacionamento interdependente entre os membros da organização,
e assim o comportamento será distinto do previsto no modelo neoclássico,
regido pelo ajuste de preços. Nesse tipo de organização, importa a visão de
mundo e crenças ideológicas dos indivíduos e do líder, em especial. Isto é,
regras informais (ambiente micro institucional) têm impacto relevante no
comportamento dos indivíduos (NORTH, 1990).
O quadro 1 a seguir sintetiza as características dos três tipos de estrutura de
governança mencionados.

HIERÁRQUICA
MERCADO HÍBRIDA

Nesta estrutura, os incentivos


Na estrutura hierárquica, os
são médios, visto que existem
incentivos são fracos e
Neste tipo de estrutura de falhas de mercado que
existe forte impacto das falhas
governança os incentivos impossibilitam ajustes
de mercado, a ponto de
são fortes e o ajuste se dá autônomos via preço. É então
prejudicar o cumprimento de
via preços. Há pouca necessária a coordenação dos
contratos sujeitos sempre à ação
CARACTERÍSTICAS necessidade indivíduos dentro de sistemas
oportunista dos agentes. Neste
de controles administrativos de incentivos e contratos que
ambiente, a barganha pode ser
e os contratos são cumpridos coíbam o comportamento
ineficiente e há necessidade de
sem riscos de oportunista e possam reduzir
coordenação e imposição da
comportamento oportunista. os custos de transação em
autoridade política para a busca
ambiente de informação
de resultados eficientes.
assimétrica.

Quadro 1 – Estruturas de Governança


Fonte: PERES (2007), p.20.

Conforme disposto em Peres (2007), Miller (1992) argumenta que, em uma


hierarquia, as forças capazes de ajustar o arranjo institucional existente e
minimizar perdas são externas. Ou seja, o controle externo da hierarquia é
fundamental para que o comportamento do corpo gerencial seja direciona-
do à busca de resultados eficientes, mais do que à satisfação de dirigentes e
funcionários. Essas forças serviriam como um compromisso para a busca
da eficiência organizacional.
A partir da análise do modelo de estruturas de governança e da compreensão
do modelo hierárquico, é importante destacar que a chave para a compre-
ensão do desempenho eficiente de algumas hierarquias está muito mais nas

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diferenças políticas das organizações do que nas econômicas. Na opinião de
Miller (1992), a organização deve ser encarada como uma arena para lide-
rança política, ideologia e definição de objetivos, e não como a manipulação
gerencial de incentivos econômicos e estruturas formais. (PERES, 2007)
Diante do exposto, podemos concluir que, dependendo do ambiente econômi-
co e institucional, e da existência de maiores ou menores custos de transação,
a estrutura de governança tenderá a ser mais hierárquica do que contratual ou
híbrida. No caso de organizações públicas, como veremos no próximo item, a
implicação da estrutura de governança hierárquica está no fato de que esta im-
plica obrigatoriamente a necessidade de um bom sistema de incentivos interno,
com grande controle externo, para que se possa buscar eficiência.
Na análise das estruturas de governança no setor público é fundamental
considerar alguns elementos diferentes dos considerados em organizações
privadas, tais como: atores relevantes para as transações; custos no pro-
cesso das políticas públicas; e algumas outras características peculiares da
governança em organizações do poder público.

Atores

No setor público, seja na administração direta ou de agências reguladoras,


ou ainda em empresas públicas, é importante considerar quatro grupos de
atores, representados aqui pelo poder executivo, legislativo, a burocracia
estatal e a sociedade civil, que atuam e transacionam interna e externamen-
te às organizações públicas da administração do estado.
I - Poder Executivo – aqui temos políticos eleitos, bem como pessoas de
confiança que os acompanham a cada mandato eletivo para ocupar cargos
de gestão nas administrações das esferas de governo, tendo sob seu con-
trole a burocracia estatal. Entre outras motivações, destaca-se a defesa de
uma plataforma programática, como também o auto-interesse e a busca de
reeleição, ou do poder político. Sua sustentação pode se dar através de um
partido ou coligação partidária, podendo implicar maior ou menor pressão
de grupos de interesses, a depender do grau de coesão da coligação e de
representação destes no Poder Legislativo e na sociedade civil.
II - Legislativo – os membros do Poder Legislativo são representantes elei-
tos nas três esferas de governo para representar a sociedade civil. Têm como
responsabilidade principal o controle das ações do Executivo e a avaliação e

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proposição de leis. Sofrem também pressão de diversos grupos de interesse
e suas ações são calculadas em função da defesa de plataformas progra-
máticas que acreditem, mas também da quantidade de votos que podem
render, tendo em vista o objetivo da reeleição ou manutenção do poder
político.
III - Burocracia – a burocracia estatal se constitui no corpo gerencial do
aparelho do Estado para a execução das políticas públicas. Sob o comando
político, formulam, executam e avaliam processos. São funcionários em ge-
ral dotados de capacidades específicas para seus cargos e com estabilidade
constituída como forma de preservação contra perseguição e descontinui-
dade político-administrativa. Esses agentes, segundo a teoria da escolha
pública2, agem racionalmente e são motivados pelo auto-interesse, sendo
analisados por essa teoria a partir de modelos principal-agente (BORSANI,
2004). São também motivados pela organização e manutenção das regras
institucionais definidas
IV - Sociedade civil – segundo Horn (1995), os atores políticos oriundos da
sociedade civil são afetados pelas políticas públicas, tanto por seus benefí-
cios, como por seus custos. Assim como os outros atores, têm racionalidade
limitada e participam da vida política na busca de seus interesses indivi-
duais, que podem ou não se coadunar com interesses coletivos. Sua par-
ticipação, contudo, se dá apenas quando o benefício dessa ação compensa
o custo do tempo empregado na atividade. Assim, a maioria das pessoas
permanece, na maior parte do tempo, racionalmente ignorante do que se
passa no processo político. Os custos de organizar e manter uma ação co-
letiva são aqui particularmente importantes. Grandes grupos de interesses
difusos encontram maior dificuldade de sustentar sua participação no pro-
cesso político ou de exercer influência sobre as administrações públicas do
que pequenos grupos cujos membros têm um alto interesse específico em
uma determinada lei ou política pública (HORN, 1995).

Custos de Transação

As transações no setor público, dentro do espectro considerado nesta aná-


lise, estão relacionadas à criação, execução, monitoramento e avaliação de

2 Para uma descrição mais detalhada da teoria da escolha pública, ver Borsani (2004).

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políticas públicas, a partir da interação dos atores apontados. Existem vá-
rios custos envolvidos nestas transações; são relacionamos a seguir alguns
de maior relevância, a partir da análise de Horn (1995):
I - Um primeiro custo de transação está associado ao tempo e esforço gas-
tos pelos políticos, tanto do Poder Executivo quanto do Legislativo, na bus-
ca de acordo sobre determinada política pública. A existência de conflito e
incerteza aumenta o custo de definição de regras claras e precisas e tende a
promover leis e políticas públicas vagas. Este caráter vago, por sua vez, traz
consigo outros problemas a serem balanceados, pois os benefícios criados
por tais leis e políticas não são claros, dificultando a verificação de cumpri-
mento dos objetivos.
II - Outro custo de transação reside no fato de que a duração dos benefícios
propostos por uma política pública é afetada por problemas de compro-
misso de longo prazo, em função da maior ou menor habilidade de legis-
ladores e executivos de alterar, emendar e substituir leis e regras. Em uma
democracia, não existe garantia de que uma mudança de legislatura não
leve à revisão de regras de uma determinada política pública. Segundo Moe
(1990), isto causa incerteza política. Este processo representa um custo po-
lítico de transação, visto que não é possível garantir-se à sociedade civil a
durabilidade dos benefícios de uma política pública.
III - Outro custo pode vir do fato de que o Poder Executivo, o Poder Le-
gislativo, a burocracia e sociedade civil não têm necessariamente o mesmo
entendimento, compromisso e energia para programar, administrar, moni-
torar e avaliar as políticas públicas, de modo que os benefícios de uma polí-
tica específica podem não se concretizar. Isto implica um custo de agência,
principalmente entre Poder Executivo e burocracia.
IV - O custo de monitoramento da burocracia pode ser visto dentro de
um modelo principal-agente aplicado, que poderíamos analisar de duas
formas. A primeira forma relaciona os objetivos do ator principal, o
político, e os objetivos e motivações do ator subordinado, a burocracia.
Neste primeiro modelo, deve haver um desenho de estrutura de gover-
nança onde o principal consiga controlar o agente no intuito da execu-
ção de seus objetivos, isto é, a execução das políticas públicas da forma
como foram concebidas em seu governo, e para isso será necessário o
uso de um sistema de incentivos que permita essa indução. Este sistema
de incentivos tem uma complexidade específica, visto que a burocracia
tem uma função de utilidade diferente dos agentes econômicos numa

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estrutura de mercado, de modo que incentivos ligados puramente a in-
crementos financeiros em contrapartida ao desempenho individual têm
pouca eficácia no controle das ações burocráticas. Na segunda cons-
trução de modelo principal-agente, o principal seria a sociedade civil,
receptora da política pública, e o agente seria a organização como um
todo, composta pelos políticos e burocracia estatal. Aqui existe uma su-
til mudança de conceito, pois não necessariamente a política pública de
interesse da sociedade civil é aquela idealizada politicamente. Ou ainda,
a idealização pode ser distinta da execução, constituindo-se a sociedade
civil num importante ator no controle do comportamento do agente3.
V - Um último tipo de custo de transação, aqui relacionado, existe em fun-
ção da falta de clareza, por parte da sociedade civil, a respeito dos benefícios
privados ou custos associados a determinada política pública. Essa falta de
clareza é maior quando o financiamento de uma política se dá totalmente
em função do pagamento de impostos, cujo ônus recai sobre boa parte da
sociedade de forma não individualizada. Nestas circunstâncias, o apoio a de-
terminada política pública dependerá da aversão ao risco do cidadão: quanto
maior esta, menor a tendência a apoiar novas políticas (HORN, 1995).

Características especiais das estruturas de governança no setor público

Como apresentado em Peres (2007), existem características importantes


das políticas públicas que tornam mais complexas as estruturas de gover-
nança no setor público. Essas características, na opinião de Dixit (2002),
são: I) multiplicidade de principais; II) multiplicidade de tarefas ligadas às
políticas públicas; III) reduzida competição e IV) complexidade na moti-
vação dos agentes.

I) Multiplicidade de Principais

A multiplicidade de principais existe em virtude de as ações do governo,


através de sua administração direta ou indireta, afetarem grande parte da

3 Este modelo pode ser ainda mais complexo se analisarmos sob o ponto de vista de múltiplos principais,
conforme Dixit (2002). Esta questão será discutida na seção seguinte.

17
sociedade. Isto se dá em função de muitos serviços serem caracterizados
como bens públicos, gerarem externalidades, ou ainda, serem providencia-
dos através de subsídios fiscais4 (DIXIT, 2002).
Ao lado disso, há uma série de grupos de interesse preocupados não só com
os resultados do governo, mas com os insumos e a forma como o governo os
produz. Neste sentido, fornecedores se preocupam em influenciar os processos
de compras públicas e os sindicatos de trabalhadores se preocupam com as
condições de trabalho e os próprios sistemas de incentivos criados internamen-
te às estruturas de governança públicas. Os representantes do Poder Legislati-
vo são também principais interessados tanto na forma quanto nos resultados
de uma política, visto que cabe a esses a fiscalização das ações do Executivo.
Assim, temos vários grupos de interesse engajados em uma barganha política
multidimensional. E a sociedade civil, enquanto usuária das políticas públicas é
sempre em primeira e última instância um principal neste modelo.
Dessa forma, na visão de Dixit (2002), dependendo da área governamental
que se analise, podemos entender as administrações públicas como estrutu-
ras com vários principais agindo em um jogo não-cooperativo, buscando cada
qual influenciar as ações conforme seu auto-interesse. A consequência de uma
sociedade dividida entre grupos de interesse que jogam pelos recursos públicos
tenderá a ser Pareto-inferior, isto é, os custos da atividade caçadora de renda
são maiores que os benefícios privados obtidos por alguns agentes ou grupos
(SILVA, 2004). Nesse sentido, quanto maior a informação assimétrica e a in-
certeza envolvendo determinado setor do governo, e quanto maior o poder de
barganha de pequenos grupos de poder, maior sua possibilidade de maximizar
ganhos de bem-estar, valendo-se de falhas institucionais e falta de controle in-
terno e externo à organização pública, prejudicando a eficiência da política pú-
blica e apropriando para poucos os recursos que iriam, em outra circunstância,
beneficiar a sociedade de uma maneira geral.
Considerando que alguns grupos têm poder de barganha suficiente para domi-
nar instituições ineficientes, podemos derivar a conclusão de que estes grupos
podem inclusive dominar o Estado, na medida em que dominam seu aparelho
estatal – as instituições do Estado (BRESSER-PEREIRA, 2004; PZREWORSKI,
1995). No processo de perda de autonomia do Estado e sua captura por grupo
ou grupos de poder, é fundamental a influência da burocracia. Isto porque, se

4 O subsídio aqui entendido significa a produção de bens e serviço através da cobrança de impostos dos
contribuintes e não pela taxação direta dos serviços e bens oferecidos.

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o agente público burocrata for movido por seus interesses privados e sujeitar-
-se a pressões de grupos de interesses, e somando-se esse fato à assimetria de
informação existente entre o agente e o principal, temos o ambiente perfeito
para desvios de conduta. Ao não haver controles eficazes, pode haver a coop-
tação desses agentes para uma ação específica de um grupo de interesse, ações
clientelistas, e até corrupção (PZREWORSKI, 1995).
Neste contexto é importante ressaltar, como exposto por Silva (2004) que as
escolhas públicas não são puramente técnicas ou gerenciais. Não existe neu-
tralidade total em relação à tomada de decisão de política pública. A influên-
cia política opera tanto positiva quanto negativamente. Não é possível querer
diminuir ou desconsiderar a natureza eminentemente política desse proces-
so, sob o risco de proceder a análises totalmente equivocadas (PERES, 2007).
Assim, é importante frisar a necessidade de supervisão de todo o ciclo da
política pública na busca de eficiência e eficácia no gerenciamento público.
Essa supervisão precisa ser realizada dentro de uma estrutura de governan-
ça que consiga trabalhar um sistema de incentivos, buscando redimensio-
nar o comportamento do agente para um resultado mais próximo do ideal,
do ponto de vista do principal, de forma a levar o agente a agir de forma
transparente e arcar com as consequências de suas ações (SILVA, 2004).

II) Multiplicidade de Tarefas

Segundo Dixit (2002), em organizações do setor público, existe sempre a ex-


pectativa de que se possa cumprir uma multiplicidade de tarefas. Isto se dá,
pois se espera que a administração pública almeje uma série de objetivos dis-
tintos a partir do cumprimento de funções alocativas – entrega de bens e ser-
viços, ajuste e regulação do mercado visando equilíbrio entre oferta e demanda
de bens; funções distributivas e redistributivas – políticas fiscais e tributárias
que visem ajustes de renda e transferência de renda a grupos mais necessita-
dos; funções estabilizadoras – controle de agregados econômicos como infla-
ção, emprego, juros e câmbio. Obviamente a manutenção de todas as tarefas ao
mesmo tempo, em especial em ambientes federativos, é complexa e de difícil
execução. Quando consideramos os escopos das políticas por áreas de gover-
nos, a complexidade aumenta com a possibilidade de políticas de transportes
serem, por exemplo, incompatíveis com políticas ambientais e de saúde. Dessa
forma, é possível afirmar que a interação dos objetivos não necessariamente

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é clara em geral e mesmo dentro de uma organização específica, tampouco é
obrigatoriamente priorizada de forma a otimizar agentes, insumos e processos.

III) Reduzida Competitividade

A oferta de bens e serviços pelo setor público de forma monopolista ou quase mo-
nopolista pode incorrer em problemas relacionados à reduzida competitividade
nesses setores. Este fato pode dificultar o controle de custos e a qualidade dos re-
sultados e trazer menor resposta às preferências da sociedade. A privatização não
é solução muitas vezes em função do tipo de bem em questão, ainda mais quando
há aspectos multidimensionais, como principais e tarefas. Dependendo do tipo
de organização e dificuldade de verificação de resultados, pode haver indução a
altos custos de transação e comportamento oportunista pelas firmas, sem garan-
tia de uma atuação socialmente eficiente. Esse problema é agravado em setores
onde nem mesmo existe apelo para atuação privada, reforçando a perversidade
dos incentivos na ausência de competição (DIXIT, 2002; HORN, 1995).

IV) Motivação dos Agentes

A questão da motivação dos agentes numa estrutura de governança públi-


ca é de extrema importância, visto que os sistemas habituais de incentivos
baseados no incremento de renda, em função do desempenho individual,
têm aplicabilidade extremamente complexa. Assim como vimos na estrutura
de governança hierárquica, existem fatores internos à organização que di-
ficultam a leitura correta do desempenho individual. Além disso, em uma
estrutura de governança pública, mais do que em uma estrutura privada,
existe uma motivação ligada a questões ideológicas e de crença individual,
dificilmente mensuráveis, que independe de qualquer sistema de incentivo,
e pode induzir o comportamento dos agentes para o cumprimento ou não
de tarefa. Assim, a motivação na burocracia muitas vezes depende mais de
fatores ideológicos e políticos, como identificação do corpo burocrático com
a política pública a ser implementada, do que com sistemas de remuneração
especificamente criados (DIXIT, 2002; HORN, 1995; MILLER, 1992).

20
É importante também mencionar que dentro de organizações fortemente
constituídas por classes de profissionais5, existe forte tendência ao compor-
tamento corporativo, seguindo bases definidas através de suas associações
e sindicatos. Este profissionalismo tem uma correlação grande com preo-
cupações de carreira, ou seja, incentivos implícitos, muito mais do que com
aqueles baseados em remuneração por produtividade (DIXIT, 2002).
O quadro 2 abaixo resume características de organizações no setor público
e a complexidade de estruturas de governança criadas para resultados efi-
cientes socialmente.

Tempo de negociação entre atores; custo de agência – supervisão dos agentes;


Custos de transação
problemas de compromisso de longo prazo – oportunismo político.

Atores Poder Executivo, Poder Legislativo, burocracia e sociedade civil.


Multiplicidade de principais e tarefas, reduzida competitividade e complexidade
Características
na motivação dos agentes.
Estrutura de governança hierárquica, onde incentivos internos são fracos
e há complexidade para coordenação e motivação dos agentes em função
de características da burocracia estatal e da reduzida competitividade
do setor público. A possibilidade de reeleição pode significar um incentivo
forte para os executivos nas organizações públicas, induzindo ao oportunismo
político. Nesta situação, a vinculação orçamentária pode ser adotada como
Incentivos e Estrutura solução. Esta, contudo, torna ainda mais importante a questão de accountability
no setor público. Estrutura de governança hierárquica, onde incentivos
de Governança internos são fracos e há complexidade para coordenação e motivação dos
agentes em função de características da burocracia estatal e da reduzida
competitividade do setor público. A possibilidade de reeleição pode significar
um incentivo forte para os executivos nas organizações públicas, induzindo
ao oportunismo político. Nesta situação, a vinculação orçamentária pode ser
adotada como solução. Esta, contudo, torna ainda mais importante a questão
de accountability no setor público.

Quadro 2 - Custos de Transação e Governança no Setor Público


Fonte: PERES 2007, p.27.

5 No entendimento de Wilson (1989), um profissional seria definido como alguém que recebe
importante prêmio ocupacional de um grupo de referência, cuja associação é limitada àquelas pessoas
que receberam formação educacional específica e seguem um código de conduta definido pelo grupo.
Poderíamos identificar as classes dos médicos e professores no setor público a partir desta caracterização.

21
Em suma, a existência de complexos custos de transação, associados a ca-
racterísticas específicas do setor público, leva organizações da administra-
ção direta – onde há grande dificuldade em definir objetivos e medir resul-
tados das políticas públicas e identificar como melhor atingir tais objetivos
– a serem geridas em uma estrutura hierárquica. Isto é resultado também
da existência de reduzida competição e de incentivos fracos internos à mo-
tivação e direcionamento do comportamento da burocracia (DIXIT, 2002;
MILLER, 1992).
Neste sentido, é importante relembrar que, como pontuado por Miller
(1992), a busca de resultados eficientes em uma estrutura de governança
hierárquica, passa pelo controle de elementos externos a esta, implicando
a necessidade de existência de accountability dessas organizações (SILVA,
2004).
Essa accountability tem sido discutida, demandada e estudada com profun-
didade no Brasil nos últimos 30 anos. A análise dos movimentos sociais e
da retomada da democracia participativa na década de 1980 buscam de-
monstrar a necessidade e os benefícios do aumento do controle social na
busca do aumento da eficiência das organizações públicas e da efetividade
das políticas públicas. Há ainda questões e dilemas a serem tratados. Ve-
jamos um breve relato desses tópicos na próxima seção.

A Democracia Participativa e as Possibilidades de Controle


Social das Estruturas de Governança no Setor Público

Os movimentos sociais, que reivindicavam demandas específicas a partir


da década de 1970 no Brasil, juntamente com o movimento Diretas Já, que
se opunha ao regime político ditatorial, vieram a promover mobilizações e
ações relevantes. Suas atividades apresentaram-se em forma de protestos e
organizações formais que iriam ter reflexo sobre as instituições políticas e in-
fluenciar a agenda de formulação de políticas públicas (AVRITZER, 1997)6.

6 Para tratar das formas de organização e mobilização da época, Avritzer (1997) utiliza-se do termo
“novo associativismo” indicando certa ruptura com o associativismo religioso tradicional e a redução
da vida sindical e o fortalecimento de organizações temáticas que tratam de questões de gênero, meio
ambiente, moradia, direitos da criança e do adolescente, reforma agrária, entre outros.

22
Para Avritzer (1994), o modelo de sociedade civil emergente no Brasil
durante as décadas de 1970 e 1980 reivindicava novas práticas políticas e
instituía novas formas de ação. Também é sua característica a oposição ao
modelo político autoritário do regime militar e à importação de estruturas
democráticas representativas dos países ditos desenvolvidos.
O Brasil é marcado então por diversas experiências participativas ainda no
fim do regime militar, onde em alguns casos, como maneira de se opor ao
sistema político autoritário, alguns governos municipais passam a realizar
um maior contato com a sociedade através de espaços de comunicação ou
de ações conjuntas com a população. Têm-se como exemplos destacados
disso os que ocorreram nas cidades de Boa Esperança (ES), Diadema (SP),
Lajes (SC), Piracicaba (SP) e Vila Velha (ES) entre a segunda metade da
década de 1970 e a primeira metade da década de 1980 (SOUZA, 2001;
PIRES, 2000).
Em função da conjuntura política, social e econômica e das mobilizações
realizadas pelo movimento Diretas Já, em 1985 há grandes avanços rumo
à redemocratização a partir da eleição indireta para presidente contando
com civis e não mais militares como candidatos. Mas, um grande marco
institucional das demandas sociais emergentes foi a promulgação da Cons-
tituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã. A
mesma foi resultado da Assembleia Nacional Constituinte que se formou
em 1986.
Essa iria refletir reivindicações em forma de direitos sociais como garantias
universais e de dever do Estado.7 Além do mais, lançava diversos institutos
legais que garantiriam a retomada de um Estado democrático de direito.8
A CF/88 traz no seu conteúdo a previsão de elementos de democracia par-
ticipativa, com o intuito de aprofundar a experiência de democracia repre-
sentativa e de superar a tradição de concentração de poder na tomada de
decisões estimulada por regimes autoritários e centralizadores no Brasil. A
garantia de participação da sociedade é apresentada na CF/88 em diversos
campos de políticas como a saúde, educação, assistência, cultura, planeja-

7 É visível como a garantia pela CF/88 da educação, saúde, previdência social, assistência, moradia, a
busca pela redução das desigualdades e o cumprimento da função social da propriedade, entre outros,
é reflexo da mobilização de grupos sociais por certas demandas. (BRASIL, 2005)
8 Entre os institutos democráticos presentes na CF/88 podem-se destacar a separação entre os três
poderes, o conjunto de direitos e garantias individuais, coletivos e políticos, a liberdade de associação
político partidária, as eleições diretas, o sufrágio universal e a liberdade de expressão. (BRASIL, 1988)

23
mento urbano, entre outros (BRASIL, 2005). Dessa forma, a interpretação
da CF/88 mostra como a mesma traz à tona o princípio da participação.
Desde o final dos anos 1980, no Brasil, têm-se apresentado vários arranjos
participativos nas instâncias de tomada de decisão política que se aproxi-
mam bastante de modelos de democracia participativa. Esses trazem tam-
bém uma necessidade de adaptação do Estado e da gestão pública para se
adequar aos novos modos de relacionamento gerados.
As diversas formas de participação da sociedade junto ao Estado apresen-
tam diferentes características em maior ou menor nível de iniciativa gover-
namental ou da própria sociedade. Na atualidade, elas também recebem o
status de instituições dado seu nível de garantia legal ou de prática informal
(GURZA LAVALLE, 2011).
Segundo Avritzer (1994), a redemocratização teria sido fundamental para a
institucionalização de mecanismos legais capazes de estabelecer uma relação
de transparência entre a sociedade civil e o Estado. São alguns dos modelos
mais populares de participação e democracia direta existentes hoje no Brasil9:

• Plebiscitos: Plebiscitos são uma forma de consulta à população que


acontece anteriormente à formulação de uma lei e que a o art. 14 da
CF/88 afirma ser condição da soberania popular. Rabat (2010) diz que
o uso desse instrumento para tomada de decisões diferentes daque-
las previstas pela constituição foi extremamente raro. A lei nº 9709/98
regulamentou o plebiscito em instâncias municipais, estaduais e dis-
tritais, desde que previstas as condições em suas leis orgânicas e cons-
tituições estaduais.
• Referendos: Os referendos muitas vezes são vistos de forma semelhan-
te aos plebiscitos; no entanto, diferenciam-se já que tratam da capa-
cidade de o povo ratificar uma lei depois de pronta. Assim como o
plebiscito é garantido pelo art. 14 da CF/88.
• Conselhos de política: São resultados diretos da Lei orgânica da saú-
de e da Lei orgânica da assistência social. Expandiram-se para diver-

9 Cabe esclarecer que essa lista não é exaustiva, já que existem outros arranjos participativos que se
enquadram também como de democracia direta. Porém optou-se por destacar esses por serem mais
comuns.

24
sas áreas e temáticas, sendo que em alguns casos sua existência e seu
funcionamento são condicionantes para repasses em forma de tranfe-
rências orçamentárias. Baseiam-se em um espaço consultivo e muitas
vezes deliberativo para discussão em determinadas áreas de políticas
públicas congregando representantes tanto do Estado quanto da so-
ciedade civil. Hoje é possível observar inúmeros conselhos nacionais,
estaduais, distritais e municipais que tratam de diversos temas como
educação, saúde, segurança, assistência social, criança e adolescente,
transporte, meio ambiente, entre outros (TATAGIBA, 2005)
• Orçamento Participativo: O orçamento participativo (OP) é uma ex-
periência brasileira inovadora, que teve sua origem ainda no período
do regime militar e que tem como caso mais emblemático o de Porto
Alegre (RS). Estudos apontam que tenha existido mais de 200 casos
de OP pelo Brasil e pelo mundo (PIRES, 2000). O OP é basicamente a
organização de plenárias regionais e temáticas para debater e decidir
onde vão se dar investimentos em bens e serviços a partir de parte dos
recursos financeiros do orçamento público.
• Audiências públicas: As audiências públicas são um meio de troca de
informação entre sociedade e administração pública, onde não se cria
como regra uma obrigação entre as partes. Serve como uma forma de o
gestor público comunicar aos interessados e afetados por suas decisões
e também ouvi-los. Apesar de na maior parte das vezes elas se darem
em função da vontade da administração pública, existem casos em que
se fazem obrigatórias por lei. Isto acontece quando, por exemplo, a Lei
de Responsabilidade Fiscal (Lei complementar 101/00) determina que
para a aprovação das leis orçamentárias é necessário que haja audiên-
cias públicas.
• Plano diretor municipal10: O plano diretor em si não tem como prin-
cipal objetivo servir de arranjo participativo e sim ser um planejamen-
to predominantemente técnico que orienta a ocupação do solo urbano
por um período futuro de 10 anos. O estatuto da cidade (Lei 10.257/
01), em seu art. 40 define que o Plano diretor deve ter ampla publici-

10 Entre as questões que estão envolvidas no plano diretor destacam-se a “...reabilitação de áreas
centrais da cidade e sítios históricos; avaliação e atividades em áreas rurais; políticas habitacionais,
regularização fundiária; transporte e mobilidade; saneamento ambiental; estudo de impacto de
vizinhança; instrumentos tributários e de indução de desenvolvimento; desenvolvimento regional;…”
(REZENDE; ULTRAMARI, 2007, p. 265)

25
dade e acesso de suas informações e documentos, e que durante a sua
elaboração e posteriormente a ela é necessário realizar debates e audi-
ências públicas com a população e com associações representativas da
comunidade. A participação no plano diretor deve ocorrer através de
audiências, plenárias e oficinas e contando com representantes do po-
der público, empresariais e da sociedade civil (Avritzer, 2008).

Estes arranjos participativos seriam frutos de uma complexa interação sem


muita divisão clara entre Estado e sociedade civil. As tentativas de análise
de ambas esferas por meio de uma separação entre as mesmas mostram-se
cada vez mais falhas se levarmos em consideração que:

La constitución recíproca entre – Estado y sociedad, o entre insti-


tuciones políticas, por un lado, y los actores de la sociedad ocurre
mediante procesos que, a lo largo del tiempo y en el mismo mo-
vimiento, moldean y van siendo moldeados por las diferentes ins-
tituciones políticas existentes. (GURZA LAVALLE; HOUTZAGER;
CASTELLO, 2011, p. 209)

Para Vaz e Pires (2011), conceitos de participação social que busquem ho-
mogeneizar os cidadãos e entender que toda negociação entre sociedade e
Estado gera como resultado a alocação de bens e serviços públicos, devem
dar lugar a um substrato analítico que considera a co-responsabilização e a
co-gestão entre Estado e sociedade.
Diante disso, um campo de trabalho e pesquisa que se abre e se mostra
cada vez mais intenso e com uma capacidade cada vez maior de reunir
interessados é aquele que tenta entender as instituições participativas na
sua relação com as instituições do Estado11. Esta prática também parece ter
certa urgência na medida em que:

11 Gurza Lavalle (2011) apresenta quatro frentes de trabalho emergentes nos estudos da relação entre
instituições participativas e instituições do Estado. São elas a análise das normas legais garantidas pelo
direito, estratégias políticas e participativas, efeitos da institucionalização e da burocratização nos
arranjos participativos e efeitos reais nas políticas públicas.

26
Embora os canais institucionalizados de participação estejam vincu-
lados a órgãos estatais, façam parte da estrutura administrativa do
Estado, nas análises eles parecem estar – soltos no ar, na medida em
que pouco sabemos sobre como dialogam com a estrutura burocrá-
tica do Estado. (TATAGIBA, 2008, p. 226)

Parece surgir no tratamento das questões que envolvem a institucionaliza-


ção dos arranjos participativos, a possibilidade de estudo dos mesmos em
relação aos custos de transação e estruturas de governança no setor públi-
co. As teorias neo-institucionalistas parecem ser capazes de ter aparatos
teórico-metodológicos capazes de fornecer uma compreensão abrangente
das relações entre Estado e sociedade.
Considerando-se que a coordenação em uma organização busca superar
os custos de transação, considera-se que as instituições participativas po-
dem ter sua importância conforme sejam capazes de estabelecer mecanis-
mos externos de incentivo e supervisão que garantiriam melhores níveis
de eficiência e eficácia. Dessa forma, a participação pode ser uma variável
interessante para compor a construção da estrutura de governança no setor
público, considerando que nessa área a mesma admite predominantemente
a forma hierárquica.

OP de São Carlos

As teorias neoinstitucionalistas de custos de transação e estrutura de gover-


nança demonstram capacidade teórico-analítica para análise do modelo de
participação denominado orçamento participativo. Isto se dá, sobretudo,
com relação as suas características institucionais e em suas relações com o
Estado. Desta forma, realizar-se-á uma análise do OP do município de São
Carlos (SP) sob a perspectiva dessa teoria.
São Carlos (SP) é um município localizado na região administrativa central
do estado de São Paulo e que conta com uma população estimada em 2012
de 226.322 habitantes. Seu IDH-M de 0,841 é considerado bom e seu índice
de Gini está acima da média nacional, sendo de 0,4112. A cidade é destaque

12 Fonte de informações: IBGE cidades@ - http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1


(acessado em 02/12/2012)

27
por seu alto número de instituições de ensino superior e pesquisa, receben-
do o título pela lei n° 12.504/11 de capital nacional de tecnologia.
Apesar dos relevantes níveis de indicadores sociais e de contar com um
aparato científico, acadêmico e tecnológico consideravelmente alto, o
município de São Carlos (SP) não possui uma tradição associativa e de
mobilização social significativa ao longo de sua história. Exemplo disso
encontra-se no fato que suas associações de moradores entre 1993 e 2000
foram dirigidas por cargos comissionados (SOUZA, 2011). Mesmo nessas
condições, o município de São Carlos (SP) teve um modelo de orçamento
participativo que existiu durante 12 anos, entre 2001 e 2012, durante três
mandatos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT).
A partir do mapeamento de quatro grupos de atores envolvidos no setor público
(poder executivo, legislativo, burocracia e sociedade civil), far-se-á uma análise de
suas influências mais marcantes no OP de São Carlos (SP) no período de sua exis-
tência. Essa análise aponta para o fato de que não necessariamente esses grupos
apresentam os mesmos interesses, o que pode aumentar os custos de transação.
A começar pelo poder executivo, o mesmo apresenta-se como um dos
maiores responsáveis pela implementação do OP em São Carlos e sua ma-
nutenção ao longo dos 12 anos. Para que isso se concretizasse houve um
grande esforço do poder executivo realizando acordos com membros do
poder legislativo e com outros partidos em busca de apoio.
Cabe salientar que existiu forte oposição dos membros dos vereadores de
oposição e também da base governista quando houve a implementação do
OP. Isto se deu, pois o mesmo invertia a lógica de que os gastos públicos
deveriam ser associados a figuras pessoais de vereadores, o que causava
prejuízos aos interesses de reeleição dos mesmos. Esse fato trouxe tanto
custos de tempo gasto na negociação, quanto de recursos, já que recursos
que seriam destinados ao OP, foram divididos entre os vereadores para que
esses fizessem políticas personalistas. (SOUZA, 2011)
Confirmando a ideia de que nem sempre executivo, legislativo, burocracia
e sociedade civil têm o mesmo interesse e disposição de concretizar uma
política pública, tem-se que os conflitos e negociações do executivo para
levar essa política a ser implementada também se deram em relação à bu-
rocracia e à própria sociedade civil.
Uma questão que parece ter sido marcante foi certa dificuldade de comu-
nicação entre a burocracia e os segmentos da sociedade civil. Assim, em

28
alguns casos o corpo burocrático mostrava resistência em efetivar as apro-
vações do OP, já que eram motivados pelo cumprimento de políticas que
tivessem prioritariamente a sua marca e não a do OP. Isso levou a um custo
de monitoramento. Em relação à sociedade civil, a falta de pertencimen-
to e dificuldade em envolver-se em instâncias participativas no início do
processo parece ter dado lugar à sobreposição de interesses de grupos mais
articulados e influentes, com o passar do tempo. A falta de consenso e a
negociação mostraram-se presentes até mesmo dentro do poder executivo,
onde muitas vezes houve discordâncias entre manter o modelo de OP ini-
cial ou realizar mudanças de metodologia13.
Conforme afirmação de Peres (2007), um custo de transação é gerado na
medida em que não é possível ter para a sociedade a garantia de conti-
nuidade dos benefícios de uma política pública. Uma das razões para isso
se dá em função de que novos grupos políticos podem possuir interesses
diferentes de seus antecessores e, assim, as políticas podem ser legalmente
destruídas sem uma compensação. Foi possível observar isso no OP de São
Carlos (SP), já que o mesmo vigorou durante três governos vinculados ao
Partido dos Trabalhadores (PT), tendo seu fim imediato em 2013, com o
início de um governo de oposição vinculado ao Partido da Social Demo-
cracia Brasileira (PSDB). Possivelmente, isto se deve a razões envolvidas
com o interesse em modificar uma política associada ao governo antecessor
de um partido opositor.
Outro fator analítico de muita relevância para o OP de São Carlos (SP) é o
das características especiais das estruturas de governança no setor público.
Por razões da complexidade do setor público, e por esse motivar interesses
às vezes antagônicos, às vezes convergentes de diversos grupos, sua estru-
tura apresenta multiplicidades de principais e tarefas. Além disso, são ca-
racterísticas a reduzida competitividade e particularidades nas motivações
dos agentes. (PERES, 2007)
Franzese e Pedroti (2005), a partir de uma análise à luz da teoria do principal/
agente fizeram uma apreciação do processo de accountability envolvido no
OP de São Carlos. Segundo as autoras, a partir de uma pesquisa documental,

13 As informações desenvolvidas aqui são fruto de uma entrevista semiestruturada realizada com a
chefe de divisão de participação popular de São Carlos entre os anos de 2009 e 2012 e coordenadora dos
projetos OP Educa e ProCRIAJ. A entrevista foi realizada no dia 05/12/2012 e a mesma foi registrada
de forma escrita em anotações.

29
foi possível identificar que apesar de o OP de São Carlos não ser um instru-
mento institucionalizado e dessa forma sensível a mudanças de governo, ele
teve o potencial de ampliar as informações sobre as ações governamentais,
permitindo que avaliações no momento eleitoral fossem feitas de forma mais
consciente pelos cidadãos. Assim, a accountability social seria capaz de in-
fluenciar outros modos de accountability tradicionais como a accountability
vertical, a qual tem como instrumento por excelência o voto.

Considerações Finais

Ao compreender a estrutura de governança do setor público, seus atores e


custos, ficou clara a necessidade de um estudo em relação ao desenvolvi-
mento da democracia participativa no Brasil. Neste sentido, este capítulo
buscou traçar o perfil hierárquico da governança do setor público e o papel
do controle externo no desenvolvimento de políticas públicas.
Para reflexão sobre o controle externo, o foco foi estabelecido na participa-
ção e nos seus diversos instrumentos. A análise do OP de São Carlos (SP)
forneceu base empírica para compreender custos de transação e formas de
governança no caso analisado.
Deve-se observar que, por se tratar de um único caso, não é passível de
generalizações; porém, observa-se que apesar de incentivos a formas de
controle externo, que poderiam reduzir os custos de transação, esses ain-
da estão muito presentes e precisam ser negociados entre os atores, para
que um projeto como o OP ocorra. Ou seja, apesar de o controle externo
possibilitar a redução dos custos de transação, os diferentes atores estão
tão embrenhados em uma governança hierárquica, que o próprio controle
externo gera novos custos de transação.
Assim, o que se pode perceber é um processo de longo prazo, no qual o
controle externo, no caso a participação, deve ser uma prerrogativa de to-
dos os atores e não apenas de um, como no caso analisado, o Poder Exe-
cutivo. Como trabalhar isto em um modelo de governança hierárquica é
uma questão fundamental, e a importância dos atores externos, que não
estão diretamente dentro dessa hierarquia, como o Poder Legislativo ou a
Sociedade Civil, tem um papel fundamental no desenvolvimento do con-
trole externo. Desta forma, portanto, pode-se possibilitar uma redução dos
custos de transação e uma maior efetividade da ação estatal.

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35
DIMENSÃO SOCIOAMBIENTAL, MUDANÇA SOCIAL E PARTICI-
PAÇÃO POLÍTICA

Marcos B. de Carvalho, Érico L. Pagotto,


Atilio V. Neto, Gustavo C. Meyer

Em uma das salas de exposições do acervo permanente do Museu Nacional


de Arte Antiga de Portugal, sediado em Lisboa, exibe-se um quadro de au-
tor desconhecido intitulado “O Inferno” e datado do início do século XVI,
algo entre 1505-1530.

Figura 1 – Reprodução da tela “O Inferno” (Fonte: Museu Nacional de Arte Antiga)

No quadro, ao redor de um daqueles clássicos caldeirões (mais usualmente


utilizados para representar os estereótipos dos rituais de canibalismo) em
cujo interior ardem os corpos de alguns prováveis “pecadores” (dentre eles,
observe-se pelo menos dois frades franciscanos), representam-se punições
diversas e relacionadas às transgressões que os outros castigados também
possivelmente cometeram (usura, luxuria, avareza, infidelidade etc). No
canto superior direito, a “boca do inferno”, despeja os corpos nesse cenário.
E na margem esquerda, as brasas de uma pira consomem os cabelos de três
mulheres que jazem nuas e dependuradas de cabeça para baixo, castigan-
do-lhes esses símbolos da “vaidade e da soberba” femininas, que todos os
fundamentalismos religiosos normalmente mandam cobrir (ou não tocar).
Ao fundo, na parte mais escura da representação, e no comando de toda a
cena “figura um entronizado Lúcifer com toucado e fato de coloridas plu-
mas, vestimenta que tem suscitado a hipótese de se tratar de um atributo
de identidade ameríndia ou mesmo brasileira”, segundo o texto explicativo
colocado ao lado do quadro em exposição na sala do museu português.
Ou, mais diretamente, como afirma o texto do próprio sitio do Museu Na-
cional (que recomendamos vivamente que seja consultado, para que se ob-
servem detalhes do quadro que aqui reproduzimos)1, essa “figura exótica
que preside ao grande teatro dos condenados” é “provavelmente um índio
brasileiro”.
Precisamente nesse período, início do século XVI, anunciava-se uma era de
transformações embalada pela ampliação dos horizontes europeus, que sob
a liderança das potências ibéricas expandiram seus domínios territoriais
para além das fronteiras abissais que demarcavam aquele “final do mundo”
que o alcance dos olhares ibéricos estabeleciam como limite.
A figura de um índio brasileiro, no papel de “príncipe das trevas”, conforme
a representação do quadro que examinamos, desempenhava uma função
ambígua. Por um lado materializava os horrores e perigos imaginados para
um mundo desconhecido e pós-abissal — um verdadeiro inferno —, ao
qual os aventureiros se lançaram (intencionalmente ou não, pouco impor-
ta) para mundializar a Europa, ou europeizar o mundo, se se preferir. Por
outro, esse “índio-lúcifer”, já em uma condição de subordinado a outros
mitos que não os seus, parece exercer o papel de vigilante do novo con-
quistador, comandando as punições daqueles que, despejados pela ‘boca do
inferno”, representam os comportamentos que a partir daí passariam a ser
condenados em todas as antípodas — do norte ao sul do planeta —, simbo-
lizando, entre outras coisas, as regras a que tudo e todos estariam subordi-
nados, especialmente nos novos territórios incorporados aos horizontes de
apropriação dos europeus.

1 ver <http://mnaa.imc-ip.pt/>, link para exposição permanente (outras obras essenciais) <http://mnaa.
imc-ip.pt/pt-PT/exposicao%20permanente/HighlightList.aspx>.

38
O século XVI, não custa lembrar, é também o momento em que a expansão
dos horizontes, das crenças e do modo de vida europeus, impôs uma nova
cartografia em que o sul ficaria consagrado como a parte inferior, subordi-
nada, das nossas representações de um mundo que, nos séculos seguintes,
acostumar-se-ia com a condição central da Europa.
Até meados do século XVI, com as projeções de Marini (1512) ou Dieppe
(1567), o sul ainda costumava povoar as imagens superiores das represen-
tações cartográficas. Mas, em 1569, Mercator, consagrou também na carto-
grafia a superioridade pretendida pelos que desde o início daquele século
lançaram-se na aventura de enfrentar os “abismos” existentes além de seus
horizontes de dominação.
A figura do índio brasileiro que recolhe e comanda a punição dos que são
despejados pela “boca do inferno”, situa e identifica o hemisfério de su-
bordinação. Assim, o autor desconhecido do quadro “O inferno”, como
costuma acontecer na relação entre arte e ciência, antecipa para o começo
do século XVI, uma imagem que cartograficamente só ficaria consagrada
algumas décadas depois.
Porém, desse “índio-lúcifer”, à condição de escravizado e/ou destruído pe-
los novos padrões de organização social impostos pelos europeus, passando
pelas imagens idealizadas que o caracterizavam como “bom-selvagem” ou
desfrutando das situações concretas vividas por um cidadão livre, absorvi-
do pela nova ordem ou reconhecido como portador de alteridade cultural
que merece ser respeitada (em suas dimensões e necessidades econômicas,
sociais e até mesmo territoriais), o “indígena” [brasileiro], que bem pode-
ria ser utilizado para representar as situações vividas pelos diversos ou-
tros “indígenas” das várias nacionalidades produzidas pela apropriação do
“sul geopolítico” do planeta, experimentou diversas condições, todas elas
proporcionadas pelas mudanças sociais e políticas havidas nesses últimos
séculos da nossa história. Para essas mudanças, a dimensão socioambiental
exerceu peso decisivo.

O socioambiental, o ambiental e compromissos com a mudança


social

As imagens e ou representações, assim como as paisagens e as territoriali-


dades em suas expressões reais, resultam das múltiplas determinações pro-

39
duzidas pelas diversas dimensões que presidem nossas existências e que
comandam suas dinâmicas, segundo os ritmos e os pesos que as ações mais
e menos institucionalizadas, considerando os vários matizes dessas possibi-
lidades, tem desenvolvido ao longo da história da humanidade.
Embora as realidades, como resultado histórico que se processa sempre em
temporalidades e espacialidades precisas, não possam prescindir de ne-
nhuma das múltiplas dimensões que a fazem existir, evidentemente que
interesses de segmentos particulares conectados aos benefícios proporcio-
nados por algumas (ou uma) delas, dependendo das correlações de forças
momentâneas podem promover as distorções necessárias para que a re-
sultante vetorial dessa complexidade a que chamamos de realidade, penda
mais para um lado do que para outro.
Se retomamos o exemplo das diversas e rápidas caracterizações a que há
pouco indicamos acerca do “indígena”, considerando cada uma delas como
uma espécie de símbolo aproximado para representação dos momentos
históricos que atravessamos ao longo dos últimos 500 anos, é possível iden-
tificar os pesos relativos que foram (ou são) conferidos às importâncias
momentâneas de cada uma das dimensões (econômicas, políticas, ideoló-
gicas, sociais, culturais, ambientais, territoriais...) com as quais costuma-
mos divisar (ou categorizar) os diversos componentes das sucessivas reali-
dades históricas. Privilégios concedidos, por exemplo, às dimensões e aos
interesses político-ideológicos ou econômicos, seriam mais representativos
para uma referência à realização e expansão das novas ordens pretendi-
das pela implantação e desenvolvimento de padrões europeus de vida, nos
quais, é claro, arranjos promovidos pelas dimensões culturais, condições
ambientais e territoriais, também sempre estão presentes, como em toda
e qualquer realidade, mesmo que desvalorizados e subsumidos por outras
dimensões. Já as referências que indicariam privilégios às determinações de
dimensões culturais, sociais, ambientais, — ou socioambientais, em uma
palavra —, tenderiam a ser mais adequadas para simbolizar primazias con-
cedidas aos (ou conquistadas pelos) interesses das populações indígenas e/
ou tradicionais, ou ao menos mais consideradoras desses interesses.
Assim, não seria difícil perceber os privilégios que as seguintes caracteriza-
ções, mesmo que estereotipadas, indicam ou simbolizam, — por vezes ape-
nas como desideratos, por vezes como expressão de realidades —: “índio-
-lúcifer”, “índio-mão-de-obra-escrava”, “bom-selvagem”, “índio-cidadão-
-livre”, “índio-alteridade”, ou, ainda, como mais recentemente, passaram a

40
ser caracterizados por diversos autores, dentre eles o ilustre pensador do
“ecodesenvolvimento”, Ignacy Sachs (2009, 2008), junto com outras popu-
lações tradicionais “camponeizadas”: “guardiães da biodiversidade”, “bioci-
vilizadores”, “ ‘servidores’ ambientais” etc.
Considerando o escopo de nosso interesse nessa reflexão, se se poderia
afirmar que cada uma dessas caracterizações, tomadas como simbólicas de
momentos históricos mais ou menos precisos, refletem os alcances das mu-
danças nos arranjos sociais realizados em determinadas condições (e pro-
duzidas, é claro, pela confluência de dinâmicas sócio-econômico-culturais
dadas), para atender na maioria dos casos interesses do colonizador ou,
posteriormente, de seus herdeiros, independentes ou não, inegavelmente,
já naquelas outras caracterizações, como essas que exemplificamos com as
ideias de “alteridade” ou de “liberdade”, ou as recentemente introduzidas
por Sachs e outros, revelam-se potencialidades distintas e privilegiadoras
de outras dimensões para novos rumos que se buscam imprimir, com o
intuito de fortalecer ideias cultivadoras de novos arranjos sociais que se
pretendem construir.
Aqui, desde que emergiram com força os entendimentos ampliados de uni-
versos culturais e do reconhecimento à existência, inclusive físico-territo-
rial, de todos eles (contraditoriamente um dos legados do advento do Esta-
do Nacional moderno2), com a extensão do reconhecimento da alteridade
físico-natural, também para valorização das alteridades étnico-culturais e
cognitivas (considerando, inclusive, as relações e interdependências que
se estabelecem entre ambas), a dimensão socioambiental emerge potente
como uma espécie de força-motriz a indicar e sugerir rumos para os novos
arranjos sociais requisitados.
Em um contexto, como o que estamos vivendo, promovido por esse momento
de ápice do processo de mundialização, iniciado com a expansão das fronteiras
europeias a partir do século XVI e caracterizado por essa espécie de globali-
zação (ou “globaritarismo”, como prefeririam alguns, entre eles Mílton Santos,
2000) dos limites, em que todas as fronteiras representativas das dimensões da
nossa existência (econômicas, políticas, culturais, físicas etc), passam a se en-
contrar e coincidir, em seus alcances, com a própria fronteira do geóide, que dá
forma simbólica e geométrica ao nosso planeta, a dimensão socioambiental, de
fato, revela sua potência emergente, seja para lidar com essa “era dos extremos”

2 Para uma abordagem mais extensa dessa questão, ver Carvalho, 2006.

41
e de ameaça de esgotamentos que rondam as reservas estratégicas do padrão de
acumulação globalmente instalado, seja para contemplar os reclamos dos polos
ainda desfavorecidos pelos rumos dessa história.
No primeiro caso, essa emergência parece convergir para um reducionismo
físico-natural do alerta ambiental, comprometendo, inclusive, a bandeira da
sustentabilidade, que afirma-se cada vez mais como expressão que qualifica
o conjunto de expedientes adotados e necessários para conferir sobrevida
ao padrão de acumulação global e hegemonicamente instalado, ou, como
afirmam mais explicitamente alguns: “a sustentabilidade surge no seio do
capitalismo, como o novo modo de regulação, (...) modos de gestão mais
eficazes da base material (...) ou [expediente] para agilizar, homogeneizar e
internacionalizar o espaço geográfico, ora com proveitos regulatórios, ora
com proveitos desregulatórios...” (Teodoro, 2011:11).
Mas, no segundo caso, — vinculado àqueles polos desfavorecidos... —,
amplia-se e afirma-se a expressão socioambiental (ou socioespacial) como
simbolizadora do encontro compreendido como necessário para a promo-
ção de justiça, ambiental e social, que, em outros momentos poderia ser
entendida até como expressão redundante3, mas que hoje impõem-se para
fazer frente àquele processo de compreensão reducionista do ‘ambiental’.
Indubitavelmente, é nesse segundo caso que a dimensão socioambiental
mais indica suas relações com as perspectivas de mudança social, pois,
no primeiro, independentemente das denominações com que ela se apre-
sente (inclusive, às vezes como ‘socioambiental’, embora seja mais comum
apresentar-se apenas como ‘ambiental’ ou nas diversas combinações e/ou
variações do ‘sustentável’) o compromisso e o investimento têm sido no
aprimoramento e sobrevivência da ordem estabelecida.

O imperativo socioambiental e os rumos da mudança

Se retomamos agora os nossos exemplos iniciais, simbolizados pelas imagens


emprestadas aos “ameríndios”, para demonstrar a importância da dimensão
socioambiental nos processos de mudanças sociais e no estímulo à participa-

3 Isso vale particularmente quando nos referimos às origens recentes, no último terço do século
passado, dos chamados movimentos ecológicos e dos partidos verdes que conferiam um sentido
bastante amplo e politizado para a questão ambiental. A esse propósito ver Castells, 2006 .

42
ção política, basta observar o esforço empreendido por alguns analistas para
caracterizar o papel de relevância, atual e projetada para o futuro, de muitas
daquelas populações nativas e/ou “indígenas” que destinadas à dizimação e/
ou subordinação, particularmente no hemisfério sul do planeta, empreende-
ram uma trajetória de superação das imagens e das condições que lhes foram
impostas “fixando-se novamente em seu território, localizando-se novamen-
te em um mundo globalizado desde suas lutas de resistência e suas estratégias
de reapropriação da natureza” (LEFF, 2003: 53).
Essas “lutas de resistência” e as “estratégias de reapropriação da natureza” a
que se refere Leff, por sua vez, ao evidenciarem características nem sempre
muito consideradas da chamada crise ambiental que ora atravessamos, tais
como as cognitivas e epistemológicas — “a crise ambiental não é crise eco-
lógica, mas crise da razão”, lembra-nos o próprio Leff nesse mesmo texto
que mencionamos —, realçaram os componentes sociais e culturais, rele-
gados e sufocados pelos modelos dominantes, mas que necessariamente
deveriam ser contemplados para o equacionamento do que muitos classifi-
cam como um problema “civilizatório” ou como a “crise do nosso tempo”:

La crisis ambiental es una crisis de civilización. Es la crisis de un


modelo económico, tecnológico y cultural que ha depredado a la
naturaleza y negado a las culturas alternas. El modelo civilizatorio
dominante degrada el ambiente, subvalora la diversidad cultural y
desconoce al Otro (al indígena, al pobre, a la mujer, al negro, al Sur)
mientras privilegia un modo de producción y un estilo de vida in-
sustentables que se han vuelto hegemónicos en el proceso de globa-
lización. La crisis ambiental es la crisis de nuestro tiempo. No es una
crisis ecológica, sino social... 4

Tais reconhecimentos, implicam, necessariamente, valorização da dimen-


são socioambiental, na forma como a entendem alguns dos pensadores que
estamos mencionando e os signatários do manifesto cujo trecho reprodu-
zimos, como vetor imprescindível a ser considerado no encaminhamento

4 Trechos extraídos do “Manifiesto por La Vida, Por Uma Ética para la Sustentabilidad”, elaborado no
Simpósio sobre Ética y Desarrollo Sustentable, celebrado em Bogotá, Colômbia, entre os dias 2 e 4 de
Mayo de 2002. Disponível em <http://www.pnuma.org/educamb/documentos/Manifiesto.pdf>. Entre
outros, participaram do simpósio: Enrique Leff, Carlos W. Porto Gonçalves e Marina Silva.

43
da crise que ora atravessamos, particularmente quando esse enfrentamento
pretende confrontar as velhas estruturas produtoras das tragédias assisti-
das em séculos de destruição, sugerindo as mudanças capazes de sustentar
novos modelos civilizacionais que proporcionem o encontro entre a justiça
ambiental e a social.
Para o pensador português Boaventura Sousa Santos, — ratificando aquele
reconhecimento a que há pouco nos referimos e expressado por Leff, de ser
a crise ambiental “sobretudo um problema de conhecimento” — a injustiça
perpetrada pelo processo histórico que implantou a ordem que governa
o mundo, poderá ter um caminho de reparação com o desenvolvimento
de um pensamento que seja capaz de fazer frente àquelas “epistemologias
abissais do Norte global”, por ele assim denominadas por desprezarem os
saberes existentes para além de seus horizontes, que sustentaram e ofere-
ceram lastro cognitivo para os resultados críticos que hoje colhemos nas
realidades físico-territoriais e socioespaciais de todos os lugares.
Tais ideias, Sousa Santos as sintetizou em um texto dedicado precisamente
a estabelecer as relações entre a “injustiça social global e a injustiça cogniti-
va global” (Sousa Santos, 2007). Nesse texto, intitulado “Para além do pen-
samento abissal”, o autor se insurge contra o exclusivismo do pensamento
único promovido pela tecnociência moderna, que a serviço dos empreendi-
mentos que a financiaram, difunde a crença cega nos poderes “milagrosos”
das tecnologias, desviando-nos da consideração da diversidade epistemo-
lógica e de saberes (incluindo aí a própria ciência, é claro), que poderiam
se constituir nos alicerces de novas perspectivas civilizacionais, sustenta-
das por referências cognitivas menos autossuficientes e excludentes, como
aquelas que têm instrumentalizado e regulado tanto nossas relações sociais
como as que promovemos com os outros elementos de nossos ambientes.
Essas novas perspectivas se fundariam, segundo o autor, em uma espécie de
resistência cognitiva por ele denominada de “pensamento pós-abissal” que
os seguintes trechos extraídos do texto ilustram muito bem e falam por si
(extraímos precisamente aqueles excertos que interessam mais diretamente
ao nosso argumento):

(...) os movimentos indígenas são, do meu ponto de vista, aqueles


cujas concepções e práticas representam a mais convincente emer-
gência do pensamento pós-abissal, o que é muito auspicioso para a
possibilidade de um tal pensamento, já que os povos indígenas são

44
os habitantes paradigmáticos do outro lado da linha, o campo histó-
rico do paradigma “apropriação/violência”. (Sousa Santos, 2007: 84).
E não deveria nos impressionar a riqueza dos conhecimentos que
lograram preservar modos de vida, universos simbólicos e informa-
ções vitais para a sobrevivência em ambientes hostis com base exclu-
sivamente na tradição oral? (Id.: 88)
Na perspectiva das epistemologias abissais do Norte global, o poli-
ciamento das fronteiras do conhecimento relevante é de longe mais
decisivo do que as discussões sobre diferenças internas. Assim, em
razão do “epistemicídio” em massa perpetrado nos últimos cinco sé-
culos, desperdiçou-se uma imensa riqueza de experiências cogniti-
vas. (Id.: 91)

Tais “desperdícios” não são apenas lamentos teóricos, pois estão estampa-
dos nos resultados de desolação e de injustiças socioambientais visíveis nas
mais diversas paisagens e nos mais distintos países, com especial concen-
tração nos territórios do “Sul global” (em oposição ao “Norte global”, para
ficarmos nas mesmas referências adotadas por Sousa Santos). Essas conclu-
sões, nesse sentido, corroboram aquelas premissas e constatações reunidas
no “Manifesto pela vida”, há pouco mencionado, e realçam semelhantes re-
flexões que outros pensadores, examinando os mesmos problemas e pers-
pectivas, já produziram, tais como Vandana Shiva, especialmente em um
livro cujo título — Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento
(2001) —, já fala por si e nos exime da necessidade de maiores menções,
além do igualmente já mencionado Enrique Leff que reiteradamente tem
explicitado o caráter cognitivo das crises (ambientais) que enfrentamos:
“A problemática ambiental, mais que uma crise ecológica, é um questio-
namento do pensamento e do entendimento, da ontologia e da epistemo-
logia com os quais a civilização ocidental compreendeu o ser, os entes e as
coisas.” (Leff , 2003: 19). E, sintonizado nas mesmas “apostas” dos autores
que estamos aqui reunindo, para a formulação de soluções para a crise, Leff
prossegue, indicando o seguinte: “Hoje, os movimentos de emancipação
dos povos indígenas e as nações étnicas estão descongelando a história;
suas águas fertilizam novos campos do ser e fluem para oceanos cujas ma-
rés abrem novos horizontes de tempo.” (Id., p.46)
Para outros autores, tais como os geógrafos brasileiros Bernardo Mançano
Fernandes e Antonio Thomaz Jr. (Fernandes, 2008), alimentar essas pos-
sibilidades de “descongelamento da história”, implicaria necessariamente,

45
em especial no caso do Brasil e países da América Latina, em reconhecer
a forte oposição, aqui desenvolvida, ao modelo pretensamente totalitário
do agronegócio5, e protagonizada por um campesinato movido por outros
modelos de desenvolvimento rural, fundados em paradigmas que conside-
ram princípios distintos daqueles valorizados pelo mercado global, porque
são pautados justamente no respeito aos espaços de vida, na heterogenei-
dade e na diversidade que são fortes obstáculos às necessidades de escala e
de homogeneidade produtiva que a sociedade urbano-industrial exige de
todos os seus negócios, incluindo os agrícolas. Aqui, importante dizer, que
a noção de “campesinato”, como nos alerta Thomaz Jr., identifica um con-
junto composto por “identidades diversas que se constroem na luta social,
(...) tais como os assentados; os povos da floresta; os posseiros, os ribeiri-
nhos; os pescadores artesanais lavradores; os foreiros; os parceiros; os cas-
tanheiros, os açaizeiros, os arrendatários não capitalistas, os cessionários,
os povos indígenas camponeizados...” (Thomaz Jr., 2008: 281).
Nas potencialidades das perspectivas alimentadas por esse conjunto, que
sugere o fortalecimento de um polo oposto ao representado pelo paradig-
ma do “agronegócio” (onde quer que ele se manifeste, no campo ou na cida-
de), é que também apostam sugestões como a da “biocivilização” defendida
por Ignacy Sachs.
Independentemente das nuances que se possam verificar nos encami-
nhamentos e propostas para o enfrentamento das condições críticas que
muitos desses autores descrevem, há em todos eles o reconhecimento da
dimensão global da crise, do seu caráter civilizatório (com todas as impli-
cações, inclusive culturais e epistemológicas que isso envolve), bem como
dos agrupamentos populacionais, que em seus espaços e territórios cor-
respondentes, têm indicado caminhos para que pensemos em conjunto o
equacionamento de uma solução que contemple esses ingredientes que ca-
racterizam a crise. São nítidos, nesse sentido, os destaques conferidos por
Sachs às contribuições que se poderiam extrair da Amazônia e de suas po-
pulações para esse equacionamento:

5 Essa pretensão totalitária é assim descrita por Fernandes (2008:9): “o agronegócio é apresentado
como totalidade em que não há possibilidade de outro modelo de desenvolvimento rural. Excluindo
qualquer tipo de crítica, o campesinato é compreendido como uma parte do agronegócio, de modo que
a subalternidade e a expropriação aparecem como uma suposta ineficácia do campesinato e não como
intensa exploração do agronegócio”.

46
A extraordinária biodiversidade da Amazônia a predestina a funcio-
nar como um laboratório das biocivilizações do futuro, sem perder
de vista a necessidade de alcançar o quanto antes a meta de desma-
tamento zero. A condição é de avançar nas propostas da explora-
ção racional da floresta baseadas nos conceitos de agroecologia, de
implantação nas áreas desmatadas de sistemas integrados de produ-
ção de alimentos, biocombustíveis e outros bioprodutos adaptados
aos diferentes biomas amazônicos, e de tirar o máximo proveito da
abundância das águas para fazer da Amazônia uma das pátrias da
“revolução azul”, combinando a piscicultura com a criação de ani-
mais anfíbios e de algas – matéria-prima para a terceira geração dos
biocombustíveis. (Sachs, 2008: 12)

A possibilidade (bio)civilizatória que o caso amazônico ilustra e indica,


no entanto, não se reduz evidentemente a generalização das atitudes e da
adoção dos parâmetros que aquela realidade sugere, por mais significativa
que seja essa consideração com o principal manancial de biodiversidade
do planeta, mas amplia-se para a necessidade de revisão da própria relação
campo-cidade que, sob o comando das redes urbanas tem estabelecido es-
pacialidades mais adequadas à reprodução e consumo das mercadorias e
dos fluxos produtivos, do que para atender às necessidades de realização
dos espaços de vida (para todas as espécies, inclusive as humanas) e das
dinâmicas que os elementos de todas as alteridades requisitam para seu
funcionamento. Em função disso, indaga Sachs, ainda no texto que sugere
a Amazônia como “laboratório das biocivilizações do futuro:

Que fazer, então, com a maioria silenciosa do mundo – os campone-


ses tropicais –, dois a três bilhões de homens, mulheres e crianças?
(...) Amontoá-los nas favelas e condená-los a consumir tesouros de
engenhosidade para fabricar estratégias de sobrevivência? Não. Mais
vale se render à evidência. Assim, encetar um novo ciclo de desen-
volvimento rural parece um imperativo social. Esse se desdobra num
imperativo ecológico... (Id.: 339)

Nesses imperativos — social e ecológico, nas palavras de Sachs —, ou so-


cioambientais, se preferirmos, considerando as preocupações, referências
e potencialidades que revelam, é que residem a base e o argumento para

47
a construção de outros modelos sociais, pautados por outros valores (bio)
civilizatórios, ainda na perspectiva do próprio Sachs, ou fundados em ou-
tros paradigmas, como os da biodiversidade e das demandas agrárias, em
oposição à (bio)destruição promovida pela consideração exclusiva dos va-
lores impostos pelo agronegócio e pela escala produtiva da lógica urbano-
-industrial, que o subordina, assim como dita as regras das territorialidades
de todos os lugares que conformam os espaços mundiais, seja no campo,
seja na cidade.

Cenários futuros e desafios à participação

A estratégia de desenvolvimento das sociedades humanas e de subordina-


ção de seus espaços posta em curso até o presente, é, portanto, aquela que
igualmente pode ser responsabilizada pela encruzilhada civilizatória que
procuramos descrever até aqui. Ao lançarmos um olhar para o futuro, o
horizonte das mudanças sociais parece desafiador. Mais ainda ao se con-
siderar que viveremos em uma sociedade muito mais populosa e idosa, e
possivelmente também mais polarizada no que se refere ao acesso a insu-
mos para o atendimento às necessidades humanas, desde as mais básicas,
como água, alimentação e abrigo, às de acesso bem mais complexo, como
serviços de saúde, educação, cultura, seguridade social, entre outras.
Outra questão importante na perspectiva do cenário de transformações
que se desvela refere-se aos desafios da gestão democrática da informação.
Se civilizações ancestrais conseguiram desenvolver-se a partir da capaci-
dade de articular e transferir conhecimentos por meio da história oral e da
documentação impressa, no caso das atuais e futuras gerações, com siste-
mas de informações cada vez mais poderosos, a gestão do conhecimento
disponível, incluindo seu próprio registro e acesso, é que passa a estar cada
vez mais na fronteira entre o poder, a democracia e a ética. Nesse contexto,
o poder não decorre simplesmente do conhecimento em si, mas da forma
como pode ser manipulado e acessado, em seus diferentes níveis de gra-
nularidade, do individual ao transcontinental, para a tomada de decisões
particularmente a respeito de assuntos de interesse coletivo.
Quanto ao padrão de acumulação, produção e consumo predominantes, se
no passado ele fez surgir organizações que tinham como objetivo a geração
de excedentes a partir da comercialização e financiamento de determina-
dos produtos ou serviços, a história recente demonstrou que um complexo

48
processo de “seleção” — nada “natural”, diga-se de passagem —, resultante
de fusões, aquisições e várias outras estratégias administrativas, deu ori-
gem a gigantescos conglomerados rizomáticos e onipresentes capazes de
estimular e alimentar a complexificação dos estilos de vida para maximizar
seu desempenho mercadológico. Estas mesmas organizações, por meio de
vultosos investimentos, tem se tornado, por um lado, principal motor do
desenvolvimento da tecnociência e, por outro, proprietária (ou financia-
dora/patrocinadora) de um poderoso aparato midiático capaz de inspirar
desejos, ditar modismos e transformar ideologias.
Os governos, por sua parte, terão que dar respostas a exigências cada vez
maiores de uma sociedade civil com características demográficas notada-
mente distintas das atuais, e que possivelmente também estará mais or-
ganizada e informada. Terão também que exercer a gestão de territórios
empobrecidos em seus recursos naturais, como consequências regionais
de um sistema terrestre progressivamente mais inóspito à medida que se
confirmarem os padrões de mudanças globais, como aqueles que foram
descritos por Mark Lynas (2009)6.
No Brasil, a ação governamental possivelmente continuará limitada por
processos gerenciais poucos eficientes e circunscritos às legislações her-
dadas de um modelo patrimonialista, carregado de filigranas jurídicas e
conflitos de competências entre poderes e instâncias governamentais. O
próprio processo legislativo, feito preponderantemente por mecanismos
indiretos e desgastados de representação, muitas vezes enviesados pelos
interesses partidários e econômicos, além de não respeitarem proporcio-
nalidades das bases populacionais que representam, em realidade pouco
contribui para o atendimento aos anseios sociais e coletivos. Ao contrário:
cada vez mais cede terreno aos interesses privados e corporativos, sempre
atentos às suas representações em determinadas políticas setoriais para ma-
ximizar ganhos, minimizar riscos e proteger interesses específicos.
Neste cenário, a dimensão socioambiental configura-se como a amálgama
que permite o enfrentamento e equacionamento desses diferentes fatores e
embates, pois ao lado dos desgastes e problemas promovidos pelas esferas

6 Referimo-nos ao livro “Seis Graus”, premiado pela Academia Real de Ciências Britânica, em
que esse autor faz uma ampla revisão bibliográfica a respeito dos possíveis efeitos das mudanças
climáticas globais. Com base em artigos científicos publicados por autores e instituições mundialmente
reconhecidos, o autor traça um panorama dramático das consequências ambientais da elevação da
temperatura planetária, grau a grau, até o hipotético limite de seis graus.

49
social e econômico-política, o esgotamento [ou as ameaças de exaurimen-
to importante] da água potável, das fontes energéticas não renováveis, dos
cardumes pesqueiros e da biodiversidade (o outro “nome” da diversidade
sociocultural7) como um todo, despontam não mais como uma possibilida-
de sombria para uma futura geração incógnita, mas já materializam cená-
rios da realidade atual em diferentes regiões que, não custa reiterar, resul-
tam de um processo de produção (regionalização) em escala — portanto,
responsabilidade — global.
Esses cenários indicam horizontes de agravamento, não só por causa da
perspectiva concreta da escassez aludida e o consequente impacto disso so-
bre todos os agrupamentos humanos, mas também pela promoção de um
efeito sinérgico e retroalimentador, que pode nos aproximar perigosamente
de um ponto sem volta. Assim, a distância que separa a civilidade da bar-
bárie é pequena quando o risco é eminente, e particularmente preocupante
quando se convive com nações que historicamente têm se tornado cada
vez mais belicosas. É importante compreender este cenário que se desvela
a partir de uma perspectiva ampla. Se, posto de forma simples, a origem da
crise é fácil de ser diagnosticada, por outro lado, a tentativa de sair da rota
de colisão com a tragédia parece cada vez mais difícil. À medida que as so-
ciedades se tornam mais complexas e interdependentes, uma coisa parece
certa: possivelmente não haverá saída do ponto de vista individual, mas
apenas coletivo, com a participação e o envolvimento político das socieda-
des – o que nos remete, novamente, à necessidade de compreensão das mu-
danças para uma nova perspectiva paradigmática –, quiçá biocivilizatoria,
como se sugere aqui.
Nesse aspecto, importante ressaltar, países como o Brasil ou regiões como a
Amazônia, que ocupam aquelas “latitudes” socioambientais que permitem
caracterizá-los, como o fez Sachs, de “laboratórios das biocivilizações do
futuro”, poderão exercer importante protagonismo no processo de constru-
ção dessa nova perspectiva, desde, é claro, que reconheçam a existência do

7 Aqui nos referimos àquelas concepções que não desconsiderando, é claro, as determinações físico-
biológicas que concorrem para a existência da biodiversidade, fazem questão de sublinhar o papel
que determinados modos de vida e de arranjos culturais exercem na manutenção e reprodução da
diversidade física e biológica, particularmente ainda existente naquelas áreas classificadas como
megadiversas. É essa perspectiva, inclusive, que levou um reconhecido antropólogo brasileiro, Viveiros
de Castro, a exclamar no prefácio de um livro sobre a condição socioambiental amazônica: “isto que
chamamos ‘natureza’ é parte e resultado de uma longa história cultural” (apud Garcia dos Santos,
2003:42)

50
choque de paradigmas que a tensão simbolizada pelo confronto agronegó-
cio-campesinato tem promovido em todas essas latitudes, e que fortaleçam
o polo de biocivilização, revelado nesse confronto, em detrimento do polo
de (bio)destruição que ainda comanda o processo.
O fato é que em praticamente todas essas latitudes, desenvolvem-se, ao lado
de inúmeros movimentos de engajamento camponês e indígena, amplos
movimentos urbanos que, da mesma forma que aqueles, não se alimentam
apenas pelos imperativos das necessidades imediatas, mas também pelas
solidariedades ecológicas e socioambientais.
Aqui, por exemplo, a trajetória desses movimentos resultou em conquistas
concretas, mesmo que algumas delas possam ser vistas como estratégias
ou concessões governamentais, que hoje se traduzem nas extensões terri-
toriais que conferem às terras indígenas e aos assentamentos rurais mais
de 20% de um território com as dimensões continentais como as do Bra-
sil. Em outros lugares, como no episódio da conhecida “Guerra da Água
em Cochabamba, Bolívia (2000)”, a despeito das controvérsias quanto aos
seus resultados efetivos, o processo de privatização em curso foi anulado, o
prefeito da terceira maior cidade da Bolívia obrigado a renunciar, em meio
a um episódio considerado por muitos como o marco inicial das grandes
mudanças políticas que se verificaram naquele país na primeira década
deste século8.
Os ambientes políticos favoráveis, em que predominam a institucionalidade
democrática liderada por governos com forte apoio e identidade populares,
como aqueles que em período recente se estabeleceram em diversos países
da América Latina, podem facilitar e consolidar muitas outras conquistas,
e indicam um quadro de ricas oportunidades para investir no processo e na
perspectiva que estamos aqui examinando. Porém, é inegável também que
tais institucionalidades estão revelando os limites e os vícios que a política
tradicional impõe ao progresso e desenvolvimento de conquistas, princi-
palmente quando esta — a política —, sob a permanente pressão daqueles
outros imperativos (tecnológicos e econômicos), cede-lhes terreno (e não
só no sentido figurado) para o avanço do agronegócio ou para a produção

8 Quanto à análise e o significado das conquistas efetivas do episódio mencionado, recomendamos


a consulta à tese de autoria Matheus Hoffmann Pfrimer, A guerra da água em Cochabamba, Bolívia:
desmistificando os conflitos por água à luz da Geopolítica, defendida no Departamento de Geografia
da FFLCH-USP em 2010 e Orientada por André Roberto Martin, Disponível no Banco de Teses e
Dissertações da USP (http://www.teses.usp.br/)

51
energética, por exemplo. O que se passa com a soja nas bordas da Floresta
Amazônica ou com a construção da Usina de Belo Monte no Brasil, são
exemplos emblemáticos nesse sentido, assim como ilustram isso também,
as dificuldades que impuseram algum retrocesso em várias das conquistas
daquele episódio de Cochabamba que há pouco mencionamos9.
A emersão de um grande número de movimentos sociais por todo o mun-
do na virada do século XXI é reveladora, por um lado, de uma premente in-
satisfação com os aparatos político-partidários e institucionais que aí estão,
e que vêm se tornando cada vez mais incapazes de dar respostas à altura
para uma série de problemas socioambientais, muitos deles crônicos. Por
outro, demonstra que em diversos casos as situações enfrentadas pelas po-
pulações estão atingindo as raias limítrofes de sua capacidade de suportar
um sem-número de violências cotidianas, e por isso as impelem a buscar na
organização coletiva formas alternativas para possíveis saídas.
Este maior envolvimento direto e legítimo da sociedade acena positiva-
mente a um possível horizonte de ampliação de participações em estraté-
gias políticas e de governança democrática. É importante que, para além da
insurgência desses movimentos em ocasiões de crise, a sociedade fomente
a estruturação de novos canais legítimos e diretos capazes de ampliar o
coro de vozes dos distintos atores sociais, particularmente aqueles que não
tenham tido reconhecidas sua participação até então. Como nos sugere
Edgar Morin: “um novo tipo de governança poderia ser instituído com a
conjunção das instâncias participativas cidadãs, das instâncias políticas e
administrativas, locais e regionais, dos profissionais competentes em domí-
nios a serem debatidos e suprimidos” (MORIN, 2013: 83).
A chamada “participação cidadã”, no caso, refere-se ao protagonismo de
fato desempenhado por todos os atores sociais, inclusive — e principal-
mente — aqueles que não têm, no curso da História, encontrado eco em
suas vozes de outra sorte.
Talvez aí resida um dos principais desafios: a construção e consolidação
dos mecanismos que possibilitem tal participação e confiram efetividade e

9 Para os interessados em conhecer essas dificuldades voltamos a recomendar a tese de doutorado


já indicada na nota anterior. E especificamente para os assuntos amazônicos recomendamos o livro
de Neli A de Mello-Théry, Território e Gestão Ambiental na Amazônia (São Paulo: Annablume, 2011)
e também a contundente entrevista que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro concedeu (em
20/09/2012) ao site Outras Palavras, associado ao Le Monde Diplomatique/ Brasil e disponível em
<http://outraspalavras.net/posts/outros-valores-alem-do-frenesi-de-consumo/>.

52
ampliação, evitando os muitos retrocessos, a muitas das conquistas daque-
les movimentos cujas ações, motivadas pela promoção dos encontros entre
a justiça ambiental e a social — justiça socioambiental, em uma palavra —,
têm logrado.

Governança e Biocivilização: para além da democracia repre-


sentativa

Dentre as inúmeras questões que se poderia colocar para concluir essa


nossa reflexão, seria da maior relevância, portanto, indagar de que forma
seriam construídos (ou viabilizados) os componentes de gestão e de gover-
nança desses modelos sociais, que pautados por outros paradigmas e ou-
tros valores (bio)civilizatórios, fossem capazes de dar voz aos muitos atores
sociais colocados à margem da História.
O sistema político-institucional vigente e predominante, pautado exclusi-
vamente no modelo de democracia representativa, parece estar em grave
crise e não consegue dar respostas satisfatórias à diversidade de organiza-
ções sociais em suas múltiplas demandas. Mas, ao contrário do que havia
afirmado o cientista político norte-americano Francis Fukuyama, tornado
célebre por decretar o “fim da história” com a consagração do liberalis-
mo econômico e de seu braço político-institucional10, Morin, naquele livro
que mencionamos há pouco, adverte: “Enquanto para Fukuyama as capa-
cidades criadoras de evolução humana encontram-se esgotadas em razão
da democracia representativa e da economia liberal, devemos pensar, ao
contrário, que foi esta breve estória que se esgotou, e não as capacidades
criadoras da humanidade” (2013:39). E, nesse sentido, sugere que conside-
remos o seguinte:

Estamos ainda na fase das preliminares modestas, invisíveis, mar-


ginais, dispersas. Em todos os continentes, em todas as nações, já
existem efervescências criativas, uma profusão de iniciativas locais
no sentido da regeneração econômica, ou social, ou política, ou cog-
nitiva, ou educacional, ou ética, ou existencial. Mas tudo o que de-

10 FUKUYAMA, F. O fim da História e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

53
veria ser religado encontra-se disperso, separado, compartimentado.
As iniciativas desconhecem a existência uma das outras, nenhuma
administração as menciona, nenhum partido toma conhecimento
delas. Elas, porém, são o viveiro do futuro. Trata-se de conhecê-las,
de enumerá-las, de examiná-las, de repertoriá-las, a fim de abrir uma
pluralidade de vias reformadoras. (MORIN, 2013:41)

O filósofo indiano, Amartya Sen, premio Nobel da economia em 1998,


mesmo reconhecendo as contribuições do sistema democrático representa-
tivo, já havia igualmente advertido para os limites do seu alcance para lidar
sobretudo com questões relacionadas às injustiças socioambientais mais
profundas. Para ele, enquanto “a democracia tem sido especialmente bem
sucedida na prevenção de calamidades que são fáceis de entender e nas
quais a solidariedade pode atuar de uma forma particularmente imediata.
Muitos outros problemas não são tão acessíveis assim.” (Sen, 1999: 203).
Tais injustiças socioambientais podem ser ilustradas através de inúmeros
exemplos, em diferentes escalas, e já mensuradas.
A “Pegada Ecológica”, por exemplo, é um deles. De acordo com um estudo
publicado pela Global Footprint Network, anualmente a humanidade como
um todo consome 1,5 vezes o volume de recursos naturais que o planeta
consegue repor no mesmo intervalo de tempo, demonstrando que já esta-
mos, por assim dizer, em uma espécie de “saldo devedor” com o planeta11.
Neste estudo, a GFN revela ainda que o mais grave não é apenas termos
ultrapassado os limites da biocapacidade do planeta, mas principalmente
o fato de terem se estabelecido imensas desigualdades entre os padrões de
produção e consumo para os diferentes países. A pesquisa demonstrou, por
exemplo, que a pegada ecológica de um estadunidense típico é dez vezes
maior que a de um habitante da Índia.
Outro dado importante e conexo com a temática, divulgado pela ONU
em 2012, é que o fluxo financeiro global segue caminhos concentradores,
provando-se, matematicamente, que o dinheiro do mundo tem poucos des-
vios e termina voltando para os pontos centrais de fluxo. Ao que parece, se

11 Em decorrência de termos atingido aquilo que a própria Global Footprint Network denominou de
“Earth Overshoot Day”, ou (em tradução livre) “dia de ultrapassagem do limite da terra”. Para maiores
detalhes, consultar: < http://www.footprintnetwork.org/en/index.php/gfn/page/earth_overshoot_day/>.

54
persistirmos nessa lógica paradigmática, durante o século XXI estaremos
com sérios problemas.
O fato é que com o aprofundamento da crise socioambiental, o modelo de
participação (e representação) consagrado tem sido cada vez mais questio-
nado em suas propaladas características de abrangência e representatividade.
O espaço para o desenvolvimento de estudos e de práticas que tentam su-
perar ou se contrapor ao modelo de democracia representativa, indicando
os seus limites, tem se ampliado. Muitos deles têm considerado relevan-
tes, particularmente, as reflexões e os questionamentos acerca do caráter
real de representação e de participação política que são contemplados por
esse modelo, apontando para as deficiências em tomadas de decisões que
não contemplam o conjunto dos representados, nem tampouco atendem às
particularidades ou identidades destes, ao mesmo tempo em que reduzem
a identificação dos sujeitos e dos movimentos que eles constituem, em es-
pecial no campo genérico do ambientalismo.
Com intuito de contribuir para aperfeiçoar os mecanismos de representa-
ção e de democracia, alguns desses estudos tem buscado ampliar o nosso
conhecimento sobre o tema, chamando-nos a atenção para a diversidade de
formas de organização existentes nas variadas culturas e nações dos agru-
pamentos humanos. É o que faz, por exemplo o “Projeto Alice” do Centro
de Estudos Sociológicos (CES) da Universidade de Coimbra, coordenado
por Boaventura Sousa Santos, que em uma de suas áreas temáticas de pes-
quisa, intitulada “Democratizar a democracia”, propõe-se a investigar aqui-
lo que apropriadamente denominam de “demodiversidade”, com o intuito
de estudar “as formas alternativas ao modelo democrático dominante em
que o voto não é o princípio nem o fim da democracia: formas participa-
tivas, deliberativas e comunitárias exercidas a nível local e nacional que
interpelam diretamente a democracia representativa”. O objetivo desses
estudos, dizem-nos seus responsáveis, busca não só conhecer e divulgar
a “diversidade democrática do mundo”, mas “explorar o potencial destas
experiências de participação e de deliberação na criação de novas e mais
exigentes formas de articulação e de decisão políticas”. 12

12 Para saber mais a respeito do Projeto “ALICE – espelhos estranhos, insuspeitas lições: levar a Europa
a uma nova forma de compartilhar as experiências do mundo”, acessar a pagina http://alice.ces.uc.pt.
As citações deste parágrafo foram extraídas do texto de apresentação da área temática “Democratizar a
democracia” disponível nos site indicado

55
Investigadores vinculados a esse projeto, já identificam pelo menos cinco
tipos de democracia: a representativa, a participativa, a comunitária, a hí-
brida (participativa e representativa) e a dos povos tradicionais, que tam-
bém possui características singulares próprias a cada um dos agrupamen-
tos humanos que aí poderiam ser incluídos.13
Embora toda tentativa de sistematização de modelos possa ser acusada de
reducionista, o exemplo desse tipo de investigação temática produzida pe-
los pesquisadores vinculados ao Projeto Alice, ao menos evidencia a falsa
totalidade (e unanimidade) que costumam caracterizar (ou acompanhar) a
democracia representativa, pois dão visibilidade a outros modelos, muitos
dos quais identificados mais diretamente com as perspectivas e demandas
socioambientais, particularmente quando não se pautam pela centralidade
da dimensão econômica.
Para a proposta de uma ordem social fundada nos valores (bio)civilizató-
rios que examinamos neste trabalho, seria de grande relevância, por exem-
plo (e como já sugerimos) a consideração do(s) tipo(s) de democracia(s)
organizada(s) pelos diversos povos tradicionais, visto que o diálogo com
esses grupos pode gerar um grande aprendizado em termos do entendi-
mento de suas institucionalidades específicas, que, possivelmente, diferen-
ciam-se daquelas existentes no Estado democrático moderno. Porém, para
essa consideração, recorremos mais uma vez a Edgar Morin (2013:59), que
nos adverte: “Não se trata aqui, de modo algum, de idealizar as sociedades
tradicionais que têm suas carências, seus fechamentos, suas injustiças, seus
autoritarismos. É preciso considerar suas ambivalências e também perce-
ber suas qualidades.”
Ademais, incluir em nossa reflexão a consideração das diversas possibili-
dades de democracias, indica a predisposição necessária para um investi-
mento transdisciplinar, promotor de um diálogo com outros saberes, sem o
concurso dos quais não conseguiremos enfrentar aquele caráter predomi-
nantemente cognitivo da chamada crise ambiental, ao qual já nos referimos
no início desta reflexão.
As chamadas “ciências humanas” e as “ciências naturais”, interessadas nessa
via, promotora de um diálogo como outros saberes não necessariamente

13 Ver, a esse propósito, o capítulo de Boaventura Sousa Santos e Leonardo Avritzer, “Para ampliar o
cânone democrático”, in Sousa Santos (2002).

56
disciplinados pelos seus campos de conhecimento, têm uma grande e fértil
trajetória a percorrer e esta apenas se inicia. Para o enfrentamento do con-
junto de dilemas que caracterizamos como socioambientais, o caminho da
ampliação do diálogo se impõe, e não só para o conhecimento das alterna-
tivas de organização social e política dos diversos agrupamentos humanos,
mas para a inclusão efetiva desses agrupamentos nos mecanismos e proces-
sos de discussão e decisão, com a vantagem adicional de que tal ampliação
pode contribuir para revitalizar o próprio sistema de democracia predomi-
nante. Segundo Amartya Sen (1999: 208): “a discussão pública mais bem
fundamentada e menos marginalizada sobre questões ambientais pode ser
não apenas benéfica ao meio ambiente, como também importante para a
saúde e o funcionamento do próprio sistema democrático.”
Contudo, alguns integrantes das nações hegemônicas localizadas ao “norte
da linha abissal” e seus aliados das diversas latitudes, continuam a discri-
minar saberes, a investir nos conflitos e até mesmo a promover guerras in-
ternacionais para impor seu padrão de “democracia” àquelas outras nações
e povos, definidos como “autoritários”. Esses agrupamentos hegemônicos,
movem-se por uma lógica bélica e uma noção civilizatória, em que siste-
mas sociais distintos não são tolerados ou são “demonizados” pela ordem
global vigente, e desde que esta iniciou sua trajetória de internacionalização
e implantação, como pudemos observar nas reflexões que aqui já desenvol-
vemos, ao examinar aquelas imagens presentes no quadro “O Inferno”, que
com sua especial “cartografia” buscou registrar as imagens que se pretendia
consagrar para o início de todo esse processo.
Há outros agrupamentos de nações e povos que discordam dessa lógica be-
ligerante, que também “cooptou a ciência e o cientista”, conforme denuncia
Sousa Santos (2000), e preferem investir no aumento da intensidade demo-
crática em consideração à vontade de todos. Para estes, a ampliação da de-
mocracia pode ocorrer, por exemplo, com o aprimoramento da participa-
ção política dos cidadãos nas esferas públicas, inclusive como dever social
previsto nas constituições dos próprios Estados, o que já é o caso em alguns
países latino-americanos. Outros, dentre os próprios países europeus, já
avançaram nos mecanismos de participação, contemplando métodos até
mesmo de (in)formação dos cidadãos, dotando-os de aptidão técnica, além
de lhes proporcionarem inclusão política, para desfrutarem de condições
plenas, e não só teóricas, de discutir e decidir junto com o poder público
temas especializados, como acontece na Dinamarca e alguns países nórdi-

57
cos nas chamadas “Conferências de Consenso”14, em cujas fases iniciais se
promovem núcleos de estudos técnicos e preparatórios para os cidadãos
leigos deliberarem junto aos governantes.
O desafio apresenta-se a toda sociedade, mas é o Estado que ainda tem
a missão de conduzir o seu equacionamento. E este, quando há vocação
e ambiente democráticos, buscará encontrar formas para a ampliação de
uma participação que resulte da sinergia que a diversidade de perspecti-
vas, organizações, conhecimentos e outras (não)institucionalidades podem
promover. Dessa predisposição é que resultam também os investimentos
de recursos inclusive financeiros, para a construção de uma cultura que
contemple a diversidade dos novos parâmetros (éticos, cognitivos e políti-
cos) que a consideração da dimensão socioambiental impõe. Ilustram parte
disso, por exemplo, o ocorrido em países como o Equador e a Bolívia, nos
quais a “Pacha Mama” (ou “Madre Tierra”) adquiriu personalidade jurídica
com direitos.15
É a dimensão socioambiental, na forma como a consideramos nesta refle-
xão e lastreada nos diversos autores e pensadores que mencionamos, que
tem possibilitado a abertura dos novos questionamentos referentes não só à
racionalidade tecnocientífica vigente, mas também à forma de conduzir os
processos de mudança social e de participação. Se as propostas de mudança
social já tiveram que contemplar (e continuam tendo, é claro), as relações
que as esferas da política e da economia impõem para a dinâmica de suas
execuções, no mundo contemporâneo não seria mais possível igualmente
deixar de contemplar a dimensão socioambiental, nesse processo, não só
porque isso dificultaria em muito a perspectiva da mudança, mas sobretu-
do porque comprometeria a qualidade de seu resultado.
Os componentes vitais, ético-culturais e cognitivos que essa dimensão re-
vela, permitem-nos, portanto, a percepção da importância (ou da grandeza
vetorial) com que ela se apresenta quando buscamos conjugá-la com to-

14 Para maiores informações consultar : Science and Public Policy, volume 26, number 5, October 1999,
pages 331–340, England.Danish participatory models Scenario workshops and consensus conferences:
towards more democratic decision-making.
15 A esse propósito vale a pena conferir os textos das constituições do Equador (de 2008) e da Bolívia
(de 2009) e, no caso deste último, também a Ley Marco de la Madre Tierra y Desarrollo Integral Para Vivir
Bien, promulgada em 2012. Todos esses documentos estão disponíveis nos seguintes endereços: <http://
www.planificacion.gob.bo/marco-legal> (Constituição da Bolívia); <http://www.asambleanacional.gov.
ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf> (Constituição do Equador); http://www.planificacion.
gob.bo/marco-legal (Ley Marco de la Madre Tierra...)

58
dos os demais vetores (representativos das diversas outras determinações
econômicas, sociais, políticas, técnicas...) que concorrem para produzir os
resultados que pretendemos imprimir nos processos de mudanças que se
divisarão daqui para a frente.
A esse propósito, Morin, em seu já mencionado “A Via/ Para o futuro da
humanidade”(na versão completa de seu título), sugere a composição de
elementos que deveríamos considerar para qualquer projeto de reforma e/
ou mudança. Em todos eles os componentes da dimensão socioambiental,
considerando a percepção crítica que aqui desenvolvemos, aparecem com
destaque, e com essa síntese concluímos nossa reflexão:

Em si mesmas as reformas políticas, as reformas econômicas, as re-


formas educativas, as reformas de vida foram, são e serão condena-
das à insuficiência e ao fracasso. Cada reforma só pode progredir se
as outras progredirem. As vias reformadoras são correlativas, intera-
tivas, interdependentes. Não existe reforma política sem reforma do
pensamento político, que por sua vez, pressupõe reforma do próprio
pensamento, que pressupõe uma reforma da educação, que pressu-
põe uma reforma política Não existe reforma econômica e social sem
uma reforma política que pressuponha uma reforma de pensamento.
Não existe reforma de vida nem reforma ética sem a reforma das
condições econômicas e sociais do modo de viver, e não há reforma
social sem reforma de vida e sem reforma ética (MORIN, 2013:49).

Considerações finais

As ideias que aqui se expuseram são aquelas que em grande parte tem unifi-
cado os interesses, ou curiosidades, daqueles que ao longo dos últimos anos
tem participado, como pesquisadores ou simples interessados, nas reuniões
de trabalho promovidas pelo Grupo de Pesquisa em Dimensão Socioam-
biental e Mudanças Sociais, vinculado ao Programa de Pós Graduação em
Mudança Social e Participação Política — ProMuSPP — da EACH-USP. As
reuniões quinzenais desse Grupo, também são oferecidas como um espaço
para cumprimento parcial dos créditos exigidos aos estudantes de mestra-
do. Esse ‘espaço disciplinar’ tem funcionado como local de socialização de
ideias, intercâmbio de soluções e dificuldades para todos aqueles que, in-
dependentemente das especificidades dos temas a que se dedicam em suas

59
pesquisas particulares e/ou coletivas, têm se utilizado e colaborado com
esse espaço.
A diversidade das pesquisas que pelo Grupo já passaram, ou as que nesse
momento ainda estão em desenvolvimento dá bem uma ideia dos horizon-
tes que a consideração da dimensão socioambiental pode alcançar, quando
se busca estabelecer os vínculos desta com as perspectivas abraçadas pelos
interessados na promoção da Mudança Social.
Nesse conjunto podemos listar pesquisas e pesquisadores vinculados aos
diversos níveis e programas oferecidos pela USP, e não apenas no mestra-
do ou na pós-graduação. E isso tem conferido uma vantagem adicional ao
Grupo, que também tem se estabelecido como um espaço de integração e
diálogo entre esse níveis, com todas as vantagens que daí advém tanto para
a formação dos estudantes/pesquisadores, como para as próprias pesquisas
que desenvolvem, ou que já concluíram.
A seguir mencionamos brevemente os que já passaram, ou que atualmente
estão vinculados ao grupo, bem como os trabalhos que desenvolveram, ou
que continuam a desenvolver. De alguma maneira todos eles poderiam ser
considerados co-autores das ideias que aqui expusemos.

“A desmistificação da noção sobre centro e periferia à luz da educação am-


biental, e o exemplo de São Paulo”, Julio Cesar Bessa Monqueiro (Trabalho
de Conclusão do Bacharelado em Gestão Ambiental), em andamento.
“A Dinâmica da Construção da Identidade e do Território no Quilombo
Cafundó”, de Lucas Bento da Silva (Projeto de Pesquisa), participante.
“A Educação do Campo”, de Roseli Nanni (Dissertação de Mestrado, Pro-
MuSPP), em andamento.
“A Geografia como Possibilidade de Olhar a Complexidade: Um Desafio
nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental”, de Angélica de Jesus Batista
(Dissertação de Mestrado, ProMuSPP), não concluído.
“Política e Participação na Comissão Nacional de Biodiversidade de Atilio
Viviani Neto (Dissertação de Mestrado, ProMuSPP), 2013.
“Contribuições da Permacultura para o Desenvolvimento Local”, de Juliana
Nascimento Funari e Mayara Livia Bernardes (Trabalho de Conclusão do
Bacharelado em Gestão Ambiental), 2013.

60
“Cultura e mitologia indígena na escola”, de Luana Geronimo Aversa (Tra-
balho de Conclusão do Bacharelado em Gestão Ambiental), 2012.
“Educação Ambiental em Museus de Ciência: diálogos, práticas e concep-
ções”, de Gustavo Meyer (Iniciação científica, Bacharelado em Gestão Am-
biental), 2012.
“Ensinar com pesquisa: um projeto para dinamização da disciplina Educa-
ção Ambiental para o curso de graduação em Gestão Ambiental”, de Jessica
da Silva Moura (Programa Ensinar com Pesquisa, da Pró Reitoria de Pes-
quisa e Extensão da USP), 2011.
“Greenwashing: os conflitos éticos das propagandas ambientais”, de Érico
Pagotto (Dissertação de Mestrado, ProMuSPP), 2013.
“O “Paradigma da sustantabilidade”, de Gustavo Meyer (Dissertação de
Mestrado, ProMuSPP), em andamento.
“Os desafios e as contribuições da abordagem ecofeminista para a Gestão
Ambiental”, de Sâmia Fortes (Trabalho de Conclusão do Bacharelado em
Gestão Ambiental), em andamento.
“Relações entre Educação Musical e Ambiental”, de Willy Vellenich (Traba-
lho de Conclusão do Bacharelado em Gestão Ambiental), em andamento.

Referências

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62
TERRITORIALIDADES, POLÍTICAS PÚBLICAS E CONFLITOS NA
CONSERVAÇÃO DE PATRIMÔNIOS

Sidnei Raimundo, Neli Aparecida de Mello-Théry

Introdução

O presente texto apresenta os principais temas debatidos no grupo de pes-


quisa “territorialidades, políticas públicas e conflitos na conservação de
patrimônios”1. Destaca-se que tais temas também fazem parte, como dis-
ciplina obrigatória, do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e
Participação Política (PROMUSPP) da Escola de Artes, Ciências e Huma-
nidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP).
A pesquisa sobre as territorialidades, as políticas públicas e os conflitos ter-
ritoriais na Conservação e Proteção Ambiental tem seu foco de análise nas
atividades e interesses de segmentos da sociedade que atuam sobre essa
temática: a relação da sociedade com a natureza. Na discussão desta relação
procura-se destacar os conflitos, enlaces e formas de interferência nas di-
nâmicas socioambientais, tanto no espaço urbano e rural, quanto em áreas
protegidas (unidades de conservação).
Dessa forma podem-se aportar novas formas de análise dos nexos entre
sociedade civil, Estado e comunidades locais e seus interesses e atuações no
ambiente. A temática do desenvolvimento envolve também a compreen-
são dos conflitos gerados, sobretudo em função dos ideais de conservação
ambiental, traduzida na noção de patrimônio. Na atualidade, esse processo
implica numa análise mais profunda da noção de identidades, pertenci-

1 Cadastrado no sitio do CNPq, link: http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.


jsp?grupo=0067706QZBLS2W
mentos e relações com o lugar e com a cultura que os diversos segmentos
sociais possuem e sua articulação com interesses globais no uso do patri-
mônio / recurso natural.
Os temas aportados estão associados à categoria geográfica “Território”
e sua abordagem sobre territorialidade, além das bases sobre as quais se
assentam a problemática conceitual da política pública. Destaca-se algu-
mas formas de analisar essa categoria, como suporte e contribuição às
mudanças sociais e participação política. Complementarmente à noção
de Território, discute-se a ideia de conflitos, mas em uma abordagem
ambiental – os conflitos territorio-ambientais – que se revestem de uma
complexidade maior, pois estes nunca têm uma única fonte causadora.
Eles terão sempre uma componente social e outra natural, ambos expres-
sos espacialmente. Analisar os conflitos ambientais implica em entender
as relações causais oriundas das necessidades e aspirações dos grupos so-
ciais que atuam numa área e, ao mesmo tempo, dos limites e vulnerabili-
dade da natureza.
Para entender o jogo de forças contido em uma disputa territorial e as de-
mandas geradoras de um conflito ambiental, faz-se necessário também
compreender como a natureza é entendida pela sociedade ocidental. Nesse
momento, discute-se a diferenciação entre recurso natural e patrimônio
natural e como eles são apropriados pelas sociedades, em seu processo his-
tórico de construção de suas identidades, de seus valores e crenças.
Por fim, no grupo de pesquisa, são discutidos os referenciais para o pla-
nejamento e gestão de áreas, enfatizando suas características naturais e
culturais. O entendimento do território e dos conflitos ambientais no
patrimônio natural permite um bom diagnóstico para análise dos pro-
blemas, entraves e desafios de uma dada área. A partir deste diagnóstico
pode-se pensar no estabelecimento (ou contribuição) de políticas públi-
cas. Estas preconizam o bom gerenciamento das áreas, que envolvem dis-
cussões sobre a “qualidade” da participação, princípios de governança,
entre outras estratégias.
Contudo, a discussão aqui apresentada abordará os entendimentos sobre
território e territorialidades, conflitos socioambientais e politicas publicas.
São eles os mais complexos para a compreensão dos participantes do grupo
de pesquisa.
Todas as abordagens/discussões do grupo de pesquisa – Território, Con-
flitos Ambientais, Patrimônio Ambiental e Formas de Gestão (Políticas

64
Públicas), são desenvolvidas para o entendimento do “status-quo”2 da so-
ciedade no qual as pesquisas do grupo se estruturam. E, a partir deste en-
tendimento, pode-se pensar nas alterações deste status quo visando então,
uma mudança social e/ou participação política, foco das dissertações do
programa e contribuição para o entendimento do mundo atual.
Apresenta-se a seguir um analise mais aprofundada dos três temas e suas
relações com a área de mudança social e participação política: Território /
Territorialidades e Conflitos Ambientais.

Território e territorialidades

Para entender a categoria Território e sua contribuição ao entendimento de


como a sociedade contemporânea se organiza – seu status quo – é necessá-
rio compreender inicialmente a ideia de “Poder”. Isso porque, para alguns
estudiosos, o Território se expressa pelas relações de poder no espaço.
Para Raffestin (1993) o espaço é um tempo-relacional. Um produto de
relações entre atores sociais, ou atores sintagmáticos, ou seja, aqueles que
desempenham ou representam um programa de ação. Nessa relação entre
atores emerge a ideia de poder e seus trunfos. Quer dizer, um poder exer-
cido por um ator em relação a outro ou outros, baseado no controle ou na
dominação. Um controle, ou dominação, que se estabelece sobre as popu-
lações e sobre os recursos existentes num dado local. Considerando essa
relação – o controle sobre populações e recursos de um espaço exercido por
um grupo social – aparece a ideia de território.
Segundo Raffestin (op. cit.: 53) os trunfos do poder raramente tem um sen-
tido único, mas ele se configura de uma maneira relacional. Desta maneira,
a relação raramente é bilateral (entre apenas dois atores), mas multilate-
ral, o que permite entender os conflitos entre alguns grupos, os enlaces
ou parcerias com outros, as mediações, entre outras atitudes nesse campo
relacional.

2 O termo Status Quo é aqui empregado com o sentido de caracterização das estruturas sociais
“tradicionais” da sociedade brasileira, onde elites locais, associadas ou não a forças externas da
globalização, podem oprimir e subjugar outros segmentos da sociedade, gerando desigualdades
sociais, problemas ambientais e descaracterização cultural, entre outros fatores. Constitui-se, assim, nas
estruturas sócio-políticas na qual a sociedade está organizada.

65
Partindo do pressuposto que o Território é um campo de forças, ou uma
relação de poder no espaço, é preciso melhorar o entendimento sobre essa
outra categoria – o espaço – verificando as similitudes e diferenças com o
território.
O espaço é definido pela totalidade de objetos (fixos), sejam eles naturais
ou fabricados pela sociedade e a articulação ou conexão entre eles (os flu-
xos) de pessoas, mercadorias e informações (SANTOS, 1996). Entender o
Espaço implica em analisar as relações entre estes fixos e fluxos (o meio ou
a base material das relações) e os interesses e necessidades da sociedade.
Assim, o espaço é um produto desta relação da sociedade com seu meio.
Para compreender esses “fixos” e “fluxos”, do ponto de vista metodológico,
é necessário analisar as subcategorias espaciais: função, estrutura e proces-
sos do Espaço3.
Contudo, nessa análise podem-se enfatizar os atores responsáveis por essa
espacialidade. E o foco se atém sobre a categoria Território, com a identifi-
cação dos atores que se relacionam ora em conflito, ora em complementa-
ção de interesses, tornando a análise à luz do Território mais oportuna no
processo de formação de uma dada área, destacando os jogos de poder dos
atores sociais envolvidos.
Mais que isso, é necessário compreender como as várias formas de concep-
ção do território foram construídas analisando como elas se aplicam em
uma área de estudo.
Para Moraes (1984), a origem do território como categoria de análise
foi construída nas ciências biológicas. Nessas, o território era entendido
como a área de ocorrência de uma dada espécie vegetal ou animal como,
por exemplo, o território da mata de araucária. Posteriormente, segundo
esse autor, as ciências humanas incorporaram o território para explica-
ções de suas temáticas. Moraes (1984) explicando duas maneiras de en-
tender o território, aponta que a primeira, na Geografia, Ratzel construiu
a ideia de propriedade e posse de um espaço, como definição de um terri-
tório, donde resultaria a formação de Estado Nacional. A segunda ideia é

3 “forma, função, estrutura e processos são quatro termos disjuntivos associados, a empregar segundo
um contexto de mundo de todo o dia. Tomados individualmente, representam apenas realidades parciais,
limitadas, do mundo. Considerados em conjunto, porém, e relacionados entre si, eles constroem uma
base teórica e metodológica a partir da qual podemos discutir os fenômenos espaciais em totalidade...
Em outras palavras, forma, função, processo e estrutura devem ser estudados concomitantemente e
vistos na maneira como interagem para criar e moldar o espaço através do tempo” (SANTOS, 1997: 52)

66
a noção de território para Karl Marx, para o qual, o território seria cons-
truído não pela posse ou propriedade, mas pelo uso. O território de um
grupo indígena reside no fato dessa tribo ali caçar e exercer suas ativida-
des cotidianas (Moraes, 1984: 91). Desta forma, sob essa ótica marxista,
o território pode ser analisado segundo aquelas categorias preconizadas
por Santos (1997). Ou seja, o território de caça indígena desse exemplo
possuiria: uma forma – até onde se estende a área de caça; uma função –
de caça; uma estrutura – as necessidades materiais e simbólicas que mo-
tivaram esse grupo indígena a definir aquela área como seu território e os
processos ao longo do tempo que mantêm essas necessidades materiais e
simbólicas de caça.
Aprofundando essa abordagem, Haesbaert (2004) faz uma extensa revisão
sobre a definição de território. Para ele, o território pode ter uma vertente
simbólica, de comunidades tradicionais, ou no imaginário da sociedade so-
bre seus valores e crenças; e uma vertente político-econômica, que foca as
relações econômicas entre o local e o global.
Haesbaert (2004) amplia aqueles conceitos discutidos por Moraes (1984),
apontando como o território é visto e trabalhado em alguns campos do
conhecimento. Diz ele:

Enquanto o geógrafo tende a enfatizar a materialidade do territó-


rio em suas múltiplas dimensões (sociedade e natureza), a Ciência
Política enfatiza sua construção a partir das relações de poder...; a
Economia...percebe-o como um fator locacional ou como uma das
bases da produção...; a Antropologia destaca sua dimensão simbóli-
ca, principalmente das sociedades ditas tradicionais...; a Sociologia o
enfoca a partir das relações sociais ... e a Psicologia... incorpora-o no
debate sobre a construção da subjetividade ou da identidade pessoal,
ampliando-o até a escala do indivíduo (HAESBAERT, 2004: 37).

Assim, o autor, considerando os aportes dessas ciências, indica que é possí-


vel definir território constituído por três vertentes básicas: política, cultural
e econômica. E acrescenta a esse tripé uma interpretação naturalista.
Sob o ponto de vista naturalista, que está associado ao comportamento
dos animais, o conceito de território pode ser utilizado, ou entendido, por
exemplo, como uma referência aos objetivos de conservação e delimitação

67
de uma área passível de ser criada como Patrimônio Natural (Reservas da
Biosfera, Parques, Estações Ecológicas, entre outras).
Neste enfoque naturalista, o território é um espaço defendido por todo ani-
mal confrontando com a necessidade de se proteger. “É uma área geográ-
fica nos limites da qual a presença frequente ou permanente de um sujeito
[espécie] exclui a permanência de seus congêneres” (DI MEO, 1998, apud
Haesbaert, 2004: 45). Este autor ainda indica os “benefícios” mais gerais
da territorialidade animal, ou quais são os critérios utilizados por eles para
criar seus territórios. São os “territórios alimentares” – a base de recursos
para sua sobrevivência. Ou ainda os “Territórios de acasalamento” – alguns
animais só definem territórios no período de acasalamento, buscando faci-
lidades no espaço para a reprodução de sua espécie e locais que garantem
proteção para os filhotes em sua fase de crescimento (HAESBAERT, 2004:
48). Desta forma, o território do ponto de vista naturalista pode ser enten-
dido como espaço para o abrigo, reprodução e alimentação de uma dada
espécie ou comunidade animal. Esse olhar sobre o território vai ao encon-
tro dos preceitos da Biologia da Conservação4.
Como um parque nacional ou estadual tem em seus objetivos primários
a proteção de ecossistemas e espécies (UICN, 1993, 1993a), o conceito de
território do ponto de vista naturalista é fundamental para entender tais
processos de delimitação territorial animal e assim garantir o cumprimento
destes objetivos de conservação ambiental. Quer dizer, um parque precisa
abarcar em seus limites os territórios de animais, notadamente daqueles
que se encontram no topo de cadeias alimentares (felinos e aves de rapina,
no caso da Floresta Atlântica), pois são os animais que necessitam de maio-
res áreas para, assim, garantir a perpetuidade dessas espécies.
Outra abordagem do construto de território está associada às práticas sim-
bólicas. Haesbaert chama essa abordagem de perspectiva idealista de ter-
ritório, a qual é empregada na análise de sociedades tradicionais – pré-in-

4 Baseada também no modelo de biogeografia de ilhas, a Biologia da Conservação procura desenvolver


seus estudos com a noção de equilíbrio dinâmico da riqueza das espécies (LÉVÊQUE, 1999). Ela destaca,
assim, a frequência e a amplitude dos processos de colonização e de dispersão de espécies de fauna e
flora que tendem a aumentar a riqueza em espécie de um local e, por outro lado, dos fenômenos de
extinção e de emigração que tendem, pelo contrário, a reduzir a riqueza de espécies (LÉVÊQUE, 1999:
58). Nesse sentido, a Biologia da Conservação procura desenvolver pesquisas referentes às espécies
para determinar áreas de tamanho ótimo a fim de evitar a extinção dessas, em geral, no interior de áreas
protegidas (DIEGUES; ARRUDA, 2001).

68
dustriais, agrícolas ou rústicas. Citando o antropólogo Maurice Godelier,
Haesbaert indica que ocorre uma apropriação simbólica na definição de
um território, pois:

o que reivindica uma sociedade ao se apropriar de um território é o


acesso, o controle e o uso, tanto das realidades visíveis quanto dos
poderes invisíveis que os compõem, e que parecem partilhar o domí-
nio das condições de reprodução da vida dos homens, tanto a deles
própria quanto a dos recursos dos quais eles dependem (HAESBA-
ERT, 2004: 69).

Desta forma o território é considerado um signo cujo significado somente


é compreensível a partir dos códigos culturais nos quais se inscrevem (HA-
ESBAERT, 2004: 69). Daí resulta uma construção de identidade dos povos
com relação aos lugares que habitam.
Nessa visão simbólica, aparece a ideia de territorialidade, que é a perspec-
tiva do pertencimento ao território implicando na representação de uma
identidade cultural e não necessariamente um polígono delimitado. Essa
identidade supõe redes múltiplas, embasadas em ‘geo-símbolos’ e não em
fronteiras definidas. Inscrevem-se, assim, nos lugares e caminhos que ul-
trapassam os blocos de espaços homogêneos e contínuos da ideologia ge-
ográfica (HAESBAERT, op.cit.: 71). Nas discussões no grupo de pesquisa
destaca-se a identificação cultural de comunidades tradicionais, que cons-
truíram seus territórios sob esse ponto de vista simbólico. Até a chegada
de outros atores, discute-se como tais comunidades mantinham relações
com a terra (a propriedade da terra), os uso e ocupações e suas práticas
cotidianas, ou seja, como elas constroem ou construíram seus territórios e
territorialidades.
Nessa linha, Calvente et alli (2004) indicam que

...os territórios podem ser pouco sólidos, com limites instáveis. As


ligações afetivas e de identidade entre um grupo social e o seu lugar
são importantes para a gênese de um território ou para o interesse
de mantê-lo, mas ainda não definem o território. O poder que define
um território tampouco é propriedade de um indivíduo: o indivíduo
pertence a um grupo e o poder é dado pelo grupo. Há uma interação

69
entre noções de poder, dominação e competência. (CALVENTE et
alli 2004: 266)

Assim, segundo Haesbaert (2004: 71),

a “visão utilitarista de território não dá conta dos principais conflitos


do mundo contemporâneo. Por isso, o território é primeiro um va-
lor, pois a existência, e mesmo a imperiosa necessidade para toda a
sociedade humana de estabelecer uma relação forte, ou mesmo uma
relação espiritual com o espaço de vida, parece claramente estabele-
cida.

Posto dessa maneira, o território não se define para essas sociedades tra-
dicionais por um princípio material de apropriação, mas por um princípio
cultural de identificação, ou de pertencimento. Ele não pode ser percebido
apenas como uma posse ou como uma entidade exterior à sociedade que
o habita. É uma parcela de identidade, fonte de relação afetiva ou mesmo
amorosa com o espaço (HAESBAERT, 2004: 72, TUAN, 1980). Assim, o
território “como lugar e a identidade, não podem ser compreendidos em si
mesmos, há sempre uma mediação com os objetos ou a materialidade do lu-
gar” (FURLAN, 2004: 226). Nessa abordagem, o Território simbólico se
assemelha a outra categoria geográfica: o Lugar. O lugar é o espaço vivido,
ou experienciado por um grupo social, na construção de relações histórico-
-culturais que Tuan (1980) chamou de relações topofílicas5.
Outra abordagem é o de território usado. Sob esse enfoque, Santos; Silveira
(2001) indicam que é importante entender o papel ativo do território, como
ator e não como palco. O território já usado, segundo esses autores, ganha
usos atuais que se superpõem e permitem ler as descontinuidades nas fei-
ções regionais. A ideia de territorialidade que diz respeito a pertencer, àqui-
lo que nos pertence, transcende ao homem (SANTOS; SILVEIRA, 2001:
19). Com isso, essa abordagem pode ser aplicada às questões ambientais
e pode assumir um papel fundamental para entendimento dos processos,

5 Neologismo estabelecido por Tuan (1980) para indicar as relações de paixão, prazer, proximidade e
afeição entre um grupo social e seus objetos espaciais, transformando-os em seus lugares de afeição,
criando assim suas identidades, ou pertencimentos espaciais. É a territorialidade de um dado grupo.

70
ora da sociedade (que é diferente, pois se preocupa com o destino, com a
construção do futuro), ora da natureza na análise de seus limites, de sua
vulnerabilidade.
Nessa mesma linha e retomando a abordagem que Haesbaert (2004) chama
de perspectiva materialista, é possível definir território com um enfoque
econômico e político. Para compreender melhor essa abordagem, o autor
cita o conceito de “Território Usado” de Mílton Santos, no qual é possível
entender os processos das relações estabelecidas entre o lugar em sua for-
mação sócio-espacial local e o mundo (os agentes externos ao lugar).
Em um embate entre essas forças, resultam atores hegemônicos e hege-
monizados. Para os atores hegemônicos o território usado é um recurso
e garantia de realização de seus interesses particulares; enquanto para os
atores hegemonizados trata-se de um abrigo, buscando constantemente se
adaptar ao meio geográfico local, ao mesmo tempo em que recriam estraté-
gias que garantam sua sobrevivência nos lugares (HAESBAERT, 2004: 59).
Além disso, nesse ângulo de embate que gera subordinação e centralidades
de lugares, a perspectiva do território se configura em espaços não con-
tíguos – os territórios-rede -, os quais são centrados no movimento e na
conexão, o que inclui conexão em diferentes escalas. São, portanto, espaços
descontínuos, mas intensamente articulados e conectados entre si (HAES-
BAERT, 2004: 77-79).
Numa visão política e de poder de território, Antas Jr. (2005) avaliou a
construção territorial pelos aparelhos normativos do Estado. Para ele o ter-
ritório pode ser definido como uma norma, que

significa condicionamento do uso das técnicas, de seus produtos (os


objetos técnicos) e, por extensão, das relações sociais. A cada criação
e implementação de objetos técnicos no território, configuram-se
demandas por normas de usos e demandas sociais de regulação, e da
soma destas resulta a densidade normativa (ANTAS JR., 2005: 39).

As demandas normativas geradas pela implantação de equipamentos e ati-


vidades no espaço podem ser conflitantes e, por vezes, resultam num em-
bate de forças que geram uma reconfigurou territorial do espaço, à medida
que o aparelho normativo do Estado não consegue regular adequadamente
tais embates. Neder (2002: 29-31) aponta que essa dificuldade resulta de

71
duas políticas entrelaçadas: órgãos gestores com prioridades diversas e in-
dependentes; e ações isoladas, descoordenadas e conflitantes.
Antas Jr. (2005: 50) alerta que por mais recente e progressista que se pre-
tenda que seja uma lei, ela já é fruto de necessidades passadas e seu papel é
o de promover uma espécie de congelamento, ou no melhor dos casos, de
estabilização das relações sociais no espaço e no tempo. Nessa linha de con-
flitos de normatização do território, Antas Jr. (2005) indica que é necessário
se ater às técnicas e normas que se impõem no espaço geográfico e realizar
um tratamento conjunto desses dois elementos: técnica e norma. Diz o au-
tor que as ações só se realizam por meio da técnica e da norma e atualmente
de modo intensificado, pois as ações se tornaram sobremaneira complexas
e estão divididas em uma grande quantidade de etapas realizadas por ob-
jetos técnicos e definidas igualmente por um detalhado ordenamento de
normas, sejam elas jurídicas, técnicas ou morais (ANTAS JR., op. cit.: 58).
Essas visões de Território podem e devem ser analisadas de acordo com o
objetivo de cada pesquisa: o território entendido ou como simbólico, ou
naturalista, ou político-econômico ou norma são maneiras de privilegiar
ou enfocar um destes atributos. E, como elas podem ou não ser integradas,
ou ainda delas fazer emergir, politicas publicas Mas ao concentrar as análi-
ses em um desses temas, necessariamente deve-se entender que eles fazem
parte uma totalidade espacial, nas quais outras abordagens estão presentes
e podem complementar a análise.
Nesse sentido, entender o Território sob o enfoque simbólico, por exem-
plo, é privilegiar os atributos socioculturais de uma dada sociedade e como
ela elege seus referencias de identificação e de pertencimento deste local.
Mas, ao mesmo tempo, esse entendimento pode ser usado para relacionar
com outras abordagens, como o enfoque político-econômico. Considera-
-se, assim, uma análise de como estes grupos locais, em suas apropriações
espaciais e construção de seus territórios simbólicos, se relacionam com
as forças externas da localidade, focadas em outros interesses como os
do enfoque material, ou seja, da expansão do capital. No dizer de Souza
(1995) o território é um campo de forças ou uma teia de relações sociais
que possuem uma complexidade interna e, ao mesmo tempo, um limite ou
alteridade entre os grupos sociais – os membros da coletividade local e os
estranhos ou de fora (SOUZA, 1995: 86).
Desta forma, o território precisa ser entendido numa abordagem integra-
dora (entre todas as aqui discutidas), pois a realidade é complexa e talvez

72
uma abordagem não consiga explicar as relações de poder existente numa
dada área e com isso, pode ofuscar um adequado entendimento sobre as
mudanças sociais ou participação política.

Conflitos ambientais

Como se pode perceber, a discussão da categoria território e das territoria-


lidades evoca também a de conflitos, sendo necessário também sua carac-
terização para adequações dos projetos dos estudantes do grupo de pesqui-
sa, pois os conflitos são elementos importantes para pensar as mudanças
sociais e a participação política. Destaca-se neste tópico a ideia de conflitos
ambientais, ou territoriais, ou socioambientais, que precisam ser pensados
numa análise mais abrangente e como importante elemento na relação da
sociedade com seu meio (ou natureza) visto que essa relação se realiza so-
bre o território.
Para Carvalho; Scotto (1995), conflitos socioambientais são expressos pela
luta de interesses opostos, que disputam o controle dos recursos naturais e
o uso do meio ambiente comum. Em sua definição, essas autoras incluem a
noção de antagonismo para o entendimento dos conflitos e a existência de
práticas que colocam em oposição as intenções, interesses ou sentimentos
quanto a um objeto (ou conjunto de objetos) determinados. Nesse senti-
do, afirmam que conflito ambiental “é resultado de uma relação de forças
entre grupos que se manifestam no espaço público e às diferentes catego-
rias de percepção sociais e políticas dos atores.” (CARVALHO; SCOTTO,
1995:14). Para Vianna (1996), os conflitos podem ser analisados sob o ân-
gulo de cada uma das partes envolvidas, que, genericamente, considera a
outra parte como causadora do problema. Posto dessa maneira, essa defi-
nição de conflito ambiental se assemelha, ou reforça o entendimento dos
trunfos do poder, destacado no tópico anterior.
Mas a sociedade contemporânea não é homogenia. Ela se caracteriza pela
diversidade de olhares, é pluralista e desigual. Então como pensar no en-
tendimento de conflitos numa sociedade com essas características? Numa
abordagem marxista, Herculano (2006) indica que os conflitos precisam
ser aflorados na sociedade para serem percebidos como momentos de rup-
tura e criação de identidades. Quer dizer, uma conscientização da contra-
dição vivida e, a partir daí, uma identificação dos problemas pelo próprio
grupo e as contradições com outros grupos.

73
Posto dessa maneira, Alier (2009) indica que os conflitos ambientais re-
velam um antagonismo entre as forças do capital e as formas de vida so-
cial não capitalista, considerados como conflitos de natureza antagônica e
estrutural. Estes devem ser encarados como oposição ao capital e em sua
ideologia de crescimento exponencial, para voltar-se ao lado mais vulne-
rável desta relação, aumentando a capacidade de resistência destes. O que
implica em conceber o seu entendimento como essencial para as mudanças
sociais e participação política.
Contudo, isto exige um grande esforço, pois suas causas nunca são únicas,
mas bastante complexas e reúnem fatores naturais e sociais. Para Homer-
-Dixon (1991) conflitos socioambientais são difíceis de analisar, pois tem
múltiplas causas e efeitos em conjuntos de variáveis ligando interatividade,
sinergia, não-linearidade, entre outros aspectos.
E numa tentativa de sistematização Herculano (2006) aponta que eles apa-
recem por conta de quatro diferentes usos que a sociedade faz da natureza:
I) como suporte da vida (água, ar, alimento...); II) como depósito de deje-
tos; III) como fonte de matérias-primas; e IV) como espaços de amenidades
(belezas cênicas, lazer).
E, a partir de uma bibliografia baseada em estudos de caso, Herculano
(2006) estabelece uma tipologia para caracterizar os conflitos ambientais:
a) conflitos oriundos da chegada do estranho causando ruptura no modo
de vida local. Nesse aspecto, é similar à abordagem territorial de cunha
materialista, ou seja, de conflito entre o local e o global;
b) conflitos oriundos da percepção da presença de riscos crônicos e de de-
terioração dos sistemas de vida. Como exemplo, pode-se citar as manifes-
tações de populações que ocupam áreas contaminadas, com o descarte de
materiais potencialmente perigosos – organoclorados combustíveis fósseis,
entre outros, e suas reivindicações e estratégias para remediar o problema;
c) conflitos oriundos da ocorrência de acidentes e da luta por sua remedia-
ção. Como os casos de vazamentos de petróleo em águas oceânicas e nas
praias. Difere-se aqui do destacado em “b” apenas no sentido de algo que já
ocorreu e algo que pode ocorrer.
d) conflitos decorrentes da transformação da paisagem, das alterações climáti-
cas e das perdas das formas de vida. A expansão da fronteira agrícola brasileira
com os desmatamentos decorrentes são exemplos desta situação. Homer-Di-
xon (1991: 104) chama este tipo de conflitos de “escassez simples”; e

74
e) conflitos decorrentes das implicações de uma escolha para a regulação
de gestão (perfil dos atores, aplicabilidade e eficácia das ações). Este tipo
está associado a uma fase na qual a sociedade já está organizada em conse-
lhos ou comitês para a gestão de assuntos socioambientais.
Nessa tipologia, Homer-Dixon (1991: 104) acrescenta os “conflitos por
privações relativas”, ou seja, os conflitos entre os interesses e necessidades
dos atores frente à situação econômica na qual se encontram e o que eles
desejam, suas aspirações futuras. Países ou regiões pobres, cuja população
se encontra num patamar de menos de menos de U$ 1,00/dia6, podem ser
analisados nessa abordagem.
Para finalizar, destacam-se os resultados positivos e negativos decorrentes
dos conflitos ambientais, baseado em Homer-Dixon (1991) e Herculano
(2006):

- Negativos:
i. Desterritorialização de populações locais;
ii. Soluções parciais que atendem apenas um segmento da sociedade en-
volvido nos conflitos;
iii. Procrastinação de decisões.

- Positivos:
• Criação de categorias de lutas e sua organização em redes e alianças;
• Criação de novas institucionalidades.

Incluem-se ainda na categoria conflitos, aqueles que se territorializam


em decorrência de estratégias de politicas publicas que definem usos
e ocupações distintas de um determinado espaço geográfico. Algumas
considerações a esse respeito serão feitas no contexto das politicas pu-
blicas.

6 Classificação do Banco Mundial para renda de pessoas no limite de pobreza extrema.

75
Políticas públicas

O campo de estudo das políticas públicas por ser de interesse para várias ci-
ências, apresenta uma dificuldade maior quando se tenta ter uma definição.
Nos revela Souza (2003:26) a respeito que as

definições de políticas públicas, mesmo as minimalistas, guiam o


nosso olhar para o lócus onde os embates em torno de interesses,
preferências e ideias se desenvolvem, isto é, os governos...

Massadier (2008) a complementa, com um pouco mais de detalhe, quando


considera que

As políticas públicas repercutem na economia e nas sociedades, daí


porque qualquer teoria da política pública precisa também explicar
as inter-relações entre Estado, política, economia e sociedade... po-
de-se, então, resumir política como o campo do conhecimento que
busca, ao mesmo tempo, colocar o governo em ação e/ou analisar
essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mu-
danças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente).
As políticas públicas são colocadas em coerência por sistemas de re-
gulação exógenos às ordens locais. As redes sociais são fragmentadas
e muitas vezes estão em concorrência, mas começam a conquistar os
terrenos de discussões muitas vezes mais em decorrência da motivação
do que da organização. Associam-se, portanto, com a própria fragmen-
tação do Estado e de suas ações, apontando para « decisões políticas que
se compõe, na realidade, de uma serie de compartimentos verticais ou
de segmentos, com suas próprias lógicas » (MASSADIER, 2008: 137).

E, uma mesma política pública se vê afrontada por um número importante de


redes. Klaus Frey (2000) acompanha o raciocínio de Massadier ao elencar as
interferências sobre a política pública, das quais a mais importante é a questão
da governança, demarcada pela presença de novos atores na arena política.
Assim, fazer políticas públicas é gerir a ação coletiva, dos atores, é manter
junto, não mais pela autoridade, mas por levar em conta as racionalidades

76
de ação dos atores econômicos, sociais. É importante também a questão
dos agentes sociais e do papel eles têm nas transformações. Como são os
«modos de fazer política, e, sobretudo da ambiental» nos país? Ele conside-
ra as redes sociais?
As políticas ganham relevância porque representam localmente a espaciali-
zação de soluções globais, recolocando a máxima do “impacto global, ação
local”, experimentando e adaptando, em quaisquer das escalas espaciais, a
diversidade de estratégias metodológicas e técnicas de pesquisa. Contudo,
essencial para que isso ocorra são as articulações, o diálogo, as negociações
e a participação política.
Esse diálogo entre a ação local, ou regional e a global nem sempre é tran-
quilo. Há fricções, segundo Coy (2006), pois as desigualdades sociais, eco-
nômicas e ambientais são, numerosas vezes as consequências locais da glo-
balização resultando em fragmentação entre inclusão e exclusão.
A problemática ambiental encontra-se no centro desse turbilhão, do uni-
verso fragmentado, policêntrico e controverso; de articulação dos atores,
lógicas e recursos múltiplos; de articulação entre as instituições e níveis
administrativos do Estado; do mercado/Estado/outras lógicas privadas; da
articulação local/nacional/internacional. As políticas contemporâneas os-
cilam entre ajustes mutuais em espaços autônomos e ajustes mutuais regu-
lados, com os atores assumindo múltiplos posicionamentos, motivados a
alinhavar uma coerência global.
Para a política ambiental, os processos de conflito e consenso assumem
grande valor, especialmente quanto ao seu caráter, seu conteúdo e o modo
de resolução dos conflitos. As políticas ambientais brasileiras requerem,
portanto, um repensar do próprio papel da ciência e da política e a rele-
vância que tem a autoridade do Estado. Torna-se, portanto, necessário a
agregação de bases metodológicas distintas para entender como o seu papel
de ator é redimensionado na fase atual da globalização ambiental.
Políticas públicas transformam a realidade, quer estimulam quer desincen-
tivam ações locais, ou ainda, cujas expectativas de modificação impulsio-
nam, indiretamente, rápidas decisões individuais. Na teoria, a transforma-
ção é um produto de interesse econômico, politico e social.
Na escala brasileira, a globalização ambiental induz a (re) estruturação de
instituições ambientais adequadas às novas exigências difundidas mun-
dialmente e a incorporação de instrumentos e métodos originados além-

77
-fronteiras. Pelo menos três caminhos foram seguidos no âmbito do Estado
brasileiro: a reestruturação de algumas instituições mais antigas de meio
ambiente, a criação de novas e a inserção da temática, via departamentos,
seções, etc., em órgãos estatais setoriais.
Bursztyn (1998:153) relaciona as reestruturações com a crise do Estado
que resultou em sucessivas reformas administrativas, promovidas pelo FMI
com o único objetivo de reduzir o tamanho do Estado, como parte do re-
ceituário neoliberal de medidas de ajustes, especialmente aquelas voltadas à
desregulamentação, enxugamento da máquina funcional e a geração de um
novo padrão de eficiência. Paradoxal é que, ao lado desse receituário, exi-
giram-se estruturas para dar respostas aos problemas ambientais globais.
Em qual modelo se situa o Estado brasileiro? O Estado assume o papel de
regulador, sozinho ou se o mesmo exerce, também o papel de organizador
da ordem social, política e territorial, num processo de reconfiguração, de
articulação entre o público e privado e entre o local e o global, passando
pelas escalas regional e supranacional?
Em se tratando de avanços deste tipo de políticas públicas, de 1990 a 2010
foram décadas muito importantes. Primeiro porque a partir dos anos 1990
um conjunto de políticas que trataram da gestão do meio ambiente (consti-
tuição, 1988), dos recursos naturais-PPG7 (1995), floresta (código florestal
1996, 2003), gestão de bacias hidrográficas e dos recursos hídricos (1997),
código ambiental (1998) áreas protegidas (2000), biodiversidade (2003),
mudanças climáticas (2010) foram elaboradas e passaram a restringir as
praticas mais impactantes ao meio ambiente. Planos nacionais e estaduais
sobre estas temáticas foram aprovados (COSTA, 2007; JACOBI, 2000). Se-
gundo, se de um lado as políticas visavam enquadrar, ou mesmo restringir,
do outro lado contraditoriamente, elas mesmas provocaram a ocorrência
de conflitos ambientais-territoriais. (MELLO, 2006)
Massadier (2008) mostra a importância das autoridades públicas na estru-
turação formal das políticas públicas e, especialmente, da ação pública que
demanda a articulação da autoridade e da ação, dentro de um universo
policêntrico. Este aspecto esta enquadrado na lógica dos cinco fenômenos
que ocorrem simultaneamente no campo de conhecimento das políticas
públicas, por isso a complexidade e dificuldade em discutir seu marco con-
ceitual e analisá-las: a estruturação formal das políticas pelas autoridades
públicas; a mobilização social; as externalidades, gerenciadas pelo Estado
ou pelo mercado; os níveis entrelaçados das políticas públicas (escalas lo-

78
cal, nacional, internacional) e finalmente, a ingovernabilidade das socieda-
des ocidentais.
Essa complexidade torna-se perceptível no caso brasileiro, onde, não ape-
nas a influência da internacionalização das políticas ambientais foi signifi-
cativa, marcada pela assinatura das primeiras convenções e também pela
influência da mobilização social internacional, mas a estruturação formal
do Estado e o gerenciamento pelas autoridades públicas dos instrumentos
de controle e proteção ambientais.
Além do papel estruturador do Estado, a análise da importância da política
publica em uma abordagem associada à participação politica, nos obriga
esclarecer o uso de alguns conceitos e categorias centrais.
Rodrigues (2010) aponta que um problema é transformado em questão
política (issue) quando os atores percebem qual pode ser o resultado de
determinada política pública (outcome). Isso significa que elas são dese-
nhadas por atores políticos, são resultantes da atividade política e envol-
vem um processo decisório complexo. No entanto, são determinadas pelo
aspecto gerencial do Governo em contraponto ao seu aspecto legal (politics
determinam a policy, segundo o axioma de Lowi, 1972). A política (poli-
tics), pela agregação de diversos interesses, às vezes contraditórios, deter-
mina o resultado nos processos decisórios de políticas públicas (SOUZA,
2007). Neste contexto, as políticas públicas são entendidas como o campo
das ações emanadas dos poderes centrais, regionais e locais sobre seus ter-
ritórios. Representam, portanto, como os múltiplos atores produzem o es-
paço e reestruturam o território por meio da prática de políticas/programas
estratégicos e gestão territorial, que segundo Becker (1988, 1991) contêm
um caráter (re) estruturante da capacidade local de alavancar novas formas
de desenvolvimento.
Para analisar uma política pressupõe conhecer o ponto de vista daqueles
que as concebem e as implantam, de seus aliados e de seus adversários. Das
teorias que permitem a analise das políticas derivam metodologias, refe-
renciais e técnicas, tais como o jogo de grupos de interesses (Dye, 2009), a
análise de estilos políticos (FREY, 2000) e análise institucional e desenvol-
vimento (BRONDIZIO, ORSTOM, YOUNG, 2009), para destacar alguns
dos teóricos indicados na bibliografia da disciplina.
Os modelos que analisam as políticas públicas são “abstrações ou repre-
sentações da vida política”, “focaliza um aspecto distinto” da mesma (DYE,
2009, p. 101, 126) e trazem “pressuposições explícitas sobre as variáveis

79
fundamentais e a natureza das relações existentes entre elas” (WINKLER,
2009, p. 129). Dentre suas inúmeras finalidades, os modelos servem para:
(I) ordenar e simplificar a compreensão da realidade sobre políticas públi-
cas; (II) identificar seus pontos mais importantes; (III) entender os aspec-
tos políticos e as “características essenciais da vida política”; (IV) “orientar
a pesquisa e a investigação”; (v) propor explicações e prever consequências
das políticas públicas (DYE, 2009, p. 100, 126).
Assim, o uso de modelos pode ser de grande valia para explicar pontos
diferentes das políticas públicas, pois cada qual sugere “algumas causas e
consequências gerais de políticas públicas”, podendo ser utilizados isolada
ou conjuntamente (DYE, 2009, p. 101).
As referencias científicas para o enquadramento das políticas públicas é o
das racionalidades, sistematizadas por Massadier (2008), das políticas pú-
blicas que se superpõem: de uma lado, o modelo sinóptico, dependente
de um “ator central, um regulador” que atua na sociedade a partir de um
objetivo pré-definido e que coloca os meios necessários para atingir as “fi-
nalidades escolhidas”; e, do outro, modelo de ajustes mutuais, resultante de
um processo de ajustes entre atores que constroem dispositivos de políticas
públicas segundo as “finalidades vividas”, decorrente de suas capacidades
de interações e ações. De um lado, as políticas públicas pela autoridade, de
outro, as políticas públicas pela ação dos indivíduos. As complexidades das
políticas públicas dentro do contexto de perda de importância do Estado,
de ingovernabilidade das políticas e ação dos governantes e de sensação de
desordem tanto para os cidadãos quanto para os políticos, analistas de po-
lítica e para a própria administração. Apesar desse novo contexto, o Estado,
as autoridades públicas sempre estarão dentro do jogo, mas entre outros
atores, negociando, lutando para que suas definições de interesse geral e
seu senso de atuação sejam compreendidos.
É importante destacar que estas abordagens podem ser complementadas
por alguns fatores ligados à percepção dos atores a respeito dessa proble-
mática e dos meios utilizados para superá-la, chamando a atenção para as
questões de sensibilidade e subjetividade do homem para compreender a
realidade.
A coerência da dimensão ambiental das outras políticas públicas em dis-
tintas escalas territoriais (local/regional/nacional/supranacional, depende
de avaliar os modelos e os tipos de instrumentos de politica ambientais
existentes, identificando como eles se inserem nas múltiplas escalas e em

80
outros tipos de politicas publicas (e de que tipo - comando e controle, eco-
nômicos, de persuasão e/ou outros).

Considerações finais

Admitindo-se as informações aqui apresentadas, considera-se fundamen-


tal o entendimento das categorias Território e Territorialidade, assim como
a de Conflitos Ambientais e de Políticas Públicas para a análise das dinâmi-
cas da sociedade. Seu entendimento permite um diagnóstico das caracte-
rísticas do status quo da sociedade em análise.
A análise de um mundo complexo, permeado de contradições e de tensões
sociais e políticas e na qual a temática ambiental ganha contornos cada vez
mais expressivos na sociedade, é possibilitada pelo entendimento destas ca-
tegorias analisadas. Os estudantes de pós-graduação são então convidados
a relacionarem seus interesses de pesquisa com essas temáticas e percebe-se
um amadurecimento acadêmico e envolvimento mais direto com as mu-
danças sociais e participação política.
A análise, ou diagnóstico, das dinâmicas da sociedade faz aflorar suas con-
tradições e permite aos estudantes do programa de pós-graduação em Mu-
dança Social e Participação Política obterem informações importantes para
uma fase posterior, a de propostas (prognósticos). Nesta segunda fase, o
entendimento sobre Políticas Públicas e os temas a ela correlatos, como:
governança, autogestão ou co-gestão, são fundamentais para o amadureci-
mento dos projetos de pesquisas.
Complementarmente, como o debate do grupo diz respeito principalmente
ao Patrimônio Ambiental (o objeto de estudo do grupo) a análise das cate-
gorias aqui descritas permite também um melhor entendimento sobre essa
temática. , Este entendimento sobre os conflitos, enlaces, parcerias dos ato-
res sociais auxilia no construto da ideia de patrimônio ambiental, à luz de
como a sociedade ocidental construiu seus valores e crenças sobre natureza
e recursos naturais.
Interrelacionar as categorias de analise com os vetores que determinam as
politicas publicas exige dos pesquisadores um exercício reflexivo importante,
pois, aparentemente todos sabem analisar politica publica, que deve ser leva-
do para o centro do debate das pesquisas individuais de maneira a integrar
esses novos elementos como novas bases para a participação politica.

81
Assim, a disciplina específica e as discussões do “Grupo de Pesquisa sobre
Territorialidades, Políticas Públicas e Conflitos na Conservação de Patri-
mônios” contribuem para o entendimento e análise das estruturas da socie-
dade em sua relação com a questão ambiental.

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84
REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO: DO CINTURÃO
CAIPIRA AO VERDE E CINZA

Diamantino Pereira, Gerardo Kuntschik, Ana Paula G. Valdiones


Ivini V. R. F. Ferreira, Renato Abdo

Introdução

Ao norte a Serra da Cantareira, ao sul a área de proteção aos mananciais e


ao leste, na direção do Alto Tietê, uma imensidão sem fim. A área edificada
da metrópole vai se expandindo, tenta moldar a natureza circundante à sua
estética e seu modo de vida e nada parece ser obstáculo suficiente para frear a
expansão. Se existe um rio com suas várzeas no caminho, aterrem-se as váeas
e retifique-se o rio, pois se considerava um desperdício esse negócio de um
rio ficar serpenteando de um lado para o outro sem nenhuma objetividade.
As encostas da Cantareira se constituem como obstáculo, mas também
como solução quando se trata, por exemplo, do abastecimento de água.
A cidade cresce e com ela a necessidade de abastecimento de produtos ali-
mentares.

O mais importante desenvolvimento verificado no meio rural dos


arredores paulistanos entre 1915 e 1940 foi a expansão conhecida
pela agricultura comercial destinada ao abastecimento da capital.
Esta expansão compreende ampliações e diversificações. Toma cor-
po a horticultura, a fruticultura e a floricultura. Estrutura-se o Cin-
turão Verde em volta de São Paulo. (LANGEBUCH, 1968).

E o Cinturão Verde se estrutura e vai sendo empurrado cada vez mais para
áreas mais distantes, mas não muito longínquas pois a proximidade do
grande mercado consumidor é sedutora, sobretudo em relação aos custos
de transporte.
O espaço se transforma em suas relações e em suas localizações. Apresenta
limites e contingências e destacaremos algumas delas neste texto.

A Face Norte Do Cinturão Verde

O Cinturão Verde da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) tornou-


-se um território múltiplo, chão repleto de histórias e regionalidades de-
correntes dos seus múltiplos usos antrópicos, onde coexiste uma grande
diversidade de comportamentos e decisões que não devem ser pensados de
forma homogênea.
A sobrevivência de um vulnerável tecido florestal e áreas rurais e a ocor-
rência de regiões periurbanas no entorno da RMSP, após diversos ciclos
de desmatamento (mineração, cafeeiro e urbano/industrial) remete-nos
obrigatoriamente a história da devastação da Mata Atlântica que já abrigou
Guarus, Guaranis, famílias de agricultores e migrantes de todos os cantos
do Brasil e do mundo
A especificidade da face norte do Cinturão Verde da cidade de São Paulo
é a existência de um núcleo florestal que se diferencia de todo o restante,
principalmente o processo de constituição do Parque Estadual da Cantarei-
ra, cuja história ambiental tem sido pautada por um conjunto de decisões
relacionadas ao crescimento da Metrópole Paulistana.
Desde o final dos anos 80, a Cantareira, concentrou grande parte do movi-
mento ambiental em favor da criação do Cinturão Verde da Cidade de São
Paulo.
A partir do século XVI os tropeiros1, ao abrirem trilhas nessa região passa-
ram a denominá-la como Serra da Cantareira2, devido ao grande número
de nascentes e córregos e ao costume de armazenar a água em cântaros
mantidos em prateleiras também chamadas de Cantareiras.

1 A palavra “tropeiro” deriva de tropa, numa referência ao conjunto de homens que transportavam
gado e mercadoria desde o Brasil colônia. Durante 250 anos os tropeiros foram responsáveis por toda a
comercialização e transportes de produtos e informações no Brasil.
2 Cantareira é o nome incorporado à região da serra desde os séculos XVI.

86
De acordo com Langenbuch (1968), as trilhas abertas pelos tropeiros não
apenas exerceram um importante papel no povoamento rural, como atu-
aram como eixo da expansão urbana futura de São Paulo. Seus estreitos
caminhos, por onde passavam com gado e mercadorias determinaram o
traçado de importantes vias que cortaram região.
A partir do final do século XIX, após longos anos de discussão pública
sobre qual seria o melhor manancial para construção do sistema de água
encanada que viria a substituir o então “comércio de águas” dos aguadeiros3
por uma “indústria da água”, decidiu-se pela região Cantareira.
O projeto de canalização das águas da Cantareira emergiu como símbolo
de um novo tempo, um modelo de modernização urbana a ser seguido
pelas outras cidades brasileiras. Em suas primeiras propagandas, seus ide-
alizadores, aproveitando o significado atribuído pelos tropeiros à palavra
cantareira, divulgavam:

... denominemos de COMPANHIA CANTAREIRA, isto porque a


água deverá ser primeiramente reunida nos grotões da serra, afim
de que, canalizada, seja trazida para a cidade. E como toda capta-
ção de qualquer líquido, especialmente a água, se faz em cântaros,
a sociedade construirá tantas Cantareiras ou reservatórios, quantos
necessários ao consumo da população. (BRITTO, 1999).

Ainda que tenha sido principalmente a produção cafeeira responsável pelo


desmate sem precedentes da região que foi se regenerando com muito su-
cesso após a criação da Reserva Cantareira, a relação entre a industriali-
zação e a urbanização imprimiu ao território mudanças num outro nível,
que viriam, definitivamente, transformar os antigos modos produção rural,
enquanto a cidade que saltava, vertiginosamente, de 65 mil habitantes na da
última década do século XIX para um pouco mais de 10 milhões de habi-
tantes ao final do século XX,.Com a estatização da empresa em 1893 e com
o início da construção do primeiro reservatório na serra, entrou em ope-

3 Segundo Santa’ana (2007), as classes mais abastadas usufruíam de sistemas de abastecimento


particulares ou dos serviços dos aguadeiros, enquanto, entre a população mais pobre, restava abastecer-
se nos chafarizes públicos, as famosas “biquinhas” em meio a conflitos que envolviam escravos,
zeladores de chafarizes, aguadeiros e guarda pontes, profissões hoje extintas, mas que naquela época
faziam parte do cotidiano da cidade.

87
ração um tramway de serviços que na subida carregava os materiais para
a construção do reservatório e, na descida, pedras4 para o calçamento das
vias urbanas e construção civil necessários para o crescimento do núcleo
edificado da cidade. Dessa forma, a floresta Cantareira passou a servir à po-
pulação urbana, tornando-se uma das maiores florestas urbanas do mundo
ao lado da Tijuca no Rio de Janeiro e Mumbai na Índia.

Na base econômica do “tecido urbano” aparecem fenômenos de


outra ordem, num outro nível, o da vida social e “cultural”. Trazi-
das pelo tecido urbano, a sociedade e a vida urbana penetram nos
campos. Semelhante modo de viver comporta sistemas de objetos e
sistemas de valores. Os mais conhecidos dentre os elementos do sis-
tema urbano de objetos são a água, a eletricidade, o gás (butano nos
campos) que não deixam de se fazer acompanhar pelo carro, pela
televisão. (LEFEBVRE, 1991)

No percurso do Tramway Cantareira da década de 60 (década do seu des-


monte), existia uma grande quantidade de acessos às pedreiras, estações,
pontos de parada, , desvios e ramais que operavam simultaneamente com a
linha de bondes e ônibus.
Já nas primeiras décadas do século XX, a RMSP apontava para se tornar o
principal polo industrial do Brasil sem que o transporte público, restrito a
linhas de bondes e o sistema de água e esgoto pudessem suprir a demanda
do setor industrial e chegada de grande quantidade de migrantes vindos de
todas as partes do mundo. Como bem observa Souza e Silva:

Dentre os principais deflagradores das transformações urbanas


ocorridas no período nos arredores de São Paulo e, especialmente,
na zona norte da cidade, destacam-se as alterações nos sistemas de
transportes urbanos, com a operação dos auto-ônibus, bem como o
crescimento demográfico e o aumento da demanda habitacional por
parte da população de baixa renda. (SILVA, 2005)

4 Entre os elementos de alavancagem do processo de urbanização encontram-se certamente nas


atividades de exploração dos recursos minerais e hídricos. Os primeiros bairros do pé da serra (distrito
de Tremembé) foram formados por operários das pedreiras.

88
Em decorrência do crescimento do Parque Industrial nos anos 50 as di-
nâmicas do crescimento econômico geraram um processo de urbanização
extensiva e segregação sócio espacial que levou grande massa de trabalha-
dores dos campos para as periferias das grandes cidades. A urbanização ex-
tensiva impactou profundamente a economia e a sociedade paulistana que
levou a uma diminuição sensível da população ocupada com as atividades
agropecuárias nas áreas mais próximas da capital.
Com o grande êxodo rural e aumento da população, o tecido urbano e florestal
começaram a se tangenciar e interpenetrar, promovendo no entorno das flores-
tas modos de vida periurbanos mais ou menos degradados, onde a “ocupação
urbana irregular de áreas rurais desativadas nos esporões da Serra da Cantareira
consolidou um tecido urbano no qual, à dificuldade de acesso a serviços e infra-
estrutura, somou-se um quadro grave de degradação ambiental” (SILVA, 2005).
Com o desenvolvimento urbano, o Cinturão Verde foi-se tornando cada vez
menos agrícola, sendo cada vez mais escassa a agricultura tanto na região Sul
quanto na região Norte de São Paulo. O desenvolvimento dos setores secundá-
rios e terciários e sua violenta sobreposição sobre os antigos usos produtivos
dos territórios culminaram na degradação do antigo Cinturão Caipira, conhe-
cido, anteriormente, por abrigar áreas hortifrutigranjeiras que produziam ali-
mentos básicos para a população paulistana. O cinturão caipira se dispersou, se
degradou e se transformou, sem todavia desaparecer por completo.

Entre as malhas do tecido urbano persistem ilhotas e ilhas de rura-


lidade [...]. A relação “urbanidade- ruralidade”, portanto, não desa-
parece; pelo contrário, intensifica-se, e isto mesmo nos países mais
industrializados interfere com outras representações e com outras
relações reais: cidade e campo, natureza e facticidade, etc. Aqui ou
ali, as tensões tornam- se conflitos, os conflitos latentes se exaspe-
ram; aparece então em plena luz do dia aquilo que se escondia sob o
“tecido urbano. (LEFEBVRE, 2008)

O que restou da agricultura (hoje denominada como urbana e


periurbana) no município de são paulo

Realmente não desapareceu por completo, mas isso quase aconteceu. Em


trabalho sobre os bairros e subúrbios rurais da metrópole, Oliveira (2004)

89
relata que, em 1954, São Paulo tinha três milhões de habitantes e que nas
últimas décadas a expansão urbana tratou de acabar com os muitos sítios
e chácaras que havia em sua área territorial. No entanto, existem ainda no
município de São Paulo unidades de produção agropecuárias que resistem
ao processo de expansão da mancha urbana. O município conta hoje com
aproximadamente 440 agricultores localizados principalmente na região
sul, mas com alguma presença também em áreas da região leste e norte. So-
madas, as áreas chegam a cinco mil hectares, mas uma parcela considerável
dessa área é constituída por reservas florestais, sobretudo na região sul5.
As famílias envolvidas com a atividade agrícola no município, não corres-
pondem aos padrões convencionais das áreas agropecuárias. Se por um
lado elas enfrentam as mesmas limitações impostas à agricultura familiar
no Brasil, por outro sofrem ainda o embate com a questão imobiliária extre-
mamente deletéria para atividade agrícola na região (FERNANDES, 2006).
A agricultura urbana e periurbana desenvolvida no município de São Pau-
lo é bastante heterogênea, tanto pelos sistemas produtivos desenvolvidos e
pelo contexto das regiões em que se insere, quanto pelos aspectos socioe-
conômicos dos produtores. Entretanto, existe um predomínio no que toca
ao desenvolvimento das atividades agrícolas nas áreas periféricas à cidade,
regiões que frequentemente se configuram por serem áreas com baixa ofer-
ta de empregos, apresentarem taxas de crescimento populacional elevadas
e por exibirem indicadores sociais com valores abaixo da média municipal.
Ao mesmo tempo, muitas dessas periferias salvaguardam remanescentes
florestais e áreas de mananciais importantes, configurando-se como áreas
que frequentemente se deparam com conflitos socioambientais.
A maioria dos produtores agrícolas encontram-se no extremo sul, como
pode se observar na Figura 1, e localizam-se nas áreas de proteção aos
mananciais referentes às represas Billings e Guarapiranga e estão inseri-
das também nas Áreas de Proteção Ambiental Bororé-Colônia e Capivari-
-Monos ou em seu entorno.

5 Os dados são do Cadastro do Produtor Rural (CPR) elaborado e fornecido pelo Departamento de
Agricultura e Abastecimento do Município de São Paulo.

90
Figura 1. Unidades de Produção Agropecuárias no município de São Paulo.
Fonte: VALDIONES, 2013.

Esses produtores, portanto, conduzem sua atividade produtiva em áreas de


grande relevância ambiental, pois além de manter parte significativa dos
remanescentes vegetais do município, trata-se da área produtora de um ter-
ço da água que abastece São Paulo.
Em contraposição às restrições impostas pela legislação das áreas de prote-
ção e recuperação dos mananciais, a maioria das unidades de produção ali

91
instaladas desenvolve uma agricultura baseada no sistema convencional de
produção, com o uso de agroquímicos e práticas inadequadas do ponto de
vista da conservação dos solos e recursos hídricos.
As unidades de produção agropecuárias (UPAs) no extremo sul têm áreas
maiores do que a média das propriedades nas demais regiões do município,
com um intervalo que varia de 0,1 hectare a mais de 100 hectares, sendo a
mediana de 7,3 hectares. As principais culturas são as hortaliças e as plantas
ornamentais. Os agricultores do extremo sul possuem quantidade relativa-
mente maior de maquinários e equipamentos. Entretanto, Carvalho (s.d.)
afirma que os maquinários empregados na região sul, especificamente na
área da APA Capivari-Monos, geralmente são antigos, indicando a desca-
pitalização dos produtores.
Muitos dos produtores da área norte do município, por sua vez, estão lo-
calizados nas imediações da Serra da Cantareira, destacando-se os descen-
dentes de portugueses e japoneses que se instalaram ali desde o início do
século 19. Ao longo dos anos, esses produtores adaptaram a horticultura às
condições adversas do meio, como à elevada declividade, sendo diferentes
hortaliças o foco ainda da produção. A maioria das UPAs tem até cinco
hectares, e desenvolve uma agricultura com pouco apoio de maquinário
e equipamentos e comercializando a produção com o Centro Atacadista e
o consumidor final diretamente. Atualmente, parte dos agricultores des-
sa região apresenta uma situação incerta, devido à implantação do Trecho
Norte do Rodoanel Mário Covas, obra de infraestrutura urbana que poderá
desapropriá-los.
Na região norte do município ainda existem suinocultores que praticam a
atividade há mais de trinta anos no bairro Jardim Damasceno nas encos-
tas da Serra da Cantareira. Ali, a criação de suínos é feita com a utiliza-
ção de restos de comida recolhida nos restaurantes e lanchonetes das áreas
centrais da cidade. Desenvolvem, portanto, uma atividade de criação de
animais atrelada à coleta de resíduos urbanos, semelhante ao apresentado
por Santandreu et al (s.d.) em Montevidéu. Essa modalidade de AUP segue
invisível aos olhos do poder público e suscita conflitos quanto à regulariza-
ção da atividade, o que implica na manutenção dos impactos ocasionados
pela inadequação e falta de assistência técnica. Além disso, essa atividade
constitui fonte de riscos à saúde humana, tanto pela ausência de controles
sanitários da carne ali produzida quanto pelo poder contaminante dos re-
síduos gerados.

92
Os produtores da porção leste de São Paulo, por sua vez, encontram-se lo-
calizados nas áreas administrativas das Subprefeituras de Itaquera e de São
Mateus. A região de Itaquera na década de 1950 foi uma das maiores pro-
dutoras de pêssego da América Latina. Com a expansão urbana, a ativida-
de agrícola retrocedeu, restando algumas unidades de produção que ainda
se dedicam à fruticultura. A maioria das UPAs em Itaquera tem até cinco
hectares e, além das frutas e hortaliças, existem alguns produtores que se
dedicam à criação de pequenos animais, como as codornas. A produção é
realizada com baixa utilização de maquinários e equipamentos agrícolas
e a comercialização realizada geralmente diretamente com o consumidor
final.
Os produtores de São Mateus praticam uma AUP substancialmente dife-
rente. Desenvolvem uma agricultura urbana em pequenos espaços subutili-
zados do tecido urbano, ocupando áreas embaixo de linhas de transmissão
de energia elétrica, em áreas de adutoras e em terrenos públicos cedidos.
São áreas menores, com aproximadamente 300m², que são exploradas em
regime de comodato. Os volumes da produção são pequenos, se compara-
dos com os obtidos pelos produtores da zona leste, e sua destinação é prin-
cipalmente para autoconsumo, comercializando os pequenos excedentes. A
Casa de Agricultura Ecológica da Zona Leste é responsável pelo apoio tanto
para a produção quanto para a comercialização.
Em relação às UPAS do município de São Paulo como um todo predomina
a agricultura familiar e essa é a principal atividade econômica de quase 70%
das famílias que a praticam. A carência de assistência técnica e extensão é
a realidade da maioria das UPAs, sendo que os serviços oficiais chegam a
apenas para uma pequena parcela dos produtores (11%). A insuficiência
da assistência técnica e extensão diante da demanda da agricultura familiar
são evidenciadas a nível nacional, restringindo as possibilidades das famí-
lias em ter acesso a conhecimentos, resultados de pesquisas voltadas ao se-
tor e as políticas públicas de modo geral, contribuindo para a ampliação da
diferenciação e exclusão social (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO
AGRÁRIO, 2004).
Apesar do uso do solo nas UPAs variar de acordo com a região, a vegetação
natural ocupa 37% da área total das unidades, uma porcentagem bastante sig-
nificativa que incentiva a discussão sobre a função ambiental desempenhada
por parte das UPAs. Para Bellenzani (s.d.), o uso agrossilvipastoril tem papel
de destaque no extremo sul do município, uma vez que, sendo adequadamente

93
manejado, pode conciliar atividade econômica e conservação ambiental, evi-
tando assim uma das principais ameaças a manutenção dos remanescentes flo-
restais nessa região, que é a instalação de loteamentos irregulares.
Na zona norte esse aspecto também é importante, uma vez que as UPAs
localizam-se em áreas próximas ou mesmo na própria Serra da Cantareira,
e podem significar, dependendo das técnicas adotadas, um uso do solo me-
nos intensivo e mais adequado à zona de amortecimento do Parque Estadu-
al da Cantareira em comparação a urbanização que se estende aos limites
do Parque, colaborando para a conservação da biodiversidade.Na zona les-
te, as UPAs também protegem os fragmentos contidos na APA do Carmo
e protegem áreas verdes em regiões extensamente urbanizadas como São
Mateus. No entanto, o incentivo às boas práticas agroambientais é necessá-
rio, apoiando a recomposição das APPs, a redução do uso de agroquímicos,
a destinação correta das embalagens de agrotóxicos, o manejo adequado do
solo, dentre outras ações que impliquem na melhoria da qualidade ambien-
tal das propriedades e do entorno.
Diante desta função ambiental potencial da agricultura em São Paulo e do
reconhecimento dos múltiplos papéis que a agricultura pode desempenhar
no contexto urbano, diferentes atores têm auxiliado na conformação de po-
líticas públicas voltadas à atividade, constituindo algum reconhecimento
institucional à AUP.
As políticas públicas municipais voltadas para a agricultura são fruto de
um processo recente ainda em curso, que busca influenciar a adequação
ambiental dos sistemas produtivos com a adoção de boas práticas agro-
ambientais, a criação de canais diretos de comercialização da produção a
permanência de moradores na periferia e a organização de base dos produ-
tores, dentre outros aspectos. Entretanto, ainda existem dificuldades técni-
cas e institucionais, sendo que o número reduzido de técnicos, a escassez
de recursos e a falta de vontade política constituem-se em elementos que
influenciam diretamente na execução das ações e políticas públicas volta-
das à AUP em São Paulo.

O Cinturão Verde na Região do Alto Tietê

No Alto Tietê ainda podemos encontrar áreas agrícolas extensas e contínu-


as que justificam a sua denominação como Cinturão Verde. Verde, porque

94
ainda conta com remanescentes florestais e áreas de proteção aos manan-
ciais, mas também porque ali encontramos uma agricultura ligada de for-
ma dinâmica ao mercado.
As pequenas e médias propriedades rurais predominam na região que con-
ta com uma estrutura edafoclimática variada, o que cria condições comple-
tamente diferentes em áreas muito próximas, permitindo a diversificação
de culturas. O Rio Tietê cuja Bacia de planície dá origem a extensas áreas de
várzeas, cortando a região de Leste a Oeste, conta com uma malha de cinco
barragens. A Área de Proteção aos Mananciais abrange a metade Sul do
território e contribui para conter o avanço do desmatamento, protegendo
assim as cabeceiras hidrográficas e preservando o sistema de abastecimento
de água.
Um elemento importante de caracterização da região consiste na presença
significativa de uma população de origem japonesa que concentrou suas
atividades de modo significativo na agricultura e de certa forma contribuiu
para moldar a própria característica produtiva dessa região.
A instalação da primeira família de origem japonesa na região de Mogi
das Cruzes no então bairro de Biritiba Mirim, atualmente cidade indepen-
dente, ocorreu em 1915. Nessa época, a característica da agricultura era de
subsistência com a atividade agrícola muito restrita, criação de galinhas e
porcos e fornecimento de lenha para o mercado consumidor da cidade.
Com a finalidade de efetuar o pagamento da terra adquirida, as culturas
escolhidas foram aquelas que apresentavam um ciclo rápido de crescimen-
to, e assim a horticultura apresentou-se como uma das alternativas viáveis.
Os imigrantes de origem japonesa apresentavam características específicas
de relacionamento social que se manifestaram na constituição de associa-
ções culturais e cooperativas que apresentaram um importante papel no
apoio às atividades dos imigrantes e seus descendentes. Essas organiza-
ções basearam sua prática na realização de eventos comemorativos e no
apoio aos trabalhos dos técnicos e entidades que trabalham diretamente
com a agricultura, dinamizando o contato entre produtores e técnicos.
As cooperativas desempenharam um importante papel na difusão de téc-
nicas agrícolas, apoio financeiro e infraestrutura de comercialização da
produção agrícola e quando as duas principais (Cooperativa Agrícola Sul-
-Brasil e Cooperativa Agrícola de Cotia) faliram em 1994, isso teve um
impacto extremamente negativo para grande parte dos produtores.

95
Entretanto, a forma de organização em associações focadas na cultura,
esporte e agricultura (Kaikans), centralizadas através do Bunkyo, onde se
coordenam as estratégias e se tomam as decisões que envolvem todas as
associações dos bairros, persiste até hoje.
Segundo informações do “Projeto LUPA 2007/08: Censo Agropecuário do
Estado de São Paulo”, existem nesses municípios aproximadamente 2900
UPAs. 83% delas apresentam menos de 10 hectares e a área plantada média
dos cultivos temporários é de 4,2 hectares, tratando-se, portanto de peque-
nos e médios produtores. Trabalhadores permanentes e membros da famí-
lia participam em porcentagens muito próximas do processo de trabalho
(53% e 47% respectivamente).
A região do Alto Tietê apresenta quatro importantes cadeias produtivas:
hortaliças, frutas, flores e cogumelos. Na produção de frutas a região se
destaca nacionalmente na produção de caqui e de nêspera e é também o
principal produtor nacional de cogumelos. Entretanto, a horticultura é a
prática agrícola que ocupa a área mais extensa, o maior número de pro-
priedades e ocupa a maior parte da mão de obra agrícola. Em função dis-
so, concentraremos nossas atenções na cadeia produtiva de hortaliças em
função de sua particular expressão na região em termos de área plantada e
especialização dos produtores rurais.
Entre os produtores de hortaliças há os que cultivam concomitantemente
grande número de espécies e os especializados no cultivo de uma cultura
principal em termos de utilização da área cultivada, do tempo de trabalho
disponível e também na formação da receita do estabelecimento, podendo
haver uma cultura secundária de pequena importância.
A produção de hortaliças é extremamente fragmentada e pulverizada por
uma grande quantidade de produtores em áreas agrícolas muito diferen-
ciadas em termos de tamanho e aspectos do meio físico. Além disso, as
hortaliças apresentam um ciclo vegetativo extremamente curto, o que leva
alguns produtores a escalonar sua produção para ter sempre produtos dis-
poníveis para comercialização.
Entretanto, a produção é muito afetada por fatores climáticos, sobretudo a
presença de chuvas ou secas prolongadas, o que leva a considerar a infor-
mação sobre a dinâmica do tempo como estratégica e a utilização da irriga-
ção artificial em grande número de propriedades, como forma de garantir
retorno para os investimentos. Os produtos são altamente perecíveis, com a
melhor qualidade justamente no momento da colheita, o que coloca como

96
necessidade a observação de procedimentos adequados para que a perda de
qualidade seja minimizada até que o produto chegue ao consumidor final.
O mercado de consumo, sobretudo as redes de varejo, necessita de forneci-
mento que possa contar com uma ampla variedade de produtos diariamen-
te. Com a tendência do processo de terceirização, as grandes organizações
começaram a repassar varias funções para os seus antigos fornecedores. No
setor supermercadista esse processo ocorreu de forma acelerada, e o papel
de seus departamentos de compras se alterou de forma substancial.
Estruturam-se redes de fornecimento em que o produtor agrícola passou a
ficar responsável pelo abastecimento dos estabelecimentos de todas as hor-
taliças, mesmo as que ele não produz, e compra de terceiros para fornecer
para seus clientes contratuais. Essas redes de abastecimento compreendem
então o processo de integração, embalagem e fornecimento direto, com
exigências maiores em termos de qualidade do que aquela produção que é
encaminhada para o CEAGESP e Feiras Livres.
No mercado , exige-se por contrato o fornecimento estável em relação ao
volume, variedade e garantia de qualidade. A capacidade do produtor no
atendimento a essas exigências é parte fundamental para a sua manutenção
e competitividade dentro do processo comercial.

A comercialização das hortaliças produzidas na região do Alto Ca-


beceiras do Tietê, especificamente, nos municípios de Mogi das Cru-
zes, Suzano, Salesópolis e Biritiba-Mirim, ocorre através da transação
direta com o pequeno varejo local ou próximo, aos supermercados
regionais, pela venda às centrais de compras de redes de supermer-
cados ou o produto chega ao varejo via atacadistas e intermediários.
(SATO, nº 1, 2008).

No caso do setor supermercadista, que vem ampliando sua participação na


comercialização dos produtos desse segmento, “frequentemente os contra-
tos observados entre fornecedores e centrais de compras das grandes redes
de autosserviço beneficiam as duas partes de forma bastante desigual, pelo
poder de barganha exercido pelas redes.” (LOUREZANI, 2004).
Essas redes têm buscado empreender iniciativas no sentido de estabelecer
alguns elementos relativos à coordenação da cadeia produtiva de hortaliças
“por meio das exigências a respeito da origem dos produtos (rastreabilida-

97
de) e das exigências em qualidade. Isto faz com que os elos a montante tra-
balhem de forma mais coordenada para atender às necessidades do varejo.”
(LOUREZANI, 2004).
As redes varejistas tem ampliado sua atuação relativa ao monitoramento
dos processos produtivos de seus fornecedores. As maiores redes adotaram
sistemas próprios de controle aos que os fornecedores devem se submeter,
inclusive com o credenciamento e permissão para que as empresas de au-
ditoria e certificação da rede tenham acesso às áreas de produção e seus
registros, checando se o produtor cumpre os requisitos previamente esta-
belecidos.
Os itens monitorados abrangem todo o processo de produção e os procedi-
mentos até a chegada do produto ao local de venda, averiguando-se a ori-
gem e produção das sementes e mudas, a utilização de fertilizantes e agro-
tóxicos, o controle da água de irrigação, as instalações de armazenamento
dos insumos, os procedimentos de colheita e pós-colheita, as condições de
trabalho, os aspectos ambientais e a relação com terceiros (fornecedores
que complementam em número e variedade os itens que devem ser entre-
gues à rede).
Por outro lado, os produtores também têm se movimentado no sentido de
estabelecer padrões negociados de comercialização e controle do processo
produtivo. Um exemplo dessa tendência pode ser encontrado na constitui-
ção e atuação da Aphortesp que “trabalha na transferência de capacitação
para um número específico de associados juntamente com seus parceiros
(médios e pequenos produtores).” (CARVALHO, 2008). Trata-se, efetiva-
mente, de uma associação de produtores e processadores de hortaliças que
estabeleceu contatos e negociações coletivas com o varejo, ao invés da ma-
nutenção apenas de contatos bilaterais de cada produtor.
A dimensão alcançada por esse formato de relações técnico comerciais
pode ser melhor avaliada através da informação da abrangência do grupo.
No topo, temos 10 associados que são produtores e processadores baseados
na região do Alto Tietê e de Ibiúna. Somam-se a eles mais de 700 produ-
tores parceiros e fornecedores, perfazendo uma área total de produção de
aproximadamente de 1.500 hectares. Entregam seus produtos para 1.800
lojas e 250 cozinhas industriais, utilizando 200 caminhões diariamente.
A partir de 2008 a associação implementou uma parceria com a Associação
Paulista de Supermercados, APAS, formatando processos de entrega, apre-
sentação e garantia de qualidade dos produtos de forma pactuada, levando

98
a um controle de qualidade mais efetivo e caminhando no sentido da im-
plantação da rastreabilidade total e estabelecendo os rumos no caminho da
certificação. (www.aphortesp.com.br/aphortesp.html) acessado em 07/2013.
Portanto, podemos concluir que a produção hortícola dessa região é funda-
mentalmente articulada com o mercado e os produtores se vinculam a ele
na maior parte das vezes de forma individual, atuando de acordo com sua
dimensão de produção e capacidade de articulação com sua rede de escoa-
mento que tanto pode ser a venda direta ao consumidor, a venda às centrais
de abastecimento ou através de contratos com redes varejistas.
Esse último tipo de articulação tem aumentado muito sua importância no
processo de comercialização e, do ponto de vista do mercado, articula uma
quantidade enorme de produtores substituindo de certa forma a função
que as cooperativas exerciam anteriormente. De certa forma, pois as fun-
ções de apoio técnico, financeiro e de compras em conjunto não fazem par-
te dessa nova forma de articulação.
Além do mais, na medida em que as redes varejistas ampliam as exigên-
cias para os seus fornecedores, uma grande quantidade de produtores sai
do sistema por não ter interesse em se subordinar às práticas exigidas ou
mesmo por não ter condições técnicas nem financeiras de estruturar de
forma adequada seus processos produtivos. Tornam-se assim, fornecedores
do fornecedor.
Como a maioria da produção da região caracteriza-se pela adoção de seus
processos produtivos majoritariamente dentro dos parâmetros da agricultu-
ra convencional com a utilização de agroquímicos, o seu controle tem sido
objeto de pressões da sociedade e preocupações, não só das redes de comer-
cialização, mas também de órgãos governamentais que atuam no setor.
Uma dessas preocupações levou à formulação e implementação do Sistema
Agropecuário de Produção Integrada (SAPI) pelo Ministério da Agricultu-
ra, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

A Produção Integrada é um sistema que emprega tecnologias que


permitem a aplicação de Boas Práticas Agrícolas (BPA) e o controle
efetivo de todo o processo produtivo, através de instrumentos ade-
quados de monitoramento dos procedimentos e rastreabilidade em
todas as etapas, desde a aquisição de insumos até a oferta do produto
ao consumidor final.” (ANDRIGUETO, 2006).

99
Entretanto colocam-se dúvidas em relação à abrangência e alcance da
implantação desses processos, sobretudo em relação a seus custos. “As
iniciativas isoladas dessa proposta de produção integrada, embora im-
portantes, não alcançam os objetivos propostos, devido aos altos custos
de sua instalação, gestão e certificação.” (TARREGA, 2009). As dúvidas
que se colocam residem no estabelecimento de barreiras à entrada e
a dificuldade ou impossibilidade de acesso aos pequenos agricultores,
aqueles que somente podem se inserir nesse processo desde que asso-
ciados aos grandes produtores e processadores, como mencionado an-
teriormente.

Considerações Finais

A expansão das áreas edificadas da metrópole, assim como o aumento ex-


ponencial de sua população, ao mesmo tempo em que quase extinguiu os
ares de ruralidade de seus interstícios, criou e ampliou um grande mercado
consumidor de produtos agrícolas, entre eles os hortifrutigranjeiros que
se caracterizaram ao longo do tempo por apresentarem áreas de produção
adjacentes à cidade.
Do antigo cinturão de chácaras em que os próprios produtores se encarre-
gavam da comercialização de seus produtos em sistemas de mercado, so-
bretudo locais, à constituição do Cinturão Caipira, áreas um pouco mais
afastadas do centro urbano em que os agricultores praticavam uma agro-
pecuária diversificada e comercializavam seus excedentes e à própria extin-
ção desse cinturão com a expansão da mancha urbana, passaram-se poucas
décadas de intensa transformação espacial.
As áreas agrícolas vão então se deslocando para localizações mais afasta-
das, mas persistem em seus interstícios ou porque estão em áreas de pre-
servação ambiental, ou porque utilizam terrenos públicos ou particulares
cedidos para a produção agrícola em que o principal objetivo não é o de
abastecimento do mercado, mas a produção para autoconsumo e a comple-
mentação de renda dos próprios produtores.
Mas o consumo da grande massa de habitantes da região exige uma pro-
dução muito mais volumosa e as áreas próximas à aglomeração urbana se
consolidam como produtoras e fornecedoras, sobretudo de produtos hor-
tícolas, passando a se estruturar em formas empresariais modernas, utili-

100
zando tecnologias que garantem a produtividade, apelando em sua grande
parte para a prática da agricultura convencional.
Em relação à comercialização dos produtos hortícolas, observa-se o au-
mento expressivo da participação das redes varejistas em detrimento da
destinação da produção através das centrais de abastecimento e da comer-
cialização em feiras livres. Essas redes estabelecem então sistemas de for-
necimento que levam à constituição de sistemas empresariais concentrados
de produtores agrícolas e seus fornecedores em rede.
A mudança espacial então se concretiza, não apenas em relação à mudança
de lugar das práticas agropecuárias, mas sobretudo, pelas alterações nas
relações sociais de produção que ocorreram no espaço tempo referido.

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103
POLÍTICA PATRIMONIAL, UMA POLÍTICA PARTICIPATIVA?

Sílvia Zanirato, Edegar Luis Tomazoni

Introdução

Assiste-se hoje em dia a uma ampliação significativa do que podemos cha-


mar de participação política, ou seja, uma ação que “tenta influenciar a
distribuição dos bens públicos” (BOOT e SELIGSON, 1976, p. 6). A parti-
cipação é um meio pelo qual “os cidadãos transmitem a seus governos as
informações sobre seus interesses e preferências, pressionando-os a atende-
rem suas demandas” (VERBA, SCHLOZMAN e BRADY, 1995).
Tomando como referência essas definições, o objetivo do texto é o de discu-
tir a politica de proteção do patrimônio cultural como uma política pública
que pressupõe a participação da sociedade civil para que seja democráti-
ca e que contemple os usos sociais dos bens culturais. Ao mesmo tempo,
busca-se estabelecer os vínculos entre essa política e a política do turismo,
compreendida como a forma mais usual de justificativa para a proteção dos
bens herdados do passado. Com essa finalidade, o texto está organizado
em seis partes. Na primeira é discutida a política cultural, como política
pública. Na segunda, nos detemos na normativa que gere a política patri-
monial como política pública, que é seguida pelas considerações acerca dos
desafios para que, de fato, essa política seja participativa. Na sequência, são
estabelecidas as relações entre a política de conservação e difusão do pa-
trimônio cultural e as políticas de promoção do turismo, assim como as
possibilidade e riscos que essa aproximação comporta. Nas considerações
finais são apontados alguns caminhos para o avanço da participação nas
políticas do patrimônio cultural e do turismo.
As políticas culturais como políticas públicas participativas

O patrimônio cultural é o legado que outros povos e civilizações deixaram


em nossas terras e que contribui para perpetuar a memória dos caminhos
percorridos. É constituído pela “acumulação contínua de uma diversidade
de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas
das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os sabe-
res e savoir-faire dos seres humanos” (CHOAY, 2001, p.11).
Nele estão os bens culturais visíveis e tangíveis e os invisíveis, dentre estes,
os artesanatos, línguas, conhecimentos e a comunicação.
A salvaguarda, difusão, conservação e gestão desses bens são procedimen-
tos necessários para preservar as histórias e as identidades que o patrimô-
nio expressa e impedir sua destruição ou descaracterização. Essa salvaguar-
da ocorre por meio de políticas públicas.
As políticas públicas constituem o conjunto de atividades materiais ou
simbólicas geridas por autoridades públicas (BOLÁN, 2006, p. 60). São o
conjunto de ações realizadas pelo Estado para atender às necessidades da
sociedade, direcionadas ao bem comum e que são implementadas segundo
decisão do governo. São portanto, políticas resultantes de decisões e atos de
governantes, destinadas à resolução de determinados problemas coletivos
para os quais são necessárias a distribuição de bens e recursos (Idem, p.
60). O Estado é quem estabelece quais fins públicos são possíveis de serem
realizados, assim como os instrumentos e as opções de ação.
A política pública pressupõe a participação pública ou seja,

o procedimento que permite a uma sociedade implicar-se na tomada


de decisões sobre políticas que lhe concernem: no caso da planifica-
ção, compreende os processos que tornam possível a indivíduos ou
grupos incidir sobre os resultados dos planos que lhes afetam (FER-
NÁNDEZ, 2006).

Entre as política públicas encontra-se a política cultural, que não se resume


em ações do Estado, mas que abarca o vasto conjunto de instâncias, agen-
tes, instituições e organizações com vistas ao financiamento, desenvolvi-
mento e acesso equitativo das pessoas aos espaços de criatividade e difusão

106
artística, ao patrimônio cultural, à industrias culturais (livro, audiovisual,
música, etc.) e à comunicação.
Com esses propósitos essa política cultural compreende um

programa de intervenções realizadas pelo Estado, entidades privadas


ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades
culturais da população e promover o desenvolvimento de suas repre-
sentações simbólicas (COELHO, 1997, p. 293).

Para que seja efetivada, essa política requer um “conjunto de iniciativas,


tomadas por esses agentes, visando promover a produção, distribuição e
o uso da cultura, a preservação e a divulgação do patrimônio histórico e o
ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável “ (Idem).
Não se trata, reafirmamos, de uma tarefa meramente administrativa, pois
envolve “conflito de ideias, disputas institucionais e relações de poder na pro-
dução e circulação de significados simbólicos” (MCGUIGAN, 1996, p. 01).
Para que essa política seja compreendida é imprescindível a clareza do que
seja cultura.
Por cultura entendem-se os valores, práticas e representações que compre-
endem toda atividade humana. Nela se expressa a totalidade da experiência
apreendida nas relações sociais, as convenções, os valores.

a cultura pode ser considerada [...] como o conjunto dos aspectos


distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracte-
rizam uma sociedade ou um grupo social. Ela engloba ademais das
artes e as letras, os modos de vida, os direitos fundamentais ao ser
humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças (CORTÉS,
2006, p. 25).

A cultura é então “o conjunto de traços distintivos, espirituais e materiais,


intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo so-
cial” (UNESCO, 1982). É ela que proporciona ao indivíduo a capacidade de
refletir sobre si mesmo e discernir os valores e efetuar escolhas. A cultura
se expressa nas criações artísticas, ou seja, nos processos de produção dos

107
bens criativos, na difusão dessa criação e no consumo dos frutos da criati-
vidade humana (BOLÁN, 2006).
Em face da amplitude conceitual da cultura, a política cultural se carac-
teriza por uma gama muito ampla de possibilidades que estão mais além
das políticas setoriais relacionadas com a arte e a educação artística e nelas
se incluem o fomento à criatividade, à proteção do patrimônio, o apoio às
criações e à recepção artística e o consumo cultural, a interlocução com
diferentes agentes culturais, a geração de um marco normativos no qual a
cultura se desenvolve (BOLÁN, 2006, p. 63).
É uma política na qual se vê a soma total dos usos, ações ou ausência de ações
de uma sociedade, dirigidas à satisfação de certas necessidades culturais através
da ótima utilização de todos os recursos materiais e humanos disponíveis a
uma sociedade determinada em um dado momento (UNESCO, 1976).
Essa política tem por objetivo a gestão da atividade criativa da sociedade,
tanto a erudita como a que se denomina popular e que consiste em ordenar,
hierarquizar ou integrar um conjunto heterogêneo de atores, discursos, or-
çamentos e práticas administrativas (BOLÁN, 2006).
Por isso mesmo, ela envolve diversos agentes que participam do campo cul-
tural e que tratam tanto de seu sentido simbólico quanto dos fins práticos e
imediatos como o desenvolvimento urbano e a promoção turística.

A política de proteção do patrimônio cultural como política


pública

A gestão do patrimônio cultural tem como finalidade a conservação de de-


terminados elementos, produzidos pela atividade humana em um passado
remoto e que perduraram até o presente. A preocupação da gestão é a de
preservar, para a posteridade, os bens patrimoniais. Essa proteção se inclui
entre as ações da política cultural.
A UNESCO é a entidade responsável pela proteção jurídica internacional
do patrimônio cultural. Sua ação se faz por meio da administração de acor-
dos entre os Estados membro da organização, entre os quais as diversas
convenções e recomendações destinadas a proteger os bens culturais.
Cada Estado membro, por sua vez, normatiza como deve ser a gestão na-
cional. No Brasil, a participação na política de proteção do patrimônio en-

108
contra amparo na Constituição Federal de 1988, que em seu Artigo 216
define:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza ma-


terial e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, porta-
dores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I)
as formas de expressão; II) os modos de criar, fazer e viver; III) as
criações cientificas, artísticas e tecnológicas; IV) as obras, objetos,
documentos, edificações e demais espaços destinados às manifes-
tações culturais; V) os conjuntos urbanos e sítios de valor históri-
co, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e
cientifico (BRASIL, 1988).

Essa mesma Constituição dispõe que: “§1º - O Poder Público, com a co-
laboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural
brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e de-
sapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação” (Idem).
No Artigo 30 fica explícito que “compete aos municípios promover a prote-
ção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação
fiscalizadora Federal e Estadual”.
Com base nesse artigo, o município é o executante da política patrimonial,
tendo como parceiros representantes do setor público e privado na elabo-
ração, discussão e decisão com relação ao que deve ser patrimonializado.
Esses representantes se organizam em forma de conselhos, instrumentos de
gestão democrática previstos na Constituição de 1988, uma forma de partici-
pação que inclui representações estatais e das entidades da sociedade civil, que
decidem a respeito da elaboração e implementação das políticas patrimoniais.
Os conselhos de políticas públicas possibilitam um maior controle social
das políticas produzidas e articulam representantes da Sociedade Civil e do
Estado, em composição paritária, eleita (GOHN, 2003). Os conselhos po-
dem ser de caráter consultivo, como mero instrumento de consulta estatal,
ou deliberativo, como instrumento de determinação e decisão das políticas.
A partir do estabelecido no Artigo 30 da Constituição Federal, os municí-
pios criaram conselhos de cultura e/ou de preservação do patrimônio.

109
Os conselhos da política patrimonial são instrumentos de gestão democrá-
tica, no qual os representantes da comunidade atuam como conselheiros,
numa interface entre o Estado e a sociedade. A gestão ocorre por meio de
instrumentos de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapro-
priação de bens.
Com a emenda constitucional de 1996 foi ampliado ainda mais a possi-
bilidade de efetiva gestão uma vez que favoreceu a todos os conselhos de
patrimônio a terem composição paritária e atuação propositiva e decisória
a respeito dos meios de proteção dos bens móveis e imóveis.
No entanto, isso não significou a democratização do acesso para uma ges-
tão mais participativa pois as escolhas do que proteger são sempre atos po-
líticos que implicam em negociações, razão pela qual está sempre posta
a possibilidade de um conflito. A definição do que deve ser considerado
patrimônio cultural, como deve ser sua conservação, para que, para quem
e que usos dar aos bens considerados patrimônio são decisões que ocorrem
em um campo de negociações, não raras vezes, conflitivo.
Soma-se a isso o fato de que a criação dos conselhos gestores depende de
leis ordinárias estaduais ou municipais. Não é incomum a criação de con-
selhos meramente consultivos, que “restringem suas ações ao campo da
opinião, da consulta e do aconselhamento, sem poder de decisão ou delibe-
ração”, sendo muitas vezes conselhos opinativos, que se tornam um instru-
mento a mais nas mãos dos prefeitos e da elite” (GOHN, 2003, p. 8).
Dai resulta que grande parte dos conselhos de patrimônio se configuram
como estruturas corporativistas e com funções meramente consultivas.
Tudo isso explica porque as ações para a divulgação do patrimônio, a ma-
nutenção e a revitalização de áreas históricas tenham sido implementadas
em poucos municípios (CALABRE, 2009)
Também não se pode ignorar que:

no país, durante muito tempo predominou a ideia de cultura asso-


ciada à ilustração, ou seja, ter cultura ou promover a cultura seria
sinônimo de levar a educação e a arte erudita para o conjunto da po-
pulação. Era a ideia de que o Estado deveria levar cultura para o povo
ou elevar a cultura do povo, buscando alcançar padrões culturais de
matriz europeia, preservando algumas manifestações folclóricas em

110
seu estado “original”. Entendimento que “ainda resiste enraizada no
imaginário de parte significativa da sociedade” (CALABRE, 2009, p.
90).

Disso decorre que a promoção de cultura é muitas vezes considerada

sinônimo de realização de atividades de entretenimento e lazer, ou


seja, para ter uma política de cultura, basta que haja a realização de
espetáculos e eventos. Uma hipótese bastante provável é a de que, ao
responder que o principal objetivo da política cultural do município
era a dinamização das atividades culturais, o gestor estivesse se refe-
rindo à realização de eventos isolados (Idem).

Tem-se, então, a possibilidade efetiva da participação da sociedade civil


na política patrimonial; no entanto, os entraves para a gestão democrática
dessa política ainda são muito presentes. Os conselhos tanto podem ser
meios de se alcançar a democracia participativa e melhoria da gestão pú-
blica, como podem se converter em mecanismos reprodutores de práticas
patrimonialistas e clientelistas.
A participação que objetiva a democratização da política nos conselhos,
para ser efetiva, precisa ser qualificada (GOHN, 2003). Superar essa situa-
ção requer investir na formação de pessoal, educar para a política pública
de cultura.

Desafios para a participação na política de proteção do patrimônio

A política de proteção do patrimônio, nos dizeres de Canclini (1999), se faz


num campo de disputa econômica, política e simbólica, e é permeado pela
ação de três tipos de agentes: o setor privado, o Estado e os movimentos
sociais.
O setor privado expressa seus interesses no assunto pois essa política im-
plica em regulação do solo urbano e pode ser um fator limitante para a
mercantilização e especulação imobiliária. O Estado, por sua vez, tende a
converter o patrimônio em abstrações político-culturais, símbolos de uma
identidade nacional na qual se diluem as particularidades e os conflitos.

111
Em relação aos movimentos sociais, considera o autor citado, faz pouco
tempo que a defesa e o uso do patrimônio se converteu em objeto de inte-
resse dos movimentos sociais. Segundo ele, isso se explica pois o patrimô-
nio foi durante muito tempo entendido como um assunto de especialistas
do passado: restauradores, arqueólogos, historiadores, às vezes antropólo-
gos. Só recentemente esse entendimento foi modificado em face da consta-
tação de que o patrimônio é muito mais do que isso, é um processo social
que se acumula, se renova, gera renda e é apropriado de forma desigual por
diversos setores (CANCLINI, 1999).
Em seu entendimento, a pouca preocupação dos movimentos sociais tam-
bém se explica pois,

por décadas, la izquierda cometió el grave error de juzgar, por ejem-


plo, a la lucha por preservar monumentos coloniales como tarea del
guardarropa evocativo de la derecha, quizás algo plausible, pero de
ningún modo tarea prioritaria. En su preocupación por adueñarse
del sentido del porvenir, la izquierda le “regaló” el pasado a la de-
recha, reservándose sólo la cláusula de la interpretación correcta y
científica (CANCLINI, 1999, p. 21).

Recentemente, novos movimentos sociais, desde os populares urbanos até


os ecologistas, mudaram, ainda que lentamente, essa forma de ver e come-
çaram a se interessar pelo tema da conservação. Para tanto, argumentam
que a questão do patrimônio não é responsabilidade exclusiva do governo;
reconhecem que sem mobilização social será muito difícil que o governo
o vincule com as necessidades atuais e cotidianas da população, como no
caso de habitar os edifícios históricos e que o efetivo resgate do patrimônio
inclui sua apropriação coletiva e democrática. Para tanto, é imprescindível
“crear condiciones materiales y simbólicas para que todas las clases puedan
compartirlo y encontrarlo significativo” (Idem).
Segundo Canclini, não é possível uma política efetiva de preservação e de-
senvolvimento do patrimônio se este não for valorado adequadamente pelo
público dos museus e sítios arqueológicos, os habitantes dos centros his-
tóricos, os receptores de programas educativos e de difusão (Idem, p. 25).
A política patrimonial inclui não somente ações para a conservação do
bem, como para sua valorização e seus usos sociais e turísticos. É assim

112
uma ação complexa, que implica na necessidade de “fortalecer a função
primordial das políticas públicas, em parceria com o setor privado e a so-
ciedade civil” (UNESCO, 2005, p. 211). Algumas dessas ações se fazem no
entrelaçamento e em interfaces com a política do turismo.

O patrimônio cultural em aproximação com a política do turismo.

A defesa do patrimônio comporta uma pluralidade de discursos e práticas.


Os grupos que atuam em defesa do patrimônio em boa parte das vezes o fa-
zem em resposta a problemas apresentados pelas profundas transformações
e pelas incertezas em face aos projetos de globalização (ZANIRATO, 2011).
Se esse é o ponto que os une, há diferenças na condução de suas demandas
que explicam propostas diferenciadas e respostas igualmente diferenciadas.
Essas diferenças se expressam no âmbito territorial de atuação, no caráter
de institucionalização de cada um, na concepção de patrimônio e nas ativi-
dades que protagonizam (HERNÁNDEZ, 2008, p. 47).
Alguns grupos atuam em âmbitos territoriais muito amplos, como a rede
iberoamericana SOS Monuments, outras, pelo contrário, centram sua ação
em bairros; uns são ligados a instituições, outros são independentes e fun-
damentam grande parte de suas ações na confrontação com as instituições
públicas.
No que diz respeito às ações, há os que defendem o patrimônio cultural
aspirando sua restauração e conservação, já outros tem uma visão integral
do patrimônio e aspiram aos usos sociais e à ativação de novos referentes.
Uns veem o patrimônio desde o terreno turístico com argumentos em favor
do desenvolvimento local e ecologicamente sustentável.
Os que assim agem, argumentam que os locais detentores de atributos
culturais e naturais expressivos devem investir na divulgação de suas qua-
lidades, como um meio de atrair visitantes que gerem renda ao local. A
atividade turística converte-se assim numa oportunidade de divulgar o pa-
trimônio, atrair visitantes, gerar empregos, incrementar rendimentos eco-
nômicos, favorecer a comercialização de produtos locais e o intercâmbio de
ideias, costumes e estilos de vida.
É inegável que o turismo está adquirindo cada vez mais espaço na eco-
nomia mundial, tornando-se uma das principais atividades econômicas,

113
chegando a representar 10% do PIB mundial. A força do empreendimento
turístico é tamanha que analistas desse setor insistem em afirmar que o tu-
rismo pode ser “um fator de esperança para o desenvolvimento dos povos,
em particular dos países do Terceiro Mundo” (BALLART, 2005, p. 17).
De fato, o turismo pode contribuir para isso, mas não se pode ignorar que
a atividade turística não é inócua. Ela pode produzir efeitos negativos na
localidade que o adota em face do incremento do consumo do solo, de água
e energia, da modificação da paisagem, do aumento da produção de resí-
duos, da perda de valores tradicionais e do aumento dos preços que afeta a
população local (SANTAMARTA, 1998).
Por isso mesmo, a Organização Mundial do Turismo enfatiza a importân-
cia da prática de um turismo de bases sustentáveis, ou seja, um turismo
“que satisfaz as necessidades dos turistas e das regiões anfitriãs, ao mes-
mo tempo em que protege e melhora as oportunidades do futuro”. Para
que esse tipo possa ser aplicado é necessário que a gestão de seus recursos
“satisfaça as necessidades econômicas, sociais e estéticas ao mesmo tem-
po em que respeite a integridade cultural, os processos ecológicos essen-
ciais, a diversidade biológica e os sistemas de apoio à vida” (FULLANA e
AYUSO, 2002, p. 30).
Para que isso efetivamente ocorra é preciso que haja:

a) a compatibilidade com a capacidade de carga do sistema natural, eco-


nômico e social, ou seja, a adaptação do processo de desenvolvimento das
necessidades do mercado, prevenindo os riscos e preservando os recursos
naturais, além de favorecer a evolução da estrutura econômica local;
b) a integração com o desenvolvimento econômico local a partir da renova-
ção de setores tradicionais da economia e estimulando a criação de novos
setores;
c) a inserção no sistema de planificação estratégica centrada no desenvol-
vimento local;
d) a gestão integrada e participativa do desenvolvimento turístico local,
calcado na ampla e rigorosa participação dos agentes sociais e da própria
população local (PRATS, 2005, p. 19).

114
O turismo sustentável que conta com o patrimônio cultural como atrativo o
vê como um produto capaz de gerar riqueza e emprego, dá especial atenção
a sua conservação e garante o desfrute do mesmo pela população do local
onde o bem patrimonial se encontra. Para isso, é fundamental a convergên-
cia entre as políticas culturais e turísticas, e se torna necessário estabelecer
um nexo que reforce as complementaridades postas.

Interações entre a política patrimonial e a política do turismo

As políticas e a gestão pública são fundamentais para o desenvolvimento do


turismo. No campo do turismo cultural, a conservação do patrimônio ma-
terial e imaterial circunscreve-se nos limites de mudanças aceitáveis para
o conjunto das populações envolvidas e legitimamente representadas pelos
gestores públicos e pelas instituições democráticas.
No estudo das relações entre turismo e cultura, além dos equipamentos
da estrutura de mobilidade e hospedagem, que são de natureza tangível,
identifica-se uma série de aspectos intangíveis do campo de circulação dos
atores na produção e no consumo do produto turístico. Com essa identifi-
cação, tornam-se mais viáveis o planejamento, a implementação e o contro-
le de estratégias de gestão do turismo cultural. Além disso, ao mesmo tem-
po em que o turismo cultural constitui-se em um sistema de comunicação,
a sua gestão organizacional contempla a articulação de diversas formas de
intercâmbio em sistema de governança, visando ao efetivo desenvolvimen-
to socioeconômico. (TOMAZZONI, 2009).
O turismo e o lazer originam-se e constroem-se em um amplo e complexo
processo de difusões e de interações culturais. As identidades e diversida-
des culturais, transformadas em produtos de consumo, têm contribuído
significativamente para o desenvolvimento do turismo como atividade so-
cial e econômica. (PIRES, 2001). Por meio dos patrimônios culturais, em
suas mais diversas formas e manifestações, o turismo tem conquistado visi-
bilidade e valorização no mercado cada vez mais competitivo e globalizado.
A dimensão cultural do turismo abrange a valorização e o fortaleci-
mento das identidades e manifestações da cultura regional. Por meio
das manifestações e expressões culturais (costumes, tradições, hábitos,
arte, arquitetura) potencializam-se os atrativos turísticos. Cria-se um
ambiente mais favorável ao desenvolvimento do turismo em razão da

115
maior satisfação e fidelização dos clientes, proporcionando-se mais re-
tornos para as empresas e organizações que se beneficiam com o fluxo
de turistas apreciadores da oferta de atividades culturais. (ARANTES,
1995, HALL, 2003).
A hospitalidade é um dos traços marcantes da cultura como diferencial dos
serviços de uma comunidade turística. É por meio do significado, social-
mente assimilado do turismo, que se produz a oferta turística de serviços e
produtos turísticos. Essa oferta, entretanto, não é necessariamente material,
mas cultural. A linguagem da oferta turística reúne relatos da história e
de aspectos intangíveis e abstratos das manifestações culturais, sintetizados
pelos conceitos de cultura e de cultura popular.
Entender o sentido e as implicações sociais e econômicas da cultura é fun-
damental para analisar a sua relação com o turismo e para construir novas
teorias que possibilitem conhecer e conceituar o próprio turismo, validan-
do conhecimentos ou elaborando novos conhecimentos sobre o turismo
cultural. Sem cultura não há turismo, e os elementos da dimensão cultural
são fundamentais para o planejamento e gestão do desenvolvimento sus-
tentável do turismo. (BARRETTO, 2000; BENI, 1997).
O planejamento e a gestão sustentáveis do patrimônio e do turismo cul-
turais são, portanto, fundamentais para controlar os impactos negativos
do crescimento da atividade turística, tanto sobre o meio ambiente quanto
sobre as identidades e as manifestações das comunidades locais. (BONIFA-
CE,1996) O turismo deve constituir-se em meio virtuoso de conservação
da memória histórica, com base na humanização das relações de produção
e de mercado, em cujo processo deve prevalecer o empreendedorismo, a
criatividade e a inovação dos atores nativos ou autóctones das comunida-
des locais. Nesse sentido, são vários os exemplos de estudos que contribuem
significadamente para o conhecimento das políticas e da gestão pública do
desenvolvimento do turismo do Brasil.

Políticas e gestão pública do turismo cultural

O conhecimento da história das públicas de turismo do Brasil ainda é li-


mitado. Maior valorização da história das políticas públicas de turismo
contribuiria para destacar as experiências de desenvolvimento dos diversos
destinos (estados, município, regiões) do país.

116
O advento das políticas públicas de turismo no Brasil foi no primeiro go-
verno Vargas, no Estado Novo, ao final década de 1930. O turismo foi con-
trolado ideologicamente pelo Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP) e o Serviço de Inquéritos Políticos e Sociais (SIPS). (SOARES, 1995).
Como estratégia de marketing internacional do Brasil, o governo Juscelino
Kubitschek de Oliveira criou, em 1968, a Companhia Brasileira de Turismo
(Combratur). No regime militar, a criação do CNTur e da Embratur, na
década de 1960, representaram esforços de institucionalização das políti-
cas federais do setor. Na década de 1970, o turismo foi relegado a segundo
plano, mantendo-se nessa condição na década perdida de 1980. A trans-
formação da Embratur em Instituto Brasileiro de Turismo e o Plantur, do
Governo Collor, foram indicadores de destaque à política nacional do setor
na década de 1990.
A estratégia, para o setor, do governo Fernando Henrique Cardoso foi a
descentralização dos investimentos, por meio do Prodetur-NE, do Prode-
tur-Amazônia Legal e da criação do Programa Nacional de Municipaliza-
ção do Turismo – PNMT (1994-2002).
Com a criação do Ministério do Turismo, em 2003, pelo governo Luis Iná-
cio Lula da Silva, fortaleceu-se a institucionalização do setor. Os Planos
Nacionais de Turismo (2003 - 2007 e 2007 - 2010) representam iniciativas
consistentes de planejamento estratégico setorial. O Programa de Regio-
nalização do Turismo – Roteiros do Brasil – PRT (2007), “Uma Viagem de
Inclusão”, e o Projeto dos 65 Destinos Indutores do Turismo Regional, são
considerados incoerentes por diversos autores. Sua implementação foi exó-
gena, e ter-se-iam desconsiderado as próprias identidades e participações
democráticas regionais.
O Plano Nacional de Municipalização do Turismo (PNMT) poderia ter
sido mantido, concomitantemente ao Programa de Regionalização do Tu-
rismo (PRT), com base no sistema político-administrativo constitucional
brasileiro. (RODRIGUES, 2012).
O desafio das políticas públicas de turismo é a inovação, apesar dos empe-
cilhos burocráticos. Para a gestão pública de qualidade, aplicam-se as mes-
mas estratégias inovadores das empresas privadas. O conceito de inovação
das políticas públicas é fundamental para a competitividade do turismo
municipal, regional e nacional. Entre as várias áreas do sistema interdisci-
plinar do turismo, os estudos da geografia são fundamentais para as políti-
cas públicas do turismo do Brasil.

117
Região é um dos conceitos mais importantes da geografia, além de ser de
amplo domínio acadêmico e social. O conceito tornou-se reconhecido des-
de os estudos de Vidal de La Blache (1845 – 1918), um dos pioneiros da
teoria geográfica. (LENCIONI, 2008). Esse conceito é aprofundado pela
ideia de território-rede ou por territórios zonais. Região é conceito em ela-
boração, ainda não plenamente definido, mas que motivou muitos estudos
e publicações e que tem proporcionado relevantes contribuições em diver-
sos campos, como na economia, administração, sociologia, antropologia,
além da própria geografia, bem como do turismo, agregando-lhe produti-
vas visões e análises.
A estruturação de regiões turísticas surgiu com o PNMT, cujo objetivo
era a descentralização da gestão do turismo em âmbito municipal. Com o
PRT, cuja diretriz é a gestão do turismo em escalas regionais, fortaleceu-
-se a ideia de gestão na escala dos municípios. As diretrizes políticas do
turismo brasileiro, portanto, tornaram-se dialéticas. (FRATUCCI, 2013).
As políticas de desenvolvimento do turismo contextualizam-se na abran-
gência espacial, cuja configuração pode ser local ou regional. Essa visão
aplica-se às políticas públicas de turismo das três instâncias federativas,
nação, estados e municípios. As secretarias estaduais e municipais têm
políticas próprias e adequadas às realidades locais. Na maioria dos casos,
o turismo tem-se desenvolvido pela descentralização e fortalecimento das
secretarias municipais.
Uma das funções desses órgãos é a realização do inventário da oferta tu-
rística, presente em praticamente todas as políticas públicas nacionais pro-
mulgadas (incluindo a atual Lei Geral do Turismo). Para a gestão compe-
tente do turismo, é necessário conhecimento de sua realidade, por meio in-
dicadores confiáveis, pois não se pode administrar o que não se conhece. A
ideia de que os indicadores turísticos são complexos dificulta sua sistema-
tização. Os indicadores devem ser simples e objetivos. (SCHUCH, 2001).
Os inventários são os instrumentos aplicados para coleta de informações e
de oferta e desempenho do setor. Na era da tecnologia da informação e da
comunicação, na grande maioria dos municípios, não há sistemas de indi-
cadores básicos dos serviços, produtos, atrativos e infraestrutura turísticos.
Por um lado, a elaboração de políticas públicas depende de indicadores
consistentes, por outro, são as políticas públicas que definem os métodos
de identificação e sistematização de indicadores do turismo. Na cidade de
São Paulo, o Observatório de Turismo, da São Paulo Turismo (SPTuris), or-

118
ganismo municipal, sistematiza e disponibiliza indicadores dos segmentos
do oferta e do desempenho do turismo em portal eletrônico.
Outra premissa das políticas públicas de turismo é a formação de redes,
com base nas visões de lugar, território, espaço e região. De acordo com
o Ministério do Turismo (2007), o embrião da rede nasce quando dois ou
mais atores têm objetivos comuns. Nesse contexto, têm-se diversos exem-
plos, tanto em âmbito de municipalização quanto em âmbito de regiona-
lização. A inovação em turismo contempla a criação de roteiros regionais.
Entre os exemplos de roteirização, os Circuitos Turísticos de Minas Gerais
mostram avanços e desafios da iniciativa de regionalização do turismo em
contexto de território-rede. Suas experiências de articulação de diversas
realidades socioeconômicas e suas estratégias de planejamento, gestão e
desenvolvimento do turismo pode ser modelo para novos roteiros. (EM-
MENDOERFER ET. AL., 2001; SOARES, 2012).
Outro exemplo de iniciativa que preserva a identidade cultural por meio do
turismo é a Rede Brasilidade Solidária, que foi concebida para promover o
desenvolvimento local por meio do turismo e de contribuir para minimizar
os problemas socioambientais, com base na cooperação e na solidariedade.
As diretrizes teóricas e metodológicas atuação fundamentam-se na atuação
política dos atores para atuação no campo do turismo. Uma das realizações
da Rede Brasilidade Solidária é o programa Retrato Brasil, que mostra os
modos de implantação e de organização de turismo solidário. Para os ges-
tores da rede, “apesar das oportunidades do cenário turístico, existe grande
quantidade de grupos e de pessoas que têm dificuldade em empreender um
novo negócio nesse segmento contribuam para o desenvolvimento local”.
Em Santa Catarina, várias são as políticas e ações. O mapeamento do es-
tado em zonas e a instigante criação das Secretarias de Desenvolvimento
Regional (SDR) motivam análises sobre as vantagens e desvantagens do
sistema político-administrativo do Brasil, que se concentra na delimitação
dos três entes federativos – união, estados e municípios. As características,
os problemas e as dificuldades da regionalização e do desenvolvimento in-
tegrado do turismo do Vale Europeu suscitam reflexões sobre as realidades
de todas as regiões turísticas do Brasil. A falta de espaços de debate seria o
maior problema da integração e não a falta de interesse dos atores. (BOR-
TOLOSSI ET. AL., 2013).
Na Rota da Amizade, uma das principais iniciativas de roteirização de turis-
mo no estado de Santa Catarina, a questão central é a estruturação da rede

119
que integre o trade e o poder público e as instituições de ensino e pesquisa,
por meio da governança, no sentido de planejamento e gestão democráticos
e participativos do turismo. Alguns organismos públicos de turismo não têm
atuado no exercício de seu papel de governança. Infere-se que a maior difi-
culdade é a criação de instâncias, organizações ou lideranças, que coordenem
o processo de formação da rede, motivando os atores, que devem se com-
prometer com as propostas. Os atores reconhecem a importância da Rota
da Amizade, e a rede municipal deve fortalecer as relações de parceria e de
cooperação com a rede da rota regional. Os empresários que compõem o
trade turístico local são céticos quanto à cooperação, mas o que faltaria não
seria interesse deles e sim a coordenação do processo de formação da rede de
turismo, com base na governança. (CONTE et. al. 2013).
No mesmo estado, o projeto Viva Ciranda é realizado em Joinville (SC), no
turismo rural, um dos segmentos de maior potencial no Brasil. A iniciativa
mostra a importante e exitosa estratégia de articulação entre os atores do de-
senvolvimento do setor, destacando a demanda turística, constituída por alu-
nos e professores. (KLEIN E SOUZA, 2013). Os educadores são também atores
da realização do projeto, representando a fundamental participação e atuação
das instituições de ensino. Neste sentido, o grande diferencial do projeto, que
é a integração entre os campos do turismo, da educação e da cultura, por meio
de dinâmica pedagógica prática e interativa. A articulação desses campos cons-
titui ciclo virtuoso de ensino, aprendizagem, incentivo à preservação das ma-
nifestações da identidade da cultura local e ao rural como atividade de desen-
volvimento humano e socioeconômico. O turismo rural pedagógico tornou-se
uma prática economicamente rentável para os proprietários rurais.
Além do potencial turístico-cultural do Brasil e das oportunidades de im-
plementação der políticas e de gestão pública do turismo em âmbitos mu-
nicipal e regional, por meio de roteiros, diversas realizações também po-
dem ser destacadas na área de eventos. As festas temático-culturais, como o
Carnaval do Rio de Janeiro, a Festa da Uva de Caxias do Sul, a Oktoberfest
de Blumenau e o Natal Luz de Gramado são exemplos de realizações plane-
jadas e coordenadas pelo setor público.

Considerações finais

É impossível pensar em políticas públicas e em planejamento e gestão do


patrimônio e do turismo sem contemplar a cultura como essência da oferta

120
turística. Se as políticas culturais podem ser implementadas sem contem-
plar o turismo, a recíproca não é verdadeira. As políticas de turismo depen-
dem atavicamente do patrimônio cultural, em suas diversas modalidades
e manifestações. Uma vez que se priorizem os interesses das comunida-
des locais no próprio bem estar e no desenvolvimento socioeconômico, o
turismo pode ser justificativa importante das políticas de preservação da
memória e do patrimônio culturais.
Para isso há que se ter clareza da necessidade de participação cidadã na
regulamentação dos usos sociais do patrimônio cultural, entre os quais os
usos turísticos. A simples exposição do patrimônio sem a devida regulação
pode acarretar processos negativos, entre os quais a destruição dos bens
e de seu entorno, assim como o deterioro social, justamente pelo fato de
patrimônio ser considerado prioritariamente como uma mercadoria capaz
de gerar lucros.
Por essa razão, há que se fortalecer a integração entre as políticas públi-
cas de cultura e as políticas públicas de turismo. A prioridade deve ser o
desenvolvimento local ou endógeno, com base no respeito aos interesses
das comunidades em sua participação nas formulações das diretrizes de
planejamento e de gestão. O que está em jogo é a capacidade de se efeti-
varem políticas públicas que propiciem a mais ampla e democrática par-
ticipação social.
Segmentos da cultura popular e do patrimônio cultural marginalizados po-
dem ser protegidos, conservados e valorizados pelas políticas de turismo
cultural. É fundamental que os gestores do turismo conheçam e apliquem
os conceitos de cultura e de cultura popular. As políticas públicas devem
abranger a educação e a qualificação, por meio de programas de ensino, de
estudos, pesquisas e cursos para valorizar, conservar e desenvolver a cultu-
ra popular como fonte de sabedoria, conhecimento e atratividade turística.
Os inventários das tipologias de manifestações e produções culturais (arte-
sanato, música, construções históricas, biografias, crenças, lendas, rituais,
receitas, jogos) deveriam ser mais articulados e integrados pelas organiza-
ções públicas setoriais da cultura e do turismo. O incentivo à conservação
e à produção culturais proporciona trabalho e renda aos produtores, em
contexto de socialização de oportunidades e benefícios. A implementação
de políticas de turismo cultural justifica-se, sobretudo, em razão do desen-
volvimento socioeconômico local, cujo conceito transcende a visão redu-
cionista dos retornos materiais.

121
O desenvolvimento socioeconômico é processo político-participativo, que
envolve os atores, desde a definição das diretrizes das políticas públicas,
até a produção dos bens e serviços culturais, bem como a apropriação dos
retornos e benefícios gerados pelo mercado turístico. O reconhecimento
dos valores imateriais, espirituais e culturais dos destinos pelos turistas é a
essência do fortalecimento da autoestima e da motivação das populações
autóctones ou locais. Essa dimensão interativa entre visitantes e visitados
constitui a hospitalidade como fundamento das políticas pública do patri-
mônio cultural e do turismo.
A oferta turística transcende as fronteiras geográficas, configurando-se re-
gionalmente. Ainda que a gestão pública restrinja-se aos limites político-
-administrativos constitucionais, o mercado da demanda não se circuns-
creve às delimitações municipais. A articulação entre as políticas públicas
nas várias instâncias (federal, estadual e municipal) é complexa. A regiona-
lização do turismo não é administrativamente institucionalizada e depende
de acordos de cooperação entre os atores públicos e privados do setor. As
prefeituras e secretarias municipais são obrigadas a cumprir as determina-
ções constitucionais da administração públicas, mas diversas ações podem
ser realizadas pelo conjunto de municípios do território regional. Exemplos
de políticas e de gestão pública do turismo de base local e de conservação
das identidades culturais são diversos no Brasil. Os casos inovadores, de
sucesso, como roteiros e festas temáticas, são referências para novas inicia-
tivas de regionalização e de roteirização do turismo.

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125
COMUNICAÇÃO E CONTROLE SOCIAL GLOBAL

Dennis de Oliveira, Marco Antonio Bettine

Introdução

Mudanças significativas impactaram a sociedade nas últimas décadas do


século passado. O sistema de mundo bipolar construído após a II Guerra
Mundial, com a confrontação do chamado bloco capitalista liderado pelos
Estados Unidos e o bloco “socialista”, liderado pela extinta União Soviética
termina com a vitória do primeiro. O marco simbólico deste final do mun-
do bipolar foi a queda do Muro de Berlim, em 1989.
A vitória do bloco estadunidense deu um contorno próprio ao fenômeno
que se chamou de globalização. Esta pode ser definida como um processo
civilizatório marcado pela universalização de três paradigmas:
a-) a economia de mercado;
b-) a democracia liberal;
c-) a liberalização e desregulamentação dos fluxos de capitais.
Este processo civilizatório conformou um modelo de mundo “conectado” ga-
rantido pelo extraordinário desenvolvimento das tecnologias de informação
e comunicação. As infovias garantiram tanto uma possibilidade de irradiação
ideológica deste processo civilizatório como nunca visto antes na história da
humanidade, como também possibilidades novas para a expansão do capital
tanto na indústria da cultura e da mídia, e ainda na organização das novas es-
truturas produtivas que se configuraram como uma linha de montagem global.
O processo civilizatório significou também um momento de avalanche ide-
ológica conservadora sem precedentes. Os projetos utópicos foram coloca-
dos em cheque, principalmente com a ideia de fim das “grandes narrativas”
e “crise dos paradigmas”. Alguns conceitos como o de pós-modernidade
foram apropriados como qualificativos ideológicos no sentido de serem
sustentadores da ideia de uma era do fim dos projetos, da emergência do
“homem astuto” em lugar do “homem planejador”.
Contraditoriamente, o processo civilizatório da globalização neoliberal fez
emergir novos conflitos, principalmente no campo das perspectivas cultu-
rais e identitárias. O fundo desta contradição é de origem social embora
seja transmitida como de “conflito de civilizações”, próximo a ideia do pen-
sador ultradireitista Samuel Huttington (2009).
A guerra das civilizações profetizada pelo ideólogo estadunidense serve
como justificativa para a manutenção da poderosa indústria bélica da única
superpotência do planeta. No nível macro, o projeto geopolítico das gran-
des potências capitalistas vai no sentido de dissuadir pela via das ameaças
bélicas qualquer projeto soberano que emerja de nações do chamado Ter-
ceiro Mundo. A justificativa ideológica é sempre o desrespeito a qualquer
dos valores presentes no tripé do modelo da globalização neoliberal: ou
a não existência de um sistema de democracia liberal clássico (por isto,
os inimigos são sempre chamados de “ditadores”, “autoritários”, “opresso-
res”) e, contrariamente, os que são autoritários, opressores e ditadores mas
amigos do império tem sua existência justificada pelo papel que desempe-
nham na sustentação do modelo econômico hegemônico (como o caso das
monarquias autocráticas do Oriente Médio, caso da Arábia Saudita e do
Kuwait).
O poder global contemporâneo é sustentado por um tripé de monopólios:
o monopólio do dinheiro, o monopólio das armas e o monopólio da voz
(mídia).
Ideologicamente, o sistema de comunicação de massa ocupa um papel cen-
tral. Primeiro, é ele que faz a ponte e constrói este cenário mundial – o
mundo, hoje, é acessível pelas disponibilidades de acesso às informações
via o sistema de comunicação. Segundo, porque a comunicação se transfor-
mou no principal “intelectual orgânico” deste processo de globalização ne-
oliberal, conforme afirma Otávio Ianni.1 E, terceiro, que a própria indústria

1 IANNI, O. Enigmas da modernidade mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001

128
da comunicação e da cultura se transformaram na mais recente fronteira de
expansão e reprodução do capital, sendo ela própria, um “grande negócio”.

O monopólio do dinheiro

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman chama o momento em que vivemos


atualmente de “tempos líquido-modernos”. Para ele, este momento pode
ser caracterizado por várias traços, entre eles, destacamos o que ele chama
de “separação e iminente divórcio entre poder e política”.2
Para Bauman, o poder se desloca da esfera política para o domínio das
corporações privadas. A nova ordem econômica que emergiu do mundo
pós-Guerra Fria consolidou um novo paradigma do capitalismo em que os
processos produtivos de conectaram mundialmente formando uma grande
“linha de montagem global”. As corporações capitalistas passaram a arti-
cular diversas localidades produtivas, gerenciadas a partir de um comando
central. Alguns exemplos:
a-) a corporação Nike articula uma rede mundial de empresas e empreen-
dimentos que se responsabilizam pela produção de parte dos seus produ-
tos – confecção do material, pintura, acabamento, etc – tudo sob a direção
centralizada que confere algumas exigências de qualidade e de identidade
da marca.
b-) a corporação Boeing – fabricante de jatos – utiliza peças produzidas por
várias empresas ao redor do mundo, entre elas a própria Embraer brasileira.
Desta forma, a produção capitalista articula diversas dimensões e realida-
des produtivas, até mesmo trabalho em condições degradantes (como a
escravização de crianças na Tailândia para a produção de materiais para a
Nike ou de bolivianos, em São Paulo, para a confecção de roupas que rece-
bem a etiqueta da C&A e Marisa ou ainda o trabalho escravo empregado na
extração do minério tântalo na República Democrática do Congo, utilizado
para a fabricação de celulares e tablets). Com isto, conseguem otimizar ao
máximo os recursos dispendidos para a produção, aproveitando as condi-
ções mais favoráveis em cada país/lugar.

2 BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003

129
O capital passa, então, a pressionar os Estados nacionais a criarem condi-
ções mais favoráveis que são, nesta lógica, a desregulamentação do trabalho
e a liberalização dos fluxos de capital. Estas são as premissas principais para
a redução do Estado e, consequentemente, para o desmonte dos mecanis-
mos institucionais de proteção social.
Os dados abaixo comparam os PIBs de países com o faturamento das maio-
res empresas do mundo no ano de 2009, segundo a revista Fortune e o Fun-
do Monetário Internacional. A maior corporação global em termos de fa-
turamento é o WalMart (rede varejista) que teve um faturamento maior que
os PIBs da Argentina, Suécia, Arábia Saudita e próximo da Polônia.

130
A forma que a corporação WalMart conseguiu chegar a esta posição é evi-
dente. A empresa é conhecida, nos EUA inclusive, pelo desrespeito sistemá-
tico às leis e convenções de trabalho, impede os funcionários de se filiarem
aos sindicatos (punindo-os com demissão ou transferência para outras lo-
calidades) e há denúncias até mesmo de exploração do trabalho infantil.
O Wal Mart é o símbolo de um mundo marcado por brutal concentração
de riquezas. Os seis herdeiros de Sam Walton, fundador da empresa, tem
uma fortuna calculada em US$93 bilhões, equivalente a renda acumulada
pelos 30% mais pobres dos EUA!3
Uma das áreas mais importantes do poder global das corporações é o siste-
ma financeiro. Segundo dados do FMI e outras agências, entre 2007 e 2009
circulavam no mercado financeiro mundial o equivalente a 720 trilhões
de dólares em produtos financeiros e derivativos especulativos. O PIB de
todos os países do planeta, porém, somava apenas 62 trilhões, ou seja em
torno de 9% disto. O que significa que o mercado financeiro movimenta
91% de recursos “virtuais”, sem lastro. Comparando: o comércio mundial
movimentou 15 trilhões.
Este capital especulativo circula no mundo a partir de centros localizados
em determinadas partes do mundo. As movimentações destes centros es-
peculativos determinam, em boa parte, a saúde financeira de nações no
mundo todo, impondo situações que potencializam ou limitam os recursos
disponíveis para os Estados nacionais desenvolverem políticas públicas.
Assim, todo o universo político fica subordinado ao verdadeiro centro do
poder, o poder do capital.
O mapa abaixo mostra a desproporção da movimentação de recursos nas
bolsas de valores, um dos principais centros do capital especulativo. Este
mapa foi publicado em uma edição especial da revista “Le Monde Diplo-
matique”. Segundo a publicação, “apesar da emergência das Bolsas de Valo-
res asiática, os fluxos financeiros irrigam antes de tudo os países do Norte,
submetidos a uma concentração frenética”.

3 Ver o artigo de Heloisa VILELLA, “Herdeiros do WalMart mais ricos que os 30% mais pobres” no
portal “Vioomundo” (http://www.viomundo.com.br/denuncias/heloisa-villela-wal-mart-e-mais-rico-
que-os-30-mais-pobres.html, acessado em 18/10/2012)

131
O poder do capital ainda se manifesta pela institucionalização das cha-
madas agências de risco. Estas instituições criadas como empresas de as-
sessoria e consultoria para o grande capital definir as suas estratégias de
investimentos transformaram-se nos verdadeiros tribunais de julgamento
de nações. Ao atribuir-lhes notas ou conceitos favoráveis e desfavoráveis,
indicam ao capital especulativo os movimentos de entrada e/ou saída. Com
isto, uma nota desfavorável de uma agência de avaliação de risco significa
a saída imediata de uma imensa soma de recursos que, em um capitalismo
movido a especulação, pode significar a ruína de uma economia nacional.
Por esta razão, as medidas econômicas tomadas pelos governos nacionais
se direcionam para a satisfação não dos cidadãos que, teoricamente, os ele-
gem e os mantém, mas sim à aprovação destas agências que, em última
instância, representam os interesses do grande capital.

O monopólio das armas

O poder global que emerge do processo civilizatório da globalização neo-


liberal tem um segundo pé que é a indústria bélica, extremamente concen-
trada nos Estados Unidos da América.

132
O fim do bloco soviético e da sua articulação militar – o “Pacto de Varsó-
via” – transformou a OTAN e os EUA na “polícia do mundo” que sequer é
controlada pelos fóruns internacionais.
Segundo a revista The Economist, os gastos militares dos EUA são da ordem
de 700 bilhões de dólares, maior que o total de orçamento militar de 17
países, conforme se mostra no gráfico abaixo, retirado da revista. O valor
do orçamento militar dos EUA supera, de longe, o segundo colocado – a
China, que pouco passa dos 100 bilhões.

País Gastos militares em % PIB Em US$ bilhões


EUA 4,8 700
China 2,1
Grã Bretanha 2,7
França 2,3
Rússia 4,0
Japão 1,0
Arábia Saudita 10,4
Alemanha 1,3
Índia 2,7 Todos somados: 650
Itália 1,8 (inferior aos EUA)
Brasil 1,6
Coreia do Sul 2,8
Austrália 2,0
Canadá 1,5
Turquia 2,4

Fonte: Stockholm International Peace Reserach Institute (SIPRI)

As Forças Armadas dos EUA se organizam globalmente com a presença de


bases em todas as regiões do planeta, o que possibilita o deslocamento de
tropas de forma rápida para qualquer parte do mundo que for “necessária”.
Ao lado disso, os gastos vultosos no orçamento militar possibilita a sofisti-
cação tecnológica da máquina militar dos EUA.
Um exemplo disto é a guerra dos drones executada pelos EUA em regiões
do Paquistão dominada pelo grupo Al-Qaeda desde 2004. Drones são avi-
ões teleguiados, que permitem as forças armadas estadunidenses atacarem
regiões sem colocar em risco seus soldados. Eles dirigem estes aviões tran-
quilamente de bases localizadas no próprio território estadunidense, não
passam pelo desgaste de combaterem em um terreno hostil e não há perigo
de baixas – sempre um problema de desgaste político junto a opinião pú-
blica dos EUA. Guerrear virou uma tarefa prosaica, o soldado comparece à

133
base no seu horário de trabalho e depois pode tranquilamente voltar para
a sua casa. (Parks, 2011)
O desenvolvimento extraordinário desta política bélica possibilita também
uma nova fronteira para a expansão do capital. A indústria bélica no mun-
do cresce assustadoramente e chegou a faturar US$1 trilhão com as guerras
no Oriente Médio patrocinadas pelos EUA. A revista The Economist pu-
blicou também um ranking das principais indústrias de armamentos no
mundo que crescem com esta corrida:

Empresa Faturamento com venda de % da venda de armamentos


armamentos (em US$bi) sobre o total da receita
1º. BAE Systems (Ing) 33 95%
2º. Lockeehd Martin (EUA) 30 70%
3º; Boeing (EUA) 28 48%
4º. Northrop Grumman (EUA) 26 77%
5º. General Dynamics (EUA) 23 78%
6º. Raytheon (EUA) 21 91%
7º. EADS (Europa) 18 28%
8º. Finmecanica (Itália) 13 52%
9º. L3 Com (EUA) 12 82%
10º. Thales (França) 11 58%

Fonte: Stockholm International Peace Reserach Institute (SIPRI)

Percebe-se que das dez primeiras colocadas neste ranking, seis são dos
EUA – Lockheed Martin, Boeing, Northrop Grumman, General Dyna-
mics, Raytehon e L3 Communications, todas com faturamento que vão de
11 a 35 bilhões de dólares. A concentração aqui é semelhante a que se viu na
concentração do poder do capital – empresas norte-americanas e algumas
europeias dominando o cenário.
O crescimento da indústria de guerra não ocorre à toa. A concentração do
poder do capital conforme se viu no item anterior gera uma brutal desi-
gualdade, principalmente porque ele ocorre via a desregulamentação do
trabalho e o aumento da exploração do trabalho. O poder bélico aparece
assim, como um elemento de dissuasão de qualquer foco de rebeldia ante
a este processo civilizatório. É a tarefa que coube ao Estado – se o poder
se divorciou da política, conforme afirma Bauman, o poder de Estado não
desapareceu, apenas se concentrou e especializou como instituição repres-
sora. Esta acaba sendo a única razão de ser da existência do Estado.

134
O monopólio da voz

O terceiro ponto do tripé que constitui o poder global é o monopólio da


indústria da comunicação e da cultura. Neste aspecto, é importante apontar
algumas características.
A primeira delas é a transfiguração do sentido do que é jornalismo no seu
sentido original do termo para o que é mídia atualmente. O jornalismo
é produto do projeto moderno. Conforme afirma Ciro Marcondes Filho
(2001), a aventura do jornalismo se confunde com a aventura da moderni-
dade e do espírito burguês. Nos seus primórdios, o jornalismo significava
uma atividade voltada ao esclarecimento no sentido iluminista da palavra,
era a expansão da esfera pública para além dos círculos restritos dos cafés e
clubes das elites. Esta era a ideia de “quarto poder” – um poder que repre-
sentaria os cidadãos na fiscalização dos poderes da república, o Executivo,
o Legislativo e o Judiciário.
Esta primeira fase do jornalismo, do publicismo de ideias, da busca do es-
clarecimento e da ilustração, da representação de ideias, vai ser paulatina-
mente transfigurado para uma fase de mercantilização. Isto em função do
desenvolvimento das tecnologias produtivas, da percepção por parte das
classes dominantes de que este jornalismo de esclarecimento era, também,
apropriado pelas correntes socialistas e operárias (aqui é importante lem-
brar e registrar a participação de grande parte das lideranças socialistas nos
jornais da época) e também pelas possibilidades abertas do jornalismo se
transformar em uma nova dimensão de expansão do capital.
É aqui que se consolida o jornalismo como uma atividade comercial, que se
profissionaliza a atividade de jornalista e que se consolidam os cânones de
um jornalismo “neutro, imparcial e objetivo”. A própria ideia de “liberdade
de expressão” presente na maioria dos documentos liberais – “freedom of
speech” – vinculava-se a ideia de uma livre expressão de todos os segmentos
sociais e não apenas dos poderes constituídos. Liberdade de expressão é,
portanto, um direito da sociedade. A medida que o jornalismo se ar-
ticula como empresa, o capital “sequestra”, apropria-se deste direito público
e transforma o direito da “liberdade de expressão” em direito da “liberdade
do capital”.
Os grandes conglomerados jornalísticos que vão se formando permitem
que certos magnatas da imprensa cheguem ao cúmulo de de criar fatos,
como é a fala de Cidadão Kane (filme de Orson Welles), grande empresário

135
da comunicação inspirado em William Hearst, que se gabava de poder “in-
ventar uma guerra pelos seus jornais”.
Este poder da imprensa sofre uma transformação com a transfiguração
das empresas jornalísticas em empresas midiáticas. Entendemos aqui mí-
dia toda a transmissão de informação e entretenimento pelos dispositivos
tecnológicos de massificação. O esvaziamento da política como lócus de
debate público, o seu divórcio do poder, praticamente esvazia o jornalismo
tradicional – mesmo aquele manipulado pelos empresários – e a constru-
ção dos consensos ideológicos vai sendo erigida por uma indústria de en-
tretenimento midiático.
Muniz Sodré afirma que esta indústria da comunicação opera com meca-
nismos de sensibilização muito mais do que mecanismos racionais. A cons-
trução de imagens, de modelos de comportamento de consumo, de celebri-
dades midiáticas que passam a ganhar uma legitimação de fala acima das
autoridades tradicionais, tudo potencializado com a emergência de uma
sociedade imagética – aqui é importante destacar o marco que foi a entra-
da dos dispositivos midiáticos audiovisuais – criam um espaço de jogo de
seduções. Ele chama este processo de “modelo irradiante de midiatização”
que, segundo ele:

(...) dá-se uma equivalência generalizada das coisas, inclusive entre


sujeito e objeto. Em vez da troca simbólica, dá-se uma interatividade
movida por simulacros, redes ou centrais de comutação, que provoca
a autonomização das linguagens codificadas e dessubstancializa as
referências clássicas do real. (Sodré, 2006: p. 34)

A razão instrumental – aquela razão dissociada de aspectos éticos e voltada


única e exclusivamente para a reprodução do capital – criticada por Ador-
no e Horkheimer para demonstrar a falência do projeto iluminista também
reduz o seu espaço. A dominação contemporânea não se exerce pela razão
instrumental principalmente mas pelos mecanismos de sedução imagética.
A mesma concentração que se observa nos monopólios da armas e do ca-
pital acontece também na indústria cultural. Seis corporações globais do-
minam mais de 80% da produção midiática e cultural no mundo: Disney,
Time Warner, News Corporation, Viacom, Vivendi-Universal e Bertels-
mann.

136
Esta concentração unifica, sob uma mesma direção, produções midiáticas
voltadas para a informação, lazer e divulgação publicitária. Uma avalanche
de bens simbólicos circula pelas redes conectadas e dirigidas por estes cen-
tros irradiadores, construindo uma esfera de consumo.
A segunda questão a ser tratada é que esta estrutura de poder coloniza a
construção de identidades sociais atendendo as expectativas de um modelo
capitalista centrado nos nichos de mercado. Para McLaren (2000):
Os profissionais da publicidade e marketing podem cortar a sociedade em
segmentos ou subgrupos, cada qual caracterizado por certas atitudes, com-
portamentos e estilos de vida. Estes são os desejos coletivos elaborados por
demandas de mercado da cultura dominante – correlações inevitáveis de
formas particulares de poder econômico. (McLaren, 2000: p. 185)
Com isto, a indústria cultural e da comunicação dá sustentação ao mode-
lo do capitalismo global vigente, incorporando as diferenças sob a lógica
do mercado globalizado. As diferenças culturais que emergem com a glo-
balização do capital são dirimidas dentro da esfera mercantil no terreno
midiático-cultural.
Um outro aspecto importante a ser considerado com relação ao monopó-
lio midiático é o seu papel de “destruição da esfera da opinião pública”. O
conceito clássico de opinião pública, definido por Habermas (2003), prevê
um espaço onde cidadãos livres expressavam suas opiniões – com base na
razão esclarecedora – e a imprensa, nos seus primórdios, representava e am-
pliava este território.
Porém, a transfiguração do jornalismo stricto sensu para o espaço midiá-
tico significou também a transformação dos valores presentes na ideia de
jornalismo e esfera pública. Christopher Lasch, em A cultura do narcisismo,
afirma que para o discurso midiático hoje não interessa mais o verídico,
mas sim o verossímil, o confiável e o célebre. (Lasch, 1983)
Sai de cena a autoridade da fala do conhecimento (e, por tabela, do intelec-
tual, mesmo o orgânico da classe dominante) e entra a celebridade, cuja au-
toridade de fala é dada tautologicamente pela mídia – está na mídia porque
é famoso e é famoso porque está na mídia.
A informação passa a ser subsumida pela lógica do entretenimento e do
consumo (o que gerou a estranha categoria midiática do infotainment, o
infotenimento) consolidando o esvaziamento da política enquanto espaço
de poder. A esfera política vira, assim, mero território cênico, onde imagens

137
de celebridades desfilam falas, narrativas visuais, sentimentos e projeções
de sensações articulando a organicidade social pelas “sensibilidades”.
O julgamento do chamado escândalo do mensalão em 2012 que teve uma
cobertura significativa dos aparelhos midiáticos brasileiros trouxe esta di-
mensão de sensibilidades e verossimilhanças para uma dimensão do poder
até então mediada pelo discurso de uma tecnicidade acima das disputas
políticas – o Poder Judiciário. O debate político explícito no julgamento
desta causa ficou obliterado pela mobilização dos desejos de punição, apro-
ximando de sentidos existentes em linchamentos públicos. Também foi
subsumido o debate técnico-jurídico que existiu no julgamento, fazendo
com que as divergências se transformassem em um jogo de mocinhos e
vilões, bem contra o mal.
A síntese apresentada pelos telejornais da Rede Globo de Televisão no dia
23 de outubro daquele ano é esclarecedora a este respeito: cenas entrecor-
tadas dos debates, uma montagem com frases de efeito pinçadas dos dis-
cursos dos ministros do supremo, as imagens frequentes de falas do relator
do caso sempre em pé, indignado, de cara amarrada, como um inquisidor,
contrastada com o revisor do caso (que sempre tinha uma postura diver-
gente do relator), falando sentado, sereno, expressando uma postura de-
fensiva ante o “inquisidor”. Pouco se esclareceu sobre o percurso do caso,
sobre os argumentos de cada parte, sobre quais são as teorias jurídicas em
jogo, etc.
Com isto, ao irradiar esta maneira de sociabilidades, ao construir uma ter-
ritorialidade simbólica que altera significativamente as formas dos embates
políticos, o monopólio da voz realiza, silenciosamente, a supremacia do
poder global do capital.

A política se desloca e se desfoca

O cenário construído por esta estrutura de poder reduz – chegando ao


mínimo – o debate ideológico (aproveitando a situação favorável com a
derrocada dos regimes do Leste Europeu no final dos anos 1980 que gerou
as condições objetivas para o discurso do “fim do socialismo” ou “fim das
grandes narrativas”) e deixa um vácuo que é ocupado pelo debate moral e
o debate tecnicista-gerencial. Assim, os embates políticos se transfiguram
para uma discussão de “competências técnico-administrativas” e por “prin-

138
cípios morais”. Aproxima-se, assim, do que Adorno e Horkheimer (1991)
conceituavam como uma “sociedade administrada” ou regida pela razão
instrumental.
O problema da corrupção, por exemplo, sai do terreno político – a corrup-
ção como produto de um determinado sistema político que envolve mode-
los de financiamento de campanhas, tipos de relações entre Poder Público e
Poder econômico, influência eleitoral do poder econômico, entre outros – e
se desenvolve no terreno moral: a corrupção é vista única e exclusivamen-
te como produto do “caráter” do agente público. Ou então é generalizado
de tal forma como se fosse um comportamento “natural” de quem está na
política.
Este moralismo do debate político acaba também por trazer questões de
vida privada para o cenário público. Comportamentos pessoais são avalia-
dos por princípios morais de cunho religioso. O moralismo conservador
inclusive coloca barreiras a participação feminina na política, uma vez que
as regras morais consolidadas são mais controladoras dos comportamentos
das mulheres.
Já a competência técnico-gerencial ou técnico-administrativa encaixa-se
em um perfil de poder público que tem a funcionalidade empresarial como
paradigma. Subsumido à lógica do capital, o poder público se organiza para
dar atendimento e sustentação as ações do capital globalizado. Assim, ga-
rantir uma política econômica que esteja de acordo com as demandas do
grande capital não é tratada, pelo discurso midiático, como uma “opção po-
lítica” e sim como uma “ação competente e correta”. Os “analistas” de mídia
na área econômica, por exemplo, transformam a economia em uma ciência
exata. As decisões são avaliadas na perspectiva da correção ou incorreção e
não como uma opção política.
Por fim, as ações do Estado se concentram no aspecto repressivo. Em lugar
da política, a polícia. A manutenção de uma ordem como esta que implica
na concentração crescente de renda, no poder transferido para o grande
capital e na colonização do poder público pelos agentes do capital só pode
ser garantida com um sistema repressivo sofisticado. Este sistema repres-
sivo, entretanto, não se realiza por meio de regimes ditatoriais no sentido
clássico, mas em regimes “democrático-liberais” com espaços públicos es-
vaziados, com poder fora da política, com debates políticos despolitizados
e marcados pela presença de valores moralistas e/ou tecnicistas.

139
Não há espaço nesta forma de sociabilidade para um jornalismo fomenta-
dor do debate político como foi o jornalismo no período publicista. O jor-
nalismo se coloniza pelo discurso midiático na perspectiva de uma tecno-
logia de sociabilidades – de compreensão e ação – centrada nas sensações e
no entretenimento imediato.

Referências

ADORNO, T; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1991
BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003
Dossiê Le Monde Diplomatique – “Quem manda no mundo”, - n. 10, jul/
ago de 2012, p. 22
HABERMAS, J. A mudança estrutural na esfera pública. São Paulo: Tem-
po Universitário, 2003
HUTTINGTON, S. Choque das civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva,
2009
IANNI, O. Enigmas da modernidade mundo. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001
LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983
MARCONDES FILHO, C. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker,
2001
McLAREN, P. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez, 2000
PARKS, Lisa. Coverage. NY: Paperback, 2011
SODRÉ, M. Sociedade, mídia e violência. Porto Alegre: Editora PUCRS,
2006
VILELLA, H. “Herdeiros do WalMart mais ricos que os 30% mais pobres”
no portal “Viomundo” (http://www.viomundo.com.br/denuncias/heloisa-
-villela-wal-mart-e-mais-rico-que-os-30-mais-pobres.html, acessado em
18/10/2012)

140
EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS: CONCEP-
ÇÕES DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL

Maria Eliza Mattosinho Bernardes,


Sandra Paula da Silva Batistão, Sandra Aparecida Santana Assali
Isabel Akemi Hamada, Eliane Candida Pereira

Introdução

O texto tem a finalidade de comunicar concepções teóricas que organizam


as pesquisas sobre Educação, Desenvolvimento Humano e Políticas de Es-
tado realizadas pelos integrantes do Grupo de Estudo e Pesquisa Educa-
ção, Sociedade e Políticas Públicas: concepções da teoria histórico-cultural
– GEPESPP USP, assim como divulgar os resultados das pesquisas mais
recentemente produzidas pelos seus integrantes, no que se refere aos possí-
veis caminhos para as transformações na realidade social.
A atividade de estudo no GEPESPP inicia-se no ano de 2008 com o objetivo
de fundamentar teoricamente o desenvolvimento de projetos de extensão
sobre educação e desenvolvimento do psiquismo humano e de subsidiar
pesquisas de término de curso no campo do trabalho, da educação e do
lazer. No ano de 2010, oficializam-se as ações de estudo e pesquisa no GE-
PESPP, quando o mesmo é cadastrado no CNPq, visando a inserção do
grupo nos programas de pós-graduação em Mudança Social e Participação
Política1 e em Educação2, ambos na Universidade de São Paulo.
O marco teórico-metodológico dos estudos e pesquisas no grupo é o Ma-
terialismo Histórico Dialético, enquanto método de investigação e expli-
cação da realidade concreta, e a Teoria Histórico-Cultural que orienta os

1 O GEPESPP vincula-se, desde a sua implantação em 2010, ao programa de pós-graduação em


Mudança Social e Participação Política na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
2 Em 2011 o GEPESPP passa a receber estudantes nos níveis de mestrado e doutorado no programa de
pós-graduação em Educação na Faculdade de Educação da USP.
estudos sobre a constituição e o desenvolvimento do psiquismo humano
(VIGOTSKI, 2001) a partir das mediações simbólicas (BERNARDES,
2012), das atividades humanas em geral (MARX, 1996; LEONTIEV, 1983)
e das atividades específicas, no caso a atividade pedagógica (BERNARDES,
2009; MOURA, 2010), como aquela que organiza os processos educativos
no contexto escolar.
A partir da análise crítica da realidade educacional brasileira, as pesquisa no
GEPESPP visam contribuir para o desenvolvimento dos processos educati-
vos, entendidos como mediadores nas transformações da realidade social,
ao assumirem a condição de virem a ser promotores do desenvolvimento
psíquico dos sujeitos e da própria sociedade. Neste contexto de pesquisa,
são contempladas situações desencadeadoras de “modos de ação” (LEON-
TIEV, 1983; BERNARDES, 2012) na atividade pedagógica e na atividade de
formação de professores, assim como são analisados os processos de plane-
jamento, desenvolvimento e avaliação de políticas de Estado no campo da
educação.

A atividade de pesquisa e o método de investigação

Políticas de Estado em educação, práxis como atividade formadora e tra-


balho, educação e lazer: contribuições para o desenvolvimento humano são
identificadas como as linhas de pesquisa no GESPESPP. De forma geral,
tais eixos de investigação são objetos das pesquisas que analisam os limites
e as possibilidades de objetivação das potencialidades humanas (enquanto
ser genérico) nos sujeitos singulares, por meio das condições mediadoras
que expressam as contradições presentes na sociedade contemporânea.
Pela lógica dialética, a produção teórico-prática no grupo procura explicar
os meios para a superação do processo histórico de alienação (HELLER,
2008) presente no cotidiano da sociedade. Como método de investigação
e de produção do conhecimento, a relação entre o ser genérico e o ser in-
dividual, mediada pelas condições dadas pela vida em sociedade, é repre-
sentada, segundo Oliveira (2005), pela relação singular-particular-universal
própria do materialismo histórico.
O singular é compreendido como o ser individual que precisa se relacio-
nar com o conjunto de produção humana elaborado historicamente (bens
materiais e intelectuais) para emancipar-se. O universal é entendido como

142
ser humano genérico, que se produz histórica e socialmente, representado
como a meta máxima de humanização a ser objetivada nos seres individu-
ais. O particular é identificado como o conjunto de ações possibilitadas pela
vida em sociedade que medeiam a relação entre o ser genérico/social e o
ser individual, ou seja, o particular representa as condições historicamente
instituídas na sociedade que determinam a forma e o conteúdo das media-
ções nas relações interpessoais. Salienta-se que as condições particulares
não podem ser entendidas como as condições máximas de humanização,
mas apenas como aquelas que validam o movimento de exclusão existente
nas sociedades de classe. Segundo Tanamachi, Asbahr e Bernardes (2013,
p. 6), quando o particular é concebido como a condição de existência do ser
social “a emancipação é entendida como emancipação meramente política,
a liberdade é a de mercado e a adaptação é o princípio fundamental nas
condições particulares”.
Assim, a mediação é considerada uma categoria fundante nas pesquisas
realizadas no grupo, uma vez que é pela mediação da produção humana (a
cultura elaborada historicamente pelo conjunto dos homens) que se conce-
be ser possível criar condições para que as potencialidades do gênero hu-
mano possam ser objetivadas nos seres individuais. O estudo das atividades
mediadoras (o particular), que criam possibilidades para a objetivação das
máximas potencialidades humanas nos indivíduos singulares, é entendido
como uma necessidade nas pesquisas no GEPESPP.
Neste sentido, a Educação é entendida como mediação no movimento de
transformação da realidade social. Ao mesmo tempo em que se entende que
a Educação, em si, não pode promover a transformação da própria socie-
dade, concebe-se também não ser possível nenhuma transformação social
sem que uma Educação - pautada numa visão crítica da própria sociedade
- seja mediada, como um conjunto de valores sociais instituídos histórico e
culturalmente. Assume-se, portanto, coletivamente um compromisso ético
e político na produção do conhecimento no campo da Educação como uma
atividade mediadora que visa a emancipação humana e, consequentemen-
te, a transformação da própria sociedade.
Entende-se, portanto, ser a partir do movimento dialético de apropriação
e de produção da cultura presente pelos processos educativos que os sujei-
tos atuam sobre a realidade concreta transformando-a e se autotransfor-
mando (mesmo que de forma diferenciada), de acordo com as atividades
que participam. Esta objetivação do ser genérico no ser individual, a partir

143
pelas mediações possibilitadas pelas relações interpessoais é representada
na figura abaixo e expressa a relação entre o singular-particular-universal
(OLIVEIRA, 2005), própria do método de investigação que orienta as pes-
quisas no grupo.

Figura 1 – Relação Singular-Particular-Universal


Fonte: (Bernardes, 2010, p. 303)

De forma geral, entende-se que as condições mediadoras são determinadas


pelos diferentes processos sociais que se organizam historicamente na socie-
dade. Ao mesmo tempo em que a dimensão histórica dos fenômenos e fatos
sociais é considerada determinante na constituição da sociedade e do próprio
sujeito, a possibilidade de atuação dos sujeitos sobre a realidade modifica e
determina os fatos e fenômenos sociais produzindo a própria história, num
movimento dialético mediado pelas condições concretas presentes na vida
em sociedade. Os processos políticos, econômicos e culturais são considera-
dos determinantes históricos integrados ao conjunto da produção humana.
Sendo assim, tais processos são possíveis de serem transformados pelo con-
junto dos homens ao fazer parte da história e por transformar as condições
mediadoras que a determinam, ou seja, (re)fazendo a própria história.
No estudo do movimento dialético de transformação da realidade, a Edu-
cação assume a condição de ser atividade essencialmente humana que me-

144
deia a formação dos sujeitos e da própria sociedade (BERNARDES, 2010b)
a ser investigada nas pesquisas no GEPESPP. Seja na forma de atividade
prática (práxis) no contexto escolar, seja na forma de políticas de Estado
que determinam as condições concretas da educação na sociedade brasilei-
ra, o foco de análise nas pesquisas.
As abstrações que medeiam a análise dos objetos de pesquisa no GEPESPP
são, portanto, a concepção dialética de constituição de homem e de mundo
e o conjunto de elementos determinados e determinantes históricos que
implicam no desenvolvimento e na constituição da sociedade e dos sujei-
tos. Assim, a orientação das pesquisas realizadas no grupo fundamenta-se
na necessidade de explicar os fatos e fenômenos sociais e não limitar-se à
sua descrição; dá-se ênfase à análise dos processos históricos de objetivação
da realidade no intento de superar a imediaticidade da mesma; busca-se a
essência do objeto de pesquisa para além do que é possível de ser identifi-
cado como a aparência captada pelos sentidos.
Ao se conceber a realidade concreta com o ponto de partida das investiga-
ção em Educação no grupo, os temas educacionais emergentes expressam
o movimento instituído historicamente na sociedade que evidenciam o
distanciamento entre o significado social e o sentido pessoal que a Educa-
ção assume para as instituições e para os sujeitos na contemporaneidade.
Enquanto ponto de chegada, as pesquisas visam apresentar possibilidades
e encaminhamentos necessários para a superação das condições concretas
na realidade pela via da produção teórico-prática elaborada pelos integran-
tes do grupo.
Assim, configura-se a necessidade de uma coletividade de estudo e pes-
quisa que tem como finalidade a produção de conhecimentos científicos
que apresentem caminhos para a transformação da própria sociedade.
Para que tal finalidade se objetive nas pesquisas, dá-se grande ênfase à
atividade em comum (RUBTSOV, 1996) entre os integrantes do grupo.
Enquanto atividade coletiva, a pesquisa sobre Educação no GEPESPP
vem desenvolvendo um conjunto de ações e operações com o intento de
criar possibilidades para que a finalidade do grupo seja corresponden-
te aos seus objetivos. Tal relação é entendida por Leontiev (1970) como
necessária para que a atividade, no caso a de pesquisa, seja objetivada. O
esquema a seguir é uma representação da unidade molar (LEONTIEV,
1983) na estrutura da atividade.

145
Figura 2 – Unidade Molar na Atividade

Em síntese, a necessidade social que emerge das contradições presentes


na sociedade em geral e nos processos educativos contemporâneos de-
sencadeiam motivos para o desenvolvimento de novas pesquisas. Estes,
por sua vez, orientam a definição dos objetos de estudo que necessitam
de respostas teórico-práticas para a superação da realidade concreta e
estabelecem os objetivos das pesquisas. Para que a unidade dialética
de fato ocorra na pesquisa enquanto atividade, a finalidade da mesma
deve ser correspondente aos seus objetivos. No entanto, tais finalidades
somente podem ser objetivadas nas pesquisas mediante determinadas
condições criadas pela própria sociedade, as instituições e os agentes
sociais, que viabilizam a execução das pesquisas. Mediante tais con-
dições, é organizado um conjunto de ações e operações, identificado
como os procedimentos metodológicos específicos em cada pesquisa,
definidos de acordo com suas próprias necessidades, para que o método
de investigação seja exercitado e cumprido na análise e explicação da
realidade concreta.

A realidade concreta e a atividade de pesquisa no coletivo

Os integrantes do GEPESPP vêm se dedicando ao exercício do pensar so-


bre as necessidades sociais que emergem de atividades práticas, pessoais
e profissionais, e coletivamente têm buscado formas de organização das
pesquisas.
No eixo Trabalho, Educação e Lazer: contribuições para o desenvol-
vimento humano o objetivo é elaborar um aporte teórico que rela-
cione trabalho, educação e lazer como atividades humanas que criam
condições para a potencialização das características do humano no
homem.

146
A pesquisa realizada3 por Oliveira (2011), O Trabalho e o Lazer como Uni-
dade Dialética no Processo de Humanização, parte do pressuposto de que
o processo de transformação do homem e da natureza ocorre a partir da
apropriação dos bens materiais e ideais elaborados historicamente por
meio das atividades humanas; neste aspecto, a unidade entre produção e
apropriação é assumida como o meio de análise do trabalho e do lazer no
processo de humanização. No movimento histórico de transformações
ocorridas no modo de produção, entende-se que o tempo passa a ser con-
tado entre o tempo de trabalho alienado e o tempo livre. Neste contexto
teórico-metodológico, o objetivo da pesquisa foi discutir o conceito de
lazer como uma produção humana que se manifesta como necessidade
a partir das transformações ocorridas no trabalho do homem. Oliveira e
Bernardes (2012) anunciam como resultado da pesquisa uma concepção
de lazer para além das dimensões temporal e individual, considerando-o
como uma produção social humana de cunho histórico, cultural e político.
Questionam-se, portanto, algumas teorias do lazer que o identificam, em si
mesmo, como promotor do desenvolvimento humano e considera-se que
tal relação somente pode ser objetivada se o trabalho for identificado como
atividade que humaniza o próprio homem, fato que se distancia da reali-
dade vigente na sociedade contemporânea.
Na pesquisa Lazer e Atividade Pedagógica no Contexto Escolar: caminhos
para a educação para o lazer realizadas por Medeiros (2011) e na pesquisa
Projeto Pedagógico Interdisciplinar: caminhos para a educação para o laz-
er realizada por Elias (2012)4 o objetivo foi encontrar caminhos teórico-
-práticos para a educação do lazer no contexto escolar que visa ampliar as
reflexões sobre a educação pelo e para o lazer, presentes nas teorias con-
temporâneas do lazer. Os resultados das pesquisas indicam que o lazer está
presente na escola, ainda que de forma contraditória, e que o ensino do la-
zer é inexistente neste contexto, embora os estudantes tenham interesse ao
aprendizado do tema. Conclui-se também que os profissionais da educação
não entendem a importância do lazer integrado às práticas pedagógicas
no contexto escolar (MEDEIROS, 2011). Um dos caminhos encontrados
para a superação desta realidade, segundo Elias (2012), foi o desenvolvi-

3 A pesquisa realizada por Sueli Mara de Oliveira vinculou-se ao curso de especialziação em Psicologia
Política na EACH USP.
4 As pesquisas realizadas por Jaqueline Maria de Medeiros e Ana Claudia Elias foram financiadas pelo
CNPq e vincularam-se ao programa de iniciação científica – PIBIC- na EACH USP.

147
mento de projetos pedagógicos interdisciplinares com a finalidade do en-
sino do lazer, integrado a outras áreas do conhecimento, como meio para
o desenvolvimento humano; neste estudo, anuncia-se a necessidade de que
o lazer, enquanto fenômeno social de cunho histórico, cultural e político,
seja considerado um conteúdo escolar a ser apropriado pelos estudantes na
educação formal.
Outro eixo de pesquisa no GEPESPP, Práxis como Atividade Formadora,
tem como objetivo investigar a unidade dialética teoria-prática na forma-
ção profissional do professor e no desenvolvimento de modos de ação na
atividade pedagógica, entendida como unidade entre a atividade de estudo
e de ensino. Neste eixo concentra-se parte das pesquisas (BERNARDES,
2012, 2009, 2010a, 2010b, 2011a, 2011b) desenvolvidas no grupo, sendo
que muitas delas integram-se ao GEPAPe – Grupo de Estudo e Pesquisa so-
bre Atividade Pedagógica – ativo desde 2002, na FE USP, coordenado pelo
professor titular Manoel Oriosvaldo de Moura. No entanto, a ênfase neste
texto é dada às pesquisas desenvolvidas no GEPESPP, algumas já concluí-
das e outras em desenvolvimento.
A pesquisa5, em desenvolvimento, A Necessidade de Conceituação Teórica
da Práxis na Realidade Educacional apresenta um estudo teórico sobre o
conceito de práxis e tem como objetivo aprofundar o conceito de práxis
nos marcos do Materialismo Histórico, de Karl Marx. Defende-se ser esta a
referência a elucidar o conceito enquanto ação de transformação, por res-
gatar uma perspectiva de homem e de mundo desvelada pela compreensão
da dimensão ontológica e da filosofia da práxis. Tal concepção possibilita a
construção de uma práxis educativa como caminho para superação de prá-
ticas cotidianas sedimentadas no senso comum. A pertinência no aprofun-
damento teórico emerge da necessidade em referendar e subsidiar as ações
e reflexões existentes nas diversas áreas da realidade educacional, que re-
querem a implicação de alguns elementos fundamentais, para chegar a uma
verdadeira concepção da práxis, conforme afirma Vázquez (2007). Uma
práxis consciente, que compreendendo o indivíduo como ser social, com
os aspectos subjetivo e objetivo de sua existência, assevera também uma re-
alidade historicizada. Realidade esta, que para ser superada nos seus pontos
de vista mecanicista, imediatista e idealista, necessita ser considerada nas

5 Esta pesqusia no nível de mestrado está sendo realizada por Isabel Akemi Hamada junto ao Programa
de Pós-Graduação em Educação, na FE USP.

148
estruturas sociais e políticas envolvidas. Tendo em vista que contemplar as
categorias fundantes da teoria ora discutida, possibilitam a realização do
suporte necessário para a construção de uma adequação teórica, o estudo
pretende contribuir como caminho para efetivas ações transformadoras no
campo da educação (HAMADA; BERNARDES, 2013).
No campo das políticas de Estado em educação, outro eixo de pesquisa no
GEPESPP, os princípios teórico-metodológico vem se objetivando na aná-
lise da atividade de formação de professores e dos processos de inclusão dos
sujeitos na sociedade de classes. Algumas pesquisas neste eixo de investi-
gação integram-se ao eixo práxis como atividade formadora, uma vez que
analisam a práxis dos profissionais da educação em atividade de estudo e de
ensino em determinadas políticas de Estado no campo da educação.
A pesquisa6 O Professor em Atividade de Estudo no Movimento de Forma-
ção Continuada: Contribuições da Perspectiva Histórico-Cultural analisa o
processo de constituição de uma coletividade de estudos com a finalidade
de contribuir para a melhor compreensão das condições necessárias para
formação de professores em exercício. O estudo de campo ocorre em uma
escola pública municipal, da cidade de São Paulo, quando se viabiliza uma
proposta de acompanhamento de atividades de estudo na formação de
professores em exercício, dentro do horário coletivo denominado Jorna-
da Especial Integral em formação – JEIF. Os pressupostos do materialismo
histórico dialético e da teoria histórico-cultural, nos campos da Educação
e da Psicologia, fundamentam o entendimento da constituição do sujeito
pela mediação do conhecimento no coletivo de estudos, considerando-se a
complexidade que envolve as relações sociais neste contexto. Salientam-se
as contribuições da teoria da atividade para o estudo da práxis pedagógica,
considerada essencial para o desenvolvimento das ações pedagógicas e para
a formação do professor. Os procedimentos metodológicos da investigação
visam explicar o conjunto de ações e as condições para a apropriação de co-
nhecimentos científicos, articulando teoria e prática, para orientar a consti-
tuição do trabalho educativo do professor no contexto escolar. A pesquisa,
em fase final de elaboração, explicita as ações pedagógicas organizadas no
processo de formação que criam possibilidades para que o professor entre
em atividade de estudo, assim como evidencia as ações e operações que fa-

6 Esta pesquisa é realizada por Sandra Aparecida Santana Assali junto ao Programa de Pós-Graduação
em Mudança Social e Participação Politica, na EACH USP.

149
vorecem a constituição dos sujeitos pela práxis pedagógica na coletividade
de estudo. Tais fatores são considerados relevantes para o desenvolvimento
concreto da consciência e da práxis dos professores que integram a coleti-
vidade de estudo, junto ao programa de formação em exercício, visando à
qualificação deste profissional. A partir das necessidades produzidas na co-
letividade de estudo, são criadas condições objetivas para que os professo-
res se constituam como sujeitos ativos da atividade pedagógica, entenden-
do-a como mediadora do processo de desenvolvimento humano. Assim, na
articulação da atividade teórico/prática, busca-se explicitar as condições e
as circunstâncias na coletividade de estudo que produzem implicações na
constituição do professor como sujeito ativo em atividade. Tais condições
particulares são entendidas como necessidades para o desenvolvimento da
consciência crítica de tais profissionais da educação, mediante as reais pos-
sibilidades do ensino no movimento de transformação da realidade. Diante
dos dados obtidos na pesquisa participante é possível identificar que o mo-
vimento de formação de professores na coletividade de estudo deva criar
condições concretas para uma práxis educativa que promova a apropriação
de um conhecimento que supere as condições alienantes da escola atual,
próprias das políticas educativas vigentes no sistema político e econômico
vigente (ASSALI, BERNARDES, 2012).
A pesquisa7 em desenvolvimento, Caminhos para a transformação da prá-
xis do professor na educação inclusiva: um estudo envolvendo alunos com
Transtornos do Espectro Autista, tem como finalidade analisar as condições
de inclusão no ensino regular de alunos deficientes, com Transtornos Glo-
bais de Desenvolvimento e altas habilidades. Mais recentemente, a Lei nº
12.764/2012 instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pes-
soa com Transtorno do Espectro Autista, atendendo aos princípios da Po-
lítica Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
Nesse cenário, torna-se importante analisar como essas ações tem se objeti-
vado nos sistemas públicos de ensino. Diante disso, esse estudo visa produ-
zir uma contribuição teórica sobre a transformação da práxis do professor
para uma atuação voltada à educação para todos, considerando também
especificidades do ensino aos alunos com Transtornos do Espectro Autista.
O referencial teórico metodológico da pesquisa fundamenta-se no Mate-
rialismo Histórico Dialético no que se refere à concepção de homem, de

7 A pesquisa está sendo realizada por Eliane Candida Pereira junto ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da FE USP.

150
ciência e à perspectiva de explicar a realidade e as possibilidades concretas
para a sua transformação. Com essa perspectiva será realizada uma pesqui-
sa-ação no contexto de formação de professores voltado às práticas inclusi-
vas de uma escola pública municipal da rede de São Bernardo do Campo,
SP. Participarão da pesquisa: professores(as) dos anos iniciais do ensino
fundamental que tenham um aluno com diagnóstico de Transtornos do
Espectro Autista, professor(a) de atendimento educacional especializado
(AEE), coordenador(a) pedagógica(a) e diretor(a) escolar dessa unidade
escolar da rede pública municipal de São Bernardo do Campo, SP. A prática
e intervenção do próprio pesquisador, atuando como orientador pedagógi-
co nessa rede de ensino, será também analisada. São delimitados como ob-
jetivos dessa pesquisa: analisar o significado das formações oferecidas para
os professores que atuam em turmas regulares em que estão matriculados
alunos com Transtornos do Espectro Autista; discutir condições concretas
para superação das dificuldades encontradas pelos professores para a orga-
nização da atividade pedagógica envolvendo alunos com Transtornos do
Espectro Autista; analisar caminhos para a transformação da práxis do pro-
fessor. Para tal pesquisa-ação serão analisadas, junto com a equipe de ges-
tão da unidade escolar, possibilidades para qualificar as ações formativas e
o acompanhamento das práticas pedagógicas no âmbito escolar, de forma
a complementar ou alterar as ações, os tempos e os espaços formativos em
andamento nessa escola, ainda que dentro dos limites impostos pelas con-
dições de trabalho e a carga horária dos respectivos profissionais. Serão,
então, acompanhadas: a organização de momentos formativos dos profes-
sores do ensino regular; as discussões sobre as especificidades do ensino
para o aluno com Transtornos do Espectro Autista envolvendo também
o professor de AEE; as ações e articulações dos sujeitos envolvidos. Esse
acompanhamento se dará por observações de reuniões e aulas, entrevis-
tas semi estruturadas com os professores envolvidos, bem como, por meio
dos registros sobre a atuação do orientador pedagógico, pesquisador nesse
trabalho. Para a compreensão do fenômeno em sua totalidade será preciso
também buscar informações sobre a organização da educação inclusiva no
sistema educacional no qual está inserida a escola onde ocorrerá a pesqui-
sa, a fim de tomar possível articular a discussão das inter-relações dentro
do sistema, tais como as relações na própria escola e as relações da escola
com a política educacional vigente, por meio de analises documentais. Será
realizada uma análise documental sobre o Projeto Político Pedagógico da
escola, destacando-se o conhecimento sobre os planos de ensino da unida-
de escolar e os planos da formação continuada para os professores. Com

151
essas ações, no movimento final da pesquisa, espera-se ser possível analisar
quais são as necessidades de superação para a educação inclusiva envolven-
do alunos com Transtornos do Espectro Autista concretizar-se nas práticas
educativas no cotidiano escola por meio da formação dos professores, bem
como espera-se apontar caminhos para a transformação da práxis do pro-
fessor.
A pesquisa8 A Condicionalidade de Educação dos Programas de Transfer-
ência de Renda: uma análise crítica do Programa Bolsa Família aborda os
programas de transferência de renda atrelados às propostas educacionais,
especificamente o programa Bolsa Família. Questiona-se a condicionali-
dade do Programa Bolsa Família (PBF), que implica na transferência direta
de renda às famílias beneficiárias, conforme frequência escolar mínima ex-
igida às crianças e adolescentes. A tese que sustenta a eficácia de tal condi-
cionalidade pela política de Estado é interpelada à luz do materialismo
histórico e dialético. A educação na execução do programa é analisada e
colocada em xeque a partir da exposição teórica que se debruça sobre a
função e a importância da educação enquanto instrumento capaz de inter-
vir efetivamente no enfrentamento à pobreza. Entende-se que programas
de transferência de renda atrelados à educação devem se fundamentar em
uma proposta mais efetiva, prática e teórica sobre seu papel na contribuição
do processo educativo das famílias beneficiárias do PBF, portanto sobre sua
real influência na tentativa de romper o círculo da pobreza. A perspectiva
crítica deste entendimento passa pela análise e revisão da formação socio-
econômica vigente no país, a fim de que se possam traçar horizontes teóri-
co-metodológicos capazes de superar as condições instituídas na socie-
dade e o aperfeiçoamento operacional dos programas de transferência de
renda condicionados, todavia pouco efetivo no enfrentamento massivo da
condição de pobreza/extrema pobreza que acercam milhões de brasileiros
(Carnelossi; Bernardes, 2011).
A pesquisa9 Educação Inclusiva ou Educação para todos? Contribuições da
teoria histórico-cultural para uma análise crítica da realidade escolar inves-
tiga os limites e as possibilidades, a partir da gestão de política de Estado,
para o exercício da ação pedagógica do professor e do professor assessor

8 A pesquisa foi realizada por Bruna Cristina Neves Carnelossi junto ao curso de especialização em
Psicologia Política na EACH USP.
9 Esta pesquisa foi elaborada por Sandra Paula da Silva Batistão junto ao Programa de Pós-Graduação
Mudança Social e Participação Política da EACH USP.

152
frente à proposta de um contexto educacional inclusivo. A finalidade da
pesquisa é problematizar os fenômenos de inclusão e exclusão educacional
enquanto produção social, visando sinalizar possibilidades de superação
do que está instituído no processo educacional inclusivo, no município de
Santo André. Durante o percurso de investigação os conceitos de Estado,
Educação, Educação Inclusiva e Necessidades Educacionais Especiais são
tratados a partir dos pressupostos da pedagogia histórico-crítica e da psi-
cologia histórico-cultual. O contexto de análise da pesquisa contempla a
totalidade que integra a gestão de política pública, o professor assessor de
educação inclusiva – PAEI, a professora das séries iniciais do ensino funda-
mental que integrada à pesquisa, e a equipe escolar composta pela diretora,
vice-diretora, assistente pedagógica e agente social de inclusão. Destaca-se
nesta análise a função social dos sujeitos envolvidos no processo educa-
tivo, quando estes, no cotidiano da escolar, deparam-se com alunos com
diagnóstico de dificuldades de aprendizagem e ou deficiência. Sabe-se que
muito tem sido discutido sobre a escola inclusiva como sendo aquela que
matricula alunos com deficiência na sala regular de ensino, no entanto, esta
pesquisa problematiza não somente a inclusão educacional do aluno com
deficiência ou do aluno com dificuldades de aprendizagem, mas a inclusão
através da mediação do conhecimento científico como aquele que deve ser
oportunizado para todos os alunos da escola pública. Os procedimentos
metodológicos da pesquisa na análise da política de Estado consistiram
em: consultar as fontes primárias buscando o historicismo da política de
educação, desde o princípio da educação inclusiva no município de Santo
André; analisar a atuação do PAEI por meio da consulta às agendas mensais
e semanais e às pautas de reuniões da assessoria, entre outros; analisar os
registros de planejamento das ações educativas e de instrumento de avalia-
ção da professora assessorada sobre o CADE; analisar registros da equipe
escolar sobre o cotidiano da escola realizados no exercício da assessoria. As
categorias de análise, que emergiram da própria realidade investigada, são
a dimensão tarefeira na ação pedagógica, a imediaticidade na realidade con-
creta e a governança do tempo e do espaço no conjunto de ações presentes na
educação inclusiva. Os resultados encontrados na pesquisa (Batistão, 2013)
possibilitam a proposição de um conjunto de elementos que indicam no-
vas necessidades a serem viabilizadas em todo o contexto de análise, como
forma de garantir as reais possibilidades para o exercício de uma educação
que pretende ser inclusiva.

153
Novas necessidades e a pesquisa no GEPESPP

Ao assumir a Educação como tema central das pesquisas no GEPESPP,


reitera-se a proposta do grupo em realizar estudos científicos que analisem
os processos educativos enquanto realidade concreta, entendida como pro-
duto de determinantes históricos, com implicações políticas, econômicas e
sociais. A análise teórico-prática desta realidade diversa, caótica, é mediada
pelas teorias críticas da educação e das políticas de Estado, de acordo com
o referencial teórico-metodológico citado anteriormente.
A investigação, portanto, das novas necessidades emergentes dos processos
educativos instituídos na sociedade contemporânea pressupõe a produção
de conhecimento que explicitem caminhos para a superação das condições
vigentes na sociedade, sendo estes estendidos como uma nova possibilida-
de de explicação da realidade, agora reelaborada no pensamento. Tal com-
preensão da realidade pressupõe uma ação interventiva sobra a mesma,
transformando-a.
Este contexto de investigação, neste momento, propõe estudos sobre pro-
blemas que se relacionam às políticas de Estado que organizam a educação
brasileira nos âmbitos, federal, estadual e municipal. O estudo das propos-
tas educacionais nos diferentes níveis de escolarização, visam contribuir
para o desenvolvimento das propostas de formação de professores, assim
como das diretrizes pedagógicas para o ensino em busca de caminhos para
a superação do fracasso escolar. Ao propor a análise da práxis, as pesqui-
sas no grupo também focalizam a atividade pedagógica como a forma de
organização do ensino que seja promotor do desenvolvimento das funções
psíquicas superiores.
Esse é o compromisso ético político dos participantes que integram o GE-
PESPP, ao assumirem que a finalidade das pesquisas é contribuir para o
desenvolvimento da Educação como atividade que promova a emancipa-
ção humana.

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157
MATERNIDADE, PATERNIDADE E DIREITOS SEXUAIS E REPRO-
DUTIVOS DE JOVENS QUE VIVEM E CONVIVEM COM HIV/ AIDS.

Elizabete Franco Cruz

Introdução

A AIDS é um fenômeno social que trouxe à tona um profundo debate sobre


valores ligados à sexualidade, às relações de gênero, à moral, aos direitos
humanos e à vida1 . As discussões desse trabalho estão centradas na interfa-
ce da epidemia com a juventude2, entretanto, convêm lembrar que os deba-
tes aqui apresentados inserem-se nesse quadro mais amplo da construção
da própria epidemia, que há mais de 25 anos vem se configurando como
um dos grandes desafios da humanidade.
O Ministério da Saúde estima que mais de 600 mil pessoas estão infectadas
pelo HIV no país e, em consequência desta realidade, temos que orfandade
e infecção pelo HIV/AIDS são situações vividas por crianças e jovens bra-
sileiros.
No caso dos jovens, podemos identificar várias interfaces com a epidemia:
ser portador do HIV/AIDS (o que aqui denominamos vivendo com HIV/
AIDS) e/ ou ser parente (filho, sobrinho, neto, irmão) namorado, marido,
amigo de alguém portador de HIV (que aqui denominamos convivendo
com HIV/AIDS).

1 A respeito da trajetória da epidemia, ver por exemplo: Câmara & Lima (l99l), Parker (1994, 1994a, 1997).
2 Segundo a OMS a adolescência vai do período de 12 a 18 anos e a juventude até 24 anos. Há
divergências sobre a utilização dos termos na literatura da área. Neste estudo utilizo o termo juventude
e adolescência como sinônimos e de forma genérica (incluindo o período que se classifica como
adolescência e também aquele que se nomeia como juventude). Este debate conceitual extrapola
os limites deste plano de pesquisa. Aqui optei por utilizar jovens e adolescentes como sinônimos –
referindo-me ao grupo etário de pessoas com idade entre 12 a 24 anos.
Este capítulo apresenta alguns resultados de um estudo que buscou com-
preender instigantes e desafiantes questões que se configuraram neste ce-
nário: o exercício da sexualidade e a vivência da paternidade e maternidade
por jovens vivendo e convivendo com HIV/AIDS. Namorar, ter ou não ter
filhos, revelar ou não revelar sua condição sorológica ao parceiro(a) e lidar
com as mudanças corporais passaram a ser temas dos adultos (profissionais
de saúde e educação, familiares, cuidadores) e dos/das próprios(as) jovens.
Estas questões, associadas à produção histórico cultural das concepções ao
redor das relações de gênero, da maternidade/paternidade, dos direitos se-
xuais e reprodutivos3, de juventude e da própria AIDS, têm gerado informa-
ções e significados, produzido dispositivos que vêm construindo o processo
de subjetivação dos jovens vivendo e convivendo com HIV/AIDS4. Neste
processo, possibilidades e principalmente limites, vem sendo construídos de
modo que por vezes os próprios jovens passam a reproduzir a discursividade
que impede o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
As situações vividas por garotos e garotas têm similaridades com as ques-
tões enfrentadas por homens e mulheres soropositivos adultos, mas têm
interfaces com as tessituras dos discursos sobre a adolescência - que em sua
grande maioria enunciam que crise, dificuldade, irresponsabilidade, con-
flito e resistência são características tidas como naturais dessa faixa etária.
Uma pergunta recorrente, tanto entre os próprios jovens como entre quem
os educa e cuida (profissionais de saúde, familiares, educadores, voluntá-
rios), é: Quem tem HIV “pode” ter filhos?”.
Entremeada nessa questão está a ameaça da transmissão vertical do HIV, o
que implicaria o nascimento de uma criança portadora do vírus. 5
O verbo “poder” frequentemente utilizado nessa pergunta, remete à possibi-
lidade de ter um filho sem HIV. Porém, o “pode” também adquire o sentido

3 Os direitos sexuais e reprodutivos são tomados a partir das considerações de Berquó (2003).
4 Os conceitos de dispositivo e subjetivação são tomados a partir da perspectiva foucaultiana. Em
especial da ideia de que um conjunto de práticas discursivas e não discursivas compõe tecnologias
que através de relações de poder-saber-verdade vão produzindo sujeitos. Ver Foucault, 1990; Foucault,
2003; Foucault, 2004.
5 Hoje, por meio da adoção de procedimentos profiláticos, pode-se prevenir a transmissão vertical do
vírus. Os principais procedimentos profiláticos são a identificação precoce do HIV, o monitoramento
das condições de saúde da mãe e, principalmente, o uso do AZT via oral na gravidez e endovenoso no
trabalho de parto e no parto, o uso de xarope de AZT para o bebê e suspensão do aleitamento materno.
E também a realização de teste rápido nas maternidades.

160
de “ter direito a”. Quem tem HIV tem o direito de ter um filho? Essa é uma
pergunta que “paira no ar”. Se a profilaxia existe, a resposta poderia ser sim,
porém, neste momento, o “pode” começa a relacionar-se com o verbo “dever”,
adquirindo o sentido de “deve”. A questão do “pode” fica amalgamada com a
questão do “deve”. E por isso, ouvimos pode e deve muitas vezes como sinô-
nimo: “Mas será que eles podem/devem?”. Para um grande número de pessoas
a resposta é não, quem tem HIV não deveria “nem sonhar” em ter um filho
e, portanto, o verbo não é importante, como não é importante a questão dos
direitos sexuais e reprodutivos de pessoas com HIV.
Os argumentos frequentemente utilizados para justificar a posição contrá-
ria sinalizam que, apesar de pequeno, o risco de infecção existe; os pais da
criança podem morrer e “daí quem vai cuidar da criança?”. Outros comen-
tários ouvidos no cotidiano do trabalho com AIDS são: “vai ser ruim para
uma criança ter uma mãe, um pai ou ambos portadores de HIV”;“ a gravidez
pode debilitar a gestante”. Enfim, para um grande número de pessoas não
pode, não deve e se o fizer é sinônimo de falta de consciência.
No cotidiano, toda essa argumentação é utilizada como tentativa para dis-
suadir mulheres e homens soropositivos da ideia de terem bebês. De um
jeito mais doce ou menos doce, explícito ou implícito, a mensagem é “tira
isto da cabeça”. Nesse sentido, pouco importa a subjetividade ou os sentidos
que um portador ou portadora de HIV atribui a ter um filho e a constituir
uma família. A priori, isso já está dado como impossibilidade
Paiva et. al (2002), no estudo “Sem Direito de amar? A vontade de ter filhos
entre homens e mulheres vivendo com HIV/AIDS”, identificam a resistên-
cia de profissionais de saúde em relação ao direito das pessoas vivendo com
HIV terem filhos.
Para os autores e autoras parte das respostas a essas questões pode ser en-
contrada na idealização do modelo de família que continua existindo, ape-
sar da diversidade de famílias que observamos na atualidade e também na
estigmatização em relação à AIDS
No caso de adolescentes vivendo com HIV/AIDS, a questão da gravidez
estabelece interface com a ideia de que gravidez na adolescência é precoce,
é um risco, é uma inconsequência.
Altmann (2004), ao discutir a sexualidade adolescente, problematiza como
em vários programas e debates aquilo que é chamado de “o ‘drama dos jo-
vens que vivem as primeiras relações sexuais’ tem outro nome gravidez na

161
adolescência” (p.1). Seguindo a perspectiva foucaultiana, a autora sinaliza
que, ao abordar esse tema, o que emerge não é somente uma questão in-
dividual, ou a preocupação com o jovem, mas um problema populacional,
que passa a ser objeto de políticas públicas e de várias áreas do saber, como,
por exemplo, a demografia. Nesse mesmo artigo a autora relata:

(…) A utilização dos adjetivos precoce, indesejada ou não planejada


para referir-se à gravidez na adolescência demonstra que essa é con-
siderada uma época inadequada para a maternidade e a paternidade
que, devem ser postergadas e planejadas. Esses termos demonstram
um pouco do modo de se conceber a gravidez hoje em dia: ela deve
ocorrer em determinado período da vida da mulher, deve ser deseja-
da por ela e racionalmente planejada. (ALTMAN, 2004: 6-7)

Se tomarmos os dois trabalhos acima citados, o de Paiva et. al. (2002) e o


de Altmann (2004), começamos a observar que a intersecção entre soropo-
sitividade, adolescência e gravidez torna-se algo culturalmente visto como
inadequado. Certa vez ouvi de uma profissional de saúde, referindo-se
às(aos) adolescentes soropositivos “bom, mas eles vão ter que se acostumar
com a ideia de não poder ter filhos”.
Retomo aqui a questão do verbo, pois quando se diz que eles “não podem”,
o que se está dizendo é que eles “não devem”. E certamente isso, como bem
mostrou o estudo de Paiva et. al., não se refere somente aos jovens, pois em
várias oportunidades fui procurada por mulheres que queriam ter filhos
e não encontravam apoio no serviço de saúde que frequentavam ou com
amigos(as) próximos(as). Ou seja, mesmo que exista uma possibilidade
de ter um bebê sem HIV, essa possibilidade torna-se uma impossibilidade,
principalmente por uma interdição moral do “não deve tê-lo”.
Quando fazemos essa conexão com adolescência, a ideia da irresponsabi-
lidade de desejar ou ter um filho recrudesce, pois associa-se ao imaginário
do precoce e, portanto, do não apto para cuidar do seu bebê, ou exercendo
a sexualidade fora do tempo tido como “normal”.
Ter HIV e ter um filho pode não ser uma decisão fácil e vários fatores
podem interferir. Mas a questão é: por que isso aparece como um impe-
dimento a priori? Por que não se acha que soropositivos e soropositivos
adolescentes têm direito à escolha? Altmann (ibid.) mostra que no caso

162
dos adolescentes, há uma ideia de aceleramento do processo da vida e a
desconsideração da construção histórica da discursividade em relação à
gravidez (afinal, nossas avós tinham filhos com 16 anos...). No caso da so-
ropositividade, segundo Paiva et. al. (2002), há uma dificuldade de superar
o estigma, a discriminação e oferecer suporte de informação e acolhimento
para as escolhas,
Enfim, cabe perguntar: Somos capazes de ter uma dada perspectiva sobre
um determinado fenômeno e perceber que aqueles (as) envolvidos(as) na
questão podem ter uma perspectiva diferente da nossa? Por que escutamos
pouco e, muitas vezes, tomamos a decisão pelo outro (a) ou sentenciamos
suas (im)possibilidades?
Na esteira desse debate, as relações de gênero se entrelaçam com as ques-
tões ao redor da sexualidade dos (as) adolescentes, seja no caso do olhar
sobre o corpo, seja no caso sobre a reprodução, negociação de preservativo,
tipo de comportamento ou expressão tido como adequados para cada um
dos gêneros e, também, na construção das ideias ao redor da maternidade
e paternidade.
No caso da gravidez, é possível observar que ela é tida como uma questão
das mulheres. No cotidiano também observo que a preocupação dos adul-
tos em relação à gravidez envolve com maior frequência as garotas do que
os garotos, como se a possibilidade de exercer sexo sem engravidar depen-
desse das mulheres. Contudo, em função do HIV, a preocupação de que
usem preservativos estende-se a ambos os gêneros.
No trabalho de Paiva et. al. (ibid.), observamos que os homens com HIV
querem ser pais. O estudo de Lyra (l998) sobre paternidade adolescente
sinaliza como os garotos são, com frequência, excluídos da questão pois
quando pensamos em gravidez na adolescência, logo pensamos nas meni-
nas. No caso da AIDS, a questão não é diferente, o discurso sobre o controle
da natalidade envolve, principalmente, as meninas.
Ao considerarmos as questões da sexualidade, maternidade/paternidade/
juventude e AIDS não devemos, portanto, desconsiderar suas interfaces
com as relações de gênero, que impactam a vida de meninos e de meninas.6

6 A este respeito, ver, por exemplo, Arilha et all, 1998. Com relação à sexualidade na adolescência o
artigo de Arilha e Calazans (1998) oferece um panorama interessante, com um balanço de programas
e literatura produzida na área.

163
O processo de subjetivação dos jovens é permeado de um lado pelas cons-
truções sócio culturais que envolve um determinado conceito/tema/objeto,
de outro pelo acesso a espaços qualificados de informação e, também, de
reflexão.
Nestes espaços existem adultos/profissionais que também são subje-
tivados nas teias das construções sociais de significados sobre sexu-
alidade/AIDS/juventude e que, por vezes, reproduzem estereótipos e
preconceitos.
No plano teórico destaca-se ainda a escassez de trabalhos que abordem esta
temática não somente no que concerne à juventude vivendo e convivendo
com HIV/AIDS, mas também no que se refere a juventude em geral. Neste
sentido a produção de um trabalho que tome as perspectivas de relações de
gênero, direitos sexuais e reprodutivos dos jovens e AIDS contribui para a
diminuição de lacunas existentes na literatura da área como, por exemplo,
o debate ao redor da subjetivação dos jovens, de suas perspectivas sobre
maternidade, paternidade, gênero e sexualidade.
Vale lembrar que se a literatura abordando aspectos psicossociais, em espe-
cial a dimensão da sexualidade, de jovens vivendo com HIV/AIDS é restri-
ta, no que se refere a jovens convivendo é praticamente inexistente. Além
disto, filhos e irmãos de portadores de HIV /AIDS vivem uma situação de
intensa vulnerabilidade (inclusive à infecção pelo HIV) e, com frequência,
esta população é desconsiderada em estudos, políticas públicas e trabalhos
sociais.

Procedimentos Metodológicos

Foram realizadas 17 entrevistas, 8 com jovens que vivem com HIV e 9


com jovens convivem com portadores de HIV-. A faixa etária dos entre-
vistados foi de 12 a 24 anos. As entrevistas foram gravadas e transcritas,
com o consentimento livre e esclarecido dos entrevistados. O material co-
letado foi categorizado e analisado à luz da literatura sobre direitos huma-
nos, infância, juventude, família e instituições e saúde pública. Os jovens
foram contatados a partir de ONGs que fazem trabalhos sócio- educati-
vos com esta população. (GIV – Grupo de Incentivo à Vida, Associação
Civil ANIMA).

164
Resultados e Discussão

O material coletado permite inúmeros recortes e leituras dos discursos dos/


das jovens sobre os temas do estudo. Neste artigo, faço uma síntese dos
principais resultados e sinalizo alguns tópicos para reflexão.

1)Maternidade/Paternidade

Palavras como ser mãe, ser pai, sonho, desejo, companhia, responsabilidade,
família foram utilizadas pelos jovens para definir maternidade e paterni-
dade.
No decorrer das entrevistas foi possível avistar que vários elementos se en-
trelaçam na construção de sentidos ao redor da maternidade e paternidade,
com destaque para:

a) a experiência que tiveram com os pais;

A experiência familiar parece ser fonte de inspiração para aquilo que se


quer ou não se quer fazer. Uma jovem soropositiva de 15 anos foi criada
pela mãe e diz que sentiu falta do pai, mas quando relata seu desejo de ser
mãe faz uma previsão de futuro próximo - casar, ter filho com 17 anos e
depois se separar. Imagina-se como uma “mãe sem marido”. Indagada por-
que imagina-se “sem marido” não sabe explicar e no decorrer da entrevista
percebe-se que, na verdade, sonha com independência e teme não poder
contar com um companheiro que atenda suas expectativas.

Eu não sei o porquê. Eu acho que é muita coisa pra gente falar, é trai-
ção, é batendo na mulher, a mulher está com ele e ela passa por várias
coisas só porque não quer separar, porque tem dificuldade de tra-
balhar... de fazer essas coisas, ser independente. E eu sempre deixei
bem claro pra minha mãe que eu vou ser independente e vou ter meu
filho sozinha, ser uma mãe solteira. Eu sempre tive esse pensamento,
sempre quis ser (mulher, 15 anos, soropositiva)

165
b) construção das relações de gênero;

Vários discursos sobre homens/pais e mulheres/mães calcados em este-


reótipos de gênero. A maioria dos entrevistados ficou órfão/ã de pai em
decorrência da AIDS. Um caso curioso é o de uma menina soronegativa
(14 anos) que tem uma mãe usuária de drogas que está institucionaliza-
da. Ela está sendo criada pelo padrasto com quem tem uma ótima relação.
E expressa um discurso dizendo que quem cuida são as mulheres, que os
homens não tem compromisso. Quando indagada pelo fato de ser cuidada
pelo padrasto atribui a uma exceção.
Contudo, existem rupturas e o desenho de novas possibilidades

E assim, é, eu tenho a maior vontade, agora o M já num, num... não


tem aquela vontade assim de ser pai, assim.... (...) Mais aí a gente
conversa, aí ele, a gente já pensou na possibilidade, (...) eu meio que
espero o tempo dele. De ele querer ser pai, de ele, é... de ele poder
exercer a paternidade dele né. E eu acho assim que paternidade não
é só fazer e... e né, ir lá, fez, e pronto, é pai. Acho que na educação,
(...) no carinho, porque assim não adianta você pegar, que nem eu
vejo muitos exemplos (......) Que nem a pessoa fala assim: ai eu tenho
tudo, meu pai me dá dinheiro, mas ele não para e me dá um abraço.
Ele não fala comigo. E aí às vezes a gente fala assim: ai o homem, o
pai, ele tem que dar de comer, de vestir, tem que, que... que levar pra
passear, e pronto, acabou. E eu acho que pai não é isso né, acho que é,
é na hora que esta falando palavrão, intervir, na hora que está triste,
perguntar o porque, né, as vezes está lá brigado, no caso de menino,
com a namoradinha ou a menina com o namoradinho, e aí o pai con-
versar, né? Sabe eu acho que é, é, pai... é, tudo isso. É ter uma relação
assim mesmo, de conversa, de troca...(mulher, 22 anos, soropositiva)

c) presença de condições materiais, “estrutura” e ser jovem;

Para os jovens está claro que a gravidez não é necessariamente indesejada,


ao contrário, que ela pode ser desejada. Um grande impedimento é consi-
derado a falta de estrutura material para cuidar dos filhos, por isso eles são
pensados para mais tarde (vários jovens pensam a idade para ter filhos, a

166
quantidade de filhos), quando tiverem feito uma faculdade, tiverem casa,
dinheiro, tempo, enfim, estrutura.

Eu acho que todo mundo pensa em um dia ter uma família, cons-
truir. Assim, eu não tenho muito contato com todo mundo da Rede7,
mas as meninas que eu tenho, assim, lógico: “ai que bonitinho”, então
faz você pensar que assim: “nossa, que bonitinho o bebezinho, que-
ria ter um”, acho que já pensa né. Mas eu acho que com a vida já feita,
acho que todo mundo já pensa assim, quando estiver já estável, tiver
meu dinheiro ali, que eu tenho condições de constituir uma família.
(mulher, 15 anos, soropositiva)

d) presença da AIDS;

A vinculação da AIDS neste contexto tem vários sentidos podendo repre-


sentar renascimento

(...) eu tenho vontade de ter um filho, eu teria até um filho hoje.


Independente da pessoa, com quem eu esteja, eu teria um filho mas
pra mim, independente da pessoa que eu esteja, porque, é como se
eu, por ser portadora desde que nasceu, estivesse nascendo de novo.
(mulher, 23 anos, soropositiva)

e) motivo de preconceito alheio;

As pessoas acham que, sei lá, que até uma brutalidade com a criança,
sabe, porque elas acham que a criança vai nascer com HIV. Até um
repórter falou na TV, não faz muito tempo ele falou, que as mulheres
que sabem que tem HIV não deveriam nem engravidar. Isso foi forte
até. Porque é o cúmulo da falta de informação, e é você ter precon-
ceito sem nem saber, sabe? Tendo dó da criança, mas você acaba
agredindo a mãe.(mulher, 20 anos, soropositiva)

7 Menção à Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/AIDS (RNAJVHA).

167
f) desejo de transmitir ao filho as experiências, as vitórias, vontade de cui-
dar e de transmitir possibilidades - reafirmação da própria superação;

(...) Não. Porque assim, que nem no meu caso: eu não, não... acho as-
sim, que nem, eu já ouvi casos de mulheres, dizer assim: Ah quando
eu descobri que tinha AIDS, eu só não me matei por causa dos meus
filhos... né? Eu já ouvi muito isso. Mas no meu caso, eu acho assim,
ai eu não, eu não, eu vou, engravidar pra ter um filho, pra mim poder
cuidar dele e me cuidar. Eu nunca pensei assim.
(…) Eu acho que eu tive que aprender a ter essa adesão, a gostar de
mim, a cuidar de mim, agora, antes de ter esse filho, né. E talvez, é...
eu ter esse filho, talvez seja pra mim poder ensinar pra ele como que
é o mundo (...) que há muitas pessoas que tem preconceito, mostrar
pra eles que tem possibilidades que às vezes a pessoa diz que não, e, e
a pessoa vencer, entendeu? Acho que tipo, coisas que eu vivi, eu po-
der passar pra, pra... pra o meu filho e aí ele poder superar, mais fácil
do que eu superei entendeu? (mulher, 22 anos, soropositiva)

O ponto mais relevante desta discussão é pensar que para todos os jovens
entrevistados a construção da maternidade e paternidade não passa so-
mente pela presença da AIDS.
Este aspecto merece destaque porque, em que pese a presença da
AIDS na vida destes/as jovens, ela não é o elemento definidor, nem do
desejo da maternidade e paternidade, nem das representações sobre
maternidade e paternidade. A AIDS sem dúvida é um fio que se entre-
laça nesta trama, mas esta trama não é composta somente pelos fios da
AIDS. Isto é relevante porque nos ajuda a despertar escutas e olhares.
Os jovens e seus desejos de maternidade e paternidade precisam ser
compreendidos de modo mais amplo, precisam ser vistos como jovens
com HIV, mas também como jovens, precisam ser vistos como jovens,
mas também como homens e mulheres que tem sonhos e desejos en-
gendrados no conjunto de suas vivências, no tempo histórico e da so-
ciedade em que vivemos8.

8 Sobre gravidez na adolescência ver Brandão, 2005; Cruz, et. al., 2010

168
2)Sexualidade

A dimensão da sexualidade também apresenta uma pluralidade de senti-


dos. Alguns já descritos em outros estudos (por exemplo, Ayres, et. al, 2004;
Barica, 2005; Cruz, 2005) como a dificuldade para a:

a) revelação do diagnóstico ao parceiro;

eu tenho medo de namorar alguém quem não tem e esse alguém que
não tem não me aceitar. (mulher, soropositiva, 12 anos)

b)Casais sorodiscordantes;

Dentre os jovens entrevistados existiam dois casais (uma jovem soropositi-


va com um jovem soronegativo e um jovem soropositivo com uma jovem
soronegativa).
Aspectos que se destacaram das entrevistas foram a convivência como
elemento de aprendizado para ambas as partes, a preocupação e cuidados
mútuos, mas a preocupação do/a jovem soronegativo com o tratamento e
o cuidado do/a parceira e a admiração e valorização da capacidade de su-
peração do/a companheiro/a que vive com HIV.

c)Preservativo;

Apesar de terem informado que alguns jovens soropositivos não usam preser-
vativo, os depoimentos sinalizam que a maioria dos jovens que vivem com HIV
tem preocupação com a transmissão do vírus para parceiros fixos e eventuais
Uma jovem soropositiva relatou que gostaria de fazer sexo sem o preser-
vativo, mas que não se sente a vontade, pelo medo de infecção do parceiro
“eu não desejo isso nem para o meu inimigo quanto mais para o meu amor...”

169
Entretanto, quando se referem aos jovens em geral (amigos, colegas de es-
cola) sinalizam claramente a dimensão já descrita em outros estudos: o não
uso, pautado em confiança ou conhecimento do parceiro e ainda numa
certa noção de invulnerabilidade (achando que não acontece com eles).
Os jovens que convivem com alguém que tem HIV demonstram maior pre-
ocupação com o uso de preservativo, contudo isso também não deve ser
tomado como regra, posto que um jovem conta que, apesar da mãe ser so-
ropositiva, seus irmãos não se preocupam com preservativos e um de seus
irmãos faz sexo sem camisinha com frequência.
Por outro lado, a convivência entre pares discordantes e o uso de preserva-
tivos pode apresentar alguns desafios. Uma jovem relata que ela e o parcei-
ro soropositivo apresentaram no início do relacionamento uma dificuldade
com a relação a colocação e a retirada do preservativo,

(…) naquele momento pra mim já foi incrível, já fiquei em choque,


já fiquei nervosa, falei: “meu Deus do céu”, olha só, a gente tem tanta
informação, mas, na hora, parece que tudo, meio que se anuviou, a
gente até sabia qual que era os procedimentos, mas parece que apaga-
ram, o nervosismo acabou tomando conta, então nós acabamos tendo
que procurar uma inserção, ajuda de outras pessoas que tivessem mais
conhecimento do assunto na área. (mulher, 22 anos, soronegativa)

Esta dificuldade deixou o medo de uma possível infecção, então procura-


ram um serviço de saúde para obter informação e apoio.

(…) Você tem que estar ali para ajudar, não para condenar, porque,
praticamente, o que houve? Eu fui condenada, eu recebi uma orien-
tação: “ah não, você é louca!”, então: “eu sou louca, e ai, como eu
posso resolver o meu problema? Você falar que eu sou louca não vai
me ajudar agora, o fato de eu ser louca não vai conseguir resolver a
minha dúvida, tirar as caraminholas que surgiu na minha cabeça, a
confusão e tal, não vai ajudar”. (mulher, 23 anos, soronegativa)

Este depoimento é particularmente interessante para refletirmos sobre a


escuta que os profissionais de saúde têm em relação aos problemas e a pers-

170
pectiva dos jovens. O problema para a jovem era: como eu coloco e retiro o
preservativo sem riscos e ainda uma pergunta/preocupação incluída: nesse
incidente que vivi houve risco de infecção? O problema para a educadora
era: você é soronegativa e ele soropositivo e esta relação é perigosa e inade-
quada para você.
Difícil saber exatamente o que se processou neste encontro posto que te-
mos somente os discursos de uma das partes envolvidas (o casal), mas a
lucidez da jovem é marcante, ela consegue fazer uma avaliação do aten-
dimento que teve, percebe as diferenças entre o que demandou e o que
recebeu de resposta.
A partir destes relatos vale pensar em como nós profissionais de saúde e
educação também estamos capturados por inúmeras representações e pro-
duções de sentido que “escapam” à formações, leituras, debates e a nós mes-
mos. Parece que a consciência disso que transborda em nós poderia ser um
avanço a nos levar a permanecer sempre como profissionais em constante
edição e revisão.
Isto é particularmente importante nas temáticas deste estudo, por exemplo,
podemos pensar que uma jovem quando diz que não quer ser mãe o faz por
conta do HIV e quando aprofundamos a conversa descobrimos que é pelo
medo de ficar presa e não ir para a balada. Outra jovem relata dificuldades
com o namoro. A questão da revelação existe, mas para ela é administrável,
porque contou para dois namorados e não teve problemas com o fato. Seu
grande desafio, na verdade, não se refere ao HIV e, sim, a decidir em qual
momento vai perder a virgindade.

De esperar. É. De todo mundo falar que ele só quer tirar a sua vir-
gindade e ir embora. Aí ficou meio que ‘eu não sei’, comigo... será
que eu vou, não vou. Não, espera mais um pouco (mulher, 25 anos,
soropositiva)

Aqui, vemos construções discursivas tradicionalmente associados à sexu-


alidade e relações de gênero, como o valor da virgindade, a ideia de moça
inocente, menino “comedor”, a ideia de uma idade “ideal” para o exercício
da sexualidade.

171
A dinâmica das relações de gênero impõe às moças o recato em re-
lação ao sexo, enquanto que, para os rapazes, é esperado que não
haja muito pudor ou embaraço em relação ao tema. Isso resulta no
elevado valor atribuído à virgindade, para as moças, e à experiência
sexual para os rapazes. Tal descompasso de expectativas nem sempre
corresponde às vivências individuais, mas dificulta o diálogo aberto
sobre sexo e o compartilhamento de estratégias para que o início da
vida sexual não traga surpresas desagradáveis.(Vilela; Doreto, 2006:
2469)

Em todos os temas até aqui debatidos é importante pensarmos que nossos


conceitos e o que aprendemos com estudos e pesquisas são importantes
para nossa atuação como educadores/as e profissionais de saúde, contudo
estes elementos podem ser indicativos de ações, mas como regra de pru-
dência cabe tomar cuidado com as generalizações e buscar entender o que
os/as jovens estão pensando e sentindo em cada uma das temáticas em
questão.

Direitos Sexuais e Reprodutivos?

A maioria dos jovens não conhecia a expressão “direitos sexuais e repro-


dutivos.” Ao serem indagados novamente alguns pensavam nas palavras e
diziam que sim, tinham direitos, mas foi possível observar que os jovens
que sabiam um pouco mais sobre o tema eram soropositivos e que têm
envolvimento com a militância. O único soronegativo que sabia é também
militante e parceiro de uma garota soropositiva.
Nas reflexões e tentativas de respostas, em dois casos observamos a associa-
ção de direitos sexuais com a homossexualidade.

(…) direito sexual acho que é....a pessoa que é homossexual tem um
pessoal que não aceita (mulher, 12 anos, soronegativa)

Direitos Sexuais e Reprodutivos eu acho que já ouvi na parte de ho-


mossexualismo, mas na área de HIV/AIDS eu nunca ouvi...(mulher,
22 anos, soronegativa)

172
Outro aspecto destacado por uma entrevistada é que há uma questão de
idade relacionada ao exercício dos direitos
– É. Eu sei que todos os jovens portadores, não, não é nem portadores
que eu sei, que eles têm direito de engravidar, de ter filho, tanto ho-
mem, quanto mulher, que é, eu preciso a gente fez até umas conversas
esses dias, que quando engravida na adolescência, ninguém pergunta
para o casal se eles queriam, para o pai e para a mãe. Todo mundo
critica e acaba sendo um problema, mas ninguém perguntou porque,
apesar de ser jovem, tem o dever de ser pai e mãe, pode ter, por mais
que seja complicado, e é um direito também, eu sei disso, que os jovens
tem o direito ser pai, né? (mulher, 20 anos, soropositiva)

E por fim um aspecto interessante abordado por duas jovens nos deixa per-
ceber que elas têm direitos porque sabem que os direitos existem! Antes
deste conhecimento, elas não se consideravam como sujeitos de direitos....

Eu tenho, direitos sexuais e reprodutivos, porque, que eu tenho por-


que... ah... por, eu tenho, acho que é por eu saber, sabe? Que eu posso,
na hora que quero, com quem eu quero. E se eu quiser ter um filho
hoje, por mais que seja uma loucura, hoje, eu posso ter. Porque é de,
de concretizar o desejo, né? Acho que isso que é muito do direito
também (Mulher, 20 anos, soropositiva, grifo meu)

Os jovens entre dois mundos... atravessando fronteiras entre


estigma e solidariedade.

Em suas respostas, os jovens buscam não generalizar, reconhecem que exis-


te preconceito e que, também, existe solidariedade. Palavras como medo,
preconceito, sofrimento, força aparecem nos depoimentos.
Ser jovem e conviver com parentes ou parceiros com AIDS traz preocu-
pações, vontade de cuidar e não afeta o amor que sentem pela pessoa que
vive com HIV. A proximidade com alguém portador de HIV também serve
como uma espécie de espelho que revela a própria vulnerabilidade e con-
vida ao cuidado

173
(...) eu acho assim, que pra mim é normal, que eu não tenho nada
contra, tudo, mas eu acho assim que, eu não quero isso pra mim. Mas
já que aconteceu com ela eu acho que, eu não posso fazer nada só...
me precaver, porque tipo um espelho né, tipo aconteceu com ela, eu
não vou querer que aconteça comigo, não vou me descuidar de uma
forma pra que aconteça comigo (....) (homem, 18 anos, soronegativo)

Os jovens, principalmente os soropositivos, percebem a diferença entre os


valores e representações de pessoas que tem proximidade com a experiên-
cia da AIDS e de pessoas que não conhecem portadores de HIV/AIDS ou
não se sentem vulneráveis à infecção pelo HIV . A distância é tão grande
que parecem existir dois mundos:

Todo mundo que trabalha com todo mundo que tem, todo mundo
que conhece a respeito, todo mundo que entende. E agora eu estou
num mundo que ninguém entende, ninguém conhece, que conhece
desse jeito da mídia, sabe? (mulher, 20 anos, soropositiva)

Os do projeto pensam de um jeito, os da escola pensam de outro


(homem, 18 anos, soronegativo)

Também existe preconceito e valorização em relação às diferentes formas


de infecção.

– De maneiras, sabe, até uma coisa que a gente fala na Rede, todo
mundo pergunta, ah, você chega no grupo, “ah você pegou como?”,
a gente estava discutindo isso, se for assim, “ah foi transmissão ver-
tical”, aí eles têm um pouco de dó, é um preconceito com dó. Aí fala:
“foi transmissão sexual”, aí eles tem um pouquinho de dó, mas tem
preconceito. Foi sei lá, por drogas, aí tem só preconceito. (mulher, 20
anos, soropositiva)

Por mais paradoxal que seja, superado o momento inicial da dor, o HIV
surge como uma possibilidade de fortalecimento, de desenvolvimento e
principalmente da construção de um modo diferente (e na avaliação dos
jovens, melhor) de ver a vida.

174
Ah, de conhecer pessoas, de conhecer lugares incríveis que eu não
faria isso se fosse por mim, eu acho que eu não teria essa sensibilida-
de com as coisas do mundo, porque eu sei que eu enxergo o mundo
diferente de muita gente. Porque até falam que as pessoas que sofrem
bastante, enxergam o mundo, sei lá, dão mais tolerância para as coi-
sas, não que eu tenha sofrido bastante também, não sei, mas eu acho
que eu não, eu acho que eu seria outra pessoa completamente dife-
rente, porque talvez eu moraria com o meu pai e com a minha mãe, e
aí, no bairro onde a gente morava, que as pessoas que moram lá hoje,
não teve um futuro, sei lá, não teve muito futuro, tenho primas que
moram lá hoje que eu seria como elas e isso não mudaria nada, não
influenciaria no mundo em nada, sabe? Eu acho que eu não seria ou-
tra Ana, não, eu seria essa. Com HIV, vivendo, sofrendo, aprendendo
e lutando e confusa. (mulher, 20 anos, soropositiva)

(...) Eu, sim. Eu me sinto um jovem comum. Às vezes eu me sinto


até privilegiado, porque eu tenho acesso à muitas informações que
certas pessoas não têm, né.(....)
(...) Eu acho que mexe mais pra positividade, hoje em dia eu acho
que me dá mais força pra enfrentar as coisas, me dá vontade de ir
no GIV, de ajudar, de conversar, de trabalhar. No meu serviço lá eu
ganho pouco, mas é uma coisa que eu gosto de fazer, que eu tento fa-
zer as pessoas pra não acontecer o que aconteceu com a minha mãe,
para não acontecer o que aconteça com novos jovens, entendeu, pra
não acontecer o que eu vejo, tantos jovens ai sofrendo com HIV, não
ter essas mesmas coisas, um dia né, as pessoas costumam dizer que é
uma utopia, mas mesmo sabendo que é uma utopia a gente continua
na luta. (jovem, 18 anos, soronegativo)

Considerações finais

Parece que, para os jovens entrevistados/as a AIDS desenhou dois mun-


dos, um marcado pela solidariedade e outro pelo preconceito, os jovens
que transitam nestas fronteiras vão descobrindo os desafios, mas também
as possibilidades.
E em nossa perspectiva é preciso perceber que rizomaticamente os mundos
não são separados, não há um dentro e fora.

175
Curioso notar que a maioria dos jovens não vê a escola como um local de
referência para debater estas questões (AIDS, transmissão vertical). Acham
que a escola trabalha pouco o tema. Este fato merece ser observado e pre-
cisamos dar maior atenção para jovens que não são portadores, pois se a
escola parece não ter o espaço suficiente para ouvi-los, e eles não relatam
proximidade com os serviços de saúde, podemos pensar que dois serviços
nucleares na vida dos cidadãos (saúde e educação) não têm sido referência
para jovens filhos de portadores de HIV.
Para as escolas isso merece um chamado, principalmente para que se perce-
ba que este, que é tido como “outro”, é ao mesmo tempo “eu”:

Os/as jovens que vivem com HIV não são “os outros”. Eles/as estão
nas nossas escolas, são nossos alunos e alunas. Por essa razão, a esco-
la precisa estar preparada para acolhê-los/as, para tratar do tema da
soropositividade e evitar que eles/as sejam discriminados/as e estig-
matizados. (Silva, 2010:5)

Nas tramas da cultura desenham a construção de valores e a própria sub-


jetividade em projetos de vida que incluem o exercício da sexualidade, da
maternidade e paternidade, o amor filial e o amor associado à sexualidade e
ainda uma grande vontade de fazer diferença e transformar o mundo, prin-
cipalmente o mundo marcado pela doença, dificuldades e preconceitoque a
AIDS os fez conhecer, principalmente o mundo que marcado pela doença,
dificuldades e preconceito que a AIDS os fez conhecer.
Espera-se que os resultados desta pesquisa ofereçam subsídios para que
serviços de saúde, escolas e ONG (re)pensem suas intervenções (no âmbito
da educação, da assistência e da prevenção), a partir das perspectivas dos
próprios jovens - tanto no sentido de oferecer suporte para que garotos e
garotas tenham as condições de exercer sua sexualidade de forma segura,
evitando a transmissão do HIV(inclusive a transmissão vertical do HIV)
como também, oferecendo condições para que possam tomar suas decisões
no que se refere a dimensão reprodutiva.
A partir do que se pode apreender das entrevistas é preciso que a sexualida-
de dos jovens seja compreendida para além de sua dimensão biologizante
e do binômio prevenção/transmissão e a maternidade e paternidade como
direitos que podem ou não ser exercitados, mas que são possibilidades
diante das quais os jovens têm escolhas e podem tomar decisões.

176
Temos elementos para pensar que é preciso que mudanças sociais se
efetivem. A promoção à saúde depende de políticas públicas (de saúde,
educação) que sejam capazes não somente de garantir acesso, mas tam-
bém qualidade de atenção e garantia de direitos humanos. Condições
estruturais e a formação de profissionais capazes de dialogar com plu-
ralidades, revisitar conceitos, desconstruir estigmas são pontos impor-
tantes desse debate.

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178
A IDENTIDADE QUEIXADA COMO SÍMBOLO DE MUDANÇA
SOCIAL E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

Andrea Viude, Soraia Ansara

O propósito deste capítulo é tornar público o testemunho de um dos ícones


do movimento dos Queixadas, trazendo à luz um pouco da história sobre a
luta dos operários da Fábrica de Cimento Perus1, que foi objeto de pesquisa
de Ansara (2000) sobre a memória coletiva da luta operária. Ao trazer à
luz este testemunho, buscamos revelar, por meio da análise de discurso, de
João Breno, a identidade dos queixadas que se construiu como forma de
resistência impulsionada pela “firmeza permanente” destes operários que
são até hoje um símbolo de mudança social e de incentivo à participação
política.
Como afirma Ansara (2009: 241), a luta dos queixadas demarcada pelo
“conflito e enfrentamento contra empresário, justiça do trabalho e gover-
no - marcou a história do bairro e, principalmente, a vida das pessoas, in-
fluenciando as gerações que se seguiram e transformando-se, inclusive, em
princípio ético de novas gerações”.
Construída em 1925 e inaugurada no ano seguinte, a Companhia Brasileira
de Cimento Perus Portland (CBCPP), foi uma das primeiras fábricas no
Brasil, que surge num momento específico da industrialização brasileira.
Como outras indústrias grandes da época, a empresa oferecia aos seus ope-
rários, moradias com infraestrutura (água, esgoto, energia elétrica) a preço
simbólico. A CBCPP se instalou no bairro de Perus, situado a 30 km do
centro de São Paulo, construindo em seu entorno algumas vilas operárias
como Vila Triângulo, Portland e Vila Nova.

1 Perus é um bairro localizado na zona noroeste da cidade de São Paulo.


A presença da Fábrica no bairro contribuiu para crescimento de várias áre-
as que foram loteadas onde foi construída várias vilas como: Vila Hun-
gareza ou Margarida, Vila Fontão, Vila Triângulo, Vila Nova – vilas estas
habitadas, inicialmente por trabalhadores da fábrica.
Os trabalhadores vinham de diferentes regiões de São Paulo (Água Bran-
ca, Lapa, Pirituba, Jaraguá), como também de vários estados brasileiros
(Bahia, Pernambuco, Paraíba, Minas Gerais, Rio de Janeiro, além de tra-
balhadores estrangeiros (provenientes da Itália, Portugal, Hungria, Ale-
manha, Espanha, Argentina Iugoslávia, Rússia, Inglaterra, EUA). A pre-
sença de estrangeiros, nos primeiros anos da companhia, justificava-se
em função da necessidade de trabalhadores especializados em determi-
nadas funções (PAOLI, 1992).
Por volta dos anos quarenta, teve início o movimento dos Trabalha-
dores da Companhia Brasileira de Cimento Portland (CBCPP). Eles
constituiriam o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias do Cimento
Cal e Gesso e, em 1946, fizeram a primeira greve. Em 1950, a empresa
passou para a iniciativa privada tendo como proprietário J.J. Abdalla
que assumiu o controle da companhia. Em 1954, a fábrica tinha cerca
de mil trabalhadores que se dividiam entre São Paulo, onde se localiza a
Fábrica, e Cajamar, distante 20 km de Perus, onde se localiza as jazidas
de pedra para fabricação do cimento. Em fins desse mesmo ano, o “Sin-
dicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Cimento Cal e Gesso” pas-
sou a ter assessoria jurídica do advogado Mário Carvalho de Jesus, que
não só acompanhava as causas trabalhistas, mas propunha uma nova
maneira de luta baseada na “não violência ativa”- que posteriormente se
chamaria “Firmeza Permanente”2.
Em outubro de 1958, os trabalhadores fizeram uma greve que durou
quarenta e seis dias reivindicando 40% de aumento de salário. Em 1959,
foram dispensados oitenta empregados com mais de nove anos de ser-
viço para impedir que atingissem os dez anos de casa e ganhassem es-
tabilidade, conforme a lei lhes garantia. Desde então, aconteceu uma
sequência de lutas: pela estabilidade, pelo salário família, pelo prêmio-
-produção, pela casa própria (ao redor da fábrica). Todas as reivindica-
ções foram marcadas por um tipo de enfrentamento diferente, que se

2 JESUS, Mario C. (org.). A Força da Não-violência Ativa: A Firmeza Permanente, Loyola-Veja, 1977.

180
baseava na orientação da “não violência ativa”3, cujo lema era resistir,
sem usar de violência, o que significava não aceitar nenhuma provoca-
ção por parte da polícia.
Essa forma de luta deu origem ao nome “Queixadas”, nome este atribuído
aos trabalhadores e que significa porcos do mato que ao perceberem o pe-
rigo, reúnem-se em manadas, obrigando o inimigo a refugiar-se. O “Sin-
dicato dos Queixadas” - como passa a ser conhecido - chegou a sindicalizar
99% dos trabalhadores assalariados. No período de 1954 a 1961, foi criada
a cooperativa do “Queixada” com a finalidade de ajudar os companheiros
que tivessem algum problema de família.
Os Queixadas, em 1959, além de suas reivindicações na fábrica se solidari-
zavam com outras categorias ajudando-as nas greves da Rhodia, da Fiação
de Tecelagem Santo André, da Usina Miranda. Seu estilo de luta inspirou
a formação da Frente Nacional do Trabalho (FNT) – criada em 1960 - que
procura defender todas as categorias sindicais, por meio do assessoramento
jurídico e formação de lideranças sindicais.
Em 1962, os trabalhadores da Companhia Perus-Portland iniciaram um
movimento grevista que se estendeu até 1969. O movimento reuniu, no
início, quatro sindicatos: Alimentação de Pirajuí, Têxteis de Jundiaí, Papel e
Papelão de São Paulo e os Queixadas de Perus num total de 3.500 trabalha-
dores que apresentavam reivindicações comuns não atendidas pelo mesmo
empregador: o grupo Abdalla. Esse grupo era proprietário de um grande
complexo industrial, bancário e agropecuário, além de ter referências polí-
ticas que lhes davam certas regalias junto ao poder público, conforme nos
aponta Gonçalves (1989).
Durante os sete anos de greve, os trabalhadores fizeram diversas campa-
nhas para angariar fundos. Atividades que envolviam mulheres e filhos. As
mulheres dos grevistas organizaram também uma cooperativa de costura
para cobrir a ausência dos salários. Além disso, os Queixadas receberam
recursos de algumas autoridades que eram simpáticas à causa dos traba-
lhadores. Vale assinalar que o estilo de luta desses operários sensibilizou a

3 Este princípio da não violência ativa foi utilizado por outros movimentos sociais na época, entretanto
como aponta Ansara (2004) “havia um estilo próprio assumido pelos Queixadas que, posteriormente,
foi denominado Firmeza Permanente Esta proposta inspirada na filosofia de Gandhi e fundamentada
em valores evangélicos tinha como principio a resistência dos trabalhadores e a eficácia da não-
violência” (p. 129).

181
opinião pública da época, que passa a apoiá-los. Esse período, em contra-
partida, foi de grande repressão por parte do DOPS (Departamento de Or-
dem Política e Social) e da polícia. O DOPS, como forma de intimidação,
realizava várias “visitas” à casa dos operários (PAOLI, 1992).
Com o golpe militar de 1964, o Sindicato dos Queixadas foi um dos primei-
ros a ficar sob intervenção e seus dirigentes sofreram inquéritos e prisões.
Em 1967, os operários conseguiram a estipulação de multa diária para re-
ajuste dos salários. Isso repercutiu na imprensa e no sindicalismo. Obti-
veram ainda o direito de greve, garantido pelo governador do Estado. Em
1969, dos quase mil grevistas, 309 operários estáveis foram reintegrados
com direito a receber os salários dos sete anos de greve.
Os Queixadas continuaram a luta denunciando as fraudes e corrupção e
reivindicando a co-gestão da fábrica. As denúncias eram contra as infra-
ções cometidas por J.J. Abdalla: contra a legislação, a burla dos direitos tra-
balhistas, entre outras, conforme nos aponta Gonçalves (1989).
Os inúmeros processos abertos contra o grupo Abdalla teve como resul-
tado, no ano de 1973, o confisco parcial dos bens da Fábrica de Cimento.
A União passou a administrar a fábrica. O empresário permaneceu com a
posse das pedreiras, vendendo a pedra superfaturada. Isso mobilizou no-
vamente os trabalhadores que, em 1974, pediram ao presidente Geisel, por
meio de abaixo-assinado, que fosse efetivado o confisco total, o pagamento
dos salários em atraso e a instalação de filtros na fábrica para acabar com a
poluição provocada pelo pó de cimento (PAOLI, 1992).
Em 1974, o sindicato sofreu nova intervenção que perdurou até o ano de
1977, sendo seu advogado, Mario Carvalho de Jesus, enquadrado na Lei
de Segurança Nacional (LSN). O sindicato, junto com a Frente Nacional
do Trabalho (FNT), denunciou o governo brasileiro pela violação do direi-
to de organização sindical dos trabalhadores, encaminhando a denúncia à
Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 1976, a OIT interpela o
governo brasileiro que suspende a intervenção de seis sindicatos, entre eles
o dos Queixadas.
A greve dos sete anos4, que terminou em 1969, foi julgada no âmbito jurídi-
co várias vezes e finalmente, em 1975, o governo federal pagou os salários

4 Existe várias publicações (cartilhas ou revistas) – que não encontramos em outros acervos - disponível
para consulta na Sede do Sindicato de Cimento, que foi tombado como patrimônio histórico.

182
do período de greve – 2448 dias. Os operários saíram vitoriosos tendo o
patrão, J.J. Abdalla, seus bens confiscados pelo Estado. Os operários se jun-
taram à população de Perus para lutar contra a poluição, exigindo equipa-
mentos para a eliminação do pó que saía da fábrica.
Em 1981, o governo federal, com o objetivo de ter suas dívidas ressarcidas,
coloca a fábrica para concorrência pública. A iniciativa privada, procuran-
do reforçar a baixa do preço que o governo propôs, não participou do leilão.
O grupo Abdalla se associa ao grupo Sérgio Stefano Choffi apresentando
única oferta. Os herdeiros de Abdalla conseguem, dessa forma, recuperar
a fábrica.
Em 1983, a administração da Fábrica de Cimento Perus decide encerrar
as atividades da pedreira dispensando cerca de 170 operários, e passou a
comprar o clínquer5 (pedra calcinada) da Fábrica de Cimento Santa Rita
(multinacional).
Em 1984, o fornecimento de clínquer é suspenso pela Fabrica Santa Rita,
interrompendo a moagem. A partir daí, a falta de matéria prima fez com
que a fábrica paralisasse suas atividades inúmeras vezes.
A luta dos Queixadas foi além das simples reivindicações trabalhistas, era
uma luta contra as leis trabalhistas injustas e contra as fraudes e corrup-
ção e de solidariedade a outras categorias sindicais. Os anos oitenta foram
marcados pela denúncia do cartel de cimento e pela luta junto a outros
segmentos da sociedade, como por exemplo, os sem teto. A proposta dos
trabalhadores era de autogestão da fábrica e o objetivo era garantir cimento
mais barato para a construção de casas para a população que morava em
barracos. Pouco a pouco, a constante falta de matéria prima levou ao fecha-
mento definitivo da fábrica em 1986.
Os aposentados (ex-operários) incorporaram a luta pela preservação da
ferrovia que ligava a fábrica às jazidas de pedra e do seu acervo (1987),
propondo em 1989 o tombamento da Vila Triângulo (área da antiga Fábri-
ca de Cimento) e em 1990, participando da oficina de memória desenvol-
vida com a assessoria técnica do Departamento de Preservação Histórica
(DPH), sob a orientação da professora Maria Célia Paoli, que tinha o ob-
jetivo de assessorar os ex-operários e membros de diferentes movimentos

5 Clinquer: produto resultante da mistura de pedra e argila trituras e calcinadas (a 1500ºC) matéria
prima para a produção de cimento.

183
populares do bairro na organização e sistematização dos seus arquivos para
preservação de sua memória6.
O movimento grevista de operários que perdurou sete anos ao longo da
ditadura militar no Brasil (1962-1969) demonstrou capacidade de mobi-
lização e organização para manter uma greve durante tantos anos. Luta e
resistência marcaram a trajetória deste movimento organizado e mantido
por sua “firmeza permanente”. Estas características, como já apontamos em
outras publicações, reaparecem na memória coletiva de netos dos Queixa-
das, de lideranças que atuam ainda hoje no Sindicato de Cimento e de li-
deranças comunitárias do bairro, mostrando que este evento não “caiu” no
esquecimento e de diferentes formas é ressignificado em nossos dias, seja
pelo que se ouviu falar, seja pela vivência familiar, comunitária ou política,
ou ainda, pela permanência da fábrica no bairro (ANSARA, 2000, 2001,
2004).
A memória construída por netos, lideranças sindicais e comunitárias é uma
memória da resistência, do engajamento dos trabalhadores na luta contra
a exploração numa perspectiva de mudança social e não num sentido con-
servador, em geral fomentado por instituições oficiais. Isso de alguma ma-
neira demonstra o comprometimento do sindicato, das comunidades e da
escola local com os movimentos sociais e aqui vale ressaltar os projetos
organizados por várias escolas em Perus, envolvendo a participação com
movimentos populares e comunidades eclesiais de base. A memória resgata
o acontecimento real, aquilo que é vivido pelo grupo ou indivíduo e, neste
sentido “atende a um processo de mudança ou conservação” (MONTENE-
GRO, 1994: 19).
O grande Legado da Greve de Perus é a construção de uma memória co-
letiva de luta e resistência, que é também expressão da vitória dos traba-
lhadores contra os atos repressivos e contra as injustiças que sofreram.
Talvez porque nas memórias “contadas”, o que foi sendo transmitido de
geração para geração foi aquilo que estava no centro da identidade Quei-
xada: a “firmeza permanente” - a resistência! Resistência essa que tem, para
as gerações atuais, um significado de se contrapor as injustiças sociais e as
formas de repressão, pois até hoje eles são referenciais de união, organiza-

6 O DPH, na ocasião, organizou um curso de orientação a agentes populares de Perus, através da SMC.
Ver Revista do Arquivo Municipal nº 200 – PMSP/SMC/DPH. Neste mesmo ano a Fábrica foi tombada
como Patrimônio Histórico.

184
ção, solidariedade, ou seja, o oposto àquilo que a sociedade neoliberal atual
promove como valor.

O lugar da interpretação: trilhas metodológicas

A trajetória deste movimento operário ganha sentido com o discurso de


uma de suas7 principais lideranças, um dos ícones dos Queixadas: João
Breno Pinto, nascido em Piedade do Bagre (atual Felixlândia), em Minas
Gerais, no dia 06 de outubro de 1932. Este líder do Sindicato de Cimento
de Perus chegou a Perus em 1949, tendo trabalhado como metalúrgico na
extinta Fundição Progresso, no bairro da Lapa, em São Paulo (1950-1953).
Segundo Siqueira (2001, 2009), foi nesta época que ele teve contato com
o PCB, chegando a se integrar à agremiação clandestina. Quando da sua
demissão, em 1953, que se deu em virtude de sua atuação como liderança
nesta Fundição durante a “Greve dos 300 mil”, foi encaminhado ao depar-
tamento jurídico do sindicato da categoria, tendo sido atendido pelo advo-
gado Mario Carvalho de Jesus, que até então não o conhecia. Tal advogado
viria se tornar advogado do Sindicato de Cimento e um grande companhei-
ro de João Breno, um dos nomes mais referendados na luta dos Queixadas,
na defesa dos operários, na luta pela justiça e no ensinamento da “firmeza
permanente”, que marcaria o estilo de luta dos Queixadas. No ano de 1954,
Breno começa a trabalhar na Fábrica de Cimento de Perus na qual perma-
neceu até 1982, quando se aposentou. Como aponta Siqueira (2009: 165)

(...) em l956, houve eleição da diretoria. Breno foi, nessa ocasião, in-
dicado suplente através do que ele (em depoimento colhido para a
dissertação de mestrado) chamou de – reforma –, uma composição
política com a antiga liderança. Em 1958, Breno se tornaria diretor
efetivo do sindicato durante a greve.

Desde o início de sua atuação na Fábrica participou de várias greves a de


1958, a de 1959. Assumiu a presidência do Sindicato de Cimento, em 1962,
liderando a mais longa greve, de 1962 a 1969. Além de dirigir o sindicato,

7 O discurso de João Breno, pertence ao arquivo de Ansara e foi coletado por meio de entrevista
realizada em 17 de maio de 1999, em sua residência. João Breno faleceu em dezembro de 2002.

185
atuou como dirigente na Frente Nacional do Trabalho (FNT)8 em várias
gestões.

Na década de 1960, foi candidato a deputado estadual pelo antigo


MDB em 1966, além de ter sido preso e torturado pelo regime mi-
litar. Em 1981, integrou a comitiva que foi a Estocolmo, na Suécia,
acompanhar a entrega do Prêmio Nobel da Paz ao argentino Adolfo
Peres Esquivel. Em 1989/1990, no governo da Prefeita Luiza Erundi-
na, trabalhou na Administração Regional de Perus como assessor (já
era aposentado nessa altura). No período posterior, atuou na Asso-
ciação dos Aposentados de Perus. (SIQUEIRA, 2009: 165)

Incansável militante, concomitantemente à sua atuação na Associação dos


Aposentados, João Breno até o fim de sua vida participava das atividades
das Comunidades Eclesiais de Base do Centro de Defesa dos Direitos Hu-
manos, também em Perus. Faleceu, em dezembro de 2002.
A entrevista realizada com João Breno fundamentou-se na Análise de
Discurso, na linha francesa de Michael Pêcheux, na qual para esse autor o
“discurso é um efeito de sentidos entre locutores” (ORLANDI, 2010). Nesse
sentido a entrevista necessita de um roteiro prévio, cuja fundamentação
refere-se ao processo sóciohistórico do sujeito com o qual se conversa. O
curso da entrevista, por sua vez, terá no encontro desses sujeitos uma res-
significação da entrevista. Com duração de mais de quatro horas, a con-
versa com João Breno ocorreu na cozinha de sua casa e iniciou-se com um
roteiro de entrevistas contendo 22 abordagens do movimento Queixada,
desde o processo de greve até as repercussões desse movimento nos dias
de hoje.
As análises das transcrições seguiram a busca pelo sentido, pelo real senti-
do, lembrando que um sujeito não é produtor de um único discurso, mas,
nele e por ele, operam múltiplos discursos. A análise é uma busca pelo pro-
cesso discursivo, e nele se alimenta para compreender e significar o texto
ou os textos nos quais essa significação se materializa.

8 A Frente Nacional do Trabalho – FNT – foi criada em 1960 com o objetivo de defender todas as
categorias de trabalhadores, por meio do assessoramento jurídico e atuar na formação de lideranças
sindicais.

186
A identidade Queixada

“Vou falar um fato que foi muito curioso do Zacarias. Ele era um compa-
nheiro de cor, disposto, muito alegre, mas, analfabeto de todo. Foi sempre
um cara firme, barbaridade! De brigar mesmo, não tinha medo de nada. E
deram um megafone para o Zacarias, para ele, nessa proposta já, numa das
propostas que foi feita, nesse meio todo ele mexia em tudo. Então, a gente
colocava dentro da proposta, a empresa atendia as reivindicações todas, no
caso da (...) em si e as propostas específicas das outras categorias. O (...) co-
locava, aceitava as nossas reivindicações ou então nós íamos reivindicar a
desapropriação da fábrica. Que foi muito simpática naquela época, foi muito
simpática naquela época a desapropriação da fábrica. Mas só que não deu.
Então, mas, também, nós não estávamos muito afim. Nós queríamos. Você
queria, no fundo a coordenação queria esse tipo de coisa. E o Zacarias ficou
trabalhando nesta banca da rua Direita. E tinha apoio: um lençol no chão;
os panfletos, mas nossa como juntava! Principalmente estudantes. E um dia,
a gente passava de vez em quando por ali, a gente girava por ali. E um dia eu
estava passando por lá, me chamaram; a gente girava em tudo que era canto,
e me chamaram e disseram: - olha está surgindo um rolo lá com o Zacarias.
Eu fiquei com medo! Eu estava ali no Largo São Bento. Eu peguei e voltei lá
na ponta, lá na Rua Direita e o Zacarias: “vamos ver aqui coitado!”. “...Eu
acabei de discutir com um Sr. ali! Aí foi assim, assim, ele veio me ensinar a
falar e eu não vou levar isso para casa não! eu vou dar a resposta para ele”.
Aí, o (...) fora ali, os companheiros nossos que estavam na banca também,
até as pessoas que estavam participando daquilo informaram como é que foi
o negócio. Então, é o seguinte: que o Zacarias estava falando mais ou menos
isso, não dá para mim repetir as palavras certas, dizia ele mesmo: “ ou atende
as nossas reivindicações ou então nós de acordo com artigo 36, “sarrafo”, não
estou lembrando o número, artigo 36 e sarrafo, não estou me lembrando qual
era, que era o “parágrafo”, 90, não sei se era isso, nós vamos desapropriar a
fábrica!. Ele era eloquente, saia andando daqui para lá, era muito divertido.
Aí criou um rolo! E o cara enguiçou com ele, daí diz que o Zacarias falou: oh!
o Sr. quer saber o seguinte? quem o Sr. é? – Não importa quem eu sou! – Eu
acho que fica feio para vocês. “o que é que fica feio para nós é nós mesmo que
sabemos!”. Zacarias! Isso para mim foi o máximo. De todas as coisas que
houve, para mim isso foi o máximo partindo do Zacarias. E aí o cara quis
contestar e a turma juntou toda e o pau ficou armado, a plateia aumentou e
a propaganda subiu mais. O ibope! E aí ele disse: não é sarrafo é parágrafo!

187
O Zacarias falou: quer que eu te diga para você uma coisa: cala a boca!. Você
conheceu o Zacarias? Ele é assim meio estourado, mas não era de briga. Era
estourado, falava alto, aquele jeitão, gesticulando. “Cala a boca! Eu estou fa-
lando para o povo!”. Se fosse o povo que estivesse dizendo isso eu ia ter uma
aula com você. Era inteligente, tinha um pessoal bom! Era analfabeto! Se fosse
o povo todo que estivesse falando eu ia até escutar, mas é só o Sr. que está
falando! Então eu vou consultar o povo: Vocês concordam que é sarrafo? – É
sarrafo! Vocês estão entendendo? – Estamos! O povo entendeu, então, o Sr. pi-
nica!. Isso era um escândalo naquela época, Soraia. Hoje até..., mas naquela
época o Zacarias. Espetacular” (João Breno, 1999).

Em meio a tantas possibilidades de iniciar suas memórias sobre a greve de


1962 a 1969, João Breno, uma das lideranças dessa mobilização escolheu o re-
lato de um fato vivenciado pelo seu companheiro Zacarias. Interessante esco-
lha, pois nessa passagem múltiplos discursos se apresentam e se relacionam
de modo importante com a identidade queixada. Um discurso muito presen-
te em movimentos de greve é o da desqualificação do grevista por sua baixa
ou inexistente educação formal. No caso de Zacarias esse fato fica evidente
pelo não domínio da norma culta da língua portuguesa, decorrente tanto do
analfabetismo como também de um reduzido vocabulário, observado pela
troca vocabular de “parágrafo” por “sarrafo”. Ao ser questionado sobre seu
domínio linguístico, Zacarias não cede ao discurso hegemônico da educação
formal como requisito para a comunicação e constrói pela identidade socio-
cultural, com seus interlocutores na Rua Direita, suas respostas. Em primeiro
lugar ao dizer “o que é que fica feio para nós é nós mesmo que sabemos!”, nesse
momento fica circunscrito os limites de identidades, o pertencimento a um
grupo, com possibilidades de significados culturais que os unem, fortalece
ações, mesmo por sujeitos que em outros cenários poderiam se sentir inti-
midados por outros interlocutores detentores da norma culta. Na sequência
Zacarias utiliza a identidade com o povo que o ouvia, buscando nesse grupo,
que não o dos queixadas a possibilidade de compreensão de sua fala, o que
ocorre e que lhe fornece possibilidade de exercitar o poder, antes nas mãos
do detentor da norma culta e agora, depois do desvelamento público dos dis-
cursos identitários dos queixadas e do povo , nas mãos do negro, analfabeto,
queixada e do povo.
Nesse exercício de participação, João Breno nos mostra também como ela é
política, ao questionar como os lugares de poder se modificam na ressigni-

188
ficação dos sujeitos pela militância. Nesse sentido ele nos explica como as
ideias de não violência, à luz de Gandhi, permeiam o movimento de greve,
e que passa a ser reconhecido como Firmeza Permanente.

“O único que colocou pela primeira vez de Gandhi foi o Padre Bianchi. O
padre Bianchi colocou que não esgotou todos os recursos. “...Esgotando todos
os recursos pode-se até matar!...”. O Bianchi falou isso. Não aguardei tudo o
que ele disse. Mas, o essencial a gente guarda. Duas pessoas falou isso para
nós. Depois, posteriormente, o Dom Jorge Marques de Oliveira falou isso para
nós. Segura isso aí que depois eu vou contar isso para você. Aí ele falou: “esgo-
tando todos os recursos de uma camada social pode-se até matar”. O Biachi
falou, naquela época. E aí ele explicou: - vocês já ouviram falar de Gandhi?
Ele começou a falar um pouco sobre Gandhi, sobre o jejum, abstinência, etc.
até aí não pegou muito. Mas, qual foi o exemplo que ele deu do Gandhi, agora
me fugiu! Eu queria falar e me perdi. Depois eu acabei me metendo no meio
do Gandhi também, mas eu dei um ponto do Gandhi lá, sobre não matar.
Sobre em primeiro lugar está (...), aí ele falou: - é a não violência!. Depois o
Mário sim, o Mário criou a “firmeza permanente”. Eu acho que é bem mais
avançado. Foi o Mário mesmo, o Mário que inventou. Não digo que é mais
avançado, acho que é mais atual. E Dom Paulo assinou em baixo da “firmeza
permanente”. Eu sei que naquilo tudo ele falou. Eu quero propor para vocês;
não lembrei as palavras dele! E depois ele falou assim: tem o seguinte – jejum!
Oração! Oração o que é que é? não é só repetir as palavras, são atos. Naquela
época, um (...) ruim! Hoje nós estamos bom demais. Por isso é que eu falo um
Bianchi naquela época. E aí pegou a discussão em cima disso. Aí foi quando
marcamos, para o Natal, foi quando marcamos lá a assembleia decidiu, o
padre Bianchi deu a linha e a assembleia decidiu um jejum, um jejum em
praça pública. Aonde seria? – não vou entrar em detalhes senão vai longe.
Mas houve a participação da assembleia e aí voltou, interessante!, voltou a
alegria na assembleia!” (João Breno, 1999).

A Firmeza Permanente, um desenvolvimento da prática de não violência, é


uma das característica dos Queixadas. Entendido como resistência perma-
nente, permitiu aos grevistas sobreviverem ao longo dos sete anos de greve.
A resistência não foi restrita aos operários, suas famílias sentiram e muito
os efeitos dessa greve, e com a mesma resistência registraram sua impor-

189
tância nessa história. A seguir na fala de João Breno teremos discursos de
gênero, de militância e solidariedade.

“Agora, eu não quero é continuar nessa linha que está meia periférica. Porque
tem o miolo da questão, também, que eu acho que é importante. O miolo é o
seguinte, por exemplo falar desse pessoal que não estava participando nessa
altura que nós estávamos e que teve o seu papel, principalmente as mulhe-
res; não é porque você está me entrevistando. Principalmente as mulheres. ...
Então, por exemplo que eu falei para você da dona Iolanda. Eu vou falar da
dona Iolanda que era a esposa do 2º tesoureiro do sindicato, Rafael Fernan-
des. Essa Dona Iolanda quando começou, que a coisa piorou mesmo; tem
aqueles que vão aguentando, aguentando, sem pegar os recursos da greve.
Tem uns que já logo no começo, e tem até nego também; e a gente sabia disso,
porque o ser humano é assim, não quer dizer que todos, mas o ser humano é
assim. Eu não fui e voltei para trás tantas vezes! E daí? E outras coisas mais!
E o seguinte: tinha famílias e aí nesses casos é as mulheres, que geralmente
os homens estavam rolando; e as mulheres tinham muitas que participavam,
tinham as atividades das mulheres também, que não vinham na sede para
pegar, como é que se fala? Eu não estou lembrando a palavra, a ajuda do povo
que deixava. (Famílias) Não vinham (buscar), não vou dizer por orgulho, até
mesmo por dizer: deixa para fulano, deixa para sicrano. Então, daí, essa dona
Iolanda, eu não sei como é que foi que ela descobriu. Mas, conhecendo a dona
Iolanda como eu conheci, ela sondou e viu que tinha muitas famílias que não
pegavam nada e que estavam precisando. E descobriu que muitas que pega-
vam, talvez até podia ter deixado um pouco. Era sozinha percebeu isso. Ela
veio conversar com a gente, era legal a Dona Iolanda. Espírita, daquelas mes-
mo de fazer os despachos junto com o Zacarias: - o João Breno não gostava!
Até tem uma fita que ele gravou, ele falou assim: - o João Breno não gostava!
Eu ia fazer os despachos, mas bem que ele ia rezar lá na igreja dele! Aí essa
Dona Iolanda, veio propor, ela era muito humilde: - não sei, o que é que vocês
vão achar, mas eu estava pensando se vocês não acham que era bom reunir
umas companheiras aí. Naquele tempo não falava companheira não. Com-
panheiro veio depois, no tempo do PT e mesmo assim não é tão companheiro
não! É verdade né Soraia. De reunir algumas donas de casa eu me disponho
a fazer isso, junto! Sozinha não! porque eu não posso julgar ninguém. E nem
3 companheiras juntas podem julgar, mas uma ajuda a outra. E nós sair nas
casas das pessoas para saber se está faltando alguma coisa em casa. Ela já
tinha todo plano que ela tinha organizado ela mesma, e ela já tinha passado...

190
Então, nós tudo bem, tudo bem dona Iolanda a ideia é ótima. Mas será que
isto está acontecendo? – Vocês não sabem! Quer dizer que eu posso? - Falei:
Meu Deus do céu! Não precisa nem perguntar se pode. Acho que isso foi uma
das coisas mais sérias que teve. Quer dizer, não vou dizer que foi a mais séria,
mas foi muito importante. Então, a Dona Iolanda começou a correr as casas
mesmos e conversar com as pessoas e, chegou ela mesmo a ir levar nas casas;
e a gente nem perguntou porque é que era, não havia razão de perguntar.
Talvez a dona da casa lá não tivesse mesmo a coragem. Não sei se é coragem,
a gente não é adivinho, para pegar. Ela tomou conta daquilo, e foi indo e o
negócio era tudo controlado”(João Breno, 1999).
A solidariedade entre as mulheres, o reconhecimento do trabalho delas no
movimento e a experiência que se construiu ao longo dos sete anos foram
fundamentais para a união dos grevistas, união esta muito significativa
para o líder do movimento.

“Que lembranças mais significativas: eu acho que a mais significativa para mim
foi o símbolo da, o símbolo não! foi a união dos trabalhadores coisa que a gente
estava começando uma greve; motivo fez com que eu entrasse na greve e no
fundo eu não esperava que essa greve fosse durar aquele tempo todo. Eu nunca
pensei que fosse durar aquele tempo todo e, de repente demora tanto tempo,
com tanto vai e vem, com tanto encontros e desencontros e a gente manter 92%,
93% de companheiros unidos praticamente até o fim, até enquanto todos esta-
vam fora, até voltarem todos ao trabalho depois de muito tempo. Eu acho que
isso foi um dos pontos mais significativo que eu percebi. Que nunca me passou
pela cabeça. A gente pensava que entrava numa greve, amanhã ou depois podia
até ser de um jeito ou de outro a greve, mas que amanhã ou depois ela ia termi-
nar. Esse amanhã ou depois eu nunca pensei que fosse levar o tempo que levou.
Então, eu acho que o mais significativo foi esse” (João Breno, 1999).

O desejo de mudança, não apenas uma mudança individual, mas sobretudo


coletiva, com melhorias de condição de trabalho foram a motivação para
a entrada de João Breno na greve, retomando o discurso identitário, agora
como trabalhador.

“Qual foi a minha principal motivação em participar e em contribuir com a


greve? A minha principal motivação é porque eu era trabalhador, né? Então

191
havia uma injustiça muito grande com todos nós; esse era um motivo para
eu ficar motivado. Uma parte grande, não vou dizer que todos estavam moti-
vados, mas quando eu senti alguns motivados para aquilo eu também estava
motivado. E essa era uma motivação muito grande” (João Breno, 1999).

Entre todas as injustiças que motivavam os trabalhadores, talvez a mais


dolorida era a condição de trabalho que podia levar à morte. Em sua fala,
João Breno narra a perda de um companheiro, longe de ser fato isolado, a
morte, companheira dos trabalhadores fortalecia o discurso de proteção ao
trabalhador.

“... E eu estou chegando lá e eu vi a mulherada toda apavorada. Ficava tudo


pertinho, as casas. E a mulherada toda apavorada e a turma conhecia a gen-
te. E eu foi bom chegar: - está acontecendo isso e aquilo... você não escutou o
barulho? Não, não escutei não! Já fiquei apavorado – o que é que é? o que é
que não é? aí corri para lá. A gente entrava na pedreira. Corri para lá. Aquele
rolo todo e aí quando eu corri para lá vem correndo o Zelão. Lembro bem do
Zelão, negão alto, sossegado . Nesse dia ele vem correndo e vira para mim e
diz: Breno, Breno! Puxa! Você viu o que aconteceu? Eu não vi nada. O que é
que foi que aconteceu? Ele falou: os marreteiros entraram e justo quem João
Breno? Justo quem? – Ele ficava falando – Fala logo quem é? lembro bem.
Nossa! eu lembro disso bem. Ele falou: O Amaro! O Amaro o que? O Amaro
na 1ª marroada ele achou o veio! Tinha um nome eu não sei se era “matacão”,
eles falavam da pedra. Ele achou o veio e na 1ª marroada que ele deu o di-
namite tinha falhado e bateu na espoleta... A turma está catando os pedaços
dele. Eu me lembro disso e me arrepio. Quantos anos faz isso? Eu conhecia a
mulher dele, os filhos. Tinha um que tinha apelido (...), era amigo dos meus
moleques e, depois, veio morar para cá da Purificação. Então, você vai ver. E
depois, teve outros casos. O que eu mais senti não é o que eu mais senti, por-
que quando a gente não vê a gente não se impressiona. A gente senti. Eu não
vi a explosão, mas eu vi lá catar os pedaços dos companheiros. Então, você vê
como eram as coisas naquela época...” (João Breno, 1999).

Com todas essas experiências, resistência das mulheres, péssimas condições


de trabalho, risco eminente de morte imagina-se que os queixadas são por
natureza corajosos e destemidos. Um discurso de medo poderia manchar a

192
reputação de um líder, ou mesmo desmoralizá-lo diante de seu grupo. Mas
quando ele nos relata ser medroso o sentido de seu discurso nos evidencia
um homem comum, com ideais, família, emprego e que tinha medo. Sua
escolha poderia ter sido dizer “eu não tenho coragem” porém sua fala foi
“eu sou medroso”. Essa escolha aproximava esse homem dos demais, que
poderiam idealizar como um grande corajoso, mas os atraía por seu medo,
tão presente naquela época. O uso de medo ao invés de falta de coragem
pode nos levar a pensar sobre o tempo vivido durante o período de greve.
Momento em que não se questionava a hegemonia dos patrões e momento
também da ditadura militar, onde imperava o medo. Coragem não era pa-
lavra que se empregava, o medo sempre estava presente.

“E o Mário vem: João Breno... contando as coisas, explicando exemplo, onde


ele esteve, como é que foi, como é que não foi. Passando a lição a limpo. E
ele corria muito no carro. E quanto mais ele conversava e começava a se en-
tusiasmar... mas ele colocava o pé. E eu era medroso, eu sou medroso. Aí eu
falei tem que segurar o Mário. Aí ele estava falando, um pouco colocava e eu
já conhecia a vida dele. Aí eu falei: Mário! Ele falou: o que. Aí ele deu uma
parada no carro subindo aqui a curva da (...), lembro bem! Ele subindo a
curva da (...). Mário você está falando esse monte de coisa, eu já vi muita
coisa que você fez, que a gente está junto e coisa e tal. Agora eu fico pensando,
você está falando e eu estou remoendo o que você está falando, Mário eu já
vi tanta gente falar, não tanto que nem você e não no sentido que você fala.
(...) ele baixou a cabeça e se sentiu (...). Tenho impressão que foi isso, é tanto
que depois ele chegou a falar isso para outras pessoas. E eu falei, uma grande
parte de pessoas assim entusiasmada, fala tudo isso, daquilo e depois vão
desanimando ou se cansam, fui colocando uma porção de coisa, e depois vira
tudo como era antes. E não vai para frente. Aí ele me deu uma, mas aí é que
eu grudei mais. Deixa eu ver se me recordo. Eu tenho isso naquele livro de
testemunha. Aí ele virou e falou para mim: João Breno, tocou o carro, o carro
mais devagar, foi e pensou bastante. Quando ele está pensando é gozado: ele
diminui a marcha e encolhia a cabeça. João Breno você me fez uma pergunta
muito séria e oportuna. Eu sou um instrumento de Deus! Eu me conside-
ro um instrumento de Deus...Eu sou um instrumento de Deus e tenho um
compromisso com os meus irmãos operários. Enquanto houver quem acredita
nessa proposta estarei firme. Aí quem balançou fui eu” (João Breno, 1999).

193
Em uma avaliação sobre os efeitos da greve João Breno nos fala sobre sua
família e sua constante ausência, sua confiança na esposa e seu maior com-
promisso, a grande família, em referência aos companheiros. Aqui mani-
festam-se o discurso de valores, o valor da mulher que diferentemente do
homem conhece seu lugar na família, o valor do trabalho, que pode colocar
em segunda plano a família e o valor de pai, que não ultrapassa a questão
genética.

“Na consciência política e nisso tudo. Porque não que eu quisesse fazer isso.
Porque eu não tive tempo para os meus filhos, nem para a minha mulher. Não
tive tempo. Se eles pegaram alguma coisa foi por eles próprio. Se algum deles
sente alguma revolta; eu sei que sente, embora eles gostem da gente como pai,
foi eles mesmos que pegaram. E eu não posso criticar nenhum dos meus filhos.
Agora com isso também, não é porque eles não quisessem que eu fizessem
que eu deixava de fazer. Eu acho que o compromisso maior é com a grande
família. Mas nem nunca deixar, por exemplo, abandonada a minha família.
Embora eu deixei, mas eu sabia a mulher que tinha.” (João Breno, 1999).

Ainda refletindo sobre a greve dos Queixadas, João Breno fala sobre a atual
situação de Perus, sem oferta de emprego o bairro vive na e pela saudade
da fábrica, com ela os empregos existiriam, prevalece nessa ausência do
discurso favorável à greve, a presença de um discurso hegemônico pela pre-
sença do capital.

“Isso é complexo (importância da greve para Perus). Criou uma polêmica


muito grande e ainda é polêmica até hoje. Até hoje a maioria da população
mais antiga em Perus e a população menos esclarecida, apesar de ter tido a
greve aqui e o povo acostumado a estar ouvindo os donos de Perus, os coro-
néis. Então, a palavra desse pessoal era palavra de ordem. Então o forasteiro
aqui não tinha vez. E isso para eles está escrito. Então, eles insistem que fe-
chou a fábrica de cimento se ela estivesse virando não estava esse desespero.
Desespero em Perus não tem uma visão mais ampla. Desespero em Perus é só
ver o desespero e a fome em Perus. Está restrito ao bairro e vai por isso na ca-
beça. Então foi por ter fechado a fábrica. Em certos aspectos até tem sentido.
Não teria! Se tivesse boas escolas aqui desde o começo e uma discussão mais
aberta. Porque no fundo no fundo a fábrica de cimento foi Perus. Ela chegou

194
antes de Perus. O Abdalla disse uma vez isso nas nossas reivindicações contra
o pó. Quem tiver incomodado que se mude. Porque a fábrica chegou aqui
primeiro do que o povo” (João Breno, 1999).

Exemplo de que a mudança é um processo e não uma imposição, João Bre-


no nos mostra como ao longo de toda sua vida deu-se a transformação de
sua relação com a fábrica, do ódio ao amor, ele nos conta que o processo de
identidade do trabalhador com seu local de trabalho é uma das condições
para a mudança, e que a memória coletiva tem lugar de destaque nesse ca-
minhar.

“Quando eu aposentei eu sai já com sequelas da fábrica de cimento e eu ainda


raciocinava assim, Soraia: essa fábrica é uma desgraça! Eu nunca mais vou
passar na porta dessa fábrica... fiquei muito sem passar. Não passava na por-
ta da fábrica.” (João Breno, 1999).

“Até que depois, você vê como é as coisas; aí é que eu fico mais pensando
quanto tempo foi perdido. Daí, no governo da Erundina, e que foi levan-
tado esse problema da história, da memória e que a gente começou a estar
conversando, a gente começou a ver os companheiros falar, a empolgação de
alguns companheiros; tudo companheiro antigo, enfim e eu sei lá! A conversa
mesmo com o pessoal mais comprometido; quando começou ver isso, então,
para mim foi uma mudança total. Eu que achava a fábrica um monte de
ferro velho, hoje acho uma beleza, fico doido de ver como é que estão fazendo
com a fábrica. Eu acho que é por aí.Eu fui vendo a importância, não é voltei,
é que estou aprendendo, nem foi voltar! Eu lutei que nem um ser irracional
que estava sendo explorado, junto com a maioria, mas foi a briga da explo-
ração contra a exploração, sem nada; quer dizer se não tem uma pessoa de
cabeça, se surge aí um oba oba, como surgiu, e coisa e tal, mas se o negócio
vai para uma consequência maior, a gente era capaz até de morrer, você está
entendendo? Mas em defesa de que? – Nem era do trabalho! Como passou
o tempo! Passou o tempo e é por isso é que eu acho, que eu acredito numa
virada desse país, mas de que a militância seja militância mesmo. E que não
entra aí no oba oba! A gente vê até hoje que é oba oba, e as vezes as pessoas
pensam que não é oba oba. E mesmo sem oba oba, fazendo um trabalho sério
eu acho que; porque não adianta, ao meu ver, não adianta medidas paliati-

195
vas. Agora para pegar uma medida que não seja paliativa tem que ter o povo
preparado.”(João Breno, 1999).

Militância e participação precisam ser aprendidos. João Breno destaca esses


dois aspectos como necessários para a mudança social. Isso permitiria a
compreensão do acesso ao poder, assim como o poder em si. Nesse mo-
mento ele relata o período de greve na ditadura militar, os medos, a pressão
e as constantes tentativas de encerrar o movimento.

“Agora, o que foi na ditadura militar é que a repressão aumentou. E ela come-
çou por aqui também, vindo de cima. Apesar deles saberem tudo que tinha
acontecido e, apesar de não ter feito tanta pressão a nível de exército, a nível
de governo. A pressão era de força pública e polícia civil. Não era a nível de es-
tado. Depois a pressão era outra. Aí um dos primeiros a ser preso foi o Mário,
na ditadura militar. O nosso sindicato foi o 1º sindicato a sofrer intervenção.
Já tinha tido intervenção anterior, depois voltou a ter intervenção... Em plena
greve. Sumiram com documentos nossos, queimaram documentos. Eles falam
que não. Mas a gente soube porque o povo contava. Ali era mato em volta do
sindicato; eles fizeram uma fogueira e queimaram”. (João Breno, 1999).

Apesar do poder do patrão, apesar da ditadura militar, apesar do longo


tempo, os queixadas resistiram. Resistiram os operários, resistiram as mu-
lheres, os filhos e a sociedade. Hoje tudo resiste na memória, a identidade
permanece. João Breno reconhecia a importância de uma memória coletiva
desse movimento. Colaborava para com pesquisas, registrando assim a me-
mória da greve e a memória dos Queixadas.

“Representa muito (Os Queixadas). Aí dá para gente perceber. Incrível a gen-


te não esperava isso! Você vê falar de queixada até em cidade do interior. Você
vê falar de queixada no meio sindical. No meio do sindicalismo pelego(?) a
turma fala “o sindicato dos queixadas”. Correspondência vem: - Associação
dos queixadas. Então, seja como for ou acreditem ou não, se eles não acredi-
tassem, alguma coisa não representasse para isso virou um símbolo. Virou um
símbolo Soraia. Virou porque, eu não guardo. Sou relaxado para burro! Mas
tem um monte de livros pequenos que saíram por aí, até de esquerda que eles

196
colocam coisa de queixada. Não estórias, não dão (...) é só... colocam algumas
coisinhas... Eu era queixada se fosse agora. Eu não saí do movimento. O meu
grande drama é como eu vou deixar o movimento, embora está uma merda
e eu me sinto responsável por isso, porque não estou conseguindo fazer nada
(saúde) . Eu sou queixada e vou ser até morrer”. (João Breno, 1999).

Queixada até o fim, João Breno morreu em dezembro de 2002, mas per-
manece vivo na memória de uma das maiores greves do país, tornando-
-se símbolo de mudança social e participação política, sobretudo por todas
suas conquistas que se deram por meio da “Firmeza Permanente” .

Referências Bibliográficas

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se Trabalhadora em São Paulo. Dissertação de Mestrado. Programa de
Estudos Pós-graduados em Psicologia Social. São Paulo: PUC-SP, 2000.
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SIQUEIRA, Elcio. Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus:
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SIQUEIRA, Elcio. Melhores que o patrão: a luta pela cogestão operária
na Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus (1958-1963). Tese
de doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas, 2009.

198
SOBRE OS AUTORES

Ana Paula Fracalanza. Doutora em Geografia e Professora do Curso de


Gestão Ambiental e dos Programas de Pós-graduação em Mudança Social
e Participação Política da EACH/USP e em Ciência Ambiental do IEE/USP.
Tem experiência na área de Sociologia Urbana e de Geografia Humana,
com ênfase em Gestão Ambiental.- Email: fracalan@usp.br

Ana Paula Gouveia Valdiones. Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-


-Graduação em Mudança Social e Participação Política na EACH/USP.
Email: anagouveia@usp.br

André Galindo da Costa. Mestrando em Mudança Social e Participação


Política na EACH/USP, professor do Centro Estadual de Educação Tecno-
lógica Paula Souza Email: dacostagalindo@yahoo.com.br

Andréa Viude. Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública


pela Faculdade de Saúde Pública da USP, Professora do Programa de Mes-
trado em Mudança Social e Participação Política – EACH-USP e Coor-
denadora do Grupo de Pesquisa em Memória Coletiva, Discursividades e
Dinâmicas Comunitárias. aviude@usp.br

Atilio Viviane Neto. Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação


em Mudança Social e Participação Política na EACH/USP, diretor da OS-
CIP - Mata Nativa. Email: atilio.neto@usp.br
Dennis de Oliveira. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP, Pro-
fessor dos Programas de Pós Graduação em Mudança Social e Participação
Política da EACH, de Ciências da Comunicação da ECA e de Direitos Hu-
manos da Faculdade de Direito, todos da USP. Coordenador do CELACC
(Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação) e
membro do Neinb (Núcleo de Apoio à Pesquisa e Estudos Interdisciplina-
res sobre o Negro Brasileiro). E-mail: dennisol@usp.br

Diamantino Alves Correa Pereira. Doutor em Ciências Sociais pela Ponti-


fícia Universidade Católica de São Paulo, Professor dos Programas de Pós
Graduação em Mudança Social e Participação Política da EACH e Coorde-
nador do Grupo de Pesquisa Agricultura, ambiente e mudanças sócioespa-
ciais metropolitanas. Email: diamantino@usp.br

Edegar Luis Tomazzoni. Doutor em Ciências da Comunicação - USP, Pes-


quisador visitante do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP,
Professor do Curso de Lazer e Turismo e no Mestrado do Programa de
Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política (PROMUSPP).
Coordenou o Observatório de Turismo e Cultura (Observatur) da Serra
Gaúcha. Email: eltomazzoni@usp.br

Eliane Candida Pereira. Membro do GEPESPP USP, mestranda pelo pro-


grama de Pós-graduação em Educação – FE USP, Orientadora Pedagógica
da Prefeitura do Municipio de São Bernardo do Campo. Email: elicanpe@
gmail.com

Elizabete Franco Cruz. Doutora em Educação UNICAMP, Professora do


curso de Obstetrícia e do Mestrado em Mudança Social e Participação
Política – EACH/USP e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Relações en-
tre filosofia e educação para a sexualidade na contemporaneidade: a prob-
lemática da formação docente. Email: betefranco@usp.br

Érico Luciano Pagotto. Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Gradu-


ação em Mudança Social e Participação Política na EACH/USP. Email: eri-
copagotto@usp.br

200
Gerardo Kuntschik. Doutor em Ecologia de ambientes aquáticos e terrestres
pela Universidade de São Paulo Professor dos Programas de Pós graduação em
Mudança Social e Participação Política e em Ecologia de Ecossistemas Aquáticos
e Terrestres, ambos na Universidade de São Paulo. Email: gkuntschik@usp.br

Gustavo Costa Meyer. Mestrando do Programas de Pós-Graduação em Mu-


dança Social e Participação Política. EACH-USP. Email: gustavo.meyer@
usp.br

Isabel Akemi Hamada. Membro do GEPESPP USP, mestranda pelo pro-


grama de Pós-graduação em Educação – FE USP. Email: belakemi@hot-
mail.com

Ivini V. R. F. Ferreira. Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Gradua-


ção em Mudança Social e Participação Política na EACH/USP. Email: ivi-
niferraz@usp.br

Marco Antonio Bettine de Almeida. Doutorado em Sociologia do Lazer


– Unicamp, Professor da do Programa de Pós Graduação em Mudança So-
cial e Participação Política da Universidade de São Paulo e Coordenador
do Grupo de Pesquisas Interdisciplinares em Sociologia do Esporte (PISE)
e Vice-coordenador do LUDENS - Núcleo de Apoio à Pesquisa USP-SP.
Email: marcobettine@gmail.com

Marcos Bernardino de Carvalho. Doutor em Ciências Sociais, professor do cur-


so de Gestão Ambiental e do Programa Pós Graduação em Mudança Social e
Participação Política da Universidade de São Paulo. Coordenador do NUPEGE
- Núcleo de Pesquisas em Geografia e Educação. Email: mbcarvalho@usp.br

Maria Eliza Mattosinho Bernardes. Doutora em Educação, Professora dos


Programas de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política
– EACH e em Educação na Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo, lider do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Sociedade e
Políticas Públicas – GEPESPP USP. Email: memberna@usp.br

201
Neli Aparecida de MELLO-THÉRY. Professora livre docente da Universi-
dade de São Paulo, Doutora em Geographie - Universite de Paris Ouest-
-Nanterre-La Defense (2002) e em Geografia Humana – USP. Professora
dos Programas de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Polí-
tica – EACH e em Ciência Ambiental IEE/USP. Coordenadora do Grupo
de Pesquisa Políticas públicas, territorialidades e sociedade do IEA. E-mail.
namello@usp.br

Raquel Gammardella Rizzi. Mestranda em Mudança Social e Participação


Política na EACH/USP. Email: raquel.rizzi@usp.br

Renato Abdo. Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em


Mudança Social e Participação Política na EACH/USP, Coordenador de
Agronegócios do Sindicato Rural de Mogi das Cruzes. Email: renato.abdo@
usp.br

Sandra Aparecida Santana Assali. Membro do GEPESPP USP, mestranda


pelo programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Políti-
ca – EACH USP, Professora da EMEF Duque ee Caxias da EMEF Celso
Leite Ribeiro Filho. Email: sassali@usp.br

Sandra Paula da Silva Batistão. Mestre em Ciência pelo Programa de Pós-


graduação em Mudança Social e Participação Política – EACH USP, Inte-
grante da Comissão Executiva do FOPEI (Fórum Permanente de Educação
Inclusiva do ABC Paulista), Professora de educação inclusiva da Prefeitura
Municipal de Santo André e da Faculdade IESA/ Instituto Educacional do
Estado de São Paulo. Email: sbatistao@usp.br

Sidnei Raimundo. Doutor em Geografia, Professor do Curso de Lazer e


Turismo e do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participa-
ção Política da EACH – USP. Desenvolve pesquisas sobre manejo em áreas
protegidas e gestão de recursos naturais. E-mail: sraimuundo@usp.br

202
Sílvia Helena Zanirato. Doutora em História pela UNESP. Professora do
Curso de Gestão Ambiental e dos Programas de Pós-graduação em Mu-
dança Social e Participação Política da EACH/USP e em Ciência Ambiental
do IEE/USP. Coordenadora no Brasil da rede UNITWIN - Cátedra UNES-
CO - Turismo, Cultura e Desenvolvimento. E-mail shzanirato@usp.br

Soraia Ansara. Doutora em Psicologia Social, Professora do Programa de


Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política e Coordenadora
do Grupo de Pesquisa Memória, Discursividades e Dinâmicas Comunitá-
rias. Email:soraiansara@hotmail.com

Ursula Dias Peres. Doutora em Economia e Professora do Curso de Gestão


de Políticas Públicas e dos Programas de Pós-graduação em Mudança So-
cial e Participação Política e em Gestão de Políticas Públicas da EACH/USP
e Secretária Adjunta de Planejamento, Orçamento e Gestão no Município
de São Paulo e-mail: uperes@usp.br

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