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A arte: o belo e o agradável1

Vilém Flusser

(Para Louis Bec)2

A limitação fundamental da comunicação está no fato de que a experiência


concreta é incomunicável. A razão é que essa experiência não é generalizável, no
sentido de comparável e no sentido de publicável. Ela é, por definição, única e privada.
E comunicar é precisamente comparar, (simbolizar), e publicar. No entanto: não
podemos duvidar do fato de que todas as nossas experiências concretas do mundo são
modeladas por aquilo que podemos chamar de “nossa condição cultural”. Tomemos
como exemplo a experiência concreta do amor de um homem por uma mulher. Ela não
pode jamais ser generalizada, claro. Toda experiência amorosa é única e privada,
portanto incomunicável. Mas podemos demonstrar, no entanto, que ela obedece a um
modelo de experiência muito específico. Há um nível de condicionamento, o “natural”,
sobre o qual podemos mostrar que esse amor é uma experiência modelada pela
informação “genética”, (pelas condições físicas, químicas, psicológicas, etc.), e nós não
temos necessidade de nos determos nesse nível. Muito mais interessante é o fato de que
podemos mostrar como esse amor é modelado por modelos históricos específicos que
são programados em nossas memórias. Podemos mostrar que não se trata de modelos
“universais”, pois há sociedades que não dispõe de um modelo para a experiência do
amor entre os sexos, onde os participantes ignoram, portanto, essa experiência concreta.
Quanto à nossa sociedade, podemos mostrar como os modelos do amor entre os sexos
se modificaram durante nossa história. Para os Gregos, por exemplo, o amor entre os
sexos era uma experiência vulgar e desprezível, pois era “pragmática”, (ela tinha por
resultado uma coisa material e desprezível: uma criança). O único amor “puro” era o
homossexual, ou, como se diz, o “platônico”. Durante a Idade Média existiam dois

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Aula não-publicada, escrita originariamente em francês (“L’art: le beau et joli”), para ser usada num
curso intitulado “Les phénomènes de la communication” (Théâtre du Centre, Aix-en-Provence, 1975-
1976). Trata-se de um texto especialmente importante na bibliografia flusseriana, por tratar de modo
direto da conceituação de noções centrais da estética e da filosofia da arte. Tradução e Notas: Rachel
Cecília de Oliveira Costa. Revisão Técnica e Notas: Romero Freitas.
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Acrescentado à caneta, sobre o texto original datilografado.
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modelos para o amor entre os sexos: o amor “nobre”, entre uma dama e um cavalheiro,
que era uma variação do modelo do amor da Virgem; e o amor “baixo”, entre uma
mulher casada e um poeta. A experiência entre o marido e sua mulher não se adaptava
bem em nenhum dos dois modelos. Durante a Idade Média tardia, e sob a influência do
“Romance da Rosa”, nosso modelo do amor entre os sexos começou a ser elaborado, e é
por isso que o chamamos de “amor romântico”. Ele penetrou lentamente na experiência
concreta, e ele estava restrito, ainda durante o romantismo, apenas à burguesia.
Atualmente é uma experiência comum graças aos romances baratos, ao filme e à TV.
Nós amamos nossas mulheres por uma experiência única e privada, é claro, mas
contudo dentro de estruturas que nos são comunicadas e pelas quais nós somos
programados. Eis o problema.
O exemplo mostra do se trata na arte. Trata-se da elaboração e da comunicação
de modelos para nossas experiências concretas do mundo. Toda experiência é
modelada, programada pela arte. Todos os nossos prazeres e tristezas, todas as
experiências das cores, dos sons, das formas, das tessituras, dos perfumes que nós
temos, todo sentimento de amor e de raiva, têm um modelo artístico. Nosso mundo é
estruturado não somente pela nossa informação genética, mas também por nossa
informação estética. Onde não há modelo estético, nós estamos “anestesiados” = nós
não temos experiência nenhuma. Nós dependemos da arte para poder perceber o mundo.
A arte é a nossa maneira de viver no real. Nisso somos diferentes de outros animais.
Nosso mundo é uma “Lebenswelt”, (um mundo de vida humana) graças à arte, e não
somente uma “Umwelt”, (um sistema ecológico). A arte é nosso programa para a
experiência da realidade, nós somos computadores estéticos. Isso não quer dizer
somente que percebemos uma paisagem através do modelo de Leonardo ou Turner. É
que se não há pintor paisagista, não há paisagem. A arte é a “poiesis”: ela pro-duz [pro-
duit] o real, (o amor e a paisagem, a guerra e a molécula de ácido ribonucleico) para
nossa experiência.
Uma contradição aparente: de um lado, é impossível comunicar as
experiências do concreto. Do outro lado, nenhuma experiência do concreto é possível
sem a comunicação prévia de um modelo. Mas não há nenhuma contradição verdadeira.
Os modelos para nossa experiência do concreto, (as “obras de arte”), não são
generalizações de uma experiência concreta de um artista. Eles não podem ser. São
estruturas propostas pelo artista para ordenar as experiências futuras, redes para colher
experiências novas. Uma poesia de amor não é uma generalização de uma experiência
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amorosa específica: é uma proposição para uma nova maneira de amar. Uma
composição dodecafônica ou uma pintura impressionista não são generalizações de
experiências específicas com tons e cores: são proposições para experiências acústicas e
visuais novas. O artista não está interessado na comunicação das experiências privadas:
isso seria, aliás, enfadonho. Seu interesse é nos propor formas novas para nossas
experiências futuras, e assim enriquecer nossa realidade, (e a sua). Ele não compara sua
experiência com outra, mas ele compara seu modelo com outro. Uma poesia de amor
não compara a experiência amorosa do poeta com outra, mas ela se compara com outra
poesia amorosa que o poeta leu.
A arte é, portanto, na expressão de Heidegger, nosso órgão para sorver a
realidade. Diríamos que a comunicação estética deve preceder toda comunicação ética e
epistemológica. Pois o artista é o produtor da realidade que será julgada pelo político e
pesquisada pela cientista. Só podemos julgar o que vivemos, e só podemos conhecer o
que julgamos e vivemos. Mas, é claro, o problema da precedência de uma forma de
comunicação ou de outra é mal colocado. É uma conseqüência da esquizofrenia
moderna, responsável pela divisão da comunicação em ciência, política e arte. De fato,
essa divisão é uma loucura que se tornou, felizmente, insustentável. Tornou-se claro que
todo cientista é também político e artista, que todo político é também cientista e artista,
e que todo artista é também cientista e político. Toda diferença, se há alguma, é uma
questão de ênfase. A discussão desonesta sobre uma arte “engajada” ou “desengajada”,
sobre uma arte “dependente” ou “independente” da ciência e da tecnologia é antiquada,
tão antiquada como a discussão sobre uma ciência “pura” ou “aplicada”. Pois somos
obrigados, na atual conjuntura, a admitir que toda comunicação tem dimensões
estéticas, éticas e epistemológicas. Nesse sentido, somos todos artistas: nós todos
propomos modelos novos para experiências futuras, e nós o fazemos em cada
comunicação que nós fazemos. O homem, (na expressão de Schiller), é um ser que está
sempre rodeado pela beleza.
Pois a consideração precedente permite que vejamos a significação do termo
“belo”. A beleza é a novidade, a originalidade de uma proposição estética. Um modelo
de uma experiência, (uma “obra de arte”), é belo na medida em que é diferente de todo
modelo precedente. Pois é a medida do novo domínio da realidade que esse modelo abre
à experiência. A beleza é o aumento do parâmetro do real. Eis aí uma “definição”
empírica. Esse empirismo é responsável pela pobreza da crítica de arte: “de gustibus
non est disputandum”. Mas nós dispomos, já a algum tempo, de um instrumento para
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deixar a definição um pouco menos empírica: a teoria da informação. Podemos dizer


que a beleza de um modelo é igual à quantidade de informação que ele contém. Essa
quantidade é, em tese, calculável. A crítica de arte pode, portanto, deixar de ser uma
série de exclamações do tipo “eu adoro isso!”. E a teoria da informação tem a vantagem
de poder mostrar o verdadeiro problema da comunicação estética. Se ela contém muito
pouca informação, (se é muito “tradicional”), ela não é “bela”, (ela não aumenta o
domínio da experiência). E se ela contém muita informação, (se ela é muito “avant-
garde”), ela também não é “bela”, (ela não aumenta o domínio da experiência, pois ela
não comunica). O problema do artista é caminhar pela trilha estreita que separa a
banalidade da loucura, a redundância do ruído. Encontrar essa trilha é persistir: é o que
chamávamos, antigamente, o “gênio”.
A beleza é, portanto, sinônimo de informação em relação à experiência do real.
É a razão pela qual as religiões e as ideologias em geral desconfiam da arte. Se nossos
modelos da experiência modificam-se graças à arte, nossos modelos de comportamento
se modificarão forçosamente em seguida. A arte é o terreno de toda revolução, (na
ciência, bem como na política). As religiões e as ideologias são as guardiãs de modelos
de comportamento. É por isso que a “pura beleza” é um pecado, e é por isso que
colocam os artistas em asilos na União Soviética. A beleza é perigosa: ela arrisca
destruir nossos modelos de comportamento, (e de conhecimento).
A beleza é terrível. Ela nos propõe uma modificação da experiência do real.
Rilke diz que ela grita para nós: “É preciso que você mude sua vida”3. E ele diz
também: “A beleza é o começo do terror”4. Ela não é de todo agradável. Se nós
desejamos viver agradavelmente, devemos nos contentar com os modelos velhos,
tradicionais da experiência. Eles são agradáveis, pois somos programados por eles.
“Agradável”: é estar dentro do meu programa de experiência. Mozart é mais agradável
que Schoenberg: eu estou programado por Mozart para a experiência acústica. Mas
Mozart é, contudo, perigoso. Ele era no seu tempo, é claro, mas ainda o é. Pois a
quantidade de informação contida em suas composições talvez não tenha sido esgotada
pelo efeito entrópico do tempo. É mais conveniente escutar composições que não
contenham nenhuma informação desde o início. Modelos de experiência acústica
perfeitamente armazenados em nossa memória. Kitsch. O Kitsch é o mais agradável de

3
“Du mußt dein Leben ändern”. Flusser refere-se aqui à frase final do soneto O torso arcaico de Apolo,
de Rainer Maria Rilke
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“Denn das Schöne ist nichts als des Schreckens Anfang”. Outra citação de Rilke (Elegias de Duíno,
Primeira Elegia).
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toda comunicação estética. O mais aprazível. A arte mais agradável é a arte das massas,
e ela nos é comunicada pelos meios de comunicação de massa.
Esse é talvez o aspecto mais significativo da revolução dos meios de
comunicação da qual nós somos as vítimas. Ela divide a arte em arte das massas e arte
das elites. A arte das massas é agradável: reforça nossas experiências do real e as
petrifica. Nós choramos como o Blues, vemos as cores como a Kodak, e amamos como
Hollywood. E a arte de elite, amputada da sociedade pelos meios de massa, circula nos
circuitos fechados e se torna cada vez mais hermética. Ela não comunica e não pode,
portanto, modificar as nossas experiências do real. É a famosa “crise da arte”. Nossas
experiências se tornaram petrificadas, e nós nos tornamos objetos para uma
manipulação tecnocrática. Pois se a arte morre, o homem morre, e ele será substituído
pelo funcionário.
Eu disse no começo desse curso que o homem é um ser que se opõe à entropia
da natureza pela comunicação, que é um processo de informação crescente. A arte é
esse aspecto da comunicação pela qual a informação relativa à experiência concreta é
aumentada. Portanto, a arte está na base da comunicação humana, da sua dignidade de
um ser oposto à natureza. A arte é o oposto da natureza, e o homem é um ser artificial,
artístico. Se a arte morre, a entropia se instala. Nós não podemos permiti-lo. Pois o
homem é um ser rodeado pela beleza.

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