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Amarante P Protagonismo e Subjetividade - A Construção Coletiova No Campop Da Saúde Mental PDF
Amarante P Protagonismo e Subjetividade - A Construção Coletiova No Campop Da Saúde Mental PDF
Protagonismo e subjetividade:
ARTIGO ARTICLE
a construção coletiva no campo da saúde mental
Abstract This paper is a reflection on the ori- Resumo O artigo reflete sobre as origens e as
gins as well as conceptual and historical bases bases históricas e conceituais da produção de
of the production of subjectivity by the subject subjetividade do sujeito considerado louco.
that is considered insane. The importance of Analisa a importância do conceito de aliena-
the concept of mental alienation in the shap- ção mental na formação do lugar social da lou-
ing of the social place of insanity in modern cura na sociedade moderna e, com ele, a con-
society is analyzed in parallel with the consti- stituição de um sujeito alienado, incapaz de
tution of an alienated subject, incapable of sub- subjetividade e de desejo: um não-sujeito da
jectivity or desire: a non-subject of medical- loucura “medicalizada”. Em continuidade, após
ized insanity. Then, after an elaboration about uma elaboração sobre a genealogia da subje-
the genealogy of subjectivity, a reflection is pre- tividade, reflete sobre as práticas atuais no
sented on the current practices in the field of campo da saúde mental que têm como proposta
mental health that aim at the collective con- a construção coletiva do sujeito da loucura,
struction of the subject of insanity no longer não mais como sujeito alienado, mas como pro-
as an alienated subject but as a protagonist, tagonista, isto é, de uma nova relação social
which means a new social relationship with com a loucura.
insanity. Palavras-chave Saúde mental, Loucura, Sub-
Key words Mental health, Insanity, Subjec- jetividade
tivity
1 Departamento
de Administração e
Planejamento, Escola
Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz.
Av. Leopoldo Bulhões,
1.480/7o andar –
21041-210 – Manguinhos –
Rio de Janeiro – RJ.
cebes@manguinhos.ensp.
fiocruz.br
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Torre, E. H. G. & Amarante, P.
era virtual e da biotecnologia. Na “nova alian- vés desta operação que é possível uma psiquia-
ça” da complexidade nas ciências (Prygogine tria da loucura.
& Stengers, 1991), o sujeito do conhecimento Um objeto se configura pelo seu sistema de
de Descartes não é mais absoluto, e os sujei- relações; a racionalidade introduz uma simpli-
tos se tornam histórico-estéticos, capazes de ficação, através do reducionismo que o méto-
engendrar sua autopoiese (Maturana & Vare- do científico e psiquiátrico operam, e que a re-
la, 1995), na qual um sujeito e um objeto não tomada da complexidade busca desmistificar.
preexistentes se fazem em sua relação. Não Para Sacks (1995), a doença é um processo
mais a especialização, a fragmentação e o iso- no sujeito, não é um defeito no corpo, no ór-
lamento. Reconstruir os objetos em sua com- gão ou no funcionamento bioquímico. É um
plexidade requer a superação dessas opera- processo referente à conduta e à forma de olhar.
ções. É precisamente nas relações que se con- Há uma complexidade no processo saúde-
figuram, num meio caótico e em desequilíbrio, doença que ultrapassa o orgânico simples. O
constituído por forças em choque que criam que parece desvio quando se coloca em rela-
constante interferência, que a existência con- ção a uma norma, se mostra como outra lin-
creta das coisas se manifesta. guagem, outros caminhos neurais e de apren-
O isolamento foi uma das estratégias cen- dizagem cultural, outras subjetividades, que
trais para a elaboração do conceito de aliena- insistimos em desqualificar como inferiores
ção, que produz o louco como sujeito do er- aos modos padronizados de experiência. Na
ro. O isolamento como um princípio científi- doença há uma construção de subjetividade
co diz respeito a tirar os objetos de investiga- radicalmente diversa, por isso nunca se pode
ção de seus meios caóticos e tirar as interfe- tratar o sintoma, é preciso tratar o sujeito.
rências do ambiente natural, transportando Existem casos em que a medicação psiquiátri-
ao ambiente asséptico do laboratório. Nos de- ca, ao fazer um anteparo à doença, não resol-
paramos com um problema epistêmico fun- ve o problema ou até mesmo pode agravar a
damental: como estudar a doença isolando o situação. Nesse sentido é possível pensar que
louco pelo esquadrinhamento do hospital? O o delírio pode ser necessário como processo.
princípio se funda na idéia de que para tratar A doença deve ser repensada como fato cultu-
é preciso conhecer, e para conhecer torna-se ral e como caminho; é preciso aprender com
imprescindível retirar quaisquer influências a doença. Em vez de um tempo e espaço abso-
externas. A observação in vitro tira as más in- lutos, uma temporalidade e uma espacialida-
fluências, permite a separação em tipos para de produzidos.
a constituição de um espaço de conhecimento. A noção de clínica também se transforma
No entanto, surge uma importante questão: a na abordagem ético-estética (Deleuze & Guat-
observação in vitro não transformaria a na- tari, 1972), na qual a subjetividade é coletiva
tureza da doença? Em outras palavras, a ex- e não individual. Se a subjetividade não é mais
periência da institucionalização não alteraria um componente do indivíduo, a clínica psico-
a experiência da alienação? O que a psiquia- lógica clássica, que se centrava sobre a subje-
tria concebe como efeitos da cronicidade da tividade individual, perde sua sustentação. O
natureza da doença mental não seriam efei- conceito de clínica se amplia, tomando a for-
tos largamente produzidos pela instituciona- ma de um ato analítico que age sobre a pro-
lização? dução de subjetividade, serializando-a ou sin-
Ora, para o saber psiquiátrico, a degenera- gularizando-a, aproximando-se da noção de
ção é causada pela doença mental, sem nenhu- analisador adotado no âmbito da análise ins-
ma ligação com as formas de relação institu- titucional (Coimbra, 1995). A clínica, nesse
cional que se estabelece com a loucura e o lou- sentido, não é executada pelo especialista, pois
co. A doença mental concebida sob um ponto a análise se produz sem se centrar em um su-
de vista naturalista é a noção que dá o supor- jeito que a realize, nem como uma interpreta-
te fundamental da prática, do poder e do sa- ção ou revelação do oculto; a análise se pro-
ber psiquiátricos. A História da loucura de- duz em um campo de forças, seja num grupo,
monstra a história do asilamento da loucura numa relação psicoterapêutica, nas relações
e de sua medicalização e patologização, e sua do hospital, da fábrica, da escola, do hospício,
transformação em doença mental: Nossa so- em espaços os mais distintos. Clínica torna-se
ciedade não quer reconhecer-se no doente que uma relação estratégica nos espaços sociais, e
persegue ou encerra (Foucault, 1975). É atra- não o ato médico ou psicoterapêutico do es-
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gerais (...) mas deve constituir um acontecimen- ligados, pois a psicose, no contexto dos sistemas
to, marcar uma bifurcação irreversível da pro- carcerários tradicionais, tem seus traços essen-
dução de subjetividade... Esse trabalho se ini- cialmente marcados ou desfigurados. É somen-
cia com medidas básicas de abertura dos me- te com a condição de ser desenvolvida em torno
canismos de violência e enclausuramento e dela uma vida coletiva no seio de instituições
necessita, principalmente, do estabelecimen- apropriadas que ela pode mostrar seu verdadei-
to de novas relações entre os pacientes, a equi- ro rosto, que não é o da estranheza e da violên-
pe e os psiquiatras. Assim é que, para Rotelli, cia, como tão freqüentemente ainda se acredi-
o objetivo prioritário da desinstitucionalização ta, mas o de uma relação diferente com o mun-
é transformar as relações de poder entre insti- do (...) Os psicóticos, objetos de um sistema de
tuição e os sujeitos e, em primeiro lugar, os pa- tratamento quase animal, assumem necessaria-
cientes. Inicialmente, isto é, no trabalho de des- mente uma postura bestial (...) No estilo de vi-
construção do manicômio, essa transformação da comunitária que era então o de La Borde na-
é produzida através de gestos elementares: eli- queles anos, os doentes me apareceram sob um
minar os meios de contenção; restabelecer a re- ângulo completamente diferente... (Guattari,
lação do indivíduo com o próprio corpo; recons- 1992).
truir o direito e a capacidade de uso dos objetos Atualmente, vários serviços de saúde men-
pessoais; reconstruir o direito e a capacidade da tal ou de atenção psicossocial vêm sendo im-
palavra; eliminar a ergoterapia; abrir as portas; plantados no Brasil. A década de 1990 assistiu
produzir relações, espaços e objetos de interlo- à produção de um bom número de novas ins-
cução; liberar os sentimentos; restituir os direi- tituições e experiências locais. Uma das neces-
tos civis eliminando a coação, as tutelas jurídi- sidades atuais é a de compor uma rede de co-
cas e o estatuto de periculosidade; reativar uma municação entre esses trabalhos, que possa en-
base de rendimentos para poder ter acesso aos riquecê-los e fortalecê-los através de trocas e
intercâmbios sociais (Rotelli, 1990). debate. A transformação que se opera na sub-
O ato terapêutico ganha outros sentidos. jetividade dos doentes e da instituição, quan-
É possível perceber como os conceitos formam do se trabalha para a desconstrução do para-
uma rede: a clínica encerra a atuação sobre a digma psiquiátrico, pode ter grande amplitu-
doença, que requer um diagnóstico que a re- de, rompendo com conceitos e reinscrevendo
conheça e possibilite a escolha do tratamento a forma da loucura na sociedade: Essa ativi-
ou ato terapêutico apropriado, que por sua vez dade incessante de questionamento [e mobili-
objetiva a cura. A desmontagem e desnatura- zação], aos olhos de um organizador-conselho,
lização dessa rede, bem como a proposição de pareceria inútil, desorganizadora e, entretanto,
novos conceitos ou novos sentidos para os é somente através dela que podem ser instaura-
mesmos conceitos é o trabalho da desinstitu- das tomadas de responsabilidade individuais e
cionalização. O ato terapêutico, se não é mais coletivas, único remédio para a rotina burocrá-
fundado sobre a doença e não provém da au- tica e para a passividade geradas pelos sistemas
toridade médica, torna-se a própria organiza- de hierarquias tradicionais (Guattari, 1992).
ção coletiva, convertendo-se em tomada de res- O trabalho de desinstitucionalização leva,
ponsabilidade e produção de subjetividade: ao necessariamente, à produção de um novo ti-
invés de fundar-se sobre uma regra imposta de po de subjetividade, que permita a manifesta-
cima, a organização se convertia, por si mesma, ção do devir-louco sem interditar sua expres-
num ato terapêutico ... (Basaglia, 1985). são, sem regulá-lo no jogo das sanções insti-
Aos poucos, as relações passam a não se as- tucionais e legais ou objetificá-lo, fazendo com
sentar mais nas hierarquias, mas na sociabili- que se desistorize e deixe de ser um sujeito. É
dade e na produção de instâncias coletivas, a produção de um novo lugar para a subjeti-
através do trabalho de mudança dessas rela- vidade louca, o estabelecimento de uma nova
ções e na produção de outras formas de ex- relação com ela, e a criação de fissuras na seria-
pressão para o louco e sua loucura que se mos- lização psiquiátrica. Para isso, é preciso a to-
tram não só viáveis, mas inovadoras e de ex- mada de um sentido para a própria existência
trema riqueza. Guattari relata sua própria ex- e da produção de sua própria singularidade:
periência em relação a este processo: Foi en- O que visávamos, através de nossos múltiplos
tão que aprendi a conhecer a psicose e o impac- sistemas de atividade e sobretudo de tomada de
to que poderia ter sobre ela o trabalho institu- responsabilidade em relação a si mesmo e aos
cional. Esses dois aspectos estão profundamente outros, era nos libertarmos da serialidade e fa-
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