Você está na página 1de 18

Coleção

Educação: Experiência e Sentido

Jan Masschelein
Maarten Simons

E m defesa da escola
Uma questão pública

Tradução
Cristina Antunes

autêntica
CoLECAO "EDUCAÇÃO: EXPERIÊNCIA E SENTIDO"

extorsão que faria com que expressássemos nossa evidência CAPÍTULO 2

em termos de valor agregado, resultados de aprendizagem


e qualificações (educacionais). Queremos tentar identificar
o que faz uma escola ser uma escola e, ao fazê-lo, também
queremos identificar por que a escola tem um valor em e O que é o escolar?
por si mesma e por que ela merece ser preservada.

uXoX^ (skholé): tempo livre, descanso, adiament


estudo, discussão, classe, escola, lugar de ensin

Pode, a princípio, parecer estranho investigar o escolar.


Não é óbvio que a escola é a insdtuição de ensino inventada
pela sociedade para introduzir as crianças (em) o mundo? E
não é evidente que a escola tenta equipar as crianças com
o conhecimento e a habihdade peculiar a uma ocupação,
cultura ou sociedade? Esse ato de equipar acontece de uma
maneira específica: em um grupo, com professores na frente
da sala de aula, e com base na disciplina e na obediência.
Dessa forma, a escola é, igualmente, o lugar onde os jovens
(de acordo com um método específico) são abastecidos com
tudo o que eles devem aprender para encontrar o seu lugar
na sociedade. Não é óbvio que a aprendizagem é o que
acontece na escola? Que ela é uma iniciação ao conhecimen-
to e às habilidades e uma sociali^ção dos jovens na cultura
de uma sociedade? Essa iniciação e socialização não estão,
de uma forma ou de outra, presentes em todos os povos
e em todas as culturas? E não é a escola, simplesmente,
a forma coletiva mais económica para consegui-las, coisa
que se torna necessária quando a sociedade atinge certo
nível de complexidade?

24 25
CoLEcAo "EDUCAÇÃO: EXPERIÈNOA E SENTIÍXJ" o que é o escolar?

Essas, em qualquer caso, são percepções comuns e Precisamente por causa da democratização e equa-
generalizadas do que a escola é e faz. Em contraste com lização, a elite privilegiada tratava a escola com grande
esse ponto de vista, é importante ressaltar que a escola desprezo e hostilidade. Para a elite, ou para aqueles que
é uma invenção (política) específica da polis, grega e que estavam satisfeitos em permitir que a organização desi-
a escola grega surgiu como uma usurpação do privilégio gual da^ sociedade continuasse sob os auspícios da ordem
das elites aristocráticas e militares na Grécia antiga. Na natural das coisas, essa democratização do tempo livre era
escola grega, não mais era a origem de alguém, sua raça uma pedra no sapato. Assim, não só as raízes da escola
ou "natureza" que justificava seu pertencimento à classe repousam na antiguidade grega, mas também o mesmo
do bom e do sábio. Bondade e sabedoria foram desligadas acontece com uma espécie de ódio dirigido à escola. Ou,
da origem, da raça e da natureza das pessoas. A escola
pelo menos, o impulso contínuo para domar a escola, ou
grega tornou inoperante a conexão arcaica que liga os
seja, restringir o seu caráter potencialmente inovador e até
marcadores pessoais (raça, natureza, origem, etc.) à lista
mesmo revolucionário. Dito de outro modo: mesmo hoje,
de ocupações correspondentes aceitáveis (trabalhar a terra,
parece haver tentativas de paralisar a escola como "tempo
engajar-se no negócio e no comércio, estudar e praticar).
livre" entre a unidade familiar, de um lado, e a sociedade
É claro que, desde o início, havia diversas ocupações
para restaurar conexões e privilégios, para salvaguardar e o governo, de outro. Por exemplo, muitos dizem que a
hierarquias e classificações, mas o principal e, para nós, escola, como uma instituição, deveria ser uma extensão da
o mais importante ato que a "escola faz" diz respeito à família, ou seja, deveria fornecer um segundo "ambiente
suspensão de uma chamada ordem desigual natural. Em de educação" suplementar ao provido pela família. Outra
outras palavras, a escola fornecia tempo livre, isto é, tempo variante da domesticação da escola reza que ela deve ser
não produtivo, para aqueles que por seu nascimento e seu funcional para a sociedade, ser meritocrática em seus pro-
lugar na sociedade (sua "posição") não tinham direito cessos de seleçâo e, assim, reforçar o mercado de trabalho
legítimo de reivindicá-lo. Ou, dito ainda de outra forma, e proporcionar bons cidadãos. O que, frequentemente,
o que a escola fez foi estabelecer um tempo e espaço que aconteceu e continua a acontecer — e vamos voltar a isso
estava, em certo sentido, separado do tempo e espaço em breve — é que a quinta-essência do escolar muitas vezes
tanto da sociedade (em grego: polis) quanto da família é completamente expulsa da escola. Na verdade, podemos
(em grego: oikos). Era também um tempo igualitário e, ler a longa história da escola como uma história de esfor-
portanto, a invenção do escolar pode ser descrita como a ços continuamente renovados para roubar da escola o seu
democratização do tempo livre}

dicas; "Longe do tribunal c fora da assembleia geral, a retórica nào estava


Nesse contexto, ê interessante notar que dizia-se que Isócrates, responsável mais constrangida por um senso de urgência, e, na ausência dessa restrição,
por desempenhar um pape! importante nessa invenção, havia oferecido "o nào tinha que sacrificar a sua integridade artística às eventuais demandas de
dom do tempo" para a arte da retórica inciusa nas práticas poh'ticas c jurí- interesses do cliente" (PuULAKOS, 1997, p. 70).

26 27
Cct£ÇÃo "EDUCAÇÃO: EXPERI^JOA E SENTIDO" O que é o escolar?

caráter escolar, isto é, como tentativas de "desescolarizar" A escola, por outro lado, surge como a materializa-
a escola — que vão muito mais longe no tempo do que os ção e espacialização concreta do tempo que, literalmente,
autoproclamados "desescolarizadores"^ da década de 1970 separa ou retira os alunos para fora da (desigual) ordem
podiam perceber. Esses ataques contra a escola derivam de social e económica (a ordem da família, mas também a
um impulso para tornar o tempo livre fornecido por ela ordem da sociedade como um todo) e para dentro do luxo
novamente produtivo e, desse modo, impedir a função de de um tempo igualitário. Foi a escola grega que deu forma
democratização e equalização da escola. O que queremos concreta a esse tipo de tempo. Isto significa que este — e
enfatizar é que essas versões domadas da escola (isto é, a não, por exemplo, a transferência de conhecimento ou o
escola como a família estendida, ou a escola produtiva, aris- desenvolvimento de talentos - é a forma de tempo livre
tocrática ou meritocrática) não deveriam ser confundidas por meio do qual os alunos poderiam ser retirados de
com o que realmente significa estar "dentro da escola" e sua posição social. É precisamente o modelo escolar que
"na escola": tempo livre. O que muitas vezes chamamos permite que os jovens se desconectem do tempo ocupado
de "escola" hoje em dia é, na verdade (total ou parcialmen- da família ou da oikos (a o/^o-nomia) e da cidade/estado
te), a escola desescolarizada. Assim, queremos reservar a ou polis (polí-tica). A escola oferece o formato (ou seja, a
noção de escola para a invenção de uma forma específica composição particular de tempo, espaço e matéria, que
de tempo Uvre ou não produtivo, tempo indefinido para o compõe o escolar) para o tempo-feito-livre, e aqueles que
qual a pessoa não tem outra forma de acesso fora da escola. nele habitam literalmente transcendem a ordem social
O tempo fora ~ em casa, no mercado de trabalho - foi e (económica e política) e suas posições (desiguais) associa-
é muitas vezes e de diferentes maneiras, "ocupado". Nós das. E é esse formato de tempo livre que constitui a hgação
não tiramos tempo livre para sugerir uma espécie de tempo comum entre a escola dos atenienses livres e a coleção
de relaxamento, na maneira em que frequentemente ele é heterogénea das instituições escolares (faculdades, escolas
entendido hoje. Na verdade, o próprio tempo de relaxa- secundárias, escolas primárias, escolas técnicas, escolas
mento se transformou em tempo produtivo e se torna a vocacionais, etc.) da nossa época. No que vem a seguir,
matéria-prima para sua própria esfera económica. Assim, não vamos discutir a rica história do formato da escola em
o relaxamento é muitas vezes visto como útil no sentido sua totalidade, porém, em vez disso, vamos dar ênfase a
em que repõe a nossa energia e nos permite realizar ativi- algumas de suas características e ao seu funcionamento.
dades que levam à aquisição de competências adicionais. A A nossa ambição, contudo, não é esboçar a escola ideal,
indústria do lazer é, de modo indicativo, um dos setores mas uma tentativa de tornar explícito o que faz com que
económicos mais importantes. uma escola seja uma escola, e, consequentemente, diferente
de outros ambientes de aprendizagem (ou de socialização,
ou iniciações). E , mais uma vez, o objetivo não é o de
^ o termo inglês deschoolers diz respeito àqueles que querem separar a educação
salvaguardar uma velha instituição, mas de articular um
da instituição escolar e operar através da experiência de vida do aluno, em
oposição a um currículo estabelecido. (N.T.) marco para a escola do futuro.

28 29
CoifÇÂo "EDUCAÇÃO: EXPERIÊNCIA E SENTIDO" O que é o escolar?

KZ. Uma questão de suspensão O que O primeiro dia de escola traz à lembrança? Os
pais, relutantemente, levando seus filhos para a escola,
(ou libertar, destacar, colocar entre parênteses)
ficando por ali um minuto extra para se certificarem de
O alarme dispara, o relógio começa a contar Uma tigela que tudo está bem, deixando-os ir. Os jovens saindo do
rápida de cereal, mochila na mão. O tempo entre o ninho familiar. Há um limiar, e o referido limiar é muitas
agora e o toque do sino da escola está preenchido: fechar vezes visto hoje como a causa de uma experiência quase
a porta, correrpara o ponto de ônibus, bem na hora, traumática. Daí o apelo para mantê-lo o mais baixo pos-
comprimir todosjuntos, contar as paradas, descer, a sível. Mas não é por isso que esse limiar é, precisamente,
calma antes da tempestade, colisão entre amigos e reduf^r o que torna possível o deixar ir; não é o que permite que
a velocidade para uma caminhada, um minuto de sobra, os jovens entrem em outro mundo no qual podem deixar
A escola como um limiarpara um novo mundo. Aqui, de ser "filho" ou "filha"? De que outra forma eles podem
nós não corremos pelos corredores. Pa^ e tranquilidade deixar a família, o lar? Muito simplesmente, isso significa
que a escola dá às pessoas a chance (temporariamente, por
por um tempo, A sala de aula não é um lugar tranquilo,
um curto espaço de tempo) de deixar o seu passado e os
ê um lugar que se toma quieto, é dito para ela ficar
antecedentes familiares para trás e se tornarem um aluno
quieta. O sino nos lembra disso, e a vo^ estridente
como qualquer outro. Tomemos, por exemplo, o hospital-
de Air. Smith, o professor de matemática, vem para o
-escola, que oferece às crianças descanso, por mais breve
resgate daqueles com memória curta. Que somos todos
que possa ser, a partir do papel do paciente doente. Como
nós. Ble começa a sua aula com uma anedota tola, à
atestam os professores dessas escolas, elas "trabalham" até
maneira como ele sempre fa^ Hoje ela é sobre um génio
o último dia, mesmo para os pacientes terminais. Essas
matemático. Como se ele quisesse atenuar o choque que
escolas são transformadoras: "Lá fora, eles são o paciente,
nos espera na lousa na forma de uma função cúbica.
aqui eles são o aluno. Vamos deixar a parte do 'estar-doen-
Honestamente — truque ou não — elafunciona. Deixo-
te' ficar lá fora".^ O que a escola faz é prover o tempo em
me percorrer em seu universo matemático, como um que as necessidades e rotinas que ocupam a vida diária das
estranho em um mundo de estranhos que imploram para crianças — nesse caso, uma doença — podem ser deixadas
serem conhecidos. Uma segunda equação na lousa. Um para trás.
exercido. Nos é dado tempo parafa^ê-lo nós mesmos.
Uma suspensão similar se aphca tanto ao professor
Alguém solta um suspiro, todo mundo começa, acabou o
quanto ao assunto. O ensino, como ele era, não é uma
tempo, alguém se atreve a pedir mais tempo, ele nos dá
profissão séria. O professor está, parcialmente, situado fora
mais tempo. Bu acabei, olho em volta e me pergunto se o
da sociedade, ou melhor, o professor é alguém que trabalha
Sr Smith também representa um professor em sua casa.
Seus pobresfilhos,sua pobre esposa. Você acha que ele
^ "Voofdoen met hct normale, dat geeft deze kinderen kracht". De Morgm, 10
também tem um trabalho real'^ Tempo esgotado. de setembro de 2011, p.6. Tradução dos autotes.

30 31
CoiECÃo "EDUCAÇÃO: EXPERIÊNCIA E SENTIDO" O que é o escolar?

em um mundo não produtivo ou, pelo menos, não imedia- liberando-0, retirando-o de seu contexto normal. É um
tamente produtivo. Muitas das coisas habituais exigidas de ato de desprivatização, isto é, desapropriação. Na escola,
profissionais - no que diz respeito à produtividade, respon- o tempo não é dedicado à produção, investimento, fun-
sabilidade e, é claro, férias — não se aplicam ao professor. cionalidade ou relaxamento. Pelo contrário, esses tipos de
Pode-se dizer que ser um professor implica, desde o início, tempo são abandonados. De um modo geral, podemos
uma espécie de isenção ou imunidade. Os professores não dizer que o tempo escolar é o tempo tornado livre e não
trabalham para o ritmo do mundo produtivo. Da mesma é tempo produtivo.
forma, o conhecimento e as habilidades aprendidas na escola Isso não quer dizer que a suspensão descrita acima é,
de fato têm uma clara ligação com o mundo - derivam dele, na verdade, operativa na educação atual. Pelo contrário, o
mas não coincidem com ele. Uma vez que o conhecimento e oposto parece ser verdadeiro, Tomemos, por exemplo, a
as habilidades são trazidos para dentro do currículo escolar, tendência contínua de fixar os alunos aos seus antecedentes
passam a ser matérias e, de certo modo, tornam-se separados sociais e culturais, ou o impulso de moldar os professores
da aplicação diária. É claro que as próprias aplicações de na forma de um "verdadeiro profissional" sensível às deman-
conhecimentos e de competências podem ser abordadas em das de produtividade e com a intenção de tornar a matéria
um ambiente escolar, mas só depois de serem apresentadas mais (economicamente) relevante. Como discutiremos mais
como matérias. Esse conhecimento e essas habilidades são, tarde, essas tendências podem se originar de um medo de
assim, libertados, isto é,^eparados dos usos sociais conven- suspensão e podem ser vistas como uma tentativa de domar
cionais, atribuídos na medida em que são apropriados para o tempo escolar.
eles. Nesse sentido, a matéria sempre consiste em conheci- Pensamos que o formato muito concreto da escola pode
mentos e competências autoindependentes. Ou, dito de outra desempenhar um papel importante na possibilidade de retirar
forma: o material tratado em uma escola não está mais nas o peso da ordem social — suspensão — no interesse de criar
mãos de um grupo social ou geração particulares e nào há tempo livre. A forma espedfica de salas de aula e play^unds
nenhuma conversa de apropriação; o material foÍ removido apresenta, no mínimo, a possibilidade de, hteralmente, se
— liberado — da circulação regular. tornarem separados do tempo e do espaço da famíha, da
Esses exemplos nos levam a um primeiro aspecto do sociedade ou do mercado de trabalho e das leis que os pre-
escolar: que a construção de uma escola implica suspensão. sidem a esse respeito. Isso pode ser alcançado não só através
Quando ocorre a suspensão, os requisitos, tarefas e funções da forma construída na sala de aula (a presença de uma mesa,
que governam lugares e espaços específicos, tais como a o quadro-negro, a disposição das bancadas de trabalho de
família, o local de trabalho, o clube despordvo, o bar e o tal maneira a facilitar a interação tátil, etc), mas também
hospital, já não se aplicam. Isso não imphca a destruição através de todos os tipos de métodos e ferramentas. E, evi-
desses aspectos, no entanto. A suspensão, tal como a en- dentemente, o professor também tem um papel importante.
tendemos aqui, significa (temporariamente) tornar algo Nesse sentido, Daniel Pennac (2010), em seu livro
inoperante, ou, em outras palavras, tirá4o da produção, SchoolBlues, é parucularmente instrutivo. Ele enfatiza essa

32 33
CoifCÃo "EDUCAÇÃO: EXPERIÊNCIA F SENTIDO"
o que é o escolar?

suspensão, dizendo que o professor (pelo menos se ele parecer irritante para os professores estorvados com as
estiver "trabalhando" com êxito em uma sala de aula) atrai classes mais difíceis nos hanlieues. E, sim, essas fórmulas
os alunos para o tempo presente^ isto é, para o aqui-e-agora. podem realmente parecer banais de um ponto de vista
School Blues é uma obra literária em que Pennac conta a considerado sociológico, político, económico, familiar
história de suas desventuras intermináveis como um estu- ou cultural... Ainda assim, o pensamento ilusório de-
dante desiludido, desmotivado e completamente difícil. A sempenha um papel que não deveria ser subestimado
história é seguida por uma narrativa de sua carreira (de su- quando se trata da tenacidade do aluno relapso para ficar
cesso) como professor de francês em escolas dos subúrbios enterrado no fundo de sua própria existência. E tem
franceses, onde continuamente encontrava o tipo de aluno sido sempre assim, qualquer que seja seu antecedente
que ele mesmo fora um dia. Seu relato contém observações social (PcNNAC, 2010, p, 142-143).
muito precisas sobre a capacidade da escola e do professor Os nossos "maus alunos", aqueles programados para
para "libertar" os alunos, isto é, para permitir aos alunos não se tornarem nada, nunca vêm para a escola sozi-
se separarem do passado (que os oprime e os define em nhos. O que entra na sala de aula é uma cebola: várias
termos de [falta de] habihdade/talentos) e do futuro (que camadas de desgostos da escola — medo, preocupação,
é, ao mesmo tempo, inexistente ou predestinado) e, por- amargura, raiva, insatisfação, renúncia furiosa - em-
tanto, se dissociarem temporariamente de seus "efeitos". A brulhadas em torno de um passado vergonhoso, um
escola e o professor permitem que os jovens reflitam sobre presente sinistro, um futuro condenado. Olha, lá vêm
si mesmos, separados do contexto (antecedentes, mceíigên- eles, os seus corpos em processo de formação e suas
cia, talentos, etc.) que os conecta a um determinado lugar famílias nas suas mochilas. A aula não pode realmente
começar até que a carga tenha sido colocada no chão e
(um caminho de aprendizagem especial, uma aula para os
a cebola descascada. E difícil de explicar, mas apenas
alunos de reforço, etc.) Pennac expressa isso dizendo que o
um olhar, uma observação gentil, uma palavra clara
professor deve garantir que "um alarme dispare" cada lição.
e firme de um adulto atencioso, muitas vezes, é o
Esse alarme deve ser bem sucedido em fazer com que os
suficiente para dissolver esses desgostos, clarear essas
alunos saiam do que ele chama de "pensamento ilusório", mentes e colocar essas crianças, confortavelmente, no
isto é, o pensamento que "os aprisiona em contos de fadas" presente do indicativo. Naturalmente, os benefícios são
e planta ideias de incompetência nas suas "mentes": "não temporários; a cebola assentará de volta suas camadas
posso fazer nada", "tudo vai dar em nada" "por que ten- fora da sala de aula, e nós teremos que começar tudo de
tar?". Esse alarme também dissipa contos de fadas inversos: novo amanhã. Mas é isso que é o ensino; começar de
"tenho que fazer isso", "é assim que isso deve ser", "esse é novo e de novo até alcançar o momento crítico em que
o meu talento", "isso é adequado para mim".,. o professor pode desaparecer (PENNAC, 2010, p. 50-51).

Talvez isso seja o que é ensinar: prescindir do pensamen- Dessa forma, a escola é o tempo e espaço onde os alunos
to ilusório, garantindo que cada aula é uma chamada de podem deixar pra lá todos os tipos de regras e expectati-
despertar. Claro, eu sei que esse tipo de declaração pode vas sociológicas, económicas e relacionadas à cultura. Em

34
33
COLEÇÃO "EDUCAÇÃO: EXPERIÈNOA E SENTIDO" O que é o escdar?

outras palavras, dar forma à escola — construir a escola — tem mas também a remoção das expectativas, necessidades,
a ver com uma espécie de suspensão do peso dessas regras. papéis e deveres ligados a um determinado espaço fora
A suspensão, por exemplo, das regras que ditam ou explicam da escola. Nesse sentido, o espaço escolar é aberto e não
por que alguém — e toda a sua família ou grupo — cai em um corrigido. O espaço escolar não se refere a um local de
determinado degrau da escada social Ou da regra que diz passagem ou de transição (do passado ao presente), nem
que as crianças de projetos habitacionais ou de outros am- a um espaço de iniciação ou de socialização (da família
bientes não têm interesse em matemática, ou que os alunos para a sociedade). Pelo contrário, devemos ver a escola
do ensino vocacional são dissuadidos pela pintura, ou que como uma espécie de puro meio ou centro. A escola é
os filhos dos industriais preferem não estudar cuMnária. O um meio sem um fim e um veículo sem um destino de-
que queremos enfatizar é que é através dessa suspensão que terminado. Pense em um nadador tentando cruzar um
as crianças podem aparecer como alunos, os adultos como grande rio (SERRES, 1997). Pode parecer que ele estivesse
professores, e os conhecimentos e habilidades socialmente simplesmente nadando de uma margem para a outra (isto
importantes como a matéria na escola. E essa suspensão e essa é, da terra da ignorância para a terra do conhecimento).
construção de tempo livre que instilam a igualdade no escolar, Mas isso quereria dizer que o próprio rio não significa
desde o início. Isso não significa que vemos a escola como nada, que ele seria uma espécie de meio sem dimensão,
uma organização que garante que todos alcancem o mesmo um espaço vazio, como voar através do ar. Eventualmente,
conhecimento e habilidades uma vez que o processo esteja o nadador, é claro, chegará à margem oposta, porém, o
concluído, ou que adquiram todo o conhecimento e as habih- mais importante é o espaço entre as margens — o centro,
dades de que precisam. A escola cria igualdade precisamente um lugar que compreende todas as direções. Esse tipo
na medida em que constrói o tempo livre, isto é, na medida de "meio termo" não tem orientação nem destino, mas
em que consegue, temporariamente, suspender ou adiar o torna todas as orientações e direções possíveis. Talvez a
passado e o futuro, criando, assim, uma brecha no tempo escola seja outra palavra para esse meio termo onde os
Hnear. O tempo Hnear é o momento de causa e efeito: "Você professores atraem os jovens para o presente.
é isso, então você tem que fazer aquilo", "você pode fazer
isso, então você entra aqui", "você vai precisar disso mais
tarde na vida, então essa é a escolha certa e aquela é a matéria
1/TJ. Uma questão de profanação
apropriada". Romper com esse tempo e lógica se resume a (ou tomar algo disponível, tomar-se
isso: a escola chama os jovens para o tempo presente ("o um bem público ou comum)
presente do indicativo" nas palavras de Pennac) e os libera
tanto da carga potencial de seu passado quanto da pressão Motores e carros meio desmontados são exibidos co
potencial de um futuro pretendido planejado (ou já perdido). se estivessem em um museu. Mas esse não é um mus
A escola, como uma questão de suspensão, implica não do automóvel, ê uma oficina, um atelier. Uma espécie de
só a interrupção temporária do tempo (passado e futuro). garagem, mas sem os clientes problemáticos e impaciente

36 37
COLEÇÃO "EDUCAÇÃO: EXPERIÈNOA E SEMTIDO" O que é o escolar?

Essas peças não têm dono, apenas estão lá, para todos. literalmente se sentam perto dela. Ou o professor que, com
Elas não são os modelos e motores mais recentes — mas sua voz, gestos e presença, invoca algo do mundo na sala de
é a essência o que conta. Montagem e desmontagem, em aula. Algo não apenas informativo, mas também animador,
suaforma mais pura. Manutenção e pequenos reparos, trazido de tal forma que um aluno não pode ajudar, exceto
também. Nós não falamos sobre o preço. Não agora, não olhar e ouvir. Esses são os momentos bastante raros, mas
aqui. A.S coisas devem ser bem feitas, com um olho para sempre mágicos, quando os alunos e os professores são
o detalhe, know-how também, e muito discernimento. arrebatados pela matéria, a qual, simplesmente sendo dita,
Não discernimento mecânico, mas o discernimento em parece assumir uma voz própria. Isso significa, em primeiro
mecânica. E eletrônica. Apenas o motor despojado parece lugar, que a sociedade é, de certa forma, mantida do lado
ser capa\ dar esse discernimento, como um modelo nu de fora ~ a porta da sala de aula se fecha e o professor pede
em tomo do qual o professor reúne seus alunos. Como silêncio e atenção (CORNELISSEN, 2010). Mas, em segundo
se a coisa ansiasse por ser estudada, admirada, mas lugar, algo é permitido no interior: um diagrama na lousa, um
também cuidadosamente desmontada e cuidadosamente livro sobre a mesa, palavras lidas em voz alta. Os alunos são
restaurada. Não tanto o professor, mas aquele motor tirados de seu mundo e levados a entrar num novo. Assim,
requer habilidade, e é como se os motores em exposição de um lado da moeda, há uma suspensão, isto é, uma inter-
tivessem se sacrificado para o aperfeiçoamento dessas pretação inoperável, uma libertação. Do outro lado, há um
habilidades. EJes fa^^em o tempo, dão tempo ~e o movimento positivo: a escola como presente e meio termo,
professor garante que os alunos o usem. Para praticar, um lugar e um tempo para possibiUdades e hberdade. Para
com olhos, mãos e mente. Uma mão hábil, um olho isso, gostaríamos de introduzir o termo profanação!"
experiente, uma mente focada — a mecânica está no Um tempo e lugar profanos, mas também as coisas
toque. Apenas adequado, masfelizmente não totalmente. profanas, referem-se a algo que é desligado do uso habitual,
Porque, então, não haveria mais tempo para o estudo e não mais sagrado ou ocupado por um significado especí-
a prática, e, portanto, não haveria tempo para erros e fico, e, portanto, algo no mundo que é, ao mesmo tempo,
novos discernimentos. acessível a todos e sujeito à (re)apropriação de significado. E
algo, nesse sentido geral (não religioso), que foi corrompido
Um simples exemplo; o quadro-negro, a carteira escolar. ou expropriado; em outras palavras, algo que se tornou
E claro, para muitos a lousa e a carteira são a quinta-essência público. O conhecimento, por exemplo, mas também as
dos artefatos da educação clássica: armas para disciplinar os habilidades que têm uma função especial na sociedade,
jovens, arquitetura a serviço da pura transferência de conhe- são tornados gratuitos e disponíveis para o uso público. A
cimento, símbolos do professor autoritário. Não há dúvida matéria de estudo tem precisamente esse caráter profano; o
de que muitas vezes elas funcionem dessa maneira. Mas elas
também não dizem algo sobre a escola quinta-essencial?
•* Fazemos um uso "educacional" daquela noção, da forma como foi "filosofi-
A lousa que abre o mundo para os alunos, e os alunos que camente" elaborada por Agamben (2007).

38 39
CcufcÀo "EDUCAÇÃO: ExPEwfrjQA E SENTIDO" o que é o escolar?

conhecimento e as habihdades são efetivamente suspensos pelo bem da linguagem, em cozinhar por causa de cozinhar,
dos caminhos em que a geração mais velha cuidou de coloca- em carpintaria por amor à carpintaria. E assim que você
-los em uso em tempo produtivo, mas essa matéria ainda não calcula uiria média, é assim que você conjuga em inglês, é
foi apropriada pelos representantes da geração mais jovem. O assim que você faz uma sopa ou uma porta. Mas tudo isso
importante aqui é que são precisamente essas coisas públicas acontece separadamente de um objetivo a-ser-alcançado-
— as quais, por serem públicas, estão, portanto, disponíveis -imediatamente. Exemplos de objetivos imediatos seriam:
para uso livre e novo — que proporcionam à geração mais que média tem que dar a esse cliente uma visão geral dos
jovem a opormnidade de experimentar a si mesma como juros projetados; você usou inglês gramaticalmente correto
uma nova geração. A típica experiência escolar — a experiên- para formular uma carta de reclamação para seu senhorio;
cia que é possibilitada pela escola — é exatamente aquele essa sopa deve ser entregue à mesa sete; aquela porta pre-
confronto com as coisas públicas disponibilizadas para uso cisa ser instalada na casa da Rua Baldwin. Aspectos dessas
livre e novo. É, por assim dizer, a prova matemática tirada coisas podem, certamente, ser trazidos à baila em sala de
do mundo e escrita no quadro-negro para que todos possam aula, mas, então, como um exercício e um estudo. Em cada
ver. Ou o hvro-texto sobre a carteira. Esse quadro-negro caso, a "economia" é o que é (ativamcnte) suspenso a partir
ou carteira não são, acima de tudo, um instrumento para das habilidades, conhecimento, raciocínio e objetivos que a
disciplinar os jovens, como a crítica comum admite. É algo penetram em tempo "normal".
que faz com que seja possível que as coisas tomem posse E importante destacar, como Pennac também indica
de si mesmas, desligadas e libertadas de seu uso habitual, e, continuamente, que a construção do tempo escolar (tempo
portanto, publicamente disponíveis. Por essa razão, a escola livre) é acompanhada pelo fato de que, na escola, sempre
sempre sígrúfica conhecimento em prol do conhecimento, há alguma coisa sobre a mesa. Como diz Pennac, a escola
c a isso chamamos de estudo. A Hnguagem da matemática não consiste em atender às necessidades individuais; isso
consegue ser autossuficiente — o seu enraizamento social é acontece fora da matéria escolar. Pelo contrário, consiste
suspenso — e, por meio disso, ela se toma um objeto de es- em acompanhar durante a aula, lidar com alguma coisa^ estar
tudo. Da mesma forma, podemos quaUficar habilidades em presente para alguma coisa. Devemos nos limitar, diz Pennac,
prol da prática de habihdades. Nesse caso, a escola é o tempo à matéria e às regras do jogo impostas sobre nós por praticar
e o lugar para estudo e prática — as atividades escolares que a própria matéria. Desse modo, algo da sociedade é posto
podem alcançar um significado e um valor em si mesmas. em jogo ou executado em jogo. Isso volta a uma das palavras
Mas isso não significa que a escola, como uma espécie de latinas para a escola, ludus, que também significa "jogo"
torre de marfim ou ilha, se refira a um tempo ou lugar fora ou "brincadeira". Em certo sentido, a escola é de fato o
da sociedade. O que é tratado na escola está enraizado na playground da sociedade. O que a escola faz é trazer algo
sociedade, no cotidiano, mas transformado pelos atos simples para ojogo^ ou fazer alguma coisa nojogo. Isso não significa
e profundos de suspensão (temporária) e profanação. Foca- que a escola não seja séria ou não tenha regras. Muito pelo
mos em matemática em prol da matemática, em linguagem contrário. Isto significa que a sua seriedade e regras já não

40 41
CoiECÃo "EDUCAÇÃO'. ExpERiÊt«:iA E SENTIDO"
o que é o escolor?

sào derivadas da ordem social e do peso de suas leis, mas, acontece na escola é muitas vezes criticado como "não é
antes, de alguma coisa do próprio mundo — um texto, uma real" ou "não realista". E isso é muitas vezes reforçado com
expressão matemática ou uma ação como arquivar ou serrar a crítica adicional de que se aprende melhor uma profissão
— e essa alguma coisa é, de uma forma ou de outra, valiosa. fora da escola. O que precisamos, dizem, não são alunos,
Consequentemente, estudar um texto requer certas regras mas aprendizes. Aprender um ofício deve compartilhar
do jogo e disciplina, do mesmo modo que acontece com os uma relação direta e imediata com a produção do mundo
que se engajam na escrita ou na carpintaria. O importante real do uso pretendido do negócio. Para nós, no entanto,
aqui é, precisamente, que por transformar alguma coisa em há uma diferença substancial entre alunos e aprendizes
jogo, está, simultaneamente, sendo oferecida para o uso livre — o modelo escolar}a^ algo, e através dele, a prática e o
e novo. Está sendo solta e colocada sobre a mesa. Ou seja, estudo são possibilitados. A escola não é um campo de
algo (um texto, uma ação) está sendo oferecido e se torna, treinamento para aprendizes, mas o lugar onde al^ — tal
ao mesmo tempo, separado de sua função e importância como um texto, um motor, um método particular de car-
na ordem social, algo que aparece em si mesmo, como um pintaria - realmente se torna separado de seu próprio uso
objeto de estudo ou de prática, independentemente do seu e, portanto, também se torna separado da função e signifi-
uso adequado (em casa ou na sociedade, fora da escola). cado que ligam aquele algo à família ou à sociedade. E esse
Quando algo se torna um objeto de esmdo ou de prática, trazer para o jogo, esse transformar algo em matéria de estud
isso significa que exige a nossa atenção; que nos convida a que é necessário, a fim de se aprofundar em alguma coisa
explorá-lo e engajá-lo, independentemente de como ele possa como um objeto de prática e de estudo. Em breve, vamos
ser colocado em uso. mostrar que transformar algo em jogo, isto é, destacar algo
Que a escola é o playground da sociedade talvez seja mais do seu uso adequado, é precisamente a pré-condição para
evidente naqueles lugares onde algo do mundo do trabalho a compreensão da escola como situação inicial; uma situa-
está incluído sem qualquer relação imediata com a produ- ção em que as crianças ou os jovens podem, literalmente,
ção. Vemos isso, por exemplo, no ensino técnico e voca- começar algo novo. Antes, porém, gostaríamos de dizer
cional: trabalhar em um motor, carpintejar uma moldura algumas palavras sobre a maneira pela qual profanação e
de janela. Isso é importante, mas não é diretamente uma a suspensão abrem o mundo, e isso através da atenção e
função da vida produtiva: o carro não precisa ser entregue, do interesse, em vez da motivação.
a janela não precisa ser vendida. A escola é o lugar onde o
trabalho "não é real". Isso significa que ele é transformado
em um exercício que, como um jogo, é realizado para seu 'VllL Uma questão de atenção e de mundo
próprio bem, mas ainda requer disciplina. Claro que, hoje (ou abrir, criar interesse, trazer à vida, formar
em dia — onde os espaços de aprendizagem hiper-realistas
são a norma e a educação orientada para a competência Ela tinha visto aqueles animais muitas m^es. E
é saudada como a nova direção para a escola —, o que conhecia alguns deles pelo nome. O gato e o cac

42 43
CoiEÇÃo "EDUCAÇÃO: EXPERIÊNCIA E SENTIDO"
o que é o escolar?

é claro — correm à solta na casa. Ela conhece as aves A escola é, repetidamente, acusada de ser muito dis-
também. Podia distinguir um pardal de um canário- tante do mundo. De que ela não consegue lidar com o que
âa-terra e um melro de um corvo. E, é claro, todos os c importante na sociedade; que ela se ocupa com conhe-
animais da Jat^nda. Mas ela nunca pensou nisso duas cimentos e habilidades desatualizados ou estéreis; que os
ve^s. E exatamente como era. Todo mundo da sua professores estão muito preocupados com detalhes e com o
idade sabia essas coisas. Era senso comum. jargão académico. Em resposta, queremos argumentar que
A.té aquele momento. Uma aula com nada além de a profanação e a suspensão tornam possível abrir o mundo
estampas. Sem fotos, sem filmes. Estampas bonitas na escola e que ele é, de fato, o mundo (e não necessidades
que transformaram a sala de aula em um ^^oológico, só ou talentos individuais de aprendizagem) que está sendo
que sem as gaiolas e as barras. E a vo^ da professora revelado. Naturalmente, os críticos têm um entendimento
que comandava a nossa atenção, porque ela deixava as diferente do que "é o mundo". Para eles, o mundo é um
estampasfalarem. -As aves tinham um bico e o bico, lugar de aplicabilidade, usabilidade, relevância, concretude,
uma forma, e a forma falava sobre a comida: comedores competência e rendimento. Eles assumem que "sociedade",
de insetos, comedores de sementes, comedores de peixe... "cultura" ou "mercado de trabalho" são (e devem ser) as
Ela foi atraída para dentro do reino animal, tudo pedras de toque finais deste mundo. Ousamos afirmar que
se tornou real O que antes parecia óbvio tornou-se essas entidades são, acima de tudo, ficcionais. Será que real-
estranho e sedutor. As aves começaram a falar mente sabemos o que é esperado pela "sociedade" (muito
de novo, e, de repente, ela podia falar sobre elas de uma menos a chamada "sociedade que muda rapidamente"), ou
o que é realmente útil? As listas de competências que estão
maneira nova. Que algumas aves migram e outras
na moda não são apenas quimeras que perderam toda a
ficam quietas no lugar. Que um quivi é um pássaro,
hgação concreta com a realidade? A insistência na impor-
uma ave não voadora da Nova Zelândia. Que as aves
tância prática e utilidade não é profundamente pretensiosa,
podem se extinguir. Ela foi apresentada ao dodÓ. E
enganadora e até fraudulenta para os jovens? Isso não quer
isso em uma sala de aula, com a porta fechada, sentada
dizer que as competências e as práticas na sociedade ou no
em sua carteira. Um mundo que ela não conhecia.
mercado de trabalho não servem para nada. Mas mesmo
Um mundo ao qual ela nunca tinha prestado muita
que elas criem as instruções de funcionamento ou pontos
atenção. Um mundo que apareceu do nada, invocado
de orientação, a escola faz outra coisa. A escola não está
por estampas mágicas e uma vo^ encantadora.
separada da sociedade, mas é única, visto que é o local, por
Ela não sabia o que a surpreendia mais: esse novo
excelência, de suspensão escolástica e profanação pela qual
mundo que tinha sido revelado a ela ou o crescente o mundo é aberto.
interesse que ela descobriu em si mesma. Isso não
Em Trem notumo para Ushoa, um romance filosófico
importava. Caminhando para casa naquele dia, algo
de Pascal Mercier, o professor e protagonista, Gregory,
havia mudado. Ela havia mudado.
relembra seu próprio professor de grego. O que ele escreve

44 45
CoLEçio "EDUcftCÃO: EXPERIÊNCIA E SENTIDO" O que é o escolar?

se aplica tão bem a um professor de línguas como a um daquilo — mesmo que Gregorius não conseguisse
professor de matemática, geografia ou carpintaria: explicar ao certo por quê (MERCIER, 2007, p. 39-40).

A primeira aula da tarde era de grego. O professor era Essa passagem é particularmente expressiva por inú-
o diretor [...]. Ele tinha a mais primorosa caligrafia meras razões, e voltaremos a ela em outro lugar. Aqui, é
grega que se podia imaginar; desenhava as letras, importante indicar com clareza o que exatamente acontece
principalmente as de traços arredondados, como o na escola quando ela "trabalha" como uma escola e o que
ômega ou o teta, ou o traço do eta que descreve um é perdido como um resultado do egoísmo e da arrogân-
movimento para baixo. Ele amava a língua grega. cia do reitor, nesse exemplo. Isso é ex negativo deduzido a
"Mas amava-a de um jeito errado", pensava Gre- partir do exemplo: algo se toma real epassa a existir em epor si
gorius no fundo da sala de aula. A sua maneira de mesmo. As palavras gregas tornam-se palavras gregas reais.
amar era vaidosa. Não pelo fato de celebrar as pa- E, embora isso signifique que elas não podem imediata-
lavras. Se assim fosse, Gregorius teria gostado. Mas mente ser vistas em função da sua utilidade, não significa
quando aquele homem escrevia de forma virtuosa as que são supérfluas (como "jóias vaidosas"). Elas passam
formas verbais mais complexas e difíceis, não estava a existir em si mesmas; não fazem nada (ou seja, nada de
celebrando as palavras, mas sim a si próprio, como al- especial), mas são, em si, importantes. A língua se torna
guém que as dominava. Desta forma, as palavras se verdadeira língua e a língua se torna língua em si mesma,
tornavam ornamentos com os quais ele se adornava, assim como em outras aulas a madeira se torna madeira
transformando-se em algo parecido com a sua gra- real e os números, números reais. Esses algo começam a se
vata-borboleta de bolinhas que ele usava entra ano, tornar parte do nosso mundo em um sentido real, começam
sai ano. Fluíam da mão em que ele usava seu anel a gerar interesse e começam a nos "formar" (no sentido do
de brasão, como se também fossem uma espécie de conceito holandês de vormin^. O exemplo também deixa
joia, portanto, também supérfluas. Assim, as palavras claro que esse evento formativo não só tem a ver com a
gregas deixavam de ser realmente palavras ^re^íJJ. Era sala de aula e o professor, mas também com o amor (uma
como se o pó de ouro do anel descompusesse a sua ideia à qual voltaremos).
essência grega, acessível apenas àquele que as amasse
por sua causa unicamente. Para o diretor, a poesia era Desse modo, entendemos a formação não como um
como um móvel raro, um vinho sofisticado ou um tipo de atividade auxiliar da escola; como algo que ocorre
elegante vestido de noite. Gregorius tinha a sensação fora das matérias de estudo atuais e que tem a ver com os
de que, com a sua presunção, o diretor lhe roubava valores de um ou outro projeto educacional. Em vez disso,
os versos de Esquilo e Sófocles. Ele parecia não a formação tem a ver com a orientação dos alunos para o
conhecer nada dos teatros gregos. Não, ele conhecia mundo como ele é construído para existir no sujeito ou na
tudo, vivia viajando para a Grécia, viagens guiadas matéria, e essa orientação diz respeito, principalmente, à
das quais voltava bronzeado. Mas não entendia nada atenção e ao interesse para com o mundo e, igualmente, à

4íi 47
CoíEÇÃo "EDUCACAO: EXPERIB-IOA E SENTIDO" o que é o escolar?

atenção e ao interesse para com a própria pessoa em relação gem na escola. A aprendizagem envolve o fortalecimento
ao mundo. Pennac, pensando em seus próprios professores, ou ampliação do eu Já existente^ por exemplo, por meio
tenta articular o que se passa durante as aulas: da acumulação de competências ou da expansãt> da base
de conhecimento do indivíduo. Aprender, nesse sentido,
Tudo o que sei é que três deles tinham uma paixão
implica uma extensão do próprio mundo da vida do indi-
por comunicar seus conteúdos. Armados com essa
víduo, acrescentando algo. O processo de aprendizagem
paixão, eles me localizaram no abismo do meu desâ-
continua a ser introvertido — um reforço ou uma extensão
nimo e não desistiram até que eu tivesse os dois pés
do ego, e, portanto, o desenvolvimento da identidade. Na
firmemente plantados em suas aulas, que provaram
formação, no entanto, esse eu e o mundo da vida do indi-
ser as antecâmaras da minha vida. [...] Esse gesto de
víduo são colocados em jogo constante desde o início. A
salvar uma pessoa que está sc afogando, que o agar-
formação envolve, assim, sair constantemente de si mesmo
ra e puxa para cima, apesar de sua agitação suicida,
ou transcender a si mesmo — ir além do seu próprio mundo
a crua imagem de afirmação da vida dc uma mão
da vida por meio da prática e do estudo. E um movimento
segurando firmemente a gola do casaco é a primeira
extrovertido, o passo que segue uma crise de identidade
coisa que me vem á mente quando penso neles. Em
(SLOTERDIJK, 2011). Aqui, o eu não adiciona ao conheci-
sua presença - em suas matérias — eu dei à luz a mim
mento previamente adquirido, e isso acontece precisamente
mesmo: um eu, que era um matemático, um eu que
porque o eu está, na verdade, no processo de ser formado.
era um historiador, um eu que era um filósofo, um
O eu do aluno está, assim, sendo suspenso, dissociado: é
eu que, no espaço de uma hora, esquecia um pouco
um eu colocado entre parênteses ou um eu profano e que
de mim mesmo, me colocava entre parênteses, livrando-
pode ser formado, ou seja, pode se dar a ele uma forma ou
me do eu que, antes de encontrar esses professores,
configuração específicas.
tinha me impedido de sentir que eu estava realmente
lá (PhNNAC, 2010, p. 224-225). Queremos enfatizar, mais uma vez, que isso torna
possível para a escola, na medida em que consegue fazê-lo,
Aqui, o (neste caso, desanimado) "eu" é suspenso em abrir o mundo para o aluno. Isso significa, literalmente,
confronto com o mundo (alçado, colocado entre parênteses), que algo (palavras gregas, uma peça de carpintaria, etc.)
o que permite um novo "eu" em relação àquele mundo que é tornado parte do nosso mundo e (Ín)forma o mundo.
vai tomar forma e ser fabricado. Essa transformação é o Informa nosso mundo em um duplo sentido: forma parte
que queremos referir a como formação. Esse novo "eu" é, do mundo (que podemos, então, compartilhar) e />?forma,
antes e acima de tudo, um eu da experiência, da atenção isto é, partilha algo com o mundo existente (e, dessa forma,
e da exposição a alguma coisa. No entanto, devemos ter acrescenta algo ao mundo e o amplia). Quando algo se torna
o cuidado de distinguir formação de aprendizagem. Ou, parte do mundo, isso não significa que se torna um objeto
dito de outra forma, a formação é típica para a aprendiza- de conhecimento (algo que sabemos sobre o mundo), que

48 49
CoifCÃo "EDUCACAO; EXPERIÊNCIA E SENTIDO' O que é o escolar?

é, de alguma forma, somado à nossa base de conhecimento, realmente, usado — é aberto e o próprio mundo é tornado
mas sim que se torna parte do mundo em que/pelo qual aberto e livre e, portanto, compartilhado e compartilhável,
estamos imediatamente envolvidos, interessados, curiosos, e algo interessante ou potencialmente interessante: um objeto
assim também algo que se torna um inter-esse (algo que não de estudo e de prática.
é nossa propriedade mas que é compartilhado entre nós). Resta ainda um ponto muito importante. Na medida
Poderíamos dizer que não é mais um "objeto" (inanimado), em que o escolar está preocupado com a abertura do mun-
mas uma "coisa" (viva). do, a atenção — e não tanto a motivação — é de importância
Isso é, literalmente, o que vemos acontecer no filme O crucial, A escola é o tempo e o lugar onde temos um cuida-
filho, dos irmãos Dardenne. Somos confrontados com um do especial e interesse nas coisas, ou, em outras palavras,
professor em ação, Olivier, um professor muito "comum", a escola focaliza a nossa atenção em algo. A escola (com
que é mais ou menos o oposto do professor descrito acima seu professor, disciplina escolar e arquitetura) infunde na
por Gregorius. Ele consegue despertar um interesse por nova geração uma atenção para com o mundo: as coisas
carpintaria em um de seus alunos completamente "derro- começam a falar (conosco). A escola torna o indivíduo
tado" e perturbado (um jovem criminoso condenado por atento e garante que as coisas — destacadas de usos privados
assassinato que veio para aprender uma "ocupação", na e posições — tornem-se "reais". Ela faz alguma coisa, ela é
esperança de um dia ser capaz de voltar para a sociedade). ativa. Nesse sentido, não se trata de um recurso, produto
Vemos como a madeira se torna madeira real para esse
ou objeto para utilização como parte de uma determinada
aluno e não simplesmente algo com que fazer armários ou
economia. Trata-se do momento mágico quando alguma
cadeiras ou para usar como combustível na lareira, ou, para
coisa fora de nós mesmos nos faz pensar, nos convida a
essa matéria, algo que o conduz a uma ocupação que "vai le-
pensar ou nos faz coçar a cabeça. Nesse momento mágico,
vá-lo para algum lugar" (mesmo que isso pareça ser o caso).
algo de repente deixa de ser uma ferramenta ou um recurso
Como antes, aqui a madeira é afastada de seu próprio lugar;
e se torna uma coisa real, uma coisa que nos faz pensar, mas
torna-se madeira real, em si mesma, e, portanto, torna-se,
também nos faz estudar e praticar. E um acontecimento,
em forte sentido, uma parte do mundo desse aluno. Começa
no sentido vivo da palavra, ou, como Pennac, apropriada-
a pertencer ao seu mundo, ao que interessa a ele e o ocupa,
mente, relata de novo:
E algo que começa afi)má-io, produz mudanças nele, muda
a maneira como a sua vida e o mundo realmente aparecem
Eles eram artistas em transmitir suas matérias. Suas
para ele e lhe permite começar de uma nova forma "com" o
aulas eram feitos de comunicação, é claro, mas tam-
mundo. Abrir o mundo não significa apenas vir a conhecer
bém de conhecimento dominado, ao ponto em que
o mundo, mas também se refere ao modo como o fechado-
quase passava por criação espontânea. Sua facilidade
no-mundo — isto é, a maneira determinada em que o mundo
transformava cada aula em um evento a ser lembrado.
deve ser compreendido e usado, ou a maneira como ele é.
Como se a senhorita Gi estivesse ressuscitando a his-

50 51
COLEÇÃO "EDUCAÇÃO: EXPERIÊNCIA E SENTIDO" o que é o escolar?

tória, o Sr. Bal redescobrindo a matemática e Sócrates apenas sentados lá esperando por mim, sempr
falando através do Sr. S.! Eles nos davam aulas que impacientes, sempre a fonte de uma luta constant
eram tão memoráveis quanto o teorema, o tratado de Eu tentei me forçar e, quando necessário, me sedui^ir
paz ou o conceito básico que constitui sua matéria, a estudar evocando o inferno ou prometendo a mi
em qualquer dia particular. Seu ensino criava eventos mesmo o paraíso. Mas esses diálogos íntimos nem sempre
(PENNAC, 2010, p. 225-226). funcionavam. Eu conhecia muito bem minhas próprias
fraque^s. Eu sabia qual a distração que podia me
Pode-se formular esse "evento" como algo que nos faz
sedu^r. O que me convenceu a estudar, a pratica
pensar, desperta nosso interesse, torna algo real e significati-
para darpartida nas coisas? Para ser honesto, nada e
vo, um assunto que importa. Uma prova de matemática, um
ninguém. E um comando estranho: você deve estudar, vo
romance, um vírus, um cromossomo, um bloco de madeira
não deve apenas enfrentar a tarefa, mas você também
ou um motor — todas essas coisas são tornadas significativas
deve se dedicar à tarefa. Não foi uma ordem de meus
e interessantes. Esse é o acontecimento mágico da escola,
pais ou professores que me levaram a ver a importância
o movere — o movimento real ~- que não deve ser rastreado
de um diploma. Suas advertências eram, na melhor das
até uma decisão individual, escolha ou motivação. Enquan-
hipóteses, uma reflexão tardia inoportuna. Eu nunca
to a motivação é uma espécie de caso pessoal, mental, o encontrei uma explicação para esse comando. Nem
interesse é sempre algo fora de nós mesmos, algo que nos mesmo mais tarde, como um estudante de filosofia.
toca e nos leva a estudar, pensar e praticar. Leva-nos para exigência de estudar e praticar não é um imperativo
fora de nós mesmos. A escola se torna um tempo/espaço hipotético — não está ligada a condições ou propósitos.
do inter-esse — do que é compartilhado entre nós, o mundo Mas também não é um imperativo categórico - não
em si. Naquele momento, os alunos não são indivíduos com é uma exigência derivada de um puro desejo. Um
necessidades específicas que escolhem onde eles querem pensamento selvagem: talve^ o meu ponto cego seja
investir seu tempo e energia; eles são expostos ao mundo ponto cego de toda a filosofia. A filosofia por epara
e convidados a se interessarem por ele; um momento em adultos. E se a escola traq^ o tempo e o mundo à vid
que a verdadeira comun-icação é possível. Sem um mundo, gera curiosidade e torna possível a experiência de
não há interesse nem atenção. tirar a vida de alguém com as próprias mãos, incute o
impulso para conseguir algo? Trata-se do nascimento d
consciência pedagógica e do imperativo pedagógico. Uma
/X Uma questão de tecnologia
pessoa que pode se tomar interessada, que tem que
(ou praticar, estudar, disciplina) estudar e praticar, aprimorar e darforma a si mesma.
Muitas ve^s eu tive que me arrastar para a minha "Faça o seu melhor", "continue", "observe de perto
carteira. Os trabalhos de casa e outras tarefas estavam "preste atenção", "experimente", "comece"-esses sã

52 53
O que é o escolar?

pequenos gestos de uma grandefilosofiada escola. E de espacial da escola e da sala de aula também são relevantes.
onde vem o amor pela escola? Talve':^ devêssemos explicar Essas coisas não são ferramentas ou ambientes que po-
o nosso esquecimento da, e talve^ até mesmo ódio pela dem ser usados livremente ou que são usados de acordo
escola em primeiro lugar. com a intenção de alguém. O aluno ou o professor nào
assume, automaticamente, o cí)ntrole sobre elas. Mais
Não há nenhuma curiosidade e interesse sem o tra- exatamente, sempre há um elemento inverso no trabalho:
balho — mas isso também significa que curiosidade e in- esses instrumentos e espaços reafirmam o controle sobre
teresse devem ser tornados possíveis, assim como o mundo o aluno e o professor. De certa forma, a classe expulsa o
deve ser processado como tal, isto é, apresentado. Nesse ambiente imediato e torna possível que algo do mundo
ponto, chegamos à dimensão técnica da escola (que existe esteja presente. Sentar em uma carteira não é apenas um
paralelamente ao papel do professor, que será discutido estado físico; isso também acalma e focaliza a atenção: um
mais tarde). Escola e tecnologia podem, à primeira vista, lugar para sentar e ficar à vontade. A lousa não é apenas
parecer ser uma estranha combinação. De fato, a partir de uma superfície em que a matéria aparece na forma escrita.
uma perspectiva humanista, é frequentemente assumido que Muitas vezes, a lousa mantém o professor com os pés no
a tecnologia é principalmente de interesse para o mundo chão. Passo a passo, um mundo é levado a se revelar diante
produtivo e domínio da natureza e do homem. A autor- dos olhos dos alunos. Escrever esboços do curso é uma
realização, argumenta-se, tem lugar na esfera da cultura, clássica atividade do quadro-negro. Os resumos de aulas
das palavras e significados, do conteúdo, do conhecimento anteriores trazem nossas mentes de volta para o momento
fundamental. A tecnologia, por outro lado, pertence ao de sua composição — e são, normalmente, difíceis de de-
domínio da fabricação e da manufatura, do aplicável, da cifrar para os alunos que perderam a própria aula. Esses
lógica instrumental. A partir de uma perspectiva humanista, instrumentos são, assim — por enquanto —, parte do que
a tecnologia é algo que deve ser mantido fora da escola ou, nós gostaríamos de chamar de tecnologia escolar. Mas eles
pelo menos, algo que deve ser cuidadosamente abordado nào estão sozinhos. A sua força de trabalho se encaixa
em termos de um meio que permita à chamada pessoa com uma abordagem, um método de aplicação e atos
bem formada alcançar seus fins humanitários: em primeiro concretos. Aqui podemos falar de métodos de ensino e, mais
lugar, a aquisição de entendimento e conhecimento básicos particularmente, métodos que tanto geram interesse quanto
e, em segundo, a tradução disso em técnicas e aplicações abrem o mundo ou o apresentam. Muitos desses método
concretas. Mas, dar forma à escola, ou seja, estimular o de ensino ainda estão cravados em nossas mentes como
interesse por cuidadosamente criar e apresentar o mundo, arquétipos (conjuntos de problemas de álgebra, ditados,
é inconcebível sem a tecnologia. ensaios, apresentações de aula, etc). Isso talvez aconteça
Aqui estamos pensando muito simplesmente no qua- porque esses métodos têm um forte caráter escolástico —
dro-negro, no giz, no papel, na caneta, no livro, mas tam- e só sào eficazes como parte de uma tecnologia escolar.
bém na carteira e na cadeira. A arquitetura e o arranjo Aqui, novamente, é útil trazer Daniel Pennac:

54 55
CoiEcÃo "EDUCAÇÃO: EXPERIÊNCIA E SENTIDO" O que é o escolar?

Então, o ditado é reacionário? Ele é, certamente, ine- em jogo, e também os alunos. Eles ocupam uma situação
ficaz se tratado negligentemente por um professor inicial - "nesta jornada para o entendimento".
interessado apenas em ded^zjj qotas a fim de chegar Exatamente como qualquer outro método de ensino,
a uma pontuação final, [...j'iSempre pensei no ditado o ditado torna explícito o lugar do professor como media-
como um encontro frontal com a língua. A língua dor que conecta o aluno ao mundo. Esse encontro permite
como som, como história, como raciocínio; a língua ao aluno deixar seu imediato mundo da vida e entrar no
como ela se escreve e se constrói, ou seja, significando mundo do tempo livre. Nesse sentido, um método de
conforme esclarecida por meio da correção meticulosa. ensino deve, constantemente, ser conectado ao mundo
Porque o único objetivo de corrigir o ditado é acessar da vida dos jovens, porém, exatamente para removê-los
o significado exato do texto, o espírito da gramática, de seu mundo de experiência. As regras para um ditado
a riqueza das palavras. Sc a nota se destina a medir são claras; todos sabem o que ele é e como ele funciona.
algo, é certamente a distância percorrida peias partes Um ditado é um ditado. Esse é um puro método de en-
interessadas nessa jornada em direção à compreensão. sino. Mas a "eficácia" dos métodos de ensino escolares
[,..] No entanto, é grande o meu terror na infância
repousa, especialmente, nos pequenos — frequentemente
quando aparecia o ditado — e Deus sabe que meus
muito pequenos - detalhes que despertam a curiosidade
professores o administravam como invasores abastados
dos jovens, proclamam a existência de novos mundos e
sitiando o quarteirão mais pobre de uma cidade - eu
incitam os alunos a se dedicarem a iniciar algo (ou seja,
sempre fui curioso sobre aquela primeira leitura. Cada
praticar e estudar). Essa minúcia implica que a curiosidade
ditado começa com um mistério: o que está prestes a
pode, rapidamente, tornar-se insegurança, que os alunos
ser lido para mim? Alguns ditados da minha infância
podem se recusar a jogar o jogo e que o encontro com o
eram tão bonitos que eles continuavam a se dissolver
mundo pode ser enganoso. Em tal situação, o encontro
dentro de mim como uma gota de pera muito depois
com o ditado é experimentado pelos alunos como uma
de eu ter recebido a minha ignominiosa nota (PENNAC,
proclamação pública de sua incompetência ou ignorân-
2010, p. 113-115).
cia. Um método de ensino escolástico não centraliza seu
O ditado, como Pennac o descreve, habilmente evoca foco na incompetência ou ignorância do aluno. Se ele
dois aspectos particulares da tecnologia escolar. Um ditado fizesse isso, um ditado se tornaria outra forma de teste
é um evento em que o mundo é comunicado ~ "um encon- ou exame e colocaria os alunos numa posição de culpa
tro direto com a língua" — e que desperta o interesse. Um e incompetência até que provem o contrário. Acima de
ditado também é uma espécie de jogo. O texto é removido tudo, o método de ensino escolástico torna a experiência
de seu uso comum e oferecido ao ato da escrita como tal, de fazer e aprender — a experiência de "eu quero ser capaz
ou seja, ao exercício e estudo da língua como um todo. de fazer isso ou saber isso" - possível, despertando, ideal-
Nesse sentido, sempre há algo em risco: a língua é colocada mente, uma nova dedicação à prática e ao estudo. Pode-se

56 57

Você também pode gostar