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Visões Alternativas do Direito


no Brasil

Ricardo Guanabara

Introdução

Por trás do rótulo "direito alternativo" encontram-se corremes diferemes


com propostas distintas, apesar de apresemarem inequívocos pontos de contato.
"
Apresentamos aqui duas dessas correntes: a primeira, denominada uso alter­
nativo do direito", é capitaneada por magistrados gaúchos e se propõe usar o
arcabouço legal da]ustiça de maneira mais flexível; a segunda, também chamada
"alterna tiva", não valoriza o arcabouço jurídico existente e propõe-se construir
UlTI novo direito, denominado "insurgente" ou uachado na rua". Este ensaio
pretende explicitar os conteúdos de cada LIma dessas propostas.

Definindo os alternativos

o tem.o "alternativo" tem sido objeto de controvérsias no campo do


direito. De imediato, cabe ressaltar o semido diverso da palavra em alguns países.
Na França, por exemplo, a expressão adquire um semido peculiar, fruto das

Nola: Este trabalho foi rt.!alizado a partir das discussôcs travadas no curso "'Direitos d.... is no BrasW,
ministrado por José Murilo de Carvalho no IUPERJ no primeiro semestre de 1995.

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características de sua sociedade, especialmente a "aversão à juridicidade" e a


recusa crescente aos "tratamentos judiciais de seus conflitos"] Enquanto a
sociedade norte-americana possui a clara tendência de juridicizar todos os
conflitos, a França percorre o sentido contrário, ou seja, cada vez mais os
franceses recorrem a agências de mediação que têm como objetivo resolver
conflitos e evilar o recurso à justiça "oficial". Daí o sentido de "alternativo" nesse
paIs.
,

o direito alternativo no Brasil, por sua vez, busca, de certa forma, uma
subversão do ordenamento jurídico existente, seja a partir de dentro do Estado,
seja a partir de fora, com a mobilização de selares organizados da sociedade.
Assim, a proposta do "uso alternativo do direito", de reconhecida influência
européia, parte da própria prática judicial e coloca a magistratura no centro do
movimento. Vários magistrados utilizam-se do direito oficial vigente para colocar
a justiça "ao lado dos oprimidos". A segunda perspectiva, de matriz latino-ameri­
cana, coloca não os juízes mas as próprias comunidades como atores principais
na luta pelos seus direitos, reivindicando um maior grau de educação para os
segmentos populares para que possam demandar soluções para seus problemas.
Uma procura adaptar as normas jurídicas existentes às necessidades dos setores
populares, acreditando que a neutralidade do Poder judiciário é um "mito". A
outra propõe-se prestar serviços jurídicos aos trabalhadores, conscientizando as
classes populares através da educação "legal" e "política", enfatizando a neces­
sidade da criação de um direito "insurgente" das classes oprimidas, a ser gestado
fora do Estado.2 Trata-se, como bem ressalta Luciano Oliveira, de uma escola
que procura "inscrever novos direitos a partir da perspectiva dos próprios domi­
nados".3
São, portanto, visões distintas acerca das possibilidades do quadro
institucional vigente, embora a maioria de seus praticantes compartilhe da
adesão ao marxismo como crítica do direito.

o uso altemativo do direito

A matriz do movimento de juízes brasileiros, sobretudo gaúchos, que


têm produzido por vezes sentenças polêmicas e causado contrariedade em boa
parte dos demais juristas, encontra-se na Itália do final dos anos 60 e 70, num
grupo de magistrados empreendedores de um movimento denominado "juris­
prudência Alternativa". Tal movimento, que repercutiu na Espanha do mesmo
período, também provocou críticas de ilustres juristas, entre eles Norberto
4
Bobbi0
Embora cercado de críticas oriundas dos membros mais conservadores
da magistratura italiana, o movimento cresceu em importância na década de 70,

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devido, sobretudo, ao alto preparo intelectual de seus juízes, que acabaram


ocupando cátedras em universidades e recebendo o apoio dos partidos políticos
"progressistas", além de obter expressiva cobertura da imprensa, não italiana
mas francesa.5 Tudo isso em um cenário de grandes reivindicações sociais e
atos de terrorismo que agitavam o país e colocavam as instituições, principal­
mente as juódicas, diante do constante desafio de aplicar a lei em uma sociedade
submetida a rápidas transformações.
Com todos esses elementos,o mundo jurídico italiano viveria grandes
embates entre os tribunais de instâncias diferentes por conta das polêmicas
decisões dos juízes de primeiro grau que ainda hoje ocupam uma parcela
expressiva da magistratura nesse país6 Ressalte-se, a propósito, os estudos de
Boaventura de Sousa Santos. Enfatizando a necessi(k�de de se rever o "mito do
apoliticismo judicial", O autor aponta três grandes tendências entre os juízes
italianos. A primeira, denominada "estrutural-funcionalista", enfatiza os valores
da ordem e da segurança jurídicas e é representada por juízes conservadores e
moderados, francamente adeptos das decisões tradicionais na organização
judiciária. A segunda, a do "conflitivismo pluralista", pode ser avaliada como
reformista, defensora da mudança social e da organização judiciária visando ao
aprofundamento da democracia dentro do Estado de direito. Por fim, a terceira
corrente, a do "conflitivismo dicotõmico de tipo marxista", abriga juízes que
fazem um uso alternativo do direito, cujo objetivo é conferir à magistratura uma
função criadora na construção de uma sociedade "mais igualitária,,7
No Brasil, somente na segunda metade dos anos 80 o movimento dos
juízes adeptos do uso alternativo do direito começaria a se solidificar e a se
institucionalizar. Ao que se sabe,B o início dessa solidificação encontra-se em
1986 em um congresso da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Na
ocasião, magistrados gaúchos reu ruram-se com O objetivo de coletar sugestões
para a Constituinte que começaria no ano seguinte. O encontro serviu, porém,
para mostrar a convergência de pontos de vista entre os presentes. Diversas
propostas acabaram se revelando comuns, como, por exemplo, a que sugeria
eleições diretas para desembargadores e presidentes de tribunais9
A partir da constatação de que cada juiz não estava só cQ"l suas propostas
"à esquerda", cresceu a adesão a um grupo que se consolidou no grupo de
filosofia do direito da Escola de Magistratura do Rio Grande do Sul. Esta passaria
a ser a única do país a contar com uma cadeira denominada "direito alternativo",
que seria ministrada por um dos expoentes do movimento, o juiz Amilton Bueno
de Carvalho.
Em 1990, o grupo já contava com aproximadamente 30 juízes e pelo
menos um número igual de simpatizantes, até mesmo na segunda instância do

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Rio Grande do Sul, onde se encontrava outro grande líder do movimento, o juiz
e professor Sérgio Gischow PereiraIO
Embora não possam manter vínculos partidários, por determinação da
própria Lei Orgânica da Magistratura, a maioria dos juízes "alternativos" declara
votar no PT e, não raro, faz aftrmações que provocam críticas contundentes
vindas dos mais importantes juristas do país. Independentemente da produção
acadêmica do grupo, que tem crescido nos últimos anos, e das decisões judiciais,
as aftrmações de certos integrantes são também bastante polêmicas, sobretudo
porque quase sempre questionam a estrutura de funcionamento do Poder
Judiciário no Brasil. São usuais as críticas aos rituais do cotidiano dos tribunais
e propostas para modificá-los. Um dos juízes - Márcio Puggini - chegou a propor
mudanças no mobiliário dos tribunais: "Nós queremos serrar os pés da mesa
,,
para ficarmos na mesma altura das pessoas. 11 Com ele concordaria Amilton
Bueno de Carvalho: "Olhar as pessoas de cima nos deixa numa posição
,,
ridícula. 12
Também as declarações poUtizadas "à esquerda" provocam indignação
em alguns círculos jurídicos brasileiros. A maioria dos juízes alternativos
questiona a idéia de Justiça e muitos não hesitam em redefini-la. Tal é o caso
de Arnilton Bueno quando afirma: "Eu ensino a usar o direito para a emanci­
pação da classe trabalhadora", ou "O justo está no compromisso com a maioria
do povo, que obviamente, no regime capitalista, é explorada".13
Não se pode dizer que os juízes alternativos se preocupem apenas em
expor suas posições por meio de declarações. Há um esforço de fundamentação
e difusão acadêmicas. Além de publicações - livros e periódicos -, desde o
início dos anos 90, centenas de debates e inúmeros congressos foram reaUzados
em todo o Brasil, entre eles o I Encontro Internacional de Direito Alternativo,
realizado no estado de Santa Catarina em setembro de 199114

Doutrina efundamentação do uso alternativo do direito

Segundo Amilton Carvalho, o uso alternativo do direito seria a procura


de um instrumental teórico e prático a ser utilizado por profissionais que desejam
colocar seu saber/atuação a serviço da "emancipação popular»l5 Segundo o
autor, a América Latina viveria uma "incipiente democratização'\ o que faria
com que o direito se tornasse um indispensável instrumento para que as classes
populares resistissem à "dominação/exploração". Nesse contexto, o Judiciário
deveria ser uma "arena democrática", disponível aos cidadãos para que lutassem
por seus direitos como, por exemplo, os aposentados na luta por reajustes em
seus proventos ou mutuários prejudicados no Sistema Financeiro de Habi­
tação16

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Tal perspectiva tem unido um número crescente de atores jurídicos


como juízes, promotores, advogados, defensores e procuradores que pautam
suas atuações pelo instrumental do direito alternativo, o que fez o movimento
crescer em importância. Na visão do juiz Arnilton Carvalho, o uso alternativo
do direito não se caracteriza pela negativa da lei, já que esta é uma "conquista
da humanidade", não sendo possível viver em sociedade sem normas, sejam
escritas ou não. Isso não deve impedir, entretanto, que as leis sejam "justas" e
"comprometidas" com a maioria da população]7 Como isso nem sempre é
possível, um ponto fundamental do uso alternativo é a separação entre direito
e lei, quando necessário. Daí a idéia de que é preciso superar o "legalismo
estreito" sem perder de vista os princípios gerais do direito, vistos como uma
"conquista da humanidade".18
Umas das principais críticas sofridas pelos magistrados gaúchos é a de
que estes juízes estariam pretendendo substituir os legisladores. Carvalho
responde a esse questionamento alegando que a história demonstra que os
legisladores estariam "a serviço da classe dominante", ou seja, dos "donos do
capital". 19 O legislador concebe a legislação genericamente sem pensar nas
particularidades. Com isso, a lei, embora boa, poderia levar a "injustiças
flagrantes".
Caberia, pois, ao Judiciário a obrigação de, no caso particular, alterar e
corrigir situações não previstas ou "mal previstas". Não deveria pois, simples­
mente buscar a vontade do legislador. Sendo um poder do Estado, caberia ao
Judiciário "buscar o que é melhor para o povo", já que a lei "é apenas um
referencial".20 Não haveria, na visão do uso alternativo do direito, que se falar
em instabilidade jurídica provocada pelas suas sentenças, pois, segundo Amilton
Bueno de Carvalho, "o que gera instabilidade são as leis injustas, pois o povo
1
perde a confiança nas instituições" 2
O próprio Amilton Carvalho define com maior precisão os ingredientes
que compõem o uso alternativo do direito. É possível dizer que essa prática se
utiliza do sistema jurídico positivado e já instituído, através das seguintes
possibilidades: "utilização das contradições, ambigüidades e lacunas do direito
legislado, sob uma ótica democratizante" com vistas a buscar, "via interpretação
qualificada e diferenciada", espaços que possibilitem o "avanço das lutas
populares e permitam uma democratização das normas". 22
Percebe-se, assim, que há uma busca de mudanças dentro do quadro
legal-institucional existente, o que é confinnado por Carvalho quando utiliza a
expressão "positivismo de combate". Na visão do autor, esta expressão significa
,23
a valorização de leis que representem "conquistas populares, Ainda segundo
o autor, as leis deveriam estar de acordo com os "princípios norteadores
universais" do homem, que são o direito à vida e à liberdade. Se a lei afronta

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esses princípios o agente jurídico, em especial o juiz, estaria autorizado a negar


vigência a essa lei24
As posições concernentes ao uso alternativo do direito recusam uma
visão de neutralidade do direito e da Justiça e um compromisso de alinhamento
aos setores sociais mais desfavorecidos. É possível dizer que todos concordariam
com a frase de outro juiz gaúcho, segundo o qual "o juiz que aplica urna lei
injusta se demite da dignidade hurnana"25
Outros profissionais do direito também apóiam o movimento "uso
alternativo do direito". É o caso de Tarso Genro, advogado, defensor da
participação do juiz no processo de criação do direito. Segundo Genro, o uso
alternativo não seria um ato arbitrário do juiz, mas um "ato de construção de
valores que já estão postos pela história no sentido da afirmação da liberdade
humana, do direito à vida, da luta pela repartição do produto social, pela redução
da desigualdade e pela defesa do produto do homem, preservando-lhe o
ambiente e a natureza.' ,26 Insiste o autor em que, quanto mais apegado ao texto
da lei, mais !Iservil" é o juiz diante dos "poderosos" e tnais "enérgico" perante
os socialmente fracos.27
Em suma, o uso alternativo do direito nega validade à lei "injusta",
procurando utilizar em alguns casos as contracUções, a vagueza e a ambigüidade
existentes no ordenamento jurídico. Nesse processo, o magistrado deve optar
sempre pela interpretação comprometida com classes e grupos "excluídos" e
"carentes". Conforme lembra Horácio Rodrigues, o instrumento principal nesse
processo é a herlllenêutica, possibilitada no caso brasileiro pela própria
legislação do país, confollne atesta o artigo 5 da Lei de Introdução ao Código
Civil: "Na interpretação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina
e às exigências do bem comum,,28

Jurisprudência "alternativa"

O "uso alternativo do direito" estã presente não apenas na esfera cível,


mas também em outros ramos do direito, como por exemplo, no criminal. No
âmbito do direito penal o uso alternativo do direito tem enfatizado que "o
,,
desaguadouro do drama social é o crime 29 e que a legislação penal brasileira
é "benévola com os fortes" e "severa para com os pobres". Exatamente por isso,
busca mudar o direito penal, invertendo suas prioridades. Assim, por u m lado,
objetiva-se novas incriminações com grande ênfase nos crimes contra o
patrimônio público e o aumento da pena para o crime de corrupção. Por outro
lado, há a busca da descriminalização de delitos como a vadiagem e a diminuição
da pena para crimes como o furto. Além disso, concede-se especial atenção à

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questão das penitenciárias, com vistas a assegurar ao presidiário um sistema de


garantia aos seus direitos fundamentais.3O
Ainda no âmbito criminal, há que se ressaltar a grande inserção do "uso
alternativo do direito" nos chamados delitos contra os costumes. Nesse tema a
visão "alternativa" considera que há um descompasso da moral sexu al contem­
porânea com O direito vigente no país. Exatamente por isso, há uma clara
tendência à absolvição de réus incursos em delitos que envolvam sedução, casa
de prostituição e favorecimento da prostituição. Considera Amilton Carvalho
que, assim agindo, os juízes alternativos ensejam a possibilidade de discutir
31
"critérios de suplantação de normas perdidas no tempo".
No âmbito trabalhista, são abundantes as sentenças que protegem o
direito de greve de categorias como a dos professores, enquanto na esfera cível
são comuns decisões determinando a devolução de parcelas corrigidas a
consumidores desistentes de consõrcios. Outras imponantes decisões referem­
se a limitações dos direitos do locador nos contratos de aluguel de imóveis.
Juízes de outros estados têm-se manifestado favoravelmente à limitação
das taxas de juros, considerando que a determinação constitucional que limita
os juros em 12% é auto-aplicável, prescindindo, pois, de regulamentação.
Ressalte-se, ainda, que algumas decisões "gaúchas" constam na juris­
prudência acolhendo invasões de terras. O próprio Amilton Bueno de Carvalho
enfatiza que a ocupação de latifúndios por parte de invasores "sem-terras" tem
encontrado "resistência" no Judiciário. Porém, na visão desse magistrado,
recentes acórdãos vêm apontando para um "novo olhar do direito", "com­
promeudo com aqueles que não têm onde morar".32
Há quem faça um uso diferente do rótulo "alternativo", relacionando-o
não a práucas institucionais nas quais os atores principais são os profissionais
jurídicos, mas a grupos sociais capazes de produzir um novo direito, "não-bur­
guês". É o que veremos a seguir.

o direito achado na rua

Uma segunda visão "alternativa" do direito pode ser encontrada na


convicção de que é preciso "educar", política e legalmente, as classes populares
visando à sua conscienuzação e à organização de um movimento que busque
paulatinamente a substituição do direito "oficial" vigente por um direito
"autêntico", vindo da sociedade.
A lógica que preside o movimento "alternativo" é a de que, sendo o
Estado inexoravelmente um representante das "classes dominantes", é preciso
fundar uma nova "democracia" fora desse Estado, constituída por novos agentes,
num esforço de criação de um novo direito, denominado "insurgente" e das

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"classes oprimidas".33 Seria preciso, pois, estabelecer um novo direito que se


contrapusesse ao direito oficial a fim de superar o modelo atual de sociedade.
Na nova ordem jurídica a ser gestada privilegia-se, sobretudo, os direitos
humanos e as carências dos setores "subalternos".
Um exemplo de proposta de uma nova ordem jurídica é o projeto "O
Direito Achado na Rua", desenvolvido pela Universidade de Brasília (UnB), cuja
meta é a de proporcionar educação jurídica à distância a grupos como
organizações sindicais, comunidades religiosas e associações de bairros.
Observa josé Eduardo Faria que essa iniciativa preocupa-se menos com o direito
dos c6cligos, lecionado nas universidades, e mais com as diversas relações
3 'i
jurídicas praticadas no dia-a-dia das sociedades. Assim, a postura dos cursos
é eminentemente crítica em relação ao direito vigente, com críticas à idéia de
neutralidade e despolitização do direito. Privilegia-se o tratamento político da
questão jurídica, com propostas de construção de uma nova ordem que substitua
as instituições jurídicas atuais. A idéia é fazer da Universidade um pólo
transmissor de informações em prol de uma ordem "normativa, legítima,
desformalizada e descentralizada" .36
Em um texto denominado "Contribuição para um projeto de juridici­
7
dade Alternativa",3 Antônio Carlos Wolkmer faz um diagnóstico do atual quadro
jurídico-estatal e traça um projeto de mudança da ordem institucional. Segundo
o autor, o direito "burguês-capitalista" baseia-se em proposições legais e
abstratas empreendidas por um órgão centralizado (Estado) e aplicadas por
órgãos e funcionários estatais (juízes). Por ser um direito estatal, desconsidera .
em suas fontes as diversas manifestações de relacionamentos jurídicos não-ofi­
dais, desenvolvidos por grupos sociais como sindicatos, comunidades, segmen­
8
tos sociais etc.3
Por conta desse quadro, no qual o direito atual é "insuficiente" para
desempenhar suas funções, requer-se, segundo Wolkrner, um novo ordena­
mento jurídico que contemple as modernas sociedades de massa que expres­
sam, na verdade, crises de produção e administração da justiça. Tal quadro
revela, ainda, na visão do autor, um inequívoco espaço para o surgimento de
novos paradigmas, marcados tanto pelo compromisso com a desmistificação do
direito oficial, quanto pela im lementação de novas propostas baseadas num
19
"pluralismo legal-alternativo".
O "novo direito" procura lutar, entre outros pontos, pelo "questiona­
mento dos valores", pela "fundamentação de uma ética política de práxis-comu­
nitária", pela "redescoberta de um novo sujeito histórico e pelo reconhecimento
,,40
dos movimentos e práticas sociais como fontes do pluralismo jurídico Esta
idéia de pluralidade, constante em quase todos os textos jurídicos "alternativos",
tem como matriz um estudo desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos nos

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anos 70 no Brasil.41 Na ocasião, estudando uma comunidade brasileira, o autor


observou formas de "legalidade alternativa" às quais denominou "direito de
Pasárgada". Segundo Santos, esse direito representaria uma forma alternativa de
poder, já que compreenderia f 011nas internas de resolução de conflitos que
vigoravam paralelamente ao direito oficial.42
Claramente apoiado em Boaventura de Sousa Santos, prossegue Wolk­
mer, pregando que, além da necessidade de urna "racionalidade emancipatória"
e de uma "ética política libertadora", haveria a necessidade de se "resgatar" um
"novo sujeito histórico" que se articulasse em torno do "sofrimento" e das
exigências cada vez mais claras de "dignidade, participação e satisfação, mais
justa e igualitária, das necessidades fundamentais das maiorias,,43 O "novo ator
histórico" não seria a "oligarquia" ou os "setores médios da burguesia", mas a
"coletividade política", formada tanto pelas "massas não-organizadas" quanto
4"4
por organizações populares, étnicas, estudantis, sexistas e profissionais .
Outros autores "alternativos", como wilson Ramos Filho, enfatizam as
diferenças existentes entre o direito alternativo e o uso alternativo do direito.
Segundo esse autor, o direito alternativo parte da idéia de que "nem todo direito
emana do Estado, sobretudo na América Latina, onde predomina a instabilidade
institucional e hã uma impermeabilidade do sistema jurídico".45 Por isso mesmo,
os diversos grupos sociais acabam produzindo e praticando um direito "com
maior legitimidade" do que o direito oficial, sem se importar se esses direitos
são reconhecidos pelo Estado, como demonstra a prática das associações de
moradores e do movimento sindical. 46 Segundo o autor, há "formuladores"
buscando dotar esse "direito alternativo" de fundamentação teórica para justificar
sua prática com ênfase, não no Judiciário, mas na comuni(lade, com a produção
de u m saber que "oriente a prática libertadora de tais grupos no sentido de sua
4
emancipação" 7
Na mesma linha, entre os autores do curso "O Direito Achado na Rua",
da UnB, predomina a idéia de que os ordenamentos jurídicos têm "obstaculizado
as aspirações legítimas da sociedade". Exatamente por isso , O jurista deveria
apoiar o direito supralegal como base do direito positivo, "única forma de
recuperar a Justiça ,,48 Há entre esses autores uma crítica ao direito "burguês",
que, a seu ver, pertnite a ocultação de relações de poder e dominação. O "direito
achado na rua" sustenta que os grupos "espoliados" e "oprimidos" são capazes
de gerar um direito paralelo ao direito estatal. Caberia aos intelectuais jurídicos
considerar esse direito uma opção não inferior ao direito oficial e apoiar a idéia
de "negação do monopólio da produção e Circulação do direito pelo Estado
moderno" 49
Em um texto denominado Ministério Público e direito alternativo, dois
promotores do estado de São Paulo fazem um diagnóstico do direito e da Justiça

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segundo a visão "dialética". Considerando que o Ministério Público atualmente


funciona, de fato, como um representante da sociedade civil, propõem os
autores que a instituição se integre ao processo de "aprofundamento da
democracia". 50 Segundo os autores, a atuação do Ministério Público na defesa
da ordem juriclica deveria buscar a "efetivação do clireito como um instrumento
que pellnita a participação das classes dominadas no processo político". >1 Nesse
processo, o Ministério Público atuaria como um "veículo" dos valores jurídicos
gestados na própria sociedade civil. Essa proposta é claramente mais ousada
que a dos juízes alternativos, uma vez que propõe que o clireito "achado na
rua" seja utilizado pelas instituições jurídicas atuais.

Uma critica ao direito alternatiJlo

Não é fácil encontrar textos que critiquem analiticamente as proposições


do direito alternativo. Ao contrário das declarações contrárias ao movimento,
que são numerosas e facilmente localizáveis em alguns jornais, as críticas
"acadêmicas" aos textos alternativos são poucas e de circulação restrita. O texto
de Luciano Oliveira é um dos poucos trabalhos que se propõem contestar
algumas das teses que expusemos nas páginas anteriores.
Luciano Oliveira insere as correntes que apresentamos elTI um
movimento mais amplo, denominado "perspectiva critica". Tal movimento,
segundo o autor, envolve tanto os magistrados gaúchos ligados à Associação
de Juízes do Rio Grande do Sul (AJURlS), quanto o Núcleo de Estudos para a
Paz e Direitos Humanos da UnB. Reconhece o autor que a "perspectiva crítica"
não forma um bloco monolítico e ressalta que a corrente do uso alternativo do
direito é "menos radical" do que a do direito alternativo, exatamente por suas
propostas de mudança juríclica "pelo alto". Já o clireito alternativo pregaria não
SÓ a utilização dos direitos já existentes, mas a necessidade de "inscrever novos
direitos a partir da perspectiva dos próprios dominados". 52
A principal crítica que Luciano Oliveira reserva ao direito alternativo
está na recusa geral dessa corrente ao formalismo e ao positivismo dos juristas.
Em tal recusa, procuram os alternativos rechaçar o direito estatal e seu
"racionalismo positivista". Considera Oliveira que, talvez por força da "vocação"
militante dos juristas "alternativos", não há nesse segmento um esforço de
reconhecimento das diferenciações existentes no interior do direito oficial. As
diferenciações deveriam se dirigir para a clássica clivisão existente entre os
direitos civis e polítiCOS e os direitos s6cio-econômicos. Nesse sentido, ao se
condenar os direitos já existentes ou alegar sua inexistência no Brasil, os
"alternativos" ignoram que os direitos civis e políticos já estão protegidos pelo
direito positivo, devendo, portanto, a tarefa ser a de buscar sua implementação

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efetiva. Em contrapartida, quanto aos direitos econômicos, trata-se realmente


de criar novos direitos. Na visão de Oliveira, o enOfllle peso da questão social
no Brasil faz com que os juristas críticos se esqueçam ou negligenciem os direitos
civis e políticos já existentes 53
Há, portanto, que se criar clireitos s6cio-econômicos, mas também
valoriza r o legalismo no que se refere à dimensão dos direitos civis e políticos
já consagrados pelo ordenamento jurídico. Direitos como o de não discrimi­
nação, da proibição da prisão arbitrária, da tortura, entre outros, requerem o
mais estrito legalismo.
A nào diferenciação entre direitos civis e sócio-econômicos pode levar,
segundo o autor, a graves equívocos. O propalado "clireito das favelas" preconi­
zado pelo "direito achado na rua" pode acabar se voltando contra as próprias
classes populares se estas não valorizarem os clireitos e garantias individuais já
inscritos institucionalmente. Relembre-se, a propósito, que são justamente as
classes populares as maiores atingidas pela arbitrariedade do Estado.
Se é compreensível que as favelas e grupos sociais desfavorecidos
procurem organizar sua vida sócio-econômicd segundo seus próprios referenciais,
parece temerário, segundo Oliveira, deixar que esses grupos instituam práticas
cotidianas relacionadas aos direitos e garantias individuais.54 Para ilustrar esse
ponto, Luciano Oliveira afirma que o direito da favela pode, em muitas de suas
manifestaçôes, não só descaracterizar uma prática "libertadora", como também
ir contra a própria noção de direitos humanos. Relembra ainda que quando se
delega a comunidades a tarefa de elaborar e aplicar certas leis, o resultado pode
ser ainda mais violento: "julgamentos populares realizados no interior de
comunidades brutalizadas pela miséria costumam aplicar a lei de Charles Lynch:
o veredicto é, muitas vezes, linchamento".» Nesse caso, ajustiça "popular" pode
reproduzir os problemas mais graves da justiça oficial, adverte o autor.
Em suma, a crítica desse autor procura chamar a atenção para algumas
"perigosas" manifestaçôes do direito alternativo ao condenar o ordenamento
jurídico vigente no país sem reconhecer que em alguns pontos houve signifi­
cativos avanços. O foco, portanto, deve-se voltar para a criaçào de mais direitos
sociais para os desfavorecidos, sobretudo na questão agrária, ao passo que
quanto aos direitos civis, a luta é pela implementação dos direitos já consagrados,
inclusive pela Constituição de 1988.

Conclusão

O Poder judiciário tem estado sob intenso foco na sociedade brasileira


dos anos 90. Critica-se a morosidade, o corporativismo e o distanciamento em
relação à sociedade como traços que impedem ou dificultam a integração desse

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poder à democracia. Abordamos aqui neste trabalho duas propostas que visam
à sua democratização. A primeira, a do "uso alternativo" do direito, sugere uma
mudança "a partir de dentro e pelo alto" do quadro jurídico no Brasil, com a
utilização do instrumental e das instituições já existentes de fOlIna a servir aos
segmentos mais desfavorecidos da sociedade. Interpretar a lei visando a proteger
o mais fraco socialmente parece ser o guia de ação desses magistrados,
sobretudo gaúchos, que se aproveitam das lacunas e contradições do direito,
mas não se furtam a, se for preciso, julgar contra os textos legais para "fazer
justiça".
A segunda proposta sugere uma mudança jurídica mais profunda, já
que valoriza, não os textos e instituições legais vigentes, mas os relacionamentos
jurídicos não oficiais praticados diariamente pelas comunidades, associações
profissionais, de moradores etc. Como representantes dessa proposta estão
juristas adeptos do "direito achado na rua" ou "direito insurgente". Todos, de
certa forma, abrigam-se sob o rótulo "direito alternativo". Todos também criticam
fortemente os textos legais em vigor no Brasil e propõem sua substituição por
um "novo direito", ignorando esforços feitos no Brasil dos últimos anos para
dotar O país de leis garantidoras da liberdade e da integridade individual.
Pelo que aqui foi dito, tudo indica que os "alternativos" têm um desafio
quase intransponível a vencer, já que as faculdades de direito, em geral, e os
tribunais, acabam por reforçar o direito positivista dos códigos.
Porém, se o estrito positivismo pode não ser "saudável", convém
recordar Luciano Oliveira, que adverte para a importância de certos formalismos
legais e sugere cautela ao se condenar O arcabouço jurídico do país.

No t a s

1. Eliane Botelho junqueira, "O


4. Elício de Cresci Sobrinho,jusliça
alternativa, Porto Alegre, Sérgio Fabris,
alternativo regado a vinho e a cachaça",
1991, p.ll!.
in Edmundo Lima de Arruda jr. (org),
lições de Direito Alternatioo, São Paulo, 5. Idem, ib., p.ll3.
Ed. Acadêmica, 1992, vaI. 2, p.97.
6. Idem, ib., p.ll4.
2. Eliane Bo(elho junqueira, A soci%gU:i
do direito no Brasil, Rio de Janeiro, 7. Boaventura de Sousa Samos,
Lumen juris, 1993, p.ll5. "Introdução à sociologia da
administração da justiça", in josé
3. Luciano Oliveira, Ilegalidade e di/'eilo Eduardo Faria (org), Direito ejusliça.. a
aller1Ultivo: notas para evitar alguns função social do judiciário, Rio de
equívocos, Recife, mimeo, 1993, p.2. janeiro, Ática, 1989, p.52.

414
Visões Alternativas do Direito no Brasil

8. Segundo matéria publicada pelo 30. Idem, ib., p.26.


jornal da Tarde em 24/10/1990.
31. Idem, ib.
9. Idem, p.6.
32. Idem, ib., p.10l.
10. Idem, p.6.
33. Eliane Botelho Junqueira, A
11. Idem, p 6 . .
sociologia do direito no Brasil, op. cit.,
p.114.
12. Idem, p.6.
13. jomal da Tarde, 25/10/1990, p.8. 34. José Eduardo Faria e Celso
Fernandes Campilongo, A sociologia
14. Edmundo Lima de Arruda Jr., juridica no Brasil, Porto Alegre,
Introdução à sociologia jurídica Sérgio Fabris, 1991, p. 38.
altenlativa, São Paulo, Acadêmica,
1993, p.179. 35. Idem, ib.

15. Amillon Bueno de Carvalho, Direito 36. Idem, ib.


altenUllioo na jurisprndência, São 37. Antônio Carlos Wolkmer,
Paulo, Acadêmica, 1993, p.8. "Contribuição para o projeto de
16. Idem, ib., p.9. juridicidade alternativa" in Edmundo
Lima de Arruda Jr. (org.), Lições de
17. Idem, ib., p.l0. direito alternativo, op. cit., p. 28-52.
18. Idem, ib., p.1I. 38. Idem, ib., p.36.
19. Amilton Bueno de Carvalho, 39. Idem, ib., p.5I.
kfagístratura e direito a/ternatioo, São
Paulo, Acadêmica, 1992, p.19. 40. Idem, ib., p.31.

20. Idem, ib., p.19. 41. O estudo, denominado "l.aw against


law", de 1974, é citado por Boaventura
21. Idem, ib. Santos em "Justiça popular, dualidade
22. Amilton Bueno de Carvalho, Direito de poderes e estratégia socialista", in
alternativo na jurisprudência, op. dt., José Eduardo Faria (org.), Direito e
p.II. justiça, a função social dojudiciário,
op. dt.
23. Idem, ib.
42. Idem, ib., p.20l.
24. Idem, ib., p.12.
43. Antônio Carlos Wolkmer , op. cit.,
25. Ar'! Parglender, "Direito alternativo",
p A4.
Revista do SAjU -UFRGS, n'l, 1992, p.30.
44. Idem, ib., pA5.
26. Tarso Fernando Genro, "Os juízes
contra a lei'\ in Edmundo Lima de 45. Wilson Ramos Filho, "Direito
Arruda ]r. (org.), Lições de direito alternativo e cidadania operária" in José
altel7ativo, 1991, vol. 1, p.26. Eduardo Faria (org.), Direito ejustiça, a
função social do Judiciário, op. cit.,
27. Idem, ib., p.27.
p.156.
28. Horácio Wanderley Rodrigues,
46. Idem, ib.
"Direilo com que direito?" in Edmundo
Lima de Arruda Jr. (arg.), Lições de 47. Idem, ib., p.157.
direito alter/ativo, op. cit., p.182.
48. Maria Eliane Farias, "As ideologias e

29. Amilton Bueno de Carvalho, Direito o direito", in José Geraldo de Souza Jr.
alten1atiuo na jurisprudência, op. cit., (org.), Introdução critica ao direito,
p.25. Brasília, Ed. UnB, 1993, p.l6.

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estudos históricos • 1996 - 18

49. Rossana Bissol, UDialética social do 52. Luciano Oliveira, op. cit., p.2.
direito", in José Geraldo de Souza Jr.
53. Idem, ib., pA.
(org.), op. cit., p.36.
54. Idem, ib.
50. Antônio Alberto Machado e Marcelo
Pedroso Goulart, Ministério Público e 55. Idem, ib., p.7.
direito alternativo, São Paulo,
Acadêmica, 1992, pAI.
(Recebido para publicação em
51. Idem, ib., pA2 . janeiro de 1997)

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