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A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs 11

A influência da apocalíptica judaica


sobre as origens cristãs: gênero,
cosmovisão e movimento social

Martinus de Boer*

Resumo
Este ensaio analisa e desenvolve a tripla definição de Apocalíptica feita por Paul
Hanson: a) como elementos formais da assim chamada literatura apocalíptica; b)
como perspectiva escatológica e cosmológica e c) como movimento social que reage
a crise e alienação por meio de símbolos e escatologia apocalíptica. Estes três elemen-
tos passam a serem designados pelos termos Apocalipse, Escatologia Apocalíptica e
Apocalipsismo, respectivamente.
Palavras-chave: Apocalíptica, Gênero literário, Cosmovisão, apocalíptica, Contexto
social do cristianismo primitivo.

Abstract
This essay analyzes and develops the triple definition of Apocalyptic made by Paul
Hanson: a) as the forma elements of so-called apocalyptic literature; b) as an
eschatological and cosmological perspective; and c) as a social movement which
reacts to crisis and alienation by means of symbols and apocalyptic eschatology.
These three elements come to be referred to by the terms Apocalypse, Apocalyptic
Eschatology and Apocalyptic, respectively.
Keywords: Apocalypticism, Literary Forms, Cosmovision, Social Context of Early
Christianity.

* Professor da Universidade Livre de Amsterdan.


Tradução: Paulo Augusto de Souza Nogueira.
12 Apocalíptica e as Origens Cristãs

I. Introdução
Paul D. Hanson 1 fez a seguinte distinção tripla ao referir-se à
apocalíptica judaica antiga:

Apocalipse. Este termo refere-se ao ‘gênero literário’. O livro cristão do Apocalipse de João
é freqüentemente considerado como paradigma para o gênero. Ele começa com as palavras:
‘Apocalipse de Jesus Cristo’. A estrutura e as características típicas de um apocalipse são
dadas nos versos introdutórios deste livro (1,1-2):
‘(1) uma revelação é dada por Deus, (2) por meio de um mediador (aqui Jesus Cristo, mas
poderia ser um anjo), (3) a um visionário, a respeito de (4) eventos futuros’.
Outros apocalipses podem ser encontrados em Daniel 7-12; 1 Enoque 14-15; 4Esdras 9,26-
10,59, cap.11-12, 13; e Baruque 53-74. ‘A maioria destes apocalipses parece originar-se de
contextos de perseguição, dentro do qual eles pretendem revelar ao fiel uma visão de
mudança e de glorificação (v. Daniel 12,1)’.

Uma definição mais ampla e melhor documentada foi apresentada por J.J.
Collins 2 : Um apocalipse é

um gênero de literatura de revelação com uma estrutura narrativa, na qual uma revelação
é mediada por um instrumento humano, que revela uma realidade transcendente, a qual é,
ao mesmo tempo, temporal, enquanto visa salvação escatológica, e espacial, ao envolver um
outro mundo, um mundo sobrenatural.

Collins complementou esta definição com a observação de Adela Yarbro


Collins de que estes tipos de escritos são tipicamente “voltados para interpretar
circunstâncias terrenas presentes à luz do mundo sobrenatural e do futuro, e
por influenciar, ao mesmo tempo, a compreensão e comportamento da au-
diência por meio da autoridade divina”. 3

Escatologia Apocalíptica. Escatologia apocalíptica é uma “perspectiva


religiosa, uma forma de ver os planos divinos em relação com realidades

1. “Apocalypse, Genre” and “Apocalypticism” in: Interpreter’s Dictionary of the Bible


(Supplementary Volume). Philadelphia, p. 27-34.
2. J. J. Collins (ed.), Apocalypse: The Morphology of a Genre. Semeia 14, 1979, p. 9.
3. Introduction: Early Christian Apocalypticism, in: Early Christian Apocalypticism: Genre
and Social Setting, Adela Y. Collins (ed.). Semeia 36 (1986), p. 7. Ver também J. J. Collins
(ed.), The Encyclopedia of Apocalypticism. New York, 1998, p. xiii.
A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs 13

mundanas (terrenas)”. Esta perspectiva, ou cosmovisão, pode ser abraçada


por diferentes grupos sociais, em diferentes níveis, em tempos diferentes.
Nesta perspectiva, a ação salvífica de Deus é concebida como uma reali-
zação para fora da ordem presente, em direção a uma nova e transformada
ordem da realidade (cf. Is. 65,17: “Eis que eu crio novos céus e nova terra;
e não haverá lembrança das cousas passadas, já não haverá memória de-
las.”). A nova ordem ou realidade não é uma reabilitação da ordem presen-
te (como na escatologia dos profetas do Antigo Testamento), mas o seu
fim e destruição. A realidade é, portanto, dividida em dois eons, esta era
(má) e a era vindoura (de justiça, retidão e paz, cf. 4 Esdras 7,50: “o
Altíssimo não fez uma era, mas duas”). As duas eras não são apenas épo-
cas temporais, mas duas ordens ou realidades cósmicas distintas. A
escatologia apocalíptica não está preocupada apenas com a expectativa do
futuro (a era vindoura), mas também com a interpretação do passado e da
situação presente (a era presente é a ordem ou realidade do mal). A
escatologia apocalíptica não é limitada aos apocalipses, mas acha também
expressão em outros gêneros de literatura.

Apocalipsismo. Este termo designa “o universo simbólico dentro do


qual um movimento apocalíptico codifica sua identidade e interpretação da
realidade. Tal universo simbólico cristaliza-se em torno da perspectiva de
escatologia apocalíptica [ver acima] que o movimento adota”. Além disso,
“o universo típico apocalíptico é desenvolvido como um protesto da comu-
nidade apocalíptica contra a sociedade dominante”. O contexto social do
apocalipsismo é então “a experiência grupal de alienação” frente às estru-
turas dominantes da sociedade (políticas, econômicas, culturais) e de um
decorrente senso de “impotência”. A resposta a esta situação é, então, a
criação de “um novo universo simbólico” que deve substituir a velha or-
dem, a qual é a responsável pela alienação. Em um movimento
apocalíptico o grupo refugia-se na escatologia apocalíptica para construir
este universo simbólico alternativo. “A escatologia apocalíptica permite a
uma comunidade manter um senso de identidade e uma visão de sua
vindicação última em face das estruturas sociais e dos eventos históricos
que negam, ao mesmo tempo, a identidade e a plausibilidade da visão”.
Acredita-se que o universo simbólico é mais “real” que o vivenciado no
dia a dia. Assim, de acordo com Hanson, os apocalipsistas judeus antigos
criaram um novo “universo simbólico” em resposta à sua experiência de
14 Apocalíptica e as Origens Cristãs

“alienação”, “opressão” ou “isolamento da comunicação” que sofrem nas


mãos das autoridades políticas e religiosas dominantes.4
Segundo Hanson, os movimentos apocalípticos podem ser de dois tipos:
(1) um grupo marginalizado ou oprimido dentro de uma sociedade, ou (2) uma
sociedade ou nação inteira sob o jugo de um poder estrangeiro. A matriz do
apocalipsismo é a alienação (exclusão e opressão), e a resposta a esta situação
é a adoção da perspectiva da escatologia apocalíptica. Tipicamente falando,
a experiência grupal de alienação e a função política que resulta do universo
simbólico conduzem a uma clara distinção entre os eleitos e os maus” (cf. 1º
Enoque 5,6-7)”.
Podemos usar a tríplice distinção de Hanson entre gênero, cosmovisão e
movimento social para compreender melhor a influência da apocalíptica judaica
sobre as origens cristãs e, conseqüentemente, sobre os documentos do Novo
Testamento, os quais representam a documentação primária para as origens
cristãs. A palavra “apocalíptica” será usada neste ensaio para referir-se aos três.
No entanto, neste ensaio eu me concentrarei na primeira e na terceira
categorias de Hanson, apocalíptica como gênero literário e como movimento
social, prestando particular atenção na relevância destas duas categorias para
o Novo Testamento, e assim para as origens cristãs. Guardarei a segunda
categoria, apocalíptica como cosmovisão, para o segundo ensaio. Deve-se
esclarecer que a apocalíptica, como forma de escatologia, teve influência
considerável sobre as origens cristãs e sobre o Novo Testamento. Isto merece
um tratamento especial. Quanto às outras duas categorias – gênero literário e
movimento social – não está claro se são relevantes para o Novo Testamento
e para as origens cristãs, como se supôs em outros tempos.

II. Apocalipse: o gênero literário no Novo Testamento


Um exemplo clássico de um apocalipse é o livro neotestamentário do
Apocalipse de João, o qual deu nome ao gênero. Por razões compreensíveis,
a apocalíptica foi associada com livros de gênero semelhante ao Apocalipse
de João, compartilhando, até certo grau, das características gerais deste. Os
apocalipses judaicos de Daniel, 1 Enoque, 4 Esdras e 2 Baruque são os exem-

4. Hanson, Paul D. The Dawn of Apocalyptic. The Historical and Sociological Roots of Jewish
Apocalyptic Eschatology. Philadelphia, 1979 (2nd ed.), p. 432,440; cf. também “Apocalypse,
Genre” and “Apocalypsism” ..., p. 30.
A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs 15

plos mais citados (embora, diferenciando-se destes, o Apocalipse de João não


seja pseudônimo). A questão, então, que se levanta é se o termo “apocalíptico”
deveria ser usado exclusivamente em relação às obras deste gênero e com os
temas atestados neles. Por exemplo, para John J. Collins, escatologia
apocalíptica é, em primeira instância, a escatologia encontrada em um
apocalipse,5 e sempre que uma escatologia similar for encontrada em qualquer
outro lugar, ela pode ser chamada “escatologia apocalíptica” apenas “em um
sentido amplo”.
(b) Pode-se duvidar que algum livro antigo judaico como um todo possa
ser chamado de apocalipse. O livro de Daniel, do Antigo Testamento, é
freqüentemente citado neste caso. Mas de fato, apenas os capítulos 7-12 contêm
revelações que cabem nas definições de Hanson e de Collins. Da mesma forma,
apenas partes de 1 Enoque, 4 Esdras e 2 Baruque cabem dentro da definição.

John J. Collins também observou 6 que um apocalipse é apenas “uma


estrutura geral”, que incorpora outros gêneros literários (carta, testamento,
parábola, hino, oração etc.). Segundo ele, um apocalipse “não é constituído
por um ou mais temas distintivos, mas por uma combinação de elementos, os
quais são encontrados em outros lugares”. Hanson, 7 por sua vez, observa que
um apocalipse “não é necessariamente o gênero exclusivo, dominante na
maioria dos escritos apocalípticos, mas é encontrado junto a muitos outros,
incluindo o testamento, os oráculos de julgamento e de salvação, e a parábo-
la”. Estas considerações tornam qualquer tentativa de dar uma clara definição
do gênero, em que um apocalipse (como obra autônoma) possa ser suficien-
temente distinto de outros gêneros literários (outros livros), quase impossível.
(c) Além do mais, há dúvidas se há obras judaicas que podem ser con-
sideradas ‘apocalipses’ antes do segundo século d.C.. Collins escreve que “o
uso do título grego apokalypsis (revelação) não é comprovado no período an-
terior ao cristianismo. A primeira obra apresentada como um apokalypsis é
o Apocalipse de João, e mesmo lá não é claro se a palavra denota um tipo es-
pecial de literatura ou se é usado mais geralmente no sentido de revelação”.

5. The Apocalyptic imagination. An introduction to the Jewish Matrix of Christianity. New


York, 1984, p. 9.
6. The Apocalyptic Imagination ..., p.8-9.
7. “Apocalypse, Genre” and “Apocalypticism” in: Interpreter’s Dictionary of the Bible
(Supplementary Volume). Philadelphia, p. 27-34.
16 Apocalíptica e as Origens Cristãs

As obras chamadas de apocalípticas antes do final do primeiro século ou do


começo do segundo, conforme Collins, “ainda não tinham adotado uma auto-
consciência geral”, como é evidente em obras tardias e, portanto, “têm afini-
dades com mais de um gênero”. 8 Ele chega então a afirmar que não podemos
de fato falar de apocalipse como um gênero específico até o começo do segun-
do século d.C.
(d) A definição de Collins, apresentada acima, parece ser uma definição
do que pode ser chamado uma ‘visão’, ou melhor, um relato escrito, na forma
de narrativa, de uma visão (do futuro, de realidades celestiais, de Deus, de
realidades presentes ou passadas).Tal entidade literária não é um Gattung li-
terário por si mesmo (Gattung = um livro autônomo), mas um elemento menor
(uma forma, como na história das formas) de um todo literário mais amplo,
semelhante a uma parábola, um hino ou uma narrativa de milagre. Assim,
“apocalipses” seriam o que se pode chamar de um “sub-gênero” de literatura,
pequenas “formas” literárias contidas em obras literárias maiores (como Daniel
ou 2 Baruque), as quais, enquanto complexos literários (obras), não são
apocalipses em si mesmos, no sentido estrito.9 Esta pressuposição também é
confirmada por J. VanderKam, o qual observa que “os únicos apocalipses de
que não se pode duvidar [note o plural] na Bíblia Hebraica são as diferentes
visões reveladas a Daniel em capítulos 7-12”.10
Livros como Daniel e 4 Esdras contêm não apenas apocalipses, mas
também outras formas literárias, como reconhecem Collins e Hanson.
(e) O Apocalipse de João, mencionado acima, é o único livro do Novo
Testamento considerado um apocalipse. Este é, de fato, o paradigma do gêne-
ro. Mas, no entanto, como já dissemos acima, a abertura do livro (“Apocalipse
de Jesus Cristo”) poderia não descrever o gênero do livro, mas seus conteúdos,
ou simplesmente aquele que é mostrado pelo conteúdo, ou seja, Jesus Cristo.
Além do mais, à parte do prefácio de abertura (1,1-3), que pode ter sido até
um acréscimo posterior, o restante do livro tem a estrutura formal de uma
carta antiga, como mostra uma comparação com as cartas paulinas:

8. The Apocalyptic Imagination, p. 3.


9. Ver meus comentários em The Defeat of Death. Apocalyptic Eschatology in 1 Corinthians
15 and Romans 5. Sheffield, 1988, p. 197, n.4.
10. Messianism and Apocalypticism, in: J. J. Collins, (ed.) The Encyclopedia of Apocalypticism,
p.196 (itálico meu). Ver também p. 200.
A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs 17

João às sete igrejas que estão na Ásia: graça e paz da parte daquele que é, que era, e que
virá ... (Ap 1 ,4)
Paulo, apóstolo .... às igrejas da Galácia: Graça a vós e paz da parte de Deus nosso pai e
do Senhor Jesus Cristo (Gl 1,1-3)
A graça do Senhor Jesus seja com todos os santos. Amém. (Ap 22,21)
A graça do Senhor Jesus seja contigo. Amém (1Tes 5,28)

Em concordância com esta estrutura formal está o fato de que o apo-


calipse de João não é pseudônimo (em contraste com a literatura apocalíptica
judaica, como Daniel, 4 Esdras e 2 Baruque). Esta carta, exageradamente
longa, tinha por intenção ser lida em voz alta nas igrejas da Ásia Menor.
Esta longa carta contém uma série contínua de “apocalipses”, ou seja,
uma descrição narrativa de visões do futuro, de realidades celestiais ou espi-
rituais, de Deus e do Cristo, que se estende de 1,9 a 22,5. Enquanto todas
estas visões são ligadas umas às outras e, evidentemente, tomam lugar no
mesmo dia (1,9-10), elas todas podem ser consideradas como um (longo)
“apocalipse”, mais que uma série de apocalipses distintos. Seja como for, o ta-
manho enorme desta série contínua de apocalipses, ou deste único e longo
apocalipse, contribuiu para a suposição de que o livro como um todo é um
apocalipse, suposição esta apoiada pela linha inicial da obra e por usos pos-
teriores do termo “apocalipse” (no começo do segundo século d.C.). Mas o
livro do Apocalipse de João realmente é distinto nesta questão: a quantidade
de material apocalíptico é de fato sem paralelo nas fontes judaicas (ou cristãs)
contemporâneas, assim como na riqueza do simbolismo do livro e de suas
imagens.11 Em todo caso foi composto na forma de uma carta (além do mais,
os três primeiros capítulos contém mensagens separadas em forma de epístolas
para cada uma das sete igrejas).
(f) Há apocalipses em outras partes do Novo Testamento (definidos como
uma forma ou um sub-gênero)? 1 Tes 4,13-18 o é provavelmente, uma vez
que contém: (1) uma revelação supostamente dada por Deus, (2) por meio de
um mediador (o Espírito, o Cristo ressuscitado?), (3) para um visionário (Pau-
lo) a respeito de (4) eventos futuros (a ressurreição dos cristãos mortos).
Marcos 13 é comumente mencionado como o Apocalipse Sinótico, mas em
sua forma atual ele foi caracterizado por Adela Yarbro Collins como um

11. ver Bauckham, Richard. The Theology of the Book of Revelation. Cambridge, 1994, p. 9-12.
18 Apocalíptica e as Origens Cristãs

“diálogo escolástico com conteúdo profético ou apocalíptico”.12 Exceto no caso


do Apocalipse de João, o debate sobre o gênero apocalipse é de pouca impor-
tância para a compreensão dos escritos do Novo Testamento e das formas que
eles contém.

III. Apocalipsismo: movimentos apocalípticos no cristianismo primitivo


(a) O Apocalipsismo é definido por Hanson, em termos sociológicos,
como um “movimento” de pessoas oprimidas, alienadas e excluídas, que
adotam a perspectiva da escatologia apocalíptica como uma estratégia de es-
perança e de sobrevivência. Além do mais, na perspectiva de Hanson, esta
estratégia mostra um pessimismo extremo acerca da habilidade dos oprimi-
dos e alienados promoverem mudanças. A escatologia apocalíptica represen-
ta “uma abdicação da preocupação para com este mundo em favor do mundo
que está por vir”. É uma forma de escapismo da “realidade” para a fantasia
“visionária”. 13 Desta forma, ele perpetua a velha avaliação da escatologia
apocalíptica (cf. G. von Rad e G.F. Moore) como um contraste em relação
à escatologia profética (a escatologia dos profetas do Antigo Testamento),
a qual era considerada “otimista” acerca da possibilidade de mudança social
e da efetividade do engajamento político. Se esta avaliação da apocalíptica
judaica no passado e das várias formas de apocalíptica cristã hoje em dia é
correta, é uma questão que não posso discutir agora. Mas a compreensão do
apocalipsismo de Hanson, em todo caso, dificilmente pode ser aplicada ao
estudo das origens cristãs.
(b) Consideremos o apóstolo Paulo. As cartas paulinas deixam claro que
sua perspectiva escatológica em relação a Deus e na relação de Deus com o
mundo não emerge de um pessimismo em relação à capacidade humana de
mudança moral, nem de uma experiência de alienação política ou mesmo de
qualquer outra forma de alienação, isto é, de seu povo ou de sua educação
religiosa judaica. De acordo com o testemunho de Paulo – e não vejo razão
para duvidar dele, neste caso, o contrário é verdadeiro: alienação social, po-
lítica ou religiosa (freqüentemente acompanhadas de perseguição) são conse-
qüências e não causas de seu encontro com Cristo.

12. Collins, A.Y. Mark 13: An Apocalyptic Discourse, in: In the beginning of the Gospel:
Probings of Mark in Context. Minneapolis, 1992, p. 73-91. Ver Marcos 13, 3-4.
13. The Dawn of Apocalyptic, p. 26, p. 440.
A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs 19

Se algum outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais: Circun-
cidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de
hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à
justiça que há na lei, irrepreensível. Mas o que para mim era lucro, isto con-
siderei perda por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus meu
Senhor: por amor do qual, perdi todas as coisas e as considero como refugo,
para ganhar a Cristo, e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede
da lei, senão a que é mediante a fé, a justiça que procede de Deus, baseada na
fé; para o conhecer e o poder da sua ressurreição e a comunhão dos seus
sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte; para de algum modo
alcançar a ressurreição dentre os mortos (Fl 3,4b-11).
Porque ouvistes qual foi meu proceder outrora no judaísmo, como sobre-
maneira perseguia eu a igreja de Deus e a devastava. E, na minha nação,
quanto ao judaísmo, avantajava-me a muitos da minha idade, sendo extrema-
mente zeloso das tradições de meus pais. Quando, porém, ao que me separou
antes de eu nascer e me chamou pela sua graça, aprouve revelar seu filho em
mim, para que eu o pregasse entre os gentios, sem detença não consultei carne
e sangue ...” (Gl 1,13-16).
Paulo não se tornou um missionário cristão apocalíptico por causa de sua
falta de satisfação com o farisaísmo, ou porque estava alienado de seu povo,
ou por sentir-se inadequado ou desprovido de poder. Pelo contrário, ele sentia-
se em casa em seu judaísmo, realizado em sua devoção pela lei. Nestas duas
passagens Paulo apresenta características de uma identidade judaica otimista.
Não há evidência em qualquer lugar de que a falta de satisfação de Paulo
com a lei de Moisés, ou com sua identidade judaica, tenham-no conduzido a
Cristo ou a uma compreensão apocalíptica de sua pessoa. Antes, a inesperada
e surpreendente “revelação (apokalypsis) de Jesus Cristo” (Gl 1,12), manifes-
tou e levou a cabo sua alienação em relação a seu passado farisaico.
O mesmo pode ser dito das comunidades que ele fundou. Para os
tessalonicenses, por exemplo, ele escreve: “ ... é que, tendo vós recebido a
palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de
homens, e, sim, como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito,
está operando eficazmente em vós, os que credes”. Em seguida ele refere-se
à perseguição que estes novos cristãos sofreram em Tessalônica, como
conseqüência da fé provocada por esta palavra divina (2,13-15; cf. 1,6). Estes
tessalonicenses não se tornaram cristãos por causa de sua experiência de ali-
enação e sofrimento. É mais provável que o contrário tenha sido o caso.
20 Apocalíptica e as Origens Cristãs

(c) O que dizer sobre o livro do Apocalipse? Elisabeth Schüssler


Fiorenza, especialista neste livro e teóloga feminista, escreveu: “é difícil
decidir se uma perseguição severa é uma realidade atual ou um perigo imi-
nente, ou se apenas parte da experiência do autor que tenta demover cristãos
prósperos sob [o imperador] Domiciano de uma postura complacente e que
tendem a esquecer a perseguição de Nero [o imperador, nos anos 60]” 14 .
Aqui temos uma questão central para a interpretação deste livro: ele emerge
de uma situação de crise (perseguição)? Ou busca provocar crise entre seus
leitores (cristãos)?
Na primeira possibilidade, a escatologia apocalíptica do livro do Apoca-
lipse é uma resposta para a crise de cristãos que vivem sob perseguição, sendo
portanto um livro de consolo para estes perseguidos, incluindo os mártires.
Estes cristãos seriam os pobres e marginalizados na sociedade greco-romana
da Ásia Menor.
De acordo com a segunda possibilidade, a escatologia apocalíptica de
João é uma arma por meio da qual o autor tenta sacudir seus leitores cristãos
de sua postura benevolente, despertá-los de seus compromissos e de sua as-
similação com a ordem presente e má. Os leitores seriam pessoas relativamen-
te abastadas que estariam integradas na cultura, política e economia do Impé-
rio Romano.
Adela Yarbro Collins é mais direta: “alguns intérpretes do Apocalipse o
vêem como um livro de consolo de cristãos que sofrem perseguição ordenada
por Domiciano. Outros argumentam que a perseguição incluía tentativas de
forçar cristãos a adorarem o imperador... ambas as conclusões são falsas”. O
propósito de João era, antes, “provocar uma crise” que ele podia perceber, mas
não seus leitores. 15
Em minha opinião a escatologia apocalíptica do livro é usada para des-
pertar cristãos de sua postura positiva e de compromisso com a ordem política,
econômica e cultural romana (ver especialmente os capítulos 2-3, 13). Mas
deixa ilusões sobre as prováveis conseqüências. O tempo de Nero mostrou
quão perigosas e hostis as autoridades romanas podiam ser para os cristãos.
O livro, portanto, não apenas procura despertar os leitores cristãos para sua
verdadeira identidade e responsabilidades, mas também os consola por ante-

14. The Book of Revelation. Justice and Judgement. Philadelphia, 1985, p. 20.
15. Crisis and Catharsis, p. 77.
A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs 21

cipação, ao fazer referência à perseguição que ele sabe que virá: Deus não
deixará mais suas testemunhas perecerem, pois ele deixou Cristo, a testemunha
por excelência da vontade Deus sobre o mundo (1, 5), perecer.

(d) Movimentos de Jesus. Havia grupos apocalípticos no cristianismo pri-


mitivo palestinense? Richard Horsley16 procurou demonstrar recentemente que
estes grupos existiam na Palestina. Ele se refere a eles como os “movimentos
de Jesus”. Sua presença pode ser constatada, afirma, nos evangelhos sinóticos.
Horsley faz uma distinção nítida entre aqueles que produziram literatura
apocalíptica e os movimentos de Jesus. “A literatura apocalíptica, diz, foi
produzida para literatos, para uma elite cultural (mas não elite sócio-econô-
mica). Jesus e seus discípulos, entre os quais originou-se a tradição sinótica,
eram camponeses iletrados que cultivavam suas próprias tradições israelitas
e comunidades aldeãs”. 17 Ele apela aqui a “uma distinção feita por antropólo-
gos” entre uma elite que produz a “grande” tradição, “normalmente de forma
oral, mas freqüentemente também em forma escrita”, e os “camponeses”, que
cultivam uma tradição “pequena” ou uma tradição popular, totalmente oral,
“de acordo com a qual é conduzida a vida na comunidade local”. É possível
que estes dois grupos interajam, mas, na verdade, têm “lugares sociais e in-
teresses distintos”, de forma que normalmente há conflito entre as duas tradi-
ções. Horsley ilustra isso com um apelo a Marcos 7,1-13, em que Jesus defen-
de os interesses dos camponeses galileus em reter sua produção econômica
para manutenção de suas famílias (sendo de certa forma coerente com o
mandamento de honrar pai e mãe), contra a “tradição sacerdotal dos escribas”,
que esperava que os camponeses dessem seus recursos econômicos para
manutenção do Templo. 18

Na verdade Horsley também acredita que no tempo de Jesus houve


uma interação considerável entre os círculos de escribas e os camponeses,
conformando assim “um grau considerável de cultura comum entre os, so-
cialmente divididos, grupos sacerdotais e vilarejos camponeses”. 19 Os evan-

16. The Kingdom of God and the Renewal of Israel: Synoptic Gospels, Jesus Movements, and
Apocalypticism, in: J.J. Collins (ed.), The Encyclopedia of Apocalypticism, p. 303-344.
17. The Kingdom of God ..., p. 307.
18. The Kingdom of God ..., p. 307.
19. The Kingdom of God ..., p. 308.
22 Apocalíptica e as Origens Cristãs

gelhos sinóticos preservam tradições de camponeses, mesmo quando são “se-


cundariamente reescritas” por “escribas”, tais como Mateus, ou escritores
cultos como Lucas.
Horsley acredita que, especialmente Q, a fonte hipotética dos ditos incor-
porada nos evangelhos de Mateus e de Lucas, era “o documento de um movi-
mento” (315). Ele apela a Lucas 9,57-10,16, uma passagem de Q, para apoiar
esta opinião. Além do mais, a linguagem mais apocalíptica de Q é encontrada
em Lucas (Q) 10,21-24 (com reflexos joaninos), onde “Jesus dá graças ao Pai
que ‘revelou’ (apekalypsas) todas estas coisas às ‘crianças’, ou seja, ao povo
simples, e de fato as escondeu da elite sapiencial, a elite de escribas e sábios
profissionais que cultivavam e recebiam ‘revelações’. Para Horsley, esta passa-
gem “indica explicitamente que os discursos de Q eram o produto de um mo-
vimento popular oposto à elite política e cultural de governantes e seus repre-
sentantes, os escribas. A literatura apocalíptica, tal como seções de 1Enoque, era
produzida por círculos de escribas dissidentes que também se opunham ao
sumo-sacerdócio da Judéia. Q, no entanto, era ‘revelação’ especificamente para
um movimento popular de renovação, conscientemente posicionado contra os
escribas assim como contra os governantes”. Ele acrescenta: “não deveríamos
esperar nestes discursos um tipo linguagem de escriba e de reflexão e especu-
lação que encontramos na literatura apocalíptica”.20
A versão de Q da oração do Pai Nosso, ainda preservada em Lucas 11,2-
4, é muito concreta quando comparada com a versão encontrada em Mateus
6,9-13 que foi editada profundamente pelo autor do evangelho mateano. A
versão de Q reflete o fato que os camponeses galileus defrontavam-se com
uma fome crônica e com um grave endividamento (impostos, necessidade de
alimentar a família). “Na oração pelo reino, Jesus ensinou ao povo a pedir ao
Pai celeste pelo pão da sobrevivência e pelo cancelamento de dívidas”. 21
Horsley compara a comunidade de Q com a comunidade de Qumran, que
é o mais claro exemplo de um movimento apocalíptico no judaísmo do primei-
ro século. “Assim como a comunidade de escribas e sacerdotes em Qumran,
o movimento camponês que produziu os ditos de Q estava engajado na reno-
vação de Israel. O movimento de Q ... no entanto, não se retirou do resto da
sociedade, seja como comunidade monástica no deserto, seja como um grupo

20. The Kingdom of God ..., p. 315-316.


21. The Kingdom of God ..., p. 316.
A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs 23

de ‘peregrinos carismáticos’, mas priorizou a renovação de comunidades cam-


ponesas, a forma social fundamental na qual Israel estava constituída”.22
Segundo Horsley, Q não era um apocalipse, mas mesmo assim compar-
tilha as três principais preocupações da literatura apocalíptica judaica: julga-
mento dos governantes opressores, restauração do povo de Israel e vingança
dos mártires. 23 As imagens com as quais estas questões são tratadas são mais
pobremente elaboradas que na literatura judaica do período, incluindo a de
Qumran. O movimento de Jesus representado em Q tem seus pés sobre no
chão. Não se permitiu especulações misteriosas ou bizarras. A comunidade de
Q viu na vinda e no ministério de Jesus o começo da renovação da sociedade.
Desta forma Horsley esvazia de sentido concreto os temas apocalípticos da
ressurreição dos mortos, que também é encontrada em Q,24 e da expectativa
de um julgamento escatológico dos governantes maus. A expectativa de uma
ressurreição futura e de julgamento escatológico, bem como a aceitação da
existência de Satanás e de demônios no presente, são considerados por
Horsley como características do “sistema simbólico-cultural ou do universo
simbólico pressuposto por Q”. 25 Não há “reflexão sistemática” sobre estas
questões em Q, segundo Horsley, como há na literatura apocalíptica judaica
(de escribas). Criticando Horsley, podemos dizer que a falta de “reflexão sis-
temática” sobre estas questões não significa que a comunidade de Q não adere
a uma cosmovisão de fato apocalíptica, que aguarda que Deus estabeleça uma
nova era em escala cósmica no futuro próximo. Movimentos apocalípticos não
precisam escrever apocalipses cheios de “estilo de apocalíptico de escribas”.
Eles apenas necessitam ter uma compreensão apocalíptico-escatológica da
realidade. Mas estes comentários apenas levantam a questão sobre a definição
de escatologia apocalíptica, à qual quero retornar no próximo ensaio.
(e) Como conclusão, gostaria de enfatizar que, em minha opinião, a
adoção de uma escatologia apocalíptica como uma perspectiva da realidade,
não é limitada a grupos em crise, nem necessita emergir destes grupos. Dei-
xando Q de lado, os evangelhos sinóticos, em sua forma atual, mostram que
temas e tradições apocalípticas podem ser adotados e usados por gente de

22. The Kingdom of God ..., p. 321.


23. The Kingdom of God ..., p. 322.
24. Ver Lucas 6,23; 7,35; 11,49-51; 12,2-12, listados por Horsley em The Kingdom of God ... p. 323).
25. The Kingdom of God ..., p. 323.
24 Apocalíptica e as Origens Cristãs

diversos contextos e em diversos contextos sociais. A pressuposição é que


todos os que adotam esta perspectiva sobre a realidade, é de que esta perspec-
tiva não tem origem humana (seja de indivíduos ou de grupos), mas de que ela
é dada por Deus, em outras palavras, é uma revelação de Deus. Esta é também
a pressuposição básica da fé cristã: ela não tem a ver com invenções humanas,
planos ou programas, mas com as que se referem a Deus.

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