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ANÁLISE DO TEXTO “SANTA CHUVA”

Marcelo Camelo/ Maria Rita

Vai chover de novo


Deu na TV
Que o povo já se cansou
De tanto o céu desabar
E pede a um santo daqui
Que reza a ajuda de Deus
Mas nada pode fazer
Se a chuva quer é trazer você pra mim
Vem cá, que tá me dando uma vontade de chorar
Não faz assim
Não vá pra lá
Meu coração vai se entregar
À tempestade...

Quem é você pra me chamar aqui


Se nada aconteceu?
Me diz?
Foi só amor? Ou medo de ficar
Sozinho outra vez?
Cadê aquela outra mulher?
Você me parecia tão bem...
A chuva já passou por aqui
Eu mesma que cuidei de secar
Quem foi que te ensinou a rezar?
Que santo vai brigar por você?
Que povo aprova o que você fez?
Devolve aquela minha TV
Que eu vou de vez
Não há porque chorar
Por um amor que já morreu
Deixa pra lá
Eu vou, adeus
Meu coração já se cansou de falsidade...

Fazendo a análise do texto “Santa Chuva” de Marcelo Camelo, interpretado por Maria
Rita, utilizando o foco de leitura autor – texto –leitor, como mulher, pude experimentar uma
gama de sentimentos que envolvem o fim de um relacionamento amoroso.
O titulo do texto, “Santa chuva”, através da estratégia de leitura da antecipação e
hipóteses, me trouxe, em principio, a lembrança da falta de chuva, pois quando sentimos a
falta de determinadas coisas, é que as valorizamos. Trouxe toda uma memória religiosa de
orações e romarias pedindo a água, ao mesmo tempo que a gratidão quando a chuva vem para
regar a terra e fazer brotar a vida. Também a questão da sobrevivência, da necessidade do
cultivo da terra e de quanto a chuva contribui, ou não, para isto. Mas ao continuar a leitura,
nos primeiros versos, esta hipótese já cai por terra, pois percebe-se quase uma ironia ao
nomear o texto de “Santa chuva”, já que a chuva está provocando mal estar, como diz o verso:
“Que o povo já se cansou de tanto o céu desabar”.
O elemento religioso contido no texto, ao pedir ajuda ao “santo” é o contrario do
esperado, e traz uma intertextualidade com a “Suplica Cearense”, de Luiz Gonzaga, onde o
texto pede que a chuva pare, através da oração. Apesar da hipótese do pedir chuva ter sido
trocada pelo pedir para parar de chover, ainda assim, parece falar do elemento da natureza
“chuva” e suas consequências para o homem.
Mas esta hipótese é novamente quebrada nos versos “Se a chuva quer é trazer você
pra mim.Vem cá, que tá me dando uma vontade de chorar” Neste momento, já há uma duvida
de que chuva se está falando e a vontade de chorar faz pensar que a chuva pode ser “interna”,
um estado de espírito, e “externa”, alguém que chora já por algum tempo sem parar. “A
chuva quer trazer você para mim”, dá para ligar com um dito popular de que “ quem não
chora, não mama”, ora, que o choro tem o poder de conseguir trazer aquilo que queremos,
um poder de convencimento sobre o outro, uma arma que muitos utilizam em ultimo caso e
outros em todos os momentos.
A sequencia, quando o verso diz “Meu coração vai se entregar à tempestade...” parece
que o choro não está convencendo a quem gostaria de convencer, e a tempestade parece um
grande volume de água sem controle, com outros elementos, como raios, trovões, que
geralmente causam estragos em todos os sentidos. Uma chuva mansa pode regar a terra e
fazer brotar a plantação. Uma tempestade pode acabar com tudo, lavar a terra, produzir
sulcos, levar as sementes, uma verdadeiro estrago. Levando para o sentimento que o texto
parece provocar, é como se fosse um aviso que a situação vai mudar, que é a ultima chance de
uma reaproximação. Faz uma intertextualidade com a música “Vambora” de Adriana
Calcanhotto. A urgência de algo acontecer que restaure toda a confusão formada. E o tempo
determinado para isso, em uma: “você tem meia hora pra mudar a minha vida” e em outra :
“Não faz assim, não vá pra lá, meu coração vai se entregar à tempestade...
A segunda parte do texto, pela carga emocional que o som traz, começa mais agressiva
e dá a sensação de uma mudança, não mais de choro, mas de raiva e ao mesmo tempo de
superioridade da mulher. Agora é claro o texto ao dizer “ cadê aquela outra mulher”, que é
uma mulher que está falando. A primeira parte do texto não faz esta referencia, mas como
leitora, acredito ser a mesma mulher, antes numa fase apaixonada e sentindo a ausência do
amado. Como a paixão acaba, especialmente quando é maltratada, isto explicaria a mudança
de atitude da mulher.
A segunda parte parece uma resposta, mesmo que inicie com uma pergunta: “Quem é
você para me chamar aqui se nada aconteceu?” Posso imaginar, pelo tom da pergunta, que o
amado agora busca uma reaproximação, mas que é rejeitado pela mulher, especialmente pela
sua atitude anterior e suas motivações atuais. É como se a mulher, ao estar apaixonada,
perdesse a capacidade de consciência, de avaliar a situação, e isso a torna mais vulnerável.
Mas o sair da paixão, o sofrimento a faz retomar a sua consciência e agora é capaz de
perceber as reais intenções daquele a quem ela dedicou o seu amor. Neste momento o que
antes era suficiente para agrada-la, não serve mais. Ela se torna mais real, e duvida da afeição
que o amado parece oferecer.
A intertextualidade pode se apresentar na música “To fazendo falta” de Joana, com o “
você me parecia tão bem” e “Jeito de que está feliz, De quem está de bem com a vida. Sei lá,
Mas alguma coisa não me convenceu.” Um pouco irônico, e faz ligação com o final do texto
“Meu coração já se cansou de falsidade...” criticando o viver de aparências, mesmo não
estando bem. A mulher busca um relacionamento verdadeiro, concreto e não uma ilusão.
Os elementos trabalhados no início do texto voltam: “chuva, rezar, santo, povo, TV”, o
que faz pensar que a segunda parte seria uma resposta a primeira parte da musica, e que ela
estaria dizendo ao amado que ele não tem o direito de se utilizar destes elementos para
justificar sua atitude, que não há perdão, nem volta, que ninguém, nem o sobrenatural, nem o
humano, estará do lado dele. Parece um pouco duro da parte dela, cruel até, o “devolve aquela
minha TV” parece um divisor de águas, um marco que nada dela deve ficar com ele, por que
ele não a tem mais.
Mas a mulher volta á sua doçura própria ao explicar o porque de tudo isso: Não há
porque chorar por um amor que já morreu. Deixa pra lá. Eu vou, adeus” A vida continua. A
chuva passou. A dor passou.
O texto não é obvio. Buscando outros conhecimentos, me remeto ao rio Nilo, nos
tempos antigos, que após chuvas e enchentes, ficava com uma grande área fértil, capaz de
gerar alimentos e enriquecer o Egito. Uma mulher, quando faz esta experiência do apaixonar-
se, e dentro da paixão, descobrir sua consciência, só tende a crescer enquanto mulher,
enquanto pessoa humana. Apesar do sofrimento, da dor, das lagrimas, pode sair transformada,
como as margens do rio Nilo, e provocar no homem também um crescimento.
A partir desta experiência de leitura percebo que realmente precisamos de muito
conhecimento de mundo para aventurar a ler, e que certamente cada um lê a partir de onde
está.

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