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JEAN-JACQUES ROUSSEAU

JÚLIA

Canas de dois amantes


de uma cidadezinha
ao pé dos Alpes

segunda edição

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JEAN-JACQUES ROUSSEAU A-�;..... -<......._
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(1712-1778)
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Sao Paulo, 2006

20900032411
levianamente todos os seus negócios mas dizem livremente todas a s suas
máximas. A mesa, durante o passeio, em conversa particular ou diante de
todo mundo, usa-se sempre a mesma linguagem; diz-se com ingenuidade o
que se pensa sobre cada coisa e, sem pensar cm ninguém, cada um encontra
sempre alguma instrução. Como os empregados nunca vêem o patrão fazer
alguma coisa que não seja reto, justo, equitável, não encaram a justiça
como o tributo do pobre, como o jugo do ip feliz, como uma das misérias
de sua condição. O cuidado que se tem em ·não fazer os operários andarem
em vão e perderem dias para vir solicitar o pagamento de suas jornadas,
acostuma-os a sentir o preço do tempo. Vendo o cuidado dos patrões com n

o dos outros, cada um conclui que o seu é precioso e considera a ociosidade d


·
como um crime maior. A confiança que se tem em sua integridade confere p
às suas instituições uma força que lhes dá valor e evita os abusos. Nio se o
teme que na gratificação semanal a patroa pense sempre que é o mais jovem q
ou o mais bem apanhado que foi o mais diligente. Um antigo empregado
não teme que o trapaceiam para economizar o aumento de salários que lhe
dão. Não se espera aproveitar da discórdia deles para fazer-se valer e obter
de um o que outro tiver recusado. Os que vão casar não temem que se traga
..
dano a seu casamento para conservá-los por mais tempo e que sejam assim
prejudicados por seu devotamento. Se algum Criado estranho viesse dizer as
aos empregados desta casa que um patrão e seus criados estão entre si num tr
verdadeiro estado de guerra, que quando estes últimos fazem àqueles o pior in
que puderem fazer, usam nesse ponto de uma j usta rcprcstlia que, sendo os m
patrões usurpadores, mentirosos e velhacos não há mal cm tratá·los como UJ
tratam o Príncipe ou o Povo ou os particulares e a devolvcr·lhcs habilmen· cn
te o mal que fazem violentamente; aquele que falas.se assim nio seria ur
compreendido por ninguém; nem mesmo pensam aqui em combater ou m
evitar tais conversas, só aqueles que as provocam são obrigados a refutá-las. de
Nunca há nem mau humor nem insubordinação na obediência porque me
não há nem altivez nem capricho no comando, porque não se exige nada
que não sej a razoável e ú til e porque se respeita suficientemente a dignida­ res
de do homem, e mbora na condição de empregado, para somente ocupá-lo loc
com coisas que não o aviltem. Além disso, aqui só o vicio é baixo e tudo o
:' que é útil e j usto é honesto e decente. mi:
Se não se recebe nenhuma intriga vinda de fora, ninguém é tentado a o e

criá-la. Sabem perfeitamente que sua mais segura fortuna está ligada à W<
do patrão e que nunca lhes faltará nada enquanto virem prosperar a casa. rcti
Servindo-a, cuidam portanto de seu patrimônio e o aumentam tornando fos:
seu serviço agradável; é este seu maior interesse. Mas esta palavra está
deslocada aqui, pois nunca vi uma organização cm que o interesse fosse tão pct
408
sabiamente dirigido e onde, contudo, influísse menos do que nesta. Tudo
se fn por afeição, dir-sc-ia que essas almas ve nais purificam se ao entrar
-

nesta morad� de sabedoria e de união. D ir se ia que uma parte das luzes do


- -

patrão e dos sentimentos da patroa passaram para cada um de seus


empregados, de tal forma os sentimos sensatos,. beneficentes, honestos e
superiores à sua condição. Fazer-se estimar, considerar, querer bem é sua
maior ambição e contam as palavras obsequiosas que lhes dizem como
contam os presentes de Ano-Bom que lhe dão.
Eis, Milorde, minilas principais observações quanto à parte da econo­
mia desta �asa referente aos empregados e mercenários. Quanto à maneira
de viver dos patrões e à direção das crianças, cada um desses pontos merece
perfeitamente uma carta à parte. Sabeis com que intenção comecei estas
observações, mas na verdade tudo isto forma um conjunto tão encantador
que para gostar de contemplá-lo basta o prazer que se sente. �

Carta XI
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�-�.:tk-.
f ��
A Mll.ORDt. t.DUARDO i;(;'!J:/f.,).
-4.

Não, Milorde, não estou me desdizendo, nada se v� nesta casa que não
assoc:e o agradável ao útil, mas as ocupações úteis não se limitam aos
trabalhos que trazem proveito, compreendem ainda todo o divertimento • 1

inocente e simples que alimenta o gosto da vida retirada, do trabalho,. da


moderação e conserva, para aquele que a ela se �ntrega, uma alma ,;adia.,
um coração livre da perturbação das paixões. Se a indolente ociosidade
engendra somente tristeza e tédio, o encanto dos doces ócios é o fruto de
uma vida laboriosa. Trabalha-se apenas para gozar, esta alternància de
trabalho e de gozo é nossa verdadeira vocação. O repouso, que serve de
descanso pelos trabalhos passados e de encorajamento para outros, nio é
menos necessário ao homem do que o próprio trabalho.
Após ter admirado o efeito da vigilincia e dos cuidados da mais
respeitável mãe de família na ordem da casa, vi o de suas recreações num
local retirado de que faz seu passeio favorito e que chama seu Eliseu.
Havia vários dias que ouvia falar desse Eliseu com uma espécie de
mistério. Enfim, ontem, depois do almoço, como o extremo calor tornava
o exterior e o interior da casa quase igualmente insup ord.vei s o Sr. de
,

Wolmar propôs que sua mulher deixasse o trabalho à tarde e, cm lugar de


retirar-se como sempre para o quarto de seus filhos até quase à noitinha,
fosse conosco respirar no pomar; ela consentiu e fomos juntos.
Esse lugar, embora muito perto da casa, está de tal forma estondido
pela alameda coberta, que dela o separa que não é percebido de nenhum
409
Cf._ �e.+..:�� o./� l"t.M. � (......._'1;l,. .,..;r._ '­
y�)
--s-1.-r

lugar. A espessa folhagem que o rodeia não permite que a vista penetre e
está sempre cuidadosamcncc fechado 2 chave. M.al cncrci, por estar a porta
escondida por amieiros e avcleiras que somente deixam duas estreitu
passagens de ambos os lados, ao volcar-mc não vi mais por-onde entrara e,
não percebendo nenhuma porta, cnconcrci-me lá como se tivesse caldo du
nuvens.
t
Ao �trar ncssu_rctcnso pomar, sc�i-me atingido por uma agradável
sensação de frcscor que obscuras sombras, uma verdura animada e viva,
flores esparsas P?J todos os lados, um murmúrio de água corrente e o canto
de mil pássaros trouxeram à minha imaginação pelo menos tanto quanto
.aos meus sentidos; mas, ao mesmo tempo, julguei ver o lugar mais selva­
gem, mais solitário da naturc1a e parecia-me ser o primeiro mortal a ter
alguma vc1 penetrado nesse deserto. Surpreso, impressionado, arrebatado
por um espetáculo tão pouco previsto, permaneci um momento imóvel e
exclamei num entusiasmo involuntário: Ó Tinia, ó Juan Fernandes1! Júlia,
o limite do mundo está ao vosso alcance! Muitas pessoas também pensam
como vós, disse ela com um sorriso, mas vinte passos os levam de volca bem
depressa a Clarens: vejamos se o encanto durará por mais tempo cm vós.
Este é o mesmo pomar em que passeastes outrora e onde combatíeis com
minha prima a golpes de pêssegos. Sabeis que a relva era bastante árida, as
árvores bastante espaçadas, dando pouca sombra e que .g!_o havia água. Ei­
lo agora fresco, verde, vestido, enfeitado, florido, banhado: o que pênsais
que me custou para pô-lo no estado cm que se encontra? Pois é bom dizer­
vos que sou sua superintendente e que meu marido deixa-me sua completa
organiução. Para db:er a verdade, disse-lhe, ele só vos custou um pouco de
negligência. Este lugar é encantador, é verdade, mas agreste e abandonado,
nele não vejo trabalho humano. Fechastes a porta, a água veio não sei:
como, somente a natureza fez o resto e vós mesma nunca teríeis sabido agir
cão bem quanto da. � verdade, disse, que a natureza fez tudo, mas sob a
minha dirc ão e nada há aqui que cu não ccn a or a o. ais uma vc1,
.adivinhai: cm primeiro lugar, repliquei, não compreendo como, com
trabalho e dinheiro, pode-se substituir o tempo. As árvores ... quanto a isso,
disse o Sr. d.e Wolmar, notareis que não há muitas de grande porte e essas
ji existiam. Além disso, Júlia começou cudo isso hi muito tempo, antes de
seu cuamenco e quase logo após a morce da mãe, quando veio com seu pai
procurar aqui a rolidão. Pois bem, disse eu, visco que quereis que todos
estes ma�s. est�s grandes-caramanchões, essas ramagens suspensas, estes
bosquczinhos tão bem protegidos tenham crescido cm sete ou oito anos e

1· ll�a• dt.tercaa do mar do Sul, d.lebres na viagem do Almican1e A n1on. (N.A.)


que o trabalho tenha ajudado, estimo que, se num recinto tão vasto fizes­
tes tudo isto por dois mil escudos, economizastes bastante. Encarecestes
apenas dois mil escudos, disse ela, ele nada custou. Como, nada? Não,
nada, a menos que conteis uns doze dias por ano de meu jardineiro, o
mesmo de dois ou três de meus empregados e alguns do próprio Sr. de
Wolmar que se dignou ser algumas vezes meu ajudante de jardineiro. Eu
nada compreendia desse enigma mas Júlia, que até então me retivera, disse­
me deixando-me ir: avançai e compreendereis. Adeus Tinia, adeus Juan
Fernandes, adeus todo o encantamento! Num momento estareis de volta
do fim do mundo.
Pus-me a percorrer com êxtase esse pomar assim metamorfoseado e,
se não encontrei plantas exóticas e produtos das f ndias, encontrei os da
região, dispostos e reu_nidos de maneira a produzir um efeito mais alegre e
mais agradável. A relva verdejante, espessa, mas curta e cerrada, apresenta­
va-se misturada com serpão, com menta, com tomilho, com manjerona e
com outras ervas perfumadas. Viam-se brilhar mil flores dos campos, entre
as quais o olhar distinguia, com surpresa, algumas de jardim, que pare­
ciam crescer naturalmente com as outras. Encontrava, de vez cm quando,
toucciras escuras, impenetráveis aos raios do sol, como na mais espessa
floresta; essas touceiras eram formadas pelas árvores do bosque mais
flexível do qual se haviam feito recurvar os galhos, alcançar o chão e deitar
raízes com uma arte semelhante ao que fazem nacuralmentc os frutos do
paletúvio na América. Nos lugares mais descobertos viam-se, cá e lá, sem
ordem e sem simetria, moitas de rosas, de framboeseiros, de groselhas,
.matagais de lilases, de aveleira, de sabugueiro, de silindra, de giesta, de
trifólio, que enfeitavam a cerra, dando-lhe uma aparência de terreno in-
ulto. Seguia alamedas tortuosas e irregulares ladeadas por esses arvore­
dos floridos e cobertos de mil guirlandas de videira da Judéia, de videira
11i:rgem, de lúpulo, de campainha, de briô'nia, de clematitc e de outras·
plantas dessa espécie entre as quais a madressilva e o jasmim dignavam-se
confundir-se. Essas guirlandas pareciam atiradas negligentemente de uma
arvore a outra como havia notado algumas vezes, nas florestas; e formavam
acima de nós espécies de tapeçarias que nos defendiam do sol, enquanto
tínhamos sob nossos pés um andar suave, cômodo e seco sobre uma cspiima
.
fina sem areia, sem erva e sem rebento� ásperos. Somente então descobri,
nio sem surpresa, que essas sombras verdes e densas que tanto me haviam
enganado de longe eram formadas apenas por essas plantas rastejantes e
parasitas que, guiadas ao longo das árvores,· rodeavam seus topos com a
f!lais espessa folhagem e seus pés de sombra e de frcscor. Obscrvéi mesmo
que, através de uma operação bastante simples, havia-se feito com que
411

1
várias dessas plantas fincassem suas raízes nos troncos das árvore1, de
maneira que se estendiam mais fazendo um trajeto menor. Imaginais bem
que os frutos pouco ganham com todos esses acr�scimos mas somente neste
' 1

lugar sacrificou-se o útil ao agradável e no resto das terras tomou-se um tal


cuidado com as mudas e as árvores que, mesmo sem este pomar, a colheita
de frutos não deixa de ser maior do que antes. Se pensais como é encanta­
dor às vezes, no fundo de um bosque, ver uma fruta selvagem e mesmo com
ela refrescar-se, compreendereis o prazer que sentimos ao encontrar neste
deserto artificial frutas excelentes e maduras, embora dispersas e de mau
aspecto, o que confere ainda o prazer da procura e da escolha.
Todos esses pequenos caminhos eram ladeados e atravessados por uma
água límpida e clara, que ora circulava entre a relva e as flores cm fios qua­
se imperceptíveis, ora cm riachos maiores que corriam sobre um cascalho
puro e matizado que tornava a água mais brilhante. Viam-se fontes
borbulharem e sair da cerra e algumas vezes canais mais profundos nos
quais a água calma e tranqüila refletia os objetos a olho nu. Compreendo
,' agora o resto, disse a Júlia: mas csca água que vejo por toda parte ... Ela vem
de lá, replicou ela, mostrando-me a direção cm que se cnconcrava o eirado
de seu jardim. I:. este mesmo riacho que abastece, cm grande quantidade,
no canteiro, um jato d'água a que ninguém dá importincia. O Sr. de
Wolmar não quer destruí-lo, cm atenção a meu pai que o mandou fazer,
mas com que prazer vimos todos os dias ver correr neste pomar�sta água da
qua{ pouco nos aproximamos no jardim! O jato d' água funciona para os
estranhos, o riacho corre aqui para nós. � verdade que nele reuni a água da
fonte pública que ia para o lago pela estrada principal que ela deteriorava
para prcjulzo dos passantes e cm pura perda para todo mundo. Ela fazia um
àngulo ao pé do pomar, entre duas filas de salgueiros; encerrei-os no meu
recinto e trago a mesma água por outros caminhos.
'' Vi então que apenas se fizera serpentear essas águas com economia,
1
·� dividindo-as e reunindo-as no momento certo, usando o mais posslvel e
:� com cuidado o declive, para prolongar o circuito e conseguir o murmúrio
de algumas pequenas quedas, Uma camada de argila coberta por uma po­

1 legada de cascalho do lago e semeada de conchas formava o- leito dos ria­


chos. Esses mesmos riachos, correndo por intervalos sob algumas largu
11 telhas recobertas de terra e de relva ao nível do solo, formavam à saída
outras tantas fontes .utificiais. Alguns filetes elevavam-se delas atravú de
sif6cs sobre os lugares ásperos e borbulhavam ao cair novamente. Enfim,
a terra assim refrescada e umedecida dava continuamente novas flora e
mantinha a relva sempre verdejante e bela.
Mais percorria esse agradável asilo mais sentia aumentar a sensaçlo
•'12
deliciosa que experimentara ao entrar; contudo, a curiosidade mantinha·
me com a atenção suspensa: tinha mais vontade de ver as coisas do que
examinar suas impressões e gostava de entregar·me a essa encantadora
contemplaçlo sem ter o trabalho de pensar, mas a Sra. de Wolmar, ti·
rando·me de meu devaneio, disse·me dando-me o braço: tudo o que
vedes é apenas a natureza vegetal e inanimada e faça·se o que se fizer, ela
deixa sempre uma idéia de solidão que entristece. Vinde v�·la animada e
sensível. É lá que, a cada momento do dia, encontrareis nela um atrativo
nov�Vós me prevenis, disse-lhe, ouço um chilreio barulhento e confuso
e percebo bem poucos pássaros, compreendo que tendes um viveiro de
aves. � verdade, disse ela, aproximcmo·nos. Ainda não ousava dizer o que
pensava do viveiro, mas essa idéia tinha alguma coisa que me desagrada·
, va e não me parecia combinar c_om o resto.
Descemos por mil desvios ao fundo do pomar onde encontrei toda
,a água reunida num bonito riacho que corria suavemente entre duas filas
de velhos salgueiros que haviam sido freqüentemente podados. Seus to·
, pos ocos e meio calvos formavam espécies de vasos de onde saíam, pela
operação de que falei, touceiras de madressilva, uma parte das quais cn·
trelaçava·se ao redor dos galhos e a outra caía com graça ao longo do
riacho. Quase na extremidade do recinto havia um pequeno tanque ro·
deado de ervas, de juncos, de caniços, que servia de bebedouro para o
viveiro e última etapa dessa água tão preciosa e tio bem aproveitada.
Além do tanque havia um ter!apleno limitado no ingulo do recinto
�por um montículo ornado de um se�·númcro de arbustos de todo tipo, os
�menores mais acima, e crescendo sempre cm altura, à medida que o solo se
-�abaixava, o que tornava o plano das cabeças quase horizontal ou mostrava,
pelo menos, que um dia deveria sê-lo. Na parte anterior havia umas -doze
,,rvores ainda novas mas próprias a se tornarem muito grandes, como a
faia, o olmo, o freixo, a acácia. Eram os arvoredos desse outeiro que
serviam de asilo a essa multidão de p'ssaros cujo chilreio ouvira de longe e
era à sombra dessa folhagem, como sob um grande guarda·sol, que os
víamos esvoaçar, correr, cantar, provocarem�sc, baterem-se, como se não
ti,vcssem percebido. Fugiram tão pouco ao nos aproximarmos que, se­
gundo minha idéia preconcebida, pensei a prindpio citarem encerrados
P-ºr uma grade: mas ao chegarmos à beira do tanque vi virios descerem e
a,proximarem-se de nós numa espécie de curta alameda que separava em
dois terrapleno e ligava o tanque ao viveiro. Então o Sr. de Wolmar, dando
a volta ao tanque, semeou na alameda dois ou t� punhados de grãos
,mesclados que tinha no bolso e, quando se retirou, os pássaros acorre·
e puseram-se a comer como galinhas, com um ar tio familiar que vi
413
perfeiramenre que e�ravam acosrumados a essa manobra. f. encanrador!
exclamei: a palavra viveiro me surpreendera, vindo de vós, m as compreen·

1
1
do-a agora, vejo que desejais hóspedes e não prisioneiros. Que chamais
hóspedes? respondeu Júlia. Somos nós que somos seus hóspedes. Eles
aqui são os pacrões e nós lhes pagamos criburo para sermos suporcados
algumas vezes. Muiro bem, retruquei, mas de que maneira estes patrões se
1
1 apoderaram deste lugar? Qual o meio de\, reunir aqui tancos moradores
voluntários? Não ouvi dizer que se tenha alguma vez tentado algo seme·
!bante e não teria acreditado que se pudesse consegui-lo se não tivesse a
prova diante dos olhos.
.
A paciência e o tempo, disse o Sr. de Wolmar, fizeram este milagre.
São expedientes nos quais as pessoas ricas quase não pensam , em seus
prazeres . Sempre com pressa de gozar, a força e o dinheiro são os únicos
meios que conhecem, possuem pássaros nas gaiolas e amigos a tanto por
mês. Se um dia os criados se aproximassem deste lugar, veríeis em breve os
pássaros desaparecerem e se agora estão aqui em grande número é porque
sempre os houve. Não os fazemos vir quando não há nenhum mas é fácil,
quando há alguns, atrair mais outros, antecipando todas as suas necessi­
dades, não os assustando nunca, deixando-os chocar em segurança e não
desalojando os filhotes, pois então os que aqui estiverem ficam e os que
chegam permanecem também. Este arvoredo existia embora estivesse sepa­
rado do pomar. Júlia apenas o rodeou com uma sebe viva, retirou a que o
separava, aumentou-o e ornou-o com novos pés. Estais vendo à direita e à
esquerda da alameda que conduz a ele dois espaços preenchidos por uma
mistura confusa de ervas, de palhas e de toda espécie de·plantas. Cada ano
m anda plantar trigo, milho-miúdo, girassol, sementes de dnhamo, p'ltt•
ttr, geralmente todos os grãos de que os pássaros gostam e não se colhe
nada. J..lém disso, quase todos os dias, no verão e no inverno, ela ou eu lhes
tiaz.emos comida e quando não vimos Fanchon geralmente nos substitui:
tem água a alguns passos,.como estais vendo. A Sra. de Wolmar leva o cui­
dado até ao ponto de provê-los, a cada primavera, de pequenas porções de
crina, de palha, de lã, de musgo e de outras matérias próprias para fazer
ninhos. Com a vizinhança dos materiais, a abundância de víveres e o
grande cuidado que tomamos em afastar todos os inimigosl, a eterna
tranqüilidade de que gozam leva-os a pôr ovos num lugar agradável onde
nada lhes falta, onde ninguém os perrnrba. Eis como a pátria dos pais é
ainda a dos filhos e como a tribo se mantém e se multiplica.

1 Ervilhaca. (N .A.)
1 01 lcit6a, 01 camundongos, as corujas e sobretudo as crianças. (N.A.)

414
Ah!, disse Júlia, n ão vedes mais nada! cada um só pensa agora cm si,
mas esposos inseparáveis, o z.clo das ocupações domésticas, a ternura
paterna e materna, perdestes tudo isto. Era preciso estar aqui há dois meses
para oferecer aos olhos o mais encantador dos espetáculos e ao coração o
mais doce dos sentimentos da natureza. Senhora, repliquei com bastante
tristeza, sois esposa e mãe, são prazeres que cabe a vós conhecer. Imedia­
tamente, o Sr. de Wolmar, tomando-me pela mão, disse-me ao apertá-la:
tendes amigos e estes amigos têm filhos, de que maneira a afeição paterna
vos seria estranha? Olhei-o, olhei Júlia, ambos se olharam e me devolve·
rarrflum olhar tão comovente que, abraçando-os um depois do outro disse­
lhes com enternecimento: des me são tão caros quanto a vós. Não sei por
qual bizarro efeito uma palavra pode assim transformar uma alma mas,
desde esse momento, o Sr. de Wolmar parece-me um outro homem e vejo
nele menos o marido daquela que canto amei do que o pai de duas crianças
pelas quais daria a minha vida.
Quis dar a volta ao tanque para ir ver de mais perco esse encanta­
dor asilo e seus pequenos habitantes, mas a Sra. de Wolmar me reteve.
Ninguém, disse ela, vai perturbá-los em seu domicilio e sois mesmo o
primeiro de nossos hóspedes que eu trouxe até aqui. Há quatro chaves
desse pomar das quais meu pai e nós temos uma cada um, Fanchon tem a
quarta, como inspetora e para trazer às vezes meus filhos, favor cujo preço
é aumentado pela extrema circunspecção que se exige deles enquanto es­
tão aqui. O próprio Gustin só entra com um dos quatro; mesmo assim,
dois meses depois da primavera, quando seus trabalhos têm utilidade, de
quase não entra mais e o resto é feito entre nós. Assim, disse-lhe, por
medo de que vossos pássaros não sejam vossos escravos, vos tornastes es·
cravos deles. Exatamente, replicou ela, as palavras de um tirano que so·
mente julga gozar de sua liberdade à medida que perturba a dos outros.
Ao partirmos para voltar, o Sr. de Wolmar atirou um punhado de
cevada dentro do tanque e ao olhar percebi nele pequenos p eix es Ah, ah!
.

disse logo, aqui há, contudo, prisioneiros? Sim, disse ele, são pris ion e i·
ros de guerra, aos quais conservamos a vida. Sem dúvida acrescentou sua
,

mulher. Há algum tempo, Fanchon roubou na cozinha pequenas per­


cas que trouxe para cá sem que cu soubesse. Deixo-as aqu i , por medo de
mortificá-la se as enviasse de volta para o lago, pois é ainda prefcdvel
albergar peixes em pouco espaço a indispor uma pessoa de bem. Tendes
rado, tcspondi, e não se deve lamentar este por ter escapado da p anela a tal
preço.
Pois bem, que pensais, disse-me ela ao voltar. EstaÍI ainda no fim do
mundo? Nio, disse, e-is-me completamente fora dele e, de fato transpor·
,

415
tastes-me ao Eliseu. O nome pomposo que ela deu a este pomar, disse o Sr.
de Wolmar, merece realmente esta zombaria. Louvai moderadamente es·
tas infantilidades e pensai que nunca prejudicaram a mãe de família. Sei·
o, repliquei, tenho toda a certeza e as infantilidades me agradam mais
neste sentido do que os trabalhos dos homens.
Contudo, há aqui, continuei, uma coisa que não posso compreender.
É que um lugar tão diferente do que �ra sÓ pode ter-se cornado o que é com
cultivo e cuidados, todavia, não vejo em parte alguma o menor tr�ço de
cultivo. Tudo é verdejante, fresco, vigoroso e a mão elo jardineiro não
aparece: nada desmente a idéia de uma Ilha: deserta que me veio à mente
ao entrar e não percebo nenhum passo humano. Ah! disse o Sr. de.>Wolmal' ·

é que se tomou grande cuidado em apagá-los. Fui mui�as vezes testem •

nha, algumas vez.es cúmplice da malandragem . Manda-se semear fcn


. o em
todos os lugares cultivados e a grama esconde cm seguida os vestígios do
trabalho; no inverno, manda-se cobrir com algumas camadas de adubo ti
lugares pobres e áridos, o adubo faz. desaparecer o musgo, reanim a a grama
e as plantas, as próprias árvores não se dão mal e no verão ele desapareceu ..
Quanto ao musgo que cobre algumas alamedas, foi Milord Edyardo que
nos enviou da Inglaterra o segredo para faz.ê-lo nascer. Estes dois lado ,
continuou, estavam fechados por muros, os muros foram �scÓndidos não
por árvores de latada mas por espessos arbustos que fazem c�Ín que ·os
limites do local pareçam o inkio de um bosque. Dos dois outros lados há
forces sebes vivas, bem cobertas de bordos, de estrcpeiros, de azevinho,
de alfena e de 04trOs arbustos misturados que lhes retiram a apar�ncia ae
.;,,.
sebes e lhes dão a dé'úma mata de corte. Nada vedes de alinhado, nada êie
nivelado; o cordel nunca entrou neste lugar, a natureza nunca planta nada
seguindo um cordel, as sinuosidades em sua irregularidade simulad � sio
feitas com arte para prolongar a avenida, esconder as margens da Ilha e
'
aumentar sua extensão aparen ce, sem incômodos e freqüentes desvios1•
Considerando tudo isso, achei muito estranho que 54: dessem canto
trabalho para esconder o que se deram; não teria sido prefcdvel nio se·
darem ao· trabalho? Apesar de tudo o que vos disseram , respondeu-me
J úlia, julgais o trabalho pelo efeito e vos enganais. Tudo o que vedes são
plantas selvagens ou forres que basta pôr na terra e que crescem em-seguida
por si mesmas. Aliás, a natureza parece querer ocultar aos olhos aos
homens seus verdadeiros atrativos, aos quais são por demais pouco sen·

1 Assim, não se trata desses pequenos bosqua:inhos que estão na moda, tão ric!icula­
mcntc contornados que só se pode caminhar cm zigue-:iaguc e que, a cada p JO, 4
preciso faur uma pirueta. (N.A.)

416

\
dveis e que desfiguram quando estão ao seu alcance: ela foge dos lugares
freqüentados, é no cume das montanhas, no fundo das florestas, nas Ilhas
d erras que ela ostenta seus mais emocionantes encantos. Os que a amam
e que nlo podem ir procurá-la tão longe estão reduzidos a violentá-la, a
· forçá-la, de algum modo, a vir morar com eles, e tudo isso não pode ser ,
feito sem ulll"pouco de ilusão.
A essas palavras veio-me uma idéia que os fez rir. Imagino, diss�-lhes,
um homem rico, de Paris ou de Londres, dono desta casa e� q�e trouxesse·
co� ele' um Arquiteta a quem pagasse um alto preço para estragar a
:)
�atureza. Com que desdém entraria neste lugar. simples e pequeno! com
que desprezo mandaria arrancàr todas estas ninharias! Que belos ali­
'
nhamentos faria! Que belas avenidas mandaria abrir1• Que belas encruzi ­
'
lhadas, que bela� árvores em forma de guarda-sol, de leque! Que belos
gradeamentos bém cinzelados! Que belas alamedas arborizadas, bem dese­
nhadas, bem esquadriadas, bem contornadas! Que belos relvados de fina
relva da Inglaterra, redondos, quadrados, em meia lua, ovais! Que belos
Teixos recortados em forma de dragões, de pagodes, de figuras grotescas,
de todo tipo de monstros! Que belos vasos de bronze, que belas frutas de
pedra com os quais ornará seu jardim!. . 2 Quando tudo isso estiver execu­
.

tado, disse.o Sr. de Wolmar, terá feito um local belíssimo onde quase não
se irá e de onde sempre se sairá apressadamente para ir procurar o campo,
um lugar triste onde não se passeará mas por onde se passará para ir
passear, enquanto em minhas andanças pelo campo apresso-me muitas
vezes cm voltar para vir passear aqui .
. Nessas terras tão vastas e tão ricamente ornadas vejo apenas a vaidade
do proprietário e do artista que, sempre apressados em ostentar, um sua
riqueza e outro seu talento, preparam, com grandes despesas, tédio para
quem quer que deseje gozar de sua obra. Um falso gosto pela grandeza
que não é feita para o homem envenena seus prazeres. O ar faustoso é
sempre triste, faz pensar nas misérias de quem o procura. Em meio a seus
canteiros e a suas grandes alamedas, sua pequena pessoa não cresce, uma
úvore de vinte pés cobre-o como um de sessenta3, ocupa sempre apenas

-1 Nesta carta Rousseau opõe o jardim à inglesa, no caso o Eliseu, ao jardim clúsico
francês. (N.T.)
1 Estou persuadido de que está perto o momento cm que não mais se desejará, nos

jardins, o que se encontra no campo; não se suportarão mais nem plantas, nem
arbustos, somente desejar-se-ão flores e figuras de porcelana, gradeamentos, areia de
todas as cores e belos vasos cheios de nada. (N.A.)
' Ele devia, de fato, estender-se um pouco sobre o mau gosto de podar as llrvores de
maneira ridlcula, para lançá-las nas nuvens, retirando-lhe seus belos topos, suas

417
seu espaço de três pés e perde-se como um pobre coitado em seus imens 1
domínios.
Há um outro gosto diretamente oposto a esse e mais ridículo aind
pois não deixa nem mesmo goiar do passeio para o qual os jardins
feitos. Compreendo, disse-lhe, é o desses pequ�nos curiosos, desses pe·
quenos floristas' que desfalecem diante de u m ranúnculo e se prosternam

diante das tulipas. Nesse momento, contei-lhe, Milorde, o que me acon,•
tecera outrora, e m Londres, nesse jardim de flores no qual fomos intro·
duúdos com canto aparato e onde vimos brilhar cão pomposamente todo1
os tesouros da Holanda sobre quatro camadas de estrume. Não esqueci a
cerimônia do guarda-sol e da varinha com que me honraram, a mim,
indigno, assim como aos outros espectadores. Confessei-lhes humilde­
mente como, tendo desejado esforçar-me por minha vez e correr o risco de
extasiar-me à vista de uma tulipa cuja cor pareceu-me viva e a forma
elegante, fui escarnecido, apupado, vaiado por todos os Sábios e como o
professor do jardim, passando do desprezo da flor ao do panegirista, tilo
se dignou mais olhar-me durante toda a permanência. Penso, acrescentei,
que lamentou muito sua varinha a seu guarda-sol profanados.
Esse gosto, disse o Sr. de Wolmar, quando degenera em mania, tem
algo de mesquinho e de fa!so que o torna pueril e ridiculamente dispen•
dioso. O- outro, pelo menos, tem nobreza, grandeza e algum tipo de
verdade; mas o que é o valor de uma raiz ou de uma cebola, que um insem
rói ou destrói talvez no momento cm que a regateamos ou de uma flor,
preciosa ao meio dia e mur.cha ao pôr do -sol, o que é uma beleza convcn•
cional que só é sensível aos olhos dos curiosos e que só é bela porqae
querem que o seja? Pode chegar o momento etn que se procurará 01$ flora
exatamente o contrário do que se procura hoje e com a mesma razio, endo
sereis o douto, a vosso turno, e vosso curioso será o ignorante. Todas asai
pequenas observações que degeneram em estudo absolutamente"O'io coa­
vêm ao homem sensato que quer dar a seu corpo um exercício moderado OI
descansar seu espírito durante o passeio, conversando com os amigos. AI
flores são feitas para distrair nossos olhares, de passagem, e não para serem

sombras, esgotando sua seiva e impedindo-as de extrair algum proveito. E.uc-­


é verd ade, dá madeira aos jardincirÓs mas' a retira ao pais que jt nlo rcm mllil&
Julgar-se-ia que a narurez.a, na França, é feira de maneira diferente do que no,....
mundo, tanto é o cuidado que se roma para desfigurá-la. Os parqua fO.,_ •
p!aatado1 de longas varas, são floresw de mastros ou de maiu e paaei_a-tc ao ..
dos boaquc:s sem encontrar sombra. (N.A.) ,
i. O Dki1111Jm J11 k..kmi11, de m;i, define jkurim como "aquele q
Oorcs, que gosta de Aorcs, que cem pruec cm cuMvá-t�·. (N. T.)

418
tio �uriosamcmte analisadas'. Vede brilhar sua Rainha em toda pane nes­
e pomar. Ela perfuma o ar, ela encanta os olhos e quase nio custa nem
e idados ncin cultivo. � por isso que os floristas a desprezam; a natureza a
fei tio bela que eles nio lhe poderiam acrescentar belezas de convenção e,
ri,io podendo fatigar-se cm cultivá-la,p ada encontram nela que os delei­
te. O em>. das pretensas pessoas de g o{to é o de que.rer arte por toda pane
e o de nunca estar contentes enquanto a arte não se mostrar, e�quanto o
verdadeiro gosto consiste em escondê-la, sobretudo quando se trata das
obras da nacurcza. Que significam essas alamedas cão retas, tão areadas
que se encontram continuamente e essas encn�zilhadas através das quais,
bem longe de estender diantê dos olhos a dimensão de um parque, como
se imagina.ria, mostram-se apenas, desajeitadamente, seus limites? V�-se

nos bosques areia dos rios ou os pés repousam com mais suavidade nessa
areia do que sobre o musgo ou o relvado? A natureza usa continuamente o
esquadro e a régua? têm medo de que não seja reconhecida em alguma coi­
sa apesar dos cuidados que têm em desfigurá-la? Enfim, não é engraçado

que, como se já estivessem cansados do passeio ao começá-lo, gostem de


fu!-lo em linha reta para chegar mais depressa ao termo? Não se diria que,
tõm�do o caminho mais curto, fazem antes uma viagem do que um
passeio e st apressam cm sair logo que entraram?
Que fará portanto o homem de gosto que vive por viver, que sabe
gozar de si mesmo, que procura os prazeres verdadeiros e simples e que de­
seja criar uma avenida à porta de sua casa? Ele a fará tão cômoda e tão
agradável que nela possa comprazer-se cm to_das as horas do dia e contudo
tio simples e tão natural que pareça nada ter feito. Réunirá a água, a
verdura, a sombra e o frescor, pois a nacureza também reúne todas essas
coisas. A nada dará simetria, ela é inimiga da natureza e da variedade e
todas as alamedas de um jardim comum se assemelham. tanto qúe temos a
impressão de estar sempre na mesma. Desbri.vará o terrenÕ para nele
passear comodamente, mas os dois lados de suas alamedas nem sempre
1
serio exatamente paralelos, a direção não será sempre a linha reta, terá não
lei ue de vago como o andar de um homem ocioso que vagueia ao pas;
•r: não se preocupará em abrir ao longe belas perspectivas. Os gostos dos
.
potitÕs de vista e das distâncias vêm- c!a inclinação que tem a maioria
homeris para somente se comprazerem onde não estão. Estão sempre
'dos pelo que está longe deles e o artista, que não sabe torná-los sufi-

1 O s'bio Wolmar não havia observado bem. Ele, que sabia tio bem examinar os
homens, teria tão mal examinado.• natureza? lgnonva que se seu Autor� grande nas
gnndcs coisas,� muitq grande nas pequenas? (N.A.)

419
cicntcmcntc satisfeitos com o que os rodeia, lança mão
para diverti-los, mas o homem de que falo não tem essa aflição e quando•
sente bem onde está não se preocupa crn estar cm outro lugar. Aqui, r
exemplo, não se tem perspectiva para fora e estamos muito contentes por
não ce-la. Pensaríamos de boa vontade que todos os encantos da naturc·
za estão encerrados aqui e cu tcmeri.f muito que a menor perspectiva para
o exterior não retirasse muitos dos atrativos deste passeio'. Certamente
todo homem que não goste de passar belos dias num lugar tão simples e
tão agradável, não possui um gosto puro nem uma alma sã. Confesso que
não se devem levar com solenidade os estranhos mas, cm compensaçfo,
nele podemos comprazermos a nós mesmos sem mostrá-lo a ningu�m.
Senhor, disse-lhe, essas pessoas tão ricas que fazem tão belos jardin1,
possuem muito boas razões para não gostarem de passear sozinhas, nem
para se encontrarem a sós consigo mesmas: assim, fazem muito bem nesse
ponto em somente pensar nos outros. De resto, vi na China jardins como
os que desejais e feitos com canta arte, que a arte não era percebida, mas de
maneira tão dispendiosa e mantidos com tal custo, que essa id�ia retira·
va-me todo o prazer que poderia ter tido em ve-los. Eram rochas, grutu,
cascatas artificiais em lugares planos e arenosos onde só existe água_ de
poço; eram flores e plantas raras de todos os climas da china e da Tarúria,
reunidas e cultivadas num mesmo solo. Na verdade, não se viam nembelu
alamedas nem desenhos regulares, mas viam-se profusamente acumula•
das· maravilhas que só são encontradas espalhadas e separadas. A natureza
apresentava-se sob mil aspectos diversos e todo o conjunto não era nata·
ral. Aqui não se transportaram nem terras nem pedras, não foram fcitOI
nem bombas nem reservatórios, não há necessidade nem de estufas nem de
fornos, nem de redomas nem de esteirões. Um terreno quase liso recetieu
ornamentos muito simples. Ervas comuns, arbustos comuns, alguns filetes
de água corrente, sem arranjos, sem violencia, foram suficientes para em•

1 Não sei se já se tentou dar, às longas alamedas de uma. encruzilhada, uma lne
curvatura de maneira que a vista nio possa seguir totalmente cada alamedaª" o fia
e de maneira que a extremidade oposta esteja escondida ao espectador. Perder•IC•Íllll,
é verdade, os atracivos dos pontos de vista, mas ganhar-se-ia a vantagem tio cara_
proprietários de aumentar, para a imaginação, o lugar cm que se csd e, no cenuo de
uma encruzilhada bastante limitada, imaginar·nos-lamos perdidos n u m parque imcmo.
E.stou persuadido de que o passeio seria assim menos aborrecido, embon·a.i.
solitário, pois tudo o que provoca a imaginação excita a.s idéias e alimenta o csplril!IS
mas os fazedores de jardins não são pessoas capazes de sentir essu coisu. QIWltllt
veza, num lugar selvagem o lápis lhes cairia das mãos, como caiu das mlol ele Le
No/ue no parque de St. James, se conhecessem como ele o que_ dá vida l 11u11111u
interesse a seu espetS.culo? (N.A.)

420
belezá-l o' . É um trabalho sem esforço cuja facilidade dá ao espectador u m
"1.
'no o prazer. Sinto que este l ugar poderia ser ainda mais agradável e
,
agr dar-me infinitamente menos . .e_ o caso, por exemplo, do célebre parque
de Milorde Cobham em S taw. É um conjunto de l u gares belíssimos e
muito pitorescos, cujos aspectos foram escolhid cp em diferentes países e do
qual tudo parece natural exceto sua reunião, co rli. o nos jardins da China de
que acabo de falar-vos. O dono e o criador ,dessa maravilhosa solidão, nela·
fei mesmo construir ruínas, templos, a� tigas construções e tanto as épocas
quanto os lugares nela estão reunidos com uma magnif icência· mais do que
humana. Eis, exatamente, do que me queixo. Gostaria que os divertimen­
tos dos homens tivessem sempre um ar agradável que não fizesse pensar
em sua fraqueza e que, ao admirar essas maravilhas, não se tivesse a cabeça
cansada com as somas e os trabalhos que custa�am. A sorte já nã'o nos dá
penas suficientes sem pô-las até em nossos diverti�entos?
;Censuro apenas uma coisa a vosso Eliseu, acrescentei o lhando Júlia,
ma$ que vos parecerá grave, é de ser um divertimento supérfluo. Para que
cri'ar um novo passeio tendo, do outro lado da casa, bosquezinhos tão
encantadores e tão desprezados? É verdade, disse ela um pouco embaraça­
di, _mas p refiro isco. Se tivésseis bem pensado em vossa pergunta, antes d �
fü�la, interro m peu o Sr. de Wolmar, ela seria mais do que deslocada.
Desde seu casamento, m inha mulher nunca pôs os pés nos bosquezinhos
de que falais. Conheço a razão, e m bora ela sempre ma tenha calado. Vós,
que não o ignorais, aprendei a respeitar os l ugares em que vos encontrais,
eles são p laneados pelas mãos da virtude.
VMal recebera essa justa reprimenda, a pequena família, trazida por
Fan.chon, entrou enquanto saíamos. Essas três encantadoras crianças ati­
raram-se ao pescoço do S r . e da S ra. de Wolmar. Tive meu quinhão de
seu,s.. pequenos afagos. Voltamos, Júlia e eu, para o Eliseu, dando alguns
passos com eles, depois fomos nos juntar ao Sr. de Wolmar que falava a
alguns operários. No caminho, ela me disse que depois dê ter-se tornado·
mãe tivera, sobre esse passeio, u m a idéia que aumentara seu zelo em
embelezá-lo . Pensei, disse-me, no divertimento de meus filhos e na sua
saúde quando forem maiores. A manutenção deste l u gar exig� maiores cui­
dados do que trabalho; trata-se antes de dar certo contorno aos ramos
das.plantas do que de cavar e arar a terra; quero fazer deles, um dia,
meus pequenos jardineiros: terão suficiente exercício para reforçar o corpo
mu, não tanto para cansá-lo. Aliás, mandarão fazer o que for demasiado
penoso para sua idade e limitar-se-ão ao trabalho que os divertirá . Nlo
11beçia dizer-vos, acrescentou, que doçura s i n to ém imaginar meus filhos
ocueados em devolver-me todas as pequenas atenções que tenho por eles
421
com tanto prazer e a alegria de seus ternos corações, vendo sua mle passear
com prazer sob estas sombras cultivadas pelas mlos deles. Na verdade, meu
amigo, disse-me com voz comovida, dias vividos dessa maneira parecem
felicidade da outra vida e n o � sem railo que, pensando nisso, dei de
antem ã o a este lugar o nome de Eliseu. Milorde, esta incom paráv�I mu­
lher é mãe como é esposa, como é amiga, como é filha e, para eterno
suplício de meu coração, foi ainda assim q ue foi amante .
Entusiasmado c o m u m lugar t ã o encantador pedi-lhes, à noite, que
aceitassem que durante minha estada em sua casa F anchon me entregasse
sua chave e o trabalho de alimentar os pássaros, J úlia enviou logo ao meu
quarto o saco de grãos e deu-me sua própria chave. Não sei por que a rece­
bi com uma espécie de tristeza: pareceu-me que teria p re fe rido a do Sr. de
Wolmar.
Hoje, levantei-me cedo e, com a pressa de uma criança, fui encerrar­
me na Ilha deserta. Quantos agradáveis pensamentos esperava levar para
esse lugar solitário onde unicamente o doce aspecto da natureza devia
expulsar de minha lembrança toda essa ordem social e factlcia que me
tornou tão i n feliz! Tudo o que vai envolver-me é obra daquel a que me
foi tão cara. Contemplá-la-ei ao meu redor. Nada verei que sua m ã o não
ten ha tocado, beijarei flores que seus pés tiverem p isado, respi rarei com o
orvalho um ar que ela respirou, seu gosto e m seus divertimentos tornar­
me-á presentes todos os seus encantos e encontrarei em toda p a rte como
ela é no fundo do meu coração.
Ao entrar no Elise!l com essas disposições lembrei-me subitamente das
últimas palavras que me disse ontem o Sr. de Wol mar mais ou menos no
mesmo lugar. A lembrança dessas únicas palavras transformou imediatamen­
te todo o estado de m i nha alma. Julguei ver a i magem da virtude onde pro­
curava a do prazer. Essa imagem confundiu-se em meu espírito com os tra­
ços da Sra. de Wolmar e, pela p rimeira vez desde minha volta, vi Júlia em
sua ausência, não tal como foi para mim e como gosto de imaginá-la, mas
tal como se mostra aos meus olhos todos os dias. M ilorde, julguei ver esta
mulher tão encantadora, tão casta e tão virtuosa no centro desse mesmo
cortejo que a rodeava ontem . Via ao seu redor seus três adoráveis filhos,
hon rado e precioso pe n h or da un ião conjugal e da terna amizade, fazer-lhe
e receber dela m i l emocionantes atenções. Via a seu lado o grave Wolmar,
este Esposo tão caro, tão feliz, tão digno de sê-lo. Julgava ver seu olhar pe­
netrante e judicioso entrar no fundo do meu coração e fazer-me ainda sen­
tir envergonhado; jul gav� ouvir sair de sua boca censuras por dem ais mere­
cidas e lições por demais mal ouvidas. Via em seguida essa mesma Fanchon
Regard, viva p rova do triunfo das virtudes e da humanidade sobre o mais
422
ardente amor. Ah! que senti ment.°i cul pado teria penetrado até ela através
desse inviolável cortejo? Com que indignação teria abafado os vis arrebatamen­
tos de uma paixão cri m i nosa e mal extin tas e quanto me teria desprezado •

por macular co m um ún ico susp iro um tão encan tador quadro de inocência
e de honestidade! Repassava cm m inha memór i � as palavras que e l a me dis­
sera ao sair, depois, remon tando com ela para \i m fu turo que co ntem pla .
com tanto encanto, via esta terna mãe �nJiugar o suor da cesta de seus fi ­
lhos, beijar suas faces i n fl amadas e entregar esse coração feito eara amar ao
mais doce sentimento da natureza. Até mesmo o nome Eliseu corrigia em
mim os desvios da imaginação e trazia à m i n h a alma uma calma p referível
à perturbação das paixões m a is sedutoras. Ele me pin tava, n u m cerco sen­
tido, o in terior daquela que o encontrara, pensava que, com uma cons­
ciência agitada n unca se teria escolhido aquele nome. Dizia a mim mesmo:
a paz rein a no fundo d e seu coração como no asi l o a que deu o nome.
P rometera a mim mesmo um devaneio agradável , sonhei mais agrada­
vel mente do que esperara. Passei duas horas no Eliseu às quais não pre fi ro
nenhuma época de mi nha vida. Vendo com que encanto e com que rapidez
elas haviam-se escoado, j u lguei que há na medicação dos pensamentos_
honestos uma espécie de bem -estar que os maus nunca conheceram, é o de
comprazer-se consigo m es m o . Se pensássemos n isso sem p revenção, não
sei que outro prazer poderíamos igualar a ele. Sinto, pelo menos, que quem
quer que goste tanto quanco eu da solidão deve temer encontrar nela
tormentos. Talvez se extraia dos mesmos principias a chave dos falsos
julgamentos dos homens sobre as vantagens do vício e sobre os da virtude:
pois o gozo da virtude é cocal mence i n terior e só é percebido por aquele q'u c
o sente, m as todas as van tagens do vicio i m press,i onam os o lhos alh � ios e
somente aquel e que as cem sabe o que lhe custam.
"Se a ciascun /' interno affenno
Si ieggesu in fronte scritto,
Quanti mai, che lnvidia Janno,
Ci farebbero pietà? ' , 2

1 "Se de cada um o secreto rormenco/Se lesse escrito na fronte/ Quantos há, que causa.m ·
i nveja/ Nos fâriam pena?" Mecascásio, Giuuppt ricanouinta. (N.T.)
1 Ele reria podido acrescentar a contin uação, que é muito bon i ta, e não convém men os .
ao assunto:
"SivttÍria cht i lor ntmici
Anna in uno, t Ji riJ1ut
Ntl partrt a nai foliei
O:ni lar ft/icità (N.A.)
•.

"Ver-se-ia que seus i n i m igos/Têm no coração, e reduz-se/ No parecer a nós felizes/


Toda sua felicidade". (N.T.)

423
Como era tarde, sem que cu o percebesse, o S r . de Wolmar veio juntar·
se a mim e advertir-me de que Júl i a e o chá me esperavam . Sois vós, disse·
lhes desculpando-me que me i mpedíeis de estar convosco: senti-me tio
encantado com minha tarde de ontem que voltei para gozá-la esta manhã;
felizmente não há mal nisso e, visto que me esperastes, minha manhã não
está perdida. É exatamente isro, respondeu a S ra. de Wol mar, ser ia prefe·
ct'
rível esperar até o meio-dia a per e r o prazer de tomarmos juntos o
desjejum. Os estranhos n u nca sio admitidos pela m anhã cm meu quarto e
tomam o desjej um no seu. O desj ej um é a refeição dos a migos, os criados
dele estão excluídos, os imporrunos n ão aparecem, diz-se tudo o que se
pensa, revelam-se todos os segredos, nenhum sentimento é reprimido,
podemos entregar-nos sem i mprudência às doçuras da confiança e da
familiaridade. É quase o ún ico momento cm que é perm i tido ser o que se
é, ah! se durasse o dia i nteiro! Ah! Júlia, estive a ponto de dizer, eis um
desejo bem interessado! mas calei-me. A primeira coisa que eliminei, com
o amor, foi o louvor. Louvar alguém cm sua presença, a menos que não se
trate da p rópria amante, será outra coisa senão dar um preço à vaidade?
Sabeis, Milorde, se é à Sra. de Wol mar que se pode fazer tal censura. Não,
não, honro-a demais para não honrá-la cm silêncio. Vê-la, ouvi la, obser­
var sua conduta n ão é louvá-la suficientemente?

Carta XII

DA SENHORA DE WOLMAR À SRA. D'ORBE

Está escrito, cara amiga , que deves ser, em todas as épocas, minha
salvaguarda · Contra mim mesma e que, após ter-me libertado com tanto
trabalho das armadilhas de meu coração, defender-me-ás ainda das de
minha razão. Após tan tas provas cruéis, ap rendo a desconfiar dos erros "·

como das paixões das quais são com tanta freqüência as o bras. A h ! se tivesse
tido sempre a mesma precaução! Se no passado tivesse contado menos com
m i n has luzes, ter-me-ia envergonhado menos dos meus sentimentos. ,
Que este preâmbulo não te alarme. Seria indigna de rua amizade se
tivesse ainda de consultá-la sobre assuntos graves. O crime sempre foi
estranho ao meu coração e ouso julgá-lo mais afastado do que nunca.
Escuta-me, pois, tranqüilamente, m i nh a Prima, e crê que nunca precisarei
dos conselhos que a honestidade sozinha pode resolver.
Desde que vivo, há seis anos, com o Sr. de Wolmar na mais perfeita
união que possa reinar entre dois esposos, sabes que ele nunca me falou
nem de sua famflia nem de sua pessoa e que, tendo-o recebido de um pai
tão cioso da fel icidade de sua filha do que da honra de sua casa, não mostrei
424
pressa cm saber a seu respeito �ais do que ele julgasse oportuno dizer-me.
Contente· por dever-lhe, com a vida daquele quer a deu, minha honra,
meu sossego, minha ruão, meus filhos e tudo o �uc pode dar-me algu�
valor a meus olhos, estava bem segura de que o que ignorava dele não
desmentiria o que sabia e não precisava saber mais para amá-lo, estimá-lo,
honrá-lo tanto quanto fosse possível. ,
Esta maf!hã, ao desjejum, ele nos propôs um passeio antes d.o calor;
depois; com o pretexto de, dizia, não' andar pelo campo de roupão, levou­
nos aos bosquezinhos e precisamente, minha cara, a esse mesmo bosquezi­
nho onde começaram todas as infelicidades de minha vida. Ao aproximar­
me desse lugar fatal senti me� coração bater horrivelmente e teria recusado
entrar se a vergonha não me tivesse retido e se a lembrança de algumas
palavras que foram ditas no outro dia no Eliscu não me tivessem feito
temer as interpretações. Não sei se o filósofo estava mais tranqüilo mas,
tendo-o olhado pouco depois, por acaso, achei-o pálido, mudado, e não
posso dizer que sofrimento tudo isso me causou.
Ao entrar no bosquezinho vi meu marido olhar-me e sorrir. Sentou-se
entre nós e, após um momento de silêncio, tomando-nos ambos pela mão:
meus filhos, disse-nos, começo a ver que meus projetos não serão vãos �
que poderemos estar unidos, os três, por uma afeição duradoura, própria a
fazer nossa felicidade comum e minha consolação nas dificuldades de uma
velhice que se aproxima: mas conheço-vos a ambos melhor do que me
conheceis, é justo tornar as coisas equivalentes e, embora não tenha nada
de muito interessante e dizer-vos, visto que não tendes ·mais segredos para
. mim, não quero mais tê-los para vós.
Então revelou-nos o mistério de seu nascimento que até agora só meu
pai conhecera. Quando o souberes compreenderás até onde vão o sangue­
frio e a moderação de um homem capaz de calar por seis anos um tal se­
gredo à sua mulher; mas este segredo nada é para ele e pensa nele �uit!)
pouco para que faça um grande esforço calando-o
Não vos deterei, disse, nos acontecimentos de m inha vida, o que pode
interessar-vos é ,conhecer menos minhas aventuras do que meu car�ter.
Elas são simples como ele e, sabendo bem o que sou, compreendereis
facilmente o que pude fazer. Tenho naturalmente uma alma tranqüila e o
coração frio. Sou esse tipo de homem que se pensa injuriar dizendo que não
sente nada, isto é, que não tem nenhuma paixão que o impeça de seguir o
verdadeiro guia do homem. Pouco sensível ao prazer e à dor, sinto mesmo
muito pouco esse sentimento de interesse e de humanidade que faz.cm
·
as as afeições alheias. Se sofro ao v�r sofrer as pessoas de bem, a
pi ade não entra cm causa, pois não a tenho ao ver sofrer os maus. Meu
42 5
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