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o ESPAÇO DO ARQUIVO

Arquivos Pessoais e Arquivos


Institucionais: para um Entendimento
Arquivístico Comum da Formação da
Memória em um Mundo Pós-Moderno
Terry Cook

o presente artigo explora uma questão fundamental da teoria ar­


quivística: os princípios e conceitos arquivísticos rradicionais, que foram desen­
volvidos para os documentos de instiruições, são também relevantes para os
arquivos de indivíduos, famílias e grupos? Em caso afinnativo, como isso afeta
a tarefa do arquivista? Desta análise emergirão também algumas reflexões sobre
a perspectiva metodológica que o arquivista deve adotar hoje, especialmente na
avaliação de documentos para a inclusão em instiruições de arquivo, e na sua
descrição. Este texto é essencialmente teórico, não prático - uma tentativa de

Nota: Este trabalho éa venão revista de uma palestra proferida duas vezes durante o Seminário Internacional
sobre Arquivos Pessoais, realizado no Rio de Janeiro (17-18 de novembro de 1997) e em São Paulo (20-21
de novembro de 1997). O seminário teve o patrocfnio do CPDOC-FGV c do IEB-USP. Além desses
patrocinadores, quero agradecer, por Suas muitas gentilezas durante minha visita ao Brasil e por sua calorosa
hospitalidade, a: Ana Maria de Almeida Camargo, Heloísa Liberalli Bcllouo, Dirce de Paula e Silva Mendes,
Célia Costa, Priscila Fraiz e Luciana Heymann.
Esta tradução é de Paulo M. Garchet, revista por Luciana Hcymann e Priscila Fraiz.

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obter uma perspectiva atualizada dos princípios arquivísticos básicos válida para
o final do século XX . Diante da natureza interdisciplinar do Seminário Interna­
cional sobre Arquivos Pessoais, do qual este trabalho fez parte e, agora, com a
publicação dos trabalhos ali apresentados, talvez seja importante lidar primeiro
com conceitos e princípios, e não com metodologias específicas, para que os não
arquivistas possam participar do diálogo no nível do "por que" os arquivistas
adotam certas estratégias, em vez de "o que" eles realmente fazem no dia-a-dia e
"como" o fazem. O argumento deste trabalho é bastante radical, mas, espero, não
porque eu esteja sendo desnecessariamente provocador, e sim porque estou já há
muitos anos lidando com arquivos eletrônicos e, conseqüentemente, estou vis­
lumbrando o tipo de futuro que os arquivistas logo estarão enfrentando em todas
l
as partes do mundo.
Entre esses dois tipos de arquivos, o público e o pessoal, o oficial e o
individual, existe em muitos países uma divisão incômoda, ou mesmo uma
tensão. Em grande parte da literatura arquivística dos Estados Unidos, por
exemplo, há referências a duas partes distintas da profissão: a tradição dos
2
manuscritos históricos ver:rus a tradição dos arquivos públicos. Na Austrália, é
revelador o titulo do periódico nacional dos arquivistas: Archives andManuscripts,
que ressalta a nítida dualidade que lá encontrei, com alguns arquivistas de
arquivos públicos na verdade ignorando seus colegas que coletam manuscritos,
não os considerando arquivistas, e sim profissionais mais próximos, em seu
trabalho e em sua visão dos documentos, dos bibliotecários ou dos curadores de
museus. Em boa parte da Europa e em muitas de suas antigas colônias, os arquivos
nacionais, via de regra, não recolhem papéis pessoais de indivíduos particulares
(exceto de políticos e burocratas) em bases iguais às dos documentos oficiais do
governo nacional. Esse padrão se repete nos níveis dos governos e arquivos
estaduais, provinciais, regionais e locais ou municipais. Quanto ao destino dos
arquivos pessoais ou dos manuscritos privados, na maioria dos países são adquiri­
dos pela biblioteca nacional, pelas bibliotecas regionais, ou pelas principais
universidades e até mesmo por museus e por institutos de pesquisa ou documen­
tação temáticos ou especializados. Assim é que os diversos domicílios institucio­
nais dos arquivos públicos e pessoais reforçam suas diferenças, tanto quanto o
fazem suas distintas origens e estruturas legislativas.
Uma exceção marcante nessa situação geral é o Canadá, com seu conceito,
há muito implantado, de "arquivos totais". 3 De acordo com essa abordagem de
"arquivos totais", virtualmente todas as instituições arquivísticas do país, com a
Única e lógica exceção dos arquivos de empresas ou corporações privadas, mas
incluindo o arquivo nacional, os arquivos provinciais, regionais, os arquivos das
cidades, das universidades e das igrejas, todos adquiriram, em proporções basi­
camente iguais de capital próprio e de recursos alocados, os arquivos oficiais de seus

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Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais

organismos produtores e os manuscritos ou outras mídias pessoais de indivíduos,


famílias e grupos paruculares. Enquanto em alguns países os arquivos nacionais
ou institucionais oficiais servem, às vezes, como repositórios passivos de certas
categorias de papéis pessoais que estariam de outra forma ameaçados de perda
ou destruição, no Canadá tais papéis pessoais são ativa e agressivamente procura­
dos pelos arquivistas, além dos documentos ou arquivos oficiais.
O documento-proposta do Seminário Internacional sobre Arquivos
Pessoais reconhece duas similaridades importantes entre os arquivos pessoais e
os públicos. Primeiro, ambos são artefatos de registro derivados de uma ativi­
dade; os arquivos são evidências das transações da vida humana, seja ela organi­
zacional, e por conseguinte oficial, seja individual, e portanto pessoal. Diver­
samente de livros, programas de televisão ou obras de arte, eles não são inten­
cionalmente criados por motivos próprios, com a possível exceção dos textos
autobiográficos, mas surgem, antes, dentro de um contexto, como parte de
alguma outra atividade ou necessidade, seja pessoal, seja institucional. Em
segundo lugar, os arquivistaS, tanto nos arquivos públicos quanto nos pessoais,
freqüentemente usam procedimentos técnicos e métodos práticos semelhantes,
em termos de como acessam, descrevem, armazenam fisicamente e conservam
os arquivos e os colocam à disposição para fins de pesquisa.
Contudo, no nível mais profundo dos princípios e conceitos da ciência
arquivística, bem como no âmbito dos diversos tipos de instituições de arquivos
públicos e pessoais e, por conseguinte, das diferentes tradições históricas a que
me referi acima, essas similaridades técnicas parecem se dissolver em divergên­
cias mais fundamentais de perspectiva. O documento-proposta do Seminário
pergunta, por exemplo, "até que ponto pode a acumulação de documentos de um
indivíduo ser comparada com a acumulação por uma instituição como resultado
natural e necessário de suas atividades?" O simples fato de essa pergunta ser
colocada indica que existem dúvidas sobre sua resposta - e, portanto, sobre a
possibilidade de uma estrutura conceitual comum para arquivos públicos e
arquivos pessoais. O documento do Seminário afilma também que os arquivos
públicos, ou institucionais, ou oficiais, são acumulações "naturais e necessárias",
subprodutos orgânicos da atividade administrativa, enquanto os arquivos pes­
soais, conquanto possam ter tal qualidade, freqüentemente são - de novo nas
palavras do documento do Seminário - "produtos de um desejo de perpetuar
intencionalmente uma certa imagem", um "(propósito) concebido que, na ver­
dade, se destina à 'monumentalização' do próprio indivíduo ... "

Essa idéia da diferença fundamental entre arquivos públicos e arquivos


pessoais é muito difundida no pensamento arquivístico tradicional e na maior
parte da literatura sobre o assunto. Os arquivos públicos ou institucionais são
apresentados (e seus defensores sempre afirtnam que é isso o que acontece) como

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acumulações naturais, orgânicas, inocentes, transparentes, que o arquivista pre­


serva de modo imparcial, neutro e objetivo. Essa é a teoria arquivística clássica.
No mundo anglófono, ela é representada por Sir Hilary Jenkinson e seus muitos
discípulos. Em contraste, os arquivos pessoais são apresentados (e os arquivistas
públicos, seus detratores, enfatizam isso) como mais artificiais, antinaturais,
arbitrários, parciais, algo realmente mais próximo de um material de biblioteca,
publicado, como as autobiografias e as memórias, do que de documentos de
arquivos oficiais e públicos. Na verdade, os arquivistas que trabalham com
arquivos pessoais são vistos como mais próximos dos bibliotecários, documen­
talistas e historiadores do que do clássico encarregado de registros públicos
jenkinsoniano. Essa disparidade de perspectivas, verdadeira ou não, é largamente
assumida como verdadeira pelos arquivistas do mundo inteiro, o que é um
problema, pois essas diferenças percebidas levaram, na melhor das hipóteses, a
uma divisão passiva e, na pior, a um acirrado debate entre arquivistas das duas
tradições.
Meu propósito neste trabalho é sugerir que essas afilmativas fundamen­
tais da ciência arquivística tradicional, com suas dicotomias resultantes, são
falsas. Na verdade, da maneira como foram articuladas, nunca foram comple­
tamente verdadeiras - mesmo no caso dos arquivos públicos - dentro do contexto
de seu próprio tempo, e agora, no final do século XX, são extremamente
enganosas. Baseado nas mudanças fundamentais na natureza das instituições
governamentais e empresariais, nos meios dos registros e na natureza dos
processos de geração e manutenção de arquivos; e considerando, ainda, o con­
texto pós-moderno em que vivemos e os novos conhecimentos que estão sendo
desenvolvidos sobre a história e o caráter da memória, irei contestar neste
trabalho a idéia tradicional de arquivos públicos, ou do arquivista institucional
como encarregado neutro, objetivo e passivo dos arquivos, especialmente devido
às novas exigências, tanto para a avaliação quanto para a organização e descrição
de arquivos institucionais, que agora surgem para lidar com os registros eletrôni­
cos, ou gerados por computadores. Meu argumento é que a própria natureza
dessas mudanças conceituais transfolma a tarefa dos arquivistas, tanto dos
arquivos institucionais quanto dos pessoais, e oferece uma perspectiva compar­
tilhada sobre arquivos que, por sua vez, pode levar a uma nova unidade nos
esforços da arquivística, centrada na formação da memória da sociedade.
Da maneira como foram articulados, há exatos cem anos, no famoso
manual holandês de 1898 - que subseqüentemente influenciou os livros-marcos
sobre teoria e metodologia arquivísticas de Sir Hilary Jenkinson, Eugenio
Casanova e Theodore SchelJenberg, na primeira metade do século XX -, os
princípios tradicionais da arquivística derivaram quase que exclusivamente das
experiências pessoais dos autores como custodiadores de arquivos institucionais

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Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais

de governos, e dos problemas com que se defrontaram na organização e descrição


de tais documentos. Os arquivos eram tradicionalmente criados pelo Estado, para
servir ao Estado, como parte da estrutura hierárquica e da cultura organizacional
do Estado. Assim, a teoria, os princípios e as metodologias arquivísticas popu­
larizadas ao redor do mundo por esses autores pioneiros (e por seus inúmeros
seguidores) refletiram de modo nada surpreendente a natureza inerente dos
documentos governamentais e de seus criadores institucionais oficiais, com os
quais os autores estavam intimamente familiarizados. Com exceção, em parte, de
Schellemberg, os arquivos pessoais foram, conseqüentemente, largamente igno­
rados por esses autores.
O professor de arquivística italiano Oddo Bucci comentou recente­
mente, com muita sensibilidade, o trabalho de Eugenio Casanova, cujo grande
livro sobre arquivística foi lançado em 1928. Os comentários de Bucci são
igualmente aplicáveis a J enkinson, que escreveu seis anos antes, ou aos três
autores do manual holandês ou, na verdade, a seus predecessores franceses e
4
alemães. Todos esses pioneiros da arquivística refletiram em seus trabalhos as
correntes intelectuais do século XIX e do início do século XX e, por isso, Bucci
diz que eles "deram à disciplina (arquivística) sua abordagem empírica, cons­
truíram-na como uma ciência descritiva e a ela aplicaram o imperativo da
historiografia positivista, que visava à acumulação de fatos em vez da elaboração
de conceitos ... " Mas a historiografia positivista e o empirismo "factual" estão há
muito desacreditados neste final do século XX. Bucci observa que novas
mudanças estruturais da sociedade "solapam", fundamentalmente, "os hábitos e
normas de conduta, acarretando uma quebra dos princípios que há muito
governavam os processos pelos quais os registros arquivísticos são criados,
·transmitidos, conservados e explorados. Está claro" - continua ele - "que ino­
vações radicais na prática arquivística estão se tornando cada vez mais incom­
patíveis com a persistência de uma doutrina que tenta permanecer fechada por
trás dos bastiões de seus princípios tradicionais". Resumindo, Bucci está dizendo
que os princípios arquivísticos não foram estabelecidos para sempre, e sim, como
a visão da própria história, ou da literatura e da filosofia, refletem o espírito de
seu tempo, sendo reinterpretados pelas sucessivas gerações. A ciência ar­
quivística, ou a teoria tradicional da arquivística não são, apesar do que alguns
arquivistas de documentos públicos ainda gostam de afumar, nem verdade
universal, nem realidade fundamental aplicável a todas as circunstâncias e meios
arquivísticos em qualquer tempo e lugar.
5
Voltemos cem anos no tempo para revisitar o clássico manual holandês.
Lembremo-nos de que o título do livro holandês era Manualfor lhe aTTangement
and description of archives. Os autores holandeses escreveram que o arranjo dos
arquivos sob custódia da instituição arquivística "tem de ser baseado na organi-

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zação original da coleção arquivística, que corresponde, de modo geral, à organi­


zação do órgão administrativo que a produziu". Observem o tempo passado de
"produziu", um ponto ao qual irei retornar. Os autores holandeses consideravam
essa recriação da ordem original, ou o respeito por ela, "a mais importante de
todas as regras ... da qual todas as outras derivam". Acreditavam que respeitando,
ou recriando, a organização dos sistemas originais de registro dos documentos,
o arquivista poderia deixar claro para os pesquisadores o contexto administrativo
em que os documentos foram originariamente criados. E, se o contexto adminis­
trativo fosse assim esclarecido, as funções e atividades desse órgão seriam também
evidenciadas na descrição da proveniência de tal órgão ou agência, pois, nesse
mundo weberiano mais simples, a coincidência entre função e estrutura hierár­
quica (ou organizacional) era quase completa.
Do mesmo modo, atentemos cuidadosamente para o uso similar que
Jenkinson fez do tempo pretérito quando definiu seu grupo de arquivos como a
totalidade dos registros "do trabalho de uma administração que era um todo
orgãnico", ilustrando que seu foco, quando escreveu 24 anos mais tarde, em 1922,
assim como o do trio holandês, estava em documentos da Idade Média e do início
da modernidade, com suas séries completas e fechadas, seus criadores estabeleci­
6
dos e há muito falecidos, e seu status de documentos herdados do passado.
Essa correlação próxima ou, na verdade, exata, feita pelos autores holan­
deses e por Jenkinson, entre estrutura organizacional e sistema de registro de
documentos não é mais verdadeira na maioria das organizações modernas. Hoje
existem numerosos sistemas de atmazenamento de informações, em muitos
meios, em muitas subseções ou subsubseções de uma mesma instituição, que não
mais "correspondem" de perto à organização estrutural interna e às múltiplas
funções do órgão criador que, por sua vez, é cada vez mais complexo, desorgani­
zado, descentralizado, transitório e, até mesmo, de caráter virtual, quando coo­
pera, compartilhando funcionários, com outras organizações na realização de um
trabalho. Tampouco os arquivistas lidam mais primordialmente com séries
fechadas completas de documentos antigos, e sim com acréscimos de documen­
tos vindos de séries correntes, abertas. As revoluções da informática e das
telecomunicações da última década aceleraram radicalmente essa descentrali­
zação, difusão e desorganização, a um ponto tal que as ligações entre uma série
fechada ou fixa de cocumentos, como tradicionalmente se compreende, e uma
estrutura administrativa particular, estável, estão freqüentemente apagadas. As
funções operacionais, os processos empresariais e as atividades de trabalho das
agências cruzam, hoje, todos os tipos de fronteiras estruturais ou organizacionais,
gerando documentos na medida em que o fazem. O trabalho é feito, agora, tanto
horizontalmente quanto verticalmente nas organizações, e os documentos são,
por conseqüência, criados e mantidos de formas diferentes. Infelizmente, a

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Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais

ciência arquivística apenas lentamente está reconhecendo o impacto fundamen­


tal dessas mudanças sobre os princípios tradicionais, que foram desenvolvidos
para documentos e organizações em uma época bem mais simples. Podemos
certamente acreditar no "respeito aos fundos", mas qual é o "fundo" que devere­
mos respeitar neste novo mundo?
Há 11m quarto de século, Peter Scott, da Austrália, demonstrou convin­
centemente que a premissa arquivística tradicional de lima relação lIm-para-um
entre um registro e a administração que o cria não era mais válida como base para
a descrição arquivística, mas poucos arquivistas fora de seu país lhe deram
ouvidos até recentemente? Scott demonstrou claramente que as próprias admi­
nistrações não eram mais, em estrutura ou função, weberianas, ou mono-hierár­
quicas, e sim complexos dinâmicos sempre em mutação, assim como seus
sistemas de arquivos. A solução de Scott(ampliada por sucessores tais como Chris
Hurley) foi se afastar da descrição dos registros arquivísticos organizados em um
único grupo, ou fundo, para um criador único de documentos, e passar, ao invés,
a uma descrição das múltiplas inter-relações entre numerosos criadores e várias
séries de documentos, suas motivações funcionais e seus contextos mais amplos.
Tais inter-relaçoes não são relações fixas, de um-para-um, como nas abordagens
arquivísticas tradicionais de arranjo e descriçao; elas são, antes, relações de
muitos-para-um, um-para-muitos e muitos-para-muitos: são, por exemplo, re­
lações entre várias séries e um criador, entre vários criadores e uma série, entre
muitos criadores e muitas séries, entre criadores e outros criadores, entre séries
e outras séries e entre séries e criadores para funções e vice-versa, entre funções
correntes e suas predecessoras ou sucessoras, entre agências mais antigas e
documentos de suas sucessoras - uma infinita riqueza de quase todo tipo
concebível de inter-relacionamento contextual entre documentos, criadores e
funções. O que os australianos fIZeram foi levar a descrição arquivística, da
catalogação estática, para um sistema de inter-relacionamentos dinâmicos. Fize­
ram-no com a intenção explícita de enfatizar o princípio da proveniência, isto é,
enriquecendo a compreensão do complexo contexto da criação de documentos.
Os insighlS de Scott estão sendo ressuscitados agora, tanto para o mundo dos
documentos eletrônicos quanto para a descrição arquivística de hipertextos
interligados aos sites da Internet. Em um nível mais profundo da teoria ar­
quivística, a abordagem australiana abala a visão clássica do arranjo e descrição
arquivísticos e deve, portanto, fazer-nos questionar também a santidade de vários.
outros conceitos arquivísticos tradicionais para arquivos públicos que se basea­
ram nessas abordagens mais antigas.
A teoria moderna de avaliação também reforça os insights de Scott sobre
o mundo da descrição e reflete igualmente o impacto dos documentos eletrônicos
sobre o pensamento arquivístico. Como há agora bilhões de documentos de

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estudos hist6ricos e 1 998 - 21

multimídia para avaliar; como fal avaliação deve, freqüentemente, ser feita no
estágio de desenho do sistema de computador, antes que um único documento
tenha sido criado; como as organizações criadoras de documentos são fluidas,
instáveis, poli-hierárquicas e interligadas horizontalmente em rede; e como os
registros das unidades de serviço agora duplicados ou armazenados em um
arquivo do servidor central (ou computador centralizado) não têm, geralmente,
nenhuma divisão interna significativa por estrurura, função, assunto ou atividade
empresarial, as abordagens de avaliação mais recentes estão centradas na apre­
ciação das funções, programas e atividades do criador de documentos e daqueles
que com ele interagem, em vez de enfocar os documentos individuais ou grupos
de documentos e seus possíveis usos, codificando então os resultados da avaliação
diretamente nos sistemas de operação e softwares do computador, para classificar
os registros arquivísticos, separando-os dos demais, que podem ser destruídos.
A nova estrurura analítica para a avaliação rejeita, assim, os princípios arquivísti­
cos tradicionais de arranjo e descrição, que preconizam uma congruência exata
entre a função criadora, a estrutura criadora e seu sistema de armazenamento de
informações. Ao invés, a nova abordagem reconhece que as funções agora são
multi-institucionais e que dentro de cada instituição há numerosos sistemas de
8
armazenamento de informações, com uso de vários meios.
A nova macro avaliação funcional-estrutural de que o Canadá foi
pioneiro, e que está agora sendo implantada em vários países, enfatiza o valor
arquivístico da posição, local ou funcionalidade da criação de documentos, em
lugar do valor dos documentos por eles mesmos. Permitam-me explicar isso em
detalhe. Os documentos seguem funções; são criados como produto do trabalho
em várias atividades ou transações. No antigo, e muito mais simples, mundo dos
arquivos de papéis, uma subseção particular dentro de uma instituição tinha a si
atribuída a competência total para a execução de alguma função, subfunção ou
atividade, e seus arquivos refletiam a totalidade dessa função. Agora, nas com­
plexas e instáveis burocracias de nossos dias, especialmente com seus sistemas
eletrônicos computadorizados, não há "arquivos" criados naruralmente nesses
computadores para os inúmeros trabalhadores que estejam contribuindo para
uma deternlÍnada atividade, ou "arquivo". Os "arquivos", portanto, têm de ser
"gerados". Como? A abordagem sugerida ao arquivista é que faça uma pesquisa
cuidadosa sobre a funcionalidade de uma instituição (isto é, que identifique suas
funções, subfunções ou subsubfunções, seus programas e atividades, tanto os
rotineiros quanto os especiais, e a natureza de suas transações, de sua clientela e
de suas (mutantes) estruturas internas); que analise, então, quais funções, pro­
gramas, atividades, transações ou tipos de clientes, ou de interações com os
clientes etc., têm significância arquivística; que trabalhe, então, com os pro­
gramadores de computador para elaborar inslI1.\ções de software que levem os

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Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais

computadores a criar arquivos virtuais para as funçoes e atividades que julgue de


valor permanente, de modo tal que o computador passe automaticamente a salvar
esses registros (e-mails, correspondência, relatórios, tabelas, gráficos etc.) como
"arquivos" que são organizados, auto-indexados e auto-separados para preser­
vação arquivística. Espera-se, é claro, que a instituição que cria os arquivos
aplique a lógica dessa metodologia a todos os seus registros, e nao apenas àqueles
com valor arquivístico, gerando assim eficiência administrativa e memória
corporativa.

Essa nova abordagem da avaliaçao, ou macroavaliação, como a descrevi,


requer, evidentemente, que os arquivistas pesquisem esses fenômenos com
extremo cuidado, de modo a assegurar às instituições (ou a seus segmentos
funcionais) a capacidade de criar registros de valor arquivístico de uma forma
global, em vez de tentar avaliar diretamente, uma por uma, as dezenas de milhares
de séries de documentos, bases de dados e coleções de mídia que qualquer
jurisdição de porte conterá e, muito menos, os bilhôes de arquivos, documentos
ou imagens, ou seus ainda mais impalpáveis equivalentes ou substitutos eletrôni­
cos. No novo mundo dos documentos eletrônicos, essa análise funcional e as
decisões de avaliação dela resultantes devem ser incorporadas desde cedo ao
processo de criação de documentos, idealmente no estágio de desenho do sistema
de computador, antes mesmo que o primeiro documento tenha sido criado, e não
tempos depois da criação e uso do documento, quando pode haver o benefício de
uma visão retrospectiva e de Qma perspectiva histórica ao se decidir sobre a
avaliação. Porque, no caso dos registros eletrônicos, com seus documentos
transitórios e virtuais, suas bases de dados relacionais e de propósitos múltiplos,
e suas redes de comunicação informais, e não hierarquizadas, que englobam
várias instituições, ne nhum registro confiável chegará sequer a sobreviver para ficar à
espera de que o arquivista o preserve "após o fato" - a menos que o arquivista
intervenha na vida ativa do documento, de modo semelhante ao que sugeri acima,
influenciando assim o comportamento organizacional dos criadores de registros,
suas culturas de trabalho e o desenho de seus sistemas de computadores ou
estratégias de implementação, preferivelmente antes que o primeiro documento
9
tenha sido de fato criado.
,

E importante lembrar que a própria avaliação é uma mudança impor­


tante no cerne do pensamento arquivístico ocorrida depois de 1898 ou, na
verdade, a partir de Jenkinson, em 1922. O manual holandês virtualmente
silencia sobre esse assunto. O próprio Jenkinson disse que, uma vez que os
documentos eram os subprodutos naturais da administração, nenhuma inter­
ferência do arquivista após sua criação poderia ser admitida, sob pena de ver-se
abalado seu caráter de evidência imparcial. Desejando-se preservar as alegadas
inocência e transparência dos documentos, em um contexto arquivístico,

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estudos históricos. 1 998 - 21

qualquer avaliação do arquivista seria, para J enkinson, totalmente inadequada.


Um tal exercício de "julgamento pessoal" pelo arquivista, que Jenkinson sabia
estar inevitavelmente envolvido, macularia a imparcialidade da evidência dos
arquivos, como o faria também, é claro, qualquer consideração de preservar os
arquivos de um modo que atendesse às necessidades, reais ou projetadas, de seu
uso pelos pesquisadores. Para Jenkinson, o papel do arquivista seria manter, não
selecionar arquivos. Essa visão, conquanto compreensível quando aplicada a
pequenos volumes de documentos raros da Idade Média e do início da Era
Moderna, que tinham, primordialmente, uma natureza legal ou de titularidade,
,

é completamente inadequada ao mundo moderno. E até irresponsabilidade do


arquivista adotar tal posição diante dos grandes volumes e da frágil natureza
eletrônica dos documentos deste final do século XX . A própria avaliação, espe­
cialmente nas novas formas com vem sendo atualmente concebida, desafia,
10
assim, fundamentalmente, a teoria arquivística tradicional.
Essas mudanças que estão ocorrendo nos conceitos e metodologias
arquivísticas para trato com documentos públicos e institucionais (que são os
únicos com que lidei até o momento) indicam uma imponante alteração na fonte
da teoria arquivística. Há um século, os princípios arquivísticos derivavam de
uma análise de documentos individuais baseada na diplomática ou, como já
vimos, das regras criadas pelos autores holandeses, por Jenkinson, Casanova e
outros, para o arranjo e descrição de séries fechadas de ·documentos oficiais
recebidos por arquivos, oriundos de instituições governamentais estáveis e
mono-hierárquicas. Nenhuma seleção ou redução da totalidade dos documentos
originariamente criados era bem-vinda, e ficava por conta do criador ou, nas
palavras de Jenkinson, "administrador", sendo feita muito antes de os documen­
tos chegarem à instituição arquivística, sem qualquer envolvimento de um
arquivista na avaliação. O que se precisa agora é de uma perspectiva teórica bem
diferente: já que, como acabamos de observar, existem bilhões de séries correntes
de registros em multimídia a serem avaliadas dentro de organizações instáveis;
já que a avaliação, freqüentemente, deve ocorrer no estágio de desenho do sistema
de computador, antes que um único documento tenha sido sequer criado, e já
que a descrição, cada vez mais, reflete ou incorpora metadados de sistemas de
computador que atravessam antigas fronteiras estruturais ou de "séries" e, na
verdade, antes inter-relaciona de várias maneiras do que cataloga suas infor­
mações, o enfoque da teoria arquivística deslocou-se, por conseguinte, do próprio
registro para seu contexto, ou processo funcional de criação; do artefato físico
para a "a ação e O ato em si mesmos" que fizeram com que aquele anefato fosse
criado. A teoria arquivística se inspira agora, ponanto, mais na análise dos
processos de criação de documentos do que no arranjo e descrição de produtos
documentados em arquivos. Como concluiu Eric Ketelaar, que até este ano foi

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Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais

diretor do Arquivo Nacional da Holanda, "a ciência arquivística funcional


substitui a ciência arquivística descritiva, ... é apenas através de uma interpretação
funcional do contexto que cerca a criação de documentos que se pode entender
a integridade do fundo e as funções dos documentos arquivísticos em seu
lI
contexto original".
Todas essas mudanças fundamentais no mundo real das organizações e
dos sistemas de álmazenamento de documentos têm um impacto significativo
sobre as tarefas e responsabilidades do arquivista. Como sua intervenção ativa
nos processos de manutenção de documentos é agora exigida para que fique
assegurado que as propriedades de evidência confiável existam para os documen­
tos, como disso resulta, na base da moderna avaliação (e posterior descrição), a
necessidade de que o arquivista investigue e compreenda a natureza complexa
de funções, estruturas, processos e contextos, e interprete sua importância rela­
tiva, por tudo isso, a idéia tradicional da imparcialidade do arquivista não é mais
aceitável - se é que algum dia o foi. Os arquivistas, inevitavelmente, injetarão
seus próprios valores em todas essas atividades, bem como na própria escolha
que terão de fazer, nesta era de recursos limitados, sobre quais criadores, quais
sistemas, quais funçoes, quais programas, quais atividades, quais documentos,
na verdade, irão receber atenção arquivística parcial ou total e quais serão
simplesmente abandonados. Assim, os arquivistas mudaram no último século,
passando, dos custodiadores jenkinsonianos passivos da totalidade.dos resíduos
documentais deixados por seus criadores, a ativos confolmadores da herança
arquivística. Evoluíram de uma suposta posição de guardiães imparciais de
pequenas coleções de documentos herdados da Idade Média, para tomarem-se
agentes intervenientes que estabelecem os padrões de arquivamento e deliberam
sobre qual pequena fração do universo de infolmações registradas será se­
lecionada para a preservação arquivística. Tomaram-se, assim, construtores
muito ativos da memória social. Na verdade, afillllaria até que se tomaram o
principal agente de formação da memória, sem esquecer das imponantes con­
tribuições, nessa tarefa, de seus colegas dos museus, bibliotecas, e cultura mate­
rial.
Essa perspectiva que venho desenvolvendo é conscientemente, embora
implicitamente, pós-moderna, assim como os princípios arquivísticos tradicio­
nais que estou questionando estão profundamente enraizados no modernismo,
ou até no pré-modernismo. Pelmitam-me esboçar mais explicitamente algumas
formulações pós-modernistas, visando, é claro, suas implicações documentais e,
12
por conseguinte, arquivísticas.
O pós-moderno desconfia da idéia de verdade absoluta baseada no
13
racionalismo e no método científicos. O contexto por trás do texto, as relações
de poder que confolmam a herança documental lhe dizem tanto, se não mais,

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estudos históricos • 1998 - 21

que o próprio assunto que é o conteúdo do texto. Nada é neutro. Nada é imparcial.
Tudo é confOlmado, apresentado, representado, simbolizado, significado, assi­
nado, por aquele que fala, fotografa, escreve, ou pelo burocrata governamental,
com um propósito definido, dirigido a uma determinada audiência. Nenhum
texto é um mero subproduto, e sim um produto consciente para criar umapersona
ou servir a um propósito, embora essa consciência, oupersona, ou propósito - esse
contexto por trás do texto - possa ser transformado, ou perdido, em padtões
inconscientes de comportamento social, em discurso institucional e em fórlllulas
padronizadas de apresentação de informações. Os pós-modernistas procuram
desnaturalizar o que presumimos natural, o que, por gerações, talvez séculos,
aceitamos como normal, natural, racional, provado - simplesmente, o jeito de ser
das coisas. O pós-modernista toma tais fenômenos "naturais" - seja o patriarca­
lismo, o capitalismo, a religião ou, poderia eu acrescentar, a ciência arquivística
tradicional - e afilü13 que são "antinaturais", ou "culturais" ou, no mínimo,
"construções sociais" de um tempo, lugar, classe, gênero, raça etc. especificos.
Mais ainda, os pós-modernistas vêem explicitamente os arquivos como fragmen­
tos de universos de documentos agora perdidos ou destruídos. Encaram os
próprios documentos como espelhos distorcidos que alteram os fatos e realidades
passados, mas, ironicamente, consideram que servem como "sinais ... dentro de
contextos já semioticamente construídos, contextos que são, eles mesmos, de­
pendentes de instituições (no caso de registros oficiais) ou indivíduos (se forem
relatos de testemunhas oculares)". 14
Se o modernista do século XX criticava a idéia de fato ou verdade
histórica, o pós-modernista critica a idéia de documento. Jacques Le GofI observa
que "o documento não é matéria-prima objetiva, inocente, mas expressa o poder
da sociedade do passado (ou da atual) sobre a memória e o futuro: documento é
o que fica". O que vale para cada documento vale também, coletivamente, para
os arquivos. Não é por coincidência que os primeiros arquivos foram os arquivos
reais da Mesopotâmia, do Egito, da China e da América pré-colombiana. A capital
torna-se, nas palavras de Le GofI, "o centro de uma política de memória" onde
"o rei desenvolve pessoalmente, por todo o território sobre o qual tem controle,
um programa de recordação do qual ele próprio é o centro". Primeiro a criação,
depois o controle da memória levam ao controle da história, daí à mitologia e,
por último, ao poder.15 Essa ênfase inicial persistiu. Os arquivos medievais, como
o descobrem agora os acadêmicos, foram coligidos - e com freqüência posterior­
mente re-selecionados e reconstruídos - não apenas para conservar a evidência
das transações legais e comerciais, como também, explicitamente, para servir a
propósitos históricos e sacro/simbólicos - mas apenas para os personagens e
eventos julgados merecedores de celebração, ou memorialização, no contexto de
seus tempos.16 Colocando-se em um ponto de vista oposto, o daqueles que foram

140
Arqllivos Pessoais e Arqllivos ]JlstitllciOl.ais

marginalizados pelo empreendimento arquivístico, a historiadora feminista


americana Gerda Lerner acompanhou convincentemente, da Idade Média ao
nosso século, a exclusão sistemática das mulheres dos instrumentos e instituições
de memória da sociedade, dos arquivos inclusiveY Revela-se agora que os
arquivos da Primeira Guerra Mundial sofreram manipulações e alterações im­
portantes para fazer que o marechal de campo Sir Douglas Haig parecesse menos
culpado pelo massacre do front ocidental sob seu comando e no qual teve grande
responsabilidade.18 E ainda de outro ponto de vista, os arquivistas dos países em
desenvolvimento estão agora questionando seriamente se os conceitos clássicos
da arquivística, originados na cultura escrita das burocracias européias, são
adequados para a preservação das memórias de culturas orais. Em resumo, os
pós-modernistas entendem que todos os atos de recordação da sociedade são
subordinados à cultura e têm implicações ligadas ao seu tempo.
Que significado tem qualquer dessas questões para os arquivistas? Em
um certo nível, o pós-modernismo é tranqüilizador para os arquivistas: sua
preocupação com "os contextos semioticamente construídos" de criação de
documentos espelha claramente a preocupação com a contextualidade há muito
manifestada pela arquivística no mapeamento das inter-relações de proveniência
entre o criador e o documento, na determinação do contexto pela leitura através
e por trás do texto. Contudo, em um nível ainda mais profundo, o pós-moder­
nismo (e a nova historiografia correlata sobre construção da memória social)
deveria incomodar os arquivistas, levando-os a questionar cinco mitos centrais,
ou tradições, de sua profissão: 1) o de que os arquivistas são guardiães neutros,
imparciais da "Verdade", para usar as próprias palavras de Jenkinson; 2) o de que
os arquivos, como documentos e como instituições, são subprodutos desinteres­
sados das ações e administrações; 3) o de que a proveniência tem raízes em um
único órgão de origem ou transmissão, em vez de em um processo de criação; 4)
o de que a "ordem" imposta aos arquivos por meio do allanjo e descrição
arquivísticos - para não falarmos da avaliação! - é uma recriação isenta de valores
de alguma realidade genuína anterior; e 5) o de que a arquivística é uma ciência
- pelo menos uma "ciência" como esse termo é tradicionalmente concebido e
utilizado pelos arquivistas, produto da idade do racionalismo científico. Restam
questões mais profundas, como Le Goff, Lerner e outros historiadores da
memória indicam. Quem estamos nós, como arquivistas, memorializando agora?
E quem, hoje, marginalizamos e excluímos da memória social por nossas ações
e omissões?
Desde que Thomas Kuhn escreveu, em 1962, sobre paradigmas cientifi­
cos - e vários autores desde então, especialmente as críticas feministas -, o
conceito de ciência foi radicalmente modificado por um reconhecimento de sua
natureza subjetiva, onde antes a ciência fora caracterizada como objetiva, neutra,

141
estudos históricos • 1 998 - 21

19
impessoal e desinteressada. A ciência arquivística, em minha opinião, não é
diferente. Em qualquer ciência, as opções de projetos, métodos e praticantes, os
padrões de excelência e aceitação, e as razões para exclusões e reprovações, as
escolhas que faz ao alocar os recursos que tem e treinar seus profissionais, tudo
reflete necessidades e interesses atuais e disputas mais profundas de poder social,
lingüístico, ideológico, de gênero, de classe, racial, étnico e de padrões emocionais.
Há aqui uma importante lição para os arquivistas. Assim como os
cientistas, os arquivistas são (e sempre foram) parte importante do processo
histórico em que se encontram - e parte importante, também, do legado do
racionalismo científico criticado por Foucault e outros pós-modernistas. Minha
recomendação é que os arquivistas deveriam aceitar, em vez de negar, sua própria
hístoricidade, ou seja, deveriam reconhecer, ao invés de negar, sua própria
participação no processo histórico. Não são historiadores, mas fazem parte do
processo histórico, em vez de dele estarem distanciados. Deveriam, portanto,
reintegrar o subjetivo (isto é, a mente, o processo, a função) com o objetivo (isto
é, a matéria, o produto documentado, o sistema de infOImações) em seus cons­
tructos teóricos e em suas metodologias estratégicas. Então, uma vez livres dos
mitos da objetividade e imparcialidade jenksionianas, de ixarão de ter motivos
para não integI3c os arquivos públicos e os pessoais dentro de um enfoque teórico
comum centrado na construção da memória social e coletiva. Perceberão, então,
que os arquivistas de arquivos públicos ou institucionais têm tantas dificuldades
e escolhas discricionárias a fazer quanto os arquivistas de arquivos pessoais.
Ambos são igualmente arbitrários e artificiais, ao menos de uma perspectiva
jenkinsoniana. Ambos, ativamente, criam e confol'mam, filtram e distorcem
arquivos, em vez de, passivamente, preservarem arquivos que lhes teriam sido
entregues de alguma maneira impossivelmente neutra ou objetiva. Por con­
seguinte, rompamos as barreiras artificiais - ao menos no nível da teoria e dos
conceitos profissionais básicos - que por tempo demasiadamente longo vêm
dividindo as tradições de arquivos pessoais e arquivos públicos. Consideremos,
ao invés, uma perspectiva de "arquivos totais" - se não dentro de cada instituição
arquivística no Brasil, devido talvez a restrições legislativas e de mandato, então,
pelo menos, dentro da malha arquivística global brasileira.
O conceito canadense de "arquivos totais" pode servir de modelo aqui,
pois integra, em quase todos os tipos de arquivos por todo o país, o papel oficial
dos arquivos, como guardiães da continua demanda corporativa de seus patroci­
nadores pela evidência documentada de suas transações, e o papel cultural dos
arquivos, como preservadores da memória social e da identidade histórica, dando
a suas coleções, em ambos os casos, um equilíbrio entre os arquivos oficiais e
pessoais em todas as foxmas de mídia. Os "arquivos totais" refletem, assim, uma
visão mais ampla dos arquivos, sancionada pela sociedade como um todo e reflexo

142
Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais

dela, em vez de uma visão conformada a priori, ou por poderosos grupos de


interesse dos usuários, ou pelo Estado. No Canadá, os arquivos pessoais são vistos
como complemento e suplemento dos fundos de arquivos oficiais ou públicos.
Em resumo, a tradição dos "arquivos totais" canadenses está mais voltada para
os arquivos de governança que para os arquivos de governo. Arquivos "de gover­
nança" incluem os documentos que refletem a interação dos cidadãos com o
Estado, o impacto do Estado sobre a sociedade e as funções ou atividades da
própria sociedade, tanto quanto incluem os documentos das estruturas do gover­
no e de seus burocratas voltados para dentro. A tarefa arquivística coletiva no
Canadá é preservar a evidência documentada da governança da sociedade, não
20
apenas da atividade governante dos governos.
Os arquivos são templos modernos- templos da memória. Como insti­
tuições, tanto como coleções, os arquivos servem como monumentos às pessoas
e instituições julgadas merecedoras de serem lembradas. Igualmente, as que são
rejeitadas por serem julgadas não merecedoras, têm seu acesso negado a esses
templos da memória e estão fadadas, assim, ao esquecimento de nossas histórias
e de nossa consciência social. Isso é de vital importância, pois o novelista tcheco
Milan Kundera nos lembra que "a luta contra o poder é a luta da memória contra
o esquecimento". O controle do passado, e o controle sobre a criação e preservação
do passado pelos arquivos, reflete as lutas de poder do presente e, na verdade,
sempre as refletiram. Isso tem implicações relevantes para os arquivistas, tanto
de arquivos pessoais quanto de arquivos institucionais, e para a profissão ar-
• •

qwvlsnca.

Há mil anos, quando a sociedade passou do registro oral para o escrito,


o enfoque dos arquivistas também mudou, da lembrança da ação para o cuidado
dos artefatos escritos que davam testemunho da ação. Agora, à medida que a
sociedade passa, junto com um novo milênio, dos documentos escritos fixos para
documentos eletrônicos virtuais, e de organizações estáveis para outras, tran­
sitórias, os arquivistas também precisam mudar o foco primordial de sua atenção,
deixando o cuidado daqueles artefatos físicos (os documentos) para passar à
pesquisa e ao entendimento das funções e atividades dos criadores de documen­
tos, e dos processos correlatos de geração de registros, para que os arquivos
. possam efetivamente ser criados. Se, ao fazerem essa reorientação que lhes é
exigida, vierem também a aceitar, em vez de negar, sua própria historicidade e
seu papel ativo na construção da memória social, os arquivistas reconhecerão,
então, no nível mais essencial, a natureza comum dos arquivos públicos e
pessoais. Ironicamente, essa nova unidade de propósitos não virã se perguntar­
mos, como os arquivistas tendem a fazê-lo, se os arquivos pessoais podem se
confolmar aos tradicionais e sagrados princípios há muito usados para os ar­
quivos públicos e institucionais, e sim se as instituições arquivísticas e seus

143
estudos históricos. 1 998 - 21

arquivistas conseguirem reconhecer a necessidade de modificar vários de seus


princípios tradicionais de modo a adotar a mesma perspectiva em relação aos
21
arquivos, à história e à memória que adotam seus colegas dos arquivos pessoais.
Nessa idéia da construção da memória coletiva e na necessidade atual de
um entendimento mais profundo dos processos funcionais da sociedade e de suas
instituições para se empreenderem as novas metodologias de avaliação e des­
crição, há, parece-me, alguns férteis conceitos, enfoques estratégicos e inspirações

comuns para arquivistas tanto de arquivos institucionais quanto de pessoais.


"Recordar", para o indivíduo é, afinal, tanto pessoal quanto social, tanto interno
quanto externo, tanto privado quanto público. Assim também deve sê-lo, coleti­
vamente, para os arquivos que são criados para ajudar a sociedade a lembrar-se
de seu passado, de suas raízes, de sua história, que, por definição, combina o
público e o pessoal. Esta é uma visão que poderá ser alcançada no século XXI, se
os arquivistas deixarem de ser mantidos prisioneiros pelo pesado jugo de suas
próprias tradições ultrapassadas.

No tas 3. A melhor análise é a de Wilfred I.


Smith, "'Total archives': the canadian
experience" (texto de 1986), in Tom
Nesmith, Canadian archival studies and lhe
rediscuvery ofprovenance (Meruchen, N. J.,
1. A argumentação apresentada neste 1993), p. 133-50. Para uma visão de apoio,
trabalho segue, em parte, a de dois outros mas crítica, do conceito de implantação,
de minha autoria: "Electronic records, ver Terry Cook, "The tyranny of the
paper minds: the revolutíon in medium: a camment on 'total archives"",
infonnation management and archives in Archivaria 9 (inverno de 1979-80), p.
the postcustodial and pasonodemist 141-49. Ver também Shirley Spragge,
era", Archives and Manuscripts 22 (nov. "The abdication crisis: are archivists
1994), p. 300-29; e "What is past is giving up (heir culrural responsibility?",
prologue: a history af archival ideas since Archivaria 40, (oUlono 1995), p. 173-81.
1898, and the furure paradigm shift",
Archivaria 43 (primavera de 1997), p. 4. Para o contexto italiano e o trabalho de
17-63. Esses ensaios são extensivamente Casanova, ver Oddo Bucci, ed.,Archival
documentados, e os leitores são a eles science on lhe lhreshold oflhe year 2000
remetidos para referências mais (Macerata, Itália, 1992), p. 17-43. As
completas. As notas que acompanham o citações são das p. 34-35 e de sua
presente texto pretendem sugerir as "Introduction", p. 1 1 .
melhores leituras sobre os argumentos
apresentados, e não formar uma lista 5. S. Muller, J. A. Feith e R. Fruin,
exaustiva de todas as fontes possíveis. Manualfor the arrangeme711 and description
ofarchives (1898), rradução (1940) da 2'
2. A melhor visão geral está em Richard ed. por Anhur H. Leavitt (Nova Iorque,
C. Berner, Archival theory and pracúce in reeditada em 1968), p. 13-20, 33-35,
lhe Uniled States: a historlcal analysis 52-59. A melhor história do manual em
(Seatde e Londres, 1983). inglês está em Marjorie Rabe Barritt,

144
Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais

'CComing to America: dutch archivistiek Craig, The archival imagination: essays in


and american archival practice", Archival hanour ofHughA. Taylor (Ottawa, 1992),
lssues 1 8 (1993), p. 43-54. Mais p. 38-70; e Terry Cook, Tlte archival
recentemente, ver Comelis Dekker, "La appraisal ofrecords conraining pmonal
Bib1e arch.ivistique néer1andaise et ce in/VImation: a RAMP study with guidelines
qu'il eo est advenu", in Bucci,Archival (paris, 1991). Para a abordagem em si, ver
seience on lhe IhresJwId, p. 69-79. A melhor Terry Cook, "Ao appraisal methodology:
fonte de informações biográficas sobre o guidelines for performing an arcbival
trio holandês, inclusive suas relações appraisal", (dez 1991); e Terry Cook,
I.nterpesso31s oao mtclramcnte
. . .
- '

"Government-wide pIan for the


agradáveis, é Eric Kcte1aar, "Muller, disposiúon ofrecords 1991-1996" (out
Freith and Fruin", Archives el 1990), ambos relatórios para os National
Bibliolheques de Belgique 57 (nO 1-2, 1986), Archives. Para uma sofisticação proposta
p. 255-68. para essas metodologias, embora ainda
6. Hilary Jenkinson, A manual ofarchi'lJe necessitando estratégias de implantação
administration (Londses, 1968, reedição da mais completas, ver o trabalho feito pelo
colega de Cook, Richard Brown,
2' ed. revista de 1937), p. 149-55, 190.
"Records acquisition strategy and its
7. A melhor exposição do Sistema theoretical foundation: the case for a
Australiano de Séries (incluindo uma concept of archival hermeneutics",
relevante reconceituação e atualização Archivaria 33 (inverno de 1991 -92),
das idéias de Scott) pode ser encontrada p. 34-56; e Richard Brown,
em Sue McKemmish e Michael Piggott, "Macro-appraisal theory and the contcxt
eds., The records continuum: Ian Mac/ean ofthe public records creator",Archivaria
and Australian Archivesfim 50ycan 40 (outono de 1995), p. 121-72.
(Clayron, 1994), especialmente nos Inspirações anteriores da abordagem
ensaios de Sue McKemmish e Chris canadense são encontradas, em um nível
Hurley. Para o núcleo de suas idéias, ver conceitual e até fLlosófico, em Hans
Peter Scott, "The record group concept: Booms, "Society and the formation of a
a case for abandonment", Amcrican docurnentary heritage: issues in the
Archivisl 29 (Out 1996), p. 493-504; e sua appraisal of archival sources",Archivaria
série em cinco capírulos com diversos 24 (verão de 1987), (original de 1972:
co-autores: "Archives and administrative tradução de Hermina Joldersma e
change - some methods and approaches", Richard Klumpenhouwer); e na
Archives and Manuscriprs 7 (ago 1978), estratégia de documentação desenvolvida
p.1 l5-27; 7 (abr 1979), p. 1 5 1 -65; 7 (mai nos Estados Unidos por Helen Samue1s:
1980), p. 41-54; 8 (dez 1980), p. 5 1-69; e 9 ver seu "Who controIs the past",
(set 1981), p. 3-17. Pasa uma importante American Archivisl 49 (primavera de
expansão australiana da posição de Scolt, 1986), p. 109-24. Um artigo posterior
ver Chsis Hurley, "Wbat, if anything, is a atualiza o tema e contém referências
function",Archives and Manuscripts 2 1 cruzadas adicionais; ver Ricbard J. Cox e
Helen W Samuels, "Tbe arcbivist's first
(nov 1993), p. 208-20; e seu "Ambient
functions: abandoned children to zoos", responsibility: a research agenda to
Archivaria 40 (outono de 1995), p. 21-39.
improve the identification and retention
8. Para a reconceituação canadense da ofrecords of enduring value", American
teoria e da metodologia da avaliação, os Archivisl 5 1 (inverno-primavera de 1988),
principais trabalhos são: Terry Cook, p. 28-42. Uma importante revisão do
uMind over matter: towards a new theory pensamento de Samuels, que se afasta das
of arcbival appraisal", in Barbara L. bases "temáticas", ou "por assunto" da

145
estudos históricos • 1 998 - 21

estratégia de documentação e se management program strategies (pinsburgh,


aproxima da posição "funcional", ou de 1993), p. 82-98. Um antigo pioneiro do
"proveniência-transação" da abordagem arquivamento eletrônico foi Charles M.
de macroavaliação canadense, está em Dallar; ver um resumo feito em um
Helen Wma Sarouels, lffl(Y l3i letters: ponto avançado de sua carreira em seus
documenting modem ",/leges and Archival tlwory and inlo",aation technoÚJgies:
universitites (Meruchen, N. J., e Londres, the impact 01information technoÚJgies on
1992), p. 15 e passim. Ver também sua archival principies and methods (Macerara,
panorâmica das estratégias de Itália, 1992); e "Archival theory and
documentação e das análises funcionais practices and informatics. Some
in Helen W. Samuels, "Improving our considerations", in Bucci, Archival science
disposition: documentation strategy", on the threshold, p. 311-28. Uma das
Archivaria 33 (inverno de 1991-92), primeiras vozes canadenses foi Harold
p. 125-40. Para a critica da própria N augler, The archival approiJal 01
estratégia de documentação, ver David machine-readable records: a RAMP sl1Idy
Bearman, Archival methods (Pittsburgh, with guidelines (paris, 1984). Os dois -
1989), p. 13-15; e Terry Cook, ensaios de Terry Cook mencionados na
"Documentation strategy" , Archivana 34 nota 1 acima são f3mbém relevantes para
(verão de 1992), p. 1 81-91. o tema do arquivamento de registros

9. E imensa a literatura sobre eletrônicos; ver, ainda, Terry Cook,


documentos e arquivos eletrônicos, na "Keeping our electronic memory:
qual muitos dos conceitos que mencionei approaches for securing computer
nestas páginas são elaborados. generated records", South African Archives
O principal pensador mundial é David Joumal 37 (1995), p. 79-95. Para lima
Bearman; dez de seus melhores ensaios crítica detalhada dos desvios no
estão agora coligidos em David Bearman, arquivamento dê registros eletrônicos à
Electtunic evidence: strategies for managing medida que estão se desenvolvendo, bem
records in cont.emporary organizations como para uma análise de seus pontos
(pittsburgh, 1994); e lima larga gama de positivos na afirmação da relevância da
seus comentários e análises aparece arquivística na proteção da evidência em
através de todos os mímeros deArchives contexto na Era da Informação, ver Terry
and Museum lnfOlmarics, que editou Cook, "The impact of David Bearman on
durante lima década (até 1996). A outra modem archival thinking: an essay of
voz principal tem sido Margaret persanal reflection and critique", Archives
Hedstrom: ver seu desbravador manual andMuseumlnfa,matics 1 1 (1997),
SAA, Archives and manuscriplS: p. 15-37.
machine-readable recorlh (Chicago, 1984); Várias estratégias evoluíram ou, pelo
e, mais recentemente "Understanding menos, estão sendo recomendadas aos
elecrronic incunabula: a framework for arquivistas, para lidar com os
research 00 electronic records", American documentos eletrônicos, o que não
An:hiviJt 54 (verão de 1991), p. 334-54; significa dizer que essas metodologias ­
"Descriptive practices for elecrronic bem como a estrutura conceitual em que
recordo deciding what is essential and se baseiam - não gerem suas próprias
imagining what is possible",Archivaria controvérsias, tais como sobre se os
36 (outono de 1993), 53-62; e, com David arquivos precisam adquirir fisicamente
Bearman "Reinventing archives for todos os documentos eletrônicos para
electronic records: altemative service assegurar sua autenticidade, ou sobre a
delivery options") in Margaret conexão apropriada com O gerador dos
Hedsrrom, ed., Elecbonic records metadados e arquivos de autoridade

146
Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais

arquivística contextualizados. A melhor implicaçóes do ethos pós-moderno (que


fonte singular para abordagens vem dominando o pensamento
estratégicas dos documentos eletrônicos acadêmico desde os anos 70, pelo menos)
continua sendo Hedsttom, ed., Elecnollic no que conceme à teoria e à prática
recards managemenl program strategies, que arquivísticas e, curiosamente, todos que o
apresenta estudos de casos com análises fiZeram são, quase sem exceção,
de fatores críticos para O sucesso e o canadenses.
fracasso dos programas de documentos Para uma análise bastante provocadora
eletrônicos em níveis internacional (2), dos entendimentos e premissas dos
nacional (4), estadual (4) e de arquivistas - muitas das quais falsas e
universidades (I), com uma avaliação desorientadoras - sobre "ordem" e sobre
global e uma extensa (59 páginas) a natureza de seu próprio trabalho de
bibliografia anotada, compilada por estabelecimento, recriação e defesa das
Ricbard Cox para que os leitores "ordens", originais e outras, bem como
prossigam com suas explorações. Ver da primeira análise pós-modernista
também David Bearman, "Archival imponante do empreendimento
sttategies", trabalho discutido na arquivista, ver Brieo Brothman, ''Orders
conferência SAA de 1994, e a ser of value: probing the theroretical terms
publicado brevemente no American of aremval practice", Archivaria 32 (verão
Archivist. de 1991), p. 78-100. Outras análises
10. Para Jen.kinson sobre isto, ver nota 6 pós-modernas são: "The limits oflimits:
acima. F. Gerald Harn, em Sekcting and derridean deconstruction and the
appraising archive.s and manuscriplJ archival institution",Archivaria 36
(Chicago, 1993), p. 9, e em seus outros (outono de 1993), p. 205-20; Richard
trabalhos, é a melhor crítica moderna de Brown, "Records acquisition strategy and
JenkinsoD, acompanhando a visão dos its theoretical foundation: the case for a
anos 50 de T. R. ScheJlemberg. Mesmo os concept of archival henneneutics",
arquivistas que se inclinam para Archivaria 32 (verão de 1991), p. 152-56; e
Jenkinson (o que não é o caso de Joan M. Scbwanz, "'We make our toal.
Schellemberg!) se opuseram a seus and om too18 make us': lessons from
pontos de vista sobre avaliação; em um photographs for the practice, politics and
fe.stchrift [coletânea1 em sua homenagem, poetics of diplomarics",Archivaria 40
o principal arquivista do Canadá e da (outono de 1995), p. 40-74. Minhas
Austrália à época enfatizou as próprias análises sobre o
dificuldades da abordagem de Jenkinson: pós-modernismo anteriores a este anigo
ver W. Kaye Larnb, "The fine art of estão restritas a partes de "Mind over
destruction", p. 50-56, e Ian Maclean, matter: towards a ncw theory of archival
"Ao analysis ofJenkinson's 'Manual of appraisal", e de "'Electronic recoreis,
archive administration' in the light of paper miods: the revolution in
australian experience", p. 150-51, ambos information management and archives in
in Alben E. J. Hollaender, ed., Essays in the postcustodial and postmodernist
memory qfSir Hilary Jenkinsan era" , ambos citados anteriormente. Para
(Chicbester, 1962). uma importante voz pós-moderna
australiana, ver o trabalho de Frank Sue
11. Eric Kete!aar, "Archival theory and
McKemmish e Frank Upward, eds.,
the Dutch Manual",Archivaria 41
Archival documenu: plT1viding acwumabili1y
(primavera de 1996), p. 36.
through recordkeeping (Melbourne, 1993),
12. Muito poucos arquivistas no mundo p. 41-54; e seu "Strucruring the records
têm discutido de forma sustentada as continuum. Pan two: Strucruration

147
estudos históricos. 1 998 - 21

theory and recordkeeping", Archives and 14. Hutcheon, Poetics Dfpostmodernism, p.


Manuscripts 25, (maio de 1997), 122.
p. 10-35.
15. Jacques Le Goff, History and memory,
13. Não parece de utilidade citar aqui traduzido por Steven Raodall e Elizabeth
toda uma prateleira de livros Claman (Nova York, 1992), p. xvi-xvii,
pás-modernos. Contudo, além das 59-60, e passim.
próprias análise e metodologia históricas
16. Sobre arquivos medievais e seus
de Michel Foucault, minha compreensão
propósitos, ver Patrick J. Geary, Phanloms
dos conceitos pós-modernos se deve, em
Dfremembranee: memory and oblivion aI lhe
grande parte, ao trabalho da acadêmica
end Dflhe fim millennium (princeton,
canadense Linda Hutcheon, The policies 1994), p. 86-87, 177 e especialmente
Dfpostmodemism (Londres, 1989) eA capítulo 3: "Archival memory and the
poetics Dfpostmodemism: hislory, lheory, destruction of the past" e passim.
fiction (Nova York, 1988). Uma seleção
dos melhores trabalbos em várias 17. As acadêmicas feministas estão bem
d.isciplinas é apresentada em Charles cônscias dos modos como os sistemas de
Jecks, ed., The posl-modem reader linguagem, escrita e registro de
(Londres, 1992). Em Foucault, os informações, e de preservação de tais
informaçóes uma vez registradas, são
trabalhos essenciais para os arquivistas
são Tile order DfIhings: an archaelogy oflhe
baseados na sociedade e no poder, e não
neutros, tanto agora quanto em todos os
humon scienees (Nova York, 1970,
milênios anteriores. Como exemplo, ver
originalmente em francês, 1966) e Tile
Gerda Lerner, Tile crealion Dfpatriarchy
archaealogy Df knowúulge (Nova York,
(Nova York, 1986), p. 6-7, 57, 151, 200 e
1972, originalmente em francês, 1969).
passim; e Riane Eisler The chalice & the
Uma boa introdução a seu pensamento é
blade (São Francisco, 1987), p. 7 1 -73,
Gary Gutting, Michel Foucauú's
91-93. O último livro de Lemer, Tile
archaeology Dfscienlific reason (Cambridge,
creal;on Dffeminist consciousnes:s from lhe
1989); ler especialmente p. 231-44 para a
Middle Ages 10 eigtheen-sl!lJen� (Nova York
análise de Foucault sobre documentos.
e Oxford, 1993), detalha cuidadosamente
Para utn exemplo pioneiro da aplicação
a exclusão sistemática das mulheres dos
de alguns dos insights pós-modernistas a
arquivos e da história, e as tentativas das
registros documentários, ver J. B. Harley, mulheres, a partir do final do século
"Deconstrllcting me map", Cartographica XIX, para corrigir essa situação através
26 (verão de 1989), p. I-20. Harley da criação de arquivos de mulheres : ver
explora o poderoso contexto social por especialmente o capítulo 1 1, "The search
trás do mapa, bem como observa os for women's history".
elementos metafóricos e retóricos do
mapa, onde, antes, os acadêmicos viam 18. Ver Denis Winter, Haig's command: a
apenas topografia e mensuração. Ele reassessmenl (Harmondsworth, 1991),
especialmente a seção fmal: "FalsifYing
demonstra que a cartografia é menos
the record".
"científica" do que se presumia e reflete
as predileçóes funcionais de seus 19. Evelyn Fax Keller, Refleetions on
patrocinadores, tanto quanto a superfície gender and scienee (Nova York, 1985), p.
da Terra. Para uma análise e conclusão 1 1-12, 5-9, 130, e passim. O trabalho
similares sobre o mesmo meio, ver Terry pioneiro de ligação dos métodos, teoria e
Cook, mA reconstruction ofthe world': descobertas científicos Clpuros", com seus
George R. Parkin's British Empire map bem "impuros" contextos sociais e
of 1893", Cortographica 21 (1984), p. 53-64. intelectuais, foi o de T. S. Kuhn, The

148
Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais

StTUClUre DfScientific Revolution, que em dezenas de milhões que existem, vale a


1962 demonstrou que a suposta pena preservar; para os arquivistas
neutralidade da ciência era mais produto institucionais, está na decisão sdbre quais
de ideologia que realidade. Ver também dentre os milhões de documentos
Carolyn Merchant, The dealh of noture: complexos de um fundo merecem ser
women, ccology and lhe Scienlijic RewlUlion preservados. Ambos necessitam
(Nova York, 1980, 1990), p. xvii-xviü. Ela abordagens estratégicas baseadas na
demonstra que as novas teorias da análise funcional para dar conta desses
tennodinâmica e do caos também imensos desafios. Em termos de
sustentam conclusões similares do documentos eletrônicos, os criadores do
pensamento cODtextual, interdependente, setor privado estão rapidamente
baseado em processo. alcançando seus correspondentes
institucionais na geração eletrônica de
20. Sobre governança, ver Ian E. Wilson,
registros, dos rascunhos de novelas de
"Reflections on archival strategies",
escritores de renome às agendas e aos
AmericanArchivisl 58 (outono de 1995), p.
diários pessoais, que já existem em forma
414,29.
exclusivamente eletrônica, e mais, cerca
21. Pode-se argumentar, na verdade, que de 50 milhões de usuários individuais da
os arquivistas pessoais ou de arquivos Internet (que crescem aos milhares todos
privados não enfrentam a complexidade os dias) que utilizam correspondência
de criadores organizacionais variáveis, eletrônica, abrem web rites pessoais (a
nem da computadorização extensiva do declaração autobiográfica de nossos
arquivamento, nem dos imensos volumes dias?) e se engajam em formas eletrônicas
que caracterizam os modernos arquivos de discussões para criar grupos virtuais
institucionais. Isso pode ser verdadeiro, de lobbying para todas as causas
em parte, mas não derruba meu imagináveis. O desafio, para o arquivista
argumento de que as mudanças na pessoal, de lidar com esse mumdo
estratégia arquivística se aplicam com "internético" de registros é pelo menos
igual força aos arquivistas pessoais e tão difícil quanto o que esbocei para O
institucionais. Nos Arquivos Nacionais arquivista institucional.
do Canadá, por exemplo, há cerca de 600
fundos para os documentos do governo
canadense e 14.000 fundos para criadores
Palavras-chave:
pessoais de arquivos. No Brasil,
história da arquivísúca, princípios
conquanto possa haver milhares de
arquivísúcos, avaliação, documentos
fundos governamentais e corporativos
eletrônicos, pós-modernismo, memória,
sob a responsabilidade de instituições
Canadá/ arquivos totais.
arquivísticas, há, potencialmente,
105.000.000 de fundos pessoais a recolher.
A complexidade para os arquivistas
pessoais está na decisão sobre quais (Recebido para publicação em
poucos milhares de fundos, dentre as novembro de 1997)

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