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Cibele Forjaz Simões

À LUZ DA LINGUAGEM
A iluminação cênica:
de instrumento da visibilidade à ‘Scriptura do visível’
(Primeiro recorte: do Fogo à Revolução Teatral)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes, Área de Concentração
Artes Cênicas, Linha de Pesquisa Teoria e
História do Teatro - Literatura Dramática, da
Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do Título de Mestre em
Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Jacó
Guinsburg.

São Paulo 2008


DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

À LUZ DA LINGUAGEM
A iluminação cênica:
de instrumento da visibilidade à ‘Scriptura do visível’
(Primeiro recorte: do Fogo à Revolução Teatral)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes, Área de Concentração
Artes Cênicas, Linha de Pesquisa Teoria e
História do Teatro - Literatura Dramática, da
Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do Título de Mestre em
Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Jacó
Guinsburg.Autoria: Cibele Forjaz Simões

São Paulo, 2008


2
Assinaturas da Banca:

__________________________

__________________________

__________________________

3
DEDICATÓRIA:

Dedico esta tentativa de aguçar meu olhar em relação à função da iluminação na


encenação teatral ao meu orientador, que numa iluminação de gênio me propôs a
idéia-título dessa dissertação: “À luz da linguagem”.

Foi esta provocação da língua que me impulsionou a começar a escrever.

Dedico este trabalho á Jacó Guinsburg, pela presença e debate de idéias como
orientador durante o mestrado, que me têm feito procurar as razões essenciais do
meu trabalho. Mas também por sua importância na minha formação, a que sou
imensamente grata. Jacó Guinsburg “fez a cabeça” da minha geração. Instigou-
nos à reflexão, ao prazer por pensar, à curiosidade pelo estudo, à busca de uma
praxis continuada no fazer teatral. E isso é visível no teatro que fazemos.

Dedico também aos meus “mestres” na luz – Que além de me ensinar me deram
coragem para este salto no escuro: Hamilton Saraiva, meu primeiro professor;
David de Brito, mestre entre os mestres; Marcio Aurélio, diretor e parceiro dos
inícios; Zé Celso, meu diretor querido.

E, finalmente, aos meus “filhos” iluminadores, aprendizes e alunos – com quem


aprendo a ensinar e a recomeçar continuamente.

4
RESUMO

Este projeto de pesquisa tem por objetivo estudar o desenvolvimento da

linguagem da iluminação cênica, em sua relação com os caminhos da encenação.

O eixo central é a transformação da função da iluminação cênica, de instrumento

da visibilidade a elemento estrutural e estruturante da escrita cênica, constituindo-

se como linguagem. Através de um olhar abrangente sobre a história e a estética

do teatro, pretende-se pontuar os trabalhos exemplares, de forma a descrever

esse processo de transformação e suas variáveis, instituindo conceitos para uma

análise específica da iluminação cênica. A dissertação de mestrado compreende

um recorte de tempo que vai do fogo à revolução teatral, com ênfase no período

de 1880 a 1914.

ABSTRACT

The present research project’s aim is to investigate the development of the stage lightning

language in its relation with the ways of stage performance. The central aspect is the

transformation of the function of stage lightning, from a visibility instrument to structural

and structuring stage language. Through a broad approach over theatres’s History and

aesthetics, I intent to point out the exemplary works, in order to describe this

transformation process and its variables, stablishing concepts for a specific analysis of

stage lightining. The dissertation covers a time period which goes from the usage of fire

until the theatrical revolution, emphasizing the years in between 1880 to 1914.

5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO

1ª PARTE – A LUZ EM BUSCA DO VISÍVEL

CAPÍTULO 1
A LUZ E A VISIBILIDADE

CAPÍTULO 2
ANTECEDENTES DA AÇÃO: FLASHES DA HISTÓRIA DA
ILUMINAÇÃO CÊNICA DO SOL ÀS VÁRIAS FORMAS DO FOGO.
2.1. INTRODUÇÃO: FIAT LUX... E A LUZ GEROU A SOMBRA

2.2. O TEATRO GREGO e o SOL

2.3. O TEATRO MEDIEVAL e o FOGO

2.4. O RENASCIMENTO E O RAIAR DAS LUZES NO TEATRO

2.5. A CLAREZA DO RENASCIMENTO DISSOLVE-SE NOS CONTRASTES


DO BARROCO

2.6. O ROMANTISMO E O APERFEIÇOAMENTO DA CAIXA MÁGICA DE


ILUSÕES

2.7. O RAIAR DO SÉCULO XIX E A LUZ VIVA DO GÁS

CAPÍTULO 3
A LUZ ELÉTRICA ENTRA EM CENA

CAPÍTULO 4
A REVIRAVOLTA: O SURGIMENTO DA ENCENAÇÃO E A LUZ

CAPÍTULO 5
O NATURALISMO E A DESCOBERTA DAS “ATMOSFERAS” NA LUZ
5.1 O NATURALISMO E A SUA SUPERAÇÃO ou DO REAL À
SUBJETIVIDADE

6
2ª PARTE - A LUZ ATRAVESSA O VISÍVEL
OU O SIMBOLISMO E A LUZ COMO LINGUAGEM

CAPÍTULO 6
O SIMBOLISMO E AS ILUMINAÇÕES

6.1 LUGNÉ POË e PAUL FORT e a encenação simbolista

CAPÍTULO 7
LOÏ FÜLLER – O TEATRO DANÇA A LUZ

CAPÍTULO 8
ADOLPHE APPIA da luz ativa à luz viva.

CAPÍTULO 9
GORDON CRAIG a luz contracena com a matéria

CAPÍTULO 10
UMA REINVENÇÃO DA LUZ PARA NOVAS RELAÇÕES ESPACIAIS
OU A REVOLUÇÃO ALEMÃ NA LUZ
10.1 O KÜNSTLER-THEATER DE MUNIQUE
Peter Behrens, Max Littmane Fritz Erler, Georg Füchs

10.2 MAX REINHARDT e a luz das “catedrais cênicas”

CAPÍTULO 11
MEIERHOLD as encenações simbolistas e a luz

CAPÍTULO 12 - CONCLUSÃO

À LUZ DA LINGUAGEM

7
INTRODUÇÃO

DA ORIGEM

O tema dessa dissertação de mestrado tem duas origens complementares.

Primeira: O meu desejo de, como iluminadora e encenadora com vinte


anos de experiência prática, refletir sobre a relação intrínseca entre a concepção
do espetáculo como um todo e a criação da iluminação teatral, entendida não
apenas como um desenho técnico dos equipamentos de iluminação no espaço,
mas, sobretudo, como o movimento da luz no tempo, parte integrante da
progressão dramática do espetáculo. Ou seja, a origem desse trabalho vem da
necessidade de, como artista, pesquisar e entender as funções e os
procedimentos que re-atualizam na prática do fazer teatral a iluminação cênica
como linguagem.

Imaginei de início proceder à essa reflexão a partir da pesquisa e análise


do meu próprio trabalho como iluminadora e assistente de direção de José Celso
Martinez Correa no Teatro Oficina Uzyna Uzona, de 1991 a 2002. Mas assim que
comecei a estudar o assunto com mais cuidado percebi a importância de uma
pesquisa retrospectiva, do ponto de vista da estética teatral, da função da luz no
espetáculo. Incluí então no meu projeto de pesquisa inicial uma primeira parte, de
natureza histórica, mas uma parte era estranha à outra.

Segunda: A necessidade, como professora de Iluminação Teatral 1, de


estudar e desenvolver uma pesquisa mais aprofundada sobre a história da
iluminação no teatro, um tema ainda pouco estudado no Brasil e com uma
bibliografia específica restrita 2.

1
Uma reviravolta na minha vida fez com que no início de 2006, portanto
ainda na primeira fase da pós-graduação, eu fosse escolhida, por concurso
público, à cadeira de iluminação teatral do Departamento de Artes Cênicas
da Universidade de São Paulo.
2
É importante notar aqui a existência, como oásis no deserto, de duas
obras fundamentais: a dissertação de mestrado do Prof. Dr. Hamilton
Saraiva: Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. São Paulo:
ECA/USP, 1990, 2 vol. E o excelente livro de Roberto Gill Camargo, A
Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de Cultura, 2000.
8
Com base nestes dois focos de interesse, o primeiro voltado para um
aprofundamento estético e o segundo para uma pesquisa histórica (que estavam
à princípio separados, cindidos e estanques na minha cabeça) meu orientador
propôs uma articulação fundamental entre eles, dando origem ao atual projeto:
partir de uma pesquisa histórica para proceder à uma análise estética e, a partir
da análise de casos exemplares, estabelecer o percurso de constituição da
linguagem.

DO MÉTODO

A metodologia de pesquisa, análise e sistematização desse trabalho tem


duas fontes principais, que atuaram em conjunto, complementando-se uma em
relação à outra. A primeira é uma pesquisa bibliográfica, sobre a qual discorrerei
um pouco na seqüência, a segunda vem da minha prática como iluminadora-
encenadora e professora de iluminação.

O meu conhecimento prático da linguagem e da técnica da iluminação


cênica, desenvolvidos em vinte anos de profissão, potencializou a minha
capacidade de entendimento, análise e articulação da bibliografia lida de maneira
decisiva. Tanto no que se refere á compreensão dos procedimentos e termos
técnicos, características da linguagem, dificuldades e resultados, quanto na
possibilidade de apreender das descrições, fotos, críticas e análises dos
espetáculos, informações específicas sobre a iluminação.

Por outro lado, no sentido inverso, a partir da leitura da bibliografia comecei


a fazer experiências práticas em sala de aula, com meus alunos, reproduzindo
modos e formas de iluminar e testando alguns efeitos descritos, principalmente na
iluminação à luz do dia e com fontes ígneas: reflexões, rebatimento e formas de
colorir as luzes, conectando teoria e prática. Essas experiências permitiram,
principalmente, criar uma relação direta e inspiradora entre a intelecção e a minha
prática criativa.

Quanto à bibliografia:

Comecei por recorrer às histórias do teatro e às análises da encenação no


século XX, que traçam panoramas gerais e relacionam movimentos,
9
encenadores, práticas teatrais e espetáculos, inclusive com imagens e
descrições. Também li vários manuais de iluminação e algumas obras específicas
sobre a história e estética da iluminação cênica. Entre elas foram fundamentais
para a organização desta dissertação o mestrado de Hamilton Saraiva 3 o livro de
Roberto Gill Camargo 4 e um artigo de Denis Bablet sobre a luz 5.

Na seqüência, eu li as obras específicas sobre o trabalho dos principais


encenadores do século XX, aqui analisados: primeiro os livros escritos por eles
próprios sobre suas concepções estéticas e encenações. Depois livros de análise
sobre os seus trabalhos práticos e teóricos, com as descrições dos processos de
criação e espetáculos, escritos por pesquisadores de teatro 6.

As citações em língua estrangeira foram todas traduzidas livremente para o


português: as traduções do inglês foram realizadas por Laura Knoll, as traduções
do espanhol por mim e as do francês por mim, Laila Miranda Garin e Pedro
Cesarino. O texto de referência “Arte e técnica no fim do século XIX” foi traduzido
por Gabriela Itocazo.

DO TEMPO E DA PESSOA DO VERBO

A partir desse momento deixo de escrever na primeira pessoa, para


escrever na terceira. Não se trata apenas da idéia de um tempo verbal abstrato,
na qual me escondo de minhas análises, idéias e conclusões, mas da inclusão de
uma consciência ampliada, materializada na figura do meu orientador, Jacó
Guinsburg, que viveu esse processo ao meu lado. Como um “outro”, primeiro
leitor, interlocutor e articulador, diretor e guia nos meus caminhos e descaminhos,
mas também como um “duplo”, introjetado dentro do meu processo de reflexão,
para quem eu escrevia e que me dava coragem para articular idéias e tirar

3
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, 2 vol.
4
Camargo, Roberto Gill; A Função Estética da Luz, TCM Comunicação,
Sorocaba, SP, 2000.
5
Bablet, Denis – “A Luz no Teatro” in O teatro e sua Estética, Lisboa:
Ed Arcádia, 1968.
6
Nesse aspecto gostaria de agradecer imensamente aos professores do
Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP que abriram suas bibliotecas
pessoais e me emprestaram obras de difícil acesso, que foram fundamentais
para a realização desse trabalho.
10
conclusões, não somente a posteriori, mas também no exato momento em que as
palavras brotavam ou eram tiradas a fórceps da minha consciência de marinheira
de primeira viagem. Tive, portanto, o privilégio de dar os meus primeiros passos
na pesquisa e reflexão artística ao lado de um mestre, que, como todo grande
mestre me ensinou no passo a passo desse trabalho a me tornar mestre de mim
mesma, uma e outro em uma mesma terceira pessoa concreta. Como um ator
que traz em si, na concretude da cena, o autor e o diretor, para ser a um só
tempo: pessoa, personagem e terceiro olho, em ação.

DA ESTRUTURA E SEUS SENTIDOS

Dado o tamanho do projeto, resolvemos separar o trabalho em dois


recortes: o primeiro aqui apresentado como dissertação de mestrado vai dos
primórdios da história do teatro até o que chamamos de revolução teatral, com o
surgimento da encenação moderna, o advento do movimento simbolista e o
trabalho dos primeiros grandes encenadores do fim do século XIX e começo do
século XX. Quando então consideramos completo um ciclo, no qual a iluminação
cênica já é, tanto na prática quanto na teoria, compreendida como linguagem
estrutural constituinte do todo da encenação 7. Tomei por referência a data de
1914, quando começa a primeira guerra mundial, ou seja, não tratei dos
movimentos de vanguarda que se engendram no começo do século, mas
explodem no pós-guerra.

O segundo recorte começa justamente nas vanguardas modernas do pós-


guerra (1914 – 1918) e vem até a atualidade. Será apresentado a seguir como
projeto de pesquisa para um doutorado em Artes Cênicas.

Porém esse recorte histórico ainda compreende um período muito extenso


da história do teatro. Foi necessário dividir o trabalho em partes e privilegiar
algumas em relação às outras sempre de acordo com o eixo central do trabalho,
que é estudar o desenvolvimento da linguagem da iluminação cênica e sua
relação com os caminhos da arte do espetáculo.

7
Embora essa acepção ainda não estivesse absolutamente generalizada na
prática teatral, suas bases já estavam lançadas e muito bem entendidas na
experiência e na concepção de alguns encenadores e teóricos da arte do
espetáculo.
11
Esse processo de constituição da luz como linguagem tem antecedentes
importantes, principalmente no Renascimento italiano, mas concentra grande
parte do seu desenvolvimento prático e principalmente teórico a partir de 1880,
momento em a luz elétrica entra definitivamente em cena e começa uma forte
imbricação entre a encenação moderna e o desenvolvimento da linguagem da
iluminação cênica. Privilegiamos, portanto, o detalhamento da pesquisa nesse
período.

Dividimos então o trabalho em duas partes: A luz em busca do visível e A


luz atravessa o visível ou o Simbolismo e a luz como linguagem. Tomamos por
referencia a reviravolta na função da iluminação na arte do espetáculo que ocorre
a partir do movimento teatral simbolista e seus ecos, quando a luz passa a
participar ativamente na escritura da encenação. É lógico que a luz elétrica é
fundamental para essa mudança, mas consideramos que ela é um fator essencial
que possibilitou a mudança e não a mudança em si. O momento histórico é o
mesmo, mas o ponto de vista tem uma imbricação fundamental entre a técnica e
a estética.

Esse é um ponto importante desse trabalho, a relação intrínseca entre


técnica e estética e entre luz e encenação. As formas e sentidos da iluminação
cênica serão analisados sempre como uma resultante da imbricação entre a
estética da encenação e dos meios técnicos disponíveis, ou passíveis de serem
inventados naquele momento histórico. Cabe notar então que o foco do meu
interesse não está na história do desenvolvimento técnico no decorrer da história
do teatro, trabalho já realizado com maestria pelo professor Dr. Hamilton Saraiva
em seu mestrado e ao qual eu me referi sempre que necessário, mas em que
medida essa técnica e prática da iluminação cênica se articulam com a
encenação no desenvolvimento de uma linguagem.

Por essa razão condensamos em um único capítulo geral um período de


tempo muito abrangente, que vai do teatro grego até a primeira metade do século
XIX, onde a iluminação cênica tem por principal fonte de luz artificial, o fogo, em
suas diversas técnicas e formas de utilização. Chamamos este capítulo (o
segundo) de Antecedentes da ação: flashes da história da
iluminação cênica do Sol às várias formas do fogo porque o

12
objetivo deste trabalho não é, nem poderia ser, abarcar toda a história da
iluminação, mas retirar dela os pontos de apoio para entender a constituição da
linguagem que usamos hoje. Escolhemos então nesse período trabalhar a partir
de flashes, clarões que ressaltam momentos significativos de mudança na
iluminação, tanto do ponto de vista técnico quanto estético e que nos permitiram
construir uma linha de pensamento.

O Capítulo três trata do processo de fricção entre a ciência e o teatro, na


qual a energia elétrica vira luz, as lâmpadas entram em cena e os primeiros
aparelhos de iluminação elétrica são inventados e postos em cena. Processo que
se inicia em 1846, com a invenção da lâmpada de arco-voltaico. O capítulo quatro
trata das relações entre o surgimento da encenação e a luz. Um e outro servem
de base para todo o detalhamento posterior e se estendem no tempo até o fim do
período em que focamos este trabalho.

A partir de então o tempo se justapõe em todos os capítulos, onde


acompanhamos de perto o processo de criação de alguns encenadores,
performers e/ou teóricos, que foram fundamentais na constituição da encenação
moderna enquanto tal, tentando apreender em cada um o desenvolvimento da
linguagem da iluminação cênica tanto na prática quanto na teoria.

Escolhemos aqui alguns encenadores, considerados como casos


exemplares de todo um processo que, por ser mundial, deve ter essa história
multiplicada, em espaços e tempos diferenciados cada qual com suas
características próprias. Se alguns estão aqui contemplados com uma análise
mais profunda, muitos outros com certeza foram deixados de lado. Toda a
escolha tem seus ônus, porém é inevitável. Então gostaríamos de deixar claro
nesta introdução que os encenadores analisados servem de ícone para
compreender um processo mais amplo e que foram escolhidos dado o seu papel
exemplar na história do teatro, pela relação que o seu trabalho tem com a
iluminação cênica, por sua influência significativa no processo geral e também de
acordo com a possibilidade que tivemos de acesso às informações em detalhes –
já que partimos principalmente de descrições e análises sobre as encenações, de
onde poderíamos apreender as práticas específicas em relação à luz dos
espetáculos – ou seja, são todos amplamente estudados e divulgados e, na

13
maioria dos casos, têm uma reflexão própria sobre a encenação, incluindo aí a
iluminação cênica.

É em busca dessas relações entre luz e linguagem, que pretendo olhar a


história e a estética da iluminação no teatro para articular a partir de caminhos
variados uma trama única. É a crescente transformação da cena através da luz e
a manipulação cada vez mais consciente desse ponto de vista que constitui o
cerne desse caminho.

O CAMINHO DAS MIL FACES

Se do ponto de vista da articulação entre as partes almejamos apreender


um caminho, como parte constituinte de uma análise coerente e coesa, gostaria
de esclarecer que não acreditamos que exista de fato um caminho, mas apenas a
concepção de um caminho, que é resultado da organização e exposição de uma
reflexão específica que pretendemos aqui realizar.

É lógico que existem as práticas e as influências e que o desenvolvimento


técnico pode ser visto, com milhares de ressalvas, como “progressivo” 8, mas as
resultantes estéticas com certeza não o são.

A relação da iluminação com a construção do espetáculo e a sua


consciência não segue uma linha contínua ou qualquer noção de progresso, muito
pelo contrário, ela acontece aos saltos e em direções as mais variadas. Este
processo de transformação da iluminação cênica em linguagem se dá a partir de
práticas as mais variadas, através dos tempos: experiências precursoras,
práticas extemporâneas, saltos qualitativos e esquecimentos históricos, caminhos
particulares, pontos de vista diferentes e concepções às vezes opostas.
Nenhuma realização, concepção ou interpretação sobre a função e prática da
iluminação no espetáculo teatral é uma conquista absoluta, ela pressupõe uma re-
atualização criativa no tempo e no espaço. A prática de uma luz ativa na
construção do espetáculo tem de ser reinterpretada e reinventada pelos artistas
da iluminação a cada instante, na realização de cada novo trabalho, em cada obra
de arte, única e particular.

8
Embora um grilo falante sussurre em nossos ouvidos o aviso de Einstein
sobre a quarta guerra mundial, entre porretes e tacapes.
14
DO OBJETO

O foco deste trabalho é, portanto, a iluminação no teatro em sua relação


com a encenação e o seu objetivo é apreender a transformação da iluminação
cênica de instrumento da visibilidade à ‘Scriptura’ do visível, conceito que
pressupõe a existência de uma espécie de “dramaturgia” do visível, uma
linguagem para os olhos, estrutural e estruturante na arte da encenação, que se
sobrepõe ou até mesmo se contrapõe àquela apreendida pelos ouvidos.
Pretendo, portanto, analisar a história da iluminação cênica tendo por ênfase as
várias funções da iluminação teatral no espetáculo, em busca da concepção
desse caminho que vai de ferramenta à linguagem, de efeito especial à escritura
da cena.

15
1ª PARTE – A LUZ EM BUSCA DO VISÍVEL

16
CAPÍTULO 1
A LUZ E A VISIBILIDADE

“Fiat Lux” e fez-se o mundo.


“Black-out” e o mundo desaparece na escuridão.

A luz, com suas variações de intensidades e cores, ângulos e distâncias,


sempre foi motivo de reflexão e estudo. O estudo da luz está presente na origem
de várias ciências como a física, a geometria, a astronomia, a óptica, a teoria das
cores, a teoria da percepção, entre muitas outras.

O homem percebe o mundo principalmente através da visão que tem das


coisas à sua volta, que chamamos por realidade. Porém a visão é resultado de
um processo complexo que começa na fonte de luz que emite raios luminosos
(freqüência de ondas eletromagnéticas), que são absorvidos ou refletidos pela
matéria de que são compostas as superfícies do que está sendo iluminado. A luz
refletida é captada pelos olhos que enviam impulsos nervosos ao cérebro onde a
informação é decodificada e percebida. Os olhos são extremamente adaptáveis e
filtram em segundos a quantidade de luz, as temperaturas de cor e os contrastes.
A percepção da luz cria as noções de forma, cor, volume, profundidade, distância
e movimento em relação à subjetividade. O que significa dizer que a visão é uma
relação ativa entre sujeito e objeto. A visualidade constitui-se assim de um
processo de relações entre a luz, o mundo observado, os olhos do observador e a
capacidade humana de representar e interpretar aquilo que é visto, através da
subjetividade. Ver é criar uma representação do objeto em si, é projetar-se sobre
o objeto. A visão é, portanto, um processo análogo à da linguagem. Aprendemos
a ver através da cultura e a ter prazer estético com isso. A fruição através da
visão das artes pressupõe um processo criativo, de reinvenção do mundo
representado.

Por ser tão mediada, a luz para nós não existe em si, mas torna-se luz para
os nossos olhos na medida em que ilumina a matéria e reflete, formando um
contexto complexo de informações, todas elas relativas entre si. Assim como os
sons o que percebemos depende de um conjunto de relações, entre a fonte de
17
luz, suas características determinadas, o ângulo em relação aos objetos e aos
olhos dos espectadores, o contraste entre a luz e suas sombras, o contraste entre
as cores, emitidas, filtradas, refletidas e a sua resultante final para os olhos, as
relações entre o que está mais ou menos iluminado, a quantidade de luz que vem
antes e a que vem depois. Enfim, uma orquestração de estímulos relacionados
entre si. Assim, quando falamos em iluminação cênica, estamos pensando não só
em tornar visível, mas em construir uma visibilidade determinada. Não se trata
apenas de ver, mas como ver.

18
CAPÍTULO 2
ANTECEDENTES DA AÇÃO:
FLASHES DA HISTÓRIA DA ILUMINAÇÃO CÊNICA
DO SOL À LÂMPADA

Refletir sobre a história da luz antes do advento da luz elétrica é um


exercício de sair do próprio tempo. Como temos um modus vivendi absolutamente
dependente da eletricidade, é difícil conceber a vida e o teatro á luz de velas.
Justamente por estarmos atavicamente ligados ás nossas próprias experiências,
é que o senso comum reproduz a idéia de que a iluminação cênica só começa a
existir e a se pensar a partir da entrada da luz elétrica em cena.

É fato que a função da iluminação cênica muda significativamente a partir


da chegada da luz elétrica ao teatro, mas também é que muito já havia sido
pensado e realizado antes, por séculos e séculos de práticas teatrais.

Este capítulo busca, portanto, fazer um vôo sobre esses séculos sem
nenhuma pretensão de aprofundar-se em qualquer tema ou período, com o
objetivo único de pinçar na história do teatro diferentes utilizações da luz do fogo,
da tocha ao gás, para que possamos perceber e pensar o desenvolvimento da
idéia de iluminação cênica e de suas funções no decorrer da história do teatro,
sem achar que o nosso tempo histórico é soberano e inventou tudo do nada.

2.1 FIAT LUX... E A LUZ GEROU A SOMBRA

No início era o Dia e a Noite e o percurso do Sol pela abóbada celeste visto
da Terra. O estudo da luz do Sol, percebida através do olho humano, com suas
variações de distâncias e ângulos, intensidades e cores, sempre foi para o
homem motivo de inspiração e reflexão.

A luz do Sol que nos ilumina é energia, vibração, ou mais precisamente


radiação eletromagnética compreendida num espectro visível 9. Mas a idéia de

9
O espectro das radiações eletromagnéticas perceptível pelo olho humano
é chamado de “luz” e compreende uma pequena faixa de comprimento de onda
19
“Luz” carrega em si muitos outros significados, como por exemplo, a luz divina, a
comunicação entre deuses e homens e o próprio nascimento da vida.

Como toda vida tem sua morte, todo Deus seu lado terrível, toda luz gera
sombra. A noção de luz e sombra como elementos opostos, complementares, e
originários faz parte da história da cultura, das artes e das religiões em muitas
culturas. Segundo, Hermilo Borba Filho, uma das primeiras danças dramáticas de
que temos notícia é o Drama da Paixão Egípcia, cujo tema principal é a luta da luz
contra as trevas:

O Drama da Paixão Egípcia descreve a luta de Osíris


– a luz – contra Set – as trevas. Osíris é derrotado,
mas Hórus, seu filho vinga a sua morte. Esta dança é uma
representação simbólica do Dia e da Noite e, por
extensão, do Bem e do Mal. 10

A batalha entre a luz e as trevas representa a idéia da existência como luta


de contrários. Esta dança nos remete a uma origem mítica do tempo e do devir11.
A luz pressupõe a sombra e a sombra, a luz. A existência de ambos está contida
no seu contraste originário, tanto no plano mítico, quanto no físico.

Não existe definição de volume, forma, distância, delimitação de espaço,


noção de composição ou apreensão do movimento, sem contraste. O olho
depende não somente da existência da luz para ver, mas do contraste que ela
gera. O contraste é condição sinequanon da nossa capacidade de percepção da
luz e a partir dela, do mundo que nos rodeia.

A “Luz” tem, portanto, na idéia de contraste seu princípio fundamental


expresso desde os primórdios, desde o nascimento do teatro no espírito da dança
e da música, muito antes do teatro ser entendido como linguagem, da existência
da iluminação artificial e desta poder ser controlada pelo homem.

que vai de 380 a 780 milimícrons, ou do violeta ao vermelho. O arco-íris


e suas gradações é o exemplo mais claro desse espectro solar que
encontramos na natureza.
10
Borba Filho, Hermilo. A História do Espetáculo. Rio de Janeiro: ed. O
Cruzeiro, 1968; p.13.
11
O nascimento de todas as coisas, a corrupção de todas as coisas, a
mudança qualitativa, a mudança quantitativa e o movimento no
espaço/tempo.
20
Até o século XV o teatro é iluminado pela luz do Sol. Neste longo período
da história do teatro existem várias descrições da utilização da luz do fogo e de
reflexões da luz do Sol como instrumento do espetáculo. Nestes casos a função
da luz é predominantemente a de realizar efeitos especiais, principalmente as
aparições sobrenaturais, divinas ou demoníacas. Esta relação entre a luz e o
sobrenatural é uma constante e relaciona-se com a idéia da luz como
representação ou presentificação da divindade.

2.2 O TEATRO GREGO E O SOL

O teatro grego, de origem religiosa e campestre, originou-se, segundo uma


das versões, do culto a Dionísos, os ritos de fertilidade dos sátiros dançantes.
Essa festividade rural é trazida dos campos para as cidades por volta de 539 a.C.
(por Téspis) e é a partir desta época que o Estado Grego tomou a si a
organização do teatro, instituindo concursos entre os poetas dramáticos – As
Dionisíacas. Com origem na época de Péricles, As Grandes Dinisíacas
aconteciam na Cidade-Estado de Atenas por 6 dias seguidos no mês de março, e
duravam a cada dia o tempo do percurso do sol. O público chegava ao nascer do
sol, vestido de branco 12 e as apresentações iam até o anoitecer. No fim do dia "o
cortejo voltava a Atenas sob a claridade das tochas" 13.

O teatro Grego era realizado, portanto, à luz do Sol, do nascente ao


poente. A idéia de tempo na tragédia está, portanto, intimamente ligada ao
percurso do sol pela abóbada celeste, suas mudanças de ângulo e luminosidade
e seus limites.

12
“Vestido com o branco ritual, o público chegava em grande número às
primeiras horas da manhã ‘Um enxame branco’ é como o chama Ésquilo”
Berthold, Margot, História Mundial do Teatro. São Paulo: Ed Perspectiva, São
Paulo, 2003. p. 114.
13
Borba Filho, Hermilo. A História do Espetáculo. Rio de Janeiro: ed. O
Cruzeiro, 1968; p.34.
21
Desta forma a questão da visibilidade do
espetáculo tinha de ser cuidadosamente estudada, a
escolha do local da representação em relação á platéia
precisava levar em conta, entre tantas outras variáveis, a
direção e o ângulo do Sol. Assim o Sol, que nasce a
leste e se põe a Oeste, deveria iluminar a cena de forma
oblíqua, nascendo e se pondo por trás dos espectadores
á direita ou á esquerda da Skené, para que iluminasse
os atores, sem cegar a platéia que olha em direção à cena. Como demonstra o
desenho ao lado que representa o eixo do espaço da performance no teatro de
Dionísos, em Atenas 14:

O local da Dionisíaca de Atenas era a encosta da colina do Santuário de


15
Dionísio, ao sul da Acrópole. Primeiro em instalações provisórias construídas
em madeira. Cabanas eram construídas atrás da área de representação, como
base para os cenários. Estas cabanas, onde os atores e o coro se trocavam, dão
origem ao termo Skené (tenda ou cabana). A pintura sobre a Skené deu origem à
palavra skenografia. Na frente da Skené, o Proskênion, espaço onde representam
os atores e na sua frente Orquestra (de orkestai, local onde se dança) local para a
evolução dos coros, em volta o local destinado à platéia, o Théatron (lugar onde
se vê).

A origem da palavra teatro está, portanto, diretamente ligada à visão, é


uma ação que se representa para ser vista por um público.

No centro da Orquestra, sobre um pedestal baixo o altar sacrificial, o


Thimelê – altar ou fogo Sagrado. Enquanto estivesse aceso o Thimelê, Dionísos -
o deus do entusiasmo e do teatro – estaria presente às representações. A luz do
fogo sagrado representa no teatro grego a própria presença do Deus.

14
Wiles, Davis. Tragedy in Athens: performance space and theatrical
meaning. Cambridge University Press, 1997, p.57 apud Pollini, Denise.
Eurípides, A Cenografia e os Mecanismos Cênicos do séc. V a.C. Dissertação de
Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 2004.p. 113.
15
Sobre a descrição dos locais e dos elementos da arquitetura do Teatro
Grego: Borba Filho, Hermilo. A História do Espetáculo. Rio de Janeiro:
ed. O Cruzeiro, 1968; pp.32 a 34; Berthold, Margot, História Mundial do
Teatro, Ed Perspectiva, São Paulo, 2003; pp. 113 a 118 e Pollini, Denise. Eurípides, A
Cenografia e os Mecanismos Cênicos do séc. V a.C. Op. Cit. pp. 15 a 21.
22
Os efeitos especiais luminosos realizados com fogo ou reflexão da luz do
sol em superfícies polidas, principalmente nos momentos de clímax, aparição de
deuses ou seres maravilhosos, são tradição no teatro e existem registros de sua
utilização desde a tragédia grega.

Entre as máquinas e os efeitos especiais do teatro grego que se conhece,


como guindastes, alçapões, escadas e praticáveis móveis, há efeitos de luz, como
os raios feitos com reflexo e até mesmo, segundo Hermilo Borba Filho16, a
projeção de imagens ou sombras, é possível que a partir da reflexão do próprio
Sol:
(...)uma espécie de lanterna mágica que fazia os
espectadores verem o outro extremo da cidade, náufragos
no meio das ondas, apoteose de heróis acompanhados por
fogos de artifício 17

Mas não por acaso, o grande exemplo da luz como convenção e que tem
início no teatro grego, é a utilização da luz do fogo como signo da noite, como nos
indica Roberto Gill Camargo:

As velas, tochas e archotes costumavam entrar só no


final das apresentações, quando estas se estendiam até
mais tarde, invadindo o período da noite. Em alguns
casos, porém, era recurso usado para designar ‘noite’ e
‘escuridão’. 18

È bem significativo que à noite o fogo sirva para iluminar a cena, que
necessita ser vista, independente de qualquer indicação de ‘tempo’ e ‘espaço’ no
âmbito da ficção; mas ao contrário, um ator que porta uma tocha em plena luz do
dia, representa uma personagem que necessita do fogo para ver, portanto
encontra-se, na ficção, em meio à escuridão – à noite ou em local escuro, como
uma caverna ou uma floresta fechada. Esta convenção teatral talvez seja o
primeiro lampejo da luz utilizada como linguagem. Nesse caso a luz do fogo traz

16
Não encontramos mais indicações ou detalhes sobre esse efeito de
projeção no teatro grego, à luz do dia, nem ao menos outra menção. Como
não sabemos as fontes de Hermilo, apenas indicamos a citação.
17
Borba Filho, Hermilo. A História do Espetáculo. Rio de Janeiro: ed. O
Cruzeiro, 1968; p.33.
18
Camargo, Roberto Gill. A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de
Cultura, 2000. p. 14.

23
consigo o signo de seu oposto, a escuridão. Reiterando a noção de contraste
como princípio fundamental da iluminação, mesmo do ponto de vista simbólico.

2.3 OTEATRO MEDIEVAL E O FOGO

O TEATRO SAGRADO medieval surge dentro das Igrejas, a princípio


dentro da própria liturgia da missa, nas celebrações da Páscoa e do Natal. No
decorrer dos séculos a representação litúrgica vai ganhando espaço e
independência dentro da missa: Nos Autos Pascais as representações tornam-se
cada vez mais elaboradas com a dramatização de vários trechos bíblicos em
interlúdios profanos que encenam o Sacramento no meio da missa - através de
diálogos escritos.

Os cenários são montados simultaneamente para as diversas cenas, em


vários locais da Igreja.
A simultaneidade da ação e as áreas utilizadas
determinaram o futuro palco de todo o teatro medieval.
(...) Os espetáculos eclesiais desfilam os eventos
bíblicos aos olhos do espectador com a mesma
19
justaposição simultânea de um telão pintado

A luz ganha concretude no espaço, desenhada no ar pela fumaça dos


incensos. O clima da iluminação é dado pelo contraste entre o mistério da luz
tremulante do fogo (presente em miríades de círios, velas e candelabros acesos)
e a transcendência da luz do sol filtrada pelos vitrais coloridos, colocados em
ângulos precisos em relação ao Sol e que se movimenta pelo espaço de acordo
com a hora do dia e as estações do ano, compondo com a arquitetura e
percorrendo no chão das catedrais e igrejas desenhos místicos.

Indo de encontro às grandes batalhas entre Deus e o Demônio, ou às


contradições entre o sagrado e o profano, o grotesco vai se infiltrando nas
representações do Teatro Medieval, e com ele as línguas e dialetos locais,
durante séculos; até a expulsão do teatro de dentro das igrejas, do altar para a
frente do portal, e na seqüência, dos pátios das Igrejas para as praças do
mercado. De volta à rua e à luz crua e direta do Sol.
19
Berthold, Margot, História Mundial do Teatro, São Paulo: Ed Perspectiva,
2003. pag. 196.

24
OS MISTÉRIOS E O FOGO DA BOCA DO INFERNO

OS Mistérios são grandes ciclos bíblicos que contam a Paixão de Cristo,


histórias do velho testamento e dos apóstolos. Começam a ser realizados a partir
do séc. XII, quando as cidades assumem através das suas corporações de ofício,
guildas e confrarias, as representações bíblicas que foram paulatinamente
expulsas das missas e dos adros das igrejas20. No século XIII os Mistérios
espalham-se e a maioria das cidades importantes da Europa tem a sua grande
representação, realizadas em geral nas datas de festa cristã. No decorrer da
ultima parte da Idade Média tornam-se um acontecimento fundamental para as
cidades crescentes dos séculos XIV e XV, fundindo a religião às feiras e ao
comércio. As produções tornam-se cada vez maiores e mais elaboradas e podem
durar dias ou até semanas.

Cada classe de artesãos assume a responsabilidade por uma das cenas


bíblicas apresentadas, incluindo a produção e execução dos cenários e figurinos
da representação. Muitos habitantes da cidade tomavam parte das cenas,
principalmente como figurantes, os dillettanti. Os cenários de cada cena ou evento
bíblico são construídos ao ar livre, todos dispostos pelo espaço de forma
simultânea, e a história é representada em ‘estações’, com o público
acompanhando o suceder dos passos da história sagrada. Nos palcos
simultâneos, todos os cenários e acontecimentos já estão dispostos no espaço e
no tempo, do início ao fim da história. Como na noção cristã do mundo, tudo já
está posto, do paraíso ao juízo final, formando um todo único e eterno à imagem e
semelhança de Deus.
O palco simultâneo corresponde exatamente a esse cunho
épico da representação; toda a ação já aconteceu e o próprio
futuro é antecipado, sendo tudo simultâneo na eternidade do
logos divino. A eternidade divina é atemporalidade em que o
“então” das origens corresponde com o “então” escatológico. O
palco simultâneo é a manifestação da essência, sobrepondo-se
á aparência sucessiva. 21

20
“O caminho da celebração litúrgica ao espetáculo teatral, que a Igreja havia
encetado e incentivado, fundia-se agora com o da ascendente população urbana
européia, que, nos séculos seguintes, determinaria o curso da história e dessa
forma, também o aspecto do teatro ocidental.” Berthold, Margot, História Mundial
do Teatro, Ed Perspectiva, São Paulo, 2003. Pág. 203.
21
Rosenfeld, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Editora Perspectiva,
1985.p.49.
25
22
Imagem do Mistério da Paixão de Valenciennes, 1547

A sucessão das cenas e a movimentação do público pelas diversas


‘estações’ mudam de acordo com a cidade e a região, gerando diferentes formas
de representação e relação espacial com a platéia. Nos países baixos e cidades
germânicas os cenários/cenas são montados nas praças, criando uma espécie de
cidade-palco por onde a platéia circula em procissão. Nas cidades da região
francesa as representações acontecem em compridos palcos-plataformas (como
mostra o desenho acima). Na Inglaterra, Itália e Espanha os cenários são
montados sobre carroças ou carros palcos, formando um ciclo processual onde
por vezes os espectadores seguem as cenas, por outras as cenas movem-se
enquanto os espectadores ficam parados.

O próprio espectador está no palco; o auditório é


simultaneamente o cenário e o palco. Palco e auditório,
realidade estética e empírica, põem-se em contato direto
e formam um único contínuo: o princípio da frontalidade
foi completamente abolido, o fim da representação
artística é a ilusão absoluta23

Como o grande apelo dramático dessas epopéias eram os êxtases e


milagres e os infernos e as danações, a grandiosidade dos cenários e os efeitos
especiais com maquinaria e fogo tornam-se muito importantes para a
grandiloqüência das cenas. Efeitos de explosão, fogo e raios flamejantes eram
fundamentais para o efeito de êxtase e terror da platéia. Os cenários do inferno
tinham grande função no clímax dos espetáculos e eram os carros chefes dos

22
Berthold, Margot, História Mundial do Teatro, São Paulo: Ed Perspectiva,
2003. Pág. 230.
23
Hauser, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo:
Mestre Jou, 1980-1982. Volume 1.p. 350.
26
efeitos especiais: as bocas do inferno tinham mecanismos de abrir e fechar as
mandíbulas e de soltar fumaça e línguas de fogo acesas artificialmente com
líquidos inflamáveis.

24
Boca do Inferno, Dresden, 1695

Seguindo a tradição vinda da Grécia, cabe ao fogo e aos truques


luminotécnicos o papel de efeito especial. Mas desta vez, há uma distinção clara
entre a luz do sol refletida em metais, seus raios e brilhos, que acompanham a
falange de Deus, Santos e anjos; e a luz do fogo presente nos locus dos infernos
e dos ímpios.

O fogo, que na Grécia significara a presença imanente do deus do


entusiasmo em cena; transforma-se na própria encarnação viva do inferno e seus
terrores. Aprofunda-se a significação do fogo em cena representar o seu
contrário, a escuridão e as trevas. Talvez pelo seu poder ao mesmo tempo
maravilhoso e assustador de nos encantar e ofuscar, deixando-nos
momentaneamente cegos.

No entanto a visão do fogo da boca dos infernos e as cenas grotescas e


cômicas que acompanham os pecados e as quedas dos simples mortais - tornam-
se as estrelas do espetáculo, ganhando cada vez mais espaço e interesse nas
representações. O Teatro Profano está desde sempre contido, escondido como
semente pronta pra brotar, dentro do Teatro Sagrado.

24
Berthold, Margot; História Mundial do Teatro, Ed Perspectiva, São Paulo,
2003; p.202.
27
O TEATRO PROFANO

O Teatro Profano multiplica-se em silêncio durante toda a Idade Média em


carroças de ambulantes. Há inúmeras formas de Teatro Profano que resistem ou
se desenvolvem neste período: Mimos e Mascaradas, Autos de carnaval, Farsas
e Bufonarias, várias espécies de “jogadores” e improvisadores como os
Joculatores, jongleaur ou Spileman.25 Menestréis, saltimbancos, jograis, músicos,
dançarinos, acrobatas, bobos, bufões e Arlequinos.

Profissionais, esses artistas vivem de arte e truques, circulam pelas


estradas, feiras e festas das cidades crescentes, formando um sistema radicular
de trocas e influências, que leva e trás cenas e técnicas teatrais, máscaras e
personagens, idéias novas e subversão, magia e segredos, ciência e técnica.
Estes artistas ambulantes, à margem das regras rígidas da vida medieval, têm
uma liberdade ímpar de ir e vir, de forma a criar uma espécie de "vida cultural
subcutânea" na Idade Média.

26
É fácil imaginar que suas representações utilizassem efeitos com fogo .
Hamilton Saraiva cita em sua tese de mestrado um desenho de palco de rua
francês de 1540, reproduzido abaixo, que se encontra na Biblioteca Municipal de
Cambrai.27

25
Berthold, Margot. História Mundial do Teatro, São Paulo: Ed Perspectiva,
2003. Pags. 242 a 267.
26
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990.p. 8.
27
Berthold, Margot. História Mundial do Teatro, São Paulo: Ed Perspectiva,
2003. p. 256.
28
Esse desenho mostra a utilização de fogo para iluminar um palco de
ambulantes. Podemos perceber pelo desenho que os dois recipientes com fogo já
formam uma pré-ribalta, inteligentemente colocadas na diagonal, o que completa
melhor a iluminação dos dois lados do corpo, do que se viesse da frente,
ofuscando menos a visão da platéia.

Embora a própria característica intrínseca de sua arte dever muito às


narrativas orais e ao improviso, não deixando uma dramaturgia ou história precisa
e oficial escrita, é sabido que eles mantém vivas muitas tradições antigas dos
mimos e comédias populares latinas. As técnicas que aprendem, aperfeiçoam ou
inventam por eles próprios são transmitidas de boca em boca. É muito provável
que muitas destas técnicas e truques de teatro, incluindo truques com fogo,
tenham resistido e se desenvolvido durante este período por meio da tradição
oral, passando de geração a geração na prática de mestres e discípulos,
chegando assim até o século XVI – quando serão compiladas, escritas e
aperfeiçoadas pelos grandes arquitetos e cenógrafos do Renascimento.

29
2.4 O RENASCIMENTO E O RAIAR DAS LUZES NO TEATRO

ANTECEDENTES DA AÇÃO

As transformações na estrutura feudal da Idade Média vêm sendo gestadas


desde o século XII, com o ressurgimento das cidades e o fortalecimento do
comércio. Cresce a população das cidades - os “burgueses” - com suas práticas e
necessidades específicas, acompanhados por uma nova trama de relações que
as cidades estabelecem.

Em 1492 a tomada de Constantinopla pelos turcos expulsa para o ocidente


levas e levas de homens em fuga, carregando consigo documentos e textos
fundamentais da cultura Greco-Romana. A difusão das obras e do pensamento da
28 29
cultura Clássica Greco-Romana , aliada ao Mecenato às artes e às ciências,
possibilitam a retomada da pesquisa e do desenvolvimento das ciências naturais,
da astronomia, da óptica, da matemática, da geometria, da arquitetura, da música,
da escultura, da pintura e do teatro.

O comércio necessita da ciência, da tecnologia e das artes como aliados; e


vice e versa. As Repúblicas italianas reuniram, no fim do séc. XV, a necessidade
e as condições técnicas30, econômicas31 e políticas32 que possibilitaram uma
reviravolta na forma do homem entender a si mesmo e ao mundo, uma revolução
cultural de grandes proporções: O Renascimento.

28
A partir de 1456, com a publicação da Bíblia de Guttemberg, a técnica
da tipografia possibilita a multiplicação dos textos escritos. Em 1467 o
Papa Paulo II instala o primeiro prelo em Roma, publicando importantes
obras em grego e latim.
29
O Mecenato é empreendido por grandes famílias italianas e pela própria
igreja católica. Os papas humanistas da Contra Reforma abrem o seio da
Santa Madre Igreja Católica para a paixão pela Antiguidade, assim como o
interesse pelas artes e as ciências naturais.
30
O desenvolvimento da navegação; a tipografia e o desenvolvimento de
técnicas de produção mecânicas que aumentam a produção dos artesãos.
31
O comércio entre o Ocidente e o Oriente, via península Itálica, gera
uma grande acumulação de capital nas mãos das cidades-estados italianas,
conseqüência de um forte do mercantilismo comercial.
32
A relativa independência política de cada uma destas cidades.
30
Na Itália a retomada da literatura dramática começa com o Teatro dos
Humanistas, que promovem leituras, declamações e, na seqüência,
representações das comédias e tragédias latinas; que logo incitam á produção de
novos textos inspirados na forma clássica. O teatro renascentista estabelece a
Poética de Aristóteles como ponto de referência para a teoria dramática.

A ARQUITETURA RENASCENTISTA E A CONSTRUÇÃO DE TEATROS

Do ponto de vista do espetáculo a transformação é total, a começar pelo


espaço que ele ocupa. A partir do séc. XV e principalmente durante o século XVI,
o teatro recolhe-se a espaços restritos, onde é possível cobrar ingressos ou
escolher os convidados. Alguns destes espaços continuam abertos à luz solar,
porém há uma tendência cada vez maior de ocupar espaços fechados e edifícios
construídos especificamente para as representações – os Teatros - colocando a
questão da ocupação espacial e visibilidade como problemas a serem resolvidos
e o desenvolvimento da iluminação cênica como uma necessidade.

As primeiras fontes de luz utilizadas foram velas33, de diversos tamanhos e


tipos, a princípio em candelabros colocados aleatoriamente pelo espaço, sem
distinção de local ou ângulo em relação à ação. Também foram utilizados outros
procedimentos como a combustão de óleos vegetais ou animais em lamparinas
de azeite ou óleo de baleia e latas ou vasos com água misturada em combustíveis
vegetais.

Do século XVI até o fim do século XIX, o fogo – em suas múltiplas formas e
através de inúmeras técnicas diferentes de combustão, controle e transformação
da luz – será a principal fonte de luz do teatro.

Os espetáculos começam a ocupar espaços fechados primeiro de forma


improvisada, segundo as características do teatro medievo de cada região;
depois, com o desenvolvimento da arquitetura renascentista, a construção de
teatros passa a ter um lugar importante nas cortes e cidades em expansão.

33
“A vela de cera, invenção dos fenícios (cerca de 300 d.C) foi por
muito tempo o único iluminante dos teatros.” Camargo, Roberto Gill; A
Função Estética da Luz, TCM Comunicação, Sorocaba, SP, 2000, p.15.

31
Na França, os palcos-plataformas franceses com seus Mistérios são os
primeiros a serem transferidos para grandes salões em hotéis ou palácios, ao
abrigo da corte.34 A iluminação a princípio ficava a cargo dos candelabros
originais, acrescidos de uma quantidade suplementar de velas. No primeiro
momento as representações em salões e festas, ligados às cortes absolutistas
francesas, trazem consigo a idéia de grandiosidade e luxo como fim estético, a
iluminação segue então a falsa idéia de que quanto mais velas, mais brilho e luz,
portanto a cada nova representação, multiplicam-se as velas por todos os lados,
ofuscando a platéia com seu brilho.

Na Espanha, as carroças de ambulantes estacionam nos pátios dos


hospitais (corrales) de irmandades religiosas. Os Corrales, como ficaram
conhecidos, serão os primeiros palcos do Siglo de Oro espanhol (1580-1680) e
funcionam de dia, à luz do sol. Na Inglaterra, a forma do teatro renascentista
também vem dos carros-palcos medievais, que aportam nos pátios de casas ou
pousadas. No fim do século XVI são construídos teatros elizabetanos como
espaços específicos para as representações, extremamente populares, que
aconteciam diariamente a partir das 14h, também à luz do Sol. Desenhos
mostram ribaltas e candelabros, o que indica a provável contracenação entre a luz
do dia e a luz do fogo na sombria Inglaterra. Apesar da intensidade da luz do fogo
representar pouca potência durante o dia, as temperaturas de cor muito diferentes
criam um contraste entre elas que desenha as formas. É conhecida também a
utilização de tochas ou velas nessas representações, assim como no teatro
grego, para representar em plena luz do dia as cenas noturnas ou soturnas.

Mas é na Itália, berço do Renascimento, que o incrível florescimento da


arquitetura renascentista traz grandes conseqüências para o espaço teatral e
suas técnicas.

34
“Sobretudo em Paris, desde muito cedo há a tendência de transferir o
espetáculo para um teatro fechado (...) A ‘Confrérie de la Passion’, de
Paris, representava desde o ano de 1411 em interiores, - a princípio no
hotel Fe La Trinité, depois no Hôtel de Flandre e, finalmente, no Hôtel
de La Bourgogne, onde o teatro francês mais tarde lançou as bases de sua
brilhante carreira com Molière e a Commedie Itallienne”. Berthold,
Margot, História Mundial do Teatro. São Paulo: Ed Perspectiva, 2003. P.227.

32
O desenvolvimento da arquitetura renascentista na Itália – inspirado pela
35
publicação de Vitrúvio em 1486 e regido por regras áureas da geometria e da
matemática – leva à construção de teatros a partir das formas e proporções dos
teatros romanos (como mostra abaixo uma fotografia do Teatro Olímpico de
Vicenza). Estes teatros eram construídos de forma a aproveitar a iluminação
natural: nas apresentações diurnas a cena era iluminada através de grandes
clarabóias no centro da construção e janelas atrás da platéia. Entretanto à noite a
iluminação artificial era necessária.

36
Imagem - Interior do teatro olímpico de Vicenza

No século XVI a construção de teatros segundo o modelo de Vitrúvio,


espalha-se pelas cidades italianas e, na seqüência, nos palácios e cortes de toda
a Europa 37.

35
“Se fôssemos escolher um marco para a ‘Renascença” do teatro, a data
seria 1486.(...) E foi nesse ano também que saiu do prelo a De
Architectura (10 livros sobre a Arquitetura) de Vitrúvio, uma
contribuição essencial para plasmar o palco e o teatro segundo o modelo
da Antiguidade.” Berthold, Margot; História Mundial do Teatro, Ed
Perspectiva, São Paulo, 2003, p.270.
36
“O melhor exemplo ainda hoje existente de um teatro renascentista
italiano é o Teatro Olímpico de Vicenza. Foi construído por Andréa
Palladio, que, após colaborar com Bárbaro na edição que este fez de
Vitrúvio, propôs-se a tarefa de reconstruir um teatro Romano antigo. A
nova casa foi inaugurada em 1584, com Édipo Rei de Sófocles.” Id. Ibid.,
p.287.
37
“Do século XVI em diante, os teatros em palácios assumiram
importância, tanto do ponto de vista da história cultural, quanto do da
Arquitetura”. Id. Ibid., p. 291.

33
O RENASCIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA CENOGRAFIA,
CENOTÉCNICA E ILUMINAÇÃO.

A partir da construção dos teatros, os arquitetos renascentistas vinculados


a partir de então às principais cortes da Europa, dedicam-se também à
cenografia. Revolucionam formas e composições em busca da perspectiva – a
grande paixão da Renascença.38

Para dar maior impressão de profundidade mesclam os telões pintados em


perspectiva com cenários construídos em proporção, com volumes, dando origem
ao palco e cenários renascentistas.

Através da prática de uma arte ligada à ciência, unem técnicas navais do


período das grandes navegações, às ciências da arquitetura, geometria,
matemática, óptica, entre outras, para o progresso da tecnologia da cena - a
cenotécnica.

Estes arquitetos italianos e seus discípulos: construtores de teatros,


cenógrafos, inventores de máquinas cênicas e mestres da arte da cenotécnia,
foram também os primeiros iluminadores. Sabedores da influência da iluminação
no efeito visual do espaço tomaram para si a tarefa de manipular artificialmente a
luz dos espetáculos. Para isso estudaram, aperfeiçoaram e compilaram as antigas
técnicas de utilização do fogo e, através de estudos e pesquisas práticas,
ampliaram em muito a tecnologia para iluminar e criar efeitos a partir da luz, que
foram a pouco e pouco tomando conta da cena. Suas experiências constituem a
base de toda a técnica da iluminação a partir de então, daí sua importância para a
compreensão da história da iluminação como um todo. Muito de seus trabalhos e
técnicas, tanto na arquitetura cênica, quanto na cenotécnica e iluminação serão
não somente incorporados às tradições do teatro como também especificamente

38
“A invenção da perspectiva central é, antes de tudo, expressão do
desejo renascentista de conquistar e dominar a realidade empírica no
plano artístico. Ela é sintoma de uma deslocação do foco de valores: a
transcendência cede terreno à imanência, o outro mundo a este, o céu à
terra. A perspectiva coloca a consciência humana - e não a divindade – no
centro; ela projeta tudo a partir deste foco central.” Rosenfeld, Anatol.
Traços Épicos no Teatro Pós-Medieval (Renascimento e Barroco) in O Teatro
Épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985, p.54.

34
estudados e relidos pelos principais encenadores do século XX, como, por
exemplo, Edward Gordon Craig e Max Reinhardt.

Com o objetivo de primeiro abarcar uma visão mais geral e aglutinadora,


para depois detalhar, faremos um rol das principais linhas de pesquisa e práticas
em iluminação cênica realizadas por esses mestres da arte e da técnica, de
acordo com as diferentes funções que a luz assume nos espetáculos:

1. Visibilidade. Os arquitetos dedicam-se à questão da visibilidade, estudando


como iluminar melhor a cena sem ofuscar os olhos da platéia.

2. Perspectiva. Preocupam-se com a interação entre a luz e o espaço com o


objetivo de aumentar a noção da perspectiva. A partir de seus
conhecimentos de geometria dão os primeiros passos no posicionamento
racional das fontes de luz, experimentando diferentes ângulos para iluminar
a cena em busca de maior visibilidade, volume, contraste e harmonia na
composição das cenas. São eles que criam os princípios matemáticos
básicos do desenho de luz, utilizados até hoje.

3. Efeitos especiais. Compilam, aperfeiçoam e inventam novos efeitos


especiais com “traquitanas” cênicas e fogo para imitar ícones da natureza
como o sol, a lua, raios e trovões, reflexos com rebatimento em metal e até
incêndios cenográficos.

4. Relação entre o palco e a platéia. Aumentam, aos poucos, a separação


entre a platéia e o palco através da iluminação39: diminuem a quantidade
de velas acesas na sala e deslocam os candelabros que iluminam a platéia
40
para o fundo, longe do ângulo de visão dos espectadores ; aumentam a

39
“Para aumentar o efeito perspectívico acentua-se a tendência a separar
palco e platéia. Esta separação se destacará ainda mais (...) na medida
em que os palcos se fecham em prédios, pela instalação da ribalta que
dota a cena de sua própria luz. O público, por sua vez, que antes
comungava da mesma luz da cena (quer do sol, quer das velas e lâmpadas),
pouco a pouco é envolto em penumbra, como se não existisse para o palco,
enquanto este, luminosa lanterna mágica, desenvolve para a platéia em
trevas toda a sua força hipnótica.” Rosenfeld, Anatol. Traços Épicos no
Teatro Pós-Medieval (Renascimento e Barroco) in O Teatro Épico. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1985, p.55.
40
Encontramos algumas tentativas de apagar totalmente a luz da platéia,
mas elas não funcionam porque a função social do espetáculo necessita que
a platéia se veja no teatro.
35
quantidade de fontes de luz do palco e, finalmente, adotam as luzes da
ribalta como iluminação principal da cena. A ribalta, localizada na fronteira
entre o palco e a platéia, além de promover uma luz mais intensa, cria um
abismo físico e luminoso entre esses dois mundos.

5. Atmosfera. Desenvolvem as primeiras técnicas para variar a intensidade da


luz no meio das representações ou mudar as cores da cena através da
iluminação, sugerindo as primeiras “atmosferas” luminosas.

6. Pesquisa e documentação. São também os primeiros a escrever sobre


iluminação cênica em seus tratados sobre arquitetura, cenários e
cenotécnica, que incluem a luminotécnica.

É importante notar que as mudanças empreendidas pelos arquitetos


renascentistas na concepção e prática da iluminação cênica; descritas de forma
geral através dos seis itens acima, não aconteceram de uma hora para outra, nem
foram aceitas imediatamente como pratica por todos os teatros. Pelo contrário,
foram conquistas advindas da pesquisa prática de homens de teatro que se
caracterizaram pela audácia, descritas em trabalhos teóricos que justamente se
opunham ao senso comum trazendo inovações, algumas delas só se tornaram
prática corrente no teatro moderno. A seguir citamos alguns destes arquitetos
renascentistas e levantamos suas práticas na iluminação cênica.

OS GRANDES MESTRES DA ARQUITETURA RENASCENTISTA NO SÉCULO


XVI E SUAS PRÁTICAS NA CENOGRAFIA E ILUMINAÇÃO CÊNICA

SEBASTIANO SÉRLIO (1475 – 1554)

Arquiteto, discípulo de Perruzi, construtor de teatros e cenografias. Foi o


grande teórico da construção teatral do século XVI; escreveu cinco tratados sobre
arquitetura: o primeiro deles chamado "Regole generali d'architettura” foi
publicado em Veneza em 1537. O Libro Secondo di Perspettiva da Architettura,
tratado específico sobre arquitetura cênica, cenografia e perspectiva, foi publicado
em 1545. Reunidos depois de sua morte em um único volume, chamado
Architettura, foi publicado em vários países como um importante compêndio da
arquitetura renascentista. Em seu tratado sobre cenografia - Libro Secondo di
36
Perspettiva da Architettura - reúne e descreve suas importantes contribuições
para a cenografia renascentista, com desenhos e explicações técnicas
detalhadas41. Abaixo pontuamos as mais significativas para nosso trabalho:

Sebastiano Sérlio transforma as bases da utilização da perspectiva no


teatro: muda o ponto de fuga para trás da parede do fundo do teatro, conseguindo
assim aumentar a sensação de profundidade e ganhar mais espaço para a
atuação na frente. Substitui as sólidas construções cênicas, por bastidores em
ângulo, facilitando a construção, a colocação dos cenários e a circulação da cena.
Seguindo as prescrições de Vitrúvio, retoma as três formas do teatro grego e
latino e estabelece três tipos básicos de cenário, incluindo os efeitos da
perspectiva. São eles a Scena Trágica (representando uma arquitetura de palácio
em perspectiva, a Scena Cômica (uma vista de rua em perspectiva) e a Scena
Satírica (uma paisagem arborizada para as pastorais).

Sebastiano Sérlio é o primeiro a escrever sobre a relação entre a luz e o


espaço cênico. Para organizar a disposição das fontes de luz pelo espaço, separa
a luz “para ver”, ou seja, a luz geral; da luz que desenha o espaço para dar a
noção de profundidade. Também separa as duas primeiras dos “efeitos
especiais”. Cada uma dessas funções tem as suas fontes de luz, que não se
misturam.

Esse construtor do século XVI informa que essas


luzes [coloridas] não são as que servirão para iluminar
a cena, mas representam os “efeitos especiais”, já que
as luzes de cena serão feitas pelos candelabros e com os
vasos cheios de água, nos quais se colocam cânfora que,
ardendo, dá uma bela luz e odorífica o ambiente.42

41
Gostaríamos de declarar aqui que infelizmente não foi possível ler
diretamente a obra de Sebastiano Sérlio. Lemos as seguintes fontes:
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica
Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990; Camargo, Roberto Gill.
A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de Cultura, 2000. Streader, Tim e
Williams, John A. Create Your Own Stage Lighting. New Jersey: Prentice Hall Inc., 1985.
Moussinac,Léon. História do Teatro das origens aos nossos dias. Trad.
Mario Jacques. Portugal: Livraria Bertrand, s/d. Keller,Max. Light
Fantastic. The Art and Design of Stage Lighting. Munique: Prestel Verlag
2006.
42
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica.
Op. Cit. p.15.

37
Para iluminar a cena, ou seja, como luz geral: descreve o uso comum de
velas em lustres, dispostos no alto, lâmpadas de azeite de baleia penduradas em
grande quantidade e bacias de água com óleo vegetal no chão. Para estas luzes
de chão, propõe criar um “espelho”, composto do mesmo latão da bacia, bem
polido, para esconder as chamas da platéia e refletir mais luz para a cena.
Preocupa-se em esconder todas as fontes de luz (menos os lustres do alto) dos
olhos da platéia, para não ofuscá-la, tornando então a cena mais clara.

Para servir de luz complementar e desenhar o espaço: com o objetivo de


aumentar a noção de profundidade, emprega luzes laterais, entre os cenários
construídos e a tela de fundo; para iluminar bem a tela pintada e minimizar as
sombras das luzes da ribalta, usa um grande lustre central, que ilumina a tela de
cima; para a iluminação através de janelas, coloca a fonte de luz por trás e vidros
ou papéis coloridos na janela cênica, de forma a criar um efeito de projeção de
cores e também avivar a existência destas janelas na cenografia.

Descreve também vários efeitos para transformar a luz do espetáculo;


explicitando em seu texto que essas luzes não servem para iluminar a cena, mas
representam “efeitos especiais”:

Relata formas para colorir a luz da cena - utiliza velas e lamparinas


como fonte de luz, por trás de orifícios feitos na parede, nos quais havia
recipientes (construídos com vidros especiais, alguns côncavos) com
líquido de várias cores: “No seu segundo livro de Architettura ensina como
fazer as cores transparentes para luz artificial partindo do azul até chegar
43
ao safira.” Quanto aos efeitos para colorir a cena, com certeza
dependem de uma grande quantidade de velas por trás dos recipientes
com líquidos coloridos, porque muito da luminosidade das velas é
absorvida pelas cores. Mas o resultado é surpreendente porque a luz viva
das chamas cria miríades de reflexos coloridos em movimento.44

43
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, p.14.
44
Já realizei esta experiência em sala de aula para iluminar uma cena de
“A Vida é Sonho” e o efeito é muito bonito. Como as fontes de luz têm
movimento os reflexos coloridos são bem diferentes da cor regular
resultante dos filtros coloridas em lâmpadas elétricas.
38
Indica a utilização de metais polidos (latão) para refletir as luzes das
velas e criar brilhos e raios.

Utiliza tochas, foguetes e estopa embebida em álcool ou cânfora


para efeitos especiais com fogo, incluindo os perigosos “incêndios cênicos”;

Conta como utiliza técnicas do teatro de sombras, para projetar, por


trás, imagens no pano de fundo: “como forma de representar, ao fundo, as
figuras de músicos e até uma multidão a pé ou a cavalo nos entreatos.” 45

Relâmpagos “eram feitos com um pó inflamável, que era colocado


numa caixinha cheia de buracos na tampa. Sobre a tampa, bem no meio,
uma vela acesa; levantando-se a caixa rapidamente o pó se inflama
fulgurantemente, dando a sensação do relâmpago” 46

É importante notar aqui que a separação que Sebastiano Sérlio faz entre
as fontes de luz “para iluminar” e as demais luzes já caracterizam do ponto de
vista conceitual uma separação de planos de luz, por função: a iluminação como
instrumento da visibilidade, representada pela iluminação geral, as luzes laterais,
que desenham o espaço, os “efeitos” que têm função dramática, como raios e
incêndios. Sobre essa distinção proposta por Sebastiano Sérlio, conclui Max
Keller:

Em termos de iluminação cênica ele distingue entre


luz geral - luz decorativa, que ilumina os cenários – e
luzes móveis e efeitos que representam o Sol, estrelas e
luz.47

Eu acrescentaria mais uma distinção realizada por ele, não na teoria, mas
na prática, as luzes coloridas, que servem para criar diferentes “atmosferas” na
cena.

45
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica.
Op. Cit. p.15.
46
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica.
Op. Cit. p.15.
47
Keller, Max. Light Fantastic. The Art and Design of Stage Lighting.
Op. Cit. p. 16.
39
JACOPO BAROZZI DA VIGNOLA (1507 – 1573)

Arquiteto e artista plástico. Autor do tratado Le Due Regole Della


Prospecttiva Pratica. Vignolla prova, através da geometria, que o ângulo ideal de
incidência da luz sobre um objeto é a diagonal.

Todo iluminador com alguma prática sabe a importância do ângulo de 45º


(diagonal) para a incidência da luz. A diagonal é conhecida como o “ângulo
48
perfeito” porque revela por igual duas ou três dimensões49 das formas
iluminadas. Desta forma aumenta a percepção do volume, dando profundidade e
harmonia ao conjunto.

Muito utilizado, este cálculo matemático é fundamental para o


posicionamento dos refletores da “luz geral”, que normalmente é desenhada para
criar uma incidência de 45º de um lado e do outro do palco e por isso mesmo é
conhecida também como “geral cruzada”. A mesma relação matemática é
utilizada para a escolha do local para a instalação das varas de luz de um teatro
em construção.

LEONE DE’SOMMI (1525/27– 1586/92)

Leone de’Sommi, segundo descrição de Jacó Guinsburg:

Dramaturgo, encenador, teórico do teatro, poeta


tanto em hebraico quanto em italiano, participou
intensamente da vida teatral renascentista com numerosas
criações dramáticas e cênicas e com concepções teatrais
cuja originalidade vem sendo destacada crescentemente
pelos estudos críticos modernos.50

Alem dos poemas, canções e peças de teatro, incluindo pastorais,


intermédios e comédias, Leone de’ Sommi escreveu uma importante obra de
teoria teatral em forma de diálogo – Dialoghi in Matéria di Representationi

48
Incidência a 45º da aresta de um cubo.
49
Incidência a 45º do canto do cubo.
50
Guinsburg, Jacó; Leone de’Sommi: Um Judeu no Teatro da Renascença
Italiana. São Paulo: Ed Perspectiva, 2001, P.16.

40
Sceniche – onde discute suas concepções e práticas sobre o fazer teatral. Nestes
diálogos, entre vários aspectos da cena, expõe suas idéias sobre a iluminação do
palco e também da platéia, propondo uma função para a iluminação no
espetáculo absolutamente inovadora para sua época. Para além da questão da
visibilidade, afirma que a quantidade e qualidade da luz têm influência na
atmosfera da cena e na relação emocional entre o espectador e o espetáculo.
Transcrevemos a seguir alguns trechos da sua obra por considerá-los de suma
importância para esse trabalho:

SANTINO: ...uma vez que em vosso palco já estão acesas


tantas luminárias que se começa a discerni-lo muito bem
e ele constitui por si mostra muito bonita, desejaria
como primeira coisa, Messer Verídico, que nos dissésseis
para que servem e onde têm origem todas essas lâmpadas
que se acedem pelos tetos das casas em cena (...) para
iluminar o palco vejo aqui tochas em quantidade
suficiente.
VERIDICO – É preciso que também o arquiteto, pela parte
que lhe cabe na comédia, represente regozijo e júbilo; e
visto que o uso moderno e antigo é, e sempre foi que se
acendam, como signos de alegria, fogos e luminárias
pelas ruas, nos telhados das casas e no alto das torres,
de onde se originou depois este uso no teatro.
SANTINO – Às tragédias, portanto, não conviriam tais
luminárias?
VERIDICO – Nem desconviriam talvez em tudo (...). Foi o
que se deu numa tragédia que dirigi entre outras. A cena
permaneceu iluminada da forma mais jovial durante todo o
tempo em que os sucessos da história corriam de maneira
feliz. Quando começou o primeiro caso doloroso (...) fiz
com que (como eu havia preparado) naquele instante a
maioria das luzes do palco, que não serviam à
perspectiva, fossem veladas ou apagadas, coisa que
causou profundíssimo horror no peito dos espectadores.51

O trecho citado acima explicita não só o efeito da luz sobre a emoção da


platéia, como a autoria e consciência deste efeito - ou seja, a luz é linguagem
consciente na mão do diretor e do arquiteto (leia-se aqui em relação ao

51
Sommi, Leone de’. Quatro Diálogos em Matéria de Representação Cênica
in Guinsburg, Jacó; Leone de’Sommi: Um Judeu no Teatro da Renascença
Italiana. São Paulo: Ed Perspectiva, 2001, p. 111, 112. (IV Diálogo)
41
espetáculo a função moderna do cenógrafo, acrescida do cuidado com as luzes).
Podemos apreender também deste trecho a distinção entre diferentes funções da
iluminação, cada qual com suas fontes de luz específicas e separadas: existem as
tochas que iluminam o palco, as luzes que servem à perspectiva (provavelmente
luzes laterais) e as lâmpadas espalhadas “pelos tetos das casas em cena”, que
fazem parte da própria ficção – “signos de alegria” – uma luz com função
atmosférica. Cabe notar ainda que mais do que a quantidade ou a qualidade da
luz, em si, o que interessa a Leone de´Sommi é a transformação em cena desta
quantidade ou qualidade da luz, ou seja, é no movimento da iluminação, que ele
obtém o forte efeito emocional desejado sobre a platéia.

Além da iluminação do palco, Leone de´Sommi também estuda a


localização e intensidades das fontes luminosas da platéia. Preocupa-se em
reduzir e ocultar as fontes de luz da sala dos espectadores porque sabe que a
penumbra na platéia tem como efeito direto, por contraste, tornar o palco mais
iluminado aos olhos dos espectadores:

SANTINO – Chama a minha atenção, Messer Veridico, que sobre


essa vossa cena existam muitíssimas luminárias, ocultas e à
vista; no entanto, aqui, na sala, não há arranjos para
colocar mais do que doze tochas ali, de pé; não consigo
imaginar a causa, pois nesta sala, tão grande, já cheguei a
contar em muitas ocasiões duzentos e cinqüenta tochas.
VERIDICO – Como sabeis é coisa natural que o homem,
encontrando-se no escuro, veja melhor algo que reluza ao
longe, do que o faria estando em lugar iluminado, porque a
vista vai mais unida ao objeto, sem vaguear, ou, segundo o
parecer dos peripatéticos, o objeto vem apresentar-se mais
unidamente ao olho. Por isso instalo pouquíssimas luminárias
na sala, ao mesmo tempo em que tento tornar o palco
resplendente; e inclusive estas poucas, disponho-as atrás
dos ouvintes, a fim de que a interposição de tais luzes não
ofusque a visão dos espectadores, e por cima delas abro
também, como vedes, os espiráculos, de modo que não possam
com a fumaça causar dano em parte alguma.52

52
Idem Ibidem, p. 114. (IV Diálogo)
42
Esta preocupação inaudita com o olhar da platéia prenuncia uma
importante questão para o teatro moderno – a relação entre a cena e o público,
expressa também pela separação luminosa, ou não, entre o palco e a platéia. 53

ÂNGELO IGGEGGNERI (1550 – 1613)

Dramaturgo, teórico e diretor de Teatro 54, escreveu o Discorso della poesia


rappresentativa e del modo di rappresentare le favole sceniche. Iggeggneri tentou
pela primeira vez, em 1598, apagar totalmente a luz da platéia deixando-a no
escuro, com o objetivo de concentrar a atenção do público na representação.
Porém não teve êxito. Hamilton Saraiva explica essa impossibilidade por razões
técnicas:
Isso [apagar a luz da platéia] não foi possível
realizar, em virtude das dificuldades de se apagar e
acender, em cada ato, os grandes lustres suspensos 55

Denis Bablet, no entanto, acrescenta um aspecto social:

Numa sala iluminada o espectador não é senão um dos


elementos de uma sociedade vinda para ver e fazer-se
ver, duma ponta a outra da ferradura da sala clássica.
56

Os arquitetos e dramaturgos-encenadores do Renascimento relacionam a


luz à percepção do espaço, preocupam-se com a afinidade entre a luz e a
atmosfera da obra dramatúrgica e a conexão entre a luz do palco e a luz da

53
“Assim Leone de’Sommi evidencia um senso de iluminação cenográfica
que, embora limitado quanto aos recursos técnicos, pouco fica a dever às
premissas básicas da moderna encenação. (...) Pois a sua recomendação de
manter o auditório no escuro, numa época em que costumava em geral
iluminá-lo (...) desenham, na verdade, mais do que simples disposições
pragmáticas, uma visão incomum do caráter do espetáculo como fenômeno
teatral e da relação que este deve estabelecer com seus receptores.”
Guinsburg, Jacó; Leone de’Sommi: Um Judeu no Teatro da Renascença
Italiana. São Paulo: Ed Perspectiva, 2001, p. 41.
54
"Angelo Ingegneri si considerava ed era, oltre che autore un regista:
a lui si deve la messa in scena dell' Edipo Rei, con cui si inaugurò il
Teatro Olimpico di Vicenza” C.Molinari, L'attore e la recitazione,Roma-
Bari, Laterza,1992, p.30.
55
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990.Pag. 16.
56
Bablet, Denis. “A Luz no Teatro” in O Teatro e sua Estética. Lisboa:
Ed. Arcádia, 1964. p. 295.

43
platéia. Concebem técnica e arte em conjunto. Integram a prática com a teoria.
Ou seja, concebem a iluminação cênica, assim como os demais elementos do
espetáculo sob uma ótica global, onde tudo se relaciona formando um conjunto de
significações. Nunca na história do teatro estivemos tão próximos da concepção
da encenação moderna e estes artistas múltiplos são o arquétipo do homem de
teatro que Craig desejou como encenador, capazes de conceber, construir, pintar,
escrever, dirigir e ainda teorizar sobre a própria arte. É por isso que no raiar da
encenação moderna, os encenadores retomarão as concepções dos homens de
teatro do Renascimento e do Barroco (séculos XVI e XVII), buscando renovar
uma visão total do espetáculo, relacionando as suas técnicas aos seus sentidos
profundos. Como em Shakespeare, as razões do Homem, do Estado e do
Cosmos estão em profunda aliança, se alguma coisa sai do lugar, tudo desaba.

2.5 A CLAREZA DO RENASCIMENTO DISSOLVE-SE NOS CONSTRASTES


DO BARROCO

Costuma-se designar com o nome de barroco o estilo


no qual se dissolveu a Renascença ou – como se diz
muitas vezes – o estilo que resultou na degeneração
da Renascença 57 Wölfflin, Heinrich

MUNDO –... Descerrarei essa névoa, e ao fugir o véu


escuro, para iluminar o teatro, (porque sem brilho
profuso não há festa), brilharão dois luminares,
diurno farol do dia seja um, e, assim, da noite
noturno farol o outro seja, em quem ardam mil
luminosos carbúnculos que sobre a face da noite
dêem vivificadores influxos 58 Calderon de La Barca

A contradição entre o racionalismo terreno da Antiguidade e a fé no


sobrenatural da Idade Média – que estivera latente no Renascimento - explode no
Barroco em um contraste feroz entre a luz e a sombra.

57
Wölfflin, Heinrich. Renascença e Barroco; São Paulo: Ed. Perspectiva,
1989, p.25.
58
Calderon de la Barca, Pedro. O Grande Teatro do Mundo; trad. Maria de
Lourdes Martini, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p.4.
44
“Ao contrário da Renascença, o Barroco não foi acompanhado de teoria. O
59
estilo se desenvolve sem modelos.” Tendo a transgressão das regras formais
da Renascença por impulso e o contraste como princípio, no Barroco tudo leva ao
exagero emocional e ao movimento advindo da tensão entre contrários. A
transformação é a palavra mágica do barroco:

Na era Barroca a linearidade clara e clássica da


Renascença adquiriu apelo emocional, a linha reta –
tanto nas estruturas quanto no pensamento – dissolveu-se
no ornamento, a clareza deu lugar á abundância, a auto-
confiança á hipérbole. Os conceitos vestiram os trajes
da alegoria, e a realidade perdeu-se no reino da ilusão.
O mundo se tornou um palco, a vida transformou-se numa
representação 60

A noção da vida como representação, recorrente e subjacente ao Barroco,


leva, por conseguinte, a Representação, em suas várias formas, a tornar-se a
expressão maior da própria vida, e, portanto, a assumir importante papel na
cultura e no modo de vida do século XVII.

Das danças da corte surge o Ballet61. Da revivicação do drama antigo no


espírito da música surge a ópera que se espalha com pompa e circunstância por
todas as cortes da Europa, levando com ela arquitetos, cenógrafos e
cenotécnicos italianos.

62
Na pintura e na arquitetura barrocas o estilo pictórico baseia-se nos
contrastes de claro e escuro e no movimento livre das formas.

59
Wölfflin, Heinrich. Renascença e Barroco; São Paulo: Ed.Perspectiva, 1989,
p.34.
60
Berthold, Margot. História Mundial do Teatro; São Paulo: Ed.Perspectiva,
2003, p.322.
61
Na França, essa idéia renascentista de “fusão das artes” gerou uma
forma de teatro especificamente adequada à corte e à alta sociedade.
Nesta nova forma teatral a parte principal dizia respeito à dança: o
ballet de cour” Berthold, Margot. História Mundial do Teatro; São Paulo:
Ed.Perspectiva, 2003, p.330.
62
“O estilo pictórico visa à impressão do movimento. A composição
segundo massas de luz e sombra é o primeiro momento desse efeito;
menciono como segundo a dissolução da regra (estilo livre, desordem
pictórica).” Wölfflin, Heinrich. Renascença e Barroco; São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1989, p.42.
45
No teatro barroco os contrastes também passam a ser utilizados de forma
consciente. As mudanças de luz63 e os efeitos visuais tomam grandes proporções,
atraindo um público que vai ao teatro não apenas para acompanhar as histórias e
escutar o texto, mas para impressionar-se com o “espetáculo”.

Essa característica “espetacular” do teatro barroco e da ópera fermenta


grandes transformações no espaço cênico e suas condições técnicas.

O BARROCO E A TRANSFORMAÇÃO DO PALCO RENASCENTISTA EM


TEATRO ITALIANO

Batista Aleotti, arquiteto da corte de Ferrara desenvolveu mudanças


importantes no palco renascentista, rumo ao palco italiano: inventou os bastidores
nivelados deslizantes e aumentou a área de atuação em profundidade até a
parede do fundo “característica do melhor período do teatro barroco e decisiva
ruptura formal com a área de ação transversal do proscênio da Renascença” 64

As mudanças seqüentes na profundidade do palco Renascentista; a invenção


65
dos bastidores em nível e deslizantes ; o aperfeiçoamento da maquinaria de
palco e o desenvolvimento da cenotécnica, a invenção de máquinas cênicas e
66
sua difusão, a mobilidade das varas cenográficas ; a criação dos primeiros
refletores à luz de velas e a iluminação cada vez mais elaborada; são
responsáveis pela invenção do Palco Italiano. Assim como pelo estabelecimento
desta forma de edifício teatral como modelo de Teatro e por sua multiplicação por
todo o mundo.

63
“No espírito do alto barroco a característica dominante de todas essas
produções era o efeito sensível das mudanças de luz” Berthold, Margot.
História Mundial do Teatro; São Paulo: Ed.Perspectiva, 2003, p.338.
64
Berthold, Margot; História Mundial do Teatro, Ed Perspectiva, São Paulo,
2003; p.335.
65
“Os bastidores em nível e deslizantes constituíram a grande novidade
do teatro barroco(...)Esse cenário consistia em uma série lateral de
molduras de ripas revestidas de tela pintada que deslizavam sobre
trilhos.” Berthold, Margot. História Mundial do Teatro; São Paulo:
Ed.Perspectiva, 2003, p.335.
66
Aliando os conhecimentos de arquitetura e cálculo às técnicas navais
da época das grandes navegações.
46
OS GRANDES MESTRES DA CENOGRAFIA E AS TÉCNICAS DE ILUMINAÇÃO
NO SÉC XVII

NICOLA SABBATTINI (1574 – 1654)

Arquiteto, cenógrafo e ‘fabricante de máquinas e cenários de teatro’. Grande


teórico da construção teatral, cenotécnica e luminotécnica do século XVII,
escreveu o mais importante tratado de técnica teatral do seu tempo, o livro
“Pratica di Fabricar Scene e Maquine ne Teatri” (1638).

Neste livro Sabbattini descreve


em detalhes várias máquinas para
realizar efeitos e truques teatrais,
incluindo protótipos de equipamentos
de iluminação cênica que antecipam
os equipamentos utilizados e
produzidos no século XX como, por
exemplo, um protótipo do primeiro
refletor de teatro e outras invenções
e “traquitanas” utilizadas por ele, que
estão descritas a seguir:

Para diminuir e aumentar


a intensidade da luz Sabbattini
inventa um dispositivo com
cilindros de metal que descem e
sobem sobre as velas
(considerado o primeiro
‘dimmer’ da iluminação cênica).
Chamado de método Sabbattini
de controle das intensidades.

47
Em seus escritos sugeriu um telão branco no fundo da cena para a criação
do céu e fundo infinito, idéia que será utilizada e modificada por vários artistas da
cena, até transformar-se no ciclorama do palco italiano.

Sabbattini foi o primeiro a escrever contra as luzes da ribalta, como farão


mais tarde os encenadores do fim do século XIX, em nome da realidade do
ângulo de incidência da luz. De qualquer modo este texto, além da crítica
propriamente dita, também atesta a prática comum da utilização da ribalta, como
a luz principal para iluminar os atores nesta época.

Uma primitiva invenção que ofusca e deforma os atores,


com aquele tormento imediato sobre a vista e aquelas
feias latas cheias de luzes que se colocam ao pé da cena
á vista de todos os espectadores e se carregam de lá
para cá, de acordo com a necessidade. 67

Sabbattini inventou também o conceito e a prática da luz lateral. Ele


colocava as fontes de luz apenas de um lado do palco, como na iluminação
natural no fim da tarde, com o sol se pondo na coxia. Esse efeito denota a
escolha de uma linha principal de onde vem a luz, um ponto de vista, que
determina desenho, volume e movimento, a partir do contraste entre a luz e a
sombra.

JOSEPH FURTTENBACH (1591 – 1667)

Arquiteto e cenógrafo foi discípulo de Giulio Parigi em Florença. Construiu


a primeira casa de espetáculos civil da futura Alemanha, em 1641. Levou grande
parte das famosas maquinarias da Renascença e do Barroco italianos para o seu
teatro, incluindo luzes que podiam ser diminuídas, máquinas voadoras e um
dispositivo de sua invenção para “iluminar os espaços dos camarins atrás do
prospecto do fundo do palco e através de transparência” e assim incluí-los no
quadro cênico para efeitos espetaculares. Também criou um refletor, composto
por uma caixa de metal com uma vela dentro, respiradouro para o calor e a
fumaça e uma alça que permitia pendurar o dispositivo e afiná-lo. A superfície

67
Sabbattini, N. apud Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História,
Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990. p.
19.
48
interna deste projetor tem uma forma composta por ângulos contíguos e desiguais
com o objetivo de difundir a luz refletida.

IÑIGO JONES (1573 – 1652)

Inglês de origem espanhola, arquiteto e discípulo de Palladio. Levou muitas


técnicas do barroco italiano para o teatro inglês. Há evidências escritas de que
por volta de 1600 ele teria começado a usar luzes de chão colocadas na borda do
Proscênio, a ribalta. A partir de 1605 Iñigo Jones começa a construção de teatros
á Italiana na Inglaterra. Data de 1610 o primeiro espetáculo inglês realizado á
noite em um desses teatros.

2.7 O ROMANTISMO E O APERFEIÇOAMENTO DA CAIXA MÁGICA DE


ILUSÕES

Na passagem do século XVII para o século XVIII a quantidade de fontes de


luz e os ângulos de incidência utilizados já são múltiplos: ribalta, laterais, luzes
frontais em grandes candelabros, inclinadas, de cima, penduradas no fundo do
palco como contra luz ou por trás de tecidos em sombra ou transparência.
Sempre á luz das chamas. Os efeitos cenotécnicos e as transformações na
iluminação durante o espetáculo maravilhavam as platéias. A grandiloqüência do
Absolutismo em pleno esplendor do fim, para gozo da burguesia ascendente, fez
do palco italiano a grande “caixa-mágica de ilusões”.

Do ponto de vista técnico a grande mudança trazida pelo séc. XVIII é a


utilização generalizada das lâmpadas ou lampiões a óleo em substituição às
velas, com maior controle da chama:

As lâmpadas a óleo surgiram no século XVIII, e


também os refletores de brocal, mica (malacacheta) e
cobre polido, com a função de espelhar e refletir a luz
68

No fim do século XVIII Ami Argand empreende melhorias nos lampiões à


óleo: Regulagem da chama e a cúpula de vidro com uma abertura superior
aumentam o controle sobre as intensidades e a segurança dos teatros. Essas

68
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990.Pag. 34.
49
cúpulas de vidro também possibilitam a mudança da cor da luz, pois podiam ser
pintadas com anilina transparente. Os lampiões Argand são produzidos em série,
assim como o lampião Astral francês, e os produzidos por Bernard Carcel.

Com a revolução industrial o teatro Inglês tem um grande impulso


econômico, levado pela burguesia e as classes médias em ascensão, o teatro vira
um negócio, como tudo o mais, muito lucrativo e caro, com um grande
investimento técnico.

Vale à pena citar, como exemplo, a trajetória do ator e produtor David


Garrick para acompanharmos as transformações do teatro Inglês. Depois de uma
longa viagem pela Europa, Garrick introduziu um novo sistema de iluminação no
Drury Lane Theatre, que passou a ser dos teatros melhor equipado da Europa,
por muito tempo:

David Garrick, em 1765, sugeriu que se retirassem


as fontes visíveis do palco do Drury Lane em Londres,
preferindo usar luzes laterais, ribalta e, inclusive,
iluminação vinda de cima 69

Escondendo todas as fontes de luz dos espectadores tornou, por contraste,


o palco mais iluminado e de maneira mais suave (já que as fontes de luz visíveis
ofuscam a vista da platéia). O resultado aumenta significativamente a sensação
de realidade da cena. Em 1771 ele convida Phillip de Loutherbourg para desenhar
cenários para o Drury Lane. Este brilhante cenógrafo francês explora a relação
entre a cenografia e a luz, criando atmosferas coloridas e efeitos óticos a partir de
reflexões, rebatimentos e transparências:

Loutherbourg se utilizava de sedas coloridas


transparentes como filtro de cor. Esse cenógrafo sugeriu
que se usasse no palco a lua e o sol refletidos em uma
lâmina de água, que fizesse parte da cenografia. (...)
Em 1785, Loutherbourg e as companhias de balé iniciam a
utilização de gaze para efeitos de cena, desenhando e
pintando telas sobre as mesmas.70

69
Camargo, Roberto Gill. A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de
Cultura, 2000; pag. 17.
70
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, pags. 35 e 36.
50
O princípio do jogo de luzes em gaze transparente criado por Loutherbourg
é importantíssimo para a história da luz e da cenografia porque será retomado
inúmeras vezes, com funções totalmente diferentes, em experiências importantes
de momentos distintos da história. O princípio é extremamente simples, mas parece
uma mágica... Uma tela ou cortina de tule ou gaze transparente, se iluminamos o
que está atrás dela (sem jogar nenhuma luz no tecido) a tela desaparece, fica
absolutamente transparente; se jogamos luz pela frente, batendo na tela, ela fica
opaca e o que está por trás desaparece, se jogarmos luz de trás teremos uma
sombra... Esse princípio cria vários efeitos como profundidade, fusão ou
sobreposição de imagens, cores ou formas.

Loutherbourg desenvolve um estilo tipicamente romântico, mergulhando o


palco em atmosferas banhadas de leveza através do jogo de luzes e cores sobre
telas transparentes. Essas experiências têm a vantagem de serem realizadas no
âmbito da dança, mais abstrato e mais livre para digressões formais do que o teatro
falado, preso à verossimilhança.

A iluminação cênica no teatro do séc. XVIII é um desenvolvimento do que


havia acontecido na Itália, no século anterior. Embora em constante “progresso”
técnico, não sofre nenhuma mudança conceitual.

Durante a ascensão da burguesia os teatros deixam de ser uma


exclusividade das cortes. Teatros são construídos pelos Estados Nacionais ou
pelas municipalidades, pertencendo não mais a castelos ou a grandes famílias,
mas à cidade e aos cidadãos. No entanto a forma do espetáculo não sofrerá –
como a política – uma reviravolta, muito pelo contrário. 71

Do ponto de vista do espetáculo em sua visualidade, a caixa de ilusões do


palco italiano – que foi urdida no renascimento e ganhou fama e forma no barroco
– progride tecnicamente no século XVIII, com filosofias e estilos literários
variados, mas numa linha contínua rumo á “ilusão da verdade” – que por sua vez

71
“A classe média, de espírito racionalista, moderada e disciplinada,
por seu lado, prefere, freqüentemente, as formas não complicadas (...). O
seu naturalismo mantém-se, na maioria dos casos, dentro de limites
relativamente estreitos, e restringe-se ordinariamente ao retratar
racionalista da realidade, isto é, de uma realidade sem contradições
internas.” Hauser, Arnold. História Social da Literatura e da Arte; São
Paulo: Mestre Jou, 1980-1982.p. 782.
51
prosseguirá de forma coerente por todo o século XIX, pendendo ora para o
clássico ora para o romântico, mas sem rupturas formais significativas, até o início
do século XX. Nestes quatro séculos, numa curva ascendente de tecnologia, a
iluminação cênica terá por parâmetro único a imitação da natureza.

2.7 O RAIAR DO SÉCULO XIX E A LUZ VIVA DO GÁS

No raiar do século XIX – entre óperas, operetas, dramas burgueses,


musicais ingleses, comédias lacrimosas e vaudevilles – o palco italiano se firma
como modelo de teatro e progresso técnico a serviço do espetáculo. Na primeira
metade do século a grande novidade da iluminação cênica será a introdução da
luz com chama a gás.

Os grandes teatros apressam-se em instalar seus sistemas de tubulação e


bicos de gás, o que significava um grande investimento em infraestrutura e
manutenção, pois cada teatro tinha que prover de combustível seu próprio
sistema de iluminação porque ainda não havia suprimento público de gás.

A luz a gás é usada pela primeira vez no palco em 1816 no Lyceum


72
Theatre, em Londres e na seqüência no Chestnut Street Theatre na Filadelfia ,
em 1917 será a vez do Drury Lane Theater e do Convent Garden, em 1922 chega
à Operá de Paris e em 1843 a Commedie-Française se rende à novidade. No fim
da primeira metade do século quase todos os grandes teatros já utilizavam a
iluminação a gás, sozinha ou em parceria com as antigas instalações de velas e
lâmpadas a óleo.

A chama do gás oferece uma luz mais intensa, constante e menos


amarelada que as demais fontes de luz artificial experimentadas até então,
permitindo uma visão mais clara e uniforme da cena.

72
Sobre o primeiro teatro a usar a luz a gás, encontrei informações
desencontradas: os autores americanos como Tim Streader e John Williams
afirmam ser o Chesnut Street Theatre da Filadelfia, já os ingleses como
Victor Glasstone, afirmam ser o Lyceum Theatre de Londres. Preferi
confiar na pesquisa de Hamilton Saraiva, cuidadosa e desinteressada na
contenda. Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e
Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, p. 43.
52
As pesquisas em relação à composição química do gás e às formas do
bico onde se dá a combustão foram estimuladas pela necessidade, tornando as
técnicas de obtenção de luz a gás, cada vez mais diversificadas e eficazes para a
iluminação cênica:

Em 1816 Thomas Drummond inventa a luz de carbureto ou limelight, como


é comumente conhecida. Segundo o dicionário, trata-se de:

Uma luz branca e brilhante produzida esquentando


carbureto (lime) em uma chama forte, que era normalmente
usada nos teatros para iluminar o palco73
Segundo a descrição técnica de iluminadores:
Dois cilindros de gás comprimido (um de hidrogênio
e um de oxigênio) dirigidos contra uma coluna de
carbureto, que é então aquecida para produzir uma grande
incandescência 74

Essa luz será usada pela primeira vez em 1830 no Convent Garden. Após
a segunda metade do século XIX, com a popularização da luz de carbureto nas
ribaltas de todo o mundo (mesmo anos depois da introdução da eletricidade no
teatro), “limelight” tornar-se-á sinônimo de “luzes da ribalta”, nome imortalizado
pelo filme homônimo de Charles Chaplin.

A mistura de outros componentes químicos ao gás pode modificar as cores


da chama viva do gás na própria fonte de luz75, sem necessitar de filtros que, para
“colorir” a luz, diminuem brutalmente a sua intensidade e brilho.

Mas a grande novidade da luz a gás para a iluminação cênica do início do


século XIX é o controle central sobre as intensidades. Toda a tubulação do gás
passa por registros que podem ser controlados, aumentando ou diminuindo a
intensidade da luz em cena, dentro de um mesmo ato e sem ser necessário
acessar fisicamente cada fonte de luz.

73
Longman Dictionary of Contemporary English; London: Longman Group, 1978, p.636.
74
Streader, Tim E Williams, John A. Create Your Own Stage Lighting. Op.Cit. p. 16.
75
As experiências neste sentido não puderam ser colocadas em prática ou
se desenvolver mais na época porque a iluminação a gás nos teatros durou
pouco mais de 50 anos. Pesquisas recentes (a partir dos anos 1960) com
lâmpadas de descarga mostram que reações químicas com gases diversos
propiciam luzes com espectros de cor variados.

53
Porém, com a chama a gás ainda não é possível apagar completamente as
luzes e acendê-las novamente no correr do espetáculo e o perigo de incêndios,
que já era grande com as velas e lâmpadas a óleo, aumenta consideravelmente
com o gás, altamente inflamável.

Apesar de fugaz, a luz viva do gás teve seus amantes, que tiraram lindas
atmosferas de seu brilho vibrante. O mais conhecido deles e que tomaremos de
exemplo, foi também o pai artístico de Edward Gordon Craig. Seu nome é Henry
Irving, ator, diretor, produtor e mestre da luz a gás.

Henry Irving adorava as cenas impetuosas, os efeitos emocionais e as


atmosferas:
O Lyceum [teatro de Irving]foi o primeiro teatro
de Londres a manter as luzes de serviço diminuídas
durante as apresentações. Isto aconteceu puramente por
razões de atmosfera – para criar um senso de magia e
para mergulhar emocionalmente a platéia dentro da peça76

Usou com liberdade o efeito de movimento das intensidades possibilitado


pelo sistema a gás, deixando a atmosfera “respirar” com a peça, criando semi-
obscuridades ou deixando a luz brilhar forte, como acontece com as limelights,
quando necessário. Para usar do movimento das cores durante o espetáculo de
forma mais sutil, dividiu as ribaltas em diferentes sessões, com cores e controles
diferentes, podendo assim usá-las separadamente ou em conjunto. Foi tão
apaixonado pela luz viva do gás que se recusou por anos a mudar sua prática
para a luz elétrica, considerada por ele como uma luz dura e sem vida.

Mas, como é intrínseco à própria idéia de tecnologia um constante superar-


se a si mesma, tornando a novidade de hoje obsoleta amanhã; a luz a gás, antes
mesmo de seu clímax, foi substituída pela luz gerada a partir da energia elétrica,
mais econômica e segura, portanto mais eficiente. Não foi a qualidade da luz que
levou à troca tão rápida de uma técnica por outra, mas a sua eficiência do ponto
de vista econômico – razão fundamental para o capitalismo do século XIX, em
plena ascensão.

76
Innes, Christopher. Edward Gordon Craig A vision of the Theatre.
Overseas Publishers Association, 1996, p.20.
54
CAPÍTULO 3
A ELETRICIDADE ENTRA EM CENA

A luz elétrica não foi descoberta de repente, como uma idéia brilhante ou
uma iluminação divina, conforme nos conta a mística das invenções: um dia,
durante o sono embaixo de uma árvore, cai uma maçã na cabeça de Newton e
como resultado ele entende a lei da gravidade; ou, Thomas Edson vê um raio no
céu e acende uma lâmpada na cabeça do gênio, estava descoberto o princípio da
luz elétrica. Ou então, como é comum ver descrito nos manuais de iluminação,
principalmente os americanos, Thomas Edison inventa a lâmpada incandescente
em 1879, e em 1880 os teatros começam a usar a luz elétrica.77 Ao contrário,
trata-se de um processo longo de estudo da energia elétrica que culmina com
várias experiências e aplicações práticas durante o século XIX e inclui duas
tecnologias diferentes e bastante usadas no teatro: a lâmpada de arco-voltaico
(desde 1849) e a lâmpada incandescente (desde 1879) 78.

A primeira experiência pública com o arco-voltaico – transmissão de


elétrons pelo ar entre dois pólos com diferentes voltagens, criando um “arco de
luz” (mesmo princípio do raio) – é de 1808, na Inglaterra 79.

Em 1841 o físico Leon Foucault usou o mesmo princípio para substituir a


fonte de luz em um microscópio solar. A primeira demonstração pública do
projetor a arco-voltaico inventado por ele aconteceu à noite na place de la

77
É comum ler que a luz elétrica chega ao teatro a partir da descoberta
da lâmpada incandescente, ou, até mesmo, erro crasso, que a luz elétrica
foi inventada em 1879. Às vezes não existe erro, mas favorecimento de
informações como é o caso do famoso manual de Tim Streader e John
Williams [Create your own Stage Ligting, Op. Cit. pp.16-17] que cita a
experiência inglesa e francesa com o arco-voltaico, no meio de outras
inovações e usos da iluminação com gás, na seqüência abre um novo título
chamado “A chegada da eletricidade” sobre a descoberta de Thomas Edison e
suas conseqüências. Com o tempo o senso comum mistura lâmpada
incandescente com lâmpada elétrica e daí para luz elétrica.
78
As lâmpadas de arco-voltaico são usadas nos canhões de luz e grandes
aparelhos de projeção em teatro, por sua intensidade e temperatura de
cor, mais branca que a lâmpada incandescente, até os anos 1960. São
substituídas pelas lâmpadas de descarga nos anos 1970.
79
“... a carbon arc (first demonstrated by Sir Humphry Davy em 1808).”
Streader, Tim E Williams, John A. Create Your Own Stage Lighting. New Jersey: Prentice
Hall Inc., 1985, p. 16.
55
Concorde, em Paris no fim de 1842. Este aparelho foi aperfeiçoado pelo óptico
Jules Duboscq, que acrescentou um refletor parabólico ao conjunto e criou “uma
das primeiras aplicações da ciência no teatro, isto é o emprego da luz elétrica” 80.

A luz elétrica estréia no palco em 1849, na ópera Profeta, de Meyerbeer –


Seu primeiro papel no teatro foi, significativamente, representar o sol nascente.
Sobre essa estréia da eletricidade no teatro, comenta Denis Bablet em seu artigo
A Luz no Teatro:

Esse primeiro emprego da eletricidade adquire o


valor de um símbolo: tratava-se da imitação de um
fenômeno natural e de um efeito destinado a maravilhar o
espectador. Durante perto de cinqüenta anos não se
atribuirá outro papel á luz elétrica 81

Nos anos seguintes o efeito foi replicado em várias óperas da Europa.


Desde então as lâmpadas e a eletricidade começam a visitar constantemente o
teatro, sempre no papel de efeito especial, mágica para impressionar a platéia.

Marie Hahm-Bablet escreveu um anexo sobre Arte e Técnica no Fim do


século XIX no primeiro volume das obras completas de Adolphe Appia, onde inclui
alguns textos e imagens do “Catálogo dos aparelhos utilizados na produção de
fenômenos físicos no teatro por J. Duboscq, óptico, chefe do serviço de
iluminação elétrica na Ópera, Paris.” 82

Reproduzimos a seguir, os desenhos de alguns destes aparelhos,


acompanhados de uma pequena descrição que os acompanha na edição de
Marie Hahm-Bablet, tiradas do próprio catálogo de Jules Duboscq, para termos a
dimensão da tecnologia dos projetores com lâmpada a arco-voltaico e de seus
empregos, quarenta anos antes da invenção da lâmpada incandescente.

80
Duboscq, J. “Catalogue des appareils employés pour la production des
phénomènes physiques au Théâtre” apud Bablet-Hahm, M.L. “Annexe: Art et
Technique à la Fin du XIXe Siècle” in Appia, Adolphe. Oeuvres Complètes,
Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.1983. p.358.
81
Bablet, Denis; A Luz no Teatro in O Teatro e sua Estética (org.e trad.
Redondo Júnior). Editora Arcádia, Lisboa, 1964, p. 291.
82
Duboscq, J. apud Bablet-Hahm, M.L. Art et Technique à la Fin du XIXe
Siècle. in Annexe Appia, Adolphe. Oeuvres Complètes, Tome I. Lausanne:
Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.1983. p.357.
56
Lâmpada de Arco-voltaico

Aparelho destinado a produzir


o efeito do Sol levantando
(de O Profeta)
(1849)

Aparelho foto-elétrico com sua lâmpada, destinado a


perseguir um personagem, que permite dirigir os
raios luminosos para todos os sentidos (1860)

Aparelho para produzir o


“fenômeno do arco-íris”
(1860)

Primeiro aparelho para projeção de imagens


reais para “ampliação de provas fotográficas
sobre vidro” (1864)

57
Embora a iluminação principal tenha permanecido a gás na grande maioria
dos teatros, na segunda metade do século XVIII a eletricidade já faz parte da
tecnologia dos efeitos especiais das casas de Ópera de toda a Europa, como diz
o próprio Jules Duboscq, em seu Catálogo de 1864:

Tornou-se raro que um balé ou uma ópera, que exijam


uma encenação importante, tenham sido apresentados sem a
intervenção de um efeito qualquer da luz elétrica
(...)Os teatros imperiais e aqueles de primeira ordem
seguem sob o impulso da ópera; e o arco-voltaico passa
definitivamente aos costumes cênicos. 83

Como pudemos perceber pelos desenhos técnicos, além dos aparelhos


para realizar “fenômenos físicos”, que imitam os fenômenos da natureza como o
Sol nascente e o arco-íris, existe um “projetor de perseguir”, o que chamamos em
português de canhão seguidor. A descrição do primeiro uso desses projetores de
Moisés, apresentado na Ópera de Paris, em 1860, relata suas atribuições:

Na entrada da personagem principal, púnhamos sobre


ela uma lâmpada de raio concentrado, articulado, que a
seguia nos seus deslocamentos; dois outros projetores
atrás dos cantos jogavam seus raios sobre a tenda no
meio da cena; uma terceira lâmpada, no primeiro plano,
iluminava igualmente na direção da sua tenda...84

Ou seja, já temos em cena na ópera, em 1860, projetores elétricos com


lâmpada arco-voltaico, fonte individualizada, sistema ótico e articulações para
movimento, que por vez criam em conjunto um desenho de luz móvel com
destaque de personagens e partes do cenário.

O último aparelho de que falaremos é um projetor de imagens para criar


85
“aparições fantásticas” . Ele funciona projetando e ampliando imagens de vidros
pintados ou impressos por meio fotográfico. É o mesmo princípio do projetor de
slides. Segundo uma descrição de Duboscq, ele tentou criar movimento a partir
de uma seqüência de imagens projetadas, mas não conseguiu o efeito desejado.
Mas seus aparelhos pioneiros foram aperfeiçoados na Alemanha por um mestre
da luz, Hugo Bähr, de Dresden, que conseguiu.

83
Idem Ibidem, p. 358.
84
Idem Ibidem, p. 362.
85
Idem Ibidem, p. 359.
58
Hugo Bähr é considerado pelos alemães como o “pai da luz”. Filho de um
pintor de vidro começou por isso a trabalhar no teatro com as projeções à la
Duboscq. Apaixonado pelas lanternas mágicas inventou a partir delas uma forma
de criar movimento na projeção, através da eletricidade, a partir do movimento da
própria imagem que está sendo projetada, como as imagens de nuvem que
rodam na frente do sistema óptico ou os reflexos de água com imagens
trepidantes. Autor de “aparelhos eletro-ópticos para a realização de efeitos
86
luminosos e de aparição no teatro” ficou famoso em toda a Europa. Criava
máquinas específicas, verdadeiras “traquitanas cênicas” luminosas, sob
encomenda, para os difíceis efeitos especiais que as óperas demandavam.
Também fazia consultorias em teatros de todo o mundo. Inventou centenas de
efeitos diferentes, como os movimentos de luz e projeção dos Meininger e os
efeitos especiais das grandes óperas de Wagner87 montadas em Bayreuth.

Por ocasião da sua temporada em Dresden em 1889 e 1890, Appia fez um


estágio de aprendizagem com Hugo Bähr no Königliches Hoftheater, que
influenciou muito suas concepções sobre a participação da luz e das projeções no
nos seus projetos de encenação do drama wagneriano, e em suas concepções e
conhecimentos técnicos de iluminação.

Se nos demoramos demais em descrições das experiências e aparelhos


luminosos criados por Jules Dusboucq e Hugo Bähr é porque os consideramos
como elos importantes de nossa cadeia, por várias razões, primeiro porque suas
experiências marcam a passagem da luz criada principalmente pelos cenógrafos,
seguindo uma tradição vinda da Renascença, para uma luz criada por cientistas,
visando, como mestre de ofício, desenvolvimentos fundamentalmente técnicos
que articulam a eletricidade, a física e a óptica para criar os primeiros aparelhos
de projeção de luz e imagens. Esse fato também marca o início de uma transição
que vai até aproximadamente a segunda década do século XX, entre as ribaltas,
gambiarras e tangões, que são aparelhos de luz aberta com várias fontes, sem
sistema óptico, que iluminam grandes áreas sem distinção e os refletores

86
Bähr, H. Catálogo de 1906 apud Bablet-Hahm, M.L. Art et Technique à la
Fin du XIXe Siècle. Op. Cit. p.364.
87
“nuvens negras, rios de água, inundações, incêndios, chuva, neve, a
cavalgada das Walkírias, aparições de feiticeiras, deuses...” Bablet-
Hahm, Op. Cit. p. 364.
59
individualizados, herdeiros desses aparelhos de Jules Dusboucq e Hugo Bähr,
como os refletores especializados que utilizamos hoje. Também porque estas
experiências de iluminação elétrica antes de 1879 mostram múltiplos caminhos de
desenvolvimento técnico e destroem uma versão corrente que quer crer que a
lâmpada de Edison é uma espécie de “Fiat Lux” da história da iluminação e não
uma parte de um processo técnico e artístico que tem muitas transformações e
reviravoltas.

Existe um longo caminho entre a pesquisa e sua transformação em ciência


aplicada, principalmente no que concerne aos meios de produção e da
generalização de uma nova tecnologia. Muitos homens no século XIX usaram a
eletricidade para gerar energia luminosa, vários deles coloram-na em prática.
Várias pesquisas procuravam a energia luminosa através da incandescência
gerada pela energia elétrica, alguns chegaram mesmo a inventar outras formas
de lâmpadas incandescentes na mesma época que Edison, em lugares diferentes
88
.

Mas em 1879, o americano Thomas


Edison não somente inventa uma lâmpada
incandescente, de filamento de carbono, como
começa a produzi-la em escala de mercado,
tornando-a economicamente viável. A partir de
então o emprego da eletricidade se generaliza
como forma de iluminação em casas, lojas,
fábricas e, com impressionante rapidez, nos
teatros. Até porque eles já estavam preparados
para isso.

88
“Durante o século XIX, um grande número de inventores trabalhou nas
lâmpadas incandescentes. Em 1891, o governo britânico registrou a patente
para Frederick De Moeyns. Nesta mesma época, o engenheiro inglês
J.W.Starr patenteou a lâmpada da Starr-King, com filamento de carvão. Sir
Joseph W. Swan desenvolveu uma série de lâmpadas, entre 1848 e 1860.”
Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, p.61.

60
No mesmo ano de 1879 o Teatro da Califórnia utiliza as lâmpadas
incandescentes produzidas pela Edison Electric &co e em 1881 o Teatro Savoy
de Londres já era totalmente iluminado pela eletricidade.89

Enquanto a instalação dos sistemas a gás demorou em torno de cinqüenta


anos, a troca destes pela energia elétrica acontece em larga escala em apenas
uma década90, entre 1880 e 1890, atestando a aceitação da novidade e a sua
eficiência técnica e econômica.

Apesar da rapidez com que a eletricidade foi incorporada aos teatros esse
processo começa como uma mera substituição, visando um melhor
aproveitamento da energia e o aumento das condições de segurança dos teatros.
A grande diferença da luz elétrica para a luz do fogo não está apenas na
quantidade ou qualidade da luz, mas no controle total das intensidades que ela
possibilita: pela primeira vez era possível criar em cena a luz e a não-luz. A luz
elétrica re-inventou o escuro no teatro, a pausa, o corte, o Black-out.
Possibilitando a partir daí o movimento entre a luz e seu oposto complementar, as
trevas. É do contraste em movimento que se constitui a escritura da luz no espaço
e no tempo, urdida de diferentes formas no decorrer do século XX, em crescente
desenvolvimento tecnológico. Enquanto as lâmpadas de arco-voltaico apagam e
acendem de uma vez, as lâmpadas incandescentes possibilitam o
desenvolvimento das várias formas de dimmers, que não somente acendem e
apagam as lâmpadas, mas controlam o fluxo de elétrons na corrente e por isso
permitem uma graduação sutil das intensidades de nada até a luz plena.

No entanto, a mudança de paradigma na iluminação cênica não se dará


pela simples utilização da luz elétrica, mas a partir da necessidade dos
movimentos de ruptura com a realidade do início do século XX de movimentar a
luz e escurecer o palco, escolhendo o foco da ação, editando o visível e

89
“Este teatro é iluminado totalmente pela eletricidade; é a frase que
consta no programa do Teatro Savoy de Londres em 1881 e é notável dizer-
se que se usaram também resistências (seis ao todo) montadas pela firma
Irmãos Siemens” Frederick Benthan, The Art os Stage Lighting, Londres:
Pitman Pub., p.37.
90
“De 1880 a 1890, os principais teatros europeus adoptam-na.” Bablet,
Denis; A Luz no Teatro in O Teatro e sua Estética (org.e trad. Redondo
Júnior). Editora Arcádia, Lisboa, 1964, p. 291.
61
transformando assim a função da luz no espetáculo, tornando-a linguagem. A
tarefa não era fácil dada a proliferação de novas variáveis.

A multiplicação das fontes de luz, a invenção de aparelhos de iluminação


cada vez mais especializados para fazer diferentes usos ópticos das fontes de
luz, a relação entre as várias fontes e aparelhos, o controle conjunto e a
orquestração deste novo arsenal, até pouco desconhecido, não foi tarefa fácil
para eletricistas, ópticos, cenógrafos e diretores que enfrentaram de frente esse
desafio – desenvolver a iluminação teatral móvel. Na fronteira entre a técnica e a
estética, a iluminação teatral passou a envolver uma aplicação prática diária no
teatro das ciências da física, da óptica, da geometria, da eletricidade e da
eletrônica.

62
CAPÍTULO 4
A REVIRAVOLTA OU
O SURGIMENTO DA ENCENAÇÃO MODERNA E A LUZ

A estréia da luz elétrica no teatro, por si só, não revelou a real dimensão do
significado desta nova tecnologia para a história do espetáculo. As lâmpadas
incandescentes e a eletricidade, utilizadas a partir dos anos 1880, foram
consideradas primeiramente apenas como uma nova técnica, mais eficiente, para
realizar as mesmas funções: clarear a cena e copiar, com maior verossimilhança,
os efeitos da natureza, como o arco-íris ou o pôr do sol.

Trata-se, portanto, de começo, de simples técnica


de substituição: os aparelhos de iluminação elétrica
substituem, pura e simplesmente, os aparelhos de gás,
cujos lugares ocupam. Não se descortinam ainda os seus
poderes, não se adivinha que a luz elétrica possa
tornar-se um meio de expressão dramática: reconhecida
como um inegável progresso técnico continua a ser um
fator puramente descritivo. Nem podia ser doutra maneira
numa época em que tudo na encenação, representação do
comediante, cenário, figurinos, iluminação, tem de
reproduzir fielmente a natureza. 91

As resistências regulam as intensidades das lâmpadas incandescentes e,


portanto permitem o controle total do movimento da luz. Porém não pareceria
coerente para o teatro realista dos anos 1880 que a luz se movesse no meio da
ação, chamando atenção para sua existência fictícia ou criando uma
transformação artificial de tempo ou espaço. Na natureza o movimento da luz do
Sol é contínuo. Não muda de acordo com o que acontece na terra, não escurece
quando uma tragédia se anuncia, não brilha mais nos momentos de prosperidade
e alegria, não dá saltos, nem surpreende; apenas determina, com seu aparente
movimento lento e gradual, os dias e as noites; o que para nós, mortais, indica o
passar do tempo - inexorável e incontrolável.

91
Bablet, Denis. “A Luz no Teatro” in O Teatro e sua Estética (org. e
trad. Redondo Júnior). Lisboa: Editora Arcádia, 1964, p. 292.
63
Segundo Denis Bablet, essa característica meramente descritiva da luz no
século XIX, própria de um teatro onde a realidade e a coerência são a medida de
todas as coisas, tem como único resultado possível uma iluminação que não
intervém na ação e não desempenha qualquer papel ativo na construção do
espetáculo, ou seja, uma luz passiva. 92

Porém a potência da nova tecnologia, principalmente no que concerne ao


movimento da luz, estava ali, latente.

Será o encontro entre as possibilidades da iluminação elétrica com as


necessidades da cena advindas de novas teorias e práticas do teatro, que
transformará potência em ato, impulsionando o salto qualitativo da iluminação
cênica, rumo às formas do teatro moderno.

Seria mais exato, sem dúvida, dizer que essas


transformações se concretizaram graças à coexistência de
um desejo de ruptura e de uma possibilidade de mudança.
Em outras palavras, as condições para uma transformação
da arte cênica achavam-se reunidas, porque estavam
reunidos, por um lado, o instrumento intelectual (a
recusa das teorias e fórmulas superadas, bem como
propostas concretas que levavam à realização de outra
coisa) e a ferramenta técnica que tornava viável uma
revolução desse alcance: a descoberta da iluminação
elétrica.93
Jean-Jaques Roubine é incisivo ao nomear a descoberta dos novos
recursos da iluminação elétrica como fator tecnológico fundamental para o
surgimento da encenação.94

92
Bablet em seu artigo “A luz no teatro” (opus cit. p.294) utiliza-se do
conceito de luz passiva, contrário à luz ativa, onde a iluminação cênica
constitui-se como um elemento consciente na construção do espetáculo. A
noção de “luz ativa”, por sua vez, foi criada por Appia (“La mise en
scène du drame wagnérien” in Oeuvres Complètes, Tome I. Paris: L’Âge
d’Homme, p. 268.) e se refere primordialmente ao poder da luz de exprimir
com seu movimento a essência do drama.
93
Roubine, Jean-Jaques. A Linguagem da Encenação Teatral, 1880/1980. Rio
de Janeiro: Editora Zahar, 1996, p.22.
94
“Nos últimos anos do século XIX ocorreram dois fenômenos, ambos
resultantes da revolução tecnológica, de uma importância decisiva para a
evolução do espetáculo teatral, na medida em que contribuíram para aquilo
que designamos como o surgimento do encenador. Em primeiro lugar, começou
a se apagar a noção das fronteiras e, a seguir, a das distâncias. Em
segundo foram descobertos os recursos da iluminação elétrica.” Id.Ibid,
p. 21.
64
A recíproca é verdadeira. Esta síntese entre técnica e estética na
iluminação cênica será empreendida na passagem do naturalismo para o
simbolismo, rumo às vanguardas modernas, através da pesquisa e prática destes
encenadores, agentes das grandes transformações do teatro na virada do século.
No decorrer deste trabalho seguiremos o percurso de alguns deles, escolhidos
por sua prática e/ou reflexão sobre a iluminação cênica.

Com o surgimento do encenador, na acepção moderna do termo, a idéia de


autoria do evento teatral ganha concretude. Este artista da cena, aliando a
reflexão à prática, concebe o espetáculo, orquestrando um coletivo de artistas a
partir da noção de conjunto. Não se trata mais da união "natural e harmônica"
entre as artes, mas de uma concepção, que dirige as diferentes artes que
compõem a cena, relacionando-as e transformando-as em outra obra de arte,
com uma unidade própria. Essa articulação central das linguagens constitutivas
do fenômeno teatral gera maior complexidade na escritura cênica. O texto teatral
deixa de ser a medida de todas as coisas, o guia fundamental da cena, e o
espetáculo vai a pouco a pouco mostrando diversas facetas e leituras da obra
dramatúrgica.95 Cada vez mais a interpretação da realidade vai ganhando
primazia diante da própria realidade, rumo à subjetividade. E esse sujeito criador
se personifica durante o teatro do século XX, principalmente, na figura do
encenador.
O diretor moveu-se para o centro da plasmação do
espetáculo e da crítica teatral. Definia o estilo,
moldava os atores, dominava o cada vez mais complexo
mecanismo de técnicas cênicas. O palco giratório, o
ciclorama, a iluminação policromática estavam a sua
disposição. Formas de estilo e de jogo teatral seguiram
em rápida sucessão dentro de poucas décadas, sobrepondo-
se: naturalismo, simbolismo, teatro convencional e
teatro liberado, tradição e experimentação, drama épico
e do absurdo, teatro mágico e teatro de massa. 96

95
“Toda reflexão sobre o teatro contemporâneo nos conduz ao
acontecimento que literalmente fundou este teatro: a diferenciação da
encenação enquanto arte autônoma (...) nela introduzindo, em certo
sentido, uma nova dimensão: a de uma arte cênica diferente da arte
dramática.” Dort, Bernard. Condição Sociológica da Encenação Teatral in O
Teatro e Sua Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1977, p.83.
96
Berthold, Margot. História Mundial do Teatro; São Paulo: Ed.Perspectiva,
2003, p.452.
65
A ruptura com a lógica da realidade levará à reviravolta da função da luz na
história do espetáculo, de uma luz passiva, que segue a lógica fotográfica do
espaço e do tempo realistas, para uma luz ativa97, que constrói novos espaços e
tempos, multiplicando os planos de significação da encenação.

O desenvolvimento dessa nova prática da luz se dará aos saltos, e sem


uma continuidade temporal lógica; proclamada e/ou realizada primeiramente por
grandes inovadores da cena, levará décadas para se generalizar como prática e
concepção corrente.

97
Como já foi explicitado na nota 75, os conceitos de “luz passiva” e
“luz ativa” são utilizados por Denis Bablet no artigo “A Luz no Teatro”
(Opus cit. p.264). Para Bablet “luz ativa” é aquela que se constitui como
um elemento móvel e consciente na construção do espetáculo. Roberto Gill
Camargo desenvolve um conceito análogo ao considerar a luz como actante.
De qualquer forma ambos colocam o foco da transformação da função da luz
no espetáculo na idéia de ação da luz. A noção de “luz ativa”, por sua
vez, foi criada por Appia (“La mise en scène du drame wagnérien” in
Oeuvres Complètes, Tome I. Paris: L’Âge d’Homme, p. 268.) e se refere
primordialmente ao poder da luz de exprimir com seu movimento a essência
da vida do drama, mais especificamente do drama wagneriano.

66
CAPÍTULO 5
O NATURALISMO
E A DESCOBERTA DAS ‘ATMOSFERAS’ NA LUZ
Espero que se coloquem de pé no teatro homens de carne e
osso, tomados da realidade e analisados cientificamente, sem
nenhuma mentira. Espero que os meios determinem as
personagens e que as personagens ajam segundo a lógica dos
fatos. Espero, enfim, que a evolução feita no romance termine
no teatro, que se retorne à própria origem da ciência e da
arte modernas, ao estudo da natureza, à anatomia do homem, à
pintura da vida, num relatório exato, tanto mais original e
vigoroso que ninguém ainda ousou arriscá-lo no palco. 98

Emile Zola

O Naturalismo, influenciado pelas ciências biológicas e sociais, tenta


aplicar à arte o método científico e os princípios do positivismo99. Conforme
propõe Emile Zola: “tendo a natureza como base e o método como instrumento”
100
, o naturalismo tem por objetivo a conquista da verdade, a partir da experiência
e análise dos fatos e das personagens. A peripécia e as reviravoltas do
romantismo dão lugar à observação e descrição da realidade, tal como ela é; o
ímpeto do indivíduo deixa de ser o motor da ação, que se volta para as razões
sociais, as personagens e suas ações são determinadas por fatores hereditários,
econômicos e sociais, expressos em cena pelo ambiente101.

No naturalismo, portanto, o meio deixa de ser pano de fundo, para virar


personagem principal da situação dramática:
98
Zola, Emile; O Naturalismo no Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva,
1979, pags. 122 e 123.
99
“Augusto Comte, propõe sua doutrina do positivismo: renunciar à
descoberta da origem das coisas e estabelecer, através das observações e
do raciocínio, as leis dos fenômenos.” Caroni, Ítalo. Introdução in O
Romance Experimental e o Naturalismo no Teatro. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1979, p. 13.
100
“Em meus estudos literários, tenho falado do método experimental,
aplicado ao romance e ao drama. A volta à natureza, a evolução
naturalista que empolga nosso século, impulsiona aos poucos todas as
manifestações da inteligência humana num mesmo caminho científico.” Zola,
Emile; O Romance Experimental.São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979, p. 25.
101
“É sobejamente conhecida a teoria dos três fatores – raça, meio e
momento – em que ele (Hippolyte Taine) se baseia para tentar explicar
cientificamente o fenômeno artístico e literário. Id. Ibid., p. 14.
67
Como ressonância Transformam-se as relações entre os meios materiais
do espetáculo e sua significação humana, como muito bem aponta Jacó
Guinsburg,:

Pois pela lógica sociologizante do naturalismo, a


construção do quadro cenográfico implica o
estabelecimento do “ambiente”, do “meio”, da
“atmosfera”, ou seja, do condicionante essencial das
ações humanas, também no teatro. 102

A ambiência do espetáculo – formada pelo cenário, figurinos, objetos de


cena, sonoplastia e a iluminação cênica – deveria substituir no teatro às longas
descrições do locus do romance experimental naturalista, tornando concreta e
real a existência do meio ambiente. É o que sugere Zola em seu texto manifesto
“O Naturalismo no Teatro”:

A decoração não é uma descrição contínua, que pode


ser muito mais exata e surpreendente que a descrição
feita num romance? 103

A cenografia da época, baseada no telão de fundo pintado, mal iluminado


pelas ribaltas a fogo, não dá conta desta função e, portanto, não tem cabimento
em um teatro para o qual a ilusão da realidade, quando apresentada de forma
geral e imprecisa, não é mais suficiente. Para completar a inadequação do
cenário bidimensional, apoiado na descrição do telão de fundo, a primeira ação da
eletricidade ao aumentar a intensidade da luz, foi revelar a farsa dos cenários
pintados, tornando-os toscos e ainda mais inconsistentes, como descreve Denis
Bablet :
Na verdade, os efeitos ilusionistas enganavam os
espectadores porque estavam fracamente iluminados e o
público, mal conseguia distinguir a realidade do
artifício. (...) Quando a eletricidade substituiu o gás
e aumentou a pouco e pouco a potência de sua
aparelhagem, o artifício tornou-se patente. Descobriu-se
que iluminar o objeto pintado era revelar a sua

102
Guinsburg, Jacó. Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou. São Paulo:
Ed. Perspectiva,2001, p.51.
103
Zola, Emile. O Naturalismo no Teatro.São Paulo:Ed. Perspectiva, 1979, p.
132.
68
figuração e não a sua realidade. A luz elétrica exigia o
cenário construído.104
105
Começa então, a partir dos anos 1880 , um movimento em busca da
verdade, tanto na interpretação quanto nos meios técnicos constituintes do
espetáculo teatral. Os cenários tridimensionais ocupam o palco com seus
volumes e os detalhes, antes relegados, começam a ter importância fundamental.

Os Meininger, conjunto criado, mantido e dirigido pelo duque Georg II de


Saxe-Meiningen106, foram os grandes inovadores neste sentido: a autenticidade
dos seus cenários, figurinos e objetos de cena não só é pioneira como influenciou,
com as suas famosas tournées pela Europa, vários encenadores como
Stanislávski e Antoine, dando início à era das reconstituições arqueológicas e ao
realismo histórico, que terá grande influência nas técnicas do espetáculo; a
pesquisa histórica e sociológica, tanto teórica quanto de campo, passam a fazer
parte do trabalho dos diretores e cenógrafos. Em relação à iluminação havia o
mesmo esmero técnico e cuidado com a precisão na escolha do posicionamento
dos equipamentos, visando maior realidade nos ângulos de incidência da luz.
“Tudo quanto formasse a parte visual do espetáculo devia receber tratamento
minucioso. [Os Meininger] desenvolveram a iluminação cênica, projetada de lado
– e não da ribalta – por bicos de gás, mesclando-os mais tarde com arcos
107
voltaicos.”, nos conta Jacó Guinsburg. Mas a grande inovação dos Meininger,
que pontua uma mudança fundamental de procedimento em relação à iluminação
cênica, se deve ao fato do Duque Georg II ensaiar com a luz pronta (assim como
cenário e figurinos), permitindo uma relação pensada e experimentada entre o

104
Bablet, Denis. “A Luz no Teatro” in O Teatro e sua Estética (org. e
trad. Redondo Júnior). Lisboa: Editora Arcádia, 1964, p.. 296, 297 e 298.
105
“Só depois da década de 80 é que o naturalismo conquista o palco, numa
altura em que o naturalismo no romance já se encontra em declínio. Les
Corbeaux, de Henri Becque, o primeiro drama naturalista, foi escrito em
1882, e o Théâtre Libre, de Antoine, o primeiro teatro naturalista,
funda-se em 1887” Hauser, Arnold. História Social da Literatura e da
Arte; São Paulo: Mestre Jou, 1980-1982.p.1098.
106
“A partir de 1874, a companhia dos Meininger fornece à Alemanha e
depois a toda a Europa o exemplo de um conjunto no qual o diretor (o
Duque George II Von Meiningen em pessoa) e seu encenador (Chronegk)
comandam os atores. E seus espetáculos são concebidos, cada um, como um
todo orgânico”. Dort, Bernard. Condição Sociológica da Encenação Teatral
in O Teatro e Sua Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1977, p.83.
107
Guinsburg, Jacó. Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou. São Paulo:
Ed. Perspectiva,2001, p.17.
69
espaço e a sua ocupação, entre a luz e a marcação do espetáculo. Essa
necessidade de ensaiar com a luz de cena, que na prática significa o ineditismo
de ensaiar a própria ação da luz, diferia dos costumes da época, onde a
iluminação só encontrava com os intérpretes, na hora da apresentação.

Assim como prenunciam a própria era da encenação, os Meininger,


também são os introdutores da luz como actante. Como demonstra Bablet, ao
citar a crítica que Antoine faz aos Meininger (em carta escrita a Sarcey, em 1888),
quanto aos movimentos de luz em cena:

Os seus efeitos de luz, bastante conseguidos, são


na maioria dos casos regulados por uma ingenuidade
épica. Assim, um forte raio de sol poente, vindo
iluminar uma bela cabeça de velho morto no seu cadeirão,
passava de repente através de um vitral, sem graduação,
no momento preciso em que o homem acabava de expirar,
unicamente para fazer quadro. Conclui Bablet: Antoine não
podia compreender que esse efeito constituía um dos
primeiros exemplos de uma iluminação cênica dramática e
ativa. 108

Ora é interessante notar que na história do teatro sempre há uma relação


intrínseca entre o desenvolvimento da encenação e da iluminação, seus saltos de
experimentação e compreensão reincidentemente andam juntos; já fora assim
extemporaneamente com Leone de´Sommi, no Renascimento, o mesmo acontece
no final do século XIX com os Meininger e com o próprio Antoine:

Devemos também a Antoine uma indagação que os


progressos técnicos nunca mais deixarão de colocar na
ordem do dia: a questão da iluminação. Já foi dito que a
pesquisa de Antoine é inseparável da introdução da
eletricidade na prática teatral 109.

Os encenadores naturalistas, e seus parceiros na luz, que procuraram com


fé a verdade acima de todas as coisas, como os Meininger, na Alemanha,

108
Bablet, Denis. “A Luz no Teatro” in O Teatro e sua Estética (org. e
trad. Redondo Júnior). Lisboa: Editora Arcádia, 1964, p. 293.
109
Roubine, Jean-Jaques, Op. Cit., p.30.
70
Antoine, na França ou Stanislavski e Savva Marózov110, na Russia, quebraram a
bi-dimensionalidade do telão pintado, esculpiram com a luz os volumes e a
perspectiva da cena, como os renascentistas italianos já haviam preconizado.
Exigindo da cenografia e da luz a tridimensionalidade, chegaram ao fundo das
coisas e, para além da concretude dos volumes, descortinaram as “atmosferas”.

As “atmosferas” tornaram a iluminação cênica, a partir do naturalismo, mais


do que instrumento da visibilidade ou ferramenta para imitar com eficiência a
natureza; muito além inclusive de tornar o cenário crível dando-lhe
tridimensionalidade, as atmosferas luminosas têm a função de dar vida à
ambiência111.

O que é, exatamente, dar vida a uma ambiência? É difícil explicar em


palavras uma função que se destina principalmente às sensações da platéia, e
não ao entendimento. Tal qual a música, a luz toca a sensibilidade do público, às
vezes imperceptivelmente. A luz veste o espaço com as “atmosferas”, revelando-
o segundo pontos de vista diferentes, assim, dependendo das variações da luz,
muda a temperatura, a textura e o clima da cena e isso interfere diretamente no
ânimo das personagens e em suas ações, assim como no ânimo do próprio
público que assiste à cena. Por exemplo, um mesmo espaço ganha outra
dimensão se iluminado pela luz do amanhecer, que entra diretamente pela grande
janela da sala e rebate por todo o ambiente deixando-o claro ou com a luz morna
do fim da tarde, que declina criando contrastes abruptos ou mesmo pela
inconstância da luz da lua, que torna o ambiente misterioso. No entanto no
naturalismo essas transformações da ambiência através da iluminação têm de ser
críveis e coerentes com as circunstâncias dadas pelo texto e pelo autor: o lugar, a
época do ano, à hora do dia ou da noite.

110
"Marózov financiava o teatro e assumia toda a parte administrativa.
Homem com alma de artista, ele sentia naturalmente a necessidade de tomar
parte ativa no aspecto artístico. Com essa finalidade pediu-nos para ser
encarregado da iluminação elétrica do palco". Stanislavski, Konstantin;
Minha Vida na Arte, Ed. Civilização Brasileira, São Paulo 1989. p.330.
111
E não é por acaso que o ato de parir é também chamado de dar a luz.
71
Portanto, para esse estilo naturalista de iluminação cênica112, é importante
buscar sempre a fonte de luz específica e sua posição real, para desenhar a
cena: o sol de inverno em um lugar determinado, com sua temperatura específica,
em seu ângulo preciso em relação ao cenário, o candeeiro em cima da mesa, a
janela na lateral. A idéia de luz principal, aquela que imprime um desenho, uma
linha primordial de incidência da luz, passa a reger o desenho. Dessa forma,
apesar de outras luzes complementarem e preencherem a visibilidade em relação
à platéia, a luz mais forte, aquela que a platéia distingue, por uma questão de
coerência deve vir, ou pelo menos parecer vir, não da frente, mas do lugar por
onde entra a luz no ambiente. Como, por exemplo, nas janelas que iluminam as
cenas cotidianas pintadas por Veermer.

Nesse momento a luz era, como todos os outros


elementos do espetáculo, mais um meio para aumentar a
reprodução fiel da natureza. A iluminação naturalista
propiciava condições para simular que o espectador
estava diante de uma janela aberta para o universo
fictício da cena. 113

As cores da iluminação naturalista são variações do espectro visível da luz


solar: do azul ao quente amarelo, como as luzes que vão da aurora boreal ao fim
de tarde tropical. O azul dá a sensação da profundidade, as luzes quentes saltam
em direção à platéia. O contraste entre os tons das complementares, como
podemos assistir no pôr do Sol rebatido nas nuvens, revelam todo o espectro da
luz solar, tal qual observado e descrito por Goethe no seu estudo sobre a Doutrina
114
das cores e pintado por Turner em seus estudos realizados a partir do círculo
das cores de Goethe. Luzes naturais, quentes ou frias, encontradas com os olhos
voltados para a natureza.

112
Chamo de “estilo naturalista” à iluminação que persegue a precisão
fotográfica, pois, nascido neste momento, permanece, para além do
naturalismo como movimento histórico. O progresso tecnológico e a
influência do cinema fez deste “estilo” de iluminação cênica um paradigma
da “luz bem feita”, com cada vez mais precisão.
113
Saraiva, Hamilton, Op.Cit., p.137.
114
GOETHE, J.W. Doutrina das Cores. São Paulo: Ed. Nova Alexandria,
1993.
72
O ícone desta época - simbolizando a tentativa de pegar o que se
desmancha no ar - é a invenção do efeito das nuvens que passam. Mariano
Fortuny, cenógrafo dedicado a construção de teatros e também à iluminação,
desenvolveu vários efeitos de luz para criar de forma deliberada esta impressão
de acaso, que existe na verdade.

Além do já citado “aparelho para as nuvens”,


inventou uma cúpula branca arredondada que
envolve todo o cenário sem ser vista pela platéia,
patenteada por ele como "Cúpula Fortuny". Esta
cúpula é na verdade entendida como um sistema de
iluminação indireta baseado na reflexão e difusão da
luz. A luz é rebatida na cúpula e volta para a cena
difusa. Como o brilho do Sol nos dias nublados, esta
luz rebatida é totalmente diferente da luz incidente
direta: é mais envolvente, suave, mais atmosférica.

A “Cupula Fortuny” é o antepassado direto do


ciclorama 115.

Outra conseqüência do desenvolvimento técnico e da aplicação dos


métodos científicos no teatro é a retomada de várias experiências e princípios
preconizados e experimentados pelo Renascimento, agora facilitados pelo
controle da luz elétrica e, principalmente, pela força dos encenadores, que
conseguiram, graças à centralização de sua função, desafiar hábitos arraigados
nas platéias e profissionais do teatro.

Sabbattini, no século XVII havia escrito contra as luzes da ribalta e


considerado absurdo iluminar os atores de baixo para cima.116 Pela mesma razão

115
"Em 1902 o cenógrafo Mariano Fortuny desenvolve, na Alemanha, o
‘kuppelhorizont’, um meia-cúpula feita de seda ou gesso, que refletia luz
sobre o palco, simulando o infinito (céu). Este recurso daria origem ao
ciclorama.” Camargo, Roberto Gill. A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed.
Fundo de Cultura, 2000, p. 20.
116
“Mas que coisa de bárbaros, é uma monstruosa falta de naturalidade
iluminar de baixo para cima” Sabbattini, Nicola; Pratique Pour Fabriquer
73
o clamor geral dos encenadores do naturalismo, seguindo o exemplo já citado dos
Meininger, será responsável pelo fim da utilização generalizada da ribalta nas
casas de espetáculo. 117

Porém, esta fronteira luminosa entre o proscênio e a platéia, ainda


permanecerá como a luz principal dos palcos populares, dos circos, dos
melodramas e palcos de musicais, por muito tempo. Até hoje quando se pretende
representar um “teatrinho”, quer no cinema, quer no teatro dentro do teatro, a luz
utilizada muito provavelmente será a da ribalta, que por sua existência visível aos
espectadores, em primeiro plano, passou a ser justamente o símbolo de uma luz
“de teatro”.

Outra mudança preconizada pelos cenógrafos renascentistas, que só


vingou na segunda metade do século XIX foi o escurecimento da platéia durante
as representações.

Mas no fim do século XIX, em 1876, no momento em


que triunfa uma estética teatral fundada sobre a falsa-
semelhança e o virtuosismo técnico, produz-se um fato
capital. Durante a representação das suas óperas em
Bayreuth, Richard Wagner mergulha a sala no escuro. Esta
reforma, que esperara quatro séculos, é a pouco e pouco
adotada em Inglaterra, em França e no conjunto dos
teatros europeus. 118

Bablet chama esse fato de “capital” porque transforma essencialmente a


relação entre o público e o teatro. O público perde a referência da realidade e, do
escuro, joga toda a sua atenção para a cena iluminada. Do ponto de vista técnico
a mudança é imensa. Sabemos que para o olho as características da luz não são
absolutas, mas relativas - graças à grande capacidade de adaptação do órgão da
visão, a percepção da quantidade e qualidade da luz varia de acordo com a
referência no tempo e no espaço. Portanto, quando a platéia escurece, não

Scenes et Machines de Theatre; citado por Saraiva, Hamilton F. Iluminação


Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São
Paulo: ECA/USP, 1990, Pag. 19.
117
“Em 1903, Antoine proclamou que a iluminação era a vida do teatro, era
a grande fée (fada) do cenário, a alma de uma encenação. Na sua febre
naturalista ele eliminou a ribalta, que era uma luz ‘anti-natural’” Id.
Ibid,p. 138.
118
Bablet, Denis; “A Luz no Teatro” in O Teatro e sua Estética (org. e
trad. Redondo Júnior). Lisboa: Editora Arcádia, 1964, p. 294.
74
ofusca mais os olhos do espectador que fica sensível à luz da cena. A partir daí
todas as variações de intensidade, ângulo, direção e cor da iluminação cênica
serão perceptíveis para os olhos da platéia.

Ora, para nós, espectadores do pós-naturalismo, o símbolo do início de


uma representação é o apagar das luzes do público, que nos possibilita esquecer
nossa própria existência como espectadores. Por outro lado, qualquer quebra da
realidade da cena em privilégio do aqui e agora da representação, será
acompanhada invariavelmente do acender das luzes da platéia, que nos traz de
volta para a existência ordinária e à nossa presença na platéia de um teatro. É
difícil imaginar, portanto, que durante toda a história do teatro até então, a sala
ficava às claras independentemente da relação desejada entre o palco e a platéia,
dividindo a atenção dos espectadores entre o espetáculo e o acontecimento social
de estar em um teatro, vendo e sendo visto ao mesmo tempo.

O escuro da platéia concentra a atenção do público na cena, que sem


qualquer ponto de referência visual, se deixa levar pela representação,
adentrando em outra existência, fictícia, como se fora real. A ficção ganha
primeiro plano e afirma sua autonomia.

O NATURALISMO E SUA SUPERAÇÃO


ou O CAMINHO DO REAL À SUBJETIVIDADE

Só que, com os naturalistas, a mitologia do


verdadeiro substitui a do verossímil, com a qual se
satisfazia até então o teatro acadêmico. 119

Podemos dizer de forma metafórica que o realismo está para a fotografia,


assim como o naturalismo está para o raio X, ou seja, não se contenta com a
aparência exterior, mas busca a análise profunda da interioridade. Com o tempo,
também não se contentará com a idéia de ilusão ou verossimilhança, tendendo a
buscar a verdade para além das convenções teatrais.

119
Roubine, Jean-Jaques, A Linguagem da Encenação Teatral, Zahar ed.,
São Paulo, 1982.p.27.
75
Quando o Naturalismo assume como legado a conquista da verdade no
teatro tem diante de si um paradoxo indissolúvel. Este conflito entre verdade e
ilusão chega a seu clímax nesse momento da história do teatro e, como todo
clímax, engendra sua própria reviravolta.

Emile Zola em sua reflexão sobre O Naturalismo no Teatro, com o objetivo


de defender a nova estética dos ataques dos críticos de sua época, expõe a
contradição existente no teatro entre a convenção e a verdade:

Em resumo, o teatro é o domínio da convenção; tudo


permanece convencional, desde os cenários, desde a rampa
que ilumina os atores por baixo, até as personagens que
aí são conduzidas pela extremidade de um fio 120

Assume então o papel de paladino da verdade no teatro:

O teatro, por suas condições de existência, devia


ser a última conquista, a mais laboriosa e a mais
disputada do espírito da verdade. 121

Mas não resolve a questão, não vai ao fundo da contradição por ele
mesmo exposta, não explica como é possível prescindir da convenção em uma
arte que vive do paradoxo entre a concretude da presença viva do ator e as
situações inventadas que ele tem de representar.

No teatro, quanto mais de verdade mais ilusão, porém quanto mais ilusão
menos verdade. Na matemática essa equação é chamada de absurdo. Esse
absurdo é a matéria mesma do teatro porque a ilusão da realidade não deixa de
ser de fato uma ilusão e a única verdade sobre o palco é o próprio teatro. Como
conclui Bernard Dort:

Pretender instalar o real no palco, não é


instituir uma falaciosa e impossível identidade entre
teatro e realidade: é colocar totalmente em questão a
atividade teatral.(...)É passar da imitação ideal da
natureza à criação de uma nova natureza, através dos

120
Zola, Emile; O Naturalismo no Teatro; São Paulo: Ed. Perspectiva,
1979, p. 124.
121
Id. Ibid. p. 125.
76
meios específicos da expressão teatral. Por um singular
paradoxo, o ilusionismo naturalista cedo se transforma
em seu contrário: a recusa de toda a ilusão, de toda a
reprodução do real. 122

Eis para onde leva o paroxismo do naturalismo: à sua superação e à


assunção da teatralidade como a mais radical das verdades sobre o palco.
Sabemos que se formos precisos diante daquilo que vemos, não encontraremos
nem linha, nem mesmo figura, mas simplesmente luz refletida. A figura, o fundo e
sua organização se formam dentro da nossa cabeça. Da mesma forma se formos
rigorosos em relação à realidade será impossível abarcá-la enquanto tal; teremos
no máximo um ponto de vista, uma versão pessoal da realidade e, como tal,
fragmentada e subjetiva. A busca da teatralidade, no fundo, não deixa de ser uma
ruptura em direção á verdade do artista, rumo, portanto, à subjetividade. 123

É em busca da verdade que muitos artistas acabam por transcender o


naturalismo por “dentro”, atravessando a realidade rumo à subjetividade e ao
impressionismo das atmosferas e dos "estados d'alma", como Manet, na pintura;
como Stanislávski124, na cena; como Ibsen, Hauptmann, Strindberg e
Tchéckhov125, em suas peças.

As oposições (e também a forte atração) latentes entre o naturalismo e o


simbolismo no teatro da passagem do século XIX para o XX estão expressas de
maneira quase oracular no texto A Gaivota, de Anton Tchékhov. A peça,

122
Dort,Bernard. O Teatro e Sua Realidade. São Paulo: Ed.Perspectiva, 1977, p. 49.
123
“É característica do impressionismo em geral que seus adeptos já não
viessem a apresentar a realidade tal como é e sim tal qual ela se lhes
afigura – a aparência da realidade, a impressão fugaz de um mundo em
constante transformação. De certo modo eram naturalistas ao extremo. Mas
precisamente por isso não alegam reproduzir a realidade e sim a mera
impressão dela. Tornaram-se por assim dizer, subjetivos por quererem ser
objetivos”. Rosenfeld,Anatol. O Teatro Épico; São Paulo:Ed.Perspectiva,
1985, p. 103.
124
“Stanislávski desenvolveu um refinado estilo impressionista. Ele
mobilizou todos os meios concebíveis de ilusão ótica e acústica, de forma
a criar a "atmosfera" correta para seus atores e para o público".
Berthold, Margot, História Mundial do Teatro, Ed Perspectiva,2003. p.463.
125
O próprio Tchékhov oscila entre o naturalismo, o impressionismo e o
simbolismo, como sugere Stanislávski em “Minha Vida na Arte”, em trecho
citado por Jacó Guinsburg: “ás vezes ele (Tchékhov) é um impressionista,
outras vezes um simbolista, quando é necessário é um realista e às vezes
quase um realista” Stanislávki e o Teatro de Arte de Moscou. São Paulo:
Ed. Perspectiva, p.102, nota 105.
77
verdadeiro libelo sobre o teatro e suas paixões, retrata o embate entre os sonhos
do jovem Tréplev, poeta incompreendido em busca de novas formas e o "velho"
teatro de sucesso representado por sua mãe: Arkádina.

“Treplév: (Olhando de relance para o tablado) Isso sim é um


teatro. A cortina, depois o primeiro bastidor, o segundo bastidor e,
em seguida o espaço vazio. Nenhum cenário. A vista se abre direto para
o lago e para o horizonte. Levantaremos a cortina exatamente às oito e
meia, quando a lua surgir. (...) Minha mãe não me ama. Ela também sabe
que eu não tenho grande consideração pelo teatro. Ela ama o teatro e
lhe parece que, com isso, presta um grande serviço à humanidade, à
arte sagrada, mas para mim o teatro contemporâneo não passa de rotina
e superstição. Quando a cortina sobe e, à luz da noite, entre as 3
parede, esses talentos formidáveis, os sacerdotes da arte sagrada
representam como as pessoas comem, bebem, amam, andam, vestem seus
casacos(...) quando em mil variantes, me apresentam sempre a mesma
coisa, a mesma coisa e a mesma coisa...
Sórin – É impossível viver sem o teatro.
Tréplev – Precisamos de formas novas. Formas novas são
indispensáveis e, se não existirem então é melhor que não aja
nada.126

Tréplev ama a jovem atriz Nina que representa o seu "novo drama" no
Teatro do Lago:

[A cortina se levanta, surge a vista do lago, a lua, logo acima do


horizonte reflete-se na água sobre uma Pedro grande, está sentada
Nina, toda de branco]
Nina - (...) A alma do mundo sou eu...eu...em mim habita a
alma de Alexandre o Grande, de César, de Shakespeare, de Napoleão e
da mais ínfima sanguessuga. Em mim, as consciências de todos
fundiram-se com os instintos dos animais e eu me lembro de tudo, de
tudo, e sinto em mim todas as vidas viverem de novo. (rebrilham
fogos fátuos no pântano)
Arkádina – Isso está um tanto decadentista.
Tréplev – (em tom de súplica e censura) Mãe!
Nina – Estou só. Uma vez a cada cem anos, abro a boca para
falar e minha voz ressoa neste deserto tristonho, mas ninguém
escuta... E vocês ó pálidas luzes dos fogos fátuos...De madrugada, o
pântano pútrido as traz ao mundo e vocês, pálidas luzes, vagueiam até
a aurora, mas sem pensamentos, sem vontade, sem os tremores da
vida.(...)Até lá o horror, o horror... (pausa; no outro lado do lago,
surgem dois pontinhos vermelhos). Eis que se aproxima meu poderoso
adversário,o diabo. Vejo seus olhos rubros e medonhos
Arkádina - Sinto cheiro de enxofre. Será mesmo necessário?
Tréplev – É sim.
Arkádina – (ri) Ah, é um efeito especial.

126
Tchékhov, Anton. A Gaivota. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac
& Naify,2004, p. 13-14.
78
Tréplev – Mãe! (...) (com raiva erguendo a voz) A peça acabou!
Chega! Baixem a cortina!. 127

No entanto a jovem atriz é seduzida pelo escritor de sucesso e o jovem


poeta, embora finalmente reconhecido, perde o sentido da existência e se suicida
no fim da peça.

O próprio Tchékhov, na fronteira entre o


naturalismo e o simbolismo, reconhecia o perigo, para a
arte e para a vida, representado pelo escapismo para o
reino dissoluto dos sonhos.”128

Por crível paradoxo, assim como a fotografia liberta a pintura de retratar a


realidade, o naturalismo no teatro será a porta de passagem para o simbolismo e,
a partir dele, para as vanguardas modernas e suas múltiplas formas de recriar o
real.

Na iluminação esse dado libertador será fundamental para que as


potencialidades da luz elétrica se transformem em ato nas mãos dos
encenadores-iluminadores. Os artistas do espetáculo, de retratistas tornar-se-ão
criadores de outras realidades. A luz é fundamental nesse sentido porque é
determinante para a transformação do ponto de vista, da forma do olhar. É da
tensão entre a realidade e a ficção, espelhada em vários níveis e de diferentes
formas, que se constituirá o teatro no século XX.

Para que a iluminação se torne ativa, será necessário atravessar a


aparecia rumo á novas realidades que permitam o movimento criativo da luz.

127
Idem Ibidem, p. 20-23.
128
Berthold, Margot.História Mundial do Teatro,Ed.Perspectiva,2003,p.466.
79
2ª PARTE
A LUZ ATRAVESSA O VISÍVEL
OU
O SIMBOLISMO
E A LUZ COMO LINGUAGEM

80
CAPÍTULO 6
O SIMBOLISMO e as ILUMINAÇÕES
A mim. A história de uma de minhas loucuras.
Há muito tempo eu me vangloriava de possuir todas as paisagens possíveis,
e achava ridículas as celebridades da pintura e da poesia moderna.
(...)

Eu inventei a cor das vogais! – A negro, E branco, I vermelho, A azul, U


verde. – Regulei a forma e o movimento de cada consoante e, com ritmos
instintivos, nutri a esperança de inventar um verbo poético que seria
acessível a todos os sentidos. Eu me reservava a sua tradução.
Foi antes, simples estudo. Eu escrevia silêncios, noites, anotava o
inexprimível. Fixava vertigens.129
Arthur Rimbaud

O Simbolismo, strictu sensu, nasce como um movimento especificamente


literário que, inspirado em Baudelaire, reúne poetas como Mallarmé, Verlaine e
Rimbaud e tem seu apogeu em Paris nos anos 1885 – 1895.130

Mas o simbolismo pode também ser entendido como um movimento bem


mais abrangente que propõe em pleno auge do naturalismo (1870/80) o
abandono deliberado da realidade exterior, ou mesmo sua aparência, em busca
de outra realidade, superior; a arte se propõe a ser um canal de comunicação e
articulação não racional com o mundo da imaginação, uma porta aberta para o
espírito, expressão da subjetividade do artista sobre a “realidade”, onde sujeito e
objeto se justapõem em uma existência que tende ao absoluto e ao ideal. Como
tal o simbolismo se relaciona diretamente com o naturalismo, muitas vezes como
uma transmutação interna, que atravessa a realidade transformando-a “de dentro
para fora” (como nos casos já citados de Tchékhov, Ibsen, Hauptmann, entre
muitos outros), outras vezes como oposição explícita, libelo estético e político
contra a redução materialista do mundo e do homem, uma reação idealista contra
os cânones da objetividade como paradigma na arte.

129
Rimbaud, Arthur; Alquimia do verbo in Uma Temporada no Inferno e
Iluminações; trad. Lêdo Ivo. São Paulo: Francisco Alves,1993, p.63.
130
Segundo Anna Balakian, que faz um apanhado dos vários significados do
termo simbolismo (O Simbolismo; São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985): Há
críticos que entendem o Simbolismo como uma escola literária específica,
dentro de limites precisos no tempo e no espaço (Paris, 1885/95).
Enquanto que há outras acepções do mesmo termo que incluem influências
anteriores e herdeiros posteriores e que admitem a heterogeneidade do
movimento em torno de princípios comuns. Para resolver esta questão ela
propõe a utilização do S maiúsculo para o sentido restrito da palavra, e
o minúsculo para os sentidos abrangentes.
81
É comum encontrar entre os historiadores da arte em geral e do teatro em
particular, aqueles que defendem a idéia de que essa reação ao naturalismo se
congrega em sua imensa diversidade sobre o signo do simbolismo. E que,
segundo esse entendimento, simbolismo e naturalismo são as duas grandes
tendências antitéticas do século XX.

Nessa linha de pensamento, cito Juan Guerrero Zamora na introdução ao


capítulo intitulado ‘Reação Simbolista’ em sua Historia del Teatro contempóraneo:

Duas atitudes matrizes determinam o complexo processo


criador de nosso tempo: realismo e simbolismo. E ainda
entre elas se produzem termos de contato ou implicação.
Da segunda, que foi definida como ‘corrente estética
tendente a buscar nas imagens e expressão
correspondências suprasensíveis e iluminações universais
sobre a realidade do mundo externo e sobre aquela do
espírito’131, derivam os diversos movimentos, por
aparentemente díspares que se ofereçam – ismos e
neoconvencionalismos – de irrealismo e transfiguração. A
órbita inteira da nossa literatura dramática queda, pois,
basicamente compreendida nesse binômio antitético.132

Jean-Jaques Roubine explicita a mesma noção abrangente e englobadora do


termo ao analisar o nascimento do teatro moderno:

“O debate que acompanha toda a prática teatral do


século XX coloca em oposição, em diversos planos e sob
denominações que variam ao sabor das épocas, a tentação
da representação figurativa do real (naturalismo) e a do
irrealismo (simbolismo), não seria tão intenso nem tão
fecundo, sem dúvida, se não fosse sustentado por uma
revolução tecnológica baseada na eletricidade”.133

Nesse sentido, portanto, mais do que uma escola específica ou mesmo um


estilo literário com características próprias, o simbolismo é considerado como uma
tendência de oposição ao naturalismo que engendra múltiplas atitudes criadoras e

131
Blanchart, Paul (citado por Juan Guerrero Zamorra) in Enciclopedia dello
Spettacolo fondata da Silvio d’Amico, vol III, “Le maschere”, Roma, 1961.
132
Zamora, Juan Guerrero, História Del Teatro Contempóraneo V.I,
Barcelona: Juan Flors, Editor, 1961, p.261.
133
Roubine, Jean-Jaques, A Linguagem da Encenação Teatral, Zahar ed., São
Paulo, 1982.p.24.
82
congrega uma multiplicidade de movimentos artísticos, idealistas e subjetivos, que
se sucedem, se integram ou até mesmo se opõem, criando novas e diferentes
formas de recriar a realidade. Nessa acepção ampla e heterogênea o simbolismo
expande suas influências por vários países e formas de arte até a primeira
Grande Guerra, inaugurando o teatro de vanguarda.

De fato o simbolismo no teatro não se apresenta como um movimento coeso,


mas como uma revolta do espírito, uma ação contrária, um “caminho novo”, e,
como tal, inverte o sentido do processo criativo. Como se fora um naturalismo do
avesso134, propõe o privilégio da intuição sobre a razão, da subjetividade sobre a
objetividade, da imaginação sobre a realidade, levando a cena teatral a imergir
em uma via da interioridade: um mundo de sonhos, símbolos, abstrações, fantasia
mística e celebração religiosa. No entanto, regado pelo mesmo espírito
decadentista do "fin de siécle" que leva o naturalismo à fatalidade; a celebração
religiosa não encontra fé na redenção; o amor ideal não pode ser realizado, o
homem incapaz de alcançar o absoluto se abandona à inação, a existência se
esvazia de sentido. A catarse final resta à morte, principal tema da sua
dramaturgia. A evasão da realidade é a ação simbolista por excelência.

Por suas características mais líricas do que dramáticas, a falta de conflito


dos seus textos e o anulamento da personalidade e do ator em privilégio dos
estados d’alma, o teatro simbolista não chega a impor-se no seu momento
histórico enquanto modelo de dramaturgia e existe mesmo uma tendência dos
poetas-dramaturgos, liderados por Mallarmé e Maeterlinck, em entender o texto
como entidade em si, feita para ser lida e vivida no palco da imaginação,
independendo da sua incorporação no ao vivo do teatro. Maeterlinck declara: “A
representação de uma obra-prima com auxílio de elementos acidentais e
humanos é uma contradição. Qualquer obra-prima é um símbolo, e um símbolo

134
“O simbolismo é uma outra face do naturalismo, mais do que seu oposto”
Balankian, Anna. O Simbolismo.São Paulo: Ed.Perspectiva, 1985, p.106. Sobre
as relações de oposição e complementariedade entre naturalismo e
simbolismo no teatro ver Jacó Guinsburg: Stanislávski, Meierhold & Cia. São
Paulo: Ed. Perspectiva,2001.
83
jamais suporta a presença do homem”.135 Já Mallarmé propõe “um teatro
maravilhosamente realista da nossa imaginação”.136

Estas características da dramaturgia simbolista levaram a uma dificuldade


intrínseca em colocar o “novo drama” sobre o palco.

Porém as conseqüências do simbolismo para o teatro são tão


transformadoras quanto duradouras, porque no âmbito da arte do espetáculo,
mais do que a criação de uma poética específica, significou uma reviravolta – o
abandono da verossimilhança e a retomada da teatralidade, suas convenções e o
desenvolvimento dos meios técnicos específicos para sua realização.

A sugestão torna-se parte fundamental da revelação e o que não pode ser


dito, vira silêncio... E imagem. Da mesma forma que na poesia o simbolismo
encontra, através da palavra, o indizível – a visualidade abre caminho para aquilo
que está para além do visível.

Há, de fato, uma contradição entre a concepção dos poetas-dramaturgos


que privilegiam radicalmente a palavra sobre o espetáculo e seus meios
específicos de expressão e a conseqüência desta concepção, reelaborada pelos
homens de teatro, levando a arte do espetáculo à síntese e à convenção formal.
O mundo do espírito e dos sonhos precisa em cena de uma forma para se
expressar ou, como dizemos no teatro, para encarnar:

O novo questionamento da arte teatral no início do


século XX situa-se mais no âmbito do espetáculo do que
no da obra escrita. Se a arte teatral tende a afirmar
sua autonomia é porque seus principais renovadores
acreditam que só existe teatro quando há representação,
quer dizer, um universo dramático colocado em evidência
pelos meios auditivos e visuais, pelo emprego de

135
Maeterlinck; La Jeune Belgique, p. 331, citado por Jean Jaques
Roubine, em A Linguagem da Encenação Teatral, opus cit. p. 41.
136
Mallarmé, Stéphane, citado por Berthold, Margo; História Mundial do
Teatro, Ed. Perspectiva, 2003, p.466.

84
técnicas precisas. O teatro começa quando uma ação
imaginária é apresentada a um público reunido. 137

Para reiterar essa característica visual do espetáculo simbolista, tão


estranha aos seus próprios ideais de devolver o teatro à palavra, cito Gaston Baty
e René Chavance:

Em todo caso, parece que o movimento simbolista,


originalmente literário, alcançou no teatro, sobretudo,
resultados visuais.138

O espetáculo simbolista, Inspirado pelo Gesamtkunstwerk139 wagneriano


desenvolve o ideal da integração das artes, associando a palavra à música, à
dança e às artes plásticas, sob a regência do encenador. O pintor entra em cena,
não mais para criar uma ilusão de realidade, mas para "imprimir" a sua marca
pessoal, substituindo assim a tradicional técnica140 dos telões pintados que imitam
paisagens para descrever o lugar da ação, pela arte dos “cenários pictóricos” com
cores e formas que tendem à abstração, trazida para o teatro pelos pintores
simbolistas e Nabys. A cenografia sob influência decisiva do simbolismo se
desvencilha do excesso de detalhes e objetos demonstrativos e passa a procurar
o símbolo e a síntese.

A iluminação cênica torna-se um instrumento fundamental na escritura do


espetáculo simbolista (e graças à sua prática e influência, para além dele) porque,
graças a sua infinita potencialidade de movimento - intensidade, direção, ângulo e
cor - possibilita o trânsito entre a concretude da cena e o campo do inefável, do
inexplicável, do indizível e, principalmente, do invisível – apreendido através do
141
jogo de múltiplas reflexões do visível . A encenação volta-se para a iluminação

137
Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a
1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989,
p.100.
138
“En todo caso, parece que el movimiento simbolista, originalmente
literário, alcanzó em el teatro resultados sobre todo visuales” BATY,
Gaston e CHAVANCE, René. El Arte Teatral. Trad. Juan Jose Arreola.
México: Fondo de Cultura Económica, 1951, p. 242.
139
Traduzido normalmente como “obra de arte Total”, ou “obra de arte
comum”.
140
Técnicas tradicionais da cenografia de teatro: pintura em perspectiva
e “trompe-l’oeil” (literalmente algo como “engana olhos”).
141
“Existe nos simbolistas uma recusa categórica da realidade exterior: o
mundo visível não tem valor a não ser como condição de revelar o mundo
85
entendida agora como “jogo de luzes” e esse por sua vez, livre da coerência
naturalista, toma um sentido poético, musical e sinestésico.

A sinestesia, no palco, ganha fisicalidade e começa a ser explorada em


todas as artes visuais, incluindo o teatro, a dança e a ópera. A interação entre as
luzes, os sons, as cores, as palavras e os movimentos dos corpos, enfatizam as
correspondências entre o sensível e o espiritual.

Como prenunciara Baudelaire em 1857, em seu famoso poema-manifesto


Correspondências:

“A natureza é um templo em que vivas pilastras


Deixam sair às vezes obscuras palavras;
O homem a percorre através de florestas de símbolos
Que o observam com olhares familiares.
Como longos ecos que de longe se confundem
Numa tenebrosa e profunda unidade,
Vasta como a noite e a claridade,
Os perfumes, as cores e os sons se correspondem.
Há perfumes saudáveis como carnes de crianças,
Doces como os oboés, verdes como as campinas,
- e outros, corrompidos, ricos e triunfantes,
Tendo a efusão das coisas infinitas,
Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso,
que cantam os êxtases do espírito e dos sentidos”.142

A luz ganha um novo estatuto criativo – o da sugestão. No palco o “mundo


do espírito e da imaginação" necessita da fluidez e do movimento das luzes para
sugerir, ao invés de mostrar, abrindo canais de comunicação sensorial com a
platéia, provocando sua imaginação, que dessa forma “participa” do sentido do
íntimo do espetáculo.

A cor – até então usada com parcimônia, com o objetivo de recriar a


natureza em cena – ganha um estatuto próprio e começa a significar emoções,
estados d'alma ou universos oníricos. Esse desligamento da realidade levará à

invisível. Teatro do mistério do homem e do cosmos, onde a palavra reina


e se faz música” Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de
1870 a 1914. Paris: Editions du C.N.R.S., 1989, p.98.
142
Baudelaire, Correspondências in Vanguarda Européia e Modernismo
Brasileiro, Org.Gilberto Mendonça Teles. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p.
45.
86
libertação do uso das cores na iluminação, para além da cópia e da descrição. As
cores do cenário e suas relações com o jogo de luzes ganham um estatuto
especial porque se comunica com o universo inconsciente através das sensações
e, portanto, cria subliminarmente analogias sensíveis com a palavra proferida,
inventando um verbo do olhar, ou, como propõe o ideal das correspondências
sinestésicas, as cores tornam-se música para os olhos. A relação entre as cores e
as notas musicais é explorada tanto na poesia, como metáfora, quanto em
experiências cênicas, ao vivo. A cor é elevada à categoria de símbolo e colocada
em um verdadeiro pedestal de significação. Como propõe neste trecho Alphonse
Germains, em 1892:

As cores estão para a vista, assim como demonstra


Euler,como os diferentes sons da música estão para o
ouvido. Por que então o autor dramático não pode se
servir das cores como se serve da música em cena? Para
metabolizar certas intenções, para reforçar certos
efeitos (...). A cor! Engenhosamente distribuída, ela age
sobre as multidões quase tanto quanto a eloqüência...
Estética teatral e estética pictórica se reencontram aqui
143

A abstração proposta pela mudança das cores reais por seus significados
simbólicos, a possibilidade de reinterpretar e transformar a realidade através das
cores da luz jogadas sobre a cena, o jogo proposto pela mistura entre a cor luz e
a cor pigmento, regendo a relação entre os vários elementos da cena: são
legados fundamentais do simbolismo para o desenvolvimento da iluminação
cênica.

As novas propostas de utilização da cor começam a ser experimentadas na


iluminação cênica aos poucos, principalmente através da dança, que permite uma
abstração maior, mais fácil de ser aceita pelo espectador. As experiências mais
radicais nesse sentido – transmutação da realidade da cena pela mudança da cor
projetada pela luz – ainda vão esperar para se generalizar na prática cotidiana do
fazer teatral, porém as bases estão lançadas e as exceções começam a fazer a

143
Germain, Alphonse. “De la décoration au théâtre”, in la Plume, 1er
févrir 1892, p. 62.
87
história.144 Além do binômio: luz e não-luz, que já possibilita em seu contraste
miríades de sutilezas, a iluminação ganha a partir do simbolismo uma nova paleta
de cores para pintar o espaço cênico e separar diferentes níveis de existência,
diversos planos de realidade na encenação.145 A utilização radical das cores na
luz cria uma nova modalidade de contraste em cena, o ‘contraste em cor’, que
acompanha no teatro as práticas da pintura do início do século XX.

As relações complexas da encenação com o cenário pictórico e da pintura


com a iluminação, com todas as suas contradições146, transformam-se
estruturalmente no simbolismo, sugerindo, para além do telão de fundo, novas
correspondências. De coadjuvante a Iluminação cênica passa a ter um papel
central na concepção deste novo ponto de vista, sempre na fronteira entre o
visível e o invisível.

A linguagem simbolista vai inaugurar as novas experiências formais no


teatro, influenciando, de uma maneira ou de outra, os grandes encenadores,
cenógrafos, coreógrafos e teóricos do início do século XX como Stanislávski, Paul
Fort, Lugné-Pöe, Loï Füller, Adolphe Appia, Gordon Craig, Vsélovod Meierhold,
Max Reinhardt, entre muitos outros.

Entre eles, no entanto, há uma experiência que tem por objetivo específico
criar a correspondência teatral do movimento simbolista, vinculada, portanto,
diretamente com o movimento literário francês, o Théâtre d’Art.

144
Exemplos específicos serão expostos nos capítulos seguintes, caso a
caso, quando tratarmos dos renovadores da cena que chegaram ou partiram
do simbolismo como: Loïe Füller, Paul Fort, Lugné Pöe, Meierhold, Appia,
Craig e Max Reinhardt.
145
Quando um autor como Nelson Rodrigues, por exemplo, quer significar
que uma ação se passa em outro plano, no passado ou em sonho, inclui a
seguinte rubrica: “entra uma luz espectral azul” e todos os leitores
compreendem que se trata de outro plano de existência. Este é um legado
direto do simbolismo.

146
Estudadas em detalhes por Appia.
88
PAUL FORT E LUGNÉ POË e A ENCENAÇÃO SIMBOLISTA

Paul Fort, poeta simbolista, cria o Théâtre d’Art em 1890, como um libelo
147
explicitamente antinaturalista . Seu objetivo era congregar os adeptos da nova
arte em torno de uma empresa comum – colocar em cena os ideais do
Simbolismo, devolvendo a poesia ao teatro e o teatro à poesia.

Para essa empreitada chama como parceiro e diretor artístico dos


espetáculos o então ator Lugné Poë (vindo do Théâtre Libre, de Antoine). Juntos
empreendem várias experiências inovadoras no que se refere à encenação dos
textos simbolistas ou a uma “encenação simbolista” de textos clássicos. Partindo
da idéia, fundamental para a poesia simbolista, das correspondências entre as
idéias, as cores, os sons e os estados d’ alma, eles rompem de vez com os
cenários reais, dando ênfase na construção do espaço cênico às analogias entre
as palavras e as cores e formas, à alusão imprecisa de um lugar, à evocação de
um tempo múltiplo e desdobrado e às experiências sinestésicas. Enfim,
cenografia e iluminação cênicas que se comunicam com os sentidos do
espectador visando mais uma sugestão para a imaginação do que uma descrição
para o entendimento.

Para essas realizações então experimentais, Paul Fort convida vários


pintores ligados à corrente simbolista para conceber o espaço cênico; os telões
de fundo transformam-se em telas, muitas vezes abstratas: Serusier, Bonnard,
Ibels, Vuillard, Odile Redon, Serusier e Maurice Denis, entre outros, compõem
cenários e figurinos, construindo uma parcela pictórica do espetáculo.
Diretamente inspirado pela Gesamtkunstwerk wagneriana, ele concebe o
espetáculo teatral como uma síntese poética das artes, como uma obra que reúne
em seu seio as várias artes e artistas numa obra de arte que almeja a
totalidade.O Théâtre d’Art reinventa o cenário pictórico e inaugura a contribuição
da pintura moderna com o teatro, que terá lugar de destaque na primeira metade
do século XX.

147
Em suas memórias, Paul Fort declara que o Théâtre D’Art foi fundado
“em vista de combater o Naturalismo”. Paul Fort, Mes Memoires. Toute la
vie d’um poète. 1872-1944. Paris, 1944, p. 29.
89
A presença dos pintores certamente teve grande influência na concepção
da função da luz em cena, principalmente no que se refere á novas formas de
utilização das cores. A noção, básica para um pintor, de que a cor é luz e a luz é
cor, invade os palcos. A significação simbólica passa a ser determinante na
escolha das cores das luzes e sua relação com as cores da cenografia e dos
figurinos.

No texto “De l’inutillité absolue de la mise em scène exacte” escrito para a


Revue d’Art Dramatique, Pierre Quillard148 expõe os princípios norteadores da
cenografia no Théâtre d’Art. Segundo Bablet, que analisa este texto, o verdadeiro
“evangelho”149 do Théâtre d’Art resume-se à frase de Quillard: “A Palavra cria a
cenografia como todo o resto” 150. Segundo esse princípio norteador, a cenografia
“exata”, realista e demonstrativa, prejudica a capacidade do espectador de
imaginar o lugar e a ambiência a partir da palavra proferida em cena, já que a
concretização de uma cenografia específica significa sempre uma redução das
múltiplas possibilidades que a palavra sugere para a imaginação. Trata-se, ao
151
contrário, de “Troubler l’illusion” - perturbar, confundir, atrapalhar, turvar a
ilusão - multiplicando através da sugestão as suas infinitas possibilidades. Desta
forma a cenografia, criada através da palavra, pede a cumplicidade da platéia,
para completar com sua própria imaginação uma lacuna cheia de potencialidades,
como a poesia faz com suas metáforas. Ora, esse princípio está tanto em
Shakespeare como na tragédia grega e é um dos preceitos do teatro épico. Mas
sendo assim, o que resta ao resto, ou seja, à cenografia e a iluminação na cena
simbolista? A resposta de Quillard é clara, “A cenografia deve ser uma pura ficção
ornamental que completa a ilusão por analogias de cores e de linhas juntamente
152
com o drama” . Ou seja, resta ao espetáculo encontrar as correspondências

148
Autor do poema dramático “La Fille aux mains coupées”, montado pelo
Théâtre d’Art em 1891.
149
Segundo Paul Fort em Mes Memoires. Toute la vie d’um poète. 1872-1944.
Paris, 1944, p. 31.
150
Pierre Quillard, “De l’inutilité absolue de la mise en scène exacte”,
dans la Revue d’art dramatique, 1ºmaio 1891, p.181 citado por Bablet,
Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914. Paris:
Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.148.
151
Idem Ibidem, p.149.
152
Idem Ibidem, p.150.
90
visuais das palavras através de um jogo de analogias entre os sentidos e as
sensações.

Em 1891 na encenação de Cantico dos Canticos de Salomão, Paul Fort


experimenta um espetáculo explicitamente sinestésico: levando ao paroxismo a
teoria das correspondências, relaciona as palavras á musica e, a cada quadro da
obra poética, com a projeção de luzes coloridas monocromáticas “pinta” a cena
enquanto perfumes são espargidos pela sala. Assim a cada quadro correspondia
uma “quádrupla orquestração: do verbo, da música, da cor e do perfume” 153.

A encenação de 1893 de Pelléas e Melisande dirigida por Lugné Poë


tornar-se-á o clímax da realização simbolista no Théâtre d’ Art. A obra
dramatúrgica de Maeterlinck ganha em cena um universo de mistério que valoriza
a poesia do drama, utilizando-se na cenografia do mínimo necessário, segundo os
princípios defendidos pelo encenador de “Síntese e sugestão”.154 Os móveis e
acessórios são suprimidos. Ao invés dos dezenove lugares por onde transita a
ação, Lugné Poë utiliza apenas duas telas de fundo, que substituem a
representação realista do lugar por uma evocação imprecisa, uma abstração em
cores, que sintetiza a atmosfera da peça:

Todo o valor da cenografia reside na harmonia de


seus tons enevoados, reflexo do mistério e da melancolia
que exala do drama: azul sombrio, lavanda, laranja e uma
gama de diferentes verdes.155

Segundo o próprio Maeterlinck, em entrevista sobre a montagem “o


princípio da cenografia é de criar uma espécie de acompanhamento sinfônico de
156
cores em harmonia com o sentimento geral da obra” . Percebe-se aqui, como
um lema sempre relembrado, a justaposição entre o verbo, a música e as cores.

153
“A título de exemplo, menciono o primeiro movimento (Apresentação)-
ele comporta uma orquestração do verbo: em i ilumina de branco/ da
música: em dó/ da cor: em púrpura claro / do perfume: incenso.” Bablet,
Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914. Paris:
Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.154.
154
Idem Ibidem, p. 158.
155
Idem Ibidem, p.160.
156
Maeterlinck,Maurice em artigo que precede a representação(autor e data
não precisos) citado por Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de
Théâtre de 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche
Scientifique, 1989,nota 72, p.159.
91
Quanto à iluminação temos uma descrição de Dennis Bablet, provavelmente
retirada de alguma crítica ou artigo da época, tal a quantidade de detalhes por ele
descritos:

A iluminação se adapta à atmosfera da peça que ela


envolve em um véu de mistério. A sala é mergulhada na
obscuridade, a ribalta é suprimida, personagens e
cenários não recebem nenhuma iluminação de baixo e de
frente. Eles são como apartados do publico; a iluminação
que vem do alto lhes banha com uma ambiência de sonho. 157

Pela descrição de Bablet, pressupõe-se que a luz principal, vinda de cima


sem iluminar a face, seja uma geral a pino que, por “banhar” a cena em um
ângulo de 90 graus, como uma cachoeira de luz, revela as formas gerais dos
corpos e volumes, sem detalhes - resultando essa aura de mistério ou sonho.

Em 1893 – embalado pelas conquistas de Pelléas e Melisande - Lugné


Poë, junto com seus parceiros Camille Mauclair, escritor e crítico, e o pintor
Vuillard fundam o Théâtre de l’Ouevre. Existe uma parceria íntima entre Lugné
Poë e os pintores Nabys. Assim como no Théâtre d’ Art os pintores assumem a
criação dos cenários e figurinos: Vuillard, Bonnard, Denis, Dethomas, Munch,
Sérusier, Toulouse Lautrec, entre outros, pintam no espaço do Théâtre l’Ouevre..

Em 1921, passados vários anos das suas primeiras experiências no


Théâtre d’Art e no Théâtre l’Ouevre, Lugné Poë escreve sobre suas concepções
cenográficas em um artigo de jornal158, onde distingue duas escolas de
cenografia: a realista e a sintética, com a qual se identifica. Bablet comenta o
artigo do encenador, e a autocrítica que o tempo lhe impôs:

Neste estágio de sua carreira, Lugné Poë considera


a cenografia não sem relativismo. Ele condena os
exageros e pressupostos; constata que a arte da
cenografia evolui numa dependência estrita com as artes
plásticas.159

157
Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914.
Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.161.
158
Lugné-Poë, “las deux écoles dans l’art Du décor”, 26-7-21, citado por
Bablet, Denis, opus cit. p. 158.
159
Idem Ibidem, p. 158.
92
Essa colaboração com os pintores atingiu tal identificação com a cena
simbolista que, para além do cenário pictórico, o palco todo será considerado
como uma espécie de “quadro cênico” e mesmo a movimentação dos atores,
seus gestos, sua posição e a noção do conjunto estará submetida à concepção
de uma pintura no espaço. Nesse sentido a poesia e a pintura, sobrepostas à
cena, sufocarão o teatro e suas especificidades. A síntese harmoniosa das artes,
ideal da Gesamtkunstwerk (Obra de Arte Total), mostrar-se-á mais difícil na
prática do que na teoria, correndo o risco de “enquadrar” mais do que libertar a
cena teatral.

A libertação da libertação chega, ou atravessa, pelo Théâtre l’Oeuvre com


a montagem de Lugné Poë do texto Ubu Rei, de Alfred Jarry, onde a crítica ao
teatro vira puro teatro, a síntese se liberta do aspecto formal, a sugestão
evocativa concretiza-se em uma tabuleta onde a indicação do lugar da ação é
escrita com erros ortográficos, explicitando cinicamente a cumplicidade com o
público. O teatro atravessa o limite do quadro e do próprio simbolismo, para
tornar-se puro jogo de cena e teatralidade. O tabu vira totem e o totem, tabu; o
símbolo cai do seu pedestal sagrado e entra no jogo da ação dramática e, como
tudo no teatro: é, mas também não é. Jarry e Pai Ubu nos lembram que
dessacralizar o sagrado é tão relevante para o teatro quanto sagrar o ordinário – o
que interessa é o movimento, a ação, o contraste, a transformação, o jogo. Essa
montagem, escândalo em seu momento histórico, se comunica ao mesmo tempo
com o passado e com o futuro: retomando a teatralidade das tradições dos
poetas-atores-improvisadores (nas quais se inclui Shakespeare, parodia
fundamental da peça), Jarry transgride o seu presente e transforma
definitivamente o futuro da história do teatro.

CONCLUSÃO

Na frança, o teatro simbolista, influenciado pelo encontro com as artes


plásticas, apresentou um viés primordialmente pictórico, e, portanto, tentou fixar
as correspondências sensoriais em uma “tela” disposta no fundo da cena,
organizando a composição cênica a partir dessa referência bidimensional,
acirrando assim, a contradição entre a vida do jogo dramático do ator e o “quadro
cênico”.

93
Enquanto que, fora da França, outras práticas teatrais, experiências
formais e concepções teóricas, inspiradas diretamente pelo simbolismo, buscaram
na parceria com as novas tecnologias seu modus operandi. Os artistas que
seguiram este caminho encontraram na iluminação cênica uma ferramenta
fundamental de construção da cena, dando origem a uma reviravolta focada na
arte do espetáculo, graças a novo paradigma na relação entre o jogo do ator e o
espaço cênico, articulada pela luz.

Adolphe Appia, Gordon Craig, Vsévolod Meierhold, Max Reinhardt e, na


dança, Loï Füller (como exceção que confirma a regra), serão todos, em alguma
medida, iluminadores, além de encenadores, pensadores do teatro ou performers.
A influência desses poetas da cena para a nova arte do espetáculo fala per si.
Nos capítulos seguintes aprofundaremos a práxis de seus trabalhos e suas
contribuições específicas para o desenvolvimento da iluminação cênica como
linguagem.

Os movimentos artísticos e escolas literárias, que servem para nortear o


estudo das tendências da arte moderna, não cabem como rótulo para as
experiências destes artistas. Eles não são de fato, artistas simbolistas, mas
artistas do teatro que, a partir da inspiração do simbolismo, criaram caminhos
próprios no desenvolvimento da arte teatral.

Mas, mesmo conscientes da limitação e dos perigos dos conceitos


generalizantes em relação à experiência artística, única e particular, resolvemos
congregar a partir do movimento simbolista o trabalho destes artistas. O fizemos
devido à grande importância do conceito de Iluminação na teoria e prática do
simbolismo e, principalmente, à necessidade de organização do trabalho num
todo que possibilite relacionar as partes entre si. Tentaremos, portanto, relacionar
as especificidades da obra de cada um com as bases conceituais do simbolismo,
tomadas como ponto de partida das suas experiências práticas. Estaremos
atentos, no entanto, para além das influências, em como cada um desses artistas
desenvolverá seu caminho, atravessando o simbolismo rumo ao futuro das artes
cênicas, revolucionando técnicas e práticas, criando novos movimentos,
alargando em muito as fronteiras da arte do espetáculo.

94
A iluminação cênica ganhará múltiplas facetas e formas advindas da
relação sempre viva entre o desenvolvimento tecnológico e as necessidades
específicas que encenadores e movimentos artísticos (que se superpõe com
incrível rapidez no decorrer do século XX) lhe demandarão, no entanto, o
simbolismo trouxe à linguagem da luz uma contribuição essencial, seu subtexto.
Em sintonia direta com a essência da música, em sua orquestração do visível, a
luz se comunica, através dos sentidos, diretamente com a alma.

95
CAPÍTULO 7

LOÏE FÜLLER – O TEATRO DANÇA A LUZ

A experiência prática mais contundente e libertária criada a partir das


novas potencialidades da luz elétrica surge na dança, com o trabalho da
americana Loïe Füller, que estréia em 1891 no Follies-Bergères de Paris.

Loïe Füller dança com a luz. O seu corpo em movimento, ampliado por um
figurino composto por tecidos e véus de gaze brancos presos a bastões de
madeira, contracena com a projeção de um jogo de luzes, vindas principalmente
de baixo. Corpo e luz em movimento constroem juntos espaços flexíveis,
abstrações em cor que brincam com o espaço e o tempo.

As fotos, desenhos, reconstituições e descrições do trabalho de Loïe Füller


fazem parte do imaginário do fim do século XIX e início do século XX, com sua
atmosfera febril e feérica. As interjeições que a acompanham são tantas e tão
maravilhadas que, para além da dança em si, percebemos a estupefação e o
poder de inspiração que sua aparição em cena exerce sobre a imaginação dos
seus contemporâneos: “aparição fulgurante e fluida”; “poesia miraculosa”; “fonte
160
de êxtase” . Loïe Füller torna-se, ao dançar com a luz refletida em seu próprio
corpo, a própria encarnação do espírito de evanescência e fluidez, almejado pelos
simbolistas. O ideal da arte como correspondência entre o espírito e as
sensações, impalpável por excelência, ganha uma concretização viva no espaço.

A característica essencial dos espetáculos de Loïe Füller é justamente a


pesquisa fundada na relação entre a luz elétrica, em sua imensa potencialidade
de criar movimento, e o seu próprio corpo. Para isso, a dançarina lança-se a uma
série de experimentos práticos com a nova tecnologia.

No princípio - conta a própria dançarina em seu livro biográfico “Quinze ans


de ma vie” - a relação entre a dança e a luz surge dentro do teatro:

160
Citado por Bablet, Denis em Les Révolutions Scéniques du Vingtième
Siécle. Paris: Soc.Int. d’Art Xxe siècle, 1975, p. 40.

96
Em 1890, ainda atriz, ela interpretava em New York
o papel de uma mulher que, sob o efeito de hipnotismo,
se põe a evoluir em uma dança iluminada por uma luz
verde. O princípio de sua dança estava descoberto161

Loï Füller em suas primeiras coreografias concebe apenas uma cor para
cada dança. Depois passa a jogar com a relação entre as cores, em consonância
com a música e os próprios movimentos, criando contrastes ferozes entre
sombra, luz e cores; a partir daí experimenta aparelhos de efeitos com lâmpadas
de arco voltaico, projeção de imagens, luzes incandescentes com controle total de
intensidade (dimmerizadas), fosforescências e jogos de espelhos, levando a
relação experimental entre arte e técnica ao auge em seu tempo.

A primazia da técnica da luz sobre a da dança fica clara quando lemos as


descrições de suas performances, que colocam a iluminação como personagem
principal do espetáculo:

Pela primeira vez a luz elétrica torna-se um fator


essencial do espetáculo; colorida, móvel, a luz brinca
sobre o corpo movente da dançarina que ela faz saltar da
sombra, a iluminação joga com os véus de gaze que a
dançarina, presa pelo fogo da projeção, agita
ritmicamente. A forma movente não é mais que uma tela
para a luz que a anima e a transforma ao infinito em uma
nova magia. Se não existe cenografia no sentido
tradicional do termo, a luz cria uma cenografia modular
como uma música. 162

É a luz que age, impulsionando o movimento, tornando-se o fogo que agita


o corpo, a energia vital do espetáculo. Basta luz e corpo para criar uma
coreografia e uma nova noção móvel de espaço-corpo. Terá a luz, portanto,
múltiplas funções no espetáculo: uma luz-cenografia, uma luz-música, uma luz-
coreografia e, por fim, uma luz-dançarina que anima uma dançarina-luz. O ponto
de contato entre naturezas tão diversas como o corpo humano e a luz - O
MOVIMENTO.

161
Füller, Loï, Quinze ans de ma vie, préface d’ Anatóle France, Paris,
1908. Citado por Bablet, Denis; Esthétique Générale du Décor de Théâtre
de 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique,
1989, p.146.
162
Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914.
Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.146.
97
A dança é primeiro movimento, o movimento expressão
de uma sensação, a sensação resultante do efeito
produzido sobre o nosso corpo por uma impressão ou uma
idéia. O movimento é o ponto de partida de toda
expressão, ele é fiel à natureza. Somente ele traduz a
verdade da sensação. 163

Loï Füller inaugura com seu “Teatro de Luz” as profícuas experiências


entre a iluminação cênica e a dança, influenciando não apenas a coreografia e os
novos caminhos por ela trilhados durante o século XX como também as múltiplas
relações entre arte e tecnologia – desenvolvidas na fronteira cada vez mais móvel
entre a dança, as artes plásticas e as artes cênicas – que darão origem, a partir
principalmente das experiências da Bauhaus, às instalações e performances.

163
Füller, Loï, Quinze ans de ma vie, préface d’ Anatóle France, Paris,
1908, capítulo VI “Lumière et Danse”, citado por Bablet, Denis. Opus
cit., p.146.
98
CAPÍTULO 8

APPIA da LUZ ATIVA à LUZ VIVA

De todos os encenadores, cenógrafos e pesquisadores desta encruzilhada


fundamental da história do teatro, Adolphe Appia foi o artista que propôs, com
mais consciência, uma mudança estrutural no conceito e na prática da iluminação
cênica. Ele o fez através de desenhos e concepções cenográficas, que ganham
movimento através da luz, mas, sobretudo, por meio de seus escritos sobre a
“arte do espetáculo”, nos quais dá grande importância à iluminação cênica, sua
relação com os demais elementos da encenação e seu papel artístico164 na
construção cena.

Chegamos aqui, portanto, a um ponto nevrálgico deste trabalho, porque


Adolphe Appia nos apresenta, no decorrer de sua obra um entendimento
absolutamente inovador em relação à iluminação cênica de seu tempo, propondo
uma mudança radical na função da luz na encenação e vislumbrando, de maneira
profética, o seu desenvolvimento futuro na arte do espetáculo. Dada a importância
desta concepção para o objeto desse estudo resolvemos acompanhar as
reflexões de Appia em relação à iluminação cênica pari passu com sua formação.
Desta forma tentaremos extrair de seus textos, com paciência, os múltiplos
aspectos abordados por ele sobre a luz.

Appia escreveu três livros: La mise en scène du drame wagnerién em 1892


(publicado em 1895), La Musique et la Mise-en-scène em 1897 (publicado em
1899) e “A Obra de Arte Viva” em 1919 (publicado em 1921), síntese de suas
concepções sobre o teatro. Também compôs projetos detalhados de encenação,
sobretudo para as obras poético-musicais de Richard Wagner, com desenhos,
notas e comentários para todas as suas propostas, além de inúmeros artigos,
ensaios, exposições, conferências, cartas e manuscritos.165

164
“Um objeto é plástico para nossos olhos apenas pela luz que o toca e sua
plasticidade só pode ser avaliada artisticamente por um emprego artístico da
luz, isso é claro” Appia, Adolphe. “Comment Réformer notre mise en scène” (1904)
in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome II,
1986, p. 348.
165
Sua obra foi reunida em edição elaborada e comentada por Marie L. Bablet-Hahn:
Appia, Adolphe. Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome I (1983), Tome II
(1986), Tome III (1988) e Tome IV (1992).
99
O PONTO DE PARTIDA – A ENCENAÇÃO DO DRAMA WAGNERIANO 166

As concepções de Appia sobre encenação desenvolvem-se à luz da obra


poético-musical de Richard Wagner e suas contradições.

Desde que entrou em contato pela primeira vez com as montagens do


poeta-músico, em 1889-90 em sua primeira temporada em Dresden, parece-lhe
existir uma incoerência fundamental entre o significado íntimo dessa obra e sua
realização. Para Appia, inspirado pela idéia de síntese e sugestão dos
simbolistas, esta nova forma de drama tem na vida interior o seu verdadeiro
sentido; portanto, já traz em si todos os elementos necessários à sua encenação:
a poesia sugere os lugares onde a ação se passa e a intensidade musical as
emoções e atmosferas do drama; porém, as montagens realizadas por Wagner
continuavam carregadas de elementos realistas e demonstrativos, que, além de
supérfluos, aprisionavam nas aparências a potência da própria obra. Da
necessidade de responder a tais contradições, às quais considera uma
“desproporção”, é que partiu sua reflexão sobre o teatro, principalmente no que
concerne à relação entre a música e a arte do espetáculo e seus projetos e
desenhos para a encenação, sob nova perspectiva, dos dramas poético-musicais
de Wagner.

Embora grande parte dos projetos de encenação de Appia tenha


permanecido irrealizada na prática do teatro de seu tempo, seus desenhos e
projetos são resultado de uma síntese de sua visão de conjunto da encenação.167
Sua obra foi composta de forma a expor, sobre todos os pontos de vista que lhe
foram possíveis, as concepções (teórico-práticas) de um artista que se propôs,
conscientemente, a tarefa de transformar as bases da arte do espetáculo e,
sobretudo, as relações entre os vários elementos que se conjugam na encenação,
dando ênfase ao ator, ao espaço e à iluminação, sob as ordens da música.

166
Appia, Adolphe. La Mise en scène du Drame Wagnérien, in Oeuvres
Complètes. Paris: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme, Tome I, 1983.
167
É importante notar que o que chamamos aqui de visão “de conjunto” não se
identifica com a Gesamtkunstwerk wagneriana (Obra de arte total), muito pelo
contrário. As relações de Appia com esse conceito são complexas e serão
analisadas em detalhes mais à frente. De fato ele principia seu estudo pela
reflexão sobre este conceito, já que sua obra parte fundamentalmente de Wagner,
porém a análise cuidadosa de cada elemento da encenação fará com que suas idéias
sobre a relação entre eles na construção do espetáculo divirjam estruturalmente
da idéia de “junção harmoniosa de todas as artes”, contida neste conceito.
100
A HIERARQUIA DOS ELEMENTOS QUE COMPÕEM A ENCENAÇÃO

Tomando por método de trabalho o estudo minucioso dos elementos que


compõem a encenação e suas relações recíprocas, Appia cria uma hierarquia
entre eles, de forma a estabelecer uma conexão orgânica entre cada elemento e
os demais168. Ele o faz com o objetivo de potencializar na apresentação do
espetáculo a expressão da obra dramática em consonância com a música. Esta
hierarquia e as reflexões que suscita transformam-se ao longo de sua obra.169

Appia principia por recolocar o ator no centro da cena. Esse é o ponto


basilar de seu ideário, o eixo sobre o qual constrói toda a sua reflexão sobre a
encenação. A presença viva e móvel do ator é, para ele, o sentido mesmo do
teatro. Segundo suas próprias palavras:

Ao teatro nós viemos assistir a uma ação dramática,


é a presença das personagens em cena que motiva esta
ação, sem as personagens não existe ação. O ator é então
o fator essencial da mise en scène, é ele que nós viemos
ver, é dele que nós esperamos a emoção, e é esta emoção
que nós viemos procurar. Trata-se então, a todo custo,
de fundar a mise en scène sobre a presença do ator e,
para o fazer, de desembaraçar o teatro de tudo o que
está em contradição com esta presença 170
Portanto, para dar vida ao drama, não é somente ao texto que os
elementos da encenação devem se remeter, mas, sobretudo, ao ator. Todos os
demais elementos devem lhe ser subordinados.171

168
“Como se trata aqui de uma questão de proporções, só nos resta
examinar os elementos da tecnologia teatral e subordiná-los uns aos
outros de uma maneira que corresponda aos meios de expressão do poeta-
músico”. Appia, Adolphe. La mise en scène du drame wagnérien in Oeuvres
Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.,
1983, 268.
169
Appia propõe o primeiro esboço desta hierarquia, ainda de forma confusa e
paradoxal, em “La mise en scène du drame wagnérien”, de 1892. Porém ela é
retomada em muitos textos e se transforma ao longo do tempo tornando-se cada
vez mais clara, até atingir uma síntese em “L’Avenir du drame et de la mise
en scène” de 1919, vinte e sete anos depois.
170
Appia, Adolphe. “Comment Réformer notre mise en scène” (1904) in Oeuvres
Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.Tome II,1986,p. 350.
171
“o primeiro fator da encenação é o intérprete, o ator. O ator é o portador da
ação. Sem ele nada de ação. Não se parte do drama. Tudo, parece, deveria estar
subordinado a este elemento que está hierarquicamente em primeiro lugar” Appia,
Adolphe. “L’ avenir du drame et de la mise en scène” (1919) in Oeuvres Complètes.
Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome III, 1988, p. 335.
101
172
Mas o corpo do ator “é vivo, móvel e plástico: ele tem três dimensões.”
Então o espaço no qual este corpo evolui também deve ser construído a três
dimensões, possibilitando um contato efetivo entre o movimento dos corpos e o
espaço.

Este pensamento é absolutamente contrário à cenografia pictórica, em


todas as suas formas. Appia empreende então, através de grande parte de seus
textos, uma batalha ferrenha contra a tela pintada, paradigma da cenografia de
seus contemporâneos:

Estas telas são cobertas de luz pintada, de sombras


pintadas, de formas, de arquiteturas, de objetos
pintados; e tudo isto, naturalmente, sobre uma
superfície plana, pois é o modo de ser da pintura. A
terceira dimensão é substituída insidiosamente por uma
sucessão mentirosa no espaço. 173

Segundo o desenvolvimento desta reflexão, a primazia da pintura na


cenografia inverte a ordem hierárquica e coloca todos os elementos da
encenação em submissão às duas dimensões da pintura. A tela pintada deixa,
portanto, sem sentido a disposição de elementos tridimensionais no espaço e
torna falso o efeito da luz, porque ao iluminar uma tela cheia de sombras e luzes
falsas, a iluminação precisa renunciar ao seu próprio desenho no espaço e às
suas próprias sombras, para dar sentido à pintura:

A iluminação, ao contrário, poderia ser considerada


como toda poderosa, não fosse sua antagonista, a
pintura, que torna falso seu efeito. A “plantação”
(disposição dos elementos em cena) participa do destino
das outras duas: ela se restringe ou se desenvolve em
razão direta da importância da pintura ou da iluminação.
O elemento menos necessário, a pintura, portanto,
atrapalha sensivelmente o desenvolvimento dos outros
dois elementos, que lhe são superiores.174

172
Idem Ibidem, p.335.
173
Idem Ibidem, p.336.
174
Appia, Adolphe. La mise en scène Du drame wagnérien in Oeuvres
Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.,
1983, p. 268.
102
É, sobretudo, a contradição entre as duas dimensões da pintura e as três
dimensões do corpo do ator que mata a vida do teatro. É preciso escolher entre a
vida da arte dramática e a pintura:

Ou a pintura renuncia a sua existência fictícia a


favor do corpo vivo, o que equivale a suprimir-se a si
própria; ou o corpo tem de renunciar à sua vida plástica
e móvel, dando à pintura uma posição superior à sua, o
que é a negação da arte dramática. 175

Parsifal, Ato III “A campina em flor” – Bayreuth, 1882


Cenografia de Brükner

Appia escolhe o sacrifício da pintura. Proclama este sacrifício abertamente,


luta por ele com todos os seus meios.

Propõe então, não apenas no plano da teoria, mas também no


desenvolvimento de seus projetos como cenógrafo e encenador-iluminador,
substituir a cenografia pictórica, figurativa e estática, pela cenografia arquitetural,
composta estruturalmente de formas geométricas: colunas, planos inclinados e
escadas, que favorecem de todas as maneiras, por sua configuração
transformável, o movimento. Este espaço está à mercê do ator, ele não é uma

175
Appia, Adolphe. A Obra de Arte Viva. Trad. Redondo Jr. Ed. Arcádia, Lisboa.s/d, p. 40.

103
reiteração do drama, nem um signo que localiza um lugar no tempo, muito menos
uma cópia da natureza, ele é pura potencialidade.

Parsifal, Ato III “A campina em flor” – Desenho de Appia 1896/1904

Temos aqui, portanto, o segundo elemento em sua hierarquia: O espaço.

O ATOR, O ESPAÇO E... A LUZ!

À iluminação cênica cabe o terceiro lugar na hierarquia de Appia.


Poderíamos pensar então que esta é uma importância relativa, já que não se trata
nem de um primeiro, nem mesmo de um segundo lugar... Contudo aqui não se
trata apenas de uma fila de ordem decrescente, mas, de fato, de um conjunto de
relações dinâmicas e interdependências entre os elementos essenciais da
encenação.

Nesta teia de relações cabe à iluminação um papel fundamental: a ligação


entre o ator vivo e o espaço inanimado. Appia é explícito em considerar esta
função como um “novo papel da iluminação”:
104
Este sacrifício (da pintura) será compensado pelas
vantagens que fornecerá o novo papel da iluminação? Não
esqueçamos que na sua qualidade de intermediária entre
ator, de uma parte e, de outra parte, a “plantação” e a
pintura (cenografia), a iluminação constitui o elemento
de fusão mais importante da encenação: o que nós
perdemos na quantidade de signos nos é dado então pela
via da expressão direta. 176

A função dada à iluminação cênica de “intermediária” entre o ator e a


cenografia, que têm diferentes realidades de existência, só é possível, graças á
imensa flexibilidade da iluminação.

A luz é de uma flexibilidade quase miraculosa. Ela


possui todos os graus de claridade, todas as
possibilidades de cores, como uma paleta; todas as
mobilidades; ela pode criar sombras, torná-las vivas e
expandir no espaço a harmonia de suas vibrações
exatamente como o faz a música. Nós possuímos nela todo
o poder expressivo do espaço, se este espaço é colocado
a serviço do ator.177

Appia intenta, assim, para transformar efetivamente a função da


iluminação, alterar a sua qualidade: de uma luz passiva, que tem por objetivo
apenas “tornar visível”, para uma luz ativa e móvel. A iluminação confere assim
movimento à cenografia, ou seja, vivifica o espaço, permitindo uma relação
concreta entre o ator vivo e o espaço, tornado vivo através da luz. A LUZ ATIVA é
o instrumento de orquestração das relações entre os diversos elementos que
compõe o espetáculo.

Esta completa, portanto, a teia de relações recíprocas exposta por sua


hierarquia, assim consolidada:

176
Appia, Adolphe. La mise en scène Du drame wagnérien in Oeuvres
Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.,
1983, p.269-270.
177
Appia, Adolphe. “L’ avenir du drame et de la mise en scène” in
Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.
Tome III, 1988, p. 336.
105
E aqui está nossa hierarquia constituída normalmente:
O Ator, que representa o drama,
O Espaço, com suas três dimensões, a serviço da forma
plástica do ator,
A Luz, que vivifica um e outro.178

Appia busca no desenvolvimento desta hierarquia, assim como na reflexão


que ela traz à tona, criar para a encenação do drama wagneriano um “conjunto
orgânico” 179 que possibilite uma tradução da expressão da música e da poesia do
drama interior, para a concretude do espetáculo.

Podemos perceber essa força ‘tradutiva’ em dois desenhos de Appia para a


cenografia do terceiro ato de As Walkirias, parte de seus projetos de encenação
para a tetralogia do Anel dos Nibelungos que reproduzimos na página seguinte.

Estes projetos foram realizados entre 1890 e 1892, e são concomitantes


com os seus primeiros escritos sobre a encenação do drama wagneriano,
demonstrando a forte relação entre a prática e a teoria da encenação, implícita
em toda a sua obra.

178
Appia, Adolphe. “L’ avenir du drame et de la mise en scène” (1919) in
Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.
Tome III, 1988, p. 336.
179
“nós obteremos assim, para a forma representativa, um conjunto
orgânico correspondente ao organismo do drama abstrato; e os meios de
expressão, se subordinando uns aos outros, adquirirão a flexibilidade
desejada”. Appia, Adolphe. La mise en scène du drame wagnérien in Oeuvres
Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.,
1983, p.269.
106
É no contraste entre as
escarpas em silhueta no
primeiro plano e o céu do
fundo, que sentimos o
impacto das formas.
O movimento do coro das Walkirias, também em silhueta, cria uma expectativa
em consonância com a música. Segundo o projeto, o fundo cinza e claro se move
através da projeção de nuvens, da esquerda para a direita, que se tornam, pouco
a pouco, cada vez mais carregadas, escuras e tempestuosas, anunciando a
tragédia e a chegada do personagem Wötan. O céu se abate sobre as escarpas.
Esta utilização das nuvens em movimento, pelo contraste do fundo, traz a força
sugestiva e impetuosa da tragédia anunciada, para além da demonstração de
uma tempestade que se aproxima. Segundo as anotações do próprio autor para
este desenho:

Wotan se anuncia no céu


pela aproximação de uma
grandiosa tempestade. As
Walkyrias se submetem ao
papel ativo do céu, que
elas apenas comentam.180

Como podemos
perceber nesses desenhos,
os seus primeiros projetos são fortemente influenciados pelas teorias simbolistas
de “síntese e sugestão”, ponto de partida de suas concepções sobre a obra de
Wagner.

180
Appia, A. “Notes de mise en scène den Ring des Nibelungen – Walküre” in Oeuvres Complètes.
Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome I, 1983, p. 157 e 161.

107
A MÚSICA E A ENCENAÇÃO 181

Quando a música atinge a mais


nobre potência, ela deve vir a
ser forma no espaço Schiller

Estabelecidas as relações primeiras entre os elementos constituintes da


arte do espetáculo; em seu segundo livro, Appia parte para um aprofundamento
da análise de cada um destes elementos e suas características técnicas
específicas, em relação intrínseca com a música e a encenação.

Em A música e a Encenação Appia procede a uma anatomia rigorosa de


seu objeto. A estrutura geral da obra é divida em três partes e um apêndice. A
primeira parte, que nos interessa, trata da “Mise en scène como meio de
expressão” e é dividida em dois capítulos: no primeiro ele analisa separadamente
os conceitos de mise en scène, ou seja encenação e música, no segundo analisa
a “música como criadora da encenação”. Esse segundo capítulo, por sua vez,
também é dividido em duas partes: os princípios teóricos e as resultantes
técnicas. Aqui, ele faz uma decupagem de cada elemento da encenação,
incluindo a iluminação, do ponto de vista conceitual e técnico, é onde
concentraremos toda nossa atenção.182

Descrevemos o plano geral da obra, para que possamos apreender um


duplo objetivo. O de Appia: descrever e analisar seu objeto, do geral para o
particular, camada por camada, relacionando cada “resultante técnica” com o seu
superobjetivo, ou seja, a tradução do poder expressivo da música na concretude
da cena. O nosso: extrair dessa analise a relação intrínseca que Appia propõe
entre técnica e estética, base necessária para compreender a relação entre a luz
e a encenação e, portanto, a própria especificidade “técnico-estética” da criação
de uma linguagem da iluminação cênica.

181
Appia, Adolphe. La Musique et la mise en scène in Oeuvres Complètes,
Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome II , 1986.
182
A segunda parte é dedicada a “Richard Wagner e a mise en scène”, a
terceira ao “Drama Poético-musical sem Richard Wagner”. O apêndice traz
projetos de encenação detalhados, incluindo desenhos e descrições
técnicas de Tristão e Isolda e da tetralogia do Anel dos Nibelungos.

108
A iluminação, assim como a música, pressupõe, quando posta em cena, a
inter-relação entre uma existência abstrata, metafísica, e uma dimensão física e
técnica que lhe dá suporte. A complexa relação tradutiva entre uma e outra, é o
problema que se Appia se coloca e que tentaremos destrinchar aqui.

A METAFÍSICA DA LUZ EM CONSONÂNCIA COM A MÚSICA

No trecho dedicado especificamente à iluminação Appia principia por nos


lembrar que Apolo é o deus consagrado ao mesmo tempo à música e à luz, de
onde a relação íntima, a “afinidade misteriosa” existente entre as duas. A partir
das bênçãos do deus, ele continua a analisar a relação intrínseca entre elas:

A iluminação é na economia representativa o que é a


música na partitura: o elemento expressivo oposto ao
signo; e, da mesma maneira que a música, ela não pode
exprimir nada que não participe da “essência íntima de
toda visão”. 183

A primazia da linguagem expressiva, com forte tendência à abstração, em


relação ao determinismo do signo é uma tônica de todo o pensamento de Appia.
Deve-se principalmente à forte influência do simbolismo em suas concepções
sobre a essência da obra de arte e está implícita nas relações estabelecidas em
sua hierarquia dos elementos que compõem a encenação.

A partir desse ponto de vista podemos subentender que a “afinidade


misteriosa” que une a música e a luz deve-se às características abstratas de suas
naturezas, que por sua vez participam da essência mesma da obra de arte,
expressão de um mundo interior, espiritual e abstrato. O conceito de participação,
o mesmo que faz com que o poder expressivo da luz “participe” da “essência
íntima de toda a visão” tem origem no idealismo platônico, assim como a
concepção simbolista da arte.

183
Appia, Adolphe. La Musique et la mise en scène in Oeuvres Complètes,
Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome II , 1986, p.
93.

109
Porém a aplicação do idealismo platônico na arte e, principalmente na
representação teatral, é paradoxal e contraditória. Chegamos aqui em um ponto
nevrálgico do problema posto pela concepção do teatro no simbolismo. Para que
a Idéia possa ser compartilhada com o público através da arte da cena, é
necessária uma “encarnação” dessa mesma idéia, uma manifestação para os
sentidos, ou seja, uma via contrária à da transcendência platônica. Appia precisa
ultrapassar essa contradição, legada pela tradição simbolista, para conquistar seu
superobjetivo.

Se a obra poético-musical de Wagner o levou à transcendência, a


necessidade de traduzi-la para a cena o traz de volta para a imanência da arte do
espetáculo.

Para Appia, a expressão da interioridade não deve permanecer


transcendente e inalcançável, como propõem os poetas dramaturgos do
simbolismo francês, nem ceder à simplificação do signo realista, como faz
Wagner e seus parceiros em suas montagens em Bayreuth, é preciso, portanto,
encontrar uma tradução entre esses dois planos de existência, através dos
elementos que constituem o espetáculo e dos meios técnicos ao seu serviço, a
tecnologia teatral.

É neste processo de “tradução” que Appia se distancia do idealismo e dos


simbolistas e cria um caminho original, uma tradução cênica própria entre a alma
e o corpo, entre a estética e a técnica. Ele realiza uma superação criativa dessa
contradição entre transcendência e imanência na obra de arte. O movimento
interno criado por esses dois vetores opostos pode ser apreendido em seus
desenhos para a encenação dos dramas poético-musicais de Wagner, onde
contracenam elevação e concretude. A arte atravessa a mimese, deixa de ser
simulacro, para ser Idéia encarnada. Abstrata e concreta ao mesmo tempo, como
a geometria ou como a luz ativa, que dá vida a um espaço concreto através de
sua flexibilidade, traduzindo no plano do visível a potência evocativa da música.

Sem que suas proporções sejam constantemente


paralelas, os dois fatores (a música e a luz) são dentro
do Wort-TonDrama uma grande analogia da existência.
(...) Em seguida eles são dotados de uma flexibilidade
incomparável que lhes permite percorrer consecutivamente
110
todos os graus da expressão, desde um simples ato de
presença até o mais intenso transbordamento. 184

A EXPRESSÃO DA LUZ ATRAVÉS DA TECNICA

Como já foi citado aqui, Appia escreveu muito sobre a iluminação, mas em
geral com enfoque teórico e conceitual. Em A Música e a Encenação, porém,
como uma exceção que confirma a regra, em cinco páginas dedicadas
especificamente ao tema, ele tenta organizar um sistema geral da prática da
iluminação cênica do ponto de vista estético e técnico, estabelecendo diferentes
funções e formas da luz no espetáculo, incluindo a descrição dos equipamentos e
posicionamento preferenciais para cada função proposta. Esse “compêndio das
técnicas de iluminação cênica” escrito em 1892 é, portanto, documento
fundamental para compreender em seus primórdios a articulação de uma função
ativa da luz no teatro e suas características técnicas. Ou seja, o que poderíamos
chamar de “be-a-bá” da constituição de uma “Scriptura” da iluminação cênica.

Embora se refiram diretamente à tecnologia existente no final do século


XIX, estas reflexões estabelecem princípios básicos, ainda válidos, para a
compreensão das partes constituintes de um “desenho de luz” e demonstram
familiaridade com os problemas técnicos da iluminação e as relações intrínsecas
entre técnica e estética.185 Porém não é sem dificuldades que ele o faz.186

A busca de um conceito operativo para a iluminação cênica parte da


observação da luz do dia:

184
Appia, Adolphe. La Musique et la mise en scène in Oeuvres Complètes,
Tome II , Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme, 1986. p.
94.
185
Sabemos que em sua primeira temporada em Dresden ele fez um estágio de
aprendizagem com Hugo Bähr e entrou em contato direto com suas
realizações técnicas. Também conheceu Rogelio Egusquiza, pintor que
escreveu o primeiro artigo sobre a iluminação na obra de Wagner: “Sobre a
iluminação da cena” in Bayreuther Bläter, abril de 1885.
186
“Não somente a ação soberana da luz resta indemonstrável para quem não
a sente, mas, mais ainda é incômodo discorrer sobre seu emprego técnico”
Appia, Adolphe. La Musique et la mise en scène in Oeuvres Complètes,
Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome II , 1986, pp.
93-94.

111
A luz do dia penetra na atmosfera de todos os
lugares sem diminuir assim a sensação que nós temos de
sua direção. Ora a direção da luz nos é perceptível
somente pela sombra, é a qualidade das sombras que
exprime para nós a qualidade da luz. 187

Aqui está um preceito básico que rege a iluminação cênica: é a sombra que
imprime não só a direção da luz, mas também o volume das formas, criando o
claro-escuro, o contraste, que revela a tridimensionalidade da cena e determina
para nossos olhos o desenho da luz no espaço. Para Appia, do ponto de vista da
arte, a luz se distingue por ser um elemento expressivo do espetáculo:

Se não existe sombra, não existe luz, porque luz


não é “ver claro” (...) a luz se distingue por sua
expressão. 188

Porém também é preciso ver a cena, isto é fato. Aqui tocamos no


“calcanhar de Aquiles” dos iluminadores e um dos grandes problemas na
constituição de uma linguagem da iluminação cênica, a relação das diferentes
funções da iluminação e a forma possível de contracenação entre elas na prática
do fazer teatral. Perguntamo-nos então: O que chamamos aqui de instrumento da
visibilidade contradiz o estabelecimento de uma função artística ativa para a luz
em cena? A luz “para ver” mata o desenho da iluminação? Ou, a luz “expressiva”
deixa necessariamente a cena escura? Estas duas funções da iluminação seriam
então excludentes uma em relação à outra? 189

Appia, ao tentar fundar uma teoria da iluminação cênica como elemento


artístico baseado na análise da prática do teatro de seu tempo, se vê diante deste
problema fundamental, que é repetido milhares de vezes na experiência de cada
um de nós, iluminadores.

187
Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes,
Tome II. Op. Cit. p. 95.
188
Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes,
Tome II. Op. Cit. p. 95.
189
Essa é uma questão fundamental e, embora pareça fácil dizer que não, é
uma dificuldade muito concreta na criação da luz em um espetáculo. Na
concepção mesma de iluminação cênica ainda existem linhas de força
contrárias sobre essa questão. Basta ler a opinião de Peter Brook sobre
os excessos da luz no espetáculo do século XX.

112
Estabelece então um princípio metodológico para a concepção de um
desenho de luz, com o objetivo de possibilitar que essas duas funções possam
conviver:
Trata-se então de dividir a tarefa e ter de uma
parte os aparelhos encarregados de propagar a luz, e de
outro aqueles que pela direção precisa de seus raios
provocarão as sombras que devem nos assegurar da
qualidade da iluminação. Nós chamaremos umas de LUZ
DIFUSA e as outras de LUZ ATIVA. 190

Este princípio metodológico é fundamental para a prática atual da


iluminação cênica e dele depende o bom resultado de um plano de luz,
principalmente na perspectiva frontal do palco italiano. Não é a mesma luz que
cria o desenho do espaço aos olhos do espectador, que ilumina a ação do ator.
Se fosse, ou o ator ficaria totalmente a mercê da geografia dessas sombras,
entrando e saindo da luz à medida que se movimenta e, deste modo, aparecendo
e desaparecendo da visão do espectador sem um princípio lógico balizado pela
ação dramática, ou, os raios e as sombras da luz que ilumina o ator atingiriam
aleatoriamente o cenário, causando um caos completo no desenho da luz e,
conseqüentemente, do espaço.191

Porém uma coisa é estabelecer um princípio metodológico, outra é ter


aparelhos específicos para cada função e saber como posicioná-los, para que o
princípio funcione. Em certo momento dessa análise Appia chama atenção para a
dificuldade da resolução deste problema prático na disposição dos aparelhos de
iluminação e do caos que as sombras indesejadas e sobras de luz podem causar
no desenho geral do espaço:

O jogo harmonioso de todas as fontes de luz é


evidentemente muito complicado, é mesmo tão complicado

190
Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes,
Tome II. Op. Cit. p. 95.
191
Tomei conhecimento explícito desse princípio da divisão da luz “para
ver” da luz que estabelece “a forma de ver” em 1988 quando fiz um curso
com Max Keller. O iluminador alemão nomeava à época a luz “para ver” de
“luz de preenchimento” o que Appia chama aqui de “luz difusa”, e “linha
principal de luz”, àquela que cria o desenho da luz no espaço e que Appia
chama aqui de “luz ativa”. A luz difusa, ou de preenchimento normalmente
corresponde à “LUZ GERAL”, mas pode existir também uma luz específica de
preenchimento.

113
que é perfeitamente impossível, e nossos espetáculos o
provam. (...) De que maneira conciliar, com efeito, uma
luz destinada a iluminar as telas verticais e que não
batem menos nos objetos colocados entre elas, ou com uma
luz destinada a certos objetos e que não batem menos nas
telas verticais? Num tal estado de coisas seria ridículo
falar da qualidade das sombras! 192

Ao ler este trecho percebemos com nitidez o quebra-cabeças desse


trabalho pioneiro de criar um desenho coerente a partir da iluminação elétrica,
com miríades de fontes de luz intensas e concentradas espalhadas pelo espaço.
De certa forma essa dificuldade encontra uma analogia com a experiência de um
aprendiz na arte e técnica da iluminação cênica que tem de determinar os locais
onde instalar a aparelhagem técnica, sem saber ao certo por onde começar nem
o resultado prático dessa escolha. É como lutar de olhos vendados com inimigos
desconhecidos.

Aqui abriremos parênteses para relembrar, de maneira geral e rápida, as


condições técnicas da iluminação cênica no fim do século XIX193, a fim de que
possamos compreender melhor a descrição técnica e as inovações que Appia
expõe, na seqüência:

No início do emprego da luz elétrica no teatro, as lâmpadas


(incandescentes ou de arco-voltaico) apenas substituem os pontos de gás ou de
lampiões e velas. Porém uma lâmpada produz uma luz muito diferente da luz viva,
difusa e móvel, do fogo. Os equipamentos utilizados nesta época são, em geral,
de luz aberta, têm várias fontes de luz e muitas vezes são fixos em locais pré-
determinados pela própria estrutura do teatro. No entanto, como consta da própria
descrição de Appia a seguir, já existem aparelhos individuais, móveis e
manejáveis, com um sistema ótico que permite direcionar o facho de luz ou
mesmo projetar imagens, paradas ou em movimento, como aqueles
desenvolvidos por Jules Duboscq e Hugo Bähr. Porém estes aparelhos eram
então utilizados apenas para realizar efeitos específicos.

192
Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes,
Tome II. Op. Cit. p. 95.
193
Mais informações encontram-se no capítulo 3 sobre o desenvolvimento
tecnológico que acompanhou a chegada da luz elétrica ao teatro.

114
Para tentar organizar o caos, Appia se propõe então a descrever os
aparelhos de iluminação existentes em sua época e organizá-los em grupos de
acordo com suas funções específicas. Segue, de forma resumida194, a descrição
realizada por Appia:

Sobre nossas cenas, a iluminação se fará


195
simultaneamente, sobre quatro formas diferentes.

1. O equipamento para iluminar as telas pintadas: fontes fixas de luz sobre


as telas, secundadas por ribaltas móveis localizadas nas coxias.

2. A ribalta “esta singular monstruosidade de nossos teatros, encarregada


de iluminar a cenografia e os atores pela frente e de baixo” 196

3. Os “refletores” ou “projetores”: “Os aparelhos completamente móveis e


manejáveis para fornecer um raio preciso e direcionável e projeções
variadas”.197

4. Iluminação por transparência, vinda por trás de uma tela.

A partir dessa descrição técnica do teatro de seu tempo (onde mistura


forma, equipamento e função, indistintamente), faz uma série de reivindicações
para o futuro da iluminação cênica, visando uma especialização dos

194
Como as descrições técnicas aqui estabelecidas referem-se a
equipamentos que, em geral, não são mais utilizados, tentarei sintetizar
essa descrição segundo o interesse que vemos nela, quer seja, entender o
problema da forma e pensamento da luminotécnica no fim do século XIX. Os
nomes dos aparelhos em francês, segundo descrição do dicionário de termos
técnicos..., correspondem às antigas gambiarras, tangões e ribaltas,
fixas à beira do proscênio ou móveis, que podem ser penduradas em vários
locais, ganhando aí nomes variados, segundo termos brasileiros. Convém
lembrar que até hoje não há padrão oficial para a nomenclatura desses
aparelhos, dependendo, para além do problema da língua, de uma imensa
variedade de marcas, tipos e costumes locais.
195
Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes,
Tome II. Op. Cit. p. 95.
196
Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes,
Tome II. Op. Cit. p. 95.
197
Idem Ibidem, p.95. Segundo a nota de Marie Bablet-Hamm, a descrição
destes aparelhos refere-se àqueles desenvolvidos por Hugo Bähr, que Appia
viu funcionar em Dresden em 1888.

115
equipamentos de acordo com o novo princípio por ele defendido. Todas as
propostas por ele sugeridas foram empreendidas com o tempo e fazem parte da
nossa realidade presente:

Para a LUZ DIFUSA indica os aparelhos abertos, porém acrescidos de


“telas de uma transparência variável destinadas a atenuar os efeitos pronunciados
de sua claridade sobre os objetos e atores”, ou seja, o que chamamos hoje,
justamente, de difusores, perfeitos para suavizar o contraste na luz geral e
ressaltar cores e volumes de forma homogênea. Também propõe que esta luz
não venha da ribalta, mas de todos os lados para preencher por igual o conjunto
da cena. Ou seja, ele recomenda a composição do que chamamos de LUZ
GERAL.

Para a LUZ ATIVA, sugere que sejam empregados os aparelhos móveis e


manipuláveis, individualizados, os quais “serão objeto de grande atenção e
aperfeiçoamento de seu mecanismo”, propõe também o uso de formas e recortes
para interceptar parte da luz dos aparelhos móveis e manipuláveis, criando
sombras sugestivas, fachos de luz com formas ou imagens projetadas,
exatamente da maneira como laboram os elipsoidais (também chamados de
refletores de recorte) que têm facas de corte, íris e locais internos para colocar
198
imagens em negativo (gobos), que são projetadas pelo refletor.

A relação entre essas duas categorias de luz – a LUZ DIFUSA, que permite
“ver” e a LUZ ATIVA, que contracena com o espaço, o cenário e o ator – depende
de um delicado jogo de relações, onde as luzes podem e devem se
complementar, vindas de ângulos diferentes e com intensidades diferentes, mas
não eclipsar uma a outra.

A luz difusa e a luz ativa só existem


simultaneamente através dos seus diferentes graus de
claridade.199

198
Quanto ao sentido da projeção de imagens nas reflexões de Appia
analisaremos com mais detalhes a seguir dada a importância deste aspecto
no todo de seu ideário e para o futuro da tecnologia teatral.
199
Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes,
Tome II. Op. Cit. p. 96.

116
Como nada é exato na iluminação, mas relativo à acomodação do olho e à
proporção entre as intensidades das diferentes luzes que vemos
simultaneamente; a integração entre esses dois tipos de luz que compõem a cena
depende, portanto, de um jogo de proporções e movimento: Muita luz difusa mata
o desenho, as sombras e, portanto, a própria ação da luz ativa; pouca, dificulta a
visão da cena. Entre os dois extremos, “pode-se combiná-las ao infinito” 200.

Apesar de dar prioridade à LUZ ATIVA, Appia trabalha sempre sobre a


perspectiva de que os dois tipos de iluminação operam em conjunto. Apesar de
ter sempre um olho no presente e o outro no futuro da encenação, para o qual
escreve grande parte de seus textos, ele não imagina que seja possível suprimir
a luz difusa e aumentar os contrastes da luz ativa, para além do limite da visão,
como farão os expressionistas.

Conclui o seu arrazoado técnico de maneira sintética e precisa:

Essa distinção fundamental de duas naturezas


diferentes de luz é a única noção técnica que pertence
propriamente à iluminação no novo princípio cênico.201

Se as descrições e análises técnicas não têm o brilho do raciocínio das


relações conceituais e metafísicas que levaram até elas, nem uma conclusão
grandiosa ou um clímax, como é de seu feitio, é porque Appia dedicou grande
parte da sua vida à encenação através do papel e do lápis, de desenhos e
conceitos. Ele nunca foi, mesmo quando anos depois da redação deste livro
realizou alguns de seus projetos de encenação, uma pessoa “da prática”, muito
menos um técnico. Porém fica claro por esse texto que ele tinha conhecimentos
concretos sobre a técnica de luz de seu tempo, ao ponto de analisá-las à luz de
suas novas perspectivas de encenação e até mesmo “inventar conceitualmente”
aparelhos de iluminação dos quais necessitava para suas concepções e que
foram desenvolvidos e produzidos décadas depois. De qualquer forma, propõe
claramente um novo paradigma para a arte e a técnica da iluminação com o

200
Appia, Adolphe. La Musique et la mise en scène in Oeuvres Complètes, Lausanne: Société Suisse du
Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome II , 1986, p. 97.
201
Idem Ibidem, p. 96. Ao se referir aqui a “uma única noção técnica que
pertence propriamente à iluminação”, deixa implícito que há outras, porém
que não pertencem apenas à iluminação, como as relações diretas entre a
LUZ ATIVA e a cenografia.

117
desenvolvimento do conceito de LUZ ATIVA, assim como definiu concretamente
uma forma de pensar e realizar planos de luz com a separação e hierarquia entre
a LUZ ATIVA e a LUZ DIFUSA.

Apesar dos avanços tecnológicos destes aproximadamente cem anos que


nos separam de Appia, suas reflexões técnicas são absolutamente válidas para a
prática cotidiana dos iluminadores e encenadores de hoje e, provavelmente, de
amanhã.

Quanto às relações diretas entre a LUZ ATIVA e a cenografia, a grande


profecia revelada em suas concepções sobre a iluminação cênica está na idéia da
projeção de imagens.

Pela importância que tem em sua obra e, principalmente, no futuro do


teatro, faremos a seguir um recorte específico sobre esse tema, onde técnica e
estética são uma coisa só.

A PROJEÇÃO DE IMAGENS ou A CENOGRAFIA DE LUZ

Em busca de substituir o signo fornecido pela pintura por uma ação ativa
da luz, Appia encontra na projeção de imagens uma forma de criar uma
cenografia de luz, ou uma luz-cenografia que contracena com os planos e
volumes em três dimensões do cenário arquitetural.

É um sentido amplo do termo cujo objetivo principal é a transformação ou


movimento da luz, que, em relação com o ator e o espaço, vivifica a ambos. Inclui,
portanto, no conceito de projeção de imagens toda e qualquer forma de manipular
a luz projetada sobre o palco, de modo a transformar a existência real da cena,
por exemplo, sombras, cores, transparências, fachos de luz com formas
determinadas, imagens paradas e em movimento. Como destrincha em detalhes
o próprio autor, significativamente no trecho dedicado à análise da função da
pintura em A Música e a Encenação:

A iluminação pode projetar imagens, desde a mais


insensível gradação de tinturas até as mais precisas
evocações. Um corpo opaco disposto na frente do foco
luminoso pode servir a dirigir o raio sobre tal ou tal

118
parte do quadro, excluindo as outras, e fornecendo uma
grande variedade de efeitos a partir da simples e
parcial obstrução até a obstrução dividida e combinada
com corpos mais ou menos opacos. A iluminação, já
mobilizada pela vida dos atores, torna-se positivamente
móvel se deslocamos o foco luminoso, ou se as projeções
estão elas próprias em movimento diante de um foco fixo,
ou mais ainda se agitamos de alguma maneira que seja os
corpos que obstruem o raio. As combinações de cores, de
formas, de movimentos combinando-se de novo entre elas
depois com o resto do quadro, fornecem uma qualidade
infinita de possibilidades. Elas constituem a palheta do
poeta músico.202

Quanto à cor da luz, parece ser um domínio que Appia tem menos
afinidade e dificilmente a cita em suas reflexões. Mas é interessante notar o fato
de que quando raciocina sobre ela, como neste trecho, é no mesmo sentido de
uma projeção de imagem ou forma, ou seja, através da projeção da cor é possível
transformar a qualidade da cena iluminada:

Projetando disposições de cores ou de imagens ela


cria na cena um meio ou mesmo objetos que não existiam
antes da projeção.203
Porém há uma hierarquia nessas duas formas de transformação da
realidade da cena:

Se, então, o jogo da luz colorida em vista do


material cenográfico é somente uma questão de proporções
cromáticas, o da projeção torna-se, além disso, uma
questão de forma.204

A luz transformável e transformadora: este é para Appia o maior fator de


expressão da luz, o sentido do que chama de LUZ ATIVA e que na cenografia
ocupa o lugar da tela pintada, em seu ideário sobre a nova encenação.

É importante ressaltar aqui que ele não intenta substituir simplesmente


uma imagem bidimensional pintada, por outra imagem bidimensional projetada,
ambas com a mesma função demonstrativa e realista, como é comum ver hoje

202
Idem Ibidem, p. 100.
203
Idem Ibidem, p. 100.
204
Idem Ibidem, p. 100.

119
em dia na utilização figurativa do vídeo, a nossa “tela pintada” tecnológica, tão
pueril quanto a sua antecessora.

Mas consagrar o movimento interior causado pela expectativa de uma


presença.

Não se trata, portanto, de chegar a um lugar onde a tecnologia substitua a


ação do homem, mas ao contrário, de um espaço privilegiado onde o homem e
sua imaginação estão em primeiro plano. Um espaço vazio, pleno da atmosfera
de uma presença ausente. Como nos explica o próprio Appia no exemplo da
floresta do segundo ato de Siegfried:

Como representar uma floresta sobre a cena? (...)


nós não procuramos mais dar a ilusão de uma floresta,
mas a ilusão de um homem na atmosfera de uma floresta; a
realidade aqui é o homem ao lado do qual nenhuma ilusão
tem curso. Tudo o que este homem toca deve lhe ser
destinado e se nós tiramos um instante Siegfried de
vista, e levantamos os olhos, o quadro cênico não tem
mais necessariamente ilusão a nos dar: sua disposição
não tem mais que Siegfried por objetivo; e quando a
floresta docemente agitada pela brisa atrair a atenção
de Siegfried, nós, espectadores, contemplaremos
Siegfried banhado de luzes e sombras moventes, e não
mais de trapos recortados postos em movimento por
traquitanas. 205

É o homem que cria a atmosfera da floresta, tanto em cena como na


platéia, chamada a compartilhar do espetáculo através da sua imaginação,
instigada pela ausência material e pela sugestão de uma luz ativa e móvel a
completar a cena com a sua própria participação. A floresta está nos olhos e nas
mentes atentas do público.

Já que a sombra nos remete à presença através da ausência, traz em si


um movimento implícito, uma transcendência imanente ou uma imanência
transcendente. A imagem é, mas não está. Plena de ausência grita por

205
APPIA, Adolphe. Comment Réformer Notre Mise en Scène in Oeuvres Complètes, Tome II. Lausanne:
Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme., 1986, p.351.

120
complemento, cria uma expectativa pulsante na platéia, como um acorde sem
resolução.

Outro exemplo do sentido sugestivo e sintético da cenografia-luz criada


206
através da projeção de sombras está no desenho “A Sombra do Cipreste” ,
pertencente ao conjunto dos “Espaços Rítmicos”, do qual falaremos em seguida.

Appia comenta o desenvolvimento desse desenho em A Obra de Arte Viva:

A Sombra dos Ciprestes, 1909

Para este espaço, o autor tinha se proposto a


princípio uma avenida de ciprestes. Ele suprimiu, pouco
a pouco, as árvores, conservando somente as sombras.
Depois, enfim, restou apenas esta única sombra, porque
ela é suficiente para evocar toda uma paisagem. Ele
observa que ela pode ser balançada por meio da
iluminação, e que ela se harmoniza, assim, a tal ou tal
ritmo musical.207

Através da projeção ele concretiza a idéia de síntese e sugestão simbolista.

206
Appia, Adolphe. Espaços Rítmicos: L’ombre Du cyprés, 1909 (Theater
Museum, Munich ) in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du
Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome Tome III , 1988, p. 91.
207
Appia, Adolphe. Commentaires d’Appia aux illustrations de L’Oeuvre
d’Art Vivant in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du
Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome III , 1988, p. 411.

121
Criando uma ponte de inspiração entre passado, presente e futuro, Appia
profetiza em seus escritos e desenhos, desde 1892, que a projeção de imagens é
a direção para onde caminham os avanços tecnológicos e o futuro da iluminação:

Quando a fotografia elétrica, em série, for


introduzida sobre a cena, a projeção poderá dizer-se
toda poderosa e poucas coisas lhe serão recusadas. 208

Hoje este futuro se atualiza. As relações entre as novas tecnologias, a


iluminação cênica e a cenografia se desenvolvem principalmente na utilização
cada vez mais freqüente no teatro das projeções de vídeo. Todo grande teatro da
Europa (assim como o Teatro Oficina de São Paulo) já tem, além da equipe de
cenotécnicos e iluminadores, uma equipe de projeção de vídeo209. Acreditamos
que no futuro próximo, cada “refletor” será um projetor de imagens, móvel e
computadorizado 210.

É precisamente por causa do grande “avanço” das novas tecnologias no


teatro que consideramos extremamente inspirador para os iluminadores do
presente e do futuro, retomar o sentido profundo que Appia anteviu há mais de
um século atrás nessas “projeções”, ou seja, uma forma de colocar o homem e
sua imaginação no centro da cena. Exatamente o contrário de substituir o papel
fundamental da imaginação humana pela tecnologia de efeitos especiais,
justamente o que ele critica na “velha” encenação das óperas de seu tempo. O
tempo se justapõe e o futuro pode ser muito mais “velho” do que o passado, se
não olharmos para trás para compreender o sentido das revoluções que nos
precederam. Ninguém até agora foi mais “moderno” do que os Modernos. As
revoluções estéticas não são uma questão de moda ou modo, são muito mais do
que isto, são uma nova forma de pensar e refletir o homem em sua relação com o
mundo, uma filosofia aplicada nas artes sobre e sob novas formas. O que importa
na tecnologia é a forma profunda de sua utilização e não a quantidade de efeitos

208
APPIA, Adolphe. “Notes de mise en scène pour L’Anneau de Nibelungen” (1892) in Oeuvres
Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme., 1983, p.114.
209
Que infelizmente nem sempre se dá bem com a equipe de iluminação
devido ao “velho problema” da quantidade de luz em cena, agora invertidos
os papéis.
210
A última geração em equipamentos de iluminação - bem mais avançada e
cara que os moving-lights e apelidada pela indústria de Catalysts - é
exatamente isso.

122
que um projetor de última geração pode realizar por minuto. Haja visto o poder de
uma simples sombra de cipreste em um espaço quase vazio.

O ENCONTRO COM DALCROZE e OS ESPAÇOS RÍTMICOS

211
Em 1906 Adolphe Appia conhece Jacques Dalcroze e a “Rítmica” , que
muito o afetou, como descreve quinze anos mais tarde em Expériences de théâtre
et recharches personelles:

Eu assisti, em 1906, a uma demonstração da


‘Rítmica’ de Jacques Dalcroze, então em seus inícios!
(...) Para mim, a descoberta dos princípios fundamentais
da ‘mise en scène’ só podia ser um ponto de partida; a
Rítmica decidiu minha orientação subseqüente. 212.

A sua amizade e parceria com Dalcroze213 foi fundamental no


desenvolvimento posterior de seu trabalho e aprofundamento de suas próprias
pesquisas sobre as relações entre a música e a expressão cênica do corpo dos
intérpretes214. Para Appia o ator já era o centro da cena, a partir de agora o corpo,
sua estrutura e movimentos serão estudados como “medida de todas as coisas”
215
, na construção do espaço que o acolherá. Appia procede então à reformulação

211
Experiência ao mesmo tempo artística e didática desenvolvida por
Jacques Dalcroze a partir das relações intrínsecas entre a música e os
movimentos do corpo humano. Em suas primeiras apresentações, chamada de
“Gymnástique Rythmique”, ficou depois conhecida como “Eurhythmics”, em
inglês, ou simplesmente “Rythmique”. Não confundir com a Euritmia, de
Rudolf Steiner.
212
Appia, Adolphe. Expériences de théâtre et recherches personnelles
(1921) in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.
Tome IV, 1992, p.49.
213
De 1906 a 1923 houve uma forte parceria artística e troca de
influências entre os dois artistas. Appia chegou a escrever grande parte
dos textos de abertura dos Festivais realizados por Dalcroze,
conferências e artigos sobre a “Rítmica” e suas relações com a música, a
“mise en scène” o espaço e a luz, além de desenhos e concepções
arquitetônicas e cenográficas para o Instituto Jacques Dalcroze, algumas
realizadas. No decorrer de todo este período a correspondência entre eles
é intensa. Em 1923 há um rompimento público entre os dois, devido á não
concordância de Appia com o rumo “espetacular” do trabalho de Dalcroze e
a utilização demonstrativa do espaço e das cores na iluminação.
214
“O corpo é o intérprete da música, junto das formas inanimadas e
surdas. Podemos, pois, abandonar momentaneamente a música; o corpo
absorveu-a e saberá guiar-nos e representá-la no espaço”. Appia, A. A
Obra de Arte Viva. Op. Cit. p. 84.

123
cada vez mais radical da sua concepção do espaço cênico, onde cenografia e luz
se distanciam das aparências figurativas para tornarem-se estruturas para a
evolução dos corpos. O conceito da “Obra de Arte Viva” começa a ser gestado.

Em 1909 Appia desenvolve uma série de desenhos com forte influência


“dalcroziana” e inspiração simbolista, denominada “Espaços Rítmicos”, nos quais
se manifesta uma inclinação nítida para a abstração geométrica e formalista. Em
vários desses desenhos, inclusive, não há mais resquício de representação
realista. Ele transpõe para o papel espaços cênicos que não se dirigem a
nenhuma obra dramática em especial e que também não têm por objetivo direto
serem postos em cena216, mas estão impregnados de uma idéia de vida e
movimento intrínseca. Como se pedissem a presença humana, mesmo em sua
existência fictícia.

São exercícios livres onde as composições de planos e volumes destinam-


se a valorizar a relação entre o espaço e os corpos humanos, “sob as ordens da
música”. As estruturas desnudam-se de sua aparente casualidade e revelam-se
totalmente geométricas: praticáveis, cubos, colunas, rampas e escadas.217
Estruturas arquiteturais, que servem de apoio e obstáculos aos movimentos dos
intérpretes. Linhas horizontais e verticais, paralelas e perpendiculares, que
formam ângulos retos, criam um jogo de contrastes com as curvas dos corpos
humanos e suas evoluções, colocando o ator em evidência. A presença cada vez
mais determinante da iluminação, das sombras e das projeções móveis empresta-
lhes sua flexibilidade e vida em meio a imensos vazios, ajuda a criar um
movimento intrínseco ao espaço, uma expectativa em relação ao humano.

A atividade da luz foi resultado natural de uma


construção que evocava o corpo humano, tomando assim uma
aparência de expectativa: a qualidade do espaço requeria
a presença indispensável do corpo 218

215
Referência à sentença de Protágoras “O Homem é a medida de todas as
coisas”, que serve de epígrafe à “Obra de Arte Viva”
216
“Nenhum desses desenhos é destinado a ser realizado; eles são
sugestões, visões de sonho a serem transportadas para a cena”. Bablet-
Hahn, M. L.”Les Visions” de 1909 in Appia, A. Op.cit. Tomo III, p.78.
217
"No solo, os planos inclinados e, sobretudo, as escadas, podem ser
considerados como participando nas duas ordens de planos (horizontal e
vertical)" Appia, A. A Obra de Arte viva, Op. Cit. p.84.
218
Appia, Adolphe. Expériences de théâtre et recherches personnelles in
Oeuvres Complètes. Lausanne:Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome IV, 1992, p.49.

124
É através do contraste entre a luz e as sombras projetadas (geométricas ou
orgânicas) sobre os volumes retos construídos, que se configura a percepção do
conjunto nesses desenhos. Como podemos ver nas duas reproduções abaixo:

Appia, A Ronda do Anoitecer, 1909.

A luz, concebida como


parte orgânica do espaço,
manifesta presenças que
são pura potencialidade:
como “A Sombra do
Cipreste” sobre um muro,
(Página119); o resplandecer
da luz do sol se pondo que
se expande em ondas

sombreadas e móveis na
Ronda do anoitecer ou as
camadas justapostas de
sombra das colunas
verticais, que criam um
espaço vazio, repleto de
formas geométricas de luz,
também móveis, em A
Clareira Matinal.

Appia, A Clareira Matinal, 1909.

Em seus comentários a esses desenhos, em apêndice de “A Obra de Arte


Viva”, Appia explica que as sombras e os fachos de luz tornam-se móveis através
de “truques” 219 da iluminação.

Mais do que representações de espaços reais, Os “Espaços Rítmicos”


expressam através das luzes e sombras projetadas, as atmosferas do anoitecer,
do amanhecer, da clareira ou uma avenida de ciprestes.

219
A luz é peneirada segundo nosso desejo por cartões recortados e invisíveis, e
as sombras que caem sobre as personagens podem, assim, tornar-se movediças. A
pulsão é completa.

125
AS REALIZAÇÕES “VIVAS”

O fenômeno teatral depende de condições materiais e de infraestrutura


determinantes, que muitas vezes dificultam as grandes revoluções e experiências
formais (principalmente quando envolvem tecnologia avançada ou mesmo ainda
inexistente e construções caras, como no caso dos projetos de Appia). Da onde
os projetos de Appia terem permanecido em sua grande maioria no papel, de
onde foram resgatados mais tarde por gerações e gerações de cenógrafos,
encenadores e iluminadores do século XX, em levas sucessivas, com cada vez
mais tecnologia disponível.

Todos os projetos de encenação para as obras poético-musicais de


Wagner foram seguidamente recusadas por Bayreuth, durante toda a vida de
Appia (pela recusa de Cosima Wagner, que após a morte de Wagner em 1883
cuidou pessoalmente da continuidade dos Festivais em Bayreuth).

Em 1903, a convite da condessa de Béarn, ele realizou alguns trechos de


Manfred de Byron, música de Schumann e Carmen de Bizet, em um palácio
particular em Paris; mas as condições técnicas eram improvisadas e, segundo
descrições do próprio Appia, o resultado deixava muito a desejar.

No entanto, a parceria com Dalcroze (de 1906 a 1923) e a divulgação de


seus trabalhos escritos e desenhos em exposições importantes220, tornaram,
pouco a pouco, a realização de suas idéias possível no ao vivo do teatro.

A primeira grande realização de suas “concepções” de espaços


arquitetônicos não se deu sobre um palco, mas na própria arquitetura. A grande
“sala de apresentações” do Instituto Jacques-Dalcroze em Hellerau foi construída
em 1911, a partir das concepções de Appia e Dalcroze, pelo arquiteto Heinrich
Tessenow.

220
Seus desenhos são apresentados em 1913, em Mannheim, em uma exposição
dedicada à Arte Teatral Moderna (Moderne Theaterkunst), Segue-se uma
grande exposição de obras de Appia e Gordon Craig em Zurique (no
Gewerbemuseum) e na se seqüência, neste mesmo ano, mostras de seus
desenhos em Colonia, Frankfurt e Düsserldorf. Em 1921 as obras de Appia
voltam a ser expostas junto às de Craig em um local de destaque na
Exposição Internacional de Teatro, em Amsterdã.

126
A iluminação desta sala, realizada por Alexandre von Salzmann coloca em
prática a idéia da geral de LUZ DIFUSA, a partir das concepções de Appia e da
experiência prática de Mariano Fortuny com sua cúpula de reflexão (Sobre a
Cúpula Fortuny, vide capítulo...), que foi estudada por Appia e Salzmann
exaustivamente. Porém o projeto final se parece mais com as propostas de Appia
em “A Música e a Encenação”, porque as luzes são difundidas não através de
rebatimento, mas de grandes telas “difusoras” que escondem as fontes de luz
dispostas no teto e paredes do espaço. Um projeto de luz engenhoso e com efeito
surpreendente. Como podemos perceber claramente pela descrição do próprio
Salzmman e as fotos a seguir :

Se a luz deve se desenvolver segundo sua qualidade


musical, não é necessário que a fonte luminosa seja
aparente. A luz deve ser tão impalpável e móvel quanto o
som. É por isso que nós transformamos a sala (as 4
paredes laterais e o “plafond”superior)em uma imensa
instalação elétrica. Nós dispusemos as lâmpadas em linha
e as penduramos em nichos por cima e por trás de
bandanas e pernas de tela com tratamento especial.
Assim, no lugar de ter uma sala iluminada, nós temos uma
sala iluminante.221

Sala do instituto Jacques Dalcroze222 Foto das passarelas técnicas

221
Salzmann, A. “Lumière, luminosité et éclairage” in Appia, A. Oeuvres
Complètes,. Trad. para o francês e notas Bablet-Hahn M. L. Lausanne:
Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme., Tome III, 1988.
222
Doc. Inst. Jacques Dalcroze, Genébra. Foto digitalizada a partir de
reprodução in BABLET, Denis. Les Révolutions Scéniques du Vingtième
Siécle. Paris: Soc.Int. d’Art XXe siècle, 1975.

127
É nesta mesma sala do Instituto
Jacques-Dalcroze em Hellereau, nos
festivais anuais de Junho, que Appia
estréia a realização de seus projetos de
encenação, cenografia e iluminação
cênica, com trechos de Orphhée et Eurydice em 1912 e 1913.

Projetado para Helleareau, o ballet pantomima Eco e Narciso, de Jacques


Dalcroze; estréia após a Primeira Guerra Mundial, em 1920, no Instituto Jacques
Dalcroze, agora transferido para Genebra, na Suiça.

Após a publicação de A Obra de Arte Viva, seguem-se convites de grandes


teatros. Apesar dos projetos de encenação, cenografia e luz serem de Appia, ele
chama o diretor Oskar Wälterlin, para realizar a direção e ensaiar os espetáculos.
Em 1923, encena Tristão e Isolda, de Wagner, no Teatro Scala de Milão, sob a
regência de Arturo Toscanini. Para o Stadttheater de Ballet na Basiléia cria várias
encenações (todas em versão adaptada para a dança): A Tetralogia do Anel dos
Nibelungos, de Wagner: O Ouro do Reno, 1924; Walküre, 1924; Siegfried,
1924/25 e O Crepúsculo dos Deuses (1925) e, por fim, Prometeu, de Ésquilo
(1925).

Nos últimos anos de sua vida cria desenhos e projetos para várias peças
de teatro, os “dramas falados”, o que nunca fizera antes. Alguns deles em
colaboração com a aluna e depois parceira Jessica Davis Van Wyck. São eles:
Sonho de uma Noite de Verão (1921), As Coéforas (1922); Hamlet (1922); O
Pequeno Eyolf (1924); Macbeth (1926/27), Ifigênia em Táuride (1926) e Fausto
(1927). Appia morre em 1927.

128
A OBRA DE ARTE VIVA

A Obra de Arte Viva é uma síntese das concepções de Appia sobre a arte
dramática, seus elementos e relações, visando obter:

Noções claras e próprias para se tornarem objeto de


reflexão e de especulação estética convenientes ao
progresso e à evolução da arte. 223

Ele parte do princípio que a arte dramática empresta das outras artes os
elementos que a compõem. A organização destes elementos, por sua vez, cabe à
encenação. Portanto para um pleno desenvolvimento da encenação é necessário
entender a natureza destes elementos e suas relações.

De fato, em toda a sua obra este foi o cerne de sua pesquisa. Porém aqui
ele não tem mais o que tatear, sabe qual seu objetivo e para chegar lá segue uma
linha de pensamento de uma argúcia quase socrática. Primeiro parte de uma
análise crítica da Gesamtkunstwerk wagneriana, conceito geralmente traduzido
por Obra de Arte Conjunta. Em seguida, serve-se da própria estrutura do conceito
para reconstruí-lo sob uma perspectiva própria, uma nova concepção específica
deste conjunto orgânico, A Obra de Arte Viva.

Dessa forma, Appia recoloca o problema da arte dramática como síntese


harmoniosa das artes, princípio do Gesamtkunstwerk, acrescentando-lhe o
ingrediente da dúvida e da contradição na busca dos elementos específicos do teatro
como obra de arte autônoma e, aí sim, passível de se tornar "obra de arte integral",
orgânica e viva.

Como não é nosso objetivo central, não seguiremos o caminho


empreendido pelo autor, elemento por elemento, mas, simplesmente tentaremos
entender o princípio estabelecido por ele para construir uma lógica na relação
entre os elementos que constituem a encenação, com o objetivo explícito de
localizar o papel e o entendimento que Appia propõe para a iluminação dentro do
seu conjunto.

223
Appia, A. A Obra de Arte Viva. Trad. Redondo Jr. Ed. Arcádia,
Lisboa.s/d, p. 22.

129
Ao analisar os elementos que cada arte empresta ao teatro, divide as artes
do espaço: pintura, escultura e arquitetura, (presentes nos elementos visíveis do
teatro, como a cenografia e o figurino); e as artes do tempo: poesia e música.
Expõe uma tensão fundamental entre elas. As artes do espaço são imóveis no
tempo e as artes que se desenvolvem no tempo são igualmente imóveis em
relação ao espaço. Como seria possível a “reunião harmoniosa” entre artes de
natureza tão diversa na arte dramática?

É através dessa contradição exposta que propõe uma superação possível:


a articulação entre as artes do espaço e as artes do tempo só pode ser realizada
em cena pelo movimento:

O movimento, a mobilidade, eis o princípio diretor e


conciliatório que regulará a união das nossas diversas
formas de arte, para fazê-las convergir, simultaneamente,
sobre um ponto dado, sobre a arte dramática. 224

O movimento não é um elemento, “a mobilidade é um estado, uma


maneira de ser”.225 Trata-se de descobrir em quais elementos encontramos a
mobilidade capaz de articular tempo e espaço.

Ele encontra a resposta no homem. O ator, fator vivo do teatro é o meio e


o fim da arte dramática:

O corpo, vivo e móvel, do ator é o representante


do movimento no espaço (...) é o criador dessa arte e
detém o segredo das relações hierárquicas que unem os
diversos fatores.226

Mas existe outro elemento, também móvel, que relaciona o tempo ao


espaço, onde age diretamente através da sua mobilidade: a iluminação cênica.
Desta forma o homem ocupa, evolui num espaço, tornado vivo pela ação da luz.

Os movimentos do ator e da luz possibilitam essa articulação, jogando as


artes do espaço na roda do tempo, transformando o espaço com sua ação,
revelando-o de diversas formas, por ângulos diversos, criando uma dialética entre

224
Appia, A. A Obra de Arte Viva. Op. Cit. p. 31.
225
Idem Ibidem, p. 31.
226
Idem Ibidem, p.32-33.

130
ver e esconder, de forma que, através do movimento, as artes do espaço ganhem
“temporalidade”. Assim, aquilo que era, em sua origem, estático, entra em ação,
ganha vida e vira actante da cena.

A LUZ VIVA

A luz é, no espaço, o que os sons são no tempo: a


expressão perfeita da vida. 227

A luz viva é aquela age em cena em consonância com a ação do ator. E


através desta ação, possibilita uma articulação entre os fatores visuais da arte do
espetáculo (presentes no espaço) e os fatores temporais, a música e o texto.

Quanto à cor, Appia propõe a ela uma independência da pintura,


para que seja entendida como cor-luz, que contracena com a cor dos objetos.
Deixando de ser signo, está livre finalmente para se tornar símbolo.

Dessa forma a luz pode evocar o lugar (sem que seja necessário
determiná-lo através do signo da pintura), sugerir um tempo, criar uma atmosfera
emocional ou mesmo espiritual, através da claridade ou da sua ausência. Pode
também criar espaços, animá-los, fazê-los desaparecer ou transformá-los através
do seu movimento. A luz, a serviço do ator, porta a metamorfose do espaço.

Cabe, portanto, à luz ser o elemento de fusão dos elementos visuais, no


tempo, ou seja, no desenvolvimento dramático e musical do espetáculo e de
confluência entre eles e o ator, o fator essencial do espetáculo.

“O HOMEM COMO MEDIDA DE TODAS AS COISAS” e a CATEDRAL DO


FUTURO.

Será, portanto, a partir do ator e sua vida que Appia construirá a sua noção
de “encenação do futuro”. O Homem, “fator essencial” da encenação será para
ele, cada vez mais no desenvolvimento de suas reflexões, motor e motivo do seu
trabalho. A ponto de chegar o momento, em sua maturidade artística, em que ele

227
Idem Ibidem, p.99.

131
proporá não somente a junção do palco e da platéia em uma única sala, a
“catedral do porvir”, mas também o fenômeno teatral como comunhão máxima
entre atores e espectadores. É para o futuro que ele escreve - para quem vier
depois dele e quiser se unir a ele nesta obra sempre inacabada - é para cada
momento presente deste futuro, para nós e, muito além de nós, que ele clama por
um novo teatro no texto “L’ avenir du drame et de la mise en scène”, um teatro
como comunhão, através da arte de homens livres para homens livres:

A Ribalta, este triste símbolo, não separará mais a


arte de um público esmagado na sua passividade. E – quem
sabe – chegaremos depois de um período de transição a
festas majestosas onde todo mundo será participante;
onde cada um de nós expressará sua emoção, sua dor e sua
alegria; e onde ninguém consentirá mais em restar
espectador. O autor dramático então triunfará! 228

Considerado por muitos como o profeta da arte do espetáculo, dado o


caráter visionário de suas propostas e concepções, Appia foi com certeza um
precursor das concepções de encenação, arquitetura cenográfica e iluminação
cênica desenvolvidas no decorrer do século XX. Suas influências diretas podem
ser verificadas de perto no trabalho de Wieland e Wolfgang Wagner netos de
Richard Wagner), que finalmente realizaram a partir dos anos 1950 as propostas
de Appia para a encenação do drama wagneriano na nova Bayreuth; nas
concepções do amigo e discípulo direto Jacques Copeau e, através dele, o
famoso Cartel francês: Jouvet, Baty, Dullin e Pitoëf, (quanto a Pitoëf,
principalmente no que se refere justamente à ação da luz na construção do
espaço); nos expressionistas, por um lado, nos formalistas russos, por outro, nas
concepções construtivistas de Meierhold, nas novas concepções arquitetônicas
do espaço teatral que foram dar no projeto do “Teatro Total” de Piscator e Walter
Gropius, nas fortes imbricações entre a projeção de imagens e o teatro, no
cenário-luz de Robert Edmund Jones e Svoboda, entre inúmeros outros. O teatro
é e sempre será na concepção de Appia a grande “Arte do futuro”.

228
Appia, Adolphe. “L’ avenir du drame et de la mise en scène” (1919) in
Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.
Tome III, 1988, p. 338.

132
CONCLUSÕES

A concepção de uma linguagem da encenação pressupõe uma tradução


entre um corpo técnico e sua resultante estética, incluída aí a relação de conjunto
entre os vários elementos que constituem o espetáculo formando um “organismo
complexo”.

Neste organismo proposto por Appia em A Obra de Arte Viva, a iluminação


não perde suas funções de instrumento da visibilidade, ou mesmo de elemento
artístico e expressivo da encenação, mas ganha um novo papel de articulação
entre os vários elementos da encenação, na medida em que através do
movimento a luz confere temporalidade ao espaço. Aí está explícita já, a função
estrutural da iluminação cênica na arte do espetáculo.

Appia instituiu, portanto, no plano das idéias, as bases para o conceito da


iluminação cênica como linguagem ou, em outras palavras, fundou a gramática
para uma “Scriptura” do visível através da iluminação cênica.

Não é demais lembrar que ao fazê-lo ele cria os alicerces da teoria da


iluminação cênica.

O alargamento dessa concepção da iluminação cênico como articuladora


do espaço no tempo e, da sua prática no decorrer do século XX com o
desenvolvimento tecnológico, levará diretamente à noção da luz como editora da
cena, onde reside nosso foco de atenção e de análise do papel da luz na
contemporaneidade.

133
CAPÍTULO 9
GORDON CRAIG
A LUZ CONTRACENA COM A MATÉRIA
Todas as formas são perfeitas no espírito do poeta;
não as extrai da Natureza, não as concebe segundo
ela; nascem da sua imaginação 229 William Blake

Gordon Craig foi antes de tudo o que ele mesmo definiu como um “artista
230
de teatro” ; trabalhou como ator, arquiteto, gravurista, cenógrafo, figurinista,
iluminador e encenador. Mas sua inquietude fez com que, motivado
principalmente por seu trabalho prático como encenador, colocasse em questão
as premissas da arte do espetáculo vigentes então. A partir da necessidade de
expandir esse questionamento, cada vez mais radical, constrói uma significativa
obra teórica. Escreve e publica em 1905 uma brochura chamada Da Arte do
Teatro, quando, através do diálogo entre um Encenador e um Amador de teatro
questiona o senso comum sobre a arte do teatro e destrincha camada a camada
do que ele chama de caos do teatro inglês de sua época. Dirige durante anos
(entre 1908 e 1929, de forma intermitente) a revista The Mask, editada em
Florença, onde através de ensaios e artigos estabelece uma práxis continuada
entre análise e prática teatral, aperfeiçoando com o tempo um ideário próprio,
coeso e coerente, do sentido e prática da arte do teatro. Em 1911 publica o seu
livro Da Arte do Teatro, onde reúne o primeiro diálogo a um segundo, escrito em
1910 depois de suas viagens por vários países da Europa e, principalmente,
depois de seu contato com o Teatro de Arte de Moscou, além de vários outros
textos pinçados da revista The Mask. Este livro trás exposto, sob vários ângulos,
suas concepções sobre a encenação, interpretação, dramaturgia, cenografia e,
como parte fundamental desta última, a iluminação.

229
Citação feita por Craig, que dedica à Blake o seu livro Da Arte do
Teatro in Da Arte do Teatro. Ed. Arcádia, Lisboa, 1963, p. 115.
230
Craig, E. Gordon. “Os Artistas do Teatro do Futuro” in Da Arte do
Teatro. Ed. Arcádia, Lisboa, 1963, p. 43.

134
OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA CONCEPÇÃO DE CRAIG DA ARTE DO
TEATRO

O objetivo do Teatro considerado como um todo é


restabelecer a sua Arte. E para isso é preciso, antes de
tudo, renunciar a essa idéia da personificação, essa
idéia da imitação da Natureza; enquanto ela subsistir, o
teatro nunca se libertará. 231

O restabelecimento no âmbito do “Teatro” de uma Arte ideal, pensada


como um todo, com suas leis próprias, independentes da vida cotidiana e da
realidade, é o objetivo primeiro de Craig. Para isso ele estuda sob vários aspectos
a história do teatro: os gestos simbólicos presentes na dança dramática egípcia; a
origem grega do teatro no rito e na dança; o teatro medieval cristão, tanto o
realizado dentro das igrejas, como os “peagents” dos milagres citadinos e as
“mascaradas” do teatro profano; as máscaras, marionetes e outras técnicas
baseadas na convenção. A recusa absoluta do realismo tanto como um fim em si
mesmo, quanto como método de criação da interpretação ou da cenografia e da
iluminação é repetido por ele à exaustão:

O Amador de Teatro: Quer dizer que observou tão


cuidadosamente a natureza que pode indicar aos
maquinistas como tornar um raio de sol mais ou menos
oblíquo ou o grau de intensidade do luar banhando as
paredes de uma sala?
Encenador: Não, porque o meu encenador nunca
procurou reproduzir os jogos de luz da natureza. Não
procura reproduzir a Natureza, mas sugerir alguns dos
seus fenômenos.232

Não é da natureza, mas da imaginação que vem a inspiração do


encenador, do trabalho constante sobre ela, fazendo e refazendo um desenho até
que se consiga chegar ao âmago da idéia, onde a beleza se manifesta:

231
Craig, E. Gordon. “O ator e a ‘sur-marionete’” in Da Arte do Teatro.
Ed. Arcádia, Lisboa, 1963, p. 103.
232
Craig, E. Gordon. “Primeiro diálogo entre um profissional e um amador
de teatro” in Da Arte do Teatro. Op. Cit. pp. 177-178.

135
porque o objetivo da Arte não é refletir a vida e o
artista não imita, cria. Mas é a vida que deve trazer o
reflexo da Imaginação, a qual escolheu o artista para
fixar a sua beleza.233

Craig tem uma visão idealista da arte, voltada para a busca da “Beleza”,
conceito que para o encenador ecoa o sentido platônico da palavra. Ascender à
“Beleza” é o objetivo expresso de sua práxis, como podemos apreender pelo que
escreve:
Que se penetre no Teatro com o sentido profundo
dessa palavra “Beleza” e poderemos dizer que o despertar
do Teatro estará próximo.234

Por isso é mais do que coerente que sua investigação parta da idéia de
que existe uma “essência da arte do teatro”, aquilo que a faz única e completa,
portanto, passível de participar da idéia do “Belo”. É esta essência que procura
definir, para transformar a sua concepção e prática do teatro.

Como não poderia deixar de ser, Craig também parte da Gesamtkunstwerk


wagneriana, porém considera impossível criar uma nova arte da junção de outras
artes. Ao contrário, é naquilo que há de específico no teatro, nas leis e princípios
fundamentais desta arte, que ele busca reencontrar a idéia de uma arte
autônoma, independente da pintura e mesmo da literatura. Mas a influência de
Wagner e seu idealismo estão profundamente impregnados no pensamento de
Craig e a busca de um teatro total, onde a idéia de conjunto e unidade rege a
organização dos elementos, substitui o conceito de Obra de Arte Conjunta.
Recobrar a tão pretendida unidade da arte do teatro será um dos grandes
objetivos do encenador inglês.

Como Appia, Craig expande sua pesquisa para a análise dos elementos
que compõem a encenação e suas relações. Escreve, então, em 1905 a primeira
parte de Da Arte do Teatro, o “Primeiro diálogo entre um profissional e um amador
de teatro” que inicia com a seguinte pergunta: “Sabeis o que é a Arte do Teatro?”.
A resposta é a própria definição de Craig:

233
Idem Ibidem, p. 115.
234
Craig, E. Gordon. “Os Artistas do Teatro do Futuro” in Da Arte do
Teatro. Op. Cit. p. 68.

136
A arte do Teatro não é nem a representação dos
atores, nem a peça, nem a encenação, nem a dança; é
constituída pelos elementos que a compõem: pelo gesto,
que é a alma da representação; pelas palavras, que são o
corpo da peça; pelas linhas e pelas cores que são a
própria existência do cenário; pelo ritmo, que é a
essência da dança. 235

Ou seja, não é nas funções ou nas partes constituintes da encenação


(como o ator, o espaço, a cenografia, a luz, a pintura) que ele encontra os
elementos que constituem o espetáculo, mas nos signos que o compõem. E, ao
contrário de Appia, que cria uma hierarquia entre os diversos elementos, Craig
não imagina separar, nem para efeito de análise, a parte do todo, já que é
justamente na idéia de unidade e conjunto que ele compõe sua concepção
pessoal da Arte do Teatro. No lugar de uma obra de arte total, um teatro total.

Os elementos que o constituem – gestos, palavras, linhas, cores, luzes e


ritmo – devem ser reunidos formando um conjunto coeso, orgânico e coerente: o
espetáculo. A concepção do conceito deste conjunto, a orquestração dos
elementos, a harmonia das partes entre si e com o todo, são a nova função da
encenação, ou em outras palavras, significam o “renascimento do encenador”.

Este “novo” encenador precisa ter então total controle sobre as linguagens
e meios técnicos que compõe a encenação e deve ser ele, o maestro da cena,
que determina os vetores e linhas de força, os contrastes e as cores, o movimento
e o jogo dos atores, da cenografia e das luzes. A apropriação dos meios técnicos
por parte do encenador, que o permita ser o fator de unidade do espetáculo é
uma das indicações importantes de Craig aos artistas do futuro:

O Encenador: ... Mas espero um Renascimento.


O Amador de Teatro: E quem o provocará?
O Encenador: O aparecimento de um homem que reúna, na sua
pessoa, todas as qualidades que fazem um mestre do teatro e a
renovação do teatro como instrumento. Quando esta se
completar, quando o teatro for uma obra-prima de mecanismo,
quando se tiver inventado a sua técnica particular,

235
Craig, E. Gordon. Da Arte do Teatro Op. Cit. p. 158.

137
engendrará sem esforço a sua própria arte, uma arte criadora.
(...)
O Amador de Teatro: Quer dizer, pelo vosso encenador ideal.
O Encenador: Precisamente. No começo desta conversa disse-vos
que o Renascimento do Teatro tinha por ponto de partida o
Renascimento do encenador. No dia em que este compreender a
adaptação verdadeira dos atores, dos cenários, dos figurinos,
das iluminações e da dança, saberá, com o auxílio desses
diferentes meios, compor a interpretação e adquirirá, a pouco
e pouco o domínio – do movimento, da linha, da cor, dos sons,
das palavras que escorrem naturalmente, e, nesse dia, a Arte
do Teatro retomará o seu lugar, será uma arte independente e
criadora, e não mais um ofício de interpretação. 236

A OBRA DE ARTE VISUAL

Craig entende que a principal ação do espetáculo se dá sobre os nossos


sentidos e não sobre o entendimento, daí a diferença entre o poema dramático,
feito pelo poeta para ser lido e o “drama”, feito pelo dramaturgo para ser posto em
cena:
O dramaturgo forjou a sua primeira peça com o
auxílio do gesto, das palavras, da linha, da cor e do
ritmo, dirigindo-se ao mesmo tempo aos nossos olhos e
aos nossos ouvidos por um jogo resultante destes cinco
fatores. 237

E, embora os sons façam parte fundamental deste conjunto, o privilégio,


em sua opinião, recai sobre a visão. Neste mesmo texto, mais adiante, Craig
238
afirma que o público da tragédia grega desejava mais ver do que ouvir . E
completa: “o público dos nossos dias continua a ir ao teatro, como no passado,
para ver e não para ouvir qualquer coisa”.239

O teatro é uma arte para os olhos. Esta afirmação será expressa em vários
textos, de várias maneiras. Mas é, sobretudo, em suas encenações, onde o
visível revela a essência do espetáculo, que este ponto de vista se manifesta. As

236
Craig, E. Gordon. Da Arte do Teatro Op. Cit. p. 191.
237
Idem Ibidem, p. 160-161.
238
O próprio nome do lugar destinado ao público na tragédia grega se
remete à visão: “Theatron, lugar onde se vê”.
239
Craig, E. Gordon. Da Arte do Teatro Op. Cit. p. 162.

138
cenografias de Edward Gordon Craig são sempre a síntese de sua expressão
como encenador e não é à toa que ele engloba em seu conceito de cenário todo o
aspecto visual do espetáculo:

Entendo por cenário tudo o que se vê, isto é, os


figurinos, a iluminação e os cenários propriamente
ditos.240

Essa afirmação expressa a relação intrínseca entre os vários aspectos do


visível, que se complementam entre si, instituindo a unidade do espetáculo, ou
como resume Bablet:

As linhas e cores que deverão se acordar ao


movimento e a voz, então, serão aquelas dos figurinos,
das iluminações e da cenografia propriamente dita, e uma
das condições da unidade do espetáculo será a harmonia
de todos os seus elementos visuais. 241

Isto significa que não há como pensar a cenografia sem a luz ou a luz sem
a cenografia e que ambas não se juntam, mas são criadas como uma só
expressão cênica. Desde o desenho, as cenografias de Craig traduzem em preto
e branco242 o sentido profundo, no devir da cena, do contraste entre o claro-
escuro da iluminação, que revela ou esconde. Esconder pode ser tão importante
para a manifestação do sentido profundo do espetáculo quanto a revelação. O
movimento interno causado pela relação entre o visível e o não-visível em suas
infinitas modulações, cria um pulso, uma progressão do aspecto visual. Como
propõe o simbolismo, música e orquestração para os olhos.

O embate entre as linhas de força impressas no espaço pela relação entre


a luz e a matéria, expressa os conflitos fundamentais do drama no espetáculo
visível.

240
Idem Ibidem, p. 194.
241
Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914.
Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.
289.
242
Não podemos esquecer que Craig era também gravurista e imprimia
concretamente no veio da madeira o contraste entre preto e branco, que
cria a forma.

139
A composição do sentido do espetáculo depende do poder de “síntese e
sugestão” destes meios expressivos que tocam o espectador através dos seus
sentidos, principalmente seus olhos, e, a partir daí, criam uma significação “total”,
que engloba a imaginação, a inteligência e a emoção da platéia, de forma a que o
espírito humano possa finalmente encontrar-se imerso no sentido profundo da
palavra “beleza”.

Ou como muito bem resume Bablet:

Música, texto interpretação dos atores cenografia


e iluminação são igualmente vozes de um coro polifônico
243
que se respondem e se exaltam mutuamente.

O SIMBOLISTA DAS FORMAS, DAS CORES E DAS LUZES

De seus textos e desenhos, das descrições e fotos de seus espetáculos se


vislumbra um encenador, cenógrafo e iluminador simbolista. Um poeta do visível
que faz das formas, linhas, volumes, materiais, cores e luzes um meio de
expressão do espírito, de sugestão para aguçar a imaginação da platéia, de
síntese da essência do drama.

Mais do que inspirado pelo ideal simbolista de “síntese e sugestão”, como o


foi também Appia, Craig tem no Símbolo um meio e um fim explícitos do seu
trabalho. Em um pequeno artigo “A Propósito do Simbolismo”, de 1910, Craig
afirma sua compreensão da arte como expressão simbólica da existência e
declara seu amor pelo simbolismo. O Símbolo torna possível a manifestação da
Idéia no mundo dos sentidos e é através da definição dos conceitos simbolismo e
símbolo, que cita na nota de rodapé desde artigo, que de alguma forma ele se
serve para definir um dos principais objetivos do seu trabalho:

Webster: Definição do simbolismo = emprego


sistemático de símbolos. Definição do símbolo = O sinal
visível da idéia. – (Nota do Autor). 244

243
Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914.
Op. Cit. p. 312.
244
Craig, E.G. A Propósito do Simbolismo. Op. Cit. p, 299.

140
Na descrição do seu método de criação, dedicado para “Os Artistas do
Teatro do Futuro”, surpreendemos a busca de um modo de expressar através de
símbolos visíveis o conflito fundamental de uma peça e desta forma, comunicar-
se com sua essência. Assim ele descreve como é possível compor os cenários de
Macbeth:

Por mim, vejo duas coisas: uma alta rocha


escarpada e uma nuvem úmida que esfuma o cume. Aqui, o
lugar dos homens ferozes e guerreiros, ali a região que
os espíritos habitam. Finalmente a nuvem destruirá a
rocha, os espíritos triunfarão sobre os homens. 245

É dessa primeira visão interior que ele extrai, como uma essência que
compõem um perfume raro, todas as indicações do cenário, do figurino e da luz.
As linhas verticais da rocha, que criam a sugestão de sua presença rumo aos
céus, do seu volume que dá a dimensão de sua concretude. O contraste entre a
rocha e a evanescência das nuvens, expressas pelo movimento da iluminação, as
“massas” móveis de sombra e de luz.

O mesmo processo será usado para determinar as cores presentes no


espetáculo:
Mas as cores, direis, quais são as cores que
Shakespeare nos indicou? Não consulteis a Natureza, mas
antes de tudo a própria peça. E, aí, encontram-se duas
cores: a da rocha e dos homens, a da nuvem e dos
espíritos. 246

A partir dessas duas cores ele comporá a cenografia, os figurinos e a luz,


formando um conjunto de significação.

As cores serão, portanto, uma paleta de símbolos para o encenador criar o


espetáculo, uma possibilidade de manifestação visível do “fundo das coisas” e
seus contrastes um conflito subliminar que intensifica a ação dramática, tensão
intrínseca exposta aos olhos. Expressas no figurino as cores manifestam o interior
das personagens, em seus contrastes, os conflitos fundamentais entre elas; a
interação entre as cores dos figurinos e as do cenário, a expressão das relações
entre personagens e o mundo. Como é o caso do Hamlet de Moscou onde o pano

245
Craig, E. Gordon. Os Artistas do Teatro do Futuro. Op.Cit. p, 55.
246
Idem Ibidem, p. 57.

141
de fundo e os figurinos da corte são dourados, representando uma corte voltada
às aparências e à riqueza, enquanto Hamlet é o único de preto, contraste
absoluto de cor, brilho e significado que isolam Hamlet do resto do mundo. As
cores da luz, por sua vez, revelam, escondem ou transformam as cores do
cenário e dos figurinos, incluindo a possibilidade de movimento às relações
simbólicas expressas pela paleta de cores do espetáculo. A escolha meticulosa
dessas cores, sua síntese e coerência interna são assim fundamentais para
assegurar a força potencial de seu significado simbólico.

A luz ou sua ausência são em si uma representação simbólica de forte


impacto na tensão do espetáculo:

Para Craig a luz é revelação e símbolo da vida, a


sombra é mistério, ameaça e símbolo da morte. A
representação do drama implica sua coexistência e seu
conflito.247

Trata-se de um processo de “metonímia cenográfica”, Craig seleciona de


todas as indicações da peça um substrato, um conflito fundamental, um elemento
central, uma idéia e, a partir dela, constrói uma unidade visual que expressa pela
força da síntese, a intensidade da sua sugestão. Desta forma o conflito de
Macbeth reflete-se no contraste entre rocha e nuvem; a luz da lua perdida na
imensa escuridão representa a solidão de Hamlet; um trono é um palácio; a luz de
um vitral, uma igreja; uma escada, metáfora da vida.

AS ILUMINAÇÕES

I. INFLUÊNCIAS

Encontramos algumas influências fundamentais em sua formação que o


iniciaram nos aspectos técnicos e artísticos da iluminação. Seu pai artístico, o
diretor inglês Henry Irving foi o grande “iluminador a gás” da breve história dessa
técnica, primeiro inglês a usar o controle das intensidades da luz que o sistema a
gás permite, criava atmosferas “impressionistas”, climas de lusco-fusco e

247
Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914.
Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.
312.

142
movimentos de luz no decorrer do espetáculo. A importância dessa luz em seus
espetáculos era tanta que ele viajava com seu próprio sistema de iluminação e foi
o diretor que mais resistiu trocar a luz viva do gás pela “dureza” da luz elétrica em
seus inícios.
248
Segundo Christopher Innes , Craig recebeu também uma influência
decisiva, principalmente no que concerne à elaboração de novos meios técnicos
na cenografia e na iluminação, advinda do trabalho do encenador e professor
Herkomer. Esse artista da Baviera que se instalou na Inglaterra, fundou uma
escola de artes em Bushey (perto de Londres) e construiu um pequeno teatro
para experiências práticas com seus alunos, onde desenvolveu uma série de
dispositivos cenográficos e luminotécnicos inéditos. Lá, nas apresentações de fim
de ano de 1889 e 1890, Edward Gordon Craig, então com dezessete e dezoito
anos, foi testemunha de novos dispositivos de iluminação desenvolvidos por
Herkomer, que muito o impressionaram, como um fundo “infinito” que, através da
interação entre uma gaze transparente na diagonal com diferentes ângulos de
incidência de luz, resultavam a impressão de profundidade e movimento,
recriando para as lâmpadas incandescentes os efeitos de ilusão de ótica que
249
Phillip de Loutherbourg utilizara nos anos 1780 para os espetáculos de dança .
Muitos dos efeitos de luz das primeiras encenações de Craig serão
aperfeiçoamentos dos mecanismos de Herkomer, porém com objetivos estéticos
totalmente diferentes.

Sabemos pelas descrições das viagens de Craig que ele entrou em contato
com teatros e profissionais de vários países, onde pesquisou com afinco novas
maneiras de iluminar e desenvolvimentos tecnológicos, em especial aqueles
produzidos na Alemanha: em Munique, conheceu os dispositivos de luz criados
pelo prof. Littmann para o München Künstler Theater, cuja maquinaria dos
cenários e da iluminação é totalmente escondida da platéia e “são diferentes de
250
tudo quanto vi até hoje” ; também conheceu de perto o trabalho de Max

248
Innes, Christopher. Edward Gordon Craig A vision of the Theatre.
Overseas Publishers Association, 1996, pp.31 a 36.
249
Para não sermos repetitivos, explicaremos em detalhes o “truque” desta
mágica de luzes, a partir do desenvolvimento feito por Craig para Dido e
Enéas.

143
Reinhardt, a quem chama com admiração de o “grande chefe de escola, o
251
professor Reinhardt” Craig também cita o cuidado e preciosismo da pesquisa
em luz no Teatro de Arte de Moscou que, apesar de caminhar para o sentido
oposto da sua, utilizar-se de ribaltas, gambiarras e efeitos que têm por objetivo
uma eterna busca pela precisão naturalista, o inspiraram muitíssimo por sua
“perfeição técnica”, dedicação e bom gosto. O Teatro de Arte de Moscou mudou a
perspectiva de Craig quanto à possibilidade de uma harmonia e dedicação
coletivas para um objetivo comum, naturalmente a partir do impulso e força
catalisadora e, como prega o encenador inglês, unificadora do encenador.

Craig era desde muito jovem, além de ator, gravurista. Imprimia


concretamente no veio da madeira o contraste entre preto e branco, que cria a
forma. A influência da técnica da gravura em seus desenhos cênicos é visível.

II. EM BUSCA DE UM NOVO DISPOSITIVO DE LUZ

Como um gravurista que traça linhas na madeira, isto é, no quadro cênico;


Craig muda os ângulos das fontes de luz de acordo com as necessidades de cada
cenografia (o que era incomum naquele momento em que normalmente as
estruturas de luz eram fixas e as lâmpadas abertas). Realiza, portanto, um projeto
de luz específico para cada espetáculo, que ele nomeia de “dispositivo de
iluminação”:

No que diz respeito aos mecanismos de iluminação;


mas é ao encenador que compete regular o seu emprego. E
como este último é um homem inteligente e competente,
imaginou um dispositivo de iluminação especial para a
peça em questão, da mesma maneira que concebeu cenários
e vestuários especiais. Se não atribuísse importância à
“harmonia” da peça, então poderia deixar a iluminação ao
cuidado de qualquer.252

Essa idéia de um novo dispositivo para cada espetáculo, ou seja, um


desenho específico de luz para cada encenação, em harmonia com a concepção

250
Craig, E. Gordon. “O Teatro na Alemanha, na Rússia e na Inglaterra” in
Da Arte do Teatro. Op. Cit. p. 148.
251
Idem Ibidem, p. 152.
252
Idem Ibidem, p. 177.

144
geral do espetáculo e particularmente, da iluminação como um fator decisivo de
um conjunto de significação visual, é, na prática, justamente a assunção do
significado da iluminação cênica como linguagem.

Resta saber agora, como Edward Gordon Craig, que é conhecido como
grande iluminador e, inclusive nomeado por Margot Berthold com o interessante
epíteto de “Simbolista da luz, ou seja, iluminador” 253; concebia esta linguagem.

Em “Os Artistas do Teatro do Futuro” ameaça destrinchar o aspecto técnico


da iluminação, segundo sua perspectiva, mas não o faz, criando uma expectativa
em relação ao assunto:

Pensava dizer-vos duas palavras sobre a maneira de


empregar a luz artificial, mas aplicai aquilo que vos
disse dos cenários e dos figurinos a esta outra parte da
vossa profissão. Não seria nada prático indicar-vos os
dispositivos que se utiliza, o modo de obter as boas
iluminações.254

Como sabemos e o próprio autor corrobora com esta idéia, pelas


especificidades de cada ofício e das técnicas empregadas em cada um deles, não
é possível apreender sobre a iluminação simplesmente aplicando indicações do
cenário e do figurino. Em outras ocasiões Craig explica que não vai contar como
faz para criar tecnicamente o aspecto visual de seus espetáculos, porque seria
copiado por fora, sem que o interlocutor entendesse o sentido interior da
composição de uma encenação por cada artista. Ficamos então, por enquanto,
sem saber nada mais específico sobre o assunto. Porém fomos encontrando
pistas que nos levaram a esses dispositivos de luz utilizados por Craig.

Vamos seguir e analisar as pistas, passo a passo.

Jacques Copeau, que se descreve como “representante das suas idéias


em França”, descreve que Craig lhe mostrou “um sistema de iluminação que dá

253
Berthold, Margot, História Mundial do Teatro. São Paulo: Ed Perspectiva,
São Paulo, 2003. p. 471.
254
Craig, E. Gordon. “Os Artistas do Teatro do Futuro” in Da Arte do
Teatro. Op. Cit. p. 72.

145
resultados admiráveis e parece maravilhosamente simples e prático (...). É a
supressão total da ribalta e das gambiarras”. 255

Como tantos outros reformadores de seu tempo, Craig é absolutamente


contrario à utilização da ribalta como principal fonte de iluminação, escrevendo
tanto contra ela, quanto Appia. Portanto, quando o “Amador de Teatro” pergunta
ao “Encenador”, para que serve a ribalta e a luz rasante, ele é direto na resposta:

... O melhor é fazer desaparecer a ribalta o mais


depressa possível de todos os teatros e não se falar
mais nisso. É uma das bizarrias que ninguém sabe
explicar... 256

Na seqüência, quando o seu interlocutor insiste, em nome de um ator, que


sem a ribalta as caras dos atores ficariam no escuro, Craig esclarece que é
necessário inventar novos dispositivos e, portanto, novas formas de iluminar.
Nesse mesmo texto faz um histórico do possível surgimento da ribalta, por razões
de facilidade técnica e econômica, mas não esclarece nem dá pistas de quais
seriam essas novas formas de iluminar.

Também encontramos uma frase de Craig que, embora metafórica, é muito


significativa de seus desejos estéticos em relação à luz:

Tudo será iluminado por uma luz semelhante àquela


das esferas, as quais nós sonhamos, e não àquela da
ribalta.257

Dela podemos, numa liberdade de imaginação que a própria imagem nos


sugere, deduzir que ao contrário de uma fonte visível e de baixo como a ribalta, a
luz deve vir do alto, com as fontes invisíveis, como se viesse das esferas. A luz do
alto, a mesma usada pelos simbolistas franceses e depois pelos expressionistas
alemães, privilegia as formas e os volumes.

255
Kurtz, Maurice. Jacques Copeau, Boigraphie d´um Thèâtre citado por
Redondo Júnior em Craig, E.G. Da Arte do Teatro. Op. Cit. p. 9.
256
Idem Ibidem, p. 179.
257
Craig, E. Gordon, “Um Mot sur Le Thèâtre tel qu’il était, tel qu’il
est, tel qu’il sera” in Thèâtre Populaire, 3º trimestre 1962, n.47, p.
120 citado por Bablet, Denis in Esthétique Générale du Décor de Théâtre
De 1870 a 1914. Op.Cit. p.311.

146
Chegamos, então, à descrição de Jean Jacques Roubine, que indica um
“dispositivo de iluminação” composto de luzes vindas do alto e da frente:

Inteiramente nova na sua concepção, a técnica


empregada permite iluminar os personagens de frente, ou
verticalmente, pois a luz não é mais enviada da ribalta
ou dos bastidores, mas do fundo da sala e do urdimento.
258

Esta é uma descrição dos ângulos de iluminação preferenciais de Craig,


que indica uma nova forma de iluminar o ator em substituição à ribalta. Porém
Roubine não nos revela a fonte dessa informação, como chegou a essa
conclusão, nem os detalhes técnicos do “novo dispositivo de iluminação” o que só
fez aumentar a nossa curiosidade.

Encontramos, por fim, um livro que descreve cada uma das encenações de
Craig, inclusive do ponto de vista das coreografias, cenografia, figurinos e
iluminação, incluindo desenhos e projetos técnicos do próprio encenador, suas
anotações de ensaio assim como notas dos programas e críticas, exatamente o
que precisávamos para poder conhecer e analisar sobre bases mais firmes esses
“novos dispositivos” de luz, suas inovações e significado para o desenvolvimento
da iluminação cênica como linguagem técnico-estética. A descrição dos
dispositivos de iluminação que fazemos a seguir tem por fonte principal este livro:
Edward Gordon Craig – A Vision of Theatre, de Cristopher Innes.259

Não pretendemos aqui dar conta (e nem é nosso objetivo) de uma


descrição detalhada dos espetáculos ou mesmo de cada uma das luzes, mas
retirar delas as inovações de linguagem ou as comprovações práticas de nossas
teses teóricas e, enfim, destacar no projeto da iluminação desses espetáculos o
que nos impele a analisar o desenvolvimento de uma mudança total da prática e
sentido da iluminação cênica, incluindo sobretudo seu aspecto técnico-estético,
que ocorre exatamente nesse momento da história do teatro (entre 1890 e 1914)
tendo em Edward Gordon Craig um de seus ícones, tanto no aspecto teórico
(juntamente com Appia), como no técnico e prático (juntamente com Max
Reinhardt, Meierhold e Tairov).

258
Roubine, Jean Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Op. Cit. pp.
121-122.
259
Innes, Christopher. Edward Gordon Craig A vision of the Theatre.
Overseas Publishers Association, 1996, pp.31 a 36.

147
III - PRIMEIRAS ENCENAÇÕES E OS NOVOS DISPOSITIVOS DE ILUMINAÇÃO

a. Dido e Enéas

Em 1900 Craig realiza sua primeira encenação: Dido e Enéas de Purcell.


Podemos observar já neste primeiro espetáculo a importância da cenografia,
figurinos e luz, pensados em conjunto com o todo da encenação. O drama se
passa em seis diferentes lugares, incluindo cavernas, jardins e até mesmo
“debaixo da terra”. Diante da precária estrutura técnica do teatro e da
infraestrutura da montagem, o encenador resolve essas dificuldades compondo o
espetáculo em um único cenário estrutural. Mudam apenas alguns elementos
essenciais, a combinação e contrastes de cores nos figurinos, no telão do fundo e
no tecido do chão e, principalmente, a partir da coordenação entre a música, o
movimento dos coros e das luzes, que geram a força da progressão dramática e
do poder sugestivo desta montagem considerada como uma revolução de forma e
técnica.

Craig inova totalmente as estruturas de iluminação de seu tempo, abolindo


de vez a ribalta, substituindo-a por “lâmpadas escondidas em caixas” 260 no
fundo do auditório e em cima do palco, nas duas laterais como podemos conferir
no desenho (corte lateral) de Craig, abaixo:

260
Idem Ibidem, p. 45.

148
Craig inventa, assim, um novo dispositivo para iluminar o ator, no lugar da
ribalta.261 A luz de frente, que normalmente chamamos de “luz geral”, com a
mesma função da “luz difusa” proposta por Appia. Embora considere este, como
qualquer outro dispositivo, específico para cada espetáculo e, portanto, coerente
com um conjunto único e novo a cada nova encenação.

Sobre o mesmo dispositivo de iluminação de Dido e Enéas, Bablet


acrescenta:

É do alto que tombará a luz: Craig dispõe sobre um


<ponto> que domina a cena os aparelhos que iluminarão o
platô e as telas de fundo (é necessário recordar que o
emprego do <ponto de luz> somente se generalizará, e a
princípio na Alemanha, alguns anos mais tarde?). Em
outro procedimento igualmente inédito, ele coloca ao
fundo da sala dois projetores cujos feixes de luz,
passando por cima do público, irão bater os atores de
face.262

As lâmpadas fechadas em caixas e acesas individualmente (como nos


nossos refletores), tanto da frente como das laterais, permitem o controle e uso
artístico das sombras.

O fundo do palco tem um mecanismo desenvolvido a partir daquele que


Craig viu anos antes no teatro de Herkomer e que se transformará em uma
característica desse período da criação de Craig:

Usando uma tela de fundo com um tecido de uma única


cor e na frente dela (a mais ou menos 60 cm de
distância), uma gaze esticada em ângulo, na qual é
projetada luz de outra cor. Um assombroso efeito
tridimensional era alcançado 263.

261
Cabe lembrar que embora as críticas à ribalta sejam feitas
regularmente desde o Renascimento com Sabattini, ela é até então
irremediavelmente utilizada como luz principal, a não ser em espetáculos
onde por alguma razão estética excepcional não há nenhuma luz de frente,
como em “Pelleás e Melisande” de Lugné Poë, por exemplo.
262
Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Paris: L’Arche, 1962, p. 54.
263
Innes, Christopher. Op. Cit., p. 46.

149
O fundo “infinito” permite um jogo de luzes – entre aquela que ilumina o
fundo por trás da gaze (que fica então transparente) e outra projetada na gaze
pela frente (que torna a gaze opaca) – criando um efeito surpreendente de ilusão
de ótica, sobretudo quando através do movimento de intensidades se dá a fusão
entre o que está atrás e o que está na frente, quer sejam cores, imagens,
cenografias ou personagens.264 Esse efeito de fusão em Dido e Enéas
acompanhava o ritmo dos tambores da música.

Para as “aparições” 265 do espetáculo, cria um


efeito composto: primeiro por trás da gaze, que
deixa a figura esmaecida, acrescida com tecido
cortado na frente criando uma moldura informe (vide
imagem), surge um feiticeiro iluminado
pontualmente que profere: “Appear !”. Então o coro
das bruxas, em vestes camufladas contra o chão,
surge na semiobscuridade, como do nada, ao
mesmo tempo em que buracos no solo deixam
passar luz de carbureto (limelights) e vapor, criando
sombras móveis que ganham formas no espaço projetadas nas partículas de
água espalhadas pelo ar. Se nesta cena luz e fumaça sobem do chão para o alto,
na cena da morte pétalas caem do urdimento sobre o corpo de Dido, iluminado
por um “feixe de luz branca vertical (a pino) com foco concentrado, contra um céu
violeta que vai escurecendo gradualmente” 266, efeito certamente realizado por um
aparelho individualizado com lente.

264
Esse movimento de luzes em gazes transparentes que cria uma fusão
entre a imagem que está por trás e a da frente, usada desde o século
XVIII, é um “truque” de ilusão de ótica muito comum, no entanto sempre
surpreendente. É o mesmo efeito usado tanto nas complicadas passagens de
lugar e tempo do filme O Fundo do Coração de Copolla, uma das iluminações
mais caras do cinema, até a mágica da “Mulher/Monga” em parques e circos.
265
Craig considera que as “aparições”, “espectros” ou “espíritos” são o
centro destas peças porque “O simples fato da sua presença proíbe
qualquer figuração realista das peças em que aparecem. Esses espíritos
dão à peça a tonalidade na qual, assim como as notas na música, todas as
partes deverão harmonizar-se” Craig E.G. “Dos espectros nas tragédias de
Shakespeare”, in Da Arte do Teatro, Op. Cit. p. 271.
266
Innes, Christopher. Op. Cit., p. 46.

150
A descrição das luzes também esclarece o uso de cores267, como
demonstra, por exemplo, essa descrição do movimento final do espetáculo:

Dido de preto, cercada de um coro de virgens, “agora inteiramente


cobertas em seus véus de gaze roxa, são lavadas em luz verde,
enquanto luz azul é jogada do topo no tecido de fundo.
Amarelo é projetado de frente na gaze. O amarelo diminui
268
gradualmente , funde-se com o azul, que deixa o céu roxo
profundo, que escurece até que o coro se perca contra o céu e
269
só se veja os seus braços (brancos) em ondas”.

Craig pinta suas cenas com cores fortes e complementares, criando um


“contraste em cor”. Da mesma forma que o ângulo de incidência da luz cria o
contraste entre luz e sombra, determinando forma e volume, a contraposição de
cores complementares também gera contraste e revela as formas, isola ou
relaciona umas em relação às outras, justapõe imagens ou mesmo transfigura
objetos e pessoas.

O “contraste em cor”, principalmente entre as cores primárias, nos remete


imediatamente à pintura simbolista, como em Redon, por exemplo, ou para além,
aos pintores dos primeiros movimentos expressionistas alemães como o Blaue
Reiter (principalmente Jawlensky, Franz Marc, Gabrieli Münter e Kandinsky) e o
Die Bruck (como Emil Nolde e Otto Müller), ou mesmo ainda, Chagall, cuja pintura
tem forte conteúdo simbólico. No trabalho destes pintores a forma não é dada
pela perspectiva, sombras e esfumatos, mas pelo contraste seco de cores
complementares (como o verde/magenta; o amarelo/azul e o azul
violeta/vermelho). Expressam através do jogo gritante das cores o mundo interior

267
Como normalmente as descrições e citações de luzes encontradas são, em
geral, abrangentes e conceituais e as fotos e desenhos são em preto e
branco, o quanto e como as cores são usadas permanecem muitas vezes
imprecisas ou mesmo misteriosas. Neste livro de Christopher Innes há
descrições precisas de efeitos, técnica, cores e ângulos. Citarei algumas
que considerei mais representativas, para poder comentá-las e tentar
analisar assim o seu sentido no todo deste capítulo e da dissertação como
um todo.
268
Para a palavra dimmed, aqui utilizada, usamos comumente em “português
de iluminadores” o anglicismo “dimmerizado”. Que significa diminuído ou
aumentado de intensidade por meio de dimmmers.
269
Innes, Christopher. Op. Cit., p. 46

151
ou o choque entre a interioridade e o mundo exterior. As cores transfiguram o
mundo por dentro.

Estes “contrastes em cor” utilizados por Craig, em uma mesma cena e


entre uma cena e a próxima, dão uma dimensão móvel ao aspecto simbólico da
cor, isto é, a cor não é apenas um elemento simbólico em si, mas ela é
contextualizada em uma relação dinâmica de contrastes no espaço e no tempo,
que forma um conjunto de significação. Este conjunto de cores em movimento
deve manifestar a essência do conflito do espetáculo e sua progressão dramática.

b. A Máscara do Amor

Em março de 1901, Craig apresenta às expensas da Purcel Operatic


Society a reprise de Dido e Enéas e o novo espetáculo A Máscara do amor. 270

Novamente a iluminação faz a diferença, garante a homogeneidade visual


da encenação, transforma os materiais da cenografia e dos figurinos, movimenta
a combinação de cores, que por si mesma é incomum e simbólica:

O encenador confere à obra uma estranha sobriedade


de movimentos, de linhas e de cores. O símbolo, uma vez
mais, prevalece sobre a descrição, a alusão sobre a
imitação. 271

As cores e movimentos também se coordenam, se transformam e se


contrastam na mistura estudada entre a cor-luz e a cor-pigmento da cenografia e
dos figurinos:

Enquanto figuras brancas, cinzas e verdes tomavam


outras nuances enquanto se moviam através de áreas de
luzes coloridas que cobriam cada espaço do palco – azul,
verde, vermelho e amarelo.272

270
“A Máscara do Amor, é tirado da ópera de Purcell, Diocleciano. O
libreto é a adaptação por Betterton da peça de Beaumont e Fletcher: A
Profetisa, ou A História de Diocleciano”. Bablet, Denis. Edward Gordon
Craig. Op. Cit. p. 62.
271
Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 62.
272
Innes, Christopher. Op. Cit., p. 60.

152
O efeito do “céu infinito” é repetido e ampliado. Neste espetáculo o tecido
do fundo é preto, permitindo um jogo de cores mais misterioso e mágico entre a
luz do fundo e a luz de frente da gaze e, além da gaze do fundo, Craig acrescenta
duas cortinas de gaze na boca de cena, a primeira pintada com “uma grade com
273
barras cinza escuro” para a cena da “Prisão do amor” e a segunda com
274
“quadrados brancos”. Este efeito, que segundo Christopher Innes deriva de
Iñigo Jones, faz parecer a todos que vêem de frente que as imagens acontecem
dentro das grades ou por trás dos quadrados brancos, pois realiza através dos
efeitos de luz uma justaposição das imagens, como àquela realizada por
sobreposição de transparências. No entanto a gaze da frente separa ainda mais
do que a ribalta as imagens do palco, da platéia, criando uma impressão de
quadro móvel, quase uma pintura em três dimensões.

c. Áxis e Galatéia

275
Em 1902 é a vez da pastoral Áxis e Galatéia . Nesse espetáculo cabe à
luz traduzir um grande contraste entre o clima poético da pastoral e os momentos
de terror e medo representados pela presença do gigante Polifemo.

Aqui Craig faz uso mais uma vez de uma máxima do simbolismo, de que o
poder da imaginação vale mais do que qualquer materialização física. Assim
sendo, em vez de revelar Polifemo, a iluminação o esconde.

A primeira sugestão de sua presença se dá na cena chamada por Craig no


programa de “A Sombra”:

Para uma cena “A Sombra” ele usou o efeito


tridimensional de céu sem limites – um céu azul que vai
escurecendo, passando por um roxo profundo até a base
preta – como um fundo para os amantes que estavam
sentados num círculo de luz vertical rosa (...). Quando
o coro dizia “Veja o monstro Polifemo”, uma moldura de
arame (ou tela) atrás da gaze era iluminada e a

273
Innes, Christopher. Op. Cit., p. 59.
274
Idem Ibidem, p.59.
275
“Depois de Dido e Enéas e A Máscara do Amor, Craig e Martin Shaw (maestro
responsável pela direção musical das três montagens) empreendem montar, nas
mesmas condições, Axis e Galatéia, pastoral em duas partes de John Gay,
música de Haendel” Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 65.

153
impressão de ‘um imponente castelo emerge em um contorno
dourado’276.277

Na primeira aparição “efetiva” de Polifemo ele está coberto por um manto


roxo, na semiobscuridade; quando a luz cresce vemos apenas uma sombra se
agigantar sobre os amantes. Em vez da platéia ver um monstro externo, projeta
seus próprios monstros interiores sobre a sugestão aterradora.

Nestas duas seqüências descritas, Craig aplica o contraste de cores entre


o fundo e a frente, isola os amantes num foco e cria um cenário de luz, num
conjunto que tem no jogo de iluminação entre luz, cor e sombra a sua escritura
expressiva. Cada detalhe é construído cuidadosamente de acordo com a regência
do encenador, que inventa a técnica necessária para manifestar a imagem que
necessita.

Para a difícil cena da morte, onde Axis transforma-se em “Deus da Água”,


Craig não representa nenhum deus visível, apenas tira a personagem de cena e
sugere uma imagem aquática a partir de um jogo de luzes, um “Antigo
truque da pantomima usado por Charles Kean: luz de lâmpadas
com grandes discos perfurados que se moviam na sua frente
278
brilham por trás através de buracos no tecido do fundo”.

Como comenta Arthur Symons a respeito de Axis e Galatéia,

O objetivo de Mr. Craig é de nos transportar para além


da realidade; ele substitui a imagem do objeto pela
imagem que o objeto evoca no nosso espírito (...). O
olho se perde entre as linhas e suas superfícies

276
Por curiosidade de saber se a imagem do castelo emergia como sombra na
gaze ou luz na tela do fundo, fomos à citação original, encontrada (em
francês) no livro de Bablet. Por acharmos interessante como cada tempo
projeta seu mundo na maneira de descrever o que vê ou lê, apresentamos
aqui a mesma cena segundo a descrição da fonte de Christopher Innes: “O
fundo é constituído por uma grande tela azul sombreada e os amantes, Acis
e Galatée, parecem no meio da cena que é iluminada somente por uma luz
vermelha (rouge) dirigida sobre eles. Em seguida, quando o coro os
convida à <contemplar o monstro>, a imagem de um imponente castelo emerge
em um contorno dourado sobre a tela do fundo” Spence, Percy (legenda que
acompanha um desenho) Sphere, vol. 8, n.113, March 22, 1902 in Bablet,
Denis. Edward Gordon Craig, Op. Cit. pp. 67 – 68.
277
Innes, Christopher. Op. Cit., p. 52.
278
Idem Ibidem, p. 52.

154
severas, precisas, e, contudo, misteriosas; o espírito
os sente com facilidade, os aceita com a mesma
facilidade com que aceita a convenção da peça
279
poética...

O emprego de símbolos, como prática de um conjunto visual baseado na


convenção, composto por cores, linhas e luzes é parte fundamental da prática
teatral de Craig.

d. Bethlehen

Bethlehen é uma natividade de Lawrence Housman. Do ponto de vista da


iluminação e sua relação com a cenografia há duas menções a serem feitas.

Primeiro, para a cena da chegada dos Reis Magos, Craig cria uma
procissão que vem da platéia rumo ao palco. Porém para não deixar que a
humanidade dos atores junto ao público quebrasse com a divindade da cena, ele
cria um corredor de gaze e de luz, de forma a manter a “distância” entre um e
outro, entre a idealidade da arte e a realidade humana.

Segundo, para o grande efeito da natividade, Craig resolve através da


iluminação a difícil existência ambígua de cristo como homem e divindade ao
mesmo tempo. O encenador não queria colocar um bebê representando Cristo
porque isso daria um sentido humano à natividade, então ele colocou “uma luz
poderosa no berço e reduziu toda a outra iluminação ao
mínimo, quando Maria levantava o tecido que cobria o berço,
era a luz radiante vinda de dentro que iluminava os rostos ao
280
redor...”.

A divindade foi assim substituída por uma luz divina, parte de uma
iluminação simbolista e divinizante. Bablet escreve que “Na época, nenhum
281
espetáculo antes revelou tal utilização da iluminação” .
Difícil afirmar que tenha sido mesmo a primeira, com certeza não é a última.

279
Simons, Arthur, Studies in seven Arts, London, Archibald Constable and
Company, 1906, p 354 in Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.68.
280
Innes, Christopher. Op. Cit., p. 77.
281
Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.72.

155
e. Vikings

A luz neste espetáculo é principalmente


atmosfera em forma de espaço. Não tem a
variedade de cores e efeitos dos espetáculos
anteriores; este é o mais sintético, mais severo
e também mais misterioso dos espetáculos desta primeira fase de seu trabalho. A
cenografia se organiza em formas geométricas, principalmente o círculo central
(como podemos perceber pelas plantas baixas a seguir). As linhas verticais,
compostas por cortinas e gazes e a luz vinda primordialmente de cima, a pino,
apresentam as figuras humanas pequenas diante da existência, antecipando as
formas de seus trabalhos futuros como as Scenes (Cenas) e os Screens
(Biombos).

Segundo as descrições, críticas e cronistas o espetáculo acontecia quase


sempre na obscuridade, transformando os volumes em massas imprecisas e
sombrias, exceção feita ao terceiro ato que se chamava “Luz” na descrição de
Craig. O contraste sempre presente em suas iluminações, desta vez fica por
conta do ângulo de 90º da geral, que cria sombras e relevo nas formas, assim
como na diferença de temperatura entre a luz fria dos aparelhos elétricos em
relação ao calor das chamas, presentes principalmente no segundo ato: no
braseiro central, no grande candelabro circular suspenso e nas tochas que, nas
mãos dos servos, acompanhavam o diálogo iluminando os atores de perto
quando falavam.

Na primeira cena deste espetáculo Craig radicaliza a gaze da boca de cena


que torna a atmosfera pesada, as personagens parecem esfumaçadas e o
conjunto ganha uma sensação de irrealidade e estranheza, separando de vez a
cena do público. 282 Um crítico da época descreveu assim o efeito:

282
Com a gaze de frente torna-se impossível projetar qualquer luz de
frente (que transformaria a boca de cena em uma parede opaca). A luz
vinda primordialmente de cima fica mais desenhada no espaço. Exatamente

156
Atrás da cortina de gaze fina eles passavam e
desapareciam, como incríveis e estranhos peixes de um
aquário.283

f. Muito Barulho por Nada

284
Temos menos indicações técnicas sobre este espetáculo , citaremos
apenas a iluminação de uma das “cenografias” que reafirma o estilo de Craig. Na
cena da Igreja, nada de paredes, abóbadas, imagens ou vitrais, apenas uma cruz
e um raio de luz colorido, como se vindo do sol atravessando um vitral, projetasse
seu reflexo sobre a cena. Mais uma vez, pela última na Inglaterra285, a iluminação
simbolista de Craig oferece significado, ambiência e movimento ao espaço cênico.

g. O fim de um ciclo e a prática da luz

Nestas primeiras seis encenações podemos perceber que, ao contrário de


Appia, a iluminação é para Craig, antes de tudo, uma prática. É como encenador
preocupado com a unidade do espetáculo e a harmonia dos elementos que ele se
utiliza das luzes, sombras e cores. Nesse sentido, como ele mesmo explicita, não
há como separar a prática da luz da cenografia, uma e outra fazem parte de um
mesmo conjunto de significação visual e, por certo, de encenação.

O que a música é para Appia – manifestação máxima da arte e instrumento


de comunicação direta com a alma – é o conjunto de significação visual para
Craig. A matéria existe para os olhos através da luz e, portanto, transformando a
luz (variando ângulo, direção, intensidade e cor), transfiguram-se também as

como vimos na biblioteca da trilogia Kafka. Quem viu, nunca mais


esquecerá.
283
Innes, Christopher. Op. Cit., p. 86.
284
Realizada às pressas, essa montagem foi ensaiada em vinte e cinco
dias, com uma produção “recauchutada”, para substituir Os Vikings (que
era um sucesso de crítica, porém um fracasso de público), no Teatro
Imperial, alugado por Ellen Terry por uma temporada. Como sempre as
condições de infraestrutura são fundamentais no caso do teatro.
285
Muito Barulho por Nada foi em 1903 a sexta e última encenação de Craig
na Inglaterra, embora ele tenha morrido em 1966, aos 94 anos.

157
características de forma e cor do que se vê em cena, assim como suas relações.
É então a partir da idéia de movimento que Craig orquestra a relação entre as
luzes, as sombras e as cores286 e a matéria, como um dado simbólico de
progressão dramática. Como encenador, Craig sabe muito bem utilizar-se do
visível e suas múltiplas transformações, para atingir através da experiência
sensível, o invisível.

III. UMA NOVA CENA ARQUITETURAL E A LUZ

a. Um novo começo

Nas primeiras encenações, cenários e dispositivos de iluminação tinham


por objetivo imediato revelar os conflitos essenciais das obras montadas. Essa
prática leva Craig a radicalizar suas concepções de estilização simbólica das
formas e de composição de um “Teatro Total,” um conjunto harmônico
orquestrado pelo encenador. Chega então o momento em que Craig exige de si
mesmo essa radicalidade, nem que para isso fosse necessário parar.

Ao mesmo tempo o encenador começa a escrever a respeito de suas


experiências pessoais e sua busca por uma essência da arte do teatro, de forma
a adquirir uma nova consciência sobre o próprio trabalho, ampliada pela reflexão
crítica. Planeja uma escola de teatro, onde todas as técnicas seriam apreendidas,
pesquisadas e pensadas em conjunto. Concentra-se em encontrar uma síntese
dramática a partir de seus desenhos e projetos. Viaja por vários países, onde
entra em contato com profissionais, técnicos e técnicas. Desenha projetos de
encenação para peças de Shakespeare e Ibsen. Estuda e pesquisa.

Suas próximas ações serão pensadas, desenhadas e maturadas por anos.


Craig procura internamente uma síntese poderosa.

b. Steps

286
E também não há como esquecer a importância da sinestesia e da relação
entre as notas musicais e as cores para os simbolistas.

158
É através do desenho que os seus próximos passos se manifestam. Bablet
em seu livro sobre a cenografia (de 1874 a 1914) chama essa fase da pesquisa
287
pessoal de Craig de “Drama do Silêncio” . O encenador e gravurista pesquisa o
movimento inerente à forma, às luzes, aos contrastes. Como nos “Espaços
Rítmicos” de Appia, o próprio desenho propõe um movimento intrínseco, uma
ação dramática interna, uma expectativa.

É nos quatro desenhos a seguir, chamados Steps (Passos), que Craig


manifesta o germe de suas pesquisas futuras. A luz, expressa no papel, anima o
desenho:

287
“Nos queremos envolver o povo com símbolos silenciosos; em silêncio queremos
revelar o movimento das coisas... esta é a natureza da Arte.” Craig, E.G.
“Geometry” The Mask, vol I n.1, mars 1908, pp.1-2 in Bablet, Denis.
Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.147.

159
Podemos perceber que num mesmo espaço “dramático”, fixo, o movimento
e o tempo se contam através das imagens, na sugestão das ações humanas que
povoam esta escadaria, na mudança da luz e dos contrastes. Na primeira
imagem, em que crianças brincam, a imagem é mais clara, há menos contrastes,
as formas se esboçam. Na segunda, um grupo de jovens é puro movimento no
contraste entre seus corpos em contra-luz e o fundo branco, a imagem geral é de
pura expectativa. Na terceira, a oposição entre preto e branco revela seu sentido
implícito, um homem e uma mulher em movimentos opostos, cores e contrastes
opostos, sugerem uma resolução. É, sobretudo, no último desenho que a imagem
e os contrastes tornam-se mais complexos, que os signos potencializam-se em
símbolos, a vida relaciona-se com seu passado e seu futuro, para além da
matéria, as portas em branco no alto espelham-se nas sombras, partidas, da
base, o mistério da existência não se explica, apenas se manifesta nas formas e
luzes do desenho.

Se não considerássemos a iluminação como potência intrínseca da relação


entre luz e matéria, não haveria porque incluir esses desenhos nesse estudo; se
este projeto não significasse na obra de Craig uma síntese do sentido do
dramático e do movimento intrínseco às formas e seus contrastes (que inclui a luz
em si), também não haveria por quê. A ação dramática está contida aqui nas
próprias formas e contrastes.

Segundo a análise de Bablet sobre o desenvolvimento do teatro de Craig:

Desde 1905 The Steps constitui a primeira etapa de


uma pesquisa fundamental de Craig em matéria de
cenografia: conjugar arquitetura e movimento, unicidade
e multiplicidade, permanência e variabilidade 288.

Como artista idealista a relação entre essência e tempo, entre idéia e


manifestação sensível é central em seu processo de depuração artística. Como
Appia é no movimento que Craig encontra a sua síntese, a essência do teatro;
mas ao contrário de colocar o ator no centro da cena, é na convenção e no

288
Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914.
Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.
322.

160
movimento mecânico das formas que ele descobre o caminho para suas
pesquisas futuras

c. Scenes

Eu desejo descartar a cena pictural,


mas conservar em seu lugar a cena arquitetônica.
289
Edwar Gordon Craig

No artigo Geometry, escrito por Craig no primeiro número da revista The


Mask, Craig conclama a união das artes da musica, arquitetura e movimento. É
para onde caminham suas pesquisas, desenhos e projetos.

290
Sebastiano Sérlio, Architettura Edward Gordon Craig, Scenes

289
Craig, E. G. Daybook I, p. 77 (3/02/1907) in Bablet, Denis. Edward
Gordon Craig. Op. Cit. p.155.
290
Innes, Christopher. Edward Gordon Craig A vision of the Theatre. Op.
Cit.p.178.

161
Inspirado pelo estudo do Livro Architettura, de Sebastiano Serlio, onde o
arquiteto renascentista estuda a projeção de volumes a partir da planta baixa,
dividindo o palco em um diagrama de linhas, rumo ao ponto de fuga (ver imagem
com os diagramas de Sebastiano Serlio), Craig imagina um dispositivo
cenográfico único e móvel, uma cena arquitetural. Nela o palco seria dividido em
cubos móveis, por baixo do nível do palco, que poderiam movimentar-se
mecanicamente, elevando-se do solo e formando um conjunto arquitetural de
volumes transformáveis.
291
Não se trata, portanto, de uma cenografia, mas um lugar, um palco de
um novo tempo da história do teatro, aquela do teatro do futuro. Um espaço
móvel, potencialmente pronto para transformar-se em muitas cenografias, uma
para cada espetáculo, cada ato, ou mesmo mover-se constantemente à vista do
público, como um dança das formas, análogo ao movimento da música. Como
revela Craig ao apresentar seus desenhos para este projeto na exposição de
Florença:
A coisa mais importante é que este movimento, que
é a base desta arte da revelação, deve ser traduzido
através de formas inanimadas. Nós construímos um
instrumento. Graças a este instrumento o artista é capaz
de tornar o espectador sensível à lei que controla nosso
sistema – a lei da mudança. (...) O espírito e o
pensamento do artista passando através desse instrumento
devem suscitar formas sucessivas, transformáveis e
efêmeras, que mudam sem cessar, mesmo
292
imperceptivelmente.

As formas móveis, mecânicas, descem e sobem apenas em movimentos


verticais.

A luz oferece outras possibilidades de movimentos, quebra os ângulos


retos das figuras, projeta sombras, cores, curvas. A relação entre os volumes

291
“Para ele (Craig) cada era da história do teatro se define por um tipo
de cena (ou palco) bem precisa: o teatro Greco-romano é dominado pela
unidade arquitetural da cena, a igreja é o lugar teatral privilegiado na
Idade Média...” in Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.156.
292
Catálogo Etchings being Designs for Motions by Gordon Craig, Florence,
1908, p. 8 in Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.152.

162
arquiteturais e a iluminação é fundamental para a idéia do conjunto, porque a luz
anima as formas inanimadas e povoa o espaço, transformando-os para além de
seus movimentos mecânicos, proporcionando-lhes ambiência e atmosfera,
oferecendo ao todo sua própria alma, juntamente com a música.

A confluência entre a arquitetura móvel, a música e a luz (assim como, em


breve, as imagens projetadas), como um conjunto polifônico, formam o que
depois virá a ser a “Arte Cinética” ou “Cinética Cênica”.293 É para onde caminha a
pesquisa e o trabalho cênico de Piscator e, principalmente, Svoboda, que cria
espetáculos de formas e projeções. Sem nenhuma possibilidade técnica e de
infraestrutura para transformar esse projeto em realidade em 1907, Craig compõe
uma série de gravuras cênicas, chamadas por ele de Scene.

d. Screens e a luz

294
“O palco deve agir”
Edward Gordon Craig

É a partir do mesmo impulso e concepção teatral que fez Craig construir o


projeto de ‘Scenes’, que ele desenvolve o seu próximo passo na composição da
“Cena Arquitetural”: também um espaço único, com estruturas que podem se
mover não apenas verticalmente, mas nos dois sentidos e, o que faz grande
diferença, com uma técnica passível de ser posta em prática imediatamente: Os
Screens.

Os Screens são como painéis ou biombos totalmente móveis. São feitos de


estruturas leves com tecidos claros, como velas de um navio, mas retangulares.

293
Sobre a “Cinética Cênica” vide KOURIL, Miroslav. La Cinétique Scénique
in Le Lieu Théatral dans la Société Moderne. Paris: Editions du Centre
National de la Recherche Scientifique, 1961, pp. 211-223.
294
Craig. E. G. Scene in Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de
Théâtre De 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la
Recherche Scientifique, 1989, p. 322.

163
Mais do que as Scenes, a luz é pensada como parte integrante do movimento
potencial dos Screens.

Sob a ação da luz, os Screens podem mudar de cor, servir de tela para a
projeção de sombras e de imagens ou mesmo ganhar transparência. Sua forma e
movimento, como persianas, também permite que massas de luz passem entre
eles, pelas laterais ou diagonais do palco. Assim a relação entre essas formas e a
luz possibilita uma infinidade de movimentos e atmosferas que podem
acompanhar a progressão dramática de qualquer peça. Não é possível para Craig
pensar os Screens sem a mobilidade da luz:

“A relação entre a luz e essa cena é semelhante à


relação entre o arco e o violino ou entre a pena e o
papel.” 295

Nesta relação entre o espaço e a luz, Craig inclui a movimentação dos


atores, já que para ele “toda teoria que procura definir o emprego da luz em
relação à cena sem definir o emprego da luz em relação ao jogo do ator é sem
valor”.296 Não há unidade sem que todo o movimento sobre o palco seja pensado
como um todo.

A engenhosidade dos Screens permitirá a Craig transformar totalmente os


espaços com poucos movimentos. Para estudar essas relações espaciais Craig
constrói maquetes (desde miniaturas até projetos em tamanho natural) onde
experimenta movimentos e formas para Otelo e Mercador de Veneza, entre outros
espetáculos. Nestas experiências ele sempre utiliza lâmpadas elétricas para
completar o efeito, como em um pequeno laboratório de pesquisas cênicas.
Como podemos apreender pela descrição que segue, trecho da carta de um
arquiteto italiano que visitou Craig em Florença e viu uma demonstração prática
dos Screens em maquete:

E os elementos que Craig usa para suas criações


não são nada ou quase nada: alguns biombos e algumas
lâmpadas elétricas. Ele dispõe sobre a cena de seu
pequeno teatro (não maior que um teatro de marionetes
para crianças) seus minúsculos biombos, e, enquanto você

295
Idem Ibidem, p. 325
296
Craig, E. G. Scene in Bablet, Denis; Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.
158.

164
presta atenção a um rápido movimento de mãos, os arranja
de certa maneira: um raio de luz elétrica passa entre
esses simples retângulos de cartão e o milagre está
completo: você vê uma cena grandiosa. (...) Craig é um
grande pintor, um grande arquiteto, um grande poeta. Ele
pinta com a luz, ele constrói alguns retângulos de
cartão, e com a harmonia de suas cores e de suas linhas
ele cria sensações profundas como somente os ancestrais
da poesia souberam fazê-Lo.297

Os Screens estréiam em cena no teatro de Yeats, o Abbey Theatre. Em


suas entrevistas sobre a “invenção de Craig” ele enumera várias vantagens, entre
elas o fim do realismo, as possibilidades infinitas de manejo do espaço, a
importância dada ao ator nesses espaços esquemáticos e as possibilidades dos
Screens em relação à luz. Além da relação direta entre os Screens e a
iluminação, Yeats cita o fato de que, sem os cenários suspensos e amontoados
nas coxias o espaço se abre para a livre utilização da aparelhagem de iluminação
em diversos locais e ângulos privilegiados.

Craig usa sua própria “invenção” pela primeira vez na montagem de


Hamlet, para o Teatro de Arte de Moscou.

e. Hamlet de Moscou

A encenação de Craig do Hamlet em Moscou foi combinada e preparada


ao longo de três anos298. Este trabalho marca o encontro entre Craig e
Stanislavski e envolve uma discussão capital sobre suas concepções de teatro, os
pontos fundamentais em comum e as grandes diferenças entre suas práticas,
tornam essa experiência muito mais do que um espetáculo, mas a parceria

297
Carta do arquiteto Filiberto Scarpelli a Giovanni Grasso (4/12/1913)
citada por Bablet, Denis in Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 159.
298
De 1º de novembro, quando Craig chega a Moscou para conhecer
Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou, até a estréia em 8 de Janeiro
de 1912. O processo de construção do espetáculo foi realizado em etapas,
marcadas por quatro temporadas de Craig em Moscou: a primeira para
combinar o trabalho e suas bases, a segunda para um longo trabalho de
mesa, a partir do qual Craig desenhou a encenação e os projetos de
cenografia, figurinos e iluminação, no terceiro tiveram início os ensaios
e a produção, no último tudo se uniu para os ensaios finais e a estréia.

165
efetiva, a fricção artística concreta entre as duas grandes linhas de pesquisa no
teatro do século XX: o naturalismo impressionista de Stanislavski em busca da
expressão individualizada dos estados da alma e o simbolismo de Craig, em
busca da síntese e da convenção 299.

No que tange à estética visual do espetáculo, de que a iluminação é parte


integrante, constituiu um grande desafio técnico. Tanto a montagem dos Screens
quanto a iluminação de Hamlet exigiram muita dedicação e pesquisa das equipes
de cenotécnicos e eletricistas do TAM, liderados por Mardjanov. A forma de
iluminar do TAM (com ribalta e gambiarras, como cita Craig no “Segundo diálogo
300
entre o amador de teatro e o encenador” ), não condizia com as necessidades
do encenador e aparelhos especiais de iluminação (possivelmente refletores
individualizados com lâmpadas elétricas e conjunto ótico, como os refletores
plano-convexos, que são fabricados e vendidos desde 1910) foram
encomendados, Mardjanov foi a Berlim para pesquisar os dispositivos de
iluminação elétrica e aperfeiçoamentos técnicos realizados pelos alemães (que
Craig já havia visto em curso em 1908). Esses novos “refletores” são instalados
para fora da boca de cena, visíveis para a platéia, pendurados em uma vara extra
sobre a orquestra. Provavelmente tratava-se da luz geral vinda de frente em
substituição às ribaltas.

A teatralidade da montagem previa que todos os movimentos do cenário


acontecessem à vista da platéia, sem cortina, apenas com um movimento da
iluminação separando um tempo e um lugar do outro, para sublinhar ainda mais a
idéia de representação alguns contra-regras seriam vistos arrumando as luzes e
os cenários. Mas a movimentação dos Screens não se fez tão simples como o
esperado e foi necessário o uso da cortina.

Outro exemplo da teatralidade explícita da montagem era expresso pela


iluminação da cena do Teatro dentro do teatro, quando os Atores representam
para a corte a peça “A Morte de Gonzaga”, “seus rostos eram intensamente

299
“Face à Stanislavski que permanece ligado aos princípios da “ilusão
realista”, Craig propõe um teatro fundado sobre a convenção orquestrada e
reconhecida como tal. Aqui sem dúvida reside a causa profunda de seus
desacordos. E é atrvés dela que Craig anuncia as futuras realizações do
teatro russo, aquelas de Meyerhold, de Taïrov e de Vaghtangov”. Bablet,
Denis in Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 180.
300
Craig, E.G. Da Arte do Teatro, Op. Cit. p.195.

166
iluminados por luzes manuais posicionadas a sua frente na ponta de longos
suportes. Acima do sofá onde o Rei dormia havia uma lua recortada, pendurada a
uma corda entre dois postes.” 301.

Em consonância com sua idéia de uma síntese simbólica que pauta todo o
conjunto da encenação, Craig “simplifica o drama, sublinhando as oposições
302
fundamentais” , dessa forma para o encenador “Hamlet não é uma crônica
histórica, nem uma tragédia romântica, mas um drama simbólico onde se opõem
princípios. (...) Mas estes princípios não são abstrações, sua oposição se encarna
303
em um drama que coloca face a face um homem e um universo” . Hamlet está
só em meio a uma corte voltada para a riqueza material e degenerescência
espiritual. Nessa luta “Hamlet é a vítima de um sacrifício purificador” 304, a morte é
seu signo, sua ação. Desta forma esta oposição fundamental entre Hamlet e a
corte é o ponto central da concepção do cenário, dos figurinos e da iluminação.

301
Innes, Christopher. Op. Cit., p. 155. Este exemplo é caro para mim,
porque na montagem de Ham-Let do Teatro Oficina (onde fui assistente de
direção e iluminadora) uma das características principais da luz eram as
luzes móveis que perseguiam Hamlet, contracenando com as gerais de forma
a dar a medida do que era público e o que era privado no espetáculo.
302
Bablet, Denis in Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 172.
303
Idem Ibidem, p. 172.
304
Idem Ibidem, p. 172.

167
As cenas da corte são todas douradas, formando uma massa uniforme, um
mundo indistinto de ouro e aparência. Na primeira cena da corte, a festa de
casamento e coroação do novo Rei, por exemplo, um grande manto dourado
cobre o palco, os Screens e os figurinos também são dourados formando um
mesmo universo que brilha com os “feixes de luz móveis que parecem resvalar na
superfície deste mundo degenerado, dando ao ouro reflexos sinistros e
305
ameaçadores” , em oposição à figura de Hamlet, só, de negro, no primeiro
plano em meio a uma região sombria. Dividindo fisicamente esses dois mundos
incompatíveis “uma leve cortina de tule negro, ou gaze, era esticada atrás dele e
o distinguia nitidamente dessas figuras douradas drapeadas, dando a elas um
306
efeito sombrio” . Na cena do famoso solilóquio do “ser ou não ser”, Hamlet está
em pé atrás do tule com uma grande sombra atrás dele. “Nos Screens laterais,
sombras estão continuamente se movendo ao seu redor e com ele, tremeluzindo
307
como vapores negros” . Nas cenas seguintes essa “sombra enorme” continua
ao seu lado, acompanhando Hamlet, como se fosse a sua própria sombra. Os
Screens têm duas cores apenas: dourado e cinza. Assim a luz terá por tema
principal esta mesma oposição entre o brilho e o movimento dos raios sobre o

305
Idem Ibidem, p. 176.
306
Innes, Christopher. Op. Cit., p. 152.
307
Idem Ibidem, p. 152

168
dourado e as zonas sombrias e misteriosas do palco, onde está Hamlet, de onde
aparece o espírito de seu pai, o Fantasma do Rei Hamlet. Um mundo dourado e
brilhante que coloca em destaque o ponto negro, o mistério do espírito em cinza
ecoa nas sombras que acompanham Hamlet como sua própria morte, inevitável.
Como no exemplo de Macbeth, a oposição fundamental é entre a matéria e o
espírito; o espírito vence, ou vinga, mesmo que seja em uma catarse purificadora,
a morte.

IV. A RELAÇÃO ENTRE A LUZ E A MATÉRIA

A luz se revela na matéria e a matéria se manifesta aos olhos através da


luz. É nesse embate visível entre “rocha” e “nuvem” que Craig constrói seus
desenhos, projetos, maquetes e espetáculos.

A nudez do palco, o despojamento dos detalhes e objetos e a estruturação


arquitetônica do espaço através da síntese das formas fazem com que os
elementos escolhidos sejam fundamentais e consigam expressar a essência do
espetáculo, como num Hai-Kai visível.

Cabe à iluminação uma contracenação efetiva com a matéria de modo a:


criar um jogo de luzes e sombras que conferem relevo e profundidade à estrutura
de volumes; manifestar e criar progressão dramática no jogo simbólico das cores
da cenografia e dos figurinos e da própria luz; revelar e esconder regiões do
palco, dando um movimento intrínseco ao conjunto; explicitar o conflito do drama
através dos contrastes entre os elementos que o compõem como o claro e
escuro, as linhas horizontais e verticais, peso e leveza, reflexão e absorção, brilho
e opacidade.

A luz confere movimento à forma, tanto no aspecto do visível como do


simbólico. O movimento é a essência mesma do teatro. A luz em movimento
contracena com a forma em movimento e o jogo dos atores. Luz e forma são, no
desenvolvimento do sentido do dramático na encenação de Edward Gordon
Craig, um mesmo meio de expressão e, como tal, actantes do espetáculo da nova
“Arte do Teatro”.

169
Neste momento da história do teatro, os simbolistas da cena entendem os
olhos como janela da alma e, portanto, as iluminações como escritura para uma
manifestação visível da idéia. Assim quando Margot Berthold chama Craig de
308
“Simbolista da luz, isto é, iluminador” é porque nomeia Craig como um artista
da visão e a iluminação como um dos seus principais instrumentos de linguagem.

308
“Craig concebia seu palco não apenas na qualidade de simbolista da
luz, isto é, iluminador, mas também, na mesma medida, como arquiteto”
Berthold, M. História Mundial do Teatro. São Paulo: Ed Perspectiva, 2003, p.
471.

170
CAPÍTULO 10
A REVOLUÇÃO ALEMÃ NA LUZ
UMA REINVENÇÃO DA LUZ PARA NOVAS RELAÇÕES ESPACIAIS

10.1 O KÜNSTLER-THEATER DE MUNIQUE


Peter Behrens, Max Littmann, Fritz Erler e Georg Fuchs

A idealização e construção do Künstler-theater de Munique, “brevemente,


resume os objetivos correspondentes às idéias emitidas por Peter Behrens, Georg
Fuchs, Max Littmann, o arquiteto do teatro, e Fritz Erler, seu primeiro cenógrafo”
309
.

Esse grupo de reformadores do teatro alemão (sobretudo Georg Fuchs) e


sua experiência prática no Künstler-theater, têm grande significado para a história
do espetáculo no século XX, por suas idéias revolucionárias sobre o sentido e a
forma do teatro e seu espaço, que, assim como a obra de Edward Gordon Craig e
Adolphe Appia, influenciaram vivamente encenadores como Max Reinhardt e
Vsévolod Meierhold.

No livro Feste dês Lebens und der Knust (Festa da Vida e da Arte), de
1900, Peter Behrens, além de condenar o ilusionismo, nomeia o espectador como
participante do ato teatral. Para isso propõe um espaço cênico onde o Proscênio
avança para a platéia:

O teatro à italiana separa a cena da sala: ele


[Peter Behrens] deseja uni-los por um plano inclinado.
(...) por isso o proscênio, estreitamente ligado à sala,
deve, a seus olhos, ser o elemento essencial de uma cena
que ele deseja mais larga que profunda afim de colocar
em relevo o ator, seus movimentos, as linhas e as cores
móveis do espetáculo.310

309
Bablet, Denis . Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a
1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique,
1989, p. 360.
310
Idem Ibidem, p. 360.

171
Influenciado diretamente por Peter Behrens, Georg Fuchs escreve
Shaubühne der Zukunft, (O Teatro do Futuro, 1905) e Die Revolution dês
Theaters (A Revolução no Teatro, 1909). É a partir da pesquisa histórica que
Fuchs desenvolve sua concepção de espaço cênico, baseada no teatro da
antiguidade e oriental. Para ele o objetivo do teatro é, como na antiguidade, criar
uma emoção comum, uma festa pública:

A arquitetura do teatro deve, portanto, favorecer o


nascimento da emoção coletiva, colocar o ator em relevo,
unir o público ao ator como foram na origem, como eram
no teatro elisabetano, nos antigos teatros franceses,
italianos e alemães, onde os espectadores ocupavam os
dois lados do proscênio, como ainda fazem no teatro
japonês.311

Fuchs propõe uma nova estrutura espacial, a cena em relevo, onde, ao


contrário da cena à italiana com seu efeito de perspectiva ilusionista, dispõe em
um mesmo plano os elementos essenciais da encenação, incluindo os efeitos
312
ópticos e sonoros, trazendo-os ao máximo para perto do público. Da mesma
forma que Peter Behrens, Georg Fuchs faz do proscênio o principal lugar de
representação, o plano onde os elementos se encontram, “o lugar material de
onde o movimento dramático se transforma em movimento espiritual dentro da
313
alma da multidão” , de onde os atores se destacam, como um baixo-relevo da
antiguidade.

Ele propõe, então, uma arquitetura em camadas, que podem ser usadas
em conjunto, ou separadamente, em palcos cada vez menos profundos. Assim o
arquiteto Max Littmann constrói o Künstler-theater de Munique com um palco
divido em três espaços cênicos distintos, com funções diferentes:

1. O proscênio, onde acontece o encontro entre a cena e a platéia.


Principal lugar de representação. Cercado de público também pelas

311
Fuchs, Georg, Die Schaubühne der Zukunft apud Bablet, Denis.
Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Paris: Editions
du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p. 362.
312
BATY, Gaston e CHAVANCE, René. El Arte Teatral. Trad. Juan Jose
Arreola. México: Fondo de Cultura Económica, 1951, p. 250.
313
Fuchs, Georg; Die Revolucion des Theaters apud BATY, Gaston e CHAVANCE,
René. El Arte Teatral. Op. Cit. p. 250.

172
laterais. Para aproximar ainda mais a platéia da representação Littmann
substitui a ribalta por luzes vindas da frente e de trás deste primeiro
espaço, dispostas em uma “ponte móvel que suporta um equipamento
de luz completo e que pode ser levantado ou abaixado conforme a
necessidade. Quando o euipamento está completamente abaixado e as
cortinas estão levemente fechadas, as dimenções do palco são
314
consideravelmente reduzidas” . Nas laterais, ao fundo do primeiro
espaço, duas torres quadradas com uma porta e uma janela cada,
semelhante ao primeiro plano do palco do teatro renascentista.

2. Uma cena média equipada com estruturas cênicas móveis (muros ou


cortinas) que abrem ou fecham o espaço, pelas laterais, dividindo ou
agrupando os palcos.

3. Uma cena de trás, com uma tela de fundo iluminada por “uma
iluminação de cinco cores descendo das varas, e ao pé da cena de trás,
surge de uma angulosa e grande escotilha” 315.

Apesar dos três planos, Georg Fuchs propõe que não se utilize o fundo
para criar uma ilusão de profundidade, nem telas pintadas com efeito realista. Em
conseqüência, a idéia de Littmann para essas estruturas cênicas, ao mesmo
tempo fixas e móveis, é indicar o lugar da ação por meio de uma “cenografia
316
simplificada e estilizada” . Como no teatro do Renascimento, com algumas
modificações a partir de uma estrutura fixa, é possível criar todos os espaços
necessários à fábula. A grande diferença proposta para este novo espaço não
está em sua estrutura específica, mas na recusa do ilusionismo e, principalmente,
o conceito de que os elementos da cena, incluindo cenários e luzes sejam, em
sua simplicidade, assumidamente teatrais. Esse ponto faz toda a diferença, Fuchs
propõe explicitamente a “reteatralização do teatro”.

314
Robert Brussel. “La saison à Munich – le Künstler-Theater”. Le Fígaro,
233, 20/08/1908 in Theatre in Europe: a Documentary History – Naturalism
and Simbolism in European Theatre 1850 – 1918. Op. Cit. p. 179.
315
“una iluminacion de cinco colores desciende de las diablas, y al pie
de la escena trasera, surge de um angosto y largo escotillon” (rever
tradução)BATY, Gaston e CHAVANCE, René. El Arte Teatral. Trad. Juan Jose
Arreola. México: Fondo de Cultura Económica, 1951, p. 250
316
Max Littmann, Das Münchener Künstlertheater apud Bablet, Denis.
Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Op. Cit. p. 364.

173
O Künstler-Theater de Munique estréia com o Fausto, de Goethe, com
cenografia e dispositivos cênicos de Fritz Erler. Em consonância com Georg
Fuchs, ele pretende que o espaço cênico se revele enquanto tal e por sua
estilização exponha o “seu caráter de representação” 317.

Segundo o próprio cenógrafo caberá à iluminação ser o segundo fator na


produção de efeitos cênicos:

Toca a ele suscitar no público, pela força da iluninação,


como em céu aberto, cada uma das impressões queridas pelo poeta,
agitado e pesado, alegre e sedutor, da manhã, do meio-dia, da
tarde, da noite.318

A estrutura dos três espaços separados permite a Erler trabalhar com


iluminações diferentes em cada um dos planos, assim, enquanto os atores são
plenamente iluminados no proscênio, ele tem liberdade de criar climas e
atmosferas luminosas misteriosas na parte de trás e uma luz que desenha os
poucos elementos da cenografia no plano do meio, sem que uma luz interfira na
outra. Para deixar essas atmosferas livres e sugestivas de forma a provocar a
imaginação da platéia ele não usa paisagens pintadas, apenas dois panos de
fundo, um branco e outro preto, animados e coloridos pela iluminação. Então, se
no primeiro plano ele usa os elementos propostos por Fuchs para a “cena relevo”,
por outro lado ele sobrepõe planos, não de forma realista com o objetivo de criar
uma ilusão perspectiva, mas com três planos de imagens diferenciadas. Assim
temos ao mesmo tempo, a luz “para ver”, a luz ativa que desenha o espaço e a
luz das atmosferas, justapostas por camadas, num recurso técnico absolutamente
novo e de efeito épico e teatral.

Georg Fuchs leu a obra de Craig e Appia, Craig visitou o Künstler-Theater


de Munique, que muito o influenciou; Max Reinhardt por sua vez inspirou-se na
obra teórica de todos eles, assim como Meierhold. Trata-se de uma teia de
influências e pesquisas cênicas que, em suas mil faces, se baseia em alguns
objetivos comuns: destruir o ilusionismo naturalista, assumir a convenção da
linguagem teatral e “reteatralizar o teatro”, retomar a força simbólica do teatro e,
inspirados pela origem ritual e festiva da arte cênica, unir, de várias formas, a
317
Fritz Erler, “La Réforme Scénique au Théâtre dês Artistes de Munich”
in Mercure de France, 1/02/1910 apud Bablet, Denis. Esthétique Générale
du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Op. Cit. p. 365.
318
Idem Ibidem, p 366.

174
cena à platéia, que participa de uma ação comum e pública. Como todo
movimento artístico tem um desenvolvimento plural e é difícil e provavelmente
desnecessário de ser desenredado. Escolhemos aqui analisar o trabalho de
alguns desses encenadores como ícones de um movimento amplo de
“reteatralização do teatro”, que tem como conseqüência direta a assunção da
iluminação como linguagem explícita da encenação moderna. Esse
desenvolvimento encontra eco imediato no trabalho de Max Reinhardt, um
experimentador-símbolo desse período, porque transitou por vários movimentos e
bebeu de todas as influências de seu tempo.

175
10.2 MAX REINHARDT e a luz das “catedrais cênicas”

Max Reinhardt nunca se dedicou à reflexão teórica, nem procurou


conceber um estilo único de teatro, ao contrário, foi um experimentador voraz. Ele
colocou em cena vários gêneros de dramaturgia, diferentes estilos de
interpretação, inúmeras possibilidades de relação entre os elementos que
compõem o espetáculo, formas, estilos e ocupações espaciais inéditas. Sempre
usando da iluminação como um importante instrumento da encenação.

Como ator, foi formado pelo naturalismo de Otto Brahm, fundador do Frëi
Buhne de Berlim319. Jovem encenador desenvolveu um estilo impressionista,
onde coube à iluminação dar vida à ambiência e criar atmosferas intensas, cheias
de mistério ou deslumbramento. Deixou-se inspirar pelas idéias simbolistas de um
teatro de sugestão: empregou a cenografia pictórica, não realista, e, na
seqüência, fortemente influenciado por Appia e Craig, partiu para a cenografia
arquitetural320, animada pelo movimento da luz. É considerado também como um
dos precursores do teatro expressionista alemão, tanto por suas montagens
pioneiras de textos expressionistas como pela forma como utilizou a iluminação
em seus espetáculos, expressando a interioridade de forma visível, separando
321
diferentes planos de existência e transfigurando realidades . Max Reinhardt
passou, portanto, de uma maneira ou de outra, pelos principais movimentos
teatrais de seu tempo (naturalismo, impressionismo, simbolismo e
expressionismo) sem, no entanto, fixar-se em nenhum deles, colhendo de cada

319
Com quem começou a trabalhar como ator em 1894 no Deuthsches Theater
de Berlim.
320
“...veio a ser um dos expoentes do impressionismo e do simbolismo,
traduzindo em termos cênicos muito daquilo que fôra ideado por Appia e
Gordon Craig” Rosenfeld, Anatol. Teatro Alemão. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1968. p. 116.
321
“... a encenação de O Filho (Der Sohn), de Walter Hasenclever, no
Deuthsches Theater de Berlim, em 1918, pode ser considerado o correlato
cênico do Grito Expressionista de Edvard Munch, composto em 1893. A
estréia define o diretor alemão como um dos primeiros representantes da
encenação expressionista, especialmente pelo emprego de procedimentos
inéditos de iluminação e organização do espaço cênico” Fernandes, Silvia.
Encenação Teatral no Expressionismo in O Expressionismo (Org. Jacó
Guinsburg) São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002, p. 231.

176
um os elementos de que se serviu para aumentar o poder expressivo de seus
espetáculos. Por tudo isso é definido como “o homem do ecletismo” 322.

Mas tamanho ecletismo tem alguns objetivos comuns, aos quais foi
extremamente fiel e que nortearam todas as suas experimentações. O primeiro
deles é a unidade da obra teatral: Reinhardt apresenta em cada encenação um
conjunto orgânico, para o qual orquestra com rigor conceitual todos os elementos
do espetáculo. Também se manteve constante à importância do ator como cerne
do teatro. Outro importante eixo desenvolvido em seu trabalho e que, para além
das diferenças imprime uma identidade forte ao coletivo da obra, está no impacto
da significação visual em seus espetáculos, da qual fazem parte admirável
pesquisa e desenvolvimento técnico, incluindo de forma decisiva cenografia e
iluminação cênica.

Max Reinhardt utilizou todos os recursos tecnológicos necessários para


envolver a platéia física e emocionalmente em suas encenações: palco giratório,
ciclorama, uso simbólico das cores na iluminação e projetores de efeito,
323
"Maravilhando o público com os efeitos rembrantianos da sua iluminação" .

A radicalidade de suas experimentações encontrava-se, principalmente, na


busca incansável de encontrar meios técnicos e estéticos de reelaborar a
encenação para a necessidade de expressão que cada peça exigia. Assim, para
melhor expressar o sentido de uma obra específica, ele transformava
estruturalmente o espaço cênico, os dispositivos de iluminação e a maneira de
iluminar, e, inclusive, o estilo de interpretação, reconstruindo toda a idéia de
espetáculo.

Tornou-se, por isso, um dos grandes transformadores do espaço cênico do


século XX. Não apenas através da idéia de cenário, mas também na constituição
de novos espaços cênicos, para além do palco italiano. Max Reinhardt foi um
precursor das pesquisas cenográficas que abandonaram de vez o palco italiano,
ao explorar espaços que traziam em si uma significação intrínseca ao conceito do
espetáculo. Para cada nova montagem, ele procurava encontrar ou criar um novo
espaço cênico que sintetizasse o sentido do espetáculo, não apenas do ponto de
322
Bablet, Denis in Edward Gordon Craig, Op. Cit. p. 108.
323
Rosenfeld, Anatol. Teatro Alemão. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1968. p.
116.

177
vista visual, mas, sobretudo, propondo uma nova relação entre o espetáculo e a
platéia, onde esta era incluída no jogo da cena, fundindo ficção e realidade, atores
e público.

Por fim, na medida em que os espaços cênicos tornaram-se mais


complexos, misturando cena e espectadores, envolvendo a platéia por todos os
lados, coube à iluminação uma nova função, a edição dos diferentes planos da
encenação no tempo e no espaço. O jogo de luzes, então, passou a ter uma
função estrutural de orquestração do movimento do espetáculo, revelando ou
escondendo partes de um quebra-cabeças, conduzindo os olhos dos
espectadores pelos vários espaços, seguindo a ação, editando a seqüência de
cenas, incluindo ou restringindo a presença do público no grande espaço da
encenação.

Como conclui Anantol Rosenfeld, Reinhardt foi ao mesmo tempo um dos


grandes expoentes da "reteatralização do teatro", sem deixar de ser, no fundo, um
324
“mestre do ilusionismo” .

NOVAS LUZES PARA NOVOS ESPAÇOS

“Tenho dito que a arte de iluminar uma cena consiste em


pôr luz onde queremos e tirá-la de onde não a queremos" 325
Max Reinhardt

Max Reinhardt estréia como diretor no cabaré literário, onde se reúne a jovens
atores formando em 1901 um grupo chamado “Som e Fumaça”. Essa estréia em
cabaré permite o uso de linguagens misturadas, luzes coloridas com um
movimento mais livre e fragmentado, sem o compromisso com qualquer regra
pré-estabelecida de procedimento técnico, em espetáculos compostos de
pedaços que misturam danças, cantos e paródias com teatro:

As apresentações regulares em cabarés no centro de


Berlim incluem números musicais, esquetes e paródias que

324
Rosenfeld, Anatol. Teatro Alemão. Op. Cit. p. 118.
325
Citado por Robert Edmund Jones, assistente de Max Reinhardt por dez
anos, no artigo “A um Jovem Decorador Teatral - Luz e Sombra” in O Teatro
e sua Estética. Lisboa: Editora Arcádia, 1964, p. 320.

178
se alternam a apresentações de autores modernos como
326
Strindberg e Wedekind.

Em um texto profético de 1901, Max Reinhardt já cita o desejo de ter vários


espaços, para diferentes tipos de espetáculo, um pequeno teatro de câmara para
autores novos, um grande para a apresentação de clássicos e um terceiro, maior,
em forma de anfiteatro:

Um enorme teatro para a grande arte de efeitos


monumentais, uma sala para festivais, livre do
cotidiano, uma casa de luz e consagração, no espírito
dos Gregos. 327

Neste mesmo texto faz uma profissão de fé à manifestação da alma


328
humana no teatro, mas de forma especificamente teatral “cheia de cor e luz” e,
ainda, à sua autonomia e especificidade:

Para mim o teatro é certamente mais do que uma arte


auxiliando outras artes. Há apenas um objetivo no
teatro: o teatro. E eu acredito num teatro que pertence
ao ator.329

Começa por adaptar um auditório para a montagem de novos autores. Este


pequeno espaço estréia em outubro de 1901, inicialmente chamado de Schall u.
Rauch (Som e Fumaça) recebe em agosto de 1902 o nome de Kleiness Theater
330
(Teatro Pequeno) . Em carta a Bertohld Held sobre a reforma e instalação de
aparelhagem técnica neste espaço, Max Reinhardt cita a importância da
iluminação para suas intenções estéticas:

326
Fernandes, Silvia. Encenação Teatral no Expressionismo in O
Expressionismo (Org.Jacó Guinsburg) São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002, p.
232.
327
Reinhardt, Max. Trecho de texto do encenador de 1901, in Theatre in
Europe: a Documentary History – Naturalism and Simbolism in European
Theatre 1850 – 1918. Edited by Claude Schumacher. New York: Cambridge
University Press, 1996, p. 172.
328
Idem Ibidem, p. 170.
329
Idem Ibidem, p. 170.
330
Fernandes, Silvia. Encenação Teatral no Expressionismo. Op. Cit. p.
232.

179
As sombras da ribalta podem talvez sugerir a capa
do bobo. (...) no desenho do palco certifique-se
cuidadosamente que mudanças rápidas de luz sejam
possíveis, que haja o máximo de espaço cênico possível
para cenas de multidões (como na Orestéia) e que
mudanças de cena no escuro sejam possíveis com as
cortinas abertas. Acima de tudo, a iluminação deve ser
flexível, muitas cores e também focos. A iluminação
deverá substituir cenários, que inicialmente deveremos
dispensar inteiramente. 331

Neste espaço a luz deve, portanto, ser flexível o bastante para substituir
cenários, em uma prática de síntese tipicamente simbolista. A mágica teatral
advinda das cores e movimentos da luz que farão a fama de Reinhardt já estava
presente desde o início. Neste espaço o encenador dirige, entre muitos outros,
Górki (No fundo), Strindberg (Crimes e Crimes), Shakespeare (Sonho de Uma
Noite de Verão), Oscar Wilde (Salomé), Wedekind (O Espírito da Terra).

Como Reinhardt tem uma produção incrível tanto no que tange à diferença,
quanto à quantidade das encenações, citaremos apenas algumas, as mais
significativas de um período ou estilo de sua produção e, sobretudo, aquelas
sobre as quais encontramos alguma indicação específica sobre a iluminação.

De 1903 a 1907 Reinhardt trabalha com a colaboração de pintores, em um


espírito simbolista, de “síntese e sugestão”. Em 1903 realiza a encenação de
Peléas e Melisande, de Maeterlinck no Neues Theater de Berlim. Nesta
montagem a cenografia é do pintor Impekoven, impressionista alemão, que
representa sobre fundos de gaze semitransparente, visões de sonhos que os
jogos de luzes (por trás e pela frente da gaze, como os fundos de Herkomer e
Craig) tornam mais ou menos irreais, permitindo inclusive a fusão entre cenografia
e personagens. A atmosfera da peça é sugerida pela superposição entre a poesia
do texto e os contrastes entre as cores das pinturas na gaze, da iluminação do
fundo e das luzes ou sombras da frente: (“o verde do jardim e as luzes douradas”
ou “o vermelho do sol que se deita dominando a floresta banhada de sombras”

331
Reinhardt on designing the Kleines Theater. Carta de Max Reinhardt a
Berthold Held (ator e produtor que trabalhou com Reinhardt desde o início
de suas carreiras) de 4 de agosto de 1901 in Theatre in Europe: a
Documentary History – Naturalism and Simbolism in European Theatre 1850 –
1918. Op. Cit., p.174.

180
332
), ou seja, um mundo de sonhos que não é nem totalmente real, nem abstrato,
mas uma realidade imprecisa, difusa, levemente transfigurada, de contrastes um
pouco mais fortes do que o normal. Também de 1903 é Elektra, de
Hoffmannssthal, cenário de Max Kruse (que não é pintor, mas escultor), encenada
por Reinhardt no Kleines Theater: A peça dura o tempo de um lento entardecer,
que, ao contrário de localizar a ação no tempo e no espaço, serve para banhar o
palco de um vermelho “sangue”, que espalha sobre o palco o anúncio da tragédia.
A escuridão misteriosa que baixa pesadamente sobre a cena durante a ação
contrasta com as tochas que, levadas por um séquito, acompanham Clitmenestra.
A luz de Electra também é trêmula, bruxuleante. A única luz forte e brilhante do
espetáculo pode ser vista pela porta onde o público percebe em silhueta a sombra
de Orestes, anunciando a resolução do conflito principal da tragédia e futuro de
Argos.333 Para além da sugestão, a luz expressa a tragédia passada, presente e
futura da peça, revelando uma encenação que tende já, sob o aspecto da luz,
para o expressionismo.

Em 1905, Max Reinhardt é chamado para ser diretor do Deutsches Theater


de Berlim334. Lá, o encenador realiza seu desejo de ter dois espaços: o palco
grande para os clássicos – acrescido de uma aparelhagem técnica de iluminação
e cenotécnica que inclui “projetores” (refletores individualizados com lâmpadas e
lentes, tecnologia que ainda não era comum na maioria dos teatros da época),
projetores de efeito, ciclorama e palco giratório – e um pequeno teatro de câmara,
para os “autores modernos”, o Kammerspiele (adaptado por ele de uma sala de
dança), onde apenas três degraus separam o palco da platéia.335

332
Idem Ibidem, p. 181.
333
Análise minha sobre a descrição da iluminação e cenografia do
espetáculo realizada pelo próprio Hofmannsthal. “Directions for staging
Elektra”(trechos)in Theatre in Europe: a Documentary History – Naturalism
and Simbolism in European Theatre 1850 – 1918. Op. Cit., p. 168.
334
Este Teatro, mesmo local onde começou sua carreira com Otto Brahm, foi
comprado por Max Reinhardt, meses depois, ainda em 1905. Pertenceu ao
encenador até 1933, quando foi obrigado a entregá-lo para o Estado sob o
regime do Nacional Socialismo de Hitler. (Berthold, Margot. Max
Reinhardt: Magia e Técnica in História Mundial do Teatro. Op. Cit. pp. 483
– 494.)
335
Referências sobre o espaço e condições técnicas do Deutsches Theater e
do Kammerspiele: Fernandes, Silvia. A Encenação Teatral no
Expressionismo, Op.Cit., p. 232-233; Bablet, Denis. La Remise em Question
du Lieu théatral, in Le Lieu Théatral dans la Société Moderne. Paris:

181
O Kammerspiele foi inaugurado em 1906 com a montagem de Os
Espectros de Ibsen, cenografia de Edvar Munch. Esta cenografia, baseada no
telão pintado, segue o conceito de estilização, com a simplificação do desenho
em suas linhas e contrastes principais, com o mínimo de informação e detalhes e
o máximo de expressão da tensão fundamental do drama expressa pela pintura;
mas ainda permanece uma relação de verossimilhança entre o lugar real da ação
e o desenho336. Existe uma diferença grande em incluir a expressão do conflito
fundamental do drama na ação da peça, contracenando com o ator e o texto, ou
deixá-la estampada como signo no fundo da cena; um quadro nos joga dentro do
universo da pintura, participamos dele, porém a pintura de fundo por mais
expressiva que seja, quando não participa da ação, será sempre um pano de
fundo e como tal, demonstrativa.

A fase das cenografias com telas de fundo pintadas foi apenas um


desenvolvimento inicial na obra de Max Reinhardt, suas experiências em relação
ao espaço cênico e à luz enveredam, a partir de 1907, por outros caminhos.

As concepções de Adolphe Appia e Edward Gordon Craig com certeza


influenciaram bastante suas pesquisas cênicas, Reinhardt leu os trabalhos
teóricos sobre o drama wagneriano de Appia e a primeira brochura de Da Arte do
Teatro, de 1905. No caso de Edward Gordon Craig a relação entre eles é direta,
pois não apenas se conheceram e discutiram suas concepções de teatro, como
Max Reinhardt, muito tocado por suas idéias, convidou Craig para montar vários
espetáculos em seu teatro: Macbeth e A Tempestade, de Shakespeare e César e
Cleópatra, de Shaw. Craig chegou a fazer vários desenhos para essas
montagens. Mas acabou recusando o convite337. Porém, Reinhardt pôs em
prática, ele mesmo, muitas das concepções do encenador inglês “para os artistas

Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1961, p. 20 e


Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Op. Cit., p. 181.
336
Esta cenografia, apesar de contar com uma pintura expressiva não deve
se relacionar fundamentalmente com a luz da cena, já que de quatro
descrições lidas nenhuma delas cita nada sobre a iluminação (É lógico que
esta conclusão sobre a relação do cenário com a luz nesse caso trata-se
apenas uma conjectura). Há muitas reproduções, não da tela de fundo (em
cena ou fora dela), mas da pintura da cena realizada por Munch, com as
personagens também pintadas.
337
“No início de 1906, Craig retorna à Reinhardt seu contrato e
desenvolve, em um manuscrito inédito, a idéia da necessária unidade da
obra de arte”. Bablet, Denis in Edward Gordon Craig, Op. Cit. p. 109.

182
338
do teatro do futuro” , como a “simplificação de elementos cênicos, cenografias
tridimensionais com predominância arquitetural e utilização sugestiva da
339
iluminação cênica” , além do movimento mecânico da cenografia,
principalmente com a utilização magnífica que fez do palco giratório.

Max Reinhardt montou diversas versões diferentes de


Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare. A mais conhecida delas tinha no
movimento do palco giratório seu principal tema. Com cenografia de Ernest Stern,
tratava-se de uma grande floresta “de verdade” construída sobre um grande palco
giratório em movimento contínuo. A luz da lua, parada, iluminava a floresta em
movimento. O resultado é fácil de imaginar, um labirinto de árvores que se
multiplica em sombras móveis que revelavam ou escondiam o jogo de esconde-
esconde dos amantes, brinquedo do mundo das fadas, uma fábula teatral em
versão grandiosa e feérica.

O terceiro palco, àquele destinado ao teatro de multidões e à inserção


pública do teatro na vida da cidade, a “casa de luz e consagração” que Max
Reinhardt desejava desde 1901, tornar-se-á realidade em 1910, com a montagem
de Édipo Rei, de Sófocles (em uma adaptação de Hoffmannsthal) no Circo
Schumman, para 5000 pessoas. Dentro do circo ele constrói um espaço com as
mesmas relações espaciais do anfiteatro grego. A grande Arena destinada ao
340
coro (“Uma multidão em movimentos monumentais” ), atrás um muro com o
frontispício do palácio de Édipo ligado à Arena por uma escadaria e, finalmente, o
público ao redor de todo o espaço (excetuando apenas o espaço da entrada do
palácio), em arquibancadas. As escadas entre os “gomos” das arquibancadas
permitem que os atores subam pelo meio da multidão. Segundo palavras do
próprio encenador sobre a escolha do circo para a encenação de Édipo Rei:

338
Título de um importante ensaio de E.G.Craig de 1907.
339
Bablet, Denis in Edward Gordon Craig, Op. Cit. p. 109.
340
Berthold, Margot. História Mundial do Teatro. Op. Cit. p. 488.

183
Eu a representei em um circo, porque a forma deste
edifício é a melhor adaptada aos meus desejos. Os atores se
movem realmente entre os espectadores, representando seu
pequeno drama no meio de seus semelhantes, exatamente como
nosso grande drama se representa sobre a terra a cada dia de
nossa vida. 341

O público, como é definido pela


própria estrutura da tragédia antiga, é representado pelo coro e é para a cidade
abatida pela peste, resultado da desmedida de seu governante, que Édipo e
Reinhardt se dirigem. Ao mesclar a representação à platéia, atores e público
reunidos em uma arena comum, Circo Schumman e anfiteatro grego em um só
tempo e lugar, ele superpõem a pólis grega a seus próprios contemporâneos
presentes e inseridos em um mesmo espaço “total”, não apenas simbolicamente,
como qualquer representação faz, mas fisicamente.

Como podemos concluir pelas descrições e fotos342, a luz revela a pólis


pública, superobjetivo da própria representação, ao mesmo tempo em que
destaca os atores de seu seio. A grandiosidade do espaço exige uma grande
quantidade de luzes, dividas agora em funções sobrepostas: iluminar o cenário
dando relevo ao grande muro do palácio de Édipo; criar uma luz geral para esse
espaço destacado de representação, ou seja, a luz de frente do palácio, lugar de
origem e evolução dos atores principais, correspondente do Proskênion grego;
iluminar a arena, correspondente à Orquestra grega, local onde o coro faz suas

341
Reinhardt, Max apud Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de
Théâtre De 1870 a 1914. Op. Cit., p. 377.
342
Assim como pela própria experiência como iluminadora de “espetáculos
de multidão”, com o mesmo sentido de sobrepor simbolicamente a fábula ao
momento presente e, fisicamente, atores em meio à platéia, justapondo ou
separando o público do privado através da luz.

184
evoluções; juntar ou separar o palácio à cidade e os protagonistas do coro;
colocar ou tirar luz do público que lota as arquibancadas, dando um aspecto
público ou privado às cenas; seguir os atores e destacá-los em meio à multidão
(função provavelmente exercida por refletores com feixe de luz concentrada por
conjunto ótico, que seguem os atores, isto é, canhões seguidores) e, por fim,
relacionar por meio de um jogo de intensidades, todos esses espaços e
personagens, assim como suas distâncias formando um conjunto de significação.

O quadro de cena é rasgado e a encenação a atravessa, invadindo a


platéia. Para que todos esses planos da fábula e da trama da encenação,
complexificados pela presença em cena do público, ou melhor, da cena na
platéia, possam se coordenar (e não se confundir irremediavelmente) a luz torna-
se a orquestradora do visível e suas relações espaciais. Sem esquecermos do
aspecto simbólico dessas relações, que se sobrepõem ao aspecto físico e
concreto, por meio da sugestão.

Em Miracle, de Karl Vollmöller, em 1911, Max Reinhardt e Ernest Stern


(cenografia e disposição cênica) transformam o Olympia Hall de Londres em uma
imensa catedral, com colunas, ogivas e grandes vitrais na parte superior do
grande hall de exposições. A platéia fica em arquibancadas na mesma disposição
de anfiteatro de Édipo Rei. Porém, a ação da peça não se passa em um único
lugar, mas, acompanha a personagem central em um percurso longo no tempo e
no espaço343. Então, inspirado pelos “dramas de estações” da Idade Média, onde
os cenários já estão dispostos simultaneamente pelo espaço, Stern constrói dois
“palcos”: um, na posição do altar, em um dos lados, tendo por fundo uma parede
vertical com uma imensa porta, onde as paisagens eram trocadas, e, no centro do
espaço um palco transformável, de acordo com os acessórios ali colocados.
Quanto à luz, ao mesmo tempo potente e flexível, compete criar as duas
atmosferas centrais do espetáculo, quer seja, a do sagrado e do profano, incluir
as platéias no espaço simbólico da representação (a catedral) e ao mesmo tempo
orquestrar os movimentos da ação pelo espaço:

343
A peça é a história de uma freira que abandona o convento para
conhecer o mundo, cai em uma seqüência de tentações rumo à decadência,
até retornar ao seio da igreja, perdoada por um milagre da Virgem Maria.

185
Os feixes de luz permitiam concentrar a atenção do
espectador, de dirigi-la rumo a tal ou tal parte da área
de representação; de estender ou reduzir à vontade o
espaço cênico. Quando a ação se desenrola realmente no
interior da igreja, os vitrais são iluminados, quando se
situa em outros lugares, eles são apagados. 344

No desenho geral do espaço (vide imagem), além de feixes poderosos de


luz projetados, vemos escrita uma indicação técnica importante: “limelights
worked from a galeries suspended from the roof”, ou seja, a descrição do
dispositivo principal da iluminação: luzes de carbureto (que são bem mais
potentes e brilhantes que as lâmpadas incandescentes) vindas primordialmente
do alto, em aparelhos suspensos na lateral do teto. Todos os desenhos desta
encenação representam raios de luz vindos do alto ou de fora, por trás dos vitrais,
para dar a sensação de grandeza e sacralidade de uma catedral e inserir o
público no espaço simbólico do “Milagre”.

Enquanto cria os grandes espetáculos para multidões, continua a dirigir as


montagens do Deutsches Theater e do Kammerspiele, com grande presença dos
“autores modernos”. De 1917 a 1920, Reinhardt participa ativamente do
movimento expressionista345 e dirige alguns dos seus primeiros espetáculos: O

344
Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914.
Op. Cit., p. 379.
345
“A fase propriamente expressionista de Reinhardt começa com a montagem
de textos expressionistas de Sorge e Goering. É o período em que o
diretor participa do movimento A Jovem Alemanha (Das Junge Deutschland,
DJD), reunido em nome do periódico do mesmo nome e responsável pela

186
Mendigo, de Reinhard Sorge; Batalha Naval, de Reinhard Goering; Jó, de
Kokoschka; Uma Geração, de Fritz Von Unruh; Forças, de August Stramm, entre
outros 346.

Nestas montagens, Max Reinhardt imprime o ponto de vista da


interioridade das personagens exigida pelos textos expressionistas,
principalmente através de uma iluminação ativa, subjetiva e subjetivadora. Esta
nova forma de iluminar concebe ângulos estranhos e irreais, de modo a
transfigurar pessoas e coisas; joga sombras imensas no cenário, como se fossem
duplos ou projeções internas das personagens; inventa os focos fechados, quase
sempre de cima, isolando o homem em um universo de solidão irremediável,
apartando-o do resto do mundo; radicaliza os conflitos através do contraste duro
entre luz e sombra. O movimento da luz estilhaça o espaço, separando os
elementos e personagens em cena, fragmenta o tempo, separando as ações
através de cortes bruscos, reconstrói espaço e tempo a partir da subjetividade. A
iluminação deixa de tornar visível, ou mesmo revelar a realidade, para ser
portadora de um ponto de vista.

Como é o caso exemplar da luz de O Mendigo, texto de Reinhard Sorge,


cenário de Ernest Stern, encenação (que inclui a iluminação) de Max Reinhardt;
tal como nos explica Silvia Fernandes:
“Com a indicação, nas rubricas, de um projetor que
vaga pelo palco para iluminar uma ou outra seção, Sorge
simboliza o processo mental da personagem. Quando emerge
algum substrato latente nos diálogos, o dramaturgo
prescreve o centro do palco obscurecido, enquanto um
canto específico se ilumina. Quando a mente e a fala
retornam a um assunto superficial, o canto volta a
mergulhar na escuridão e o centro fica iluminado”.347

produção dos primeiros dramas expressionistas em Berlim”. Fernandes,


Silvia. A Encenação Teatral no Expressionismo, Op.Cit., p. 233.
346
A relação de Max Reinhardt com o expressionismo é contraditória, se
por um lado ele é um dos precursores do movimento por suas montagens de
Strindberg, Wedekind e das primeiras montagens de textos expressionistas,
por outro, ele nunca se engajou totalmente na ideologia ou na dureza das
formas, na abstração excessiva ou na interpretação convencional que
caracterizaram o movimento expressionista. Sobre esse tema vide:
Rosenfeld, Anatol. Teatro Alemão. Op. Cit. pp. 116 – 118 e Fernandes,
Silvia. Reinhardt na Jovem Alemanha in A Encenação Teatral no
Expressionismo, Op.Cit., p. 231-239.
347
Fernandes, Silvia. A Encenação Teatral no Expressionismo, Op.Cit.p. 23.

187
A iluminação no expressionismo projeta a interioridade do “Eu” sobre o
mundo; transfigurando a objetividade através do ponto de vista da subjetividade.

Se Max Reinhardt não se rende à convenção na interpretação, nem à


abstração radical do movimento expressionista, manipula a luz com maestria, em
comunhão com a dramaturgia e a estrutura por ela proposta. Mas, esta também é
apenas mais uma faceta do encenador, em busca da expressão do “teatro total”.

As pesquisas de Reinhardt em espaços alternativos levam á construção de


um teatro para multidões, onde a cena adentra a platéia como na arena de um
anfiteatro, mas que mantém na parte de trás uma caixa de palco com toda a
técnica do teatro à italiana (como o ciclorama, o palco giratório e as varas
suspensas). Esse teatro, o Grosses Schauspieleshaus foi concebido segundo as
necessidades de Max Reinhardt, pelo arquiteto Hans Poelzig, em consonância
com o ideal de Appia de uma “Catedral do Futuro”. Inaugurado em 1919 é “o
primeiro exemplo de uma arquitetura teatral moderna fundada sobre o princípio da
348
arena” . Lá, em 1920, Max Reinhardt estréia o Danton, de Roman Rolland,
onde todo o espaço vira a Assembléia Nacional e os atores que representam os
deputados, misturam-se à platéia. Assim os espectadores estão inseridos não só
no espaço de representação, mas também na ação cênica, dando um grande
passo em direção ao teatro do futuro propalado por Appia, “onde ninguém
349
consentirá mais em restar espectador” .

348
Bablet, Denis. La Remise em Question du Lieu théatral, in Le Lieu
Théatral dans la Société Moderne. Paris: Editions du Centre National de
la Recherche Scientifique, 1961, p. 20.
349
Appia, Adolphe. “L’ avenir du drame et de la mise en scène” (1919) in
Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome III,
1988, p. 338.

188
No teatro das “grandes catedrais cênicas”, a iluminação continua a tornar
visível, ou invisível; a criar atmosferas de mistério ou maravilhamento, mas agora
também inclui ou restringe a presença do público no espaço cênico e rege os
movimentos da encenação em relação ao espaço e ao tempo, editando a ação.

As luzes voltam a acender na platéia, mas agora não revelam mais um


universo à parte, são luzes de cena que incluem o espectador dentro do espaço
simbólico de representação, como parte integrante da própria ação dramática.

Max Reinhardt continua a procurar espaços que proponham uma


ambiência adequada para os seus espetáculos e novas relações entre a
encenação e a platéia. Encontra esses espaços tanto no “teatro do futuro” quanto,
sobretudo, no “teatro do passado”. Nos anos 1920 e 1930, no Festival de
Salzburg, Max Reinhardt monta na praça em frente da catedral, à luz do dia, o
mistério Everyman e, na seqüência, O Grande Teatro do Mundo 350 dentro de uma
igreja, contracenando a luz dos vitrais e dos círios com equipamentos de luz
elétrica. Em Fausto, ele constrói uma cidade de cenas simultâneas por onde
movimentam-se os espectadores, que montam o quebra-cabeças proposto de
acordo o seu próprio ponto de vista, diferente e único.

As encenações de Max Reinhardt nas “grandes catedrais cênicas”, quer


seja o Kleines Theater e o Kammerspiele, em sua intimidade ou o Circo
Schumman (Édipo, Oréstia), Olimpya Hall de Londres (Miracle), o Grosses
Schauspielhaus (Danton, Júlio César) ou mesmo praças (Everyman e Fausto) e
igrejas (O grande Teatro do Mundo), são seminais para a encenação do século
XX, que tem na ocupação de novos espaços e na constituição de diferentes
relações entre cena e público um dos seus grandes veios de pesquisa e
experimentação.

350
Ambas em adaptação de Hofmannsthal.

189
APÊNDICE

Talvez um ponto importante a se notar nesse aspecto é o quanto, na


prática do teatro, o desejo de futuro e o conhecimento do passado se mesclam no
único tempo real da representação, o presente imediato. Embora não seja o
centro de nosso trabalho, dá sentido ao todo entender o quanto de nossa prática
atual é herdeira de experimentações passadas. Cabe também observar que cada
ação nova realizada por um encenador na iluminação é retomada depois e
depois, aos saltos, até tornar-se pratica corrente. Muitas vezes um mesmo efeito
ou prática é inventado e reinventado novamente com nova tecnologia, dez, vinte
ou trinta anos depois, ainda como novidade. Toca a nós, portanto, como
profissionais do teatro e da iluminação e também como pesquisadores de uma
prática, compreender esse movimento no tempo e, a partir da reflexão
contextualizada, receber as novas tecnologias que brotam aos borbotões das
revistas e sites especializados, não como crianças deslumbradas diante de
brinquedos de luxo, mas como herdeiros de uma revolução continuada que não
serve a si mesma, mas ao sentido que a cultura encontra em sua ação pública a
cada momento histórico, ecoando no presente seu passado, transformando-se dia
a dia em uma prática sempre transformável e transformadora.

Em relação à iluminação, em suas relações intrínsecas com a encenação,


pertence ao objetivo central dessa dissertação entender o passo a passo da
constituição desta linguagem que se transformou em estrutural para o teatro num
período tão curto de tempo - entre 1880 e 1914, com a explosão das vanguardas
modernas a partir da relação antitética entre naturalismo e simbolismo.

190
CAPÍTULO 11
MEIERHOLD: Das iluminações simbolistas à luz épica

ENTRE A LUZ “PARA VER” E A LUZ “PARA IMAGINAR”

A cena que melhor simboliza iconicamente o conflito entre as duas


vertentes basais da pesquisa teatral do século XX – aquela que busca a verdade
através da ilusão no teatro e a que quebra a ilusão em busca da verdade do
teatro, a convenção - é protagonizada por dois de seus mestres: Stanislávski e
Meierhold. 351 E tem na Luz uma de suas principais metáforas.

Estamos em 1905, no ensaio geral de A Morte de Titangiles, de


Maeterlinck, no Estúdio-Teatro, criado por Stanislavski e Meierhold (sob os
auspícios financeiros do primeiro e direção do segundo) com o objetivo de
desenvolver a “pesquisa vibrante e infatigável de novos procedimentos plásticos
352
próprios à nova dramaturgia” . A cena é narrada pelo cenógrafo Uliánov
(segundo citação e analise de Jacó Guinsburg em Stanislávski, Meierhold & Cia.):

Semi-obscuridade sobre o palco. Apenas as silhuetas


das pessoas são visíveis. O cenário é plano sem
bastidores, pende quase diante do proscênio. Isto é novo
e nova é também a fala rítmica dos atores, tal como ela
vem do palco. A ação se desenvolve lentamente; é como se
o tempo tivesse parado. De repente, um grito de
Stanislávski: “Luz!” Um tremor percorre o teatro,
barulho, confusão. Sudéikin e Sapúnov saltam de seus
lugares bradando objeções. A voz de Stanislávski: “a
platéia não pode suportar a escuridão no palco por muito
tempo, os espectadores precisam ver os rostos dos
atores”. Sudékin e Sapúnov: “Mas o cenário foi feito

351
“A história do teatro moderno tem um dos seus eixos na relação
antitética Stanislávski-Meierhold”. (...) “... as buscas de um novo
teatro no âmbito russo – e não apenas nele – adquirem os nomes
polarizantes de Stanislávski e Meierhold, que passarão cada vez mais a
encarná-las efetivamente e simbólicamente” Guinsburg, Jacó. Stanislávski,
Meierhold & Cia.. São Paulo: Editora Perspectiva. 2001, p. 85.
352
Meierhold, V. Projet d’une noveulle troupe dramatique près Le Théâtre
d’Art de Moscou in Écrits sur le Théâtre - Tome 1 (1891-1917). Traduction,
préface et notes de Béatrice Picon-Vallin. Lausane, Suisse: Editions L’ Age d’
Homme, 1973, p. 65.

191
para a semi-obscuridade, ele perde todo o sentido
artístico na luz!” Faz-se de novo silêncio, resta apenas
a batida da fala medida dos atores. Mas tão logo a luz
foi acesa o cenário todo ficou estragado. Os vários
elementos foram desintegrados, os cenários e as figuras
foram separados 353

Essa cena representa duas concepções absolutamente distintas do


significado da iluminação e da própria cena que, por sua vez, determinam dois
pontos de vista distintos da arte, especificamente daquela expressa pelo “novo
drama”, isto é, a dramaturgia simbolista. Segundo o ponto de vista de
Stanislávski, a luz serve “para ver” o ator e é através das personagens em ação
que a platéia adentra no mundo que lhe é apresentado; já para Meierhold (nesse
momento inicial de suas pesquisas) a luz serve para esconder a realidade
imediata e recriá-la plasticamente, de modo que a visão seja embaçada ou
evanescida e as imagens, ao invés de mostradas, sugeridas; deixando que a
imaginação da platéia complete com suas próprias imagens e com a projeção do
seu mundo interior sobre a cena, as formas e sentido do espetáculo.

Como conclui Jacó Guinsburg:

Entre a exposição ao natural do homem e a


iluminação simbólica de seu mundo não podia haver
conciliação estética e composição teatral
354
satisfatórias.

ILUMINAÇÕES SIMBOLISTAS

Introdução
Não pretendemos seguir aqui o desenvolvimento da iluminação em toda a
obra Meierholdiana, que abre fronteiras inauditas na arte do espetáculo – partindo
do simbolismo para o esteticismo, passando pelo agit-prop do período pós-
revolucionário, pelo formalismo russo, rumo à invenção do construtivismo no

353
Uliánov apud Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo:
Editora Perspectiva.2001, p. 29.
354
Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Editora
Perspectiva.2001, p. 29.

192
355
teatro e, enfim, à sua derradeira fase, sintética – já que as implicações,
concepções e formas deste desenvolvimento ultrapassam em muito as fronteiras
temporais desta dissertação356. Pretendemos, portanto, analisar especificamente
a sua fase simbolista, o desenvolvimento do ideário do teatro da convenção e sua
conseqüência para a teoria e prática da iluminação cênica.

Primeiras experiências

Meierhold foi um dos atores que participou da fundação do Teatro de Arte


de Moscou, em 1898. Em 1902 abandona o Teatro de Arte e Moscou para fundar
a sua própria trupe, que se instala na província, onde pretende fazer suas
primeiras experiências como encenador. Nos espetáculos357, que monta com a
358
“Confraria do Drama Novo” , neste período inicial, a iluminação muitas vezes
serve para esconder a inadequação dos cenários, em busca de uma participação
mais ativa da imaginação dos espectadores.

A primeira encenação em que os reflexos simbolistas ganham forma e


menção específica é A Neve, de Przybyszewski, de dezembro de 1903. Neste
espetáculo a luz tem um papel importante na conquista da atmosfera simbolista.
Béatrice Picon-Vallin, cita – a partir da descrição de Alexeï Remisov (simbolista
que ficou responsável pela supervisão literária à trupe) em carta à revista Vesy de
Moscou – a nova plástica do espetáculo, com a participação da luz, ou melhor, da
obscuridade:

Com A Neve do polonês Przybyszewski, em dezembro de


1903, onde com a ajuda de efeitos de obscuridade, ele
(Meierhold) esfumaça o realismo da cenografia, rompe com
a imitação de toda a realidade cotidiana ou histórica e

355
Segundo Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo:
Editora Perspectiva. 2001, p. 57.
356
Voltaremos, portanto, a analisar a iluminação na obra teatral de
Meierhold na continuação deste trabalho, que vai de 1914 até a
atualidade.
357
O Teatro na província exigia um número imenso de montagens por
temporada, segundo Beatrice Picon-Vallin entre 1902 e 1905 Meierhold
monta aproximadamente 160 espetáculos.
358
Na primeira temporada chamava-se “Trupe de Artistas Dramáticos
Russos”, mudando de nome em 1903, na medida em que as experiências rumo
ao simbolismo, ao “drama novo”, se tornam um objetivo explícito.

193
deseja tocar o público por “um tom, cores, uma plástica”
359
. 360
Jacó Guinsburg também cita especificamente este espetáculo e sua
sinestesia, característica formal intimamente ligada ao simbolismo:

... a qualificação “sinfonia ultravioleta” talvez


encerre, na sua sinestesia, um testemunho mais preciso
do estilo da montagem.361
Estas experiências seminais do simbolismo na encenação de Meierhold,
levam ao convite de Stanislávski para uma parceria, visando encontrar as formas
do espetáculo e da interpretação específicas para o “drama novo”, junto ao Teatro
de Arte de Moscou.

O teatro-estúdio

Apesar do Teatro-Estúdio ter fechado as suas portas antes mesmo de sua


estréia, depois do ensaio geral de A Morte de Titangiles, as experiências ali
realizadas são consideradas fundamentais para o desenvolvimento do simbolismo
no teatro russo e na concepção do teatro da convenção desenvolvida Meierhold
e por Valeri Briussov, nos anos seguintes. Segundo as palavras do próprio
encenador:
Entretanto, embora o Teatro-Estúdio não tenha
aberto suas portas ao público, ele desempenhou um papel
muito importante na história do teatro russo. Podemos
afirmar com toda a certeza que tudo o que mais tarde os
nossos teatros de vanguarda introduziram em suas ence-
nações, com uma pressa extraordinária e febril, foi
bebido dessa única fonte. E todos os motivos em que se
fundamentam as novas interpretações cênicas são

359
Alexeï Remisov, “La Confrérie du Drama Nouveau. Lettre de Kherson” in
Vesy, n. 4, Moscou, 1904 apud Pincon-Vallin, B. Les Voies de la création
Théâtrale 17 – Meyerhold. Paris: Editions du Centre de la Recherche
Scientifique, 1990. p. 26.
360
Pincon-Vallin, B. Les Voies de la création Théâtrale 17 – Meyerhold.
Op. Cit. p. 26.
361
Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.17.

194
familiares àqueles que participaram do trabalho criador
do Teatro-Estúdio.362

O Teatro-Estúdio, 1905 – A Morte de Titangiles

É no Teatro-Estúdio que Meierhold mergulha completamente nas formas


do teatro simbolista e na busca de novos procedimentos técnicos, que incluem
uma estreita colaboração com os jovens pintores do “novo grupo fundado em
363
1904, A Rosa Escarlate” , para a concretização de uma cena não realista e
estilizada. Na pesquisa cenográfica que precedeu aos ensaios com os atores, N.
Sapúnov e S. Sudéikin, os pintores-cenógrafos de A Morte de Titalgiles,
procedem a uma revolução metodológica e se recusam a fazer maquetes para
representar a cenografia, assim os esboços planos e as pinturas tomam o lugar
das representações tridimensionais, concretizando no plano da criação a opção
pictórica, resumindo com essa ação a quebra com os procedimentos técnicos do
naturalismo e também com os próprios cenários realistas e seus detalhes
arquitetônicos:

Virando e revirando uma maquete em nossas mãos,


virávamos e revirávamos o próprio teatro contemporâneo.
Queríamos queimar e pisotear as maquetes; e não está-
vamos longe de queimar e pisotear as velhas técnicas
caducas do teatro naturalista. Os cenógrafos Sapúnov
e Sudéikin estão na origem do abandono definitivo das

362
Meyerhold, Vsévolod. Sobre o Teatro. Tradução Roberto Mallet. (No
prelo) Material didático do curso de Maria Tháis Silva Santos: Meierhold
– O Encenador Pedagogo. p. 1.
363
Pincon-Vallin, B. Les Voies de la création Théâtrale 17 – Meyerhold.
Op. Cit. p. 28.

195
maquetes. Este foi o primeiro impulso na busca de meios
de expressão cênica novos e simples.364

Nesse momento é para a concepção simbolista de “síntese e sugestão”


que pendem as experiências cênicas de Meierhold. A pesquisa de novas técnicas
de encenação e métodos de criação cenográfica gerou em A Morte de Titangiles
a realização de “planos impressionistas”, explicitamente pictóricos e
convencionais, de onde os atores se destacam e a partir do qual as luzes agem
em consonância com a pintura:

É nesse período de recusa das maquetes que nasce a


técnica de planos impressionistas. (...) E como todos
esses intérieurs e extérieurs construídos em maquetes à
semelhança da natureza tornaram-se inúteis, cada
cenógrafo esforçava-se em atenuar esse grosseiro
procedimento naturalista (construir sobre a cena
apartamentos, jardins, ruas) pela sutileza do tom
idealizado das cores e pelos artifícios na disposição
dos efeitos de luz (sobre a pintura).365

É interessante notar que a passagem pela cenografia pictórica faz parte de


um caminho comum na prática do teatro simbolista. A liberdade formal
conquistada pela pintura e o significado simbólico dado às cores e às formas na
tela (tornadas luz pelos impressionistas) tornou-se um acontecimento fundamental
para a quebra com o realismo no teatro. Num primeiro momento é a pintura que
366
realiza a síntese formal , permitindo tirar de cena o excesso de detalhes,
limpando a área para que, a partir de um espaço vazio, fosse possível construir
volumes e formas não figurativas.

Da mesma forma, a iluminação também passa por uma fase de forte


influência “pictórica”, saindo da tela e ocupando os espaços vazios deixados pela
cenografia naturalista, mas carregando consigo a função de formar “quadros

364
Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do
Teatro i. Teatro-Estúdio in Op. Cit. p. 3.
365
Idem Ibidem, p. 3.
366
Ainda que, segundo Appia, privilegiando o signo pictórico em prejuízo da
expressão viva da cena, ou seja, o movimento. Esse processo acaba tornando,
momentaneamente, fundo em forma. É contra essa inversão de valores que Appia
se levanta, como pioneiro da cena arquitetônica, ou pelo menos de sua
concepção teórica.

196
cênicos”, enquanto os atores evoluem por zonas de claro-escuro (que por sua vez
tem nas pinturas suas maiores referências) ou em uma semi-obscuridade que
permite unir por justaposição as duas naturezas, tão distintas.

A radicalização das formas

Essa travessia pela cena pictórica, através da tela plana rumo às


construções arquitetônicas terá por guia as concepções de Fuchs, Craig e Appia.
Numa teia de influências múltiplas e comuns, que são no começo do século XX
“idéias no ar dos tempos”.367

No caso específico de Meierhold, a leitura em 1906 do livro O Teatro do


Futuro de Georg Fuchs virá de encontro com as pesquisas conceituais e formais
368
realizadas no Teatro-estúdio e influenciará decisivamente as montagens
seguintes, onde ele fará experiências práticas extremamente pessoais a partir das
idéias de Fuchs, sobretudo da cena-relevo369 e da união da sala e da cena,
concentrada no proscênio avançado, unindo atores e espectadores em um
mesmo espaço e em um mesmo acontecimento.

Meierhold retoma o trabalho na província com a Confraria do Drama Novo


no início de 1906. Em Tíflis estréia uma nova versão de A Morte de Titangiles
que, segundo descrição do próprio Meierhold, tinha forte inspiração pictórica
370
“paisagens à la Böclklin e poses à la Botticelli” e acontecia dentro de um

367
Copeau apud Pincon-Vallin, B. Les Voies de la création Théâtrale 17 –
Meyerhold. Op. Cit. p. 29.
368
“Em Maio de 1906 que Meyerhold conhece o livro de G. Fuchs, O Teatro do
Futuro, que terá sobre ele uma enorme influência na medida em que o ajudará a
“dar forma” a suas intuições: arquitetura, nova organização do espaço cênico,
importância do Proscênio, do ritmo, da dança, tudo aquilo que rondava já sua
cabeça”. Picon-Vallin, Béatrice. Preface in Meyerhold, Vsévolod. Écrits sur
le Théâtre - Tome 1 Op. Cit. p. 17.
369
“Construir uma ‘cena-relevo’ não é um fim em si mesmo, mas um meio. O
fim é a ação dramática. Ela nasce na imaginação do espectador estimulada
pelas ondas rítmicas dos movimentos corporais. Essas ondas devem rolar
em um espaço que possa ajudar o espectador a perceber as linhas dos
movimentos, dos gestos, das atitudes...” Meierhold,V. Sobre o Teatro –
Primeira Parte. A Encenação de "Tristão e Isolda" no Teatro Mariinski in
Op. Cit. P.40.
370
Meierhold, V. Apud Picon-Vallin, B. A Arte do Teatro: entre tradição e
Vanguarda - Meyerhold e a cena contemporânea. Rio de Janeiro: Teatro do
Pequeno Gesto: Letra e Imagem,2006, p. 17.

197
“quadro de tule esticado, atrás do qual se passava a ação. O quadro era feito de
um tecido verde escuro” 371. A luz, portanto, acompanhando a cenografia, deveria
vir de cima, revelando as formas e não os detalhes. Em Poltava, pela disposição
arquitetônica do espaço, tablados no lugar da orquestra permitiam criar um
proscênio que avançava em direção à platéia, possibilitando experimentar a cena
avançada proposta por Fuchs e unir atores e espectadores em um mesmo
espaço. Meierhold monta Os Espectros, de Ibsen e Cain, de Dymov
concentrando a ação no proscênio e suprimindo as cortinas, o que reforça a
concenção do espetáculo ou, segundo palavras do próprio encenador, “Graças à
supressão da cortina, o espectador está permanentemente colocado diante do
exclusivo cenário da ação”372, em Cain de Dymov, a ação se passa sobre “um
proscênio branco, sem cortina, sem portas, sem mobília”373. Para a encenação de
O Milagre de Santo Antonio, de Maeterlinck, Meierhold “se inspira em poses de
374
marionetes para criar as personagens sob uma luz de pesadelo” . Como
Fuchs, procura suas inspirações no estudo do teatro de épocas passadas cujas
técnicas são autenticamente teatrais, como o teatro japonês, o teatro de
marionetes, a Commedia dell’Arte e o teatro de feira (Balangan). A cena torna
mais complexas suas influências e suas formas, Meierhold mistura elementos,
amplia seus estudos e desenvolve seus conhecimentos técnicos em busca das
novas velhas formas de um teatro do futuro.

O encontro com Vera Komissarjévskaia


ou sobre como “As palavras não dizem tudo” 375.

376
De 1906 a 1907, pelo período de uma temporada e meia , Meierhold
377
torna-se o diretor da companhia de Vera Komissarjévskaia onde realiza

371
Idem Ibidem, p. 17.
372
Meierhold, V. apud Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op.
Cit. p.35.
373
Picon-Vallin, Béatrice. Préface in Meyerhold, Vsévolod. Écrits sur le
Théâtre - Tome 1 Op. Cit. p. 17.
374
Picon-Vallin, Béatrice. Préface in Meyerhold, Vsévolod. Écrits sur le
Théâtre - Tome 1 Op. Cit. p. 17.
375
Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do
Teatro iv. Primeiras tentativas de criação de um teatro da convenção, Op.
Cit. p. 24.

198
algumas de suas grandes encenações da fase simbolista. Também é nesse
mesmo período que o encenador desenvolve sua faceta de iluminador, com a
utilização consciente da iluminação como mais um instrumento de construção
formal da cena, em busca de um teatro da convenção:

A Iluminação cessa de ser simples iluminação para


tornar-se um elemento constitutivo da imagem cênica:
Meierhold desenvolve largamente a idéia das fontes de
luz independentes e joga com as silhuetas e com os
grupos em claro-escuro 378.

As fontes independentes, aqui citadas, referem-se mais uma vez, a


introdução dos “refletores” no teatro, ou seja, um equipamento elétrico com uma
fonte de luz única (lâmpada incandescente) e aparelho ótico, que pode ser
pendurado e afinado de forma independente, ao contrário das ribaltas e
gambiarras. Essas novas “fontes” permitem maior controle sobre o desenho e seu
movimento em cena, possibilitando o destaque e a seleção de partes do palco ou
de elementos isolados em relação ao todo. O jogo de claros-escuros, silhuetas,
luzes de cima, em contra-luz ou de um só lado tem sempre uma conexão direta
com as inspirações pictóricas que Meierhold utiliza para montar seus espetáculos,
como é o caso exemplar do espetáculo Soror Beatriz.

Soror Beatriz é um milagre escrito por Maeterlinck, que mescla o mistério


medieval com temas simbolistas: a mística e a morte. Sobre a relação entre
sentido “interior” da obra e a sua expressão, dizem melhor as palavras de
Meierhold:

Além disso, toda obra dramática compreende dois


diálogos, um "exteriormente necessário" - as palavras
que acompanham e explicam a ação - e outro "interior" -
e é este que o espectador deve descobrir, não nas
palavras, mas nas pausas; não nos gritos, mas nos
376
As temporadas nas grandes cidades russas iam de agosto de um ano, a
fevereiro do ano seguinte.
377
“Intérprete consagrada de algumas das principais figuras femininas
levadas à cena russa (...), a atriz deixara em 1902 o elenco imperial do
Alexandrínski, do qual era um dos grandes nomes, para formar o seu próprio
conjunto onde pudesse interpretar papéis mais sintonizados com a sua
sensibilidade dramática e promover um repertório menos penhorado à tradição
oficial” Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.36.
378
Picon-Vallin, Béatrice. Preface in Meyerhold, Vsévolod. Écrits sur le
Théâtre - Tome 1 Op. Cit. p. 19.

199
silêncios; não nos monólogos, mas na música dos
movimentos plásticos. Maeterlinck constrói o diálogo
"exteriormente necessário" de tal maneira que as
personagens têm, para uma tensão máxima da ação, um
mínimo de palavras a dizer.379

A “Música dos movimentos plásticos” em Soror Beatriz é desenhada por


Meierhold como verdadeiros quadros-vivos baseados “em elementos colhidos na
pintura dos inícios da Renascença (Giotto, Fra Angélico, entre outros) e na
380
composição gótica de referenciais arquitetônicos” . A cenografia simples de
Sudéikin – um painel representando um muro gótico em tons frios, azuis e verdes,
como uma tapeçaria estilizada – torna o espaço de ação comprido e raso,
trazendo os atores para perto da platéia, como na cena-relevo proposta por Georg
381
Fuchs . Os figurinos também são simples e retos, em tons de cinza-azulado.
Todo o conjunto leva a fundir os atores com o fundo, como se eles fossem
estátuas em baixo-relevo. A luz não tem muitos movimentos, permanece estática
durante os atos, mesmo quando o texto sugere mudanças de tempo. Por efeito
apenas uma luz cintilante no vestido da virgem, “uma luz, quase como um manto
382
transparente por cima de suas roupas” e a projeção das suas iniciais, no
383
fundo, durante a cena do milagre . Quanto aos ângulos preferenciais, a cena-
relevo exige muito cuidado com as sombras sobre o fundo: luz de cima, a pino ou
levemente por trás, como contra-luz, desenha os contornos dos grupos (como
indica o próprio Meierhold, anos mais tarde384, ao explicar a melhor forma de

379
Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do
Teatro iii. Presságios literários do novo teatro in Material didático do
curso de Maria Thais: Meierhold – O encenador Pedagogo (em fase de
publicação). pp. 16-17.(grifo meu)
380
Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.47.
381
“Em seu palco (de Fuchs), disposto em vários níveis de configuração
plástica e dramática, o procênio deve ser o lugar de eleição do jogo
cênico, na medida em que o desempenho interpretativo é concebido como
movimento rítmico do corpo humano no espaço, segundo as lições do balé e
do teatro oriental, para compor as figuras contracenantes, contra um
fundo raso, em verdadeiros baixos-relevos coreográficos da ação
dramática” Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.36.
382
Deak, Frantisek. Sister Beatrice in Drama Review, Volume 26, number 1,
Spring, 1982, p. 43.
383
“BVM – Beata Virgo Maria” Deak, Frantisek. Sister Beatrice in Drama
Review, Volume 26, number 1, Spring, 1982, p. 49.
384
No texto sobre a encenação de Tristão e Isolda Meierhold faz uma longa
explanação sobre as idéias de ocupação espacial e arquitetura cênica de

200
iluminar um conjunto sobre um praticável, em primeiro plano: “neste caso coloca-
se os projetores atrás dos praticáveis”385). A luz de cima contracena com a luz da
ribalta (provavelmente mais baixa, apenas preenchendo a frente). Como a ribalta
está colocada muito perto dos atores, acaba por elevar as personagens, ajudando
na sensação de irrealidade e mistério386.

Meierhold esculpe os movimentos de grupo plasticamente, revelando a


tridimensionalidade do corpo do ator em gestos desenhados e muitas vezes
imóveis. Neste espetáculo Meierhold experimenta na prática uma série de
princípios do teatro da convenção consciente: os gestos decompostos; o ritmo da
fala alterado musicalmente; a imobilidade que, por oposição e expectativa, revela
a essência do movimento; o contraste entre a fala e a ação. Ao separar o gesto
da fala, entremeando-os de pausas e paradas não realistas, Meierhold não
apenas constrói uma encenação explicitamente convencional com as imagens e o
som, mas estabelece contrastes entre esses dois planos paralelos de leitura.
Esse procedimento é explicado pelo próprio encenador no texto História e Técnica
do Teatro:

As palavras são para os ouvidos, a plástica é para


a visão. Dessa maneira, a imaginação do espectador
trabalha sob o impacto de duas impressões, uma visual e
outra auditiva. O que distingue o velho teatro do novo
é que, neste último, a plástica e as palavras estão
submetidas a seus ritmos próprios, divorciando-se mesmo,
se possível. 387

Este princípio de contraste causa na construção do espetáculo um


estranhamento ao mesmo tempo místico e épico, que será desenvolvido por
Meierhold em cena, através da inclusão cada vê maior em suas encenações da

Georg Fuchs, incluindo uma indicação de como iluminar um plano de


conjunto sobre um praticável na cena-relevo.
385
Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. A Encenação de "Tristão
e Isolda" no Teatro Mariinski Op. Cit. P.39.
386
“As decorações (elementos cenográficos) estão contíguas à ribalta, e
toda a ação se passa tão próxima do espectador que ele tem a impressão de
estar dentro de um ambiente de uma basílica” Meierhold, V. Écrits sur Le
Théâtre, Op. Cit. p. 209.
387
Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do
Teatro iv. Primeiras tentativas de criação de um teatro da convenção in
Op. Cit. p. 24.

201
teatralidade explícita e do grotesco, o que determinará o caminho por onde o
encenador superará o simbolismo em uma escritura teatral inédita. A iluminação
caminha junto, no sentido de, não apenas ser um instrumento de linguagem
consciente, mas também revelar-se enquanto tal.

A Barraca de Feira - O trágico ou o sorriso do diabo nos lábios.388

389
Balagántchik (A Barraca de Feira) de
Aleksandr Block que, segundo Jacó Guinsburg, “trata-se de uma farsa trágica ou
390
de uma paródia existencial” , é um texto em primeira pessoa sobre a própria
existência do teatro.

No texto de Block um “Eu” lírico, autor, vê as carroças do velho teatro de


feira, descreve e discute o teatro, seus artifícios, seus sentidos, suas leis e
linguagens. É com nostalgia que se pergunta: “O que se tornou hoje, esse ator
que fala das alegrias de seu reino?391”. Com fé na renovação, o texto clama por
um novo personagem que virá “Com seu caminhar ligeiro, ele virá, aquele que
esperamos. Dois espelhos colocados face a face, e de um lado e outro velas,
como na noite da Epifania, criarão um corredor sem fim e suas molduras
douradas enquadrarão a sucessão de muitas épocas teatrais”392. Não há
personagens que falam por si, mas apenas a visão do próprio teatro e seus
agentes (atores, maquinistas, decoradores) e, principalmente, um ator, duplo do

388
Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do
Teatro iv. Primeiras tentativas de criação de um teatro da convenção, Op.
Cit. p. 30.
389
A Barraca de Feira, desenho da montagem de 1914.
390
Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.50.
391
Block, A. A Barraca de Feira. Material didático do curso de Maria
Thais: Meierhold – O encenador Pedagogo. p. 2.
392
Idem Ibidem, p. 2.

202
autor e com quem ele fala. Esse ator atravessa o teatro, vê a azáfama da criação,
os preparativos de um espetáculo, sobe pelas escadas, passa pelas janelas rumo
ao dia e sobe aos céus. Metáfora da vida? Metáfora da arte? Poesia ou Manifesto
sobre o teatro?

O próprio texto, como um labirinto, explica e confunde. Mas explicita o seu


sentido, seu superobjetivo:

No teatro, não há necessidade de imitar a vida


esforçando-se em copiar seu invólucro formal, porque o
teatro possui meios próprios de expressão, que são
teatrais, porque o teatro dispõe de uma língua própria,
compreensível a todos e que lhe permite dirigir-se ao
público393.

Meierhold aceita o desafio, como encenador e personagem principal,


Pierrot, constrói imagens cênicas de puro metateatro: utiliza o palco em toda a
sua profundidade, o cerca com telas azuis e no centro constrói “um pequeno
teatro de barraca de feira” 394, com toda a estrutura técnica à vista, assim como as
cordas e fios que o sustentam dentro do grande teatro. Quando a peça começa
“o público vê o ponto arrastar-se para dentro da sua caixa e acender uma vela”
395
. A ribalta representa a própria ribalta e o teatro é teatro. “Quando o Pierrot
(Meierhold) termina o seu longo solilóquio, o banco, a estátua e o cenário todo
são arrebatados para o alto”. Por fim “figuras mascaradas aparecem aos brados
de ‘Tochas’, surgem, de ambas as coxias, as mãos dos assistentes de cena
segurando fogos da Bengala acesos sobre bastões de ferro” 396.

Trata-se de um jogo explícito de reflexão entre vida e arte. A luz é como


tudo mais, teatro. Artifício, que por sua vez representa a própria vida. Teatro e
vida espelham-se, como propõe o texto de Blok, criando um labirinto infinito de
teatros que espelham vidas e assim por diante (experimente colocar dois
espelhos com uma vela acesa, um diante do outro, abre-se um portal dos tempos
que tende para o infinito em todas as direções). A ribalta, as varas, pernas,

393
Idem Ibidem, p. 6.
394
Meierhold, V. apud Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op.
Cit. p.50.
395
Idem Ibidem, p. 50.
396
Idem Ibidem, p. 50.

203
cortina, tenda, ponto – o teatrinho inteiro se desfaz diante da platéia, que vê toda
a maquinaria dos dois teatros em ação. A passagem da vela do ponto, que abre a
peça, para as tochas do fim anunciam uma revolução cênica, que por sua vez
anuncia uma revolução na vida, que clama por um novo teatro, teatral. A
iluminação neste ponto da história do espetáculo já é linguagem consciente e
assumida e como tal pode iluminar a si mesma.

Como escreveu Leonid Andreiêv em carta a Meierhold (que ele cita em


Sobre o Teatro):

No teatro da convenção, o espectador "não esquece em


nenhum momento que tem diante de si um ator que
representa, e o ator não esquece que tem à sua frente,
ao pé da cena, um público, e a seus lados um cenário”.397
O Expressionismo e suas técnicas de iluminação

Em meio às muitas peças que montou com o Teatro Vera Komissarjévskaia


há que mencionar ainda, entre seus últimos trabalhos, a incursão de Meierhold
pelo teatro expressionista, com O Despertar da Primavera, de Wedekind e A Vida
398
de Homem, de Leonid Andriéiev ; nos quais o encenador usa da iluminação
como artifício explícito da escritura cênica, revelando e escondendo partes da
cena segundo a necessidade e usando de contrastes extremos. Na peça de
Andreiêv a cenografia é extremamente simples e a luz, ao contrário, a partir de
sua multiplicidade transforma o espaço cênico. Béatrice Picon-Vallin descreve
essa iluminação em detalhes:

Meierhold compõe aqui sua primeira verdadeira


“partitura” de luz: ele [ninbe] a cena de uma bruma cinzenta
por uma luz fraca e uniforme, sem sombras, para o prólogo,
depois ele rompe com a semi-obscuridade permanente por focos
(manchas) de luz provenientes de uma só fonte por vez,
iluminando sucessivamente diversos pontos da cena. Ele
utiliza a luz em fontes múltiplas e independentes – uma

397
Meierhold, citando Leonid Andriéiev in Sobre o Teatro – Primeira
Parte. História e Técnica do Teatro iv. Primeiras tentativas de criação
de um teatro da convenção Op. Cit. p. 29.
398
Essas montagens são posteriores à de A Barraca de Feira, de que
trataremos a seguir. Invertemos a ordem cronológica por entender que o
desenvolvimento conceitual neste trabalho deve prevalecer sobre o aspecto
histórico.

204
lâmpada atrás de um divã, lanterna, velas – e freqüentemente
verticais – lustre (brilho) circular, suspensão de onde a
iluminação cai em cones alongados. Nessa ilhotas reservadas
ao jogo cênico, Meierhold pode dar a impressão de um lugar
fechado por limites invisíveis, mas sugeridos. Ele coloca os
atores em relação às fontes de luz de tal sorte que eles se
destacam em silhuetas, em sombra chinesa ou em grupos
compactos (...) Seleção e deformação acrescentam à atividade
do espectador 399
Em O Despertar da Primavera o encenador, assim como em A Vida de
Homem, seleciona e divide o palco com a luz, revelando o espaço cênico em
partes, com uma “luz episódica”, fragmentando tempo e espaço, um recurso que
entra para a história da iluminação principalmente a partir do expressionismo.

Em novembro de 1907, no meio da segunda temporada, a parceria com


Vera Komissarjévskaia chega ao fim. Com ela também se completa a travessia de
Meierhold pelo simbolismo rumo à “re-teatralização do teatro”, exposta no
conceito do Teatro da Convenção Consciente. Em 1908 Meierhold é convidado
para dirigir e atuar nos teatros imperiais de São Petersburgo, incluindo grandes
clássicos e óperas. Em 1909, na preparação da montagem de Tristão e Isolda,
estuda com afinco Wagner, Appia, Craig e Fuchs.

O TEATRO DA CONVENÇÃO CONSCIENTE 400 E A LUZ

O Teatro é uma arte independente, ele exige a submissão


de tudo o que faz parte do seu domínio a leis teatrais
únicas. Toda arte e toda técnica envolvidas no teatro
devem ser percebidas de um ponto de vista teatral. 401

399
Pincon-Vallin, B. Les Voies de la création Théâtrale 17 – Meyerhold.
Paris: Editions du Centre de la Recherche Scientifique, 1990. p. 33.
400
“Não creio estar enganado ao afirmar que entre nós, na Rússia, Valeri
Briussov (Briussov, "A verdade inútil", Mir iskusstva (O Mundo da arte),
São Petersburgo, 1902, tomo VII) foi o primeiro a falar da inutilidade
dessa "verdade" que se quis colocar a toda força em nossas cenas nos
últimos anos; foi também o primeiro a indicar caminhos diferentes para o
teatro dramático. Ele exigiu o abandono da verdade inútil das cenas
contemporâneas em prol da convenção consciente”. Meierhold,V. Sobre o
Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iii. Presságios
Literários do Novo Teatro, Op. Cit. p. 17.Conceito de
401
Meierhold, V. “programa dos cursos de encenação” Apud Picon-Vallin, B.
A Arte do Teatro: entre tradição e Vanguarda - Meyerhold e a cena

205
402
Em 1902 Valeri Briussov escreve o artigo “A verdade Inútil” . O conceito
do Teatro da Convenção Consciente, descrito então por ele, será uma espécie de
‘Norte’ das pesquisas Cênicas de Meierhold, o que está exposto nos vários
artigos que o encenador escreve de 1905 a 1912, reunidos no livro Sobre o
Teatro, sobretudo aqueles que fazem parte do texto História e Técnica do Teatro
(I. O Teatro-Estúdio, II. Teatro Naturalista e Teatro de Estados d’Alma, III.
Presságios Literários do Novo Teatro, IV. Primeiras Tentativas de Criação de um
Teatro da Convenção e V. O Teatro da Convenção, escritos entre 1905 e 1907).

No entanto o que no princípio era meio, com o desenvolvimento de uma


linguagem própria passa a ser fim. As primeiras pesquisas cênicas de Meierhold
tinham por objetivo colocar em cena o “novo drama”, ou seja, as peças
simbolistas, quebrando com a hegemonia do real, sustentado no naturalismo
pelas técnicas ilusionistas:

No teatro da convenção, a técnica luta contra o


procedimento da ilusão.403

Para tal o encenador investigou formas cênicas que fossem capazes de


alcançar não só aquilo que é visível, mas o intangível da espiritualidade, o
mistério e a poesia, procurando assim realizar um teatro de sugestão que, através
das sensações e das convenções teatrais conscientes, pudesse deixar à
imaginação do espectador a liberdade de completar o não-dito:

No teatro, o espectador é capaz de acrescentar com


sua imaginação o que permanece alusivo. É precisamente
esse Mistério e o desejo de vivenciá-lo que atrai tantas
pessoas ao teatro.(...) O teatro naturalista mostrou-se
bastante perseverante em sua vontade de eliminar da cena
a força do Mistério. 404

contemporânea. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2006,


p. 88.
402
Briussov, "A verdade inútil", Mir iskusstva (O Mundo da arte), São
Petersburgo, 1902, tomo VII.
403
Meyerhold, V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do
Teatro iv. O Teatro da Convenção Op. Cit. p. 29.
404
Meyerhold, V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do
Teatro ii. Teatro naturalista e teatro de estados de alma Op. Cit. p. 9.

206
Porém no decorrer de suas pesquisas o Teatro da Convenção deixará de
ser apenas um procedimento para realizar as formas do teatro simbolista para
tornar-se ele o próprio cerne do trabalho de Meierhold. A partir da ruptura com a
mimese, o encenador cria um novo paradigma onde a representação se assume
enquanto tal, a teatralidade vira linguagem explícita e o público passa a ser
considerado como co-autor da criação:

Enfim, a técnica convencional supõe no teatro, além


do autor, do encenador e do ator, um quarto criador: o
espectador. O teatro da convenção elabora encenações
onde a imaginação do espectador deve completar
criativamente o desenho das alusões colocadas em cena.
No teatro da convenção, o espectador não esquece em
nenhum momento que tem diante de si um ator que
representa, e o ator não esquece que tem à sua frente,
ao pé da cena, um público, e a seus lados um cenário...
405

Portanto a relação que se estabelece deixa de ser a da obra de arte


acabada, destinada a um receptor passivo, mas a de uma comunicação entre
sujeitos. Dessa forma a encenação Meyerholdiana propõe uma relação dialógica
entre a cena e o público, instaurando no teatro a idéia, tão cara ao século XX, de
um espectador ativo:

Existe entre os atores e o espectador uma fronteira


mágica (ou seja, a linha da boca de cena) que até hoje
vem dividindo o teatro em dois mundos estranhos um ao
outro: um que só faz agir, outro que só faz perceber, e
não existem veias capazes de reunir esses dois corpos
separados pela virtude de uma circulação sangüínea
comum, a das energias criativas.406

Um dos grandes objetivos do teatro de Meierhold passa a ser justamente o


de quebrar a quarta parede e colocar o “público” e a “cena” em contato, de modo
que um possa espelhar o outro, e dessa forma buscar um processo ativo de
transformação da dita realidade pela arte, e vice e versa:

405
Meyerhold, V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do
Teatro iv. O Teatro da Convenção Op. Cit. p. 29.
406
Meyerhold, V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do
Teatro iv. O Teatro da Convenção Op. Cit. p. 26.

207
Se o novo teatro torna-se dinâmico, então que ele o
seja completamente. Queremos nos reunir para criar,
para "agir" em conjunto, e não somente para contemplar
407
.
O reflexo desse desejo de comunhão criativa esta expresso na obra cênica
de Meyerhold, de várias formas: pela supressão da cortina; na construção de
tablados sobre o proscênio ou avançando em direção à platéia e na utilização do
proscênio como principal espaço de representação (Tristão e Isolda, Orfeu); com
a colocação de espelhos em cena, de forma que os espectadores se vejam no
ambiente da cena e com o espelhamento da cena em relação à platéia expressa
nas cores e formas do cenário (Como na Mascarada, de Lermontov).

Na iluminação a teatralidade se afirma em vários níveis: através da


supressão da “ribalta”, que separa os dois mundos, àquele do palco em relação à
sala; em uma escritura não realista da luz, que explicita seus próprios recursos de
linguagem, tais como focos que isolam as personagens e a utilização da luz para,
através de uma convenção formal, mudar o lugar e o tempo da ação (como o
caso exemplar de A Vida de Homem, de Leonid Andriéiev e O despertar da
Primavera de Wedekind); deixando visível a técnica e os refletores em cena.

Porém a grande revolução da assunção do teatro da convenção na


iluminação vem em sentido inverso àquele que inaugurou o ilusionismo na
iluminação, quando Wagner, em 1876, apagou a luz da platéia separando o palco
da platéia, ou melhor, apagando a realidade da platéia em privilégio da existência
da ilusão dramática. Em 1910 (no mesmo ano em que Max Reinhardt coloca a
platéia em cena no Édipo Rei do Circo Schumman) Meierhold volta a acender a
luz na platéia de Don Juan, de Molière e promove a comunhão entre
espectadores e atores proposta por Peter Behrens e Georg Fuchs ou a grande
festa da participação da Catedral do Futuro de Appia. Meierhold, nesta simples
ação luminosa, coloca novamente sala e cena na mesma ambiência: ao mesmo
tempo “cena”, da qual participa a platéia, e “sala”, revelando a realidade teatral da
representação; esta ambigüidade, que faz parte da natureza convencional de toda
a representação teatral, tem agora uma função épica explícita.

407
Meyerhold, V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do
Teatro iv. O Teatro da Convenção Op. Cit. p. 27.

208
A iluminação de Don Juan é exemplar da iluminação que assume o ponto
de vista da teatralidade:

Além de colocar a sala no mesmo ambiente da cena, Meierhold e Golovine


408
também jogam com claros e escuros para articular explicitamente espaço e
tempo: o palco é dividido em dois planos de ação (o primeiro no proscênio e o
segundo no palco, guardando um terceiro para a pintura de fundo) e a iluminação
transporta a ação para um ou outro espaço, transportando e editando a ação e
incluindo ou não a platéia. Também articula e faz contracenar técnicas do teatro
antigo com a tecnologia recente: desta forma a luz elétrica convive com três
grandes lustres no proscênio, com centenas de velas, que colocam todo o
ambiente do teatro no brilho das luzes vivas e tremeluzentes do séc. XVII,
enquanto em outros momentos a escuridão do primeiro plano permite a realização
de um teatro de sombras chinês ou jogos pirotécnicos, no fundo, que nos
lembram os efeitos com fogo do Renascimento e do Barroco. Por fim, Meierhold
utiliza-se de um coro de “pequenos negrinhos”, que têm a mesma função dos
409
Kurombo do teatro Kabuki, personagens com função puramente teatral, jogam
perfumes no ar, levam e trazem elementos de cena e de figurino, acendem e
apagam velas, levam lanternas para os atores quando a ação se passa à noite
(como no teatro grego e Elisabetano) e chegam a iluminar os atores em cena,
explicitando de vez a função de escritura cênica da luz.

A iluminação nos espetáculos de Meierhold caminha junto com o teatro da


teatralidade, no sentido de, não apenas ser um instrumento de linguagem
consciente, mas também revelar-se em cena enquanto tal. Adquire então uma
função épica, retomada por Erwin Piscator e Bertolt Brecht.

Todas essas ferramentas da encenação no teatro da convenção servem


para colocar o espectador “dentro” da cena, ou a cena “dentro” da platéia,

408
Cenógrafo e grande parceiro de Meierhold nas montagens realizadas nos
teatros imperiais de São Petersburgo (Teatro Mariinski e Alexandrinski),
de 1908 a 1917.
409
“Graças às descrições das representações teatrais japonesas nós
sabemos sobre esses personagens particulares, os servidores da cena –
chamados de Kurombo – vestidos com um figurino negro, têm entre outras
funções: (...)ajoelhados aos pés dos heróis, iluminam a fisionomia do
ator com a ajuda de uma vela pregada na extremidade de um longo bastão”
Meierhold, V. La Mise en scène de Don Juan de Molière in Écrits sur Le
Théâtre. Op. Cit. p.162.

209
aproximando teatro e realidade, espelhando dois mundos, ou, através da
contraposição do grotesco, transformando potencialmente realidade e
representação para sugerir a existência de uma terceira possibilidade; o “drama
novo” dá lugar à revolução da teatralidade que, por sua vez, suscita a criação de
um “mundo novo”.

210
CAPÍTULO 12
À LUZ DA LINGUAGEM

Este capítulo final busca relacionar todos os temas, momentos históricos,


movimentos artísticos e concepções específicas de encenação, tratados durante
este trabalho, numa leitura transversal, em busca de uma articulação que nos
permita conceber um percurso de construção da linguagem da iluminação cênica
como Scriptura do visível.

Do início ao século XV o teatro é iluminado basicamente pela luz do Sol e a


palavra determina o tempo e o lugar da ação por um princípio épico, ou seja, a
narrativa. Enquanto o teatro acontece à luz do dia não é necessário, nem possível
à luz imitar a natureza. Nesse longo período, que poderíamos chamar livremente
de uma pré-história da iluminação cênica, a questão da visibilidade estava
resolvida à priori com a luz do Sol, portanto a utilização da luz artificial tinha por
função primordial realizar efeitos especiais.

Mas podemos nos perguntar: Para que e por que recorrer ao fogo se o Sol
iluminava a todos e as palavras narravam toda a espécie de descrição
complementar à ação?

Também podemos arriscar uma hipótese: A luz do fogo, os efeitos


pirotécnicos e a reflexão da luz do Sol por meio de metais polidos e todos os
efeitos especiais inventados neste longo período da história tem essencialmente
um único objetivo, são desde o início uma forma de atravessar o visível e o
dizível, rumo às manifestações do divino ou do terrível, com o objetivo de causar
maravilhamento ou pavor.

Quando a palavra não chega, é preciso ultrapassá-la e quando a imagem


real não basta, é preciso cercá-la de mistério, ofuscar a vista e dar poderes
inumanos aos homens através da transformação do visível.

O fogo é e sempre foi um elemento mágico, ligado à transformação


alquímica e religiosa. O espaço cênico não é um lugar qualquer, é um limiar entre
o real e o irreal, entre o sagrado e o profano, onde vemos representadas

211
manifestações do divino e do terrível sobre os homens, histórias fantásticas e
casos exemplares onde deuses e heróis convivem com os simples mortais, como
nós, onde os pecadores podem ser punidos pelas chamas terríveis das bocas do
inferno, por nós, os milagres representados diante dos nossos olhos e os santos
elevados aos céus em meio ao fulgor da luz divina.

A aparição do deus ex machina não tem apenas a função de uma


resolução da trama, é literalmente uma hierofania (cujo sentido etimológico
410
significa algo de sagrado que se nos revela) . Essa manifestação dos deuses
sobre a cena, mesmo que baixados à vista de todos pela mechané (uma espécie
de guindaste) e acompanhado de brilhos e reflexos dos metais polidos que
concentram e manipulam a luz do Sol, tem um forte poder sobre a platéia porque
representa de forma visível, o invisível, e, como qualquer símbolo exige a
participação da imaginação da platéia.

Os mecanismos de linguagem cênica não estão ali para enganar ou iludir a


platéia, que não acredita que um efeito especial seja verdadeiro, por melhor que
ele seja, mas para impressionar o seu cérebro, através dos olhos, e colocar a
imaginação e o espírito da platéia como participante de uma celebração comum a
todos, que confere existência ao sagrado, ali representado por truques. Quando a
paixão de cristo é representada dentro de uma igreja e eivada de misticismo, pela
música, pela transcendência da luz dos vitrais projetada na fumaça dos incensos
e pelo mistério da luz bruxuleante das velas, aquelas imagens representam a
Paixão de Cristo porque é a paixão e a fé da platéia que se justapõe aos cenários
toscos e aos padres que recitam os papéis de Jesus ou mesmo da Virgem.
Quando vemos desenhos dos cenários terríveis das bocas do inferno dos
Mistérios medievais, com fogo saindo pela boca, podemos imaginar o efeito que
causa na platéia, não porque ela se ilude com o que vê, mas porque projeta sobre
aquela imagem o que não vê, são os seus próprios medos que tornam terríveis os
cenários e os efeitos pirotécnicos.

410
“Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda a
hierofania, até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto
qualquer, torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo,
(...) sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural.”
Eliade, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001,
pp. 17-18.

212
É por isso que Gordon Craig, que considerava o teatro uma arte
especialmente visual, dava grande importância às cenas de aparição,
principalmente em Shakespeare, tanto em suas encenações como no campo das
concepções teóricas, considerando-as como o centro dos sonhos do poeta, que
devem regular e determinar toda a encenação já que “O simples fato da sua
presença proíbe qualquer figuração realista” 411. No artigo dedicado aos Espectros
nas Tragédias de Shakespeare, ele descreve o sentido da importância da
aparição dos seres invisíveis para o mundo construído por Shakespeare em suas
tragédias:

Se o encenador concentrar a sua atenção e a do


público nas coisas visíveis e materiais, a peça perderá
uma parte da sua grandeza e significação. Mas se, pelo
contrário, fizer intervir, sem o tornar grotesco, o
elemento sobrenatural, em lugar de uma ação puramente
material, obterá um encadeamento psicológico; terá de
fazer ouvir à nossa alma, senão aos nossos ouvidos “esse
grave e contínuo sussurrar entre o homem e seu destino”;
que nos mostre “os passos incertos da criatura, segundo
se aproxima ou se afasta da verdade, da beleza ou de
Deus” 412.

Esta teoria é a mesma que excita a catarse do público grego, a fé religiosa


na Paixão da Baixa Idade Média, o terror dos Infernos nos Milagres da Alta Idade
Média ou o mistério do sobrenatural em Shakespeare.

A manifestação do invisível, através do visível, é também o mesmo


princípio da sugestão que a norteia a criação dos simbolistas do começo do
século XX ou que, incrivelmente, pode ser apreendida na ciência que estuda a
visão, expressa na teoria da percepção.

Quando dizemos que os olhos são a janela da alma, isto é uma metáfora,
mas também é uma representação do complexo processo da percepção visual,
no qual a luz emitida é refletida pela matéria, atinge o sistema ótico dos nossos
olhos que projeta uma imagem (invertida e diminuída) no fundo dos olhos, a

411
Craig, Edward Gordon. “Dos Espectros nas tragédias de Shakespeare” in
Da Arte do Teatro. Lisboa: Ed. Arcádia, Lisboa, 1963, p. 271.
412
Idem Ibidem, p. 275. (As citações do texto são de Maeterlinck)

213
retina, que impressiona os sensíveis músculos das sete camadas da retina que
enviam impulsos elétricos para o cérebro, que por sua vez decodifica essas
mensagens e representa uma imagem para o nosso cérebro. A luz, ou seja, a
vibração eletromagnética é uma espécie de mensageira de impulsos, que
impressiona nossos olhos e é traduzida no cérebro por uma série de elementos
de composição visual como cor, forma, volume, profundidade, distância. O
conjunto ou a Gestalt, é resultado da nossa capacidade de interpretar esse
conjunto de signos, segundo a nossa subjetividade:

Seria possível distinguir a imagem e a visão. A


primeira seria um fenômeno óptico, ela começa e termina
nos olhos, no sistema ocular. A segunda seria um
fenômeno mental: se ela começa nos olhos, é no espírito
que ela se realiza 413

A visão é, portanto, também um ato de representação e criação, uma


interação entre a nossa subjetividade e o que chamamos de realidade.

Nesse sentido não existe diferenças de essência entre um signo visual e


um signo lingüístico, ambos pressupõem significantes e significados, uma
linguagem de decodificação comum e uma representação, que é ao mesmo
tempo cultural e subjetiva.

A iluminação, como a poesia, manipula os signos dessa representação,


criando metáforas, deixando lacunas, transfigurando imagens que suscitam a
participação do cérebro ou da “alma” humana. Ou seja, na mesma medida em
que o artista da língua manipula a palavra, o encenador ou o iluminador
manipulam as imagens através da luz criando uma linguagem, visual, que se
justapõe ou se contrapõe ao texto ou a música, como parte do todo do espetáculo
teatral.

Quando no teatro grego ou elisabetano, em pleno dia, um ator aparece


414
com uma tocha na mão “para designar ‘noite’ ou ‘escuridão’” – costume

413
Picon-Valin, B. A encenação: visão e imagens in A Arte do Teatro: entre
tradição e Vanguarda - Meyerhold e a cena contemporânea. Op. Cit. p. 91.
414
Camargo, Roberto Gill. A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de
Cultura, 2000, p. 14.

214
analisado por Roberto Gill Camargo como primeiro fator de representação ou
convenção teatral na história da iluminação cênica, portanto primo lampejo de
linguagem – o sentido não é apenas a da descrição da hora e lugar, mas
concretizar, por contraste, a atmosfera e a simbologia da noite. Ao acender uma
pequena chama em cena, todos os olhos focam naquela luz e o que está em
volta, através dos olhos da nossa imaginação, como que mergulha na escuridão
misteriosa, de onde pode surgir o espectro do Rei Hamlet ou as três bruxas de
Macbeth.

* * *

Durante o século XVI o espetáculo teatral se abriga em espaços


fechados, primeiro improvisados e depois em teatros, sem acesso à luz do Sol.
Estava colocado o problema da iluminação cênica como uma necessidade
fundamental dos teatros. Embora as técnicas de iluminação tenham se
transformado bastante do século XVI até o fim do século XIX, foram sempre
formas diferentes de utilização do fogo: velas, lamparinas, lampiões, gás e
limeligths. Durante esses quatro séculos a luz terá por função principal a visibilidade.

É, portanto, a partir na necessidade de iluminar as apresentações em


espaços fechados que começa o primeiro grande desenvolvimento tecnológico da
iluminação cênica, pois, se de início as fontes de luz foram dispostas de forma
aleatória, logo a luz demanda a concepção de uma técnica específica.

No século XVI – sob os auspícios do Renascimento italiano, que une em


um mesmo pensamento integrado arte, ciência e técnica – instaurou-se de modo
consistente o estudo, a pesquisa e o incremento técnico da cenografia teatral, que
incluiu em seu bojo a iluminação cênica. Os arquitetos e cenógrafos do
Renascimento tomaram para si a tarefa de manipular artificialmente a luz do fogo
e iluminar os espetáculos, em relação íntima com o desenvolvimento da
cenografia e suas técnicas, instaurando uma longa tradição dos cenógrafos-
iluminadores.

215
É o caso de Sebastiano Sérlio e Sabbattini (assim como muitos outros
citados no capítulo dois), que aliam a ciência à arte na concepção da cenografia e
criam máquinas e efeitos cênicos, muitos eles integrando a cenografia pictórica,
construção de volumes, maquinaria e iluminação cênica. Suas obras práticas e
teóricas constituem a base de uma nova ciência aplicada da cena, a cenotécnica
(que neste momento encampa a luminotécnica). Muitos encenadores e
cenógrafos do século XX estudaram, retomaram ou reinterpretaram as obras
desses arquitetos 415.

De uma maneira geral a luz era pensada como parte integrante da


cenografia e seus movimentos. Sebastiano Sérlio, por exemplo, é bastante
preciso em Architettura, ao separar a luz geral que ilumina o cenário e a ação e os
“efeitos especiais”, “truques” que transformam a luz da cena e podem interferir na
ação dramática. Mas como o próprio nome já diz, por enquanto são efeitos
“especiais”.

Mas há um episódio todo especial na história do teatro, que merece ser


analisado separadamente. É o caso da prática e concepções extemporâneas do
dramaturgo, teórico e diretor teatral Leone de’Sommi – que no século XVI já
concebia a iluminação cênica como linguagem integrante da progressão
dramática do espetáculo. Leone de’Sommi divide as fontes de luz em camadas,
usadas para diferentes funções, simultâneas, no espetáculo: visibilidade, desenho
(perspectiva), efeitos e atmosferas. Ele não só tem consciência da importância da
luz no desenvolvimento da tensão dramática, como expõe em seu Dialoghi in
Matéria di Representationi Sceniche a ênfase do efeito emocional no movimento
da luz; esclarecendo que é a diferença e a relação entre o que vem antes e o que
vem depois que constitui o efeito sobre a platéia. Ora essa concepção é básica
para a idéia de escritura da luz no tempo e pressupõe noções que hoje em dia se
embasam nas modernas teorias da percepção como a adaptação do olho e a
teoria do contraste simultâneo. Não é à toa que os pintores do Renascimento são
os primeiros a elaborar uma teoria das cores, da qual faz parte, por exemplo, a

415
Não é à toa que Gordon Craig passou grande parte de sua vida dedicado
aos estudos profundos da obra dos artistas Renascentistas, principalmente
os arquitetos.

216
teoria das cores primárias de Alberti e as teorias da perspectiva aérea de
Leonardo Da Vinci.

A grande paixão do Renascimento italiano pela perspectiva trouxe o estudo


da óptica, da matemática e da geometria para os palcos. Os cenógrafos uniram
seus conhecimentos de arquitetura e pintura às ciências para aumentar a
perspectiva da cena e a mobilidade da maquinaria, criando o percurso que vai do
palco renascentista para o palco italiano.

Estes cenógrafos-iluminadores desenvolveram as bases geométricas do


desenho técnico de luz que usamos até hoje, diversificaram a posição das fontes
de luz e estudaram os ângulos de incidência, de forma a criar volume e aumentar
a noção de profundidade: o ângulo de 45º para iluminar de forma harmoniosa, as
luzes laterais para aumentar a noção de perspectiva, a luz de um lado só, para
desenhar o volume, o contra-luz para destacar a figura do fundo. A composição
do desenho de luz, suas regras e procedimentos, manhas e manias, todas
baseadas na pujança da pintura renascentista, devem-se à racionalidade genial
destes artistas da técnica. De alguma forma toda a longa história da relação entre
a iluminação e a pintura, incluindo a criação de atmosferas luminosas e o uso de
cores se instaura no teatro sob as graças do Renascimento e sua filosofia
totalizante, humanista e naturalista.

A nossa concepção naturalista e científica do mundo


é certamente, na sua essência, uma criação da
Renascença.416

Além de desenvolver a iluminação cênica e seus princípios básicos e de


compilá-las em importantes obras dedicadas à arquitetura, cenografia,
cenotécnica e luminotécnica, o Renascimento também inspirou a idéia da
representação da natureza no palco e da verossimilhança como princípio básico
da cenografia e da iluminação cênica, teoria que vigorou de maneira quase
hegemônica até o fim do século XIX e ainda tem grande importância nas artes
cênicas, assim como nas demais artes da representação, como o cinema ou a
TV.

416
Hauser, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo:
Mestre Jou, 1980-1982. Volume 1. p. 357.

217
É lógico que nesse tempo todo, as marés levaram a arte da cena ora mais
para o fantástico e o maravilhoso, como no Barroco, ora mais para o
comedimento, clássico; ora para o gênio romântico e suas atmosferas
emocionais, ora para a racionalidade do Realismo e do Naturalismo, com o
detalhamento e a precisão dos ângulos de incidência da luz. Mas
independentemente do vem e vai do pêndulo que leva e trás a arte em uma
417
oposição antitética entre o Clássico e o Romântico ou mesmo de todas as
diferenças estilísticas e de concepção do mundo, das tendências mais ou menos
emocionais e dos movimentos da dramaturgia – no que se refere à arte do
espetáculo, tanto na cenografia e nos figurinos, quanto na iluminação,
encontramos uma linha ascendente rumo à verossimilhança e à busca do real, de
forma cada vez menos esquemática e mais minuciosa e detalhista, por quatro
séculos. 418

Especificamente na iluminação cênica, as pesquisas técnicas e estéticas


desse longo período se referem principalmente às diversas formas de copiar a luz
da natureza: Para dar ao palco a idéia de profundidade e reproduzir as paisagens
em cena, sucedem-se técnicas como o telão pintado em perspectiva, as telas
transparentes com uma paisagem pintada em camadas, iluminadas pela lateral
(os dioramas), a cúpula Fortuny, que imita a atmosfera e rebate a luz, tornando-a
difusa e o ciclorama, onde um fundo azul imita a distância do horizonte. Os efeitos
especiais na luz são quase sempre cópias dos grandes espetáculos da natureza
como as nuvens que se movimentam, raios, arco-íris, o Sol nascente, o poente, a

417
“Ele (o Romantismo) não é apenas uma configuração estilística ou, como
querem alguns, uma das duas modalidades polares e antitéticas –
Classicismo e Romantismo – de todo o fazer artístico do espírito humano”.
Guinsburg, J. “Romantismo, Historicismo e História” in O Romantismo. São
Paulo: Ed. Perspectiva, 1985.
418
Ressalva feita ao Barroco e suas formas alegóricas onde os elementos
da natureza são representados mais como potências ou personagens do que
forças naturais, as emoções ainda volteiam as formas, as luzes são mais
intensas e livres, o contraste entre luz e sombra é saturado, os efeitos
especiais não buscam a ilusão, mas o truque como truque. Por isso o
Barroco utiliza-se sem pudores de miríades de efeitos de cenotécnica e
luminotécnica como explosões, incêndios, ilusões de óptica, projeções de
sombras, com o objetivo explícito de maravilhar e aterrorizar a platéia.
A vida vira espetáculo e o espetáculo, a vida. Porém as formas do
espetáculo barroco têm mais liberdade de se expandir na ópera, que é
grandiloqüente e convencional por natureza, do que no teatro falado.

218
lua, as estrelas... Desde as máquinas de Sabbattinni no Renascimento419 até as
os refletores de efeito de Hugo Bahr que projetam imagens com movimento, os
objetivos são os mesmos, reproduzir a natureza no palco, como um microcosmo
da realidade

No Romantismo, que acompanha a chegada do gás, as atmosferas


emocionais invadem os palcos, a possibilidade de controle das intensidades
permite seguir os conselhos de Leone de’Sommi, movimentando a luz, respirando
com o drama da peça, para levar a platéia junto com a emoção do espetáculo, do
sombrio ao brilhante, do soturno ao júbilo, da infelicidade para a felicidade nos
dramas e da felicidade para a infelicidade nas tragédias, os climas são a tônica
dominante da luz romântica. Mas sem arroubos bruscos ou incoerentes, como
uma noite de luar, um belo amanhecer, uma floresta escura ou uma festa
brilhante, a luz é então como um adjetivo ou uma linda música de
acompanhamento para fazer rir ou chorar. Das mais sofisticadas atmosferas
luminosas de Stanislávski ao mais óbvio melodrama televisivo, para não falar na
maestria técnica das óperas e musicais neo-românticas, os climas luminosos têm
um pé no Romantismo.

De resto, a luz permanece bem comportada, tornando visível a cena,


ganhando volumes e cada vez mais coerência e detalhes. As luas, nuvens,
nascentes e poentes se aprimoram causando suspiros.

Talvez no fundo o princípio mágico de representar para possuir, o mesmo


que muitas teorias declaram ser a razão das pinturas rupestres, esteja por trás de
tamanha obsessão por reproduzir a realidade no palco. Como se o homem, com o
poder de capturar a natureza em uma caixinha, pudesse ter poder sobre ela,
deixando de ser criatura para tornar-se criador.

Com o positivismo e o progresso das ciências embalando o movimento


rumo ao realismo e ao naturalismo, as experiências científicas também tomam o
palco de assalto. As primeiras experiências com a eletricidade virada energia

419
Por exemplo, em Pratique pour fabriquer Scenes et machines de Theatre
(trad. francesa), Sabbattini descreve inúmeras formas de construir
máquinas de nuvens (paradas no fundo, que passam da direita para
esquerda, que vem de trás para frente, etc).

219
luminosa chegam aos palcos cinqüenta anos antes de chegar às ruas e às casas.
E quando o “Sol do Profeta” 420 nasce na Ópera de Paris em 1849, anuncia novos
tempos onde arte e ciência, são um; como já prometera o Renascimento. A
iluminação é então pura potência de um novo amanhecer da civilização, um
símbolo dos novos tempos. Todas as grandes óperas têm os seus “mestres dos
fenômenos físicos no teatro”, “chefes de eletricistas” (antes da eletricidade) e
“especialistas em óptica”. Os novos criadores de máquinas cênicas e efeitos
especiais não são mais arquitetos ou pintores, são os cientistas-iluminadores,
como Jules Duboscq e Hugo Bähr. Os mestres de ofício das projeções são
antepassados diretos não apenas dos iluminadores, mas também dos irmãos
Lumière e das muitas profissões de fé da luz e das “novas tecnologias” que nunca
param de ficar velhas à tarde e de renascer a cada novo dia.

Em 1879 a invenção da lâmpada incandescente possibilitou a


generalização do uso da eletricidade na iluminação. Ela permitia uma grande
intensidade de luz, com um custo possível e uma segurança muito maior do que o
fogo. A partir de 1880 os teatros começam a trocar seus sistemas de iluminação a
gás por sistemas elétricos com uma rapidez inacreditável. Essa descoberta foi
considerada a grande revolução da iluminação cênica, a ponto de muitos
historiadores pensarem nesta data como o início da história da iluminação ou
mesmo da encenação moderna. Com a descoberta da lâmpada incandescente,
juntamente com a criação das resistências (dimmers), a eletricidade permitiu à
iluminação cênica o controle central de todas as fontes de luz do teatro. E mais do
que isso (que já havia sido conquistado em parte com o gás), o Black-out.

A grande novidade da iluminação elétrica, portanto, não é apenas a


qualidade da luz, é a possibilidade da não-luz, que ofuscada pela lâmpada acesa
demorará décadas para ser percebida. Além de dar visibilidade, a iluminação
cênica ganhou o poder de esconder. Num piscar de olhos faz aparecer e
desaparecer a cena, ou parte dela. Através do movimento entre a luz e as trevas,
e suas miríades de combinações, o teatro acessa além do visível, o invisível; e
através dele a sugestão, a comunicação possível daquilo que é indizível.

420
“Aparelho destinado a produzir o efeito do Sol levantando (de O
Profeta)”. Composto de uma lâmpada de arco-voltaico e um espelho
parabólico.

220
O Black-out era a metade que faltava, a pausa, o silêncio que dá sentido à
articulação dessa língua. O contraste originário entre luz e sombra dá forma a
nossa percepção do espaço e desde o princípio dos tempos o dia e a noite se
sucedem marcando a passagem do tempo. Com a possibilidade de controlar o
caminho da luz para a não-luz, de forma independente em cada um de seus
aparelhos de iluminação elétrica, a luz ganha a potência de articular o desenho do
espaço da cena para a percepção visual em uma sucessão temporal. Ou seja, o
movimento da luz é a articulação do visível no espaço e no tempo.

Appia é o grande profeta do teatro do futuro porque no final do século XIX


teve essa iluminação de gênio, enquanto grande parte de seus contemporâneos
ainda usavam da eletricidade para fazer o sol, a lua e as estrelas e prendê-las
numa caixinha, ele apreendeu o sentido estrutural, a potência da luz como
linguagem, análoga à da música, de comunicação direta entre os sentidos e a
alma. Em seus textos sobre a encenação do drama poético musical de Wagner
ele escreveu a base da gramática estética da nova língua como um legado para
os homens do teatro do século XX.

Ainda foi preciso mudar o paradigma do teatro para que a luz deixasse de
ser pensada e utilizada unicamente como instrumento da visibilidade ou efeito
especial da ciência para arrebatar suspiros. Será necessária uma razão para que
deixe de se ofuscar e ser ofuscada pela própria beleza.421 Mas os meios para tal
estão disponíveis a partir de 1880.

Aqui chegamos a um ponto fundamental, à razão de ser desta dissertação.


A iluminação cênica passa a ter com a utilização da eletricidade o poder, através
do movimento, de desenvolver uma partitura do que é visível em cena, e como é
visível. E, portanto, o poder de se transformar em linguagem. Mas o instrumento
da mudança não é a mudança. Nem o pincel e as tintas são a pintura. A
iluminação cênica não virou linguagem por causa da utilização da luz elétrica no
teatro, embora ela tenha dado a ferramenta necessária para isso, assim como a
iluminação não é linguagem à priori, só porque usamos de alta tecnologia na
projeção de luzes e imagens. A linguagem é uma possibilidade de articulação,

421
Até hoje, infelizmente, é comum encontrar diretores e iluminadores que
só entendem a luz nessa sua acepção adjetiva: deixar bonito.

221
uma potência que depende da necessidade e da prática para se atualizar, assim
como o discurso depende do conhecimento da língua e também da necessidade
da comunicação que o articula. É por isso que além de falar, o homem necessita
compreender a estrutura da fala e as necessidades do discurso. É através deste
processo de compreensão e articulação que o som vira língua, a língua vira
linguagem, o discurso, obra de arte. Este é um processo da humanidade, mas
também é um processo que se re-atualiza de forma diferente no florescimento de
cada cultura e dos indivíduos que a compõem.

Esse processo de transformação da iluminação cênica em linguagem,


como já foi esboçado aqui, não aconteceu de um momento para o outro; da
descoberta tecnológica à incorporação desta tecnologia no discurso, foi
necessário tempo e, sobretudo, o surgimento da arte da encenação, que criou a
necessidade e o conceito da luz como verbo do olhar. A linguagem da encenação
moderna cria uma nova função para a iluminação cênica na medida em que se
liberta da idéia da arte como imitação da realidade.

Esse processo de travessia da realidade em direção à subjetividade,


análogo ao da visão, foi empreendido pela própria superação do naturalismo rumo
ao impressionismo e, sobretudo, na arte do espetáculo, pela ruptura com a
realidade realizada pelo simbolismo, em sua busca da verdade do espírito.
Através de procedimentos similares aos da poesia, o teatro simbolista usa das
elipses e metáforas da imagem, para atingir seu ideal de “síntese e sugestão”,
excitando a imaginação da platéia a participar criativamente da cena. O teatro
atravessa o visível rumo ao invisível e recria a realidade em cena segundo a
subjetividade, inspirado pela abstração transcendente da música, com a parceria
concreta dos poetas simbolistas e dos pintores modernos. A sinestesia tece uma
rede de relações sensoriais entre a música, o texto, a pintura e a iluminação nos
espetáculos teatrais.

A arte do espetáculo tem na idéia wagneriana de Obra de Arte Conjunta,


uma das suas grandes influências. Aceita ou criticada veementemente, mas relida
de mil formas pelos encenadores do século XX, a junção de todas as artes no
palco leva a encenação teatral a ser pensada como uma linguagem que articula
um conjunto de linguagens.

222
Craig é o artista de teatro que melhor encarna e concebe a idéia do teatro
total, como uma articulação de elementos visuais e sonoros em nome de uma
criação coesa da arte e técnica da cena, orquestrada pelo encenador. Assim
como Appia, Craig considerou o movimento “como a base desta arte de
revelação”. A criação do espetáculo deve ser então resultado de uma síntese
conceitual que coordena os vários elementos da cena em movimento. A
iluminação é, nesse sistema, ao mesmo tempo um elemento articulador e
simbólico, através da sua capacidade de mostrar e esconder e de pintar a cena
com uma paleta de cores móveis.

A iluminação finalmente liberta das amarras da reprodução da realidade


transpõe o visível para criar novas formas, por meio de uma reorganização dos
elementos visuais: as linhas, formas, volumes e cores ganham flexibilidade
através do movimento da luz em sua relação com a matéria e os olhos.

As vanguardas modernas do começo do séc. XX, por sua vez,


empreendem nova revolução conceitual e adotam a teatralidade como forma de
construção explícita da cena. O teatro deixa de querer ser realidade para se
assumir enquanto teatro e, como tal, pode jogar livre e abertamente com suas
linguagens.

A luz deixa de copiar o sol, a lareira e o abajur das casas de família e


passa a escrever no espaço e no tempo, como uma linguagem explícita da cena.
Além de dar visibilidade, volume, beleza, localização espacial e atmosfera apropriada
à peça, a luz passa a ter por função a edição do visível no espaço e no tempo, vira,
portanto, elemento estrutural e estruturante na construção do espetáculo.

Essa revolução não é só estética, não é só técnica, a iluminação cênica é


ao mesmo tempo e indissoluvelmente arte e técnica.

A luz elétrica possibilitou os meios técnicos concretos para esta mudança


conceitual no teatro, assim como possibilitou a criação de novas formas de arte:
as artes da tecnologia.

Quando o homem descobre, a partir do estudo do órgão da visão, como


capturar a luz em uma câmara escura e reproduzi-la como imagem, inventa a

223
fotografia, que é pensada inicialmente como uma forma de reprodução fiel da
realidade. A fotografia, que a princípio foi uma ameaça à sobrevivência dos
pintores, passou a ser o grande dado libertador das artes plásticas. A pintura
deixa de retratar a realidade para recriá-la conscientemente, liberta-se da
realidade como fim.

Multiplicando várias fotografias em seqüência, o resultado é a ilusão do


movimento. Ao projetar luz através de imagens, a uma velocidade de vinte e
quatro quadros por segundo, o homem cria o cinema. Da mesma forma que a
fotografia mudou as artes plásticas o cinema transformará as artes cênicas. O
cinema exige do teatro que se recrie, que se utilize conscientemente da presença
viva do ator, da relação com o espectador, do seu instrumento específico de
teatralidade. Mas o cinema também muda a nossa forma de construir a narrativa,
de montar cenas, de pensar e de ver o mundo.

Nos anos 1970 tem início uma revolução tecnológica na iluminação teatral.
Surgem as lâmpadas de descarga. Essas lâmpadas não acendem mais por
aquecimento de um filamento, ou seja, por incandescência, mas por reações
químicas entre vapores gasosos, a partir de uma descarga de eletricidade de alta
potência. O resultado é maior intensidade e temperaturas de cor nunca dantes
imaginadas no teatro. As luzes frias, com temperatura de luz do dia422 passam a
contracenar com as luzes incandescentes. Essas lâmpadas são muito utilizadas
no cinema e nos novos projetores computadorizados, os moving-lights. Essa nova
geração de refletores da era digital constitui-se de uma lâmpada de descarga
refletida em um espelho móvel. Através deste espelho a luz se movimenta em
cena, possibilitando além de um mesmo refletor para muitos efeitos, o movimento
dos fachos de luz. Os movimentos da luz em cena, por sua vez, ganharam nas
mesas digitais uma potência de controle simultâneo de miríades de refletores e
outros recursos cênicos baseados na eletricidade.

Outra reviravolta tecnológica está em curso e sua proposição vem desde o


início do século passado com a projeção de imagens sobre a cena. No desejo de
movimento de Appia e nos delírios técnicos de Craig, num rende-vouz entre
Meierhold e Eisenstein, nos slides de Piscator e Brecht, nas projeções de luz de

422
Em torno de 5.500oK.

224
Svoboda e Richard Pilbrow, nas parcerias entre a luz, a cenografia e o vídeo. Nos
anos 90 estas projeções e seus projetores com lâmpadas de alta potência
chegam ao Brasil. A próxima geração de refletores, os catalysts, além de luz em
movimento, trazem embutido um projetor de alta potência. As suas luzes serão
imagens em movimento, com intensidade de luz de descarga. Este caminho leva
a uma parceria cada vez maior da arte do teatro com a do cinema, vídeo, artes
plásticas e gráficas e as demais artes da visão, ou seria melhor dizer do olhar.
Unindo o ao vivo do teatro com a tecnologia das imagens em movimento,
projetadas em cena, como luz. Abstrata ou narrativa, parada ou em movimento,
denotativa ou conotativa, pasteurizada ou obra de arte, é mais um plano,
luminoso, de significação que entra na dança do teatro.

Do cinema para a TV, da TV para o VT, do analógico ao digital, do real ao


virtual, as imagens correm hoje à velocidade da luz através de fibras óticas que
formam uma rede mundial. Nestes últimos cento e cinqüenta anos a relação entre
tecnologia e arte mudou com tamanha rapidez, que talvez não tenhamos tempo
sequer de refletir sobre a extensão dessa mudança para a existência humana. A
visão mudou. O tempo mudou. A noção de realidade mudou. Vivemos em um
mundo de imagens em movimento, geradas por uma dança de luzes. Todas ligadas
na tomada. A eletricidade gera a energia que move grande parte do mundo. A
lâmpada é metáfora de idéia. Iluminação é metáfora de sabedoria. “Power” é
energia e é poder.

Se a descoberta e utilização da eletricidade como energia geradora de


aquecimento, iluminação, imagens e movimento transformou nossa existência de
tal forma, não é de se esperar que essas mudanças tenham reflexos profundos
em nossa maneira de ver e fazer teatro? E tenham também transformado a nossa
relação com a idéia de representação e linguagem?

A cada vez que um espetáculo se articula ele precisa relembrar seu lugar
no espaço e no tempo, se entender enquanto linguagem complexa, que articula
várias linguagens. Essas linguagens falam juntas ou não, criam harmonias ou
confusão, contraponto ou bagunça. Não tem mais sentido - depois de todo o
teatro do séc. XX - entender a iluminação hoje apenas como desenho de luz no
espaço, ela é primordialmente escritura no espaço/tempo. O que significa dizer

225
que a luz coloca seus desenhos no tempo, como a música suas harmonias, e
através do seu movimento escolhe o que é visível ou não no espetáculo. Nesse
sentido é cúmplice fundamental da direção na significação da encenação. Para
isso precisa se construir junto com o espetáculo.

As lâmpadas não falam per si. Se não houver por parte do iluminador um
conhecimento profundo do texto, do processo de construção da cena e
articulação com as diversas linguagens de que é composto o espetáculo, segundo
os conceitos da encenação, as lâmpadas de um teatro valem tanto quanto a
lâmpada de uma sala de estar, ou de uma vitrine de roupas. O roteiro da
iluminação cênica é o texto da luz. E como tal precisa ter consciência do seu
poder de articulação. É preciso fazer a língua falar com sentido, para ser de fato
linguagem.

Se os profissionais da cena, entre eles os encenadores e os iluminadores


não souberem pensar a luz como linguagem estrutural e estruturante da cena
contemporânea, ela não o será, assim como não o foi quando a luz elétrica
surgiu, simplesmente porque “deu a luz”. Daí a importância de pensar o processo
de transformação da luz em linguagem na história do teatro, para poder atualizá-
lo aqui e agora.

Nessa história arte e tecnologia se sobrepõem, técnica e estética se


irmanam no trabalho dos arquitetos, cenógrafos, encenadores e, por fim,
iluminadores, que criam e re-criam a linguagem da iluminação cênica, articulando
o visível e o invisível, formas e conteúdos, significantes e significados, construção
e desconstrução dos signos, aprendizado e transgressão, tradição e ruptura.

A importância da consciência desse processo não está no que ele tem de


acabado, mas justamente no seu aspecto móvel e incompleto.

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