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MITOS

Os distúrbios alimentares sob o enfoque da psicologia analítica

A NYARA MENEZES
LASHERAS

Do ponto de vista psicológico, os distúrbios alimentares, seja a obesidade, a


anorexia nervosa ou a bulimia, representam uma tentativa de solução ou disfarce de
conflitos internos, mas que além de não solucionar os conflitos, acaba por criar mais
problemas relativos ao aumento ou perda excessiva de peso: o efeito “sanfona”,
aumento da auto-imagem negativa, e assim por diante.

O alimento está associado a carinho, a cessação de um desconforto desde a


primeira mamada de um bebê. Por isso, os distúrbios alimentares apresentam bases
psicológicas que denotam conflitos afetivos associados à busca por alguma coisa, por
exemplo: por um afeto inatingível, pelo preenchimento de um “vazio” interior, de um
“buraco”, por segurança, por autoconfiança, aspectos que levam às sensações
primárias de contato com a figura da mãe, na verdade da mãe boa, aquela que
alimenta, que nutre, que acolhe e protege. Aqui as gratificações são deslocadas para o
alimento.

Outras vezes, o alimento está associado aos sentimentos e emoções carregadas


de conteúdos negativos, tais como culpa, remorso, raivas, ódios, frustrações e
depressões e, nesses estados a pessoa usa o alimento para compensar tais desafetos,
isto por não se sentir à vontade em expressá-los, e, acaba usando seu corpo como
instrumento de sua própria vingança.

Mas observa-se na prática clínica, o quanto os distúrbios alimentares podem


estar associados à negação da sexualidade, sendo que nas mulheres isso sugere até
um desejo em se parecer homem – tanto a obesidade como a magreza suprimem as
formas mais femininas – assim afastando, é claro que apenas ilusoriamente, a possível
abordagem de um homem. Levantando-se uma muralha adiposa parece que a mulher
é levada a reforçar-se externamente, que pode indicar uma forte necessidade de poder
e controle. Parece valer a idéia de que ser grande é ser forte.

Um aspecto muito observado nos distúrbios alimentares é a repetição constante


do padrão engorda-emagrece, ou não comer-comer ou o comer-vomitar. Esta
repetição constante sugere que a aparente solução de um problema (solução para o
distúrbio alimentar) traz em si o surgimento de outros conflitos que estavam
encobertos, e, como são mais profundos e difíceis de “digerir” levam de volta aos
velhos padrões de problema com os alimentos. As pessoas portadoras de distúrbios
alimentares costumam utilizar alguns estereótipos muito comuns, tais como: “não sou
amado/amada (ou não tenho amigos, ou não consigo emprego, ou não saio, e assim
por diante) porque sou gordo/gorda (ou magro/magra)”. Isto caracteriza, claramente,
que os distúrbios alimentares simbolizam uma intensa dificuldade no viver a vida. Há,
portanto, uma negação da vida, como uma grande dificuldade em crescer, em
ultrapassar a divisa entre ao ser criança e o adolescer.

Como se sabe, a psicologia junguiana utiliza-se de mitos e contos de fada para


abordar a problemática psicológica, pois os mitos e contos apresentam modelos
arquetípicos de conflitos humanos e, muitas vezes, enfocam suas soluções. Um mesmo
mito ou conto de fadas pode ser utilizado para demonstrar conflitos e soluções
diferentes, dependendo da ótica utilizada. Um analista experiente saberá fazer uso de
um mesmo mito para queixas diferenciadas. Os mitos, no contexto terapêutico,
promoverão uma amplificação dos símbolos dos quadros psicológicos.

Na mitologia grega encontra-se o mito de Dafne para ilustrar o distúrbio da


obesidade na população feminina.

Dafne era uma ninfa que foi objeto de intenso interesse por parte de Apolo.
Quando ele tentou aproximar-se dela, ela continuou caminhando como se nada
estivesse acontecendo, nem ao menos lhe dirigiu um olhar. Ele tenta falar com ela,
mas ela não lhe dá ouvidos e decide fugir, correndo sem parar. Quando chega perto do
rio Peneu (que é seu pai) lhe implora que retire dela toda beleza. Então, ele a
transforma num loureiro. Apolo, então a arranca do chão e a coloca em seu jardim e
transforma suas folhas em sua coroa.

Observa-se nessa transformação uma forma não humana da qual é retirada a


sexualidade e, conseqüentemente, ela poderá evitar a transformação de menina à
mulher. A transformação em árvore simboliza a armadura, a defesa que uma jovem
mulher constrói para não entrar em contato com a sua feminilidade, sexualidade e
afetividade, ou seja, aspectos profundos de sua psique.

Dafne, portanto, não é uma heroína, ou seja, não consegue fazer uma escolha
consciente, visto que ela dá as costas a Apolo (que representa o animus, a consciência
solar, a discriminação) e assim se mantém indiferenciada e eternamente cativa
daquele que rejeitou.

Este mito retrata que a ferida no feminino foi causada por uma conturbada
relação mãe-filha, pois Dafne busca ajuda do pai. Têm-se mitos que falam da ferida
causada pelo pai.

Já o mito da Medusa pode ser utilizado nos casos de anorexia nervosa.


Medusa após um confronto com Atena por questões de beleza perdeu e foi
transformada numa Górgona. Quem olhasse para ela era transformado em pedra.
Perseu, instruído por Atena, foi quem a matou depois, usando seu escudo como
espelho. Ela se transformou em pedra. Uma forma não humana que não necessita de
alimento. É a recusa máxima do viver, do relacionar-se, afugentando a todos que se
aproximam.

Outro mito que se presta aos quadros de anorexia nervosa na população


feminina é o de Deméter/Core-Perséfone. Nele encontra-se a jovem Core, que é
superamada por sua mãe Deméter. Core é raptada por Hades com o consentimento de
Zeus (seu pai) e levada ao Hades, vindo a se transformar em Perséfone, a rainha dos
Infernos (Hades). Ela não deveria comer nada enquanto estivesse no Hades, pois
senão ficaria presa por lá. Ela nada comeu até o dia em que foi permitido seu retorno
ao mundo para encontrar sua mãe que estava desesperada a sua procura. Neste dia
ela comeu uns grãos de romã que lhe dariam o direito a retornar ao Hades.

Neste mito observa-se o intenso e neurótico vínculo entre mãe e filha. Enquanto
Core, a eterna jovem, vemos a mulher que está entrando para o estágio de transição
para a fase adulta, mas teme fazer a passagem, assumir as responsabilidades – por
isso é comum a anorexia nervosa apresentar-se na adolescência – do crescer, da
escolha vocacional ou profissional, da sua sexualidade. Zeus, um pai passivo ou
ausente, concorda com o rapto. Isto é o que faz a anoréxica mostrar-se uma jovem
fria, perfeccionista, rígida, crítica demais, e a impede de relacionar-se adequadamente
com as pessoas que a cercam. É o Arquétipo do Pai que não foi bem elaborado.

No Hades ela não deve comer, comer significa desistir de voltar para o mundo
da mãe – proteção, ausência de responsabilidades, acomodação, passividade. Crescer,
ir para o Hades é ter que abandonar o paraíso. O mundo materno é esse paraíso. Core
não cuida, precisa de cuidados. Já como Perséfone ela deverá aprender a cuidar de si
mesma. Descer ao Hades é mergulhar no seu mundo interior e descobrir-se, assumir
sua própria identidade. Mas a Perséfone, antes de comer os grãos de romã, é aquela
que não permite ser nutrida e não nutri a si própria (como fazem as anoréxicas).

Como Deméter, a mãe de uma anoréxica é superprotetora e não consegue


aceitar sua impotência para concordar com o distanciamento que deve permitir à filha.
Aqui o distanciamento significa permitir que a filha seja apenas ela mesma, admitir
que ela cresceu e deve assumir-se como um ser único.

O mito do Herói, que utiliza o Arquétipo do Herói, pode ser empregado para
amplificar a simbologia nos quadros de obesidade masculina. Saliento que o Arquétipo
do Herói é constelado por homens e mulheres, e que tratarei do quadro de obesidade
masculina visto que a anorexia nervosa e a bulimia são pouco freqüentes na população
masculina.

O herói é descrito, via de regra, como sendo filho de pessoas ilustres, de reis,
de deuses com humanos, ou é o próprio rei. Desde o seu nascimento, é marcado por
situações desafiadoras para sua própria sobrevivência. É órfão, por falecimento ou por
ter sido abandonado pelos pais ou por um deles, em razão de alguma ameaça
profetizada, antes mesmo de seu nascimento. Então, é acolhido por outra família,
geralmente, muito humilde, e, acaba por se destacar por alguma habilidade. Então,
acaba por descobrir sua progênie e se dá início a jornada de reconquista da sua
identidade, retornando ao local de origem, retaliando o vilão ou seu pai, salvando a
donzela ou vítima e conquistando sua própria soberania. Mas, de um modo geral, deve
morrer em seguida, para assim ser declarado herói.

É um arquétipo que representa o chamado e a luta pela individuação,


podendo ser constelado todas as vezes que uma pessoa passar por um
momento de conflito e em fases onde grandes mudanças serão provocadas.

Assim, todos os indivíduos sentem-se desamparados (órfãos) quando se faz


necessário desligar-se dos progenitores, em busca de seu próprio caminho, ou quando
devem abandonar uma postura de vida até então muito confortável. Também, se
sentem desamparados frente às exigências irracionais do ego, e há uma convocação
para travar uma luta dolorosa para atingir o momento de se declararem indivíduos,
comandantes das próprias naus, denominadas vida. Jung afirmou que a individuação é
um processo para toda a vida; a cada dia, ruma-se em frente, no fluxo do processo de
individuação. Mas isso não significa que a individuação estará ao alcance do indivíduo
somente ao final da sua existência. Antes mesmo de seu fim, deve estar em maior
harmonia e integrado com o seu próprio Self. Poderá estar individuado, embora, não
completamente. Na verdade, como a individuação é um processo, estará se
individuando.
Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis
de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua
extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar
algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém,
mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro
da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na
companhia do mundo todo. (Campbell, 1996, p. 131).

Estar-se-á, assim, nos domínios do inconsciente coletivo.

A jornada do herói é um empreendimento que permite ao indivíduo se afastar


da imaturidade psicológica, estágio que se caracteriza pela submissão e
dependência de recompensas e castigos, encaminhando-se para uma condição de
maturidade. O herói não precisa, necessariamente, redimir a sociedade, mas a si
mesmo. Tem-se, portanto, o triunfo do ego frente às tendências regressivas.

Pearson (1994) descreve a jornada do herói passando por seis estágios,


dominados, cada um, por determinado arquétipo, a saber: o Inocente, o Órfão, o
Mártir, o Nômade, o Guerreiro e o Mago. Entretanto, esta não é uma estrutura
linear e nem tão pouco segue a seqüência descrita; há variações de acordo com os
sexos ou momentos culturais, além das diferenças individuais.

"O Inocente e o Órfão dão início à ação: o Inocente vive no estado de graça
anterior à queda; o Órfão enfrenta a realidade da Queda. Os próximos estágios
constituem estratégias para viver no mundo depois do pecado original: o Nômade
inicia a tarefa de se perceber separado dos outros; o Guerreiro aprende a lutar para se
defender e mudar o mundo segundo sua própria imagem; e o Mártir aprende a dar, a
confiar e a sacrificar-se pelos outros. Assim, a progressão vai do sofrimento para a
autodefinição, para a luta, para o amor." (Pearson, 1994, p. 29).

O Inocente não é um arquétipo de herói, pois está indiscriminado — o mundo


o serve e o satisfaz em todos os seus desejos. É o estar no Éden. E, como estar no
paraíso é apenas uma fase, não podendo ser perpetuada, segue-se a queda, que
resulta de uma desilusão e caracteriza o estágio do Órfão, que denota o desejo de
retornar ao estado primordial de pureza e inocência, no qual não há dor e sofrimento,
e, todas as necessidades são satisfeitas. O Órfão se vê como vítima do mundo. Depois
se tem o arquétipo do Mártir, aquele que se sacrifica acreditando que, assim, virá a
redenção. Ele não se vê como vítima do mundo, opta por ser a vítima, na crença de
que seu sofrimento trará benefícios ou recompensas a si ou aos demais.

O Nômade é o arquétipo daquele que parte sozinho para explorar o mundo. Vai
à busca de aventuras ou de um tesouro perdido. Na verdade, esse é o momento que
define o início da jornada rumo a si mesmo, pois aliado à aventura, tem-se o
recolhimento interior. Ao desbravar o mundo, o Nômade identifica seus "dragões" e
"vilões", e, então, precisa passar para o estágio de Guerreiro para lutar contra eles. É
o arquétipo do Guerreiro, que melhor é identificado com o herói ou com o
heroísmo. Quando se fala em herói, equaciona-se o Guerreiro.

Enfim, encontra-se o arquétipo do Mago. Aquele que aprendeu, com os outros


arquétipos, a responsabilizar-se por si, por seus atos e por suas escolhas, em razão de
estar mais consciente de si mesmo, de seus propósitos, de seus anseios, de seus
medos. Assim, aceita a realidade como é, com suas diferenças, e luta suas próprias
lutas. Seu lema poderia ser: "viva e deixe viver". Não precisa provar-se a ninguém.

Usando estas fases no caso da obesidade masculina, pode-se dizer que:


o Inocente é a fase em que, ainda menino, o homem é superprotegido pela mãe. Mãe
que o alimenta para tornar-se “forte”, que na verdade é uma palavra para definir
obesidade. Quem não ouviu: “Meu filho não é gordo, é forte !”

O Órfão é a fase em que, bem provavelmente, há uma intervenção paterna ou


do meio para quebrar o vínculo mãe-filho, e o menino sente que perdeu seu paraíso.
Inicia-se a adolescência.

O Mártir é a fase em que o jovem se “entope” de comida, sacrificando seu


próprio corpo e sua vida psíquica para tornar-se “mais forte”, “impenetrável”, mas
mantendo presos seus monstros interiores.

O Nômade é quando o rapaz volta-se para seu mundo interno e busca por seus
próprios valores; aqui ele deve identificar seus monstros e vilões. O detonador dessa
fase é a busca por relacionamentos, a sexualidade e a escolha vocacional e
profissional.

O Guerreiro vai lutar com os monstros e vilões; a velha e árdua batalha por
desvincular-se do mundo dos pais.

E por fim, o Mago, estágio em que o jovem torna-se único; já lutou com seus
monstros e vilões e ganhou sua identidade adulta, sua auto-estima foi otimizada, já
possui autoconfiança. Descobriu que o excesso de peso, além de não torná-lo mais
forte ainda o fazia sentir-se mais frágil e inadequado, tanto física como
psicologicamente.

Este é um pequeno trabalho, uma semente e, portanto não esgota o assunto e


pode, quem sabe, incitar novas associações a outros mitos.

Referencias Bibliográficas:

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Vol. I e II. Petrópolis, Vozes, 1997.

PEARSON, Carol S. O Herói Interior. São Paulo: Cultrix, 1994.

LASHERAS, Anyara M. A lenda do Negrinho do Pastoreio

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