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É preciso comer o seu duplo1

Jean Rouch e o filme anthropofágico

Serge Margel

Em torno de um possuído
que dá a impulsão primeira, e
se torna uma espécie de
mestre de cerimônia, acaba se
organizando uma comédia
com a cumplicidade de todos.

Michel Leiris

1. Jean Rouch é etnológo e cineasta. Entre 1949 e 2003, ele dirigiu mais de 20
filmes de curta e longa-metragem aos quais denominamos frequentemente
documentários. Entre estes estão Os mestres loucos, de 1954, Eu, um negro, de 1958,
e Crônica de um verão, dirigido com Edgar Morin, em 1961. Rouch é africanista,
especialista nos povos Dogon, nos rituais de possessão e nas práticas de transe que
filmou e documentou, por meio do que ele mesmo concebeu como “cine-transe” –
uma variante antropofágica do “cinema-direto”, do registro sincrônico de imagens e
sons. Sem entrar no debate entre franceses e americanos sobre o estatuto ontológico
do “cinema-direto”, partirei das posições muito claras do próprio Jean Rouch em um
texto importante sobre a construção do personagem entre possessão e cinema:
“Ensaio sobre os avatares da pessoa do possuído, do mágico, do feiticeiro, do
cineasta e do etnógrafo”, publicado em 1971. Aqui, Rouch se refere aos dois

1 Conferência ministrada em setembro de 2015, na Universidade Federal de Juiz de Fora.


pioneiros do cinema-direto nos anos 1920, o americano Robert Flaherty, com seu
célebre Nanook, o esquimó, e o soviético Dziga Vertov, de O homem com uma
câmera. O primeiro inventa a “câmera participativa”, que se apoia na interação entre
a equipe de filmagem, reduzida ao mínimo, e a situação concreta dos sujeitos
filmados sem qualquer roteiro pré-concebido ou escrito previamente. O segundo
desenvolve a ideia de um “cinema-verdade” (kino pravda), que condena toda ficção
narrativa e deseja reduzir a distância entre o olho da câmera e a realidade filmada.
Em um texto de 1973, “A câmera e os homens”, Rouch se interroga sobre a
construção de um personagem possuído, aproximando os fenômenos de possessão
das transformações da pessoa do cinegrafista:

Para mim, portanto, a única maneira de filmar é andar com a câmera, levando-a aonde ela é
mais eficaz, e improvisando para ela um outro tipo de balé no qual ela se torna tão viva quanto
os homens que ela filma. Esta é a primeira síntese entre as teorias vertovianas do “cine-olho” e a
experiência da “câmera participativa”, de Flaherty. Esta improvisação dinâmica, eu a comparo
frequentemente à improvisação do toureiro diante do touro: tanto em um como no outro, nada
está dado de antemão, e a suavidade de uma faena não é senão a harmonia de um travelling que
segue com perfeita adequação os movimentos dos homens filmados. […] Assim, ao invés de
utilizar o zoom, o diretor-cinegrafista penetra realmente em seu assunto, antecipa ou segue o
dançarino, o sacerdote ou o artesão; ele não é mais ele mesmo, porém um “olho mecânico”
acompanhado de uma “orelha eletrônica”. É este estado bizarro de transformação da pessoa do
cineasta que, por analogia com os fenômenos de possessão, chamei de “cine-transe”.2

Para Jean Rouch, o cinema-direto é, sobretudo e antes de mais nada, uma prótese,
uma extensão do corpo, da pele, do olho ou da orelha, e, eu diria, até mesmo do
estômago. É um cinema protético e não mais mimético, que produz um fenômeno de
transe, que Rouch nomeia justamente “cine-transe”, e que relacionarei à ideia da
antropofagia:

No entanto, paradoxalmente, é graças a esse apetrecho, graças a esse comportamente novo


(que não tem nada em comum com o comportamento da mesma pessoa quando ela não está
filmando) que o cineasta pode “aderir” ao ritual, se integrar nele, segui-lo passo a passo: estranha
coreografia que, se é inspirada, torna o cinegrafista e seu ajudante de gravação de som, não
invisíveis, mas participantes da cerimônia em curso.
Assim, para os Songai-Zarma, muito habituados ao cinema, minha pessoa se altera diante de
seus olhos assim como se altera a pessoa dos dançarinos possuídos, ao ponto de que é o “cine-
transe” de um filmando o transe real do outro. Isso é muito real para mim, tanto que sei, pelo
controle do visor de minha câmera e pelas reações dos espectadores, se a sequência filmada foi
bem sucedida ou fracassou, se pude me livrar do peso das teorias etnológicas e cinematográficas

2 Jean Rouch, “La caméra et les hommes”, in: Claudine de France (éd.), Pour une anthropologie visuelle, op. cit., p.
63.
para reencontrar a barbárie da invenção.
Poderíamos ir ainda mais longe e perguntar se esta caça de imagens não é comparável à caça
dos “duplos” do feiticeiro, e se o material que conservo com tantos cuidados (baixa
luminosidade, baixa umidade do ar, baixa temperatura), não é um “pacote de reflexos”, um
“pacote de duplos”. Se a câmera pode ser comparada à pele ensanguentada do espírito da
possessão, o envio dos filmes para os laboratórios distantes, por sua vez, pode ser comparada à
devoração do duplo pelo feiticeiro.3

Duas noções se encadeiam como o desdobramento de um ritual. A princípio, na


câmera direta, ou no encadeamento sincrônico das imagens e dos sons, o cinegrafista
e o assistente de gravação de som não são invisíveis, mas “participantes da cerimônia
em curso”. A participação cerimonial é uma alteração da pessoa, uma construção que
transforma a identidade, um fenômeno de possessão que faz entrar em transe o
cinegrafista e o assistente de som. Um fenômeno especificamente cinematográfico,
que se torna um critério de êxito das sequências filmadas, de distanciamento dos
saberes teóricos e de um retorno aos poderes da invenção. E é aqui que devemos
precisar uma segunda noção. Rouch compara essa posssessão cinematográfica do
transe à caça ao “duplo” do feiticeiro. Ora, essa analogia implica ela também dois
pontos distintos que é necessário sublinhar. De um lado, a noção de duplo, de outro,
uma questão de estômago, da devoração ou antropofagia. O que quer dizer comer o
seu duplo? Em que medida “enviar os filmes a laboratórios distantes” pode se
reportar à devoração do duplo pelo feiticeiro? Em que consiste a especificidade
cinematográfica da antropofagia?

Cada homem tem um “duplo”, um bia, que vive em um mundo paralelo, escreve Rouch, um
duplo do mundo, domínio dos espíritos, mestres das forças da natureza, domínio permanente do
imaginário (sonho ou devaneio ou reflexão) e domínio temporário dos mágicos e dos feiticeiros.
Esse reflexo do mundo não parece ultrapassar os limites do mundo terrestre, em particular, ele
não se expande para um mundo além, gerado por Deus.
Entre o mundo real e seu duplo, algumas correlações são possíveis, seja pela encarnação do
espírito durante a dança de possessão, seja pela incursão xamanística dos mágicos no reflexo do
mundo, seja pela materialização do feiticeiro no momento de sua caça aos outros duplos.4

O duplo, o qual é preciso incorporar ou comer, é uma entidade específica que


3 Jean Rouch, “Essai sur les avatars de la personne du possedé, du magicien, du sorcier, du cinéaste et de
l'ethnographe”, in Jean Rouch. Cinéma et anthropologie. Textes réunis par Jean-Paul Colleyn, Paris, Cahiers du
cinéma/INA essais, 2009, p. 152-153.
4 Ibid., p. 153.
comporta diversas propriedades precisas. A princípio, cada indivíduo comporta um
duplo, ou seu duplo, uma sombra, um reflexo, uma imagem, e nesse sentido, cada
duplo é individualizado ou é indexado a um indivíduo particular. Em seguida, cada
duplo vive em um mundo paralelo, e não no além. Ele não ultrapassa os limites do
mundo terrestre, mas vive sobre a terra, no mundo dos homens e em sua sociedade.
Por fim, o duplo é uma força, uma potência, ou mais exatamente, um espírito mestre
das forças da natureza. Sua mestria é sem dúvida aqui a palavra-chave, que dá aos
feiticeirso, como ao cinegrafista, seu poder de possessão. Essa mestria permite que se
construa um conjunto de relações, de conexões ou de comunicações entre o mundo
real e seu duplo. Para o feiticeiro, o mágico ou o cinegrafista, ser mestre das forças da
natureza permite criar uma passagem possível entre esses mundos paralelos, ou por
em relação direta, sensível e inteligível, um indivíduo e seu duplo. Ora, um dos
modos de relação que o feiticeiro pode produzir envolve a incorporação, a ingestão
ou a devoração. O feiticeiro pode comer o duplo e depois restitui-lo ou vomitá-lo,
como o homem com uma câmera pode comer e depois mostrar as imagens ou
reflexos, pela filmagem e pela montagem, que põem o indivíduo ou a sociedade
inteira em comunicação com seus duplos:

essa imagem “roubada” retorna alguns meses mais tarde e, sobre a tela de projeção, recupera
por um instante sua vida (são reflexos dotados de um estranho poder uma vez que basta um
“cavalo do espírito” ver na tela sua imagem de possuído para entrar imediatamente em transe...).5

2. Esse retorno da imagem ou do duplo representa uma passagem singular entre


realidade e ficção, que faz da incorporação do duplo a economia temporal de uma
transformação identitária. Para Rouch, trata-se do poder de uma autoridade
dominante e colonial. Deleuze salienta claramente:

Se a alternativa real-fictício é tão completamente ultrapassada é porque a câmera, em vez de


talhar um presente, fictício ou real, liga constantemente a personagem ao antes e ao depois que
constituem uma imagem-tempo direta. É preciso que a personagem seja primeiro real, para
afirmar a ficção como potência e não como modelo: é preciso que ela comece a fabular para se
afirmar ainda mais como real, e não como fictícia. A personagem está sempre se tornando outra,
e não é mais separável desse devir que se confunde com um povo […]. Para Rouch a questão

5 Ibid., p. 153.
reside em sair de sua civilização dominante, e em alcançar as premissas de outra identidade.6

Para transformar a sociedade, a identidade de um povo subalterno ou de uma


comunidade, é precio comer seu duplo. É o poder das sociedades, mas também o
poder do olho do cinegrafista e da orelha do operador de som, esses novos feiticeiros
antropófagos, devoradores de imagens, devoradores de sons:

O poder do feiticeiro, escreve Rouch, assim como o do mágico, se transmite hereditariamente,


mas por meio do leite: uma criança que é amamentada por uma tyarkaw será tyarkaw. Os mitos
Songai salientam esse caráter irremediável: uma mulher santa, responsável por uma comunidade
de mulheres que fizeram o voto de castidade, se entrega a um visitante que passa a noite com ela.
No dia seguinte ela o transforma em um carneiro; seus companheiros, no entanto, pedem
permissão para comer esse misterioso carneiro. A mulher também o come, e dessa forma
engravida daquele que devorou. Desta união entre uma mulher e um homem que ela devorou
nasce uma criança, uma filha “devoradora de duplos”, uma feiticeira tyarkaw, de quem
descendem, por meio do leite, todos os feiticeiros e feiticeiras atuais.
Desde então, em cada aldeia, há uma proporção maior ou menor de feiticeiros tyarkaw. Sem
dúvida, todo mundo os conhece, mas ninguém fala sobre isso; e, se eles fazem o mal, é porque
são obrigados a fazê-lo. De fato, eles são criminosos, mas não respondem por seus atos […].
Como o mágico, o feiticeiro domina a arte de direcionar seu “duplo” bia, e é este “duplo” que é o
agente real da feitiçaria. É ele que sai em busca de outros “duplos”.7

É o mito do devorador de duplos. Uma mulher santa passa a noite com um homem,
ela o transforma em carneiro e, em seguida, o devora. Ela fica grávida deste homem-
carneiro, não por um ato sexual, mas pela devoração. Desta união com aquele que
devorou, nasce uma “filha devoradora de duplos”, uma feiticeira tyarkaw. Saliento a
importância dessa filiação particular, que responde a outras leis hereditárias e produz
genealogias alternativas à reprodução pelo esperma e pelo sangue. Como entre o
mundo real e o mundo dos duplos, há uma passagem entre o homem, o carneiro e o
duplo, uma transformação pelo animal que permite não somente reconstituir a
narrativa das origens da feitiçaria, mas ainda atestar a presença também real dos
devoradores de duplos na sociedade. É preciso então distinguir dois tipos de duplo.
De um lado, o duplo de cada indivíduo, sua alma, sua sombra, sua imagem, que se

6 Gilles Deleuze, Imagem-tempo (cinema 2). Tradução Eloisa Araújo Ribeiro; revisão filosófica Renato Janine
Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 185.
7 “Essai sur les avatars de la personne du possedé, du magicien, du sorcier, du cinéaste et de l'ethnographe”, in Jean
Rouch. Cinéma et anthropologie. Textes réunis par Jean-Paul Colleyn, Paris, Cahiers du cinéma/INA essais, 2009,
p. 146-147.
mantém a princípio inacessível ao indivíduo mesmo; e, de outro, o duplo do
feiticeiro, que come o duplo dos indivíduos que se tornam, assim, suas vítimas.
A partir daí, pode-se falar de um segundo tipo de antrofagia. Não se trata de comer
o outro, literalmente, como em um ritual canibal, nem tampouco de comer
simbolicamente o duplo: é antes o próprio duplo que come o duplo. Essa antropofagia
de segundo tipo é uma questão de duplos, ela se organiza entre os duplos:

Frequentemente, escreve Rouch, à noite, no matagal próximo a algumas aldeias, são vistos
fogos se movendo rapidamente, parando e recomeçando em saltos sucessivos. Estas luzes
suspeitas (cuja explicação não é clara) são interpretadas como feiticeiros tyarkaw à espreita.
Com efeito, estes teriam o poder de se impulsionar no ar graças à reação do fogo que sai de suas
axilas e ânus. Os questionários que puderam ser feitos indicaram que estas manifestações são
obra de seu “duplo” bia. É este “duplo” em deslocamento que é visto sob a forma destes fogos
oscilantes.
Enquanto isso, o corpo do feiticeiro está na aldeia, “em um estade de profundo devaneio”.
Este duplo fulgurante pode se metamorfosear em cabaça, em um bebê chorando ou em um
asno de duas cabeças... formas que ele assume para assustar suas futuras vítimas: voando, o
“duplo” tyarkaw viu alguém que viaja tarde da noite; ele assume, uma a uma, estas formas que o
viajante encontrará em seu caminho e infeliz dele se recolhe a cabaça, toca o bebê ou golpeia o
asno!…: o medo e o pânico se apossam dele e o fazem perder a razão, ou seja, perder o controle
de seu próprio “duplo”, e o feiticeiro tyarkaw (ou, mais exatamente, o seu “duplo”) aproveita
esta perda de controle para se apossar do “duplo” bia de sua vítima e comê-lo.8

Em que consiste esse estranho combate de “duplo” contra “duplo” para comer o
“duplo”? Qual a realidade ontológica de um duplo comido por um duplo? O que ele
provoca uma vez que vive, à sua maneira, sempre no mundo real e na sociedade dos
homens? E, sobretudo, o que se passa com a sociedade ela mesma, uma vez que ela
contém todos esses corpos mortos, devorados pelo duplo do feiticeiro? O filme Os
mestres loucos, de Jean Rouch, toca a questão dessa identificação coletiva, dessa
incorporação ou transformação social do duplo. Ele coloca a questão de uma
antropofagia do duplo, para “sair de sua civilização dominante” e “alcançar as
premissas de outra identidade”. Dirigido em 1955, este filme, protótipo de um
cinema-verdade, mostra as práticas rituais de transe e de possessão da seita dos
Haukas, seita conhecida ao menos desde 1927 em Níger e que, dez anos depois, se
expandiu até Gana. Este filme, em cores, feito em 16mm, com 36 minutos de

8 Ibid., p. 147-148.
duração, registra o mais “objetivamente” possível os fenômenos de possessão nos
quais se engajam os emigrantes nigerianos que vivem na periferia de Acra. Tanto no
início do filme quanto em seu final, vemos esses indivíduos em sua vida real, se
preparando para partir da cidade para o interior rural e depois para retornar deste à
cidade, redesenhando de uma maneira terapêutica ou catártica a passagem de uma
civilização tradicional à uma civilização moderna, mecanizada, industrial e,
sobretudo, colonial.
Utilizando o procedimento da “câmera participativa” de Flaherty, Rouch registra os
acontecimentos sem perturbar ou modificar o comportamento dos personagens em
transe, mas sem por isso desaparecer da cena ou se excluir da cerimônia. Este filme
capta diretamente as duplicações do duplo. É um filme antropofágico no sentido de
que registra duplos que comem duplos. Como efeito, o filme mostra uma pessoa que
se duplica, um duplo sai de seu corpo, assume a identidade de um espírito ou de um
deus lendário e age em seu lugar. Nessas crises de possessão individual e coletiva, a
identificação catártica funciona por duplicação, ou, mais exatamente, por um combate
antropofágico do “duplo” contra um “duplo” por um “duplo” identificado aos
representantes do poder colonial. Uma vez fora do corpo, o duplo se identifica e
devora o duplo de uma pessoa pertencente à antiga hierarquia das colônias britânicas,
que exerce um poder de dominação sobre as culturas locais dos emigrados. O duplo
se torna ora governador geral, ora almirante, ora a esposa de um chefe militar ou, às
vezes, até mesmo uma locomotiva – símbolo da modernidade tecnocrática, dos meios
de transporte industrial e dos novos sistemas de comunicação. Estas identificações
antropofágicas envolvem uma encenação teatral, ou uma performance exagerada,
violenta e até mesmo cruel, da qual, além disso, Jean Genet tirou a inspiração para
escrever sua peça Os negros.

3. Os Negros se tornam Brancos; o homem do mato se torna um citadino e o


dominado, o dominador; o colonizado se torna colono e a cultura tradicional se
transforma – subitamente, mas por pouco tempo – em sociedade moderna. Uma vez
acabada a cerimônia, no dia seguinte, os emigrados nigerianos voltam esgotados para
a cidade, retornam à sua vida cotidiana, às suas condições de operários, relembram
seu verdadeiro nome e parecem ter inclusive se esquecido do que passou na véspera.
Mas onde está a “verdade” nesse filme? Trata-se de um documento? De uma ficção?
É um documentário que registra uma ficção, um teatro, uma encenação preparada
para o filme de Jean Rouch? Na verdade, Os mestres loucos é uma encomenda. Entre
1946 e 1951, equanto estudava os rituais de possessão e filmava a Batalha no grande
rio, Rouch entra em contato com os Haukas. Os grandes sacerdotes assistem seu
filme em uma projeção em Acra e o pedem que grave sua cerimônia anual que terá
lugar dois meses mais tarde. A partir daí, a câmera, o gravador de som e os olhos
devoradores de imagens do próprio Rouch serão parte integrante da cerimônia.
Recordo o texto citado mais acima:

No entanto, paradoxalmente, é graças a esse apetrecho, graças a esse comportamente novo


(que não tem nada em comum com o comportamento da mesma pessoa quando ela não está
filmando) que o cineasta pode “aderir” ao ritual, se integrar nele, segui-lo passo a passo: estranha
coreografia que, se é inspirada, torna o cinegrafista e seu ajudante de gravação de som, não
invisíveis, mas participantes da cerimônia em curso.

Mas o que quer dizer aqui participar na cerimônia em curso? Em que medida a
câmera faz parte da dança de um ritual de possessão? Qual a função ritual e que
poder de possessão pode a câmera possuir nessa caça ao duplo? Pode-se dizer ainda
que a própria câmera, enquanto devoradora de imagens, alcança as condições
antropofágicas do combate de “duplo” contra “duplo” pelo “duplo”? Ou seja, que ela
alcança as condições terapêuticas de uma incorporação das culturas populares em
uma cultura dominante? Assim, os sacerdotes Haukas encomendam a Rouch o filme,
e, por meio da possessão, este se duplica/desdobra ele mesmo em dançarino. Com
efeito, o cinegrafista se torna dançarino, se duplica/desdobra em espírito de cena, que,
na filmagem e depois na montagem, arranja e registra planos-sequência em que se vê
duplos comerem duplos. Em diversas entrevistas, Rouch evoca as circunstâncias e os
detalhes da filmagem, que não teria durado mais do que um dia. Nem sempre
compreendendo o que acontece, os gestos, as palavras, qualificadas como
glossolalias, as cenas frequentemente violentas e sanguinárias, Rouch as filma em seu
encadeamento cronológico, com as rupturas e as constrições impostas pela câmera.
Cada rolo de filme dura somente 25 segundos, e a cada três minutos é preciso
remontar a câmera. Ora Rouch filma, caça, come as imagens, ora ele remonta,
recarrega a câmera e reflete sobre essas imagens.
Nessa “estranha dança”, os papeis se intercambiam. Por um lado, Rouch participa
da cerimônia, filmando as crises de possessão; mas, por outro lado, os possuídos
entram eles mesmos em crise como um ator de cinema entra em cena. Eles sabem
quanto tempo dura uma bobina e veem os gestos do cinegrafista que eles incorporam
no ritual. Rouch não escolhe a pessoa que deseja filmar, mas é ela que surge
inesperadamente diante da objetiva: “de repente, ela entrar no campo de visão pela
direita ou pela esquerda e eu a seguia”. 9 Ora, para acentuar o fenômeno de possessão,
e para marcar a heterogeneidade antropofágica da duplicação, Rouch vai recorrer ao
procedimento da montagem paralela por choque e colisão, segundo a ideologia
cinematográfica de Vertov e Eisenstein. Ele monta seu filme produzindo rupturas
diegéticas, ou introduzindo na narração documental imagens heterogêneas, contrastes
que criam um choque entre as imagens: como a troca dos guardas diante do palácio
do governo, a saída da missa, ou a rainha da Inglaterra em sua carruagem. Essa
montagem de imagens funciona como uma série de duplicações/desdobramentos dos
transes dos Haukas, e produz uma passagem possível entre os mundos paralelos,
entre a realidade e a ficção, ou inscreve a presença de duplos devoradores de duplos
nas práticas da vida cotidiana. Essa montagem permite confrontar campos, exacerbar
as relações intoleráveis pela comparação do ritual social. De um lado, entrar em
transe, babar, se contorcer, à semelhança de um epilético ou de um histérico, matar
um animal e beber seu sangue; de outro, ir à igreja, rezar, fazer comunhão, cavalgar
em um desfile militar ou dar as boas vindas à rainha.
Da filmagem à montagem, Os mestres loucos constitui uma dança dos mundos
paralelos. O filme se torna ele mesmo a encenação de uma duplicação, individual e
coletiva. É um filme antropofágico que capta, registra, mas que também produz a
aparição do duplo e sua devoração. Essa capacidade ou essa força representa um dos
9 Entrevista comc Laurent Devanne no Café de l'Observatoire, em Paris. Texto citado por Maxime Scheinfeigel, Jean
Rouch, Paris, CNRS, 2008, p. 139.
sentidos maiores, para Jean Rouch, do cinema-verdade, cinema que, sem dúvida pela
primeira vez, confere um poder antropofágico à imagem, à imagem em movimento, à
imagem móvel ou projetada. Um cinema-verdade que permite não somente repensar
a função etnográfica do cinema, mas também reconsiderar o poder das imagens
filmadas, documentadas, arquivadas, e até mesmo a nova hegemonia das imagens, na
antropofagia das culturas, entre dominantes e dominados, tradição e modernidade.

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