Você está na página 1de 16

194

Atlas de Gerhard Richter: o arquivo anômico

Benjamin Buchloh
Análise do projeto do Atlas do artista alemão Gerhard Richter com base em uma
reinterpretação das práticas vanguardistas e neovanguardistas, e de uma reavaliação
das teorizações pioneiras sobre fotografia, arte e memória, desenvolvidas nas déca-
das de 1920 e 1930.
Fotografia, arquivo, vanguarda e neovanguarda, arte e memória, arte e história, montagem/colagem.

O que as fotografias, por meio de sua sim- meçou a realizar no final da década de 1960).
ples acumulação, procuram anular é a lem- Eles merecem atenção tanto por sua im-
brança da morte, traço componente de toda pressionante homogeneidade e continuida-
imagem memorial. Nas revistas ilustradas, o de (como no caso do trabalho do casal
mundo se tornou um presente “fotografável”, Becher) quanto pela flagrante heteroge-
e o presente fotografado passou a ser inte- neidade e descontinuidade que define o Atlas
gralmente eternizado. Aparentemente a sal- de Richter. Apropriando-se dos elementos
vo das garras da morte, o presente na reali- inerentes à fotografia – tais como sua orde-
dade a ela se rende. nação estrutural de arquivo, sua aparente-
mente infinita multiplicidade, serialização e
Na duplicação exata do real, principalmente anseio por uma totalidade compreensiva –
através de outro meio reprodutivo – publi- para fazer deles os princípios da organiza-
cidade, fotografia, etc. – e na passagem de ção formal do trabalho, esses projetos com-
um meio para outro, o real desaparece e partilham antes de mais nada a condição de
passa a ser uma alegoria da morte. Mesmo não ser classificáveis segundo a tipologia e a
em seu momento de destruição, porém, ele terminologia da história da arte de vanguar-
se revela e se afirma, de modo a tornar-se o da: os termos “colagem” e “fotomontagem”
real essencial, assumindo-se como fetiche de nem sequer seriam adequados para descre-
algum objeto perdido. ver a aparente monotonia formal e icono-
Atlas, de Gerhard Richter, é um entre vários gráfica desses painéis, a vasta acumulação de
projetos, de estrutura similar, mas significati- seus conteúdos em forma de arquivo. No
vamente diferentes, de um grupo de artistas entanto, os termos descritivos e os gêneros
europeus atuantes do início a meados dos de uma história da fotografia mais especi-
anos 60, cujos procedimentos formais de alizada, todos operantes de um modo ou
reunir fotografias encontradas ou produzi- de outro no Atlas de Richter, revelam-se
das intencionalmente em formato de grade igualmente inadequados para classificar es-
mais ou menos regular permanecem enig- sas acumulações de imagens.
máticos (pode-se pensar também na co-
Gerhard Richter, Atlas.
letânea de tipologias da arquitetura in- Apesar da primeira impressão que se pode-
ria ter do Atlas, nem o álbum particular do
vista da instalação no
Museu de Arte dustrial, iniciada em 1958 e realizada du-
Contemporânea de rante 40 anos por Bernhard e Hilla Becher, amador, nem os crescentes projetos de fo-
Barcelona, 1999 ou no trabalho que Christian Boltanski co- tografia documentária poderiam identificar

TEMÁTICAS • BENJAMIN BUCHLOH 195


a ordem discursiva dessa coleção fotográfi- nua do sujeito em face da ascensão da cul-
ca. E tampouco poderíamos dizer que a pre- tura de mídia. A narrativa dos processos his-
cisão da fotografia topográfica ou arquitetural, tóricos, o estabelecimento de tipologias, cro-
ou mesmo do imponente sistema de ima- nologias e continuidades temporais – ainda
gem de vigilância e espetacularização que apenas fictícias, como no caso de
operante no fotojornalismo rege a peculiar Boltanski – parecem ter colidido na maior
“condição fotográfica” do Atlas de Richter. parte do tempo com a autopercepção da
Por fim, apesar de sua presença frequente vanguarda, promovendo a presença imedia-
entre os gêneros expostos, nem mesmo a ta, o choque e a ruptura na percepção.
publicidade e a fotografia de moda com seus
princípios de fetichismo definem a leitura Um parêntese sobre o Atlas
desses painéis. Ao contrário, o que poderia
O termo “atlas” talvez soe mais familiar na
vir à mente de imediato coincide com os
termos usados para descrever gráficos, méto- língua alemã do que na inglesa, sendo usado
dos de ensino, ilustrações técnicas ou cien- para definir, desde o final do século 16, o
tíficas encontradas em livros didáticos ou ca- formato de livro que compila e organiza o
tálogos, o arquivamento de materiais segun- conhecimento geográfico e astronômico.
do os princípios de uma disciplina ainda não Sabemos que o nome desse formato remon-
identificada. A história da vanguarda, no en- ta à coleção de mapas de um mercador de
tanto, parece ter pouco ou nenhum prece- 1585, que possuía como frontispício a ima-
dente para os procedimentos artísticos que gem do Atlas, o titã da mitologia grega que
organizam o conhecimento sistematicamen- carrega o universo, no limiar do encontro
te, segundo modelos didáticos de apresen- entre o dia e a noite. Mais tarde, durante o
tação ou conforme métodos mnemônicos. século 19, o termo foi amplamente empre-
Se tais precedentes existiram – como, por gado para identificar qualquer apresentação
exemplo, naqueles painéis didáticos produ- tabelar de um conhecimento sistematizado,
zidos por Kasimir Malevich entre 1924 e 1927 de modo que se podia encontrar atlas em
que ilustram os esforços teóricos do Institu- quase todos os campos das ciências
to de Cultura Artística em Leningrado – eles empíricas: havia atlas de astronomia, anato-
são geralmente considerados meros suple- mia, geografia e etnografia, e, posteriormen-
mentos para os reais objetos estéticos. Esse te, até mesmo os livros escolares traziam
seria também o caso de outro exemplo encartes de plantas e animais, tomando em-
crucial, que também tem permanecido além prestado o nome daquele titã que levantara
do alcance das terminologias dos historia-
os céus. Quando, no século 20, a confiança
dores, o Media Scrap Book produzido por
no empiricismo e a aspiração a se alcançar
Hanna Höch por volta de 1933. O projeto
completude na compreensão dos sistemas
de Höch assinala justamente a existência
positivistas de conhecimento enfraqueceram,
precoce de uma variedade de estratégias
o termo “atlas” parece ter caído em uso mais
artísticas que pretendem organizar e acomo-
metafórico.
dar de forma arquivística grandes quantida-
des de fotografias encontradas. Mais do que Mnemosyne Atlas de Aby Warburg
empreender a fragmentação e a fissura como
os princípios dinâmicos da fotomontagem Encontramos, destarte, o exemplo mais
que Höch realizou no final da década de importante dessa tendência por volta de
1910, seu direcionamento em prol da orde- 1927, em um projeto monumental que se
nação de arquivo típica da fotografia parece propõe a reunir formas identificáveis de
investigar a competência mnemônica contí- memória coletiva: o Mnemosyne Atlas foi

196
concebido primeiramente pelo historiador de “dinamogramas” transferidos da Antigui-
da arte Aby Warburg, em 1925, após ter dade clássica para a pintura do Renascimento,
recebido alta da clínica psiquiátrica de Ludwig os recorrentes motivos de expressão gestual
Binswanger em 1924; ele trabalhou ativamen- e corporal que ele identificou como “pathos
te no projeto em 1928 e até sua morte, em formulas”, uma de suas mais famosas expres-
1929. Ainda que o pesquisador tenha dei- sões), mais especificamente, Warburg arguiu
xado o projeto em estado inacabado, mais que sua tentativa de construir a memória
de 60 painéis contendo cerca de mil foto- histórica coletiva deveria focalizar a ligação
grafias foram montados por Warburg. Se- intrínseca entre o mnemônico e o traumáti-
gundo suas pretensões, conforme registros co. Nesse sentido, ele escreveu, na introdu-
em seus diários, o Mnemosyne Atlas buscava ção inédita de seu Mnemosyne Atlas1 que é
construir um modelo do mnemônico, de nos domínios de uma convulsão orgiástica
modo que o pensamento humanista do eu- de massa que se deveria procurar aquilo que
ropeu ocidental pudesse uma vez mais, tal- origina a expressão de um ataque emocio-
vez pela última tentativa, reconhecer suas nal extremo na memória – de tamanha in-
origens e rastrear no presente suas conti- tensidade, que os engramas daquela expe-
nuidades latentes, atravessando o espaço, até riência instituiriam uma herança preserva-
os confins da cultura humanista europeia e da na memória.
se situando temporariamente entre os
parâmetros de sua história, da Antiguidade Ainda que a introdução do projeto inter-
clássica ao presente. prete retrospectivamente como um incrível
prognóstico do iminente futuro do compor-
Se, de acordo com Warburg, a memória so- tamento social naquele momento, Warburg
cial coletiva podia ser rastreada através das evidentemente almejou construir – ainda que
inúmeras camadas de transmissão cultural pela última vez – um modelo de memória
(seu foco principal sendo a transformação histórica e de continuidade da experiência,

Gerhard Richter, Atlas


10: Zeitungfotos
(Fotografias de jornal),
1962-1968

197
antes que ambas fossem dilaceradas pela simultaneamente o espaço da fotografia,
destruição catastrófica da civilização antecipando a subsequente abstração do
humanista nas mãos do fascismo alemão. O contexto histórico e da função social em
Atlas, entretanto, ao menos de acordo com nome de uma experiência estética universal
as intenções de seu autor, deveria também realizada por André Malraux em seu Musée
cumprir um projeto materialista de constru- imaginaire. À primeira vista ao menos, essa
ção de memória social ao colecionar repro- condição por si só parece situar o
duções fotográficas de enorme variedade de Mnemosyne Atlas também em paralelismo
práticas de representação. O Atlas de peculiar com as práticas artísticas da vanguar-
Warburg, antes de tudo, portanto, não só da histórica dos anos 20. Não surpreende
reiterou o desafio de toda uma vida dedicada que esse argumento tenha sido feito de fato
a combater a rigorosa e hierárquica por inúmeros estudiosos de Warburg, prin-
compartimentagem da disciplina de história cipalmente por Wolfgang Kemp, Werner
da arte ao tentar abolir seus métodos e ca- Hofmann e, mais recentemente e com ain-
tegorias de descrição exclusivamente formal da mais ênfase, por Forster em dois ensaios
ou estilística. Ao derrubar as fronteiras en- sobre os métodos de Warburg. Forster ar-
tre as convenções e os estudos da arte eru- gumenta, por exemplo, que em termos de
dita e da cultura de massa, o Atlas também técnica, os painéis de Warburg pertencem à
questionou se a experiência mnemônica ordem dos procedimentos de montagem de
poderia continuar a ser construída mesmo Schwitters e Lissitzsky. Desnecessário dizer
sob o reinado universal da reprodução fo- que essa analogia não implica reivindicar
tográfica, estabelecendo a base conceitual e mérito artístico aos painéis de Warburg nem
representativa para a investigação da com- depreciar as colagens de Schwitters e
Lissitzsky: serve simplesmente para redefinir
petência do mnemônico, sobre a qual o ca-
a montagem gráfica, entendida mais como
derno de rascunhos de Höck emergiria, al-
construção de significados do que como
guns anos mais tarde.
combinação de formas.
Kurt Foster, editor da futura edição inglesa
Esse ponto (e muitos outros similares men-
dos escritos de Warburg,2 assim descreve as
cionados pelos estudiosos de Warburg), em
montagens: “Ali, lado a lado, estavam
particular no que diz respeito à intrigante e
antiquíssimos relevos, manuscritos seculares,
surpreendentemente clara oposição entre
afrescos monumentais, selos de postagem,
“construção de significados” (supostamente
broadsides,3 figuras recortadas de revistas e
atribuída a Warburg) e “combinação de for-
desenhos dos grandes mestres. Torna-se
mas” (supostamente atribuída a Schwitters
evidente, após um olhar mais detalhado, que
e El Lissitzky), levanta um problema. Em pri-
essa seleção não ortodoxa é produto do
meiro lugar, se algum aspecto do Atlas de
domínio extraordinário de um vasto campo.”
Warburg pode de fato ser produtivamente
Numa primeira leitura, parece que encon- comparado às técnicas da colagem e da
tramos no projeto de Warburg uma confi- fotomontagem dos anos 20 ou se podemos
ança quase benjaminiana nas funções univer- entender mais sobre qualquer um dos lados
salmente libertadoras da reprodução dessa problemática comparação ao distin-
tecnológica e sua disseminação. Assim, a guir rigorosamente suas duas partes e – mais
extrema heterogeneidade temporal e espa- importante para nosso projeto – ao reco-
cial dos assuntos do Atlas se justapõe a sua nhecer que o Atlas de fato estabeleceu um
paradoxal homogeneidade quando habitam modelo cultural para averiguar as possibili-

198
dades da memória histórica, cuja agenda era deveria remeter-nos aos procedimentos da
profundamente diferente daquela de seus montagem surrealista. Nessa direção, o Atlas
precursores ativistas no campo da de Warburg se coloca inevitavelmente em
fotomontagem. Em segundo lugar, a ques- comparação também com outro extraordi-
tão: seria potencialmente produtivo compa- nário e inacabado projeto de montagem do
rar o Atlas de Warburg com o Atlas de final dos anos 20, uma colagem textual que
Richter, outro exemplo de tal projeto almejou construir uma memória analítica da
mnemônico? Teríamos de reconhecer, antes experiência coletiva na Paris do século 19.
de qualquer coisa, que embora ambos os pro- Benjamin também havia associado seu
jetos obviamente se dirijam a possibilidades Passagenwerk às técnicas de montagem dos
da experiência mnemônica, eles operam sob surrealistas, identificando-o publicamente de
circunstâncias históricas dramaticamente di- acordo com seus termos, quando escreveu
ferentes: o primeiro no alvorecer da destrui- que o “método deste trabalho é a monta-
ção traumática da memória histórica, o mo- gem literária. Eu não tenho nada a dizer, so-
mento do cataclismo mais devastador da his- mente a mostrar”.
tória humana, conduzido pelo fascismo ale-
mão; o último, com base em uma derradeira Do mesmo modo, a descrição de Theodor
posição de repressão e negação, olhando para W. Adorno de Passagenwerk poderia ser
o passado e tentando reconstruir a memória facilmente dirigida às principais característi-
no interior do espaço social e geopolítico da cas do Mnemosyne Atlas de Warburg: “(Ben-
jamin) excluiu deliberadamente toda inter-
sociedade que infligiu o trauma.
pretação e pretendeu que as condições reais
Estruturas de um atlas existentes brotassem nos choques que a
montagem dos materiais inevitavelmente
Wolfgang Kemp foi o primeiro a assinalar suscitaria no leitor... Para levar ao extremo
que o projeto de Warburg de organizar e seu antissubjetivismo, Benjamin previu que
apresentar vasta quantidade de informação o trabalho deveria ser apenas uma compila-
histórica sem nenhum comentário textual ção de citações.”

Gerhard Richter, Atlas


68: Fotos (fotografias),
1969

199
Outra vez, muitos dos termos presentes Por conseguinte, se poderia dizer que pelos
nessa discussão merecem nossa atenção, em meados dos anos 20 uma variedade de no-
relação tanto à precisão da descrição dos vos e análogos modelos de escrita e de con-
modelos (tal como de suas diferenças po- figuração dos dados históricos emergiu si-
tenciais) de Benjamin e de Warburg quanto multaneamente, variando das técnicas de
à precisão de suas definições a respeito dos montagem das práticas artísticas ao Atlas de
epistemes da colagem/fotomontagem, tal Warburg, àqueles dos Annales de historia-
como a questão se de fato elas compõem dores. Em todos esses projetos (literário,
as epistemes da organização estrutural do artístico, fílmico, histórico) uma subjetivida-
Atlas. Primeiramente, a exclusão da interpre- de pós-humanista e pós-burguesa está cons-
tação em favor das condições verdadeira- tituída. A narrativa da história como
mente existentes na construção discursiva sequência de acontecimentos e informações
da memória textual. Em segundo lugar, a pertencentes a agentes individuais é substi-
antecipação de choques como resultado ine- tuída pelo enfoque na simultaneidade de
vitável e pretendido da técnica da monta- contextos sociais distintos, porém contingen-
gem, supostamente ocorrendo de modo tes, e por uma infinidade de agentes partici-
mais intenso nos interstícios dos campos pantes, enquanto o processo histórico pas-
discursivos (tais como o pictórico versus o sa a ser reelaborado como um sistema estru-
fotográfico, a agitação da cultura de massa tural de permanentes e cambiantes interações
versus a concentração estrutural da estraté- e permutações de dados econômicos e ecoló-
gia da vanguarda, o artesanal versus o re- gicos, constituições de classes e de suas
produzido tecnicamente, o literário versus ideologias, sendo os tipos resultantes das
o descritivo – para nomear alguns dos clás- interações sociais e culturais considerados
sicos topoi e tropos da estética da colagem específicos de cada momento em particular.
e da montagem).
Ainda que o Atlas de Warburg fizesse parte
Em terceiro lugar, e mais importante, a ob- de fato da ascensão de um novo paradigma
servação de Adorno sobre o antissubje- cultural da montagem como processo alter-
tivismo como força condutora da estética da nativo para escrever uma história descen-
colagem/fotomontagem, suposta articuladora tralizada e construir formas mnemônicas re-
lacionadas, qualquer comparação entre
de crítica sistemática do que posteriormente
Warburg e as técnicas de montagem das
viria a ser chamado de “a função autor” de
vanguardas artísticas, ou mesmo da
um texto. E por último, vinculada diretamen-
neovanguarda, permanecerá altamente pro-
te ao item anterior, a ênfase dada por Ador- blemática se não reconhecer, antes de mais
no à acumulação de citações como um novo nada, as reais descontinuidades do próprio
e estruturante instrumento da estética da modelo da colagem/fotomontagem. Essas
montagem: primeiramente na própria foto- rupturas e alterações internas ao paradigma
montagem, em que a homogeneidade da surgem nos anos 20 e se tornarão especial-
concepção e execução da pintura são mente decisivas em sua redescoberta pelas
destruídas. Contudo, logo em seguida, a mon- práticas do pós-guerra. Além do mais, qual-
tagem iria transformar também a estética li- quer tentativa de leitura comparativa desses
terária ou fílmica (aquelas da União Soviética projetos terá que desenvolver um entendi-
em particular) como, por exemplo, no ro- mento igualmente diferenciado das contra-
mance factográfico, em que irá depor a onis- dições e mudanças que surgiram nos anos
ciência autoral, a narrativa e a ficção. 20, nas próprias definições das funções fo-

200
tográficas, tal como nas investigações teóri- Warburg ser interrompido: A pequena his-
cas sobre a fotografia na Alemanha de tória da fotografia de Walter Benjamin, que
Weimar e na União Soviética, e nas práticas argumenta a favor de uma nova cultura de
artísticas que se apropriaram da fotografia mídia, de uma montagem politicamente
em ambos os países. Mais especificamente, motivada, em oposição ao pessimismo do
e de particular importância para nossa dis- ensaio de Kracauer em relação à mídia.
cussão em torno do projeto mnemônico de
Warburg e Richter, está o fato de que, no A fim de esboçar rapidamente essas oposi-
mesmo momento de sua elaboração, ções, teríamos que primeiro distinguir que
teorizações opostas da fotografia se colidem dicotomias latentes atuam na estética da
justamente no que diz respeito ao proble- colagem/montagem desde sua origem: os
ma do impacto da imagem fotográfica na polos de oposição poderiam ser chamados
construção da história mnemônica. de a ordem do choque perceptivo e o prin-
cípio do estranhamento de um lado, e, do
Essa dialética é evidente nas posições articu- outro, o agrupamento estatístico ou a or-
ladas em 1927-1928: de um lado temos que dem do arquivo. A ênfase estrutural na
considerar o ensaio decisivo de Siegfried descontinuidade e na fragmentação típica do
Kracauer, cuja tese de que a produção foto- Dada, que definiu a fase inicial da fotomon-
gráfica devasta a imagem da memória suge- tagem, introduziu o campo perceptivo do
re severa crítica ao projeto de Warburg de sujeito nas experiências de “choque” da exis-
conceber o Atlas como um modelo de cons- tência cotidiana de uma cultura industrial
trução da memória social (possivelmente avançada. Enquanto os procedimentos
sem que essa fosse a intenção original). No metonímicos da fotomontagem, enfatizando
extremo oposto, o famoso “debate da foto- continuamente a fissura e o fragmento – pelo
grafia” que surge na União Soviética também menos quando apareceram –, procuraram
em 1927, sobretudo nos escritos dos teóri- desmantelar os mitos da unidade e da tota-
cos e artistas soviéticos Ossip Brik, Boris lidade que a propaganda e a ideologia cons-
Kushner e Alexander Rodchenko. E, ainda, tantemente inscrevem em seus consumido-
aquele que permanece sendo talvez o en- res, a fotomontagem, paradoxalmente, co-
Gerhard Richter, saio mais importante sobre a fotografia da laborou também com o projeto social de
Atlas 323: Seestücke primeira metade do século 20, escrito em modernização da percepção e sua agenda
(Marinhas), 1975 1931, um pouco depois de o projeto de positiva. Tal efeito revolucionário de convul-
são semiótica provocado pelo choque poéti-
co e pelo estranhamento obteve permanên-
cia bastante breve. Já no segundo momento
da colagem Dada (na época do Meine
Haussprüche de Hanna Höch, em 1922), por
exemplo, a heterogeneidade da ordem alea-
tória e as justaposições arbitrárias de objetos
e imagens encontradas, assim como o signifi-
cado de uma anomia fundamentalmente
cognitiva e perceptiva, foram acusados de ser
apolíticos e anticomunicativos ou esotéricos
e meramente estéticos. Os mesmos artistas
vanguardistas que originaram a fotomontagem

TEMÁTICAS • BENJAMIN BUCHLOH 201


(como Heartfield e Höch, Klucis, Lissitzky, presentação fotográfica, tornam-se mais cla-
Rodchenko) passaram a diagnosticar o cará- ros quando lemos o argumento de Ossip
ter anômico da técnica de colagem/monta- Brik sugerindo:
gem Dada como vanguardismo burguês, sus-
citando crítica que proclamou, paradoxal- diferenciar objetos individuais com o fim
mente, a reintrodução das dimensões da de realizar seu registro pictórico não é
narrativa, da ação comunicativa e da lógica apenas um fenômeno técnico, mas tam-
instrumental na organização estrutural da bém ideológico. No período pré-revo-
estética da montagem. lucionário (feudal e burguês), tanto a
pintura quanto a literatura concentra-
O que estamos testemunhando, primeiro em ram-se nas pessoas e nos eventos indi-
meados dos anos 20 e, mais decisivamente, viduais, colocando-se a serviço de
no final daquela década, é precisamente uma diferenciá-los de seus contextos gerais...
mudança gradual em direção à ordem das Para a consciência contemporânea, um
funções arquivistas e mnemônicas da acu- indivíduo só pode ser compreendido e
mulação fotográfica, assim como o acessado em conexão com todas as
surgimento de uma episteme latente, de uma outras pessoas – com aqueles que fo-
estética radicalmente diferente de ram, pela consciência pré-revolucioná-
fotomontagem. Com relação a sua aborda- ria, frequentemente colocados em se-
gem do fotográfico, trata-se de mudança que gundo plano.
deriva da mesma segurança na versatilidade
e confiabilidade da fotografia que orientou Esse argumento implica radical redefinição
o projeto do arquivo de Warburg e sua cer- do próprio objeto fotográfico, não mais con-
teza na autenticidade da fotografia como cebível como a impressão de uma única ima-
documento empírico, e do poder de eman- gem, cuidadosamente manipulada pelo ar-
cipação radical dos efeitos igualitários da re- tista-fotógrafo em seu ateliê, emoldurada e
produção fotográfica. A imagem fotográfica apresentada como substituto pictórico. O
em geral seria definida, a partir de então, que significa dizer, como já especificava a
como dinâmica, contextual e contingente, e definição de Rodchenko, que é precisamen-
a estruturação serial da informação visual te a fotografia corriqueira, realizada de modo
enfatizaria formas abertas e uma infinidade rápido e barato, que irá substituir o retrato
potencial de temas fotográficos elegíveis tradicional e seu aspecto sintético. A forma
dentro de um novo coletivo social, bem de organização e distribuição passará a ser,
como de registros fotográficos de eventuais a partir de então, aquela do arquivo ou, como
detalhes e facetas, que constituiriam cada denominou Rodchenko, a do álbum foto-
sujeito individual em meio a uma série de gráfico, uma reunião imprecisa de fotografi-
atividades, relações sociais e relacionamen- as corriqueiras mais ou menos coerentes
tos objetivos, em permanente modificação. entre si, dispostas de modo a documentar
Novamente, valeria a pena investigar os pa- um determinado assunto.
ralelos entre o modelo soviético do foto-
gráfico e a reelaboração radical do processo No lugar de traçar os futuros modelos da
histórico que emergia, simultaneamente, no experiência fotográfica participativa do socia-
trabalho dos historiadores dos Annales fran- lismo, Siegfried Kracauer analisou os usos
ceses Marc Bloch e Lucien Febvre. Tais pa- existentes da imagem fotográfica nas ativi-
ralelos, entre a concepção do processo his- dades da mídia capitalista da Alemanha de
tórico e a construção e ordenação da re- Weimar, particularmente aqueles que regiam

202
os semanários ilustrados. Associando a ca- que a fotografia naquele momento mal ha-
pacidade de formação das imagens da me- via exercido a transição de um objeto
mória a uma relação real de objetos materi- aurático para uma estrutura cada vez mais
ais e cognitivos, o pessimismo extremo de vazia da mera reprodução tecnológica e, si-
Kracauer acerca da mídia reconhece que é multaneamente – como uma emergente
precisamente a presença universal da ima- tecnologia em emancipação –, poderia con-
gem fotográfica que irá eventualmente des- ter a promessa social de formas radicalmen-
truir ambos os processos cognitivos e te diferentes de interação coletiva e de cons-
mnemônicos. Com isso, argumenta: trução da subjetividade.

Nunca antes uma era foi tão informada As origens do Atlas de Richter
a seu respeito, se ser informada signifi-
ca possuir a imagem de objetos seme- Se considerarmos agora o modo como os
lhantes entre si no sentido fotográfico trabalhos dos artistas do período pós-guer-
(...) Na realidade, no entanto, a propor- ra, em particular o Atlas de Richter, se
ção fotográfica semanal nem mesmo posicionaram em relação ao legado fotográ-
pretende aludir a esses objetos ou fico das vanguardas históricas, podemos fa-
urimages.4 Se se estivesse oferecendo cilmente reconhecer que a coleção de
como um complemento para a memó- Richter de fotografias amadoras encontra-
ria, então a memória teria feito essa das (jornalísticas e publicitárias) inverte as
opção. Mas a torrente de fotos devas- aspirações utópicas da vanguarda em todos
ta as barreiras da memória. O ataque os níveis: se algumas das práticas e
dessa massa de imagens é tão podero- teorizações realizadas na União Soviética e
so, que ameaça destruir a consciência na Alemanha de Weimar haviam definido a
potencialmente existente das qualida- fotografia sob uma perspectiva teleológica,
des capitais. As obras de arte sofrem como um projeto cultural de aprovação e
essa sina através de suas reproduções fortalecimento, de articulação e de autode-
(...) Nas revistas ilustradas as pessoas terminação, Richter contempla os usos sociais
veem o mesmo mundo que as revistas dominantes da fotografia e suas funções ar-
ilustradas as impedem de perceber (...) tísticas potenciais a partir de uma posição
Nunca antes um período soube tanto exterior, com uma atitude profundamente
sobre si mesmo. ascética. Se as dimensões tumultuosas e
libertadoras da fotomontagem tinham nas-
Foi esse o momento em que o surgimento cido do desejo de transformação radical das
de uma cultura de mídia fotográfica permitiu relações hierárquicas de classe e das estru-
um primeiro vislumbre das recém-surgidas turas que regiam a produção e a autoria, o
condições coletivas de anomia, o momen- Atlas de Richter parece considerar a foto-
to em que se tornou possível imaginar que grafia e suas várias práticas um sistema de
a representação cultural de massa causaria dominação ideológica e, mais precisamente,
a destruição conjunta da experiência um dos instrumentos com que a anomia
mnemônica e do pensamento histórico. Por coletiva, a amnésia e a repressão são inscri-
esse motivo, um dos mais enigmáticos – e tas socialmente.
atualmente cada vez mais plausíveis – argu-
mentos de Walter Benjamin em 1931 suge- Após ter-se mudado da Alemanha Oriental
ria que o clímax histórico da fotografia de- para a Alemanha Ocidental em 1961, Richter
veria ser situado por volta de 1860, uma vez deu início a essa coleção de imagens foto-

TEMÁTICAS • BENJAMIN BUCHLOH 203


gráficas cujo objetivo, ao menos inicialmen- mória” havia sido confrontado pelos artistas
te, parece ter permanecido obscuro até e teóricos da fotografia já no final dos anos
mesmo para ele: organizadas seguindo o es- 20, anterior à histórica destruição da subjeti-
quema mais tradicional de montagem, con- vidade humanista, mas não ao surgimento de
forme grade retangular, as imagens – ao uma cultura fotográfica de massa e de seus
menos num primeiro olhar – parecem ter efeitos devastadores (ou emancipadores) no
sido escolhidas somente por seu valor senti- trabalho de arte aurático e na imagem
mental enquanto registros de situações e mnemônica. O desejo mnemônico, ao que
temas da história familiar. Apenas uma das tudo indica, é ativado especialmente naque-
imagens dos primeiros quatro painéis servi- les momentos de excessiva coação, em que
ria mais tarde como matriz para uma das as tradicionais conexões materiais entre su-
fotopinturas de Richter, iniciadas na época jeitos, entre sujeitos e objetos, e entre obje-
em que os primeiros painéis do Atlas foram tos e suas representações parecem estar à
montados (Christa und Wolfi, 1964). As beira do colapso, senão do desaparecimen-
outras – incluindo o terceiro painel, que con- to total. Sem dúvida, essa teria sido condi-
siste quase que inteiramente de fotografias ção fundamental para a cultura alemã do pós-
amadoras de paisagem tiradas em viagens guerra em particular, envolta no constrangi-
de férias – permaneceriam documentos apa- mento da negação coletiva da história, da
rentemente mudos e sem importância. As repressão de um passado recente e num
imagens fotográficas surgem, num primeiro aparato de produção fotográfica ampliado e
momento, como se tivessem sido removi- acelerado quase histericamente para provo-
das do álbum familiar momentos antes do car o desejo artificial e o consumo.
voo de Richter da Alemanha Oriental,
suvenires de um passado que estava sendo Uma das dificuldades atuais de localizar o
largado para sempre, ou como se tivessem Atlas de Richter nessa dupla perspectiva é
sido enviadas por seus parentes da Ale- que temos de relacionar, senão integrar, es-
manha Oriental, à guisa de consolo para a sas duas estruturas diferentes de modo que
recente separação do jovem artista de seus o trabalho possa ser entendido como res-
entes queridos. posta a essa dupla “crise de memória”. A
primeira é extremamente histórica e espe-
Se assumirmos que o impulso inicial para a cífica aos contextos social e ideológico do
formação do Atlas originou-se de fato na pós-guerra na Alemanha após o fascismo. A
experiência de uma perda recente do con- segunda, possivelmente contrária à primei-
texto familiar e social de Richter e em seu ra, embora não totalmente, considera em
encontro com a autodestruição infligida da larga medida o impacto de uma cultura de
identidade do estado nacional alemão, seria mídia fotográfica no projeto da pintura e na
plausível considerar o Atlas mais um, embo- concepção de uma autêntica experiência
ra sob muitos aspectos diferente, exemplo objetiva. Certamente, a questão levantada
de duradoura tradição de práticas culturais por Kracauer concentra-se sobretudo no
que, assim como o Atlas Mnemosyne de impacto devastador da fotografia sobre o
Warburg, num curso diferente daquele da trabalho de arte aurático artesanalmente
divisão histórica, lidaram com uma experiên- produzido, que continha aquilo que ele cha-
cia parecida, de uma “crise de memória” maria de “monograma da história”. Na defi-
particularmente aguda. Como já indicamos, nição enigmática de Kracauer, esse
porém, um tipo diferente de “crise de me- “monograma” constitui a singularidade da

204
forma artística, seu êxito em trazer para a seria definida como aquela do código gené-
representação o conhecimento da morte em tico e hereditário (a fundação de uma teoria
seu mais intenso propósito e, com isso, re- protorracista tal como sugerida na teoria da
sistir profundamente à repressão. memória desenvolvida pelo professor de Aby
Warburg, Richard Semon) ou se ela rastrearia
Richter, como um sujeito do período pós- uma estrutura psicossexual mais ou menos
guerra, teria então de reformular essa mes- bem sucedida (a inerente definição de Freud
ma questão, no caso, se poderia ser possível sobre a memória psíquica, por exemplo), ou
ainda conceber imagens mnemônicas no se a memória seria concebida como deter-
momento em que uma negação coletiva da minada por uma instituição social de classe
história extremamente violenta ocorre, uma (conforme proposto na teoria de Durkheim
repressão cuja cultura de mídia fotográfica sobre a estrutura da memória): é na reflexão
vem a ser, mais do que no tempo de sobre a imagem de família em que a força do
Kracauer, o principal agente. Simultaneamen- mnemônico conecta-se ao passado, e seus in-
te, Richter como pintor – tal como todos os tricados impactos no presente poderiam ser
outros pintores de sua geração – deve ter- fidedignamente verificados como processos
se debatido com a questão de se e como a materiais, alternadamente certificando e ata-
pintura poderia continuar a ser concebida, cando – tal como na fotografia – a formação
em face do confronto com o sistema da cul- da identidade.
tura de massa fotográfica.
O fato de que a mobilização de um Atlas de
As imagens fotográficas de membros da fa- recordações, contrário ao massivo sistema
mília que compõem os quatro primeiros de repressão, tenha resultado não apenas
painéis do Atlas, portanto, parecem ter ser- da experiência particular de perda do con-
vido a Richter – tal como serviram para texto geopolítico e da estrutura familiar, mas,
Kracauer em 1927, para Benjamin em 1931 como temos argumentado, igualmente do
e, ainda, para Roland Barthes em 1979 (quan- encontro com as funções e as estruturas
do o confronto com a morte de sua mãe o continuamente alteradas da imagem fotográ-
fez escrever uma fenomenologia contempo- fica que Richter descobriu após sua chegada
rânea da fotografia) – como ponto de parti- no Ocidente, evidencia-se no quinto pai-
da para suas reflexões sobre a relação entre nel do Atlas, em que a homogeneidade
a fotografia e a memória histórica originada. do material fotográfico definida até então
Como se a oscilante ambiguidade da foto- pela reunião mais ou menos aleatória de
grafia, que tal como um agente dúbio ao imagens de família é devastada por peculiar
mesmo tempo ativa e destrói a experiência heterogeneidade, a princípio fantasmática, de
mnemônica, pudesse ser imobilizada, ao tipos de fotográficos.
menos por um instante, ao situar a imagem
em analogia com a impressão mnemônica Ao introduzir uma variedade de recortes
da própria relação familiar. procedentes dos jornais ilustrados da Ale-
manha Ocidental (como o Der Stern),
Apesar de tudo, é nesse tipo de impressão, Richter parece ter registrado seus primeiros
em que a contiguidade física e o referente à encontros com os gêneros culturais de mas-
inscrição psíquica não poderiam ser questio- sa, até então mais ou menos desconhecidos
nados, que a causalidade e a materialidade para ele. Tendo escapado de um país em
da experiência mnemônica pareceram estar que qualquer tipo de publicidade era proibi-
garantidas. Se essa impressão mnemônica do, a fotografia de moda (para não falar de

TEMÁTICAS • BENJAMIN BUCHLOH 205


fotografias pouco ou bastante pornográficas) sinais e linguagens recém-construídos, exis-
era marginal e as imagens capazes de des- tentes e atuantes fora do conjunto das for-
pertar a vontade para o turismo e o consu- mas mnemônicas de experiência que as ima-
mo tinham sido banidas da esfera pública gens da família haviam representado, passa-
fotográfica do estado comunista, Richter riam a habitar o campo mnemônico, vincu-
poderia, pela primeira vez, se deter sobre lando o desejo pela identidade a registros
tais imagens, disseminadas em abundância. representacionais completamente diferentes.
Não surpreende notar, portanto, que justa-
mente aquelas categorias (moda, turismo, Grosso modo, na primeira imagem de
pornografia “leve” e “pesada” e publicidade) Kracauer o investimento libidinal do leitor/
foram as primeiras a romper com a espectador é reorientado em direção a uma
homogeneidade das fotografias amadoras e figura feminina desconhecida e que nunca
familiares dos primeiros quatro painéis do Atlas. será conhecida, a não ser por sua represen-
tação fotográfica. O corpo dela não é mais
Em analogia quase direta ao início do ensaio o lugar de uma presença aurática, digna de
de Kracauer, Richter justapõe a construção uma experiência ou de um encontro vivido
da identidade pública pela mídia cultural à (como aquele da avó de Kracauer ou da mãe
construção de uma identidade privada atra- de Barthes), mas o corpo de uma represen-
vés da fotografia de família. A memória no tação produzida industrialmente (da estrela
Atlas de Richter se constitui, portanto, prin- feminina) disseminado através de sua repro-
cipalmente como uma arqueologia de regis- dução técnica. Como Kracauer foi o primei-
tros pictóricos e fotográficos, cada um deles ro a assinalar, é justamente no investimento
compartilhando diferente formação fotográ- do desejo por uma figura cujo corpo é com-
fica, e suscitando um registro particular de posto de Benday Dots5 invisíveis que ocorre
respostas psíquicas. Estas, apesar de atuarem o rompimento da libido, tanto no plano da
separadamente (e com relativa independên- imagem quanto no da formação psíquica,
cia umas das outras) no sistema perceptivo impregnando o meio fotográfico com uma
e mnemônico do sujeito, interagem entre si, condição de fetichismo, de maneira quase
constituindo justamente aquele complexo ontológica. Com isso, Kracauer antecipou
campo de repúdios e deslocamentos, um todo um conjunto de questões peculiares
campo de repressão e de imagens repre- para a pintura, que ressurgiriam nos traba-
sentativas com as quais a memória se cons- lhos de Roy Lichtenstein e Andy Warhol do
titui, no registro da ordem fotográfica. O que início dos anos 60, pouco antes de Richter a
tornou tão incrível a observação de Kracauer eles se unir na busca do entendimento do
(a comparação entre as imagens da estrela modo como a inscrição do desejo fetichista
de cinema glamorosa e da avó) nos parágra- e do valor de troca de signo havia aos pou-
fos iniciais de seu ensaio foi a percepção de cos substituído a presença, a corporeidade
que – com a ascensão da cultura de mídia – e a experiência mnemônica, e como essas
o sujeito não poderia mais ser constituído mudanças iriam inevitavelmente alterar tam-
exclusivamente dos modelos de continuida-
bém a face da pintura. Apesar de tudo, nem
de sustentados pela etnia e pela família, pelo
Estado e pela cultura, pela tradição e pelos a investigação teórica de Kracauer, nem o
costumes sociais e de classe. Nem mesmo o projeto artístico de Richter são motivados
campo corporal do mnemônico parecia ser por uma reivindicação nostálgica de recons-
ainda referência garantida, infringido pela truir a ficção de uma identidade autêntica,
surpreendente rapidez da moda. Em troca, centrada no corpo ou na aura e no artefato

206
artesanal. Isso separa dramaticamente seus das fotografias amadoras é mais bonita do
empreendimentos de A câmera clara de que a mais bela pintura de Cézanne...”
Roland Barthes, que procura de fato reatar
a memória corporal à imagem da mãe e Novamente, duas atitudes são aqui reuni-
impregná-la de uma experiência de autenti- das, tornando duplamente difícil compreen-
cidade fenomenológica. der o projeto do Atlas: primeiro, na afirma-
ção quase ingênua de um posicionamento
Ao contrário, parece que Richter está com- antiestético radical, Richter publicamente se
prometido com um projeto absolutamente associa à atitude vanguardista, recém-revi-
diferente: antes de tudo, busca explorar os gorada com a redescoberta de Duchamp
vários registros da fotografia como um siste- pela Pop Art. Em postura bastante comum
ma representacional na qual a repressão his- aos artistas alemães do pós-guerra, muito
tórica é instituída e transmitida fisicamente. mais conectados com o que estava acon-
A notória atração dos artistas alemães do tecendo em Nova York e Paris do que com
pós-guerra pela banalidade da cultura de o ofuscado legado da vanguarda histórica
consumo alemã que conduz o extenso exa- alemã dos anos 20, Richter claramente cre-
me efetuado por Richter do material que dita o trabalho de Robert Rauschenberg por
compõe os quatro primeiros anos da cole- tê-lo introduzido na estética da colagem/
ção do Atlas (outro exemplo seria a montagem, ao mesmo tempo em que alega
iconografia de Polke) poderia encontrar in- desconhecer por completo as práticas de
terpretação adicional aqui: ela não é apenas fotomontagem dos artistas dadaístas na Ale-
uma variação dos temas da Pop Art (que manha de Weimar e ser completamente
certamente foi, assim como – e visto que – hostil a todo e qualquer modelo de
a Pop Art incessantemente colocou em si fotomontagem impregnado de agitação po-
mesma a questão da possibilidade de uma lítica, tal como o trabalho de John Heartfield,
experiência autêntica sob o domínio de uma que ele pôde ter visto durante sua estada
produção totalizante de comodidades). Mais na República Democrática Alemã. Essa pa-
especificamente, o que vem a ser evidente radoxal mudança histórica e geopolítica
nas imagens de consumo do arquivo de acrescenta uma série de questões à leitura
Richter é o lado infausto dessa peculiar varia- do arquivo fotográfico de Richter.
ção, na Alemanha Ocidental, do tema da
banalidade: a falta coletiva do afeto, com a Antes de tudo, coloca a questão de como o
armadura psíquica que os alemães do perío- princípio da acumulação aleatória se mani-
do pós-guerra usaram para proteger-se de festa em circunstâncias históricas essencial-
um insight histórico. mente diferentes, como, por exemplo, no
momento em que a aleatoriedade e a justa-
A banalidade como uma condição da vida posição arbitrária operam não apenas como
cotidiana converte-se aqui, em sua modali- estética de procedimentos conhecidos, mas
dade especificamente alemã, em condição também como legitimação socialmente im-
de repressão da memória histórica, como posta de anomia encoberta por um estado
um tipo de anestesia psíquica. Banalidade de independência individual avançado. A es-
como condição de atitude estética, como tética da colagem nas mãos de
sua correspondente, é assim também clara- Rauschemberg havia reinaugurado a elimi-
mente proclamada por Richter quando ele nação da escolha autoral e da autoridade
polemicamente afirma que “... a mais banal artística ao relacionar intrinsecamente a au-

TEMÁTICAS • BENJAMIN BUCHLOH 207


toria às reais condições da experiência numa tentamos explorar neste ensaio. Operando
cultura de consumo avançada, em que a ins- à maneira de um punctum6 em relação ao
tituição do valor de troca que habita tão contínuo campo anterior das imagens ba-
somente o signo determina a constituição nais, imersas em sua condição de studium,7
da identidade do sujeito consumista. esse primeiro conjunto de fotografias das
vítimas de um campo de concentração ope-
Certamente, no momento do pós-guerra, as ra agora surpreendente revelação: a de que
técnicas usadas para descentralizar o sujeito existe ainda uma ligação capaz de vincular
e desmantelar as reivindicações de autoria uma imagem a seu referente em meio ao
mudaram novamente, [agora] na transmis- acúmulo aparentemente vazio de imagens
são de Duchamp para John Cage, umas das fotográficas e à produção universal do valor
figuras que contribuíram para a cultura da de troca do signo: o trauma do qual a
colagem de Rauschemberg. Não é fácil de- compulsão para a repressão se originou.
terminar se, naquele que seria então o perío- Paradoxalmente, é nesse exato momento
do da neovanguarda, a descentralização ra- que também o Atlas expõe seu próprio se-
dicalmente subversiva do sujeito (burguês) gredo como uma coleção de imagens: um
se tinha tornado apenas um princípio de in- pêndulo perpétuo, entre a morte da reali-
diferença afirmativa da subjetividade como dade na fotografia e a realidade da morte na
um todo (por exemplo, a abordagem Zen imagem mnemônica.
de Cage) ou se, na recorrência dessas estra-
tégias durante o pós-guerra, a eliminação po- Buchloh, Benjamin H.D. Gerhard Richter’s
liticamente imposta da subjetividade neces- Atlas: the anomic archive. In Photography and
sitou desse recurso estético para produzir painting in the work of Gerhard Richter. Four
anomia estrutural, perceptual e cognitiva, essays on Atlas. Barcelona: Libres de recerca.
uma vez que esse modelo em particular pa- Art, 6, 1999:11-30.
receu instituir a decrescente validade dos
conceitos da ação comunicativa, autodeter- Benjamin H. D. Buchloh é professor de arte moderna na
minação e organização social transparente.
Universidade de Harvard, crítico de arte e coeditor da
revista October. Foi editor da revista Interfunktionen,
escreveu inúmeros ensaios sobre arte moderna e con-
Por último, e da perspectiva deste ensaio temporânea, incluindo monografias sobre artistas como
talvez o mais importante, tal atitude levanta Marcel Broodthaers, Gerard Richter, Carl Andre e Dan
a questão de se e como a insistência numa Grahan; publicou os livros Neo-Avantgarde and Culture
banalidade anômica (mesmo se dada ape-
Industry, German Art Now e recentemente organizou
com Hal Foster, Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois o livro
nas como postura) e o projeto estético de Art since 1900, Londres: Thames & Hudson, 2004. No
desmantelar a armadura da repressão psí- Brasil. teve traduzido seu ensaio Procedimentos alegóri-
quica poderiam de fato ser reconciliados. Essa
cos: apropriação e montagem na arte contemporânea
(Arte & Ensaios, n.7, 2000: 178-197).
questão será parcialmente respondida pelo
próprio Richter, uma vez que já no décimo
segundo painel do Atlas, possivelmente de Tradução Bianca Tomaselli
1964-1965, um primeiro conjunto de ima-
Revisão técnica Felipe Scovino
gens inesperadamente se destaca na total
banalidade das fotografias encontradas, rom- Notas
pendo todo o campo. Esse rompimento re-
pentino coloca o projeto do Atlas dentro
1 Este texto encontra-se publicado em alemão e italiano em
Warburg, Aby. Mnemosyne: L’atlante delle immagini.
da dialética da amnésia e da memória que Marene: Nino Aragno Editore, 2002. Sua tradução para

208
o português pode ser conferida no Dossiê Warburg, 6 O autor refere-se aqui ao conceito de punctum elaborado
presente neste número de Arte & Ensaios. (N.T.) por Roland Barthes em A câmara clara: nota sobre a
fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984: Segun-
2 Lançado no mesmo ano em que Buchloh publicou o pre- do Barthes, o punctum é algo próprio da imagem, um
sente ensaio, sob o título Aby Warburg, the renewal of detalhe que atinge o espectador/leitor e lhe mobiliza o
pagan antiquity. Los Angeles: Getty Research Institute afeto, conduzindo-o para além do campo fotográfico.
for the History of Art and Humanities, 1999, 868p. (N.T.) “O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me
3 Palavra apropriada da língua inglesa para denominar publi- punge (mas também me mortifica, me fere).” O punctum
cação ou tipo de panfleto publicitário composto por provoca também uma espécie de “esmagamento do
uma série de dobraduras. (N.T.) tempo”, uma vez que engendra na fotografia a morte e
o retorno do seu referente simultaneamente. Cf. Barthes,
4 Na versão inglesa de Buchloh esse termo aparece grifado, op. cit.: 46, 142-143 (N. T.)
como se sinalizando correlação com a raiz etimológica
alemã do prefixo ur, e por esse motivo o mantivemos 7 Segundo Barthes, o studium inscreve a fotografia numa lei-
assim. O prefixo ur é usado para designar “primordial”, tura criteriosa e objetiva, baseada numa dada
“anterior”, “primeiro”, de modo que urimages pode ser metodologia. O studium “não quer dizer, pelo menos
lido como “imagens primordiais” ou “primeiras imagens”. de imediato, estudo, mas a aplicação a uma coisa, o gos-
(N.T.) to por alguém, uma espécie de investimento geral, ar-
doroso, é verdade, mas sem acuidade particular”. Barthes,
5 Trata-se de processo de impressão que combina dois (ou op. cit.: 45. (N.T.)
mais) pontos de cores diferentes a fim de formar uma
terceira cor. Usado tradicionalmente nos quadrinhos,
tornou-se uma espécie de marca visual do artista ameri-
cano Roy Lichtenstein. (N.T.)

TEMÁTICAS • BENJAMIN BUCHLOH 209

Você também pode gostar