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Benjamin Buchloh PDF
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Benjamin Buchloh
Análise do projeto do Atlas do artista alemão Gerhard Richter com base em uma
reinterpretação das práticas vanguardistas e neovanguardistas, e de uma reavaliação
das teorizações pioneiras sobre fotografia, arte e memória, desenvolvidas nas déca-
das de 1920 e 1930.
Fotografia, arquivo, vanguarda e neovanguarda, arte e memória, arte e história, montagem/colagem.
O que as fotografias, por meio de sua sim- meçou a realizar no final da década de 1960).
ples acumulação, procuram anular é a lem- Eles merecem atenção tanto por sua im-
brança da morte, traço componente de toda pressionante homogeneidade e continuida-
imagem memorial. Nas revistas ilustradas, o de (como no caso do trabalho do casal
mundo se tornou um presente “fotografável”, Becher) quanto pela flagrante heteroge-
e o presente fotografado passou a ser inte- neidade e descontinuidade que define o Atlas
gralmente eternizado. Aparentemente a sal- de Richter. Apropriando-se dos elementos
vo das garras da morte, o presente na reali- inerentes à fotografia – tais como sua orde-
dade a ela se rende. nação estrutural de arquivo, sua aparente-
mente infinita multiplicidade, serialização e
Na duplicação exata do real, principalmente anseio por uma totalidade compreensiva –
através de outro meio reprodutivo – publi- para fazer deles os princípios da organiza-
cidade, fotografia, etc. – e na passagem de ção formal do trabalho, esses projetos com-
um meio para outro, o real desaparece e partilham antes de mais nada a condição de
passa a ser uma alegoria da morte. Mesmo não ser classificáveis segundo a tipologia e a
em seu momento de destruição, porém, ele terminologia da história da arte de vanguar-
se revela e se afirma, de modo a tornar-se o da: os termos “colagem” e “fotomontagem”
real essencial, assumindo-se como fetiche de nem sequer seriam adequados para descre-
algum objeto perdido. ver a aparente monotonia formal e icono-
Atlas, de Gerhard Richter, é um entre vários gráfica desses painéis, a vasta acumulação de
projetos, de estrutura similar, mas significati- seus conteúdos em forma de arquivo. No
vamente diferentes, de um grupo de artistas entanto, os termos descritivos e os gêneros
europeus atuantes do início a meados dos de uma história da fotografia mais especi-
anos 60, cujos procedimentos formais de alizada, todos operantes de um modo ou
reunir fotografias encontradas ou produzi- de outro no Atlas de Richter, revelam-se
das intencionalmente em formato de grade igualmente inadequados para classificar es-
mais ou menos regular permanecem enig- sas acumulações de imagens.
máticos (pode-se pensar também na co-
Gerhard Richter, Atlas.
letânea de tipologias da arquitetura in- Apesar da primeira impressão que se pode-
ria ter do Atlas, nem o álbum particular do
vista da instalação no
Museu de Arte dustrial, iniciada em 1958 e realizada du-
Contemporânea de rante 40 anos por Bernhard e Hilla Becher, amador, nem os crescentes projetos de fo-
Barcelona, 1999 ou no trabalho que Christian Boltanski co- tografia documentária poderiam identificar
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concebido primeiramente pelo historiador de “dinamogramas” transferidos da Antigui-
da arte Aby Warburg, em 1925, após ter dade clássica para a pintura do Renascimento,
recebido alta da clínica psiquiátrica de Ludwig os recorrentes motivos de expressão gestual
Binswanger em 1924; ele trabalhou ativamen- e corporal que ele identificou como “pathos
te no projeto em 1928 e até sua morte, em formulas”, uma de suas mais famosas expres-
1929. Ainda que o pesquisador tenha dei- sões), mais especificamente, Warburg arguiu
xado o projeto em estado inacabado, mais que sua tentativa de construir a memória
de 60 painéis contendo cerca de mil foto- histórica coletiva deveria focalizar a ligação
grafias foram montados por Warburg. Se- intrínseca entre o mnemônico e o traumáti-
gundo suas pretensões, conforme registros co. Nesse sentido, ele escreveu, na introdu-
em seus diários, o Mnemosyne Atlas buscava ção inédita de seu Mnemosyne Atlas1 que é
construir um modelo do mnemônico, de nos domínios de uma convulsão orgiástica
modo que o pensamento humanista do eu- de massa que se deveria procurar aquilo que
ropeu ocidental pudesse uma vez mais, tal- origina a expressão de um ataque emocio-
vez pela última tentativa, reconhecer suas nal extremo na memória – de tamanha in-
origens e rastrear no presente suas conti- tensidade, que os engramas daquela expe-
nuidades latentes, atravessando o espaço, até riência instituiriam uma herança preserva-
os confins da cultura humanista europeia e da na memória.
se situando temporariamente entre os
parâmetros de sua história, da Antiguidade Ainda que a introdução do projeto inter-
clássica ao presente. prete retrospectivamente como um incrível
prognóstico do iminente futuro do compor-
Se, de acordo com Warburg, a memória so- tamento social naquele momento, Warburg
cial coletiva podia ser rastreada através das evidentemente almejou construir – ainda que
inúmeras camadas de transmissão cultural pela última vez – um modelo de memória
(seu foco principal sendo a transformação histórica e de continuidade da experiência,
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antes que ambas fossem dilaceradas pela simultaneamente o espaço da fotografia,
destruição catastrófica da civilização antecipando a subsequente abstração do
humanista nas mãos do fascismo alemão. O contexto histórico e da função social em
Atlas, entretanto, ao menos de acordo com nome de uma experiência estética universal
as intenções de seu autor, deveria também realizada por André Malraux em seu Musée
cumprir um projeto materialista de constru- imaginaire. À primeira vista ao menos, essa
ção de memória social ao colecionar repro- condição por si só parece situar o
duções fotográficas de enorme variedade de Mnemosyne Atlas também em paralelismo
práticas de representação. O Atlas de peculiar com as práticas artísticas da vanguar-
Warburg, antes de tudo, portanto, não só da histórica dos anos 20. Não surpreende
reiterou o desafio de toda uma vida dedicada que esse argumento tenha sido feito de fato
a combater a rigorosa e hierárquica por inúmeros estudiosos de Warburg, prin-
compartimentagem da disciplina de história cipalmente por Wolfgang Kemp, Werner
da arte ao tentar abolir seus métodos e ca- Hofmann e, mais recentemente e com ain-
tegorias de descrição exclusivamente formal da mais ênfase, por Forster em dois ensaios
ou estilística. Ao derrubar as fronteiras en- sobre os métodos de Warburg. Forster ar-
tre as convenções e os estudos da arte eru- gumenta, por exemplo, que em termos de
dita e da cultura de massa, o Atlas também técnica, os painéis de Warburg pertencem à
questionou se a experiência mnemônica ordem dos procedimentos de montagem de
poderia continuar a ser construída mesmo Schwitters e Lissitzsky. Desnecessário dizer
sob o reinado universal da reprodução fo- que essa analogia não implica reivindicar
tográfica, estabelecendo a base conceitual e mérito artístico aos painéis de Warburg nem
representativa para a investigação da com- depreciar as colagens de Schwitters e
Lissitzsky: serve simplesmente para redefinir
petência do mnemônico, sobre a qual o ca-
a montagem gráfica, entendida mais como
derno de rascunhos de Höck emergiria, al-
construção de significados do que como
guns anos mais tarde.
combinação de formas.
Kurt Foster, editor da futura edição inglesa
Esse ponto (e muitos outros similares men-
dos escritos de Warburg,2 assim descreve as
cionados pelos estudiosos de Warburg), em
montagens: “Ali, lado a lado, estavam
particular no que diz respeito à intrigante e
antiquíssimos relevos, manuscritos seculares,
surpreendentemente clara oposição entre
afrescos monumentais, selos de postagem,
“construção de significados” (supostamente
broadsides,3 figuras recortadas de revistas e
atribuída a Warburg) e “combinação de for-
desenhos dos grandes mestres. Torna-se
mas” (supostamente atribuída a Schwitters
evidente, após um olhar mais detalhado, que
e El Lissitzky), levanta um problema. Em pri-
essa seleção não ortodoxa é produto do
meiro lugar, se algum aspecto do Atlas de
domínio extraordinário de um vasto campo.”
Warburg pode de fato ser produtivamente
Numa primeira leitura, parece que encon- comparado às técnicas da colagem e da
tramos no projeto de Warburg uma confi- fotomontagem dos anos 20 ou se podemos
ança quase benjaminiana nas funções univer- entender mais sobre qualquer um dos lados
salmente libertadoras da reprodução dessa problemática comparação ao distin-
tecnológica e sua disseminação. Assim, a guir rigorosamente suas duas partes e – mais
extrema heterogeneidade temporal e espa- importante para nosso projeto – ao reco-
cial dos assuntos do Atlas se justapõe a sua nhecer que o Atlas de fato estabeleceu um
paradoxal homogeneidade quando habitam modelo cultural para averiguar as possibili-
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dades da memória histórica, cuja agenda era deveria remeter-nos aos procedimentos da
profundamente diferente daquela de seus montagem surrealista. Nessa direção, o Atlas
precursores ativistas no campo da de Warburg se coloca inevitavelmente em
fotomontagem. Em segundo lugar, a ques- comparação também com outro extraordi-
tão: seria potencialmente produtivo compa- nário e inacabado projeto de montagem do
rar o Atlas de Warburg com o Atlas de final dos anos 20, uma colagem textual que
Richter, outro exemplo de tal projeto almejou construir uma memória analítica da
mnemônico? Teríamos de reconhecer, antes experiência coletiva na Paris do século 19.
de qualquer coisa, que embora ambos os pro- Benjamin também havia associado seu
jetos obviamente se dirijam a possibilidades Passagenwerk às técnicas de montagem dos
da experiência mnemônica, eles operam sob surrealistas, identificando-o publicamente de
circunstâncias históricas dramaticamente di- acordo com seus termos, quando escreveu
ferentes: o primeiro no alvorecer da destrui- que o “método deste trabalho é a monta-
ção traumática da memória histórica, o mo- gem literária. Eu não tenho nada a dizer, so-
mento do cataclismo mais devastador da his- mente a mostrar”.
tória humana, conduzido pelo fascismo ale-
mão; o último, com base em uma derradeira Do mesmo modo, a descrição de Theodor
posição de repressão e negação, olhando para W. Adorno de Passagenwerk poderia ser
o passado e tentando reconstruir a memória facilmente dirigida às principais característi-
no interior do espaço social e geopolítico da cas do Mnemosyne Atlas de Warburg: “(Ben-
jamin) excluiu deliberadamente toda inter-
sociedade que infligiu o trauma.
pretação e pretendeu que as condições reais
Estruturas de um atlas existentes brotassem nos choques que a
montagem dos materiais inevitavelmente
Wolfgang Kemp foi o primeiro a assinalar suscitaria no leitor... Para levar ao extremo
que o projeto de Warburg de organizar e seu antissubjetivismo, Benjamin previu que
apresentar vasta quantidade de informação o trabalho deveria ser apenas uma compila-
histórica sem nenhum comentário textual ção de citações.”
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Outra vez, muitos dos termos presentes Por conseguinte, se poderia dizer que pelos
nessa discussão merecem nossa atenção, em meados dos anos 20 uma variedade de no-
relação tanto à precisão da descrição dos vos e análogos modelos de escrita e de con-
modelos (tal como de suas diferenças po- figuração dos dados históricos emergiu si-
tenciais) de Benjamin e de Warburg quanto multaneamente, variando das técnicas de
à precisão de suas definições a respeito dos montagem das práticas artísticas ao Atlas de
epistemes da colagem/fotomontagem, tal Warburg, àqueles dos Annales de historia-
como a questão se de fato elas compõem dores. Em todos esses projetos (literário,
as epistemes da organização estrutural do artístico, fílmico, histórico) uma subjetivida-
Atlas. Primeiramente, a exclusão da interpre- de pós-humanista e pós-burguesa está cons-
tação em favor das condições verdadeira- tituída. A narrativa da história como
mente existentes na construção discursiva sequência de acontecimentos e informações
da memória textual. Em segundo lugar, a pertencentes a agentes individuais é substi-
antecipação de choques como resultado ine- tuída pelo enfoque na simultaneidade de
vitável e pretendido da técnica da monta- contextos sociais distintos, porém contingen-
gem, supostamente ocorrendo de modo tes, e por uma infinidade de agentes partici-
mais intenso nos interstícios dos campos pantes, enquanto o processo histórico pas-
discursivos (tais como o pictórico versus o sa a ser reelaborado como um sistema estru-
fotográfico, a agitação da cultura de massa tural de permanentes e cambiantes interações
versus a concentração estrutural da estraté- e permutações de dados econômicos e ecoló-
gia da vanguarda, o artesanal versus o re- gicos, constituições de classes e de suas
produzido tecnicamente, o literário versus ideologias, sendo os tipos resultantes das
o descritivo – para nomear alguns dos clás- interações sociais e culturais considerados
sicos topoi e tropos da estética da colagem específicos de cada momento em particular.
e da montagem).
Ainda que o Atlas de Warburg fizesse parte
Em terceiro lugar, e mais importante, a ob- de fato da ascensão de um novo paradigma
servação de Adorno sobre o antissubje- cultural da montagem como processo alter-
tivismo como força condutora da estética da nativo para escrever uma história descen-
colagem/fotomontagem, suposta articuladora tralizada e construir formas mnemônicas re-
lacionadas, qualquer comparação entre
de crítica sistemática do que posteriormente
Warburg e as técnicas de montagem das
viria a ser chamado de “a função autor” de
vanguardas artísticas, ou mesmo da
um texto. E por último, vinculada diretamen-
neovanguarda, permanecerá altamente pro-
te ao item anterior, a ênfase dada por Ador- blemática se não reconhecer, antes de mais
no à acumulação de citações como um novo nada, as reais descontinuidades do próprio
e estruturante instrumento da estética da modelo da colagem/fotomontagem. Essas
montagem: primeiramente na própria foto- rupturas e alterações internas ao paradigma
montagem, em que a homogeneidade da surgem nos anos 20 e se tornarão especial-
concepção e execução da pintura são mente decisivas em sua redescoberta pelas
destruídas. Contudo, logo em seguida, a mon- práticas do pós-guerra. Além do mais, qual-
tagem iria transformar também a estética li- quer tentativa de leitura comparativa desses
terária ou fílmica (aquelas da União Soviética projetos terá que desenvolver um entendi-
em particular) como, por exemplo, no ro- mento igualmente diferenciado das contra-
mance factográfico, em que irá depor a onis- dições e mudanças que surgiram nos anos
ciência autoral, a narrativa e a ficção. 20, nas próprias definições das funções fo-
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tográficas, tal como nas investigações teóri- Warburg ser interrompido: A pequena his-
cas sobre a fotografia na Alemanha de tória da fotografia de Walter Benjamin, que
Weimar e na União Soviética, e nas práticas argumenta a favor de uma nova cultura de
artísticas que se apropriaram da fotografia mídia, de uma montagem politicamente
em ambos os países. Mais especificamente, motivada, em oposição ao pessimismo do
e de particular importância para nossa dis- ensaio de Kracauer em relação à mídia.
cussão em torno do projeto mnemônico de
Warburg e Richter, está o fato de que, no A fim de esboçar rapidamente essas oposi-
mesmo momento de sua elaboração, ções, teríamos que primeiro distinguir que
teorizações opostas da fotografia se colidem dicotomias latentes atuam na estética da
justamente no que diz respeito ao proble- colagem/montagem desde sua origem: os
ma do impacto da imagem fotográfica na polos de oposição poderiam ser chamados
construção da história mnemônica. de a ordem do choque perceptivo e o prin-
cípio do estranhamento de um lado, e, do
Essa dialética é evidente nas posições articu- outro, o agrupamento estatístico ou a or-
ladas em 1927-1928: de um lado temos que dem do arquivo. A ênfase estrutural na
considerar o ensaio decisivo de Siegfried descontinuidade e na fragmentação típica do
Kracauer, cuja tese de que a produção foto- Dada, que definiu a fase inicial da fotomon-
gráfica devasta a imagem da memória suge- tagem, introduziu o campo perceptivo do
re severa crítica ao projeto de Warburg de sujeito nas experiências de “choque” da exis-
conceber o Atlas como um modelo de cons- tência cotidiana de uma cultura industrial
trução da memória social (possivelmente avançada. Enquanto os procedimentos
sem que essa fosse a intenção original). No metonímicos da fotomontagem, enfatizando
extremo oposto, o famoso “debate da foto- continuamente a fissura e o fragmento – pelo
grafia” que surge na União Soviética também menos quando apareceram –, procuraram
em 1927, sobretudo nos escritos dos teóri- desmantelar os mitos da unidade e da tota-
cos e artistas soviéticos Ossip Brik, Boris lidade que a propaganda e a ideologia cons-
Kushner e Alexander Rodchenko. E, ainda, tantemente inscrevem em seus consumido-
aquele que permanece sendo talvez o en- res, a fotomontagem, paradoxalmente, co-
Gerhard Richter, saio mais importante sobre a fotografia da laborou também com o projeto social de
Atlas 323: Seestücke primeira metade do século 20, escrito em modernização da percepção e sua agenda
(Marinhas), 1975 1931, um pouco depois de o projeto de positiva. Tal efeito revolucionário de convul-
são semiótica provocado pelo choque poéti-
co e pelo estranhamento obteve permanên-
cia bastante breve. Já no segundo momento
da colagem Dada (na época do Meine
Haussprüche de Hanna Höch, em 1922), por
exemplo, a heterogeneidade da ordem alea-
tória e as justaposições arbitrárias de objetos
e imagens encontradas, assim como o signifi-
cado de uma anomia fundamentalmente
cognitiva e perceptiva, foram acusados de ser
apolíticos e anticomunicativos ou esotéricos
e meramente estéticos. Os mesmos artistas
vanguardistas que originaram a fotomontagem
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os semanários ilustrados. Associando a ca- que a fotografia naquele momento mal ha-
pacidade de formação das imagens da me- via exercido a transição de um objeto
mória a uma relação real de objetos materi- aurático para uma estrutura cada vez mais
ais e cognitivos, o pessimismo extremo de vazia da mera reprodução tecnológica e, si-
Kracauer acerca da mídia reconhece que é multaneamente – como uma emergente
precisamente a presença universal da ima- tecnologia em emancipação –, poderia con-
gem fotográfica que irá eventualmente des- ter a promessa social de formas radicalmen-
truir ambos os processos cognitivos e te diferentes de interação coletiva e de cons-
mnemônicos. Com isso, argumenta: trução da subjetividade.
Nunca antes uma era foi tão informada As origens do Atlas de Richter
a seu respeito, se ser informada signifi-
ca possuir a imagem de objetos seme- Se considerarmos agora o modo como os
lhantes entre si no sentido fotográfico trabalhos dos artistas do período pós-guer-
(...) Na realidade, no entanto, a propor- ra, em particular o Atlas de Richter, se
ção fotográfica semanal nem mesmo posicionaram em relação ao legado fotográ-
pretende aludir a esses objetos ou fico das vanguardas históricas, podemos fa-
urimages.4 Se se estivesse oferecendo cilmente reconhecer que a coleção de
como um complemento para a memó- Richter de fotografias amadoras encontra-
ria, então a memória teria feito essa das (jornalísticas e publicitárias) inverte as
opção. Mas a torrente de fotos devas- aspirações utópicas da vanguarda em todos
ta as barreiras da memória. O ataque os níveis: se algumas das práticas e
dessa massa de imagens é tão podero- teorizações realizadas na União Soviética e
so, que ameaça destruir a consciência na Alemanha de Weimar haviam definido a
potencialmente existente das qualida- fotografia sob uma perspectiva teleológica,
des capitais. As obras de arte sofrem como um projeto cultural de aprovação e
essa sina através de suas reproduções fortalecimento, de articulação e de autode-
(...) Nas revistas ilustradas as pessoas terminação, Richter contempla os usos sociais
veem o mesmo mundo que as revistas dominantes da fotografia e suas funções ar-
ilustradas as impedem de perceber (...) tísticas potenciais a partir de uma posição
Nunca antes um período soube tanto exterior, com uma atitude profundamente
sobre si mesmo. ascética. Se as dimensões tumultuosas e
libertadoras da fotomontagem tinham nas-
Foi esse o momento em que o surgimento cido do desejo de transformação radical das
de uma cultura de mídia fotográfica permitiu relações hierárquicas de classe e das estru-
um primeiro vislumbre das recém-surgidas turas que regiam a produção e a autoria, o
condições coletivas de anomia, o momen- Atlas de Richter parece considerar a foto-
to em que se tornou possível imaginar que grafia e suas várias práticas um sistema de
a representação cultural de massa causaria dominação ideológica e, mais precisamente,
a destruição conjunta da experiência um dos instrumentos com que a anomia
mnemônica e do pensamento histórico. Por coletiva, a amnésia e a repressão são inscri-
esse motivo, um dos mais enigmáticos – e tas socialmente.
atualmente cada vez mais plausíveis – argu-
mentos de Walter Benjamin em 1931 suge- Após ter-se mudado da Alemanha Oriental
ria que o clímax histórico da fotografia de- para a Alemanha Ocidental em 1961, Richter
veria ser situado por volta de 1860, uma vez deu início a essa coleção de imagens foto-
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forma artística, seu êxito em trazer para a seria definida como aquela do código gené-
representação o conhecimento da morte em tico e hereditário (a fundação de uma teoria
seu mais intenso propósito e, com isso, re- protorracista tal como sugerida na teoria da
sistir profundamente à repressão. memória desenvolvida pelo professor de Aby
Warburg, Richard Semon) ou se ela rastrearia
Richter, como um sujeito do período pós- uma estrutura psicossexual mais ou menos
guerra, teria então de reformular essa mes- bem sucedida (a inerente definição de Freud
ma questão, no caso, se poderia ser possível sobre a memória psíquica, por exemplo), ou
ainda conceber imagens mnemônicas no se a memória seria concebida como deter-
momento em que uma negação coletiva da minada por uma instituição social de classe
história extremamente violenta ocorre, uma (conforme proposto na teoria de Durkheim
repressão cuja cultura de mídia fotográfica sobre a estrutura da memória): é na reflexão
vem a ser, mais do que no tempo de sobre a imagem de família em que a força do
Kracauer, o principal agente. Simultaneamen- mnemônico conecta-se ao passado, e seus in-
te, Richter como pintor – tal como todos os tricados impactos no presente poderiam ser
outros pintores de sua geração – deve ter- fidedignamente verificados como processos
se debatido com a questão de se e como a materiais, alternadamente certificando e ata-
pintura poderia continuar a ser concebida, cando – tal como na fotografia – a formação
em face do confronto com o sistema da cul- da identidade.
tura de massa fotográfica.
O fato de que a mobilização de um Atlas de
As imagens fotográficas de membros da fa- recordações, contrário ao massivo sistema
mília que compõem os quatro primeiros de repressão, tenha resultado não apenas
painéis do Atlas, portanto, parecem ter ser- da experiência particular de perda do con-
vido a Richter – tal como serviram para texto geopolítico e da estrutura familiar, mas,
Kracauer em 1927, para Benjamin em 1931 como temos argumentado, igualmente do
e, ainda, para Roland Barthes em 1979 (quan- encontro com as funções e as estruturas
do o confronto com a morte de sua mãe o continuamente alteradas da imagem fotográ-
fez escrever uma fenomenologia contempo- fica que Richter descobriu após sua chegada
rânea da fotografia) – como ponto de parti- no Ocidente, evidencia-se no quinto pai-
da para suas reflexões sobre a relação entre nel do Atlas, em que a homogeneidade
a fotografia e a memória histórica originada. do material fotográfico definida até então
Como se a oscilante ambiguidade da foto- pela reunião mais ou menos aleatória de
grafia, que tal como um agente dúbio ao imagens de família é devastada por peculiar
mesmo tempo ativa e destrói a experiência heterogeneidade, a princípio fantasmática, de
mnemônica, pudesse ser imobilizada, ao tipos de fotográficos.
menos por um instante, ao situar a imagem
em analogia com a impressão mnemônica Ao introduzir uma variedade de recortes
da própria relação familiar. procedentes dos jornais ilustrados da Ale-
manha Ocidental (como o Der Stern),
Apesar de tudo, é nesse tipo de impressão, Richter parece ter registrado seus primeiros
em que a contiguidade física e o referente à encontros com os gêneros culturais de mas-
inscrição psíquica não poderiam ser questio- sa, até então mais ou menos desconhecidos
nados, que a causalidade e a materialidade para ele. Tendo escapado de um país em
da experiência mnemônica pareceram estar que qualquer tipo de publicidade era proibi-
garantidas. Se essa impressão mnemônica do, a fotografia de moda (para não falar de
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artesanal. Isso separa dramaticamente seus das fotografias amadoras é mais bonita do
empreendimentos de A câmera clara de que a mais bela pintura de Cézanne...”
Roland Barthes, que procura de fato reatar
a memória corporal à imagem da mãe e Novamente, duas atitudes são aqui reuni-
impregná-la de uma experiência de autenti- das, tornando duplamente difícil compreen-
cidade fenomenológica. der o projeto do Atlas: primeiro, na afirma-
ção quase ingênua de um posicionamento
Ao contrário, parece que Richter está com- antiestético radical, Richter publicamente se
prometido com um projeto absolutamente associa à atitude vanguardista, recém-revi-
diferente: antes de tudo, busca explorar os gorada com a redescoberta de Duchamp
vários registros da fotografia como um siste- pela Pop Art. Em postura bastante comum
ma representacional na qual a repressão his- aos artistas alemães do pós-guerra, muito
tórica é instituída e transmitida fisicamente. mais conectados com o que estava acon-
A notória atração dos artistas alemães do tecendo em Nova York e Paris do que com
pós-guerra pela banalidade da cultura de o ofuscado legado da vanguarda histórica
consumo alemã que conduz o extenso exa- alemã dos anos 20, Richter claramente cre-
me efetuado por Richter do material que dita o trabalho de Robert Rauschenberg por
compõe os quatro primeiros anos da cole- tê-lo introduzido na estética da colagem/
ção do Atlas (outro exemplo seria a montagem, ao mesmo tempo em que alega
iconografia de Polke) poderia encontrar in- desconhecer por completo as práticas de
terpretação adicional aqui: ela não é apenas fotomontagem dos artistas dadaístas na Ale-
uma variação dos temas da Pop Art (que manha de Weimar e ser completamente
certamente foi, assim como – e visto que – hostil a todo e qualquer modelo de
a Pop Art incessantemente colocou em si fotomontagem impregnado de agitação po-
mesma a questão da possibilidade de uma lítica, tal como o trabalho de John Heartfield,
experiência autêntica sob o domínio de uma que ele pôde ter visto durante sua estada
produção totalizante de comodidades). Mais na República Democrática Alemã. Essa pa-
especificamente, o que vem a ser evidente radoxal mudança histórica e geopolítica
nas imagens de consumo do arquivo de acrescenta uma série de questões à leitura
Richter é o lado infausto dessa peculiar varia- do arquivo fotográfico de Richter.
ção, na Alemanha Ocidental, do tema da
banalidade: a falta coletiva do afeto, com a Antes de tudo, coloca a questão de como o
armadura psíquica que os alemães do perío- princípio da acumulação aleatória se mani-
do pós-guerra usaram para proteger-se de festa em circunstâncias históricas essencial-
um insight histórico. mente diferentes, como, por exemplo, no
momento em que a aleatoriedade e a justa-
A banalidade como uma condição da vida posição arbitrária operam não apenas como
cotidiana converte-se aqui, em sua modali- estética de procedimentos conhecidos, mas
dade especificamente alemã, em condição também como legitimação socialmente im-
de repressão da memória histórica, como posta de anomia encoberta por um estado
um tipo de anestesia psíquica. Banalidade de independência individual avançado. A es-
como condição de atitude estética, como tética da colagem nas mãos de
sua correspondente, é assim também clara- Rauschemberg havia reinaugurado a elimi-
mente proclamada por Richter quando ele nação da escolha autoral e da autoridade
polemicamente afirma que “... a mais banal artística ao relacionar intrinsecamente a au-
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o português pode ser conferida no Dossiê Warburg, 6 O autor refere-se aqui ao conceito de punctum elaborado
presente neste número de Arte & Ensaios. (N.T.) por Roland Barthes em A câmara clara: nota sobre a
fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984: Segun-
2 Lançado no mesmo ano em que Buchloh publicou o pre- do Barthes, o punctum é algo próprio da imagem, um
sente ensaio, sob o título Aby Warburg, the renewal of detalhe que atinge o espectador/leitor e lhe mobiliza o
pagan antiquity. Los Angeles: Getty Research Institute afeto, conduzindo-o para além do campo fotográfico.
for the History of Art and Humanities, 1999, 868p. (N.T.) “O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me
3 Palavra apropriada da língua inglesa para denominar publi- punge (mas também me mortifica, me fere).” O punctum
cação ou tipo de panfleto publicitário composto por provoca também uma espécie de “esmagamento do
uma série de dobraduras. (N.T.) tempo”, uma vez que engendra na fotografia a morte e
o retorno do seu referente simultaneamente. Cf. Barthes,
4 Na versão inglesa de Buchloh esse termo aparece grifado, op. cit.: 46, 142-143 (N. T.)
como se sinalizando correlação com a raiz etimológica
alemã do prefixo ur, e por esse motivo o mantivemos 7 Segundo Barthes, o studium inscreve a fotografia numa lei-
assim. O prefixo ur é usado para designar “primordial”, tura criteriosa e objetiva, baseada numa dada
“anterior”, “primeiro”, de modo que urimages pode ser metodologia. O studium “não quer dizer, pelo menos
lido como “imagens primordiais” ou “primeiras imagens”. de imediato, estudo, mas a aplicação a uma coisa, o gos-
(N.T.) to por alguém, uma espécie de investimento geral, ar-
doroso, é verdade, mas sem acuidade particular”. Barthes,
5 Trata-se de processo de impressão que combina dois (ou op. cit.: 45. (N.T.)
mais) pontos de cores diferentes a fim de formar uma
terceira cor. Usado tradicionalmente nos quadrinhos,
tornou-se uma espécie de marca visual do artista ameri-
cano Roy Lichtenstein. (N.T.)