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1
Thaïs Velloso Cougo Pimentel é presidente da
Fundação Municipal de Cultura.
OPERAR ATOS RITUAIS um deseja que ele seja, pois é teatral o que quer e
pode ser teatro. Inclusive quando ele é subtraído,
(Peru); Gólgota Picnic (Espanha); Ópera dos Vivos (São
Paulo) e Naquele Bairro Encantado (Minas Gerais).
não está lá segundo as convenções reconhecíveis.
OU SIMBÓLICOS COM Na leva dos trabalhos limiares no FIT, de frontei-
Às vezes, as perspectivas social e política atra-
vessam dilaceradamente o indivíduo, a célula de
VERDADE ras diluídas, podemos listar as produções Oxlajuj
B’Aqtun (Guatemala); Quiet (Israel); Lisboa (Itália);
uma sociedade, como em El Autor Intelectual e
Los Autores Materiales (Colômbia), às voltas com
Viajantes Móveis e Transfiguration (França), Theatre os conflitos internos daquele país.
POR GRACE PASSÔ, (República Tcheca), Translunar Paradise (Inglaterra),
Bença (Bahia), Depois do Filme e Estamira (Rio de
MARCELO BONES E Janeiro), O Idiota e Ópera dos Vivos (São Paulo); Res- A DRAMATURGIA
YARA DE NOVAES1 sonâncias e Dressur + Play again (Minas Gerais).
Um festival que abarca tamanha diversidade de Quando se ouve que “isso não é teatro”, pode es- Circunscrevem essa linha de atuação espetáculos
linguagens e culturas pode induzir a uma progra- tar aí toda a potencialidade desse teatro do avesso. como El Último Ensayo e Sin Título - Técnica Mixta
mação liquefeita. Nossa percepção é contrária: Supomos e raciocinamos que teatro é o que cada
pado pela Secretaria Municipal de Educação. O Romeu e Julieta, que foi recentemente reapresen- Servidor de Dois Estancieiros (Porto Alegre) e Mis-
edifício que foi palco de um dos episódios de re- tada em Londres e depois percorrerá outros esta- tero Buffo (São Paulo).
sistência política à ditadura militar por estudantes, dos. Sua produção mais recente, Eclipse, também
professores e funcionários universitários vai abri- foi escalada para comemorar os 30 anos do cole- Como certa vez expuseram com muita felicida-
gar Villa+Discurso. A montagem do Chile sonda tivo. Como ele, o Yuyachkani, do Peru, que tam- de os italianos Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti,
o passado repressor evocando criticamente sua bém vem com dois trabalhos, já soma 41 anos de ao discorrerem sobre o coletivo americano The
ex-presidente, Michelle Bachelet. Ela foi presa, história. Do Rio Grande do Norte, o Clowns de Living Theatre, o fundamental é operar “atos ri-
teve o pai assassinado sob o regime do general Shakespeare atravessa os 18 anos com Sua Ince- tuais ou simbólicos com verdade”4, não importa
Augusto Pinochet, mas seu governo resultou bas- lença, Ricardo III, sob direção de Gabriel Vilela, o o lugar. Eis a tarefa que acreditamos caber às mu-
tante pragmático quanto a esses rastos. mesmo do mineiro Romeu e Julieta. A Compa- lheres e aos homens das artes cênicas.
nhia do Latão se aproxima dos 15 com Ópera dos
Vivos. Enquanto a mundana companhia, grafada Nossos sinceros desejos de boa viagem a todos
Instiga-nos relativizar o que habitualmente é es-
assim em minúsculas, vai a Dostoievski, O Idio- os espectadores e criadores.
tabelecido como o lugar do teatro na cidade. A
ta, catalisando atores de núcleos expressivos da
descentralização do Festival em Belo Horizonte
cena paulista, como Oficina, Vertigem e Compa-
agenda apresentações no Centro Cultural Padre
nhia Livre. Isso reflete que a concepção de grupo
Eustáquio, da Fundação Municipal de Cultura, e
fixo tem mudado. As pessoas estão se vinculando
em equipamentos da região do Barreiro, como 1
Grace Passô é atriz, dramaturga, diretora e cofundadora do
também a trabalhos cooperativados, suscetíveis a
o Parque das Águas e o Centro Esportivo Milio- Grupo Espanca!; Yara de Novaes é atriz, diretora, profes-
intercâmbios, a estados moventes. sora de teatro e cofundadora do Grupo 3 de Teatro; Marcelo
nários. Entre as demais obras que ressignificam o
Bones é diretor, professor de teatro, cofundador do Grupo
espaço ao ar livre, estão Domínio Público (Espa- Teatro Andante e Diretor Artístico do 11º FIT-BH. Os três
Dentro desse teatro contemporâneo, há, e con-
nha), Time Out (Alemanha) e Por Que a Gente Não assinam a curadoria desta edição. O presente artigo contou
tinua havendo, espetáculos que têm suas raízes com a colaboração do jornalista Valmir Santos, consultor desta
É Assim? Ou Por Que a Gente É Assado? (Ceará)
na tradição do teatro popular, cuja formação da curadoria do FIT-BH 2012.
roda é fundamental. 2
SARRAZAC, Jean-Pierre. Léxico do drama moderno e contem-
Esta edição do FIT contemplará uma estreia na- porâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 180.
cional. Belo Horizonte assistirá em primeira mão
Nessa ágora, o artista não tem frente ou verso,
3
LIMA, Mariangela Alves de. Apresentação. In: ABREU, Luis
ao novo espetáculo protagonizado pelo ator pa- Alberto de. Comédia popular brasileira. São Paulo: Fraternal
esquerda ou direita. É a partir dessa visão do
raense Cacá Carvalho, umnenhumcemmil, des- Companhia de Artes e Malas-Artes, 1997, p. 11.
todo que ele está desafiado a conquistar a aten-
fecho da trilogia em torno da obra do escritor 4
CRUCIANI, Fabrizio e FALLETTI, Clelia. Teatro de rua. São
ção do público. Como situa a crítica Mariangela Paulo: Hucitec, 1999, p. 89.
italiano Luigi Pirandello, sob direção de Roberto
Alves de Lima, nesse tipo de manifestação “o pú-
Bacci. Esse italiano também integra a programa-
blico é detentor de uma rica herança e é possível
ção com o seu coletivo da Fondazione Pontedera
reativar esse imaginário. Este teatro não quer ser
Teatro. Desdobrando uma homenagem ao poeta
revelação, mas, antes, confirmar e exaltar a ri-
Fernando Pessoa, adaptando seu O Livro do De-
queza e a legitimidade da cultura do público”3.
sassossego para o palco, em Abito, e celebrando
seus heterônimos no espetáculo de rua Lisboa, São linguagens herdeiras das mais diversas esté-
com atores cantando, declamando poemas ou ticas teatrais, e elas estarão representadas por
pedalando em bicicletas. espetáculos de rua e de palco influenciados pela
Commedia dell’Arte, seus arquétipos populares
O teatro de grupo é outro segmento prestigiado universais, além da tradição do picadeiro.
neste evento, como dão conta edições memo-
ráveis do FIT. O Grupo Galpão reestreia aqui a Nessa esteira, estão presentes A Farsa do Advo-
remontagem do seu maior sucesso, a obra-prima gado Pathelin (Presidente Prudente-SP), Miséria,
SUMÁRIO
CORPO A CORPO DAS ARTES DE PERFORMANCE E A
EXPERIÊNCIA NO PLURAL
FERNANDO MENCARELLI
50
COMPROMISSO E RENOVAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO DOS
12 54
OCUPANDO AS RUAS DE BELO HORIZONTE OU OS
FESTIVAIS DE ARTES CÊNICAS ESPAÇOS PÚBLICOS NÃO MORRERAM
GUILLERMO HERAS JULIANA GONZAGA JAYME
66
CARLOS GIL ZAMORA PATROCINAR É
COMPACTUAR COM A ARTE
REGINA STUDART
26
FIDAE, UM TESOURO A DESCOBRIR
(um festival em um país e um país em um festival)
71
IVÁN SOLARICH
PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO SEMPRE DE MÃOS DADAS
BIA MORAIS
FALTA DE IMAGINAÇÃO
CRÍTICA E AUTOCRÍTICA 74
30
RICARDO LIBÓRIO
LEO CUNHA
38
O TEATRO BRASILEIRO: IMPASSES E TENDÊNCIAS NO ANO DA GRAÇA
DE 2012 OU UM LEXOTAN, POR FAVOR!
NOTÍCIA DA CRÍTICA
MACKSEN LUIZ 83
LUCIANO ALABARSE
90
A RELEVÂNCIA DA OBRA RODRIGUIANA
SOB O PRISMA DA PSICANÁLISE
MARCO AURÉLIO BAGGIO
46
O ATO DO ESPECTADOR: EMBRENHAR-SE
EM ZONAS DESCONHECIDAS
FLÁVIO DESGRANGES
A ARTE DE IR ALÉM DOS ESPETÁCULOS
VALMIR SANTOS 99
COMPROMISSO E
RENOVAÇÃO NO
DESENVOLVIMENTO
DOS FESTIVAIS DE
ARTES CÊNICAS
GUILLERMO HERAS1
1
Guillermo Heras é formado pela Real Escuela de Arte Dramático y
Danza de Madri. Foi diretor do grupo teatral Grupo Tábano (1974-1983)
e do Centro Nacional de Nuevas Tendencias Escénicas (1983-1993). É
Secretário Executivo do Programa Iberescena.
PARA UM
PARADIGMA
REFLEXIVO E
PARTICIPATIVO
ALBERTO LIGALUPPI1
em colaboração com
LEANDRO OLOCCO
neste contexto, surgiram os festivais de teatro. QUE CONSTITUI O A resposta que devemos considerar imediatamente é:
Na década de 1980, com a volta da democracia, sim. Sim, porque o teatro está vivo e continua sendo
foi gerado um movimento de reencontro entre o FATO TEATRAL um espaço único de reflexão. Sim, porque as pergun-
espectador e o criador cênico. A recuperação da tas estão feitas e a busca por respostas de gestores e
rua, dos vínculos postergados pela ditadura, e da criadores demonstra um movimento que vai necessa-
liberdade se traduz em todos os festivais da Amé- Assim entramos no século XXI, quando se revela riamente na direção correta. Todo movimento é um
rica Latina. As programações se recarregam de cada vez com maior intensidade a crise dos fes- sinal de inquietação, já são mais de 40 anos de festivais
todas as ideias que circulam, que foram se ges- tivais de teatro na América Latina. Não só o sig- e continuamos inquietos, a pulsação segue no ritmo.
tando de uma maneira contida para terminar de nificado da dramaturgia se vê afetado pelas ideias
germinar em explosões de alegria à medida que da pós-modernidade vinculadas à mercantiliza-
os regimes ditatoriais foram caindo. ção. O resultado disso é um relativismo, bem 1
Alberto Ligaluppi é diretor geral do Complexo Teatral de Buenos
próprio dos nossos tempos, no qual a curadoria Aires. Foi codiretor do Festival Internacional de Buenos Aires
Com a recuperação dos espaços democráticos, dos festivais tende a perder identidade. A essa (2008-2010) e do Festival Latino-americano e curador do Festival
abriu-se um período fértil e de expressão urgente equação somam-se a dinâmica da programação MERCOSUL.
para o povo. A sociedade civil ganhou poder e os e a logística organizacional dos festivais. Os espa-
artistas se associaram aos gestores culturais, e tudo ços para participar do fato artístico coletivo que
isso permitiu a criação de ambientes privilegiados significa um festival estão cada vez mais escassos.
para esses encontros. Na virtuose da era das comunicações, em que
UM NOVO
PARADIGMA
PARA UMA
NOVA ETAPA
CARLOS GIL ZAMORA1 23
VOYAGEURS IMMOBLIES
Philippe Genty - FRANÇA - FIT 11ª Edição (2012)
Foto: Pascal Francois
Na programação de um festival, o conteúdo A reiteração do modelo, a estrutura interna Ao meu modo de ver, é substancial que um
das peças, atividades paralelas e dos eventos é que deve organizar a vida própria que ganha festival se enquadre em uma ação global; que
o seu manifesto ideológico. Os festivais inter- categoria por meio de formação ou senão de sirva, ao mesmo tempo, de início ou final de
nacionais têm sido uma ferramenta maravilhosa intercâmbio, e a necessidade de encontro com outro evento de alcance maior, como comple-
para o conhecimento e divulgação de tendên- os públicos criam uma tensão na programação mento de outra programação já habitual, com
cias cênicas mais arriscadas a cada momento. - de priorizar os objetivos - que é resolvida de ações de divulgação e relacionamento com no-
E isso tem dois objetivos: que os profissionais diferentes formas e todas elas são válidas, por- vos públicos.
do lugar onde acontecem os eventos possam que respondem ao seu momento e são conse-
conhecer e descobrir outros olhares sobre o quência dos recursos econômicos, técnicos e Um festival, mesmo que seja o mais grandioso
fato teatral, e ajudar a consolidar públicos que humanos que existem. de todos e conte com uma programação inter-
estejam atualizados com o que acontece no nacional de excelência, se ele for realizado na
universo teatral. Na experiência europeia, foi É de muita importância estabelecer outra es- base da contratação sem limites de orçamento,
nos anos 1980 e 1990 que os festivais ganha- cala de valores, procurar outro paradigma para nunca terá o mesmo valor e a possibilidade de
ram uma importância cultural, social, econô- uma nova etapa na qual novas dificuldades eco- influenciar, perdurar e se transformar em um
mica e artística de magnitude. Foi criado um nômicas vão começar a aparecer. O objetivo evento de utilidade cultural, social ou artística,
modelo de funcionamento, nasceram circuitos é encontrar o equilíbrio entre o investimento em comparação com outro festival mais equi-
que se nutriam de espetáculos firmados pelos local, regional ou nacional, com a influência dos librado, que ajude no crescimento coletivo. O
mesmos autores, com os mesmos estilos, que públicos e das realidades teatrais de cada lugar. primeiro vai ter mais repercussão midiática, vai
dominaram as programações. Festivais que ti- ocupar o interesse geral durante alguns dias,
nham nascido com o foco na convivência se e pode ser possível que sirva até para pro-
profissionalizaram, os sistemas de produção mover uma cidade ou um país. Mas vai deixar
foram mudando e isso acabou impedindo o in-
tercâmbio. Dessa forma o seu efeito sobre os
OS FESTIVAIS uma insatisfação no ar e uma sensação ruim de
comparação com a realidade teatral invadida.
estudantes e profissionais diminuiu. Ao mesmo INTERNACIONAIS A eleição de um modelo ou outro sempre é o
tempo cresceu uma figura catalisadora do es- fruto de alguma determinação política.
24 forço: o programador. Neste século, da nossa TÊM SIDO UMA 25
estreia, os nossos festivais cresceram - também FERRAMENTA Uma última consideração: os festivais devem
desapareceram ou diminuíram outros -, alguns estar especializados ou senão ter espaços mar-
deles resgatam fórmulas já testadas, e procu- MARAVILHOSA cados dirigidos a algum ponto bem concreto
ram na convivência um elemento concentra- sobre o qual devem girar todas ou muitas das
dor das energias, mas atendendo o público e PARA O suas atividades paralelas. Conceitos, ideias, pa-
satisfazendo às necessidades dos patrocinado- CONHECIMENTO íses, regiões geográficas, línguas ou linguagens,
res, assim sejam instituições ou empresas pú- artistas, tendências que sejam visíveis e claras
blicas ou privadas que medem estes assuntos E DIVULGAÇÃO para ajudar na sua própria identidade e na sua
com uma calculadora e não com a análise de diferenciação dos demais. Não é saudável que
qualidade apropriada, da relevância além dos
DE TENDÊNCIAS os festivais sejam tão similares, às vezes até
resultados de números de público. CÊNICAS MAIS idênticos, tão generalistas e pensados para o
mercado da distribuição.
ARRISCADAS
1
Carlos Gil Zamora é diretor e crítico de teatro.
Dirige a Revista ARTEZ, publicação especializada
em artes cênicas veiculada na Espanha.
FIDAE, UM
TESOURO A
DESCOBRIR
(UM FESTIVAL
EM UM PAÍS
E UM PAÍS
26 EM UM FESTIVAL) 27
IVÁN SOLARICH1
TIERNO BOKAR
Peter Brook / CICT - FRANÇA - FIT 7ª Edição (1998)
Foto: Guto Muniz
Foi assim que, até o ano 2000, comemoramos a
cada dois anos a Mostra Internacional de Teatro. PARA ONDE
Com a crise, essa iniciativa se viu interrompida,
e, salvo uma experiência em 2005 organizada
pelo Teatro El Galpón, tivemos novamente um
VAMOS EM
parênteses de dez anos para que a cena mundial
voltasse a nos visitar.
2013?
O nosso desejo é que o Fidae se estabeleça
Então, pela primeira vez, o Estado, por meio
como um festival de forte influência da América
do seu Ministério de Educação e Cultura, e
Latina, em que dois terços da sua programação
com a importante ajuda da Prefeitura de Mon-
internacional tenham relação com a região e o
tevidéu, começa a organizar o que hoje em dia
continente. Mas sem perder, por esse motivo,
leva o nome de Festival Internacional de Artes
a vocação de cultura universal. Nesse sentido,
Escénicas (Fidae).
estamos trabalhando para poder contar pela
primeira vez na nossa programação com a
Dessa forma, com muito sucesso tanto artísti-
presença da África e também da Ásia.
co como de público na última edição de 2011,
começamos a percorrer o lento - e tomara ago-
ra sim permanente - caminho do contato das pontos fortes e fracos de maneira real, viva e
pessoas com o que há de melhor na cena local sem preconceitos.
e internacional. Ou seja, o caminho do hábito
com as artes.
O NOSSO DESEJO Durante muitas décadas o Uruguai - por uma
É QUE O FIDAE rede complexa de fatores - permaneceu de
E já são muitos e bem variados os desafios que costas ao continente e muito dependente da
28 o Fidae está levantando. Primeiramente, desafios SE ESTABELEÇA Europa. Talvez o único efeito positivo que 29
tiveram os terríveis anos 1970, especialmente
que têm a ver com a sua gênese, porque o Fidae
é um festival público, e isto traz responsabilidades
COMO UM no Cone Sul, como consequência do Plano
adicionais. As principais: continuar cuidando da FESTIVAL Condor, foi o fato de termos sido integrados em
qualidade, do acesso e da integração - qualidade um continente torturado, preso e desaparecido
para construir um olhar; acesso para democratizar DE FORTE ao mesmo tempo. Nosso olhar com a pressão
do terror começou a ver mais perto, aqui ao
a participação; integração para não aprofundar as INFLUÊNCIA DA lado, como ‘parte de’.
distâncias sociais e integração da nossa geografia
como nação, em um corpo comum. Como festi- AMÉRICA LATINA
val, somos iniciantes nos três caminhos. Hoje temos a possibilidade de que seja a beleza
- a beleza das artes cênicas - e não o terror
Em outubro de 2011, durante quatorze dias, dez que direcione os nossos olhares renovados e
países conjugaram as suas propostas construindo esperançosos para mais perto ainda, mais ao
Queremos duplicar o programa de extensão
um olhar; dezenas de salas, espaços públicos e lado, mais ‘parte de’.
social que o Festival teve em Montevidéu (cidade
alternativos promovendo a democratização do na qual se concentra a metade da população do
acesso para o cidadão; creches, escolas e resi- Queremos, precisamos, que o vosso já enorme
país), para poder sentir que o Fidae pertence
dências de idosos abrigaram milhares de pessoas. e tradicional festival nos aceite como primos de
aos bairros assim como a todas as classes
E, pela primeira vez, um festival internacional saiu caminhada.
sociais. Queremos estar presentes em pelo
da capital e chegou até Maldonado, outro estado menos quatro pontos do país, desenvolvendo
localizado ao leste de Montevidéu. Pela democracia e pela arte. Em definitivo, pelo
um espírito cada vez mais descentralizador e
nosso povo.
nacional. E, finalmente, queremos qualificar
Mas foi só um começo. A relativamente curta tra- a presença cênica do país, não só mantendo
dição iniciada nos anos 1980 foi fraturada. Agora metade do volume do Festival, mas também 1
Iván Solarich é diretor, ator, docente e investigador teatral,
a ideia é que desde o Fidae possamos nos tornar colocando a nossa arte em igual posição que a é também diretor do Festival Internacional de Artes Escénicas
a paisagem do cidadão. do resto do mundo - e também levantando os de Uruguay (Fidae).
FALTA DE
IMAGINAÇÃO...
RICARDO LIBÓRIO1
ADÉLIA NICOLETE1
MARIO QUINTANA2
LALALUNA
Spoon Tree Productions - EUA - FIT 9ª Edição (2008)
Foto: Guto Muniz
O breve e irônico jogo de palavras do poeta com A palavra experiência, advinda do latim experiri, propõe como interrupção da percepção habitual. entendimento de mensagens, pois a experiência
a boa senhora, anteriormente referido, convida- traz consigo o sentido de provar, tentar. “O ra- O ritmo estético, assim, se constitui como viola- estética se realiza como produção de sentidos. O
-nos a enfrentar tarefa tão difícil quanto cativante, dical é periri, que se encontra também em peri- ção do ritmo prosaico. “Não se trata de um ritmo que solicita invenção na linguagem, ou invenção
pois coloca em questão o insondável na relação culum, perigo. A raiz indo-europeia é per, com a complexo, mas de uma violação do ritmo, e uma de linguagem. O papel do leitor em arte, assim
do espectador com o objeto artístico. Ler um qual se relaciona antes de tudo a ideia de traves- violação tal que nós não podemos prever; se esta concebido, muito se aproxima do próprio papel
poema, diz o poeta, ou ler uma cena teatral - sia”6. O que nos sugere a noção de se colocar violação se torna um cânon, ela perderá a força do escritor.
e aqui estamos compreendendo o espectador em risco, de se embrenhar em zonas desconhe- que tinha como procedimento interruptivo”8. O
como leitor da escrita cênica -, em nosso caso, é cidas, cruzar regiões perigosas, e que nos possi- acontecimento teatral solicita, assim, a instaura-
como ler uma nuvem. E o que se pode dizer de bilita pensar a experiência poética como perdição ção de outra lógica temporal, interrompendo o
uma nuvem? O que inquieta no poema, assim, na linguagem, como invenção de possibilidades ritmo cotidiano, fundando um espaço para a ne-
é a presteza e a objetividade com que a boa se- de fazer soar o desconhecido, o não-dito, como cessária participação do espectador.
nhora se livra da questão acerca dos sentidos que percurso de produção de conhecimentos e de
se podem atribuir a uma nuvem, ante a infinidade subjetividades. O que não tem nada de irracional
de leituras possíveis. A resposta surge resoluta, e muito menos de confusão, mas que se afasta
parece saltar da ponta da língua, como se já es- da razão instrumental e instaura o prazer de um
tivesse pronta há muito tempo e não permitisse procedimento que se contrapõe ao modo mera- UMA CENA NÃO
alternativa qualquer. mente operacional de ver, sentir e pensar a vida. QUER DIZER
O título que Quintana dá ao poema acima cita- O sentido de uma cena teatral não se constitui NADA QUE SE
do, Exegese3, termo que alude à explicação ou como um dado prévio, estabelecido antes da lei-
interpretação de uma obra de arte, tanto nos tura, algo pronto, fixo, atribuído desde sempre
RESUMA A UM
traz à tona os muitos caminhos possíveis para se pelo artista, mas algo que se realiza na própria SIGNIFICADO
empreender uma leitura, quanto nos permite co- relação do espectador com o texto cênico. Atri-
locar sob investigação o próprio intento da arte, buir sentidos, portanto, quer dizer estabelecê-los PREVISTO DE
pois explicar um poema seria, em certo sentido, em relação a nós mesmos. O que solicita dispo-
48 ato tão duvidoso como o de definir a tarefa do nibilidade para se deixar atingir pelo objeto, para
ANTEMÃO
49
artista, ou mesmo, indo adiante, o de arriscar-se se deixar atravessar pelo fato, para embarcar no
a formular uma resposta taxativa ao deparar-se processo de leitura, pois uma cena não quer di-
com a indizível questão: para que serve a arte? zer nada que se resuma a um significado previsto
Ante tal pergunta, nosso poeta possivelmente en- de antemão, a que se queira ou se deva chegar. O ato de leitura - ato, pois a leitura solicita pro-
cerraria o assunto - e para isso tomo-lhe aqui ou- É justamente nessa indeterminação, como even- dução, invenção - se constitui como instância
tro verso emprestado, dizendo: “Não, o melhor é to provido de finalidade, mas sem um fim pre- fundamental do fato artístico. Sem essa atuação
não falares, não explicares coisa alguma. Tudo ago- viamente instituído, que se organiza o aconteci- do leitor, que desempenha um gesto necessa-
ra está suspenso”4. Ou, quem sabe, Quintana re- mento artístico, que, tal como uma nuvem para riamente autoral, o evento não se realiza. Ou, 1
Flávio Desgranges é professor do Departamento de Artes
trucaria, em seu modo zombeteiro e provocativo, o poeta, pode explodir em potencial de sentidos, Cênicas da Universidade de São Paulo. Autor dos livros: Pe-
compreendido de outro modo, a obra de arte
dagogia do Espectador e Pedagogia do Teatro: provocação e
que a arte, como as nuvens, não serve para nada. se assim o quisermos. só se efetiva, segundo a acepção teórica de Iser, dialogismo, pela Editora Hucitec.
na realização do leitor. Ou seja, o texto cênico 2
Poeta brasileiro (1906-1994).
A maneira decidida com que a boa senhora define O ato de leitura solicita a instauração de um se constitui como obra no momento em que é 3
QUINTANA, Mario. Sapato florido, São Paulo: Globo,
o sentido das nuvens, afastando-se das flutuações tempo que contrarie a lógica do cotidiano, que processado pelo espectador. “O texto, portanto, 2005, p. 78.
do jogo de linguagem que lhe foi proposto, no- abra espaço para outro modo perceptivo, que se realiza só através da constituição de uma cons- 4
__________. op. cit., p. 74.
meando o inominável, parece sugerir um modo nos afaste do conhecido, do usual, do esperado. ciência receptora. Desse modo, é só na leitura 5
__________. op. cit., p. 147.
apressado, quase afoito, de empreender a leitura, O ato criador, “que enriquece o acontecimento que a obra enquanto processo adquire seu ca- 6
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência ou so-
indisponível para as incertezas da experiência poé- existencial, é por princípio um ato extrarrítmico”. ráter próprio”9. A experiência estética não pode, bre o saber da experiência. São Paulo. Revista Brasileira de
tica. Ou será que as nuvens, “esses lerdos e des- A existência ritmizada se estabelece por sua gra- pois, ser concebida como algo que se dê sem a Educação. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gradua-
mesurados cágados das alturas” , não podem ser tuidade, sem finalidade, ou regida por uma finali- ção em Educação, jan-abr 2002, nº19, pp. 20-28, p. 25.
efetiva atuação do espectador, e sem que este
pensadas para além de sua utilidade na previsão do dade que não emana de uma escolha, de um jul- se disponibilize para uma produção de sentidos
7
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 1992, p. 133.
tempo? Ou, dito de outra maneira, como disponi- gamento, que não implica responsabilidade. Na a priori inexistentes. O ato do espectador, dis-
8
CHKLOVSKI, Viktor. L´art comme procédé. In: TODOROV,
bilizar-se, na relação com poemas, cenas e nuvens, linguagem, o ritmo prosaico, tal como o ritmo de tante dos limites das teorias da comunicação e Tzvetan (org.). Théorie de la littérature. Paris: Éditions du
para um modo de leitura que ultrapasse a barreira uma canção que acompanha e facilita o trabalho, reconhecido na dimensão artística que o consti- Seuil, 2001, p. 97.
da dimensão lógico-racional, e se permita saborear torna-se importante como fator automatizante; tui, não se resume ao recolhimento de informa- 9
ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura. v. 1. São Paulo: Ed. 34,
os descaminhos da experiência com a arte? o que não ocorre com o ritmo poético, que se ções, ou à decodificação de enunciados, ou ao 1996, p. 51.
APOCALIPSE 1.11
Teatro da Vertigem - SP/BRASIL
Antiga Delegacia Seccional - Centro - FIT 7ª Edição (2004)
Foto: Kika Antunes
51
As mudanças no cenário cultural têm sido rápidas associação precisa ser permanentemente discu-
e contínuas com a ascensão das mídias móveis e tido e disputado em um momento em que uma
da internet. O campo cultural, em sentido am- “lógica de mercado” parece ter se naturalizado
plo, e o da arte, em particular, estão inteiramen- em diversas instâncias da sociedade. Por outro
te implicados no processo de transformação por lado, a cada vez mais acentuada desigualdade so-
vezes denominado capitalismo da informação. A cial, produzida pelas novas formas de articulação
chamada economia criativa faz parte dos progra- global do capital, envolve outros atores na busca
mas públicos e das políticas culturais. Inovação e por estratégias de transformação da sociedade
criatividade são palavras que agora aparecem re- que coloquem as questões da arte e da cultura
correntemente associadas às ações públicas para no centro da agenda de preocupações.
o desenvolvimento econômico. O sentido dessa
No caminho de uma conectividade cada vez mais inclusiva, novos proble- Concorre para isso, no Brasil, a afirmação de um E acerta também quando se coloca como desafio
mas e questões se apresentam, tais como o das relações possíveis no plano modelo de criação teatral fundado na grupalida- reinventar-se.
da cibercultura, das redes sociais, da tríade arte-corpo-tecnologia. A inte- de, que vem se desenvolvendo desde os anos
ratividade e as formas de convívio virtuais integram esses processos com 1960 e ganhou nova escala a partir dos anos Como avançar? Depois de sua institucionaliza-
novas possibilidades de fluxos e de relações. A ciência e a arte de ponta 1980, representando hoje uma parcela expressi- ção, a questão mais importante, creio, é pen-
têm se ocupado cada vez mais desses territórios e das questões que eles va da produção no País. Tendo emergido em um sar os festivais não como ocorrência, mas como
levantam. As ciências sociais e a filosofia problematizam as formas assumidas contexto internacional e latino-americano que processo; não como programação, mas como
pelo poder, por meio de análises como a do biopoder. Na contraface dessa apostava nesse modelo, o movimento de teatro ação cultural. Um grande desafio, mas, talvez,
virtualização em larga escala, emergem deslocamentos e novas formas de de grupos ganhou fôlego e permanência no Bra- um grande salto. Uma mudança de paradigma
articulação coletiva em que as práticas performativas desempenham papel sil e é uma das principais características de nossa que vem sendo pensada, mas que ainda não se
central. As novas formas de socialização propiciam ações artísticas, culturais produção teatral no contexto internacional. efetivou, na qual o festival seria um ponto de
e políticas nos territórios da cidade, ressignificando e reinventando seus convergência e de compartilhamento de ações
espaços públicos. Espalhados pelo País em grande número, repre- ampliadas e deslocadas no tempo e no espaço,
sentam uma parcela importante da produção em múltiplas esferas. Creio, ainda, ser impor-
teatral de Minas Gerais, têm contribuído para a tante analisar o papel do poder público como
renovação artística local, com repercussão na- agente na dinâmica que hoje envolve os agentes
cional e internacional, e atuam em uma nova culturais locais que atuam na área, sejam eles os
O MOVIMENTO DE TEATRO DE zona em que são indissociáveis as dimensões grupos, os centros de formação, os espaços cul-
estéticas, éticas e políticas de suas ações artísti- turais, uma série de festivais e outros projetos
GRUPOS GANHOU FÔLEGO cas. As transversalidades e interlinguagens apro- consolidados na cidade. Como exemplo, pode-
E PERMANÊNCIA NO BRASIL ximam também os coletivos e artistas de outros mos citar o tema dos festivais. Belo Horizonte já
campos, como as artes visuais e a música. tem festivais em número e áreas suficientes para
E É UMA DAS PRINCIPAIS pensar numa política pública que ofereça aos
CARACTERÍSTICAS DE NOSSA Essa pode ser uma das formas de compreender- seus produtores estrutura, equipamentos, apoio
mos a voga dos festivais de teatro, dança, cir- logístico, divulgação e um plano de integração
PRODUÇÃO TEATRAL NO co e performance que se multiplicam em escala para criar uma programação artística/cultural 53
nacional e internacional nas últimas décadas. A anual da cidade, uma rede em que esses festivais
CONTEXTO INTERNACIONAL forma como a cidade recebeu e se apropriou do seriam reconhecidos e apoiados como eventos
FIT-BH desde suas primeiras edições, tornando- de interesse público regulares que contribuem
-o um dos grandes eventos públicos da cidade, para a afirmação da cidade em sua vocação cul-
pode ser compreendida nesse contexto e de- tural. Mas essa reflexão pode se estender a uma
manda o esforço permanente dos agentes públi- série de outros campos.
As artes de performance, ou seja, o teatro, a dança, o circo e seus novos
cos de operarem na construção do sentido dessa
formatos, têm um papel importante a desempenhar nesse processo por
prática em conjunto com as forças convergentes Em uma cidade como Belo Horizonte, hoje, há
se fundarem na relação entre o artista e seu público, na experiência do
dos agentes artísticos e das demandas públicas um vigor expresso nos movimentos artísticos e
encontro, por terem acumulado ao longo de séculos técnicas de trabalho
que a consolidaram. O FIT-BH tem procurado e culturais, na sociedade civil e em sua capacidade
sobre si, de contato e de ações coletivas. Seja por meio da narrativa, do
encontrado suas formas de atuar ao longo des- de renovação que precisa encontrar resposta nas
mito, da fábula, da imagem ou da imersão em outros sentidos, o corpo a
ses anos, quando se dedica à presença do teatro instâncias públicas. Uma arena como o FIT-BH,
corpo das artes da performance trabalha para a expansão da percepção e
de rua e à ocupação dos espaços não destinados em que se pode exercitar a experiência da cidade
da consciência do sujeito e sua condição e constrói experiência no plural.
previamente a apresentações teatrais, quando como invenção coletiva, é também um lugar pri-
Operando transversalmente entre a sociedade e o indivíduo, as artes de
apresenta uma programação descentralizada, vilegiado para aprofundar esse corpo a corpo en-
performance criam e atuam na dimensão do coletivo, seja internamente
quando expande suas ações para os campos da tre sociedade civil, estado e comunidade artística.
em suas estruturas, seja em sua relação com os públicos locais, regionais,
pedagogia e da reflexão crítica, quando entende
nacionais ou internacionais, a partir de suas proposições artísticas e seus
que sob o termo teatro estão as formas novas
processos criativos. Tanto do ponto de vista da experiência compartilhada,
e tradicionais, da intervenção à performance. O
corpórea, afetiva e simbólica, quanto da proposição de visões críticas e/ou 1
Fernando Mencarelli é professor de teatro na UFMG,
FIT-BH acerta também ao colocar como objeti-
alternativas ao imaginário veiculado exclusivamente por interesses comer- pesquisador do CNPQ e diretor teatral. Foi presidente da
vo explorar as “inúmeras possibilidades de apro-
ciais, o teatro e as outras formas de artes de performance competem hoje Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes
priação coletiva do espaço público”, entendendo Cênicas - ABRACE e coordenador da Pós-Graduação em
fortemente pela constituição e ressignificação do campo simbólico na era da
que “a cidade, território da circulação, do traba- Artes da EBA/UFMG.
cultura da informação. Ainda que sua escala seja aquela possível para uma
lho, da moradia e do lazer, deve ser também ce-
arte do encontro ao vivo, suas questões e suas estratégias contaminam o
nário permanente da fruição artística e cultural”.
território poroso das relações em rede que se multiplicam.
Em 1992, num artigo sobre a sociabilidade urbana,
Maria Ângela D’incão relata uma conversa que teve
com seus jovens sobrinhos, na qual eles comentavam
que andavam nas ruas de São Paulo apenas de carro.
A partir desse relato, ela afirma: “Esse exemplo sugere
que existe, ao que parece, uma recusa da rua, uma
falência da cidade como local de interação: a rua é
perigosa, deve ser evitada” (D’INCÃO, 1992, p. 95).
D’incão não está sozinha nesse diagnóstico. Na verda-
de, vários são os autores que apontam para a morte
ou o declínio do espaço público na cidade contempo-
rânea, com a retração da sociabilidade vivida nas ruas
(SENNET, 1989; DAVIS, 1993; JACOBS, 2000; CAL-
DEIRA, 1997 e 2000; FRÚGOLI, 1995; FRÚGOLI e
PINTAUDI, 1992; entre outros).
RUAS DE BELO pou as ruas da cidade com o seu Bivouac - uma inter-
venção que nunca mais saiu da memória de quem ali
paços, buscando, muitas vezes, uma convivência de Belo Horizonte desde 2004, no qual pessoas 2
Os espetáculos trazidos pelo FIT acontecem também
entre iguais, talvez pelo próprio sentimento de de meia idade fazem um baile a céu aberto, dan- em palcos, mas cerca de 50% são realizados em espaços
públicos (Revista FIT, 2008).
insegurança comum nas grandes cidades, como çando a música soul (RIBEIRO, 2008) e também
foi explicitado na frase de Maria Ângela D’incão. já reúnem em torno do baile diferentes grupos
Mas a cidade é plural e diversa e seus espaços e indivíduos, não necessariamente vinculados à REFERÊNCIAS
públicos revelam essa diversidade, expressando black music.
diferentes estilos de vida, sociabilidade e modos ALMEIDA, Rachel de Castro. Paisagem urbana e espaço GOIS, Aurino José. Parque Municipal de Belo Horizonte:
público: um estudo de duas praças de Belo Horizonte. Disser- público, apropriações e significados. Dissertação (Mestrado
de lidar com os riscos presentes (ou imaginados)
tação de Mestrado. Belo Horizonte, Programa de Pós-grad- em Ciências Sociais) - Programa de Pós-graduação em Ciên-
nas interações com estranhos. Assim, mesmo uação em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica cias Sociais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
que tenha mudado a maneira de apropriação O ESPAÇO PÚBLICO de Minas Gerais, 2001. 2003.
dos espaços públicos, tanto pelo medo do crime ANDRADE, Luciana. Singularidade e igualdade nos espaços JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo:
como pela intolerância à diferença, não se pode
É O LUGAR DA públicos. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XLIII, Ano. Martins Fontes, 2000.
2, Julho-dezembro, p. 112-127, 2007.
dizer que ela não exista. DIFERENÇA, DA ANDRADE, Luciana; JAYME, Juliana; ALMEIDA, Rachel.
JAYME, Juliana; NEVES, Magda. Cidade e Espaço Público:
política de revitalização urbana em Belo Horizonte. Cadernos
Há autores que corroboram com o meu ar- HETEROGENEIDADE, Espaços Públicos: Novas Sociabilidades, Novos Controles.
Cadernos Metrópole 21. São Paulo: EDUC, p. 131-152, 1º.
CRH, Salvador, v. 23, n. 60, p. 605-617, set/dez, 2010.
LEITE, Rogério Proença. Contra-usos da Cidade: lugares e
gumento e, partindo de pesquisas empíricas, DO ENCONTRO COM Semestre, 2009.
espaço público na experiência urbana contemporânea. Campi-
chamam atenção para a não “naturalização” ou CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Enclaves Fortificados: a nova
56 ESTRANHOS segregação urbana. Novos Estudos CEBRAP, n. 47, p. 179-
nas: Editora da Unicamp; Aracaju: Editora UFS, 2004.
57
universalização dessa ideia de morte do espaço LISBOA, Camila Barcelos. As imagens do silêncio: uma análise
192, 1997.
público, na medida em que percebem a vitalida- sócio-antropológica das interações entre surdos de Belo Hori-
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, zonte. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Progra-
de de diversos espaços públicos, como praças e
segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/ ma de Pós-graduação em Ciências Sociais, Pontifícia Univer-
parques (ALMEIDA, 2001; GÓIS, 2003; LISBOA, Edusp, 2000. sidade Católica de Minas Gerais, 2007.
2007; ANDRADE, JAYME e ALMEIDA, 2009; O FIT, é óbvio, pode ser lido de diferentes ma- DAVIS, Mike. Cidade de Quartzo: escavando o futuro em Los LOFLAND, Lyn H. A world of strangers: order and action in
GIRÃO, 2010; TREVISAN 2012) ou, por outro neiras, mas quero pensá-lo aqui como um fenô- Angeles. São Paulo: Scritta, 1993. urban public space. Illinois: Wavelan Press, 1985.
lado, a possibilidade de “contra-usos” de lugares meno a partir do qual a noção de espaço pú- D’INCAO, Maria Ângela. Modos de ser e de viver: a socia- RIBEIRO, Rita. Identidade e Resistência no Urbano: o Quar-
enobrecidos, por pessoas que estariam cons- blico, mesmo aquela mais ideal, de local aberto bilidade urbana. Tempo Social: Revista de Sociologia USP, vol. teirão do Soul em Belo Horizonte. Trabalho apresentado no
4 (1-2), 1992. XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Caxambu-
trangidas de os frequentarem, devido a barreiras a todos, parece explicitar-se. Os espetáculos de
FIT Revista 3. Belo Horizonte, 2008 MG, 2008. Disponível em:
simbólicas e reais (LEITE, 2004; URIARTE, 2010; rua trazidos pelo Festival nesses 18 anos - se- http://www.letras.ufrj.br/linguisticaaplicada/gtidentidade/
FRÚGOLI Jr., Heitor. São Paulo: espaços públicos e interação
TREVISAN, 2012). jam eles “arrebatadores”, como Bivouac, ou mais social. São Paulo: Marco Zero, 1995. docs/recom/ribeiro.pdf.
contemplativos, como O Bracelete de Jade e Ou- FRÚGOLI, Heitor e Pintaudi, Silvana Maria (orgs.). Espaço, SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias
Escrevendo este texto em 2012 - pouco tempo tras Árias de Ópera Chinesa, do grupo Chinese Cultura e Modernidade nas Cidades Brasileiras. São Paulo: da intimidade. Trad. Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1989.
depois que uma série de movimentos de protes- Theatre Circle, de Singapura - juntam, em um UNESP, 1992.
URIARTE, Urpi Montoya. Por trás das fachadas coloridas.
tos ocupou as ruas de diferentes cidades do mun- mesmo espaço público, diferentes pessoas e gru- GIRÃO, Adriana Freire. “Para animar os ânimos”: interações,
sentidos e percepções do centro de uma grande cidade a partir Etnografias nos “novos” Bairros do Recife (Pernambuco) e
do, os Occupy, com reivindicações distintas, mas pos, que se unem em torno de um evento. Mas Pelourinho (Bahia). Ponto Urbe: Revista do núcleo de an-
de suas sonoridades comerciais. Dissertação (Mestrado em
que tinham em comum a ocupação dos espaços não só. Parece que, além dos próprios espetácu- Ciências Sociais) - Programa de Pós-graduação em Ciências tropologia urbana da USP. Ano 4, dez 2010. Disponível em:
públicos - a ideia de morte do espaço público los, distribuídos por toda a Belo Horizonte, há o Sociais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, http://www.pontourbe.net/edicao7-artigos/128-por-tras-
2010. das-fachadas-coloridas-etnografias-nos-novos-bairro-do-
pode parecer anacrônica. Gostaria de dizer, po- que Maria Antonieta Antunes Cunha chamou de recife-pernambuco-e-pelourinho-bahia.
rém, que as ruas e as praças de Belo Horizonte estado FIT (Revista FIT, 2008, p. 06) e esse esta-
são apropriadas há muito. Creio que os belo-ho- do, na maioria das vezes, se revela na ocupação
rizontinos parecem não se conformar com essa das ruas, praças e parques, antes, durante e de-
ideia de declínio ou morte do espaço público. pois das diferentes apresentações. Pode-se dizer
Isso se torna claro nas diferentes apropriações que, nos dias em que o Festival Internacional de
de espaços urbanos - que, por esses usos, se Teatro acontece, o sentimento de que a rua é
transformam em lugares - das regiões centrais da pública se torna mais evidente.
O DISSIDENTE
TEATRO
BRASILEIRO
ALEXANDRE VARGAS1
O Brasil vive um momento de sociabilidade bem
diferente daquele que originou diversos festivais
no País. É nesse contexto que a reflexão se es-
tabelece: para que os festivais não se afoguem,
é necessário repensar o novo processo de so-
ciabilidade brasileira. Os inúmeros festivais que
compõem o circuito do teatro brasileiro são dis-
tintos entre si e conservam características, traços,
perfis, negócios, lobbies, modelos de produção e
imagens inflacionadas que forjam uma identida- 59
de que foi arduamente construída ao longo dos
anos. Essa trincheira de convicção pode ser um
cárcere que ofusca o pensar contemporâneo so-
bre os novos caminhos dos festivais de teatro no
Brasil. Portanto, como fugir da acumulação, da
experiência que se cristaliza em uma identidade e
se converte involuntariamente em uma limitação?
Em que consiste a continuidade dos festivais de
teatro no Brasil para destilar novas imagens, fra-
grâncias e sabores? Para que algo tenha uma his-
tória, tem que haver certa continuidade entre seu
passado e seu presente. Então, a questão nuclear
dos festivais é não perder a revolta e redescobrir
a curiosidade intelectual e o desejo de diálogo
profissional, sem esquecer que os grandes defen-
sores dos festivais são os habitantes das cidades.
TEATRO DE
RUA É UM RICO O LUGAR FÍSICO,
60 1
Alexandre Vargas é coordenador geral e diretor artístico do 61
CALEIDOSCÓPIO GEOGRÁFICO, Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre.
GRUPO GALPÃO:
UMA TRAJETÓRIA
CAMALEÔNICA
EDUARDO MOREIRA1
67
K@OSMOS
Puja - ESPANHA - FIT 10ª Edição (2010)
Foto: Daniel Protzner
Arte é criação. E criação não existe sem risco. Arte é risco, Como se trata de pesquisa, não se sabe que cami- festivais de teatro, cinco de dança e três de cir-
é folha em branco, salto sem rede. A arte mexe com as nhos serão percorridos, muito menos no que vai co, além de um festival multilinguagem. Se é que
pessoas, as tira do lugar-comum. É a beleza inesperada, a dar. É uma aposta cega, cujo resultado será sem- podemos fazer essa divisão nos dias de hoje, em
poesia do corriqueiro, o óbvio revelado. pre surpreendente, para o bem ou para o mal. que as linguagens são cada vez mais misturadas e
transversais.
Patrocinar arte é, portanto, uma aposta no escuro. Não Nossa primeira seleção pública foi a de 2006/2007
há bola de cristal. Os consagrados, os medalhões também e os resultados foram bem diversos daquilo que Os festivais cumprem importante função den-
erram. Certezas não existem. Então como conciliar os in- esperávamos. Quase todas as companhias opta- tro da cadeia produtiva das artes cênicas, não
teresses de uma empresa com os incertos rumos da arte? ram por fazer um trabalho diferente, fugindo de só como um espaço privilegiado de exibição de
Simplesmente deixando-a livre. A arte não pode ser dirigi- suas principais características. Souberam aprovei- espetáculos, mas também como grandes respon-
da, doutrinada, corporativa. Senão, não é arte. tar a oportunidade e arriscaram. sáveis por sua circulação pelo País e pelo inter-
câmbio de saberes e fazeres.
Para patrocinar arte, é preciso compactuar com o risco. Ser Além do estímulo à pesquisa, buscamos contem-
cúmplice. Tarefa nada fácil para quem está, como se diz por plar também a diversidade de linguagens e a dis- É nos festivais que as companhias se conhecem,
aí, “do outro lado do balcão”. Somos cobrados por chefes, persão regional. interagem e percebem a possibilidade de com-
colegas e superiores e pela opinião pública. Cansei de ouvir partilhar vivências. Hoje, o processo de criação
a frase já clássica: “mas como é que a Petrobras patrocina Desde 2006, a Petrobras selecionou, pelo Petro- coletivo é uma realidade. E não só entre os in-
isso?” Assim mesmo, grifado. bras Cultural, cerca de 55 companhias de teatro, tegrantes do mesmo grupo, mas também com
dança e circo, oriundos de todas as regiões do outros grupos, o que torna ainda mais rica essa
País, com linguagens tão distintas que vão do expe- rede criativa.
rimental ao popular, do teatro de rua ao teatro de
PARA PATROCINAR animação, do circo tradicional ao contemporâneo. O processo de criação colaborativa e a pesquisa
dramatúrgica dos grupos vêm se consolidando
ARTE, É PRECISO Ficamos com uma carteira de projetos rica e di- gradativamente. E isso vem se refletindo na grade
COMPACTUAR COM versificada. E isso acabou se traduzindo na Mos- dos festivais que, a cada ano, vem pautando mais e
O RISCO tra Petrobras, realizada em seis grandes festivais mais grupos que mostram trabalhos de qualidade 69
de artes cênicas no ano de 2011. A ideia da cada vez maior. E, ao pautar esses grupos, os gran-
Mostra surgiu quase que por acaso, ao consta- des festivais consolidam e legitimam seu trabalho.
tarmos que havia seis espetáculos patrocinados
pela Petrobras na grade da Mostra Oficial do Fes- Chegando à sua 11ª edição, é inegável o papel
É claro que nem tudo dá certo, mas se não houver o risco,
tival de Curitiba. Diante dessa realidade, por que do FIT-BH no crescimento e amadurecimento do
a ousadia, a busca pelo diferente, não vai haver o novo, o
não colocar um “selo” nesses espetáculos, iden- trabalho coletivo dos grupos mineiros. Ao des-
inusitado, o genial. Tentar, testar, pesquisar são fundamen-
tificando-os com o patrocínio da empresa? Afinal centralizar suas ações e pautar muitos espetáculos
tais para o desenvolvimento da arte.
de contas, qual outra empresa, no País, pode se de rua, o FIT-BH não só contribui para a popula-
orgulhar de patrocinar tantas companhias e com rização do teatro, mas também provoca e impul-
Foi com esse entendimento que abrimos seleção pública
tamanha qualidade? siona uma renovação constante da cena mineira.
para a área de artes cênicas no Petrobras Cultural, com a
proposta inédita de contemplar a manutenção de grupos e
A adesão dos festivais que patrocinamos foi ime-
companhias de teatro e dança.
diata, o que nos deixou extremamente felizes.
1
Todos quiseram realizar a Mostra Petrobras e até Regina Studart é coordenadora de Artes Cênicas da
E por que escolher grupos e companhias estáveis em vez Petrobras.
mesmo festivais que não são patrocinados pela
de montagens? Justamente por acreditar que o trabalho em
Petrobras pediram para fazer a Mostra dentro da
grupo e a convivência são terrenos férteis para experimen-
sua programação.
tações, pesquisa teatral e busca de novas linguagens e pos-
sibilidades cênicas. Olha só o risco...
A realização da Mostra Petrobras serviu para for-
talecer ainda mais a nossa marca, através da dupla
A proposta é patrocinar a manutenção de grupos e compa-
exibição, mas também - e principalmente - a nos-
nhias durante dois anos, em que o primeiro ano é dedicado
sa parceria com os festivais.
à pesquisa e o segundo, à montagem de um espetáculo
inédito, fruto dessa pesquisa. Não há estímulo maior à ou-
A Petrobras patrocina 17 festivais de artes cênicas
sadia artística do que dar condições de o artista criar, sem a
no Brasil, sendo 14 deles internacionais. São oito
obrigação de matar um leão por dia.
PRODUÇÃO E
DIVULGAÇÃO
SEMPRE DE
MÃOS DADAS1
BIA MORAIS2
guinte procedimento, erigido praticamente em Como bem demonstra Gerd Bornheim em “Da abre a partir das propostas de sentido que o crí- spectiva, 2003, p. 22.
3 Sábato Magaldi, em entrevista à revista Folhetim n. 27. Rio
norma: tomando o texto dramático como ponto crítica”4, a partir de meados do século XVIII, tico apresenta publicamente, instala-se a dimen-
de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2008, p. 71.
de partida, o crítico analisa em função dele todos quando a arte perde a evidência de sua função são política: reverberação (pública) de hipóteses 4 Gerd Bornheim. Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro:
os elementos do espetáculo, avaliando-os em (servir ao poder político e religioso) e são ques- abertas ao outro (a obra) desde sua elaboração5. Uapê, 1998, p.131-139.
sua coerência e consistência e atribuindo-lhes tionados tanto o seu fundamento (o Absoluto, 5 Luiz Camillo Osorio. Razões da crítica. Rio de Janeiro:
alguns adjetivos, elogiosos ou não. A começar Por sua extrema diversidade de formas e concep- Jorge Zahar, 2005, p. 14, 16, 48.
6 Depoimento à autora, por e-mail, em 09/04/2012.
por seu enrijecimento, essa fórmula deixa mui- ções, a obra teatral contemporânea nos estimula
to a desejar. Em primeiro lugar, por atribuir ao a pensar a partir de outros lugares, a partir do
texto uma descabida supremacia em relação aos ASSIM COMO A desconhecido, que vem instalar um curto-circui-
demais elementos e, depois, por considerar os to no já conhecido. Surgem novos suportes para
componentes não verbais do espetáculo como ARTE NÃO PODE o pensamento crítico dedicado ao fazer teatral,
80 mera ilustração da trama, desmerecendo-os em SER APRISIONADA como, por exemplo, a revista eletrônica Questão 81
sua concretude e em sua possibilidade de origi- de crítica que opera com flexibilidade de formato
nar redes de sentidos. Além disso, não concebo NO ÂMBITO DO e tamanho e, apesar de cobrir o panorama tea-
como se possa querer ainda estabelecer uma re- MIMÉTICO, A tral, não se submete à urgência que rege a cober-
lação rígida de causalidade de um elemento, no tura jornalística das temporadas.
caso o texto, sobre os demais, numa época em CRÍTICA TAMBÉM
que o pensamento se organiza em constelações Nas palavras de Dinah Ceasare, uma das criado-
abertas, provisórias e proliferantes e as fronteiras
NÃO PODE SE ras da Questão de crítica:
entre as artes se tornam tão tênues que quase LIMITAR A SER
não é mais possível (nem desejável) separar artes a ideia da revista tem a ver com a disseminação de
visuais, teatro, música, dança... UM REFLEXO DO pensamento e não propriamente de informações.
ESPETÁCULO É possível existirem dois textos sobre um mesmo
espetáculo, por exemplo. Se estamos lidando com
É claro que é muito grave a falta de espaço nos
um leitor de internet é preciso ter em considera-
jornais para a crítica de arte, o que obriga o crí-
ção que ele pode ler nosso texto ao mesmo tempo
tico a condensar seus argumentos e o induz a
em que busca atualizações na rede. Isso implica
pôr em segundo plano a preocupação quanto à Deus) quanto seu enclausuramento no âmbito da que meu texto possibilite pontos de fuga, saídas
forma de apresentação de suas ideias. Porém, é imitação do real, surge a necessidade da crítica virtuais. É mais precioso criar vazamentos que
ainda mais grave a aceitação de uma estrutura de que busca oferecer hipóteses sobre a obra ar- completudes. Nesse sentido é possível pensar so-
pensamento crítico que, desde o surgimento do tística. A ênfase agora vai estar não mais naquilo bre a própria crítica enquanto se escreve6.
conceito de encenação, no fim do século XIX, que a arte representa, mas naquilo que ela é. E a
deixou de ser operativa para o teatro. A partir fórmula lapidar de Kant, “a arte é uma finalidade Atualmente, a crítica mais produtiva não se dedi-
desse momento, passou-se a compreender cada sem fim”, ajuda os olhares críticos a se fixarem, ca ao inventário das formas pelas quais os espetá-
espetáculo como um conjunto inédito de deci- por um lado, no processo de constituição da culos se constituem, mas busca levantar as ques-
sões sobre a relação que será estabelecida en- obra, considerada um fim em si mesma, e, por tões que movem cada trabalho, inserindo-as no
tre os elementos cênicos que o compõem. Com outro, na fruição do objeto artístico por parte do panorama criativo que nos cerca e estabelecendo
isso, caducam a ideia do espetáculo como tradu- espectador. Do âmbito do transcendente, a obra as necessárias relações delas com a tradição. A ri-
NOTÍCIA
DA CRÍTICA
MACKSEN LUIZ1
83
ABITO
Fondazione Pontedera Teatro - ITÁLIA - FIT 11ª Edição (2012)
Foto: Roberto Palermo
A crítica teatral jornalística vive, ao longo de du- Durante essas três décadas, mudanças econômi-
zentos anos, dos séculos XIX ao XXI, o para- cas nas publicações interferiram na prática crítica,
lelismo entre a realidade editorial, econômica e já que os cadernos de cultura diminuíram os es-
cultural dos jornais e as especificidades do pa- paços e as orientações editoriais reduziram crí-
norama cênico de cada época. No século XIX, ticas a resenhas, análise a indicações, palavras a
quando se ensaiava construir um teatro de ex- estrelinhas. O preço do papel, a inflação incon-
pressão nacional, em que já se delineavam linhas trolável do período e a juvenilização das redações
cênicas – de um lado o romantismo, de outro promoveram esse progressivo esvaziamento.
o realismo -, surge o crítico Machado de Assis, Com a chegada da revolução digital, essas limita-
que debatia em seus escritos em jornal essas duas ções se ampliaram, transformando a cultura pop,
correntes. Era o início de uma prolongada e tu- via música e meios eletrônicos, em capas quase
multuada mediação entre a produção cênica e a diárias dos segundos cadernos. O teatro, acos-
recepção pública. sado pela avalanche de novas tecnologias e com
o envelhecimento de seu público, foi sendo re-
Até o estabelecimento do teatro brasileiro mo- legado a espaços cada vez menores e confinado
derno, cujo marco pode ser fixado com a estreia a um nicho, identificado como uma arte antiga,
de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com dentro do vibrante e espalhafatoso consumismo
O TEATRO ATUAL, encenação de Ziembinski, a crítica e os jornais da sociedade da diversão.
tinham estreita relação com o mercado teatral.
COM A DIVERSIDADE Aos críticos, eram atribuídas as tarefas de análise Assim como os jornais, que tentam estabelecer
QUE SUSTENTA A SUA dos espetáculos e da venda de publicidade des- a convivência do papel com os meios digitais, os
ses mesmos espetáculos. A obrigatoriedade mer- críticos de longa atividade na imprensa, alguns
CONTEMPORANEIDADE, cantil e a convivência com produtores e com os com mais de 40 anos contínuos de colaboração,
DESLOCA A CRÍTICA primeiros atores e atrizes das companhias com- deixaram as redações e se transferiram para o
prometiam a isenção e reduziam o exercício da eletrônico. Os jornais, cada vez mais escassos em
PARA O MUNDO crítica praticamente à divulgação. número, mantêm críticos que, apesar de acom- 85
panharem a temporada, nem sempre têm suas
DIGITAL, COM Com as transformações trazidas pelos elementos críticas regularmente publicadas. O teatro atual,
DIFICULDADE EM fundadores por Ziembinski e pela criação do Te- com a diversidade que sustenta a sua contempo-
atro Brasileiro de Comédias (TBC), a crítica se raneidade, desloca a crítica para o mundo digital,
LEVAR, PARA O MEIO, instrumentaliza por meio de Décio de Almeida com dificuldade em levar, para o meio, antigos
ANTIGOS LEITORES OU Prado, intelectual paulistano, criador do Suple- leitores ou conquistar novos. Os mais tradicio-
mento Literário do Estado de São Paulo que, ao nais conseguem ampliar seu leitorado, mas os
CONQUISTAR NOVOS longo de 20 anos, colaborou para a formação de mais recentes buscam, com seus blogs, visibilida-
uma geração de especialistas. O seu papel como de para conseguir um lugar no jornal em papel.
professor, aliado à criação da Escola de Arte Dra- O espectador de teatro, uma categoria cada vez
mática, deslocou o eixo teatral para São Paulo, mais envelhecida ou formada por um público
quebrando a hegemonia carioca. Sábato Magaldi eventual, tem acesso restrito ao eletrônico, o
foi o seu mais destacado discípulo, dando conti- que aprofunda a distância entre a cena e a plateia.
nuidade à sua ação didática no jornal, estendo-a A crítica acadêmica ainda está circunscrita aos li-
à universidade. Bárbara Heliodora e Yan Michalski mites da universidade, voltada para o consumo
seguiram a mesma escola, aquela que fixou a crí- de quem a produz.
tica teatral e suplementou a informação com em-
basamento acadêmico. Dos anos 1960 aos 1990,
os jornais mantiveram críticos permanentes que, 1 Macksen Luiz é critico de teatro por 42 anos do Jornal
além de registrarem o movimento teatral do pe- do Brasil, Autor do site especializado em artes cênicas
(macksenluiz.blogspot.com) e colaborador de várias
ríodo, analisaram as profundas modificações de
publicações.
linguagem e as crises de criação que permearam
a dramaturgia, a encenação e os intérpretes.
ESPECIAL
CENTENÁRIO
NELSON
RODRIGUES
CÍRCULO
RODRIGUIANO
MARCO ANTÔNIO BRAZ1
Começarei afirmando que sou diretor teatral homem se exibe sem medo de suas sombras e
com mais de 20 anos de trabalho profissional fantasmas. O fundo da cena do homem é outro
no teatro, e que em nenhum desses anos deixei homem a observar o homem. Cenograficamen- A OBRA TEATRAL DESGRAÇADA
uma única vez de mergulhar na obra rodriguiana. te passamos a ser inseridos como paredes que DE NELSON ... ATUALIDADE
Foram textos, leituras e encenações. Será que possuem olhos e ouvidos. Formei-me, envelhe-
consigo expressar o que foi que aprendi com ci, vim para São Paulo, aqui organizei o Círculo RODRIGUES PARA O HOMEM
toda essa paixão e esse esforço? Foi em 1979
(aos 13 anos) que li pela primeira vez o teatro
de Comediantes (atual Círculo dos Canastrões
– Cia. de repertório especializada no estudo e
É DE UMA CONTEMPORÂNEO!
de Nelson Rodrigues. Era um volume que con- na montagem da obra rodriguiana) e dei prosse-
tinha duas peças: Vestido de Noiva e O Beijo no guimento à pesquisa. Minha primeira montagem
Asfalto. Adorei Vestido, mas o que me impressio- paulistana de Nelson foi Perdoa-me Por Me Tra-
nou realmente foi O Beijo no Asfalto. No mesmo íres. Pouco após meus pais morrerem, a peça
momento reli a peça três vezes e em todas elas parecia ser uma fonte inesgotável de expiação
me surpreendi novamente. Sequer imaginava da minha família e a tentativa de compreender
naquela ocasião que eu pudesse vir a ser dire- o verdadeiro sentido da palavra amor, não dita,
88 tor teatral. Já na faculdade, retornei ao texto de velada. A partir daí a relação com o teatro de 89
O Beijo como montagem de formatura. Li como Nelson Rodrigues se tornou algo para além do
preparação de montagem todas as peças do dra- estudo, da pesquisa e da realização artística. Mais
maturgo na ordem cronológica e, para minha ainda, foi se tornando um ponto de vista, uma
surpresa, trancado duas semanas no meu quarto forma de ver o mundo. O que Nelson traz à
da Tijuca, devorei-as diversas vezes. “Graças” e tona é lama, dejeto e sombra, tudo que preten-
“batata” se tornaram expressões cotidianas. Foi demos esconder em detrimento da pureza de
minha primeira experiência artística como con- uma idealização moral. Com isso, sua equação
cepção e encenação. Meu professor orientador dramática descortina nossa hipocrisia em diver- O BEIJO NO ASFALTO
Cia. De Artes Reviu a Volta - BRASIL
dessa montagem, para minha total felicidade, foi sas camadas. Por isso Nelson foi durante muito FIT 4ª Edição (1998)
o saudoso mestre José Renato Pécora. Foi ele tempo estigmatizado com ecos de preconceito
quem me apontou o óbvio: “A obra teatral de que chegaram até o novo milênio. Vou em pou-
Nelson Rodrigues merecia uma Cia. de reper- cas palavras resumir o que Nelson me ensina. A çada atualidade para o homem contemporâneo! ma crítica e profunda. Não é possível recusar a
tório!”. A concepção cênica da montagem girava mim ensinou que só há interesse ainda por suas Portanto, o dramaturgo cumpriu e cumpre sua evidência da importância artística do seu teatro!
em torno da ideia de círculo: círculo de curiosos peças porque o povo precisa de que, em algum necessária tarefa de clássico. Atravessa os tem- Em 2012, ano da comemoração do centenário
que se aglomeram em torno do acidente e da palco, alguém esteja lembrando que “o brasileiro pos para nos fazer refletir sobre nossos tabus, do dramaturgo que faleceu em 1980, sua obra
morte, círculo que forma uma Praça da Bandei- que não é canalha na véspera, é canalha no dia hipocrisias e medos. Só quem tem medo de está mais viva do que nunca.
ra imaginária e cenográfica, círculo de vizinhos seguinte”. Ensinou-me que falar da morte com abrir a caixa preta do ser humano se fecha em
e alcoviteiros, enfim, círculo que simboliza ciclo humor é falar da vida com alegria! É a necessi- calúnias e preconceitos. Nelson Rodrigues não
e eternidade. Esse círculo se construiu em um dade de tentar explicar nossa imensa ignorância inventou a pedofilia, o racismo, o amor, a moral, 1
Marco Antonio Braz é diretor e encenador que se projetou
espaço arena de representação montado para a diante dos mistérios da vida. A dramaturgia de a hipocrisia, o homossexualismo, o lesbianismo, nos anos 1990 por suas montagens da obra de Nelson Ro-
encenação na Sala Cinza da Uni-Rio. A desco- Nelson Rodrigues não é para brincadeiras! Ne- a traição, a violência conjugal, a ambição, a luta drigues. É fundador e líder do grupo Círculo de Comediantes
berta e o estudo das possibilidades de represen- nhum dramaturgo da atualidade traz à cena tan- (atual Círculo dos Canastrões).
pelo poder, o casamento, a virgindade, o sexo, o
tação em arena desse texto de Nelson me leva- tas questões polêmicas para a nossa sociedade estupro, a pureza, o pecado, nem Cristo, nem o
ram a construir uma espécie de pequena estética quanto ele. Pois este é o óbvio ululante: a obra diabo, assim como a vida ou a morte! Mas todos
de encenação. Ali, no centro daquele círculo, o teatral de Nelson Rodrigues é de uma desgra- esses temas estão presentes em sua obra de for-
A RELEVÂNCIA DA OBRA
RODRIGUIANA SOB O
PRISMA DA PSICANÁLISE
MARCO AURÉLIO BAGGIO1
Por meio da criação de dezessete peças, Nelson Primeiro, as quatro peças centradas nos mitos
Rodrigues “compassivizou” seus infernais demô- gregos fundantes do Ocidente:
nios, economizou sua psicanálise, escarmentan-
do para o palco toda a sordidez e a excrescência 1- Álbum de família.
que o habitavam. 2- Anjo negro.
3- Senhora dos afogados.
Da curiosidade infantil indecente, passando pelas 4- Dorotéia.
“COMO É BOM O DOER
tragédias familiares, o homem Nelson Rodrigues DE VELHAS PENAS”.
se viu assediado pela crônica policial, e pela ne- Em Álbum de família Nelson Rodrigues trabalha
cessidade de sair da miséria cedo, ainda acossado aquilo que em psicanálise se conceitua como sen- “ADOECEMOS
por um superegóico moralismo sempre fracassa- do o complexo de Édipo, acrescido do desco- PORQUE NÃO AMAMOS”.
do, vencido por uma sexualidade trepidante, o medimento do incesto. Nessa peça, a forclusão
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que o induziu a cometer as canalhices dos amo- da realidade – verwerfung – é tão radical e aca-
res infiéis. Anjo infantil de pureza. Visionário de chapante que causa a exterminação da família e “O ADULTO NÃO EXISTE.
uma sociedade hipócrita em dissolução. Profeta a loucura de D. Senhorinha. “Nonô me chama O HOMEM É UM MENINO PERENE”.
dos subterrâneos. Bandalho honesto. Pornográfi- – vou para sempre”.
co sem palavrão. Quixote em um Rio de Janeiro “O DINHEIRO COMPRA ATÉ
nos anos dourados na aparência, carcomido e Anjo negro, de 1947, é talvez a mais cruel e som-
cancerificado por dentro. bria obra de Nelson Rodrigues. Ismael usa do
AMOR SINCERO”.
mecanismo da negação consciente da realidade
Para Nelson Rodrigues, a pureza do amor era (verneinung) de sua negritude para acionar a atu- NELSON RODRIGUES
tudo, o ideal a ser almejado. ação, passando ao ato de casar-se com Virgínia,
mulher branca. Torna-se cúmplice desta, assassi-
No entanto, sabia ele que o amor era a véspera na de seus três filhos. Ana Maria branca é cegada
do pecado e da infidelidade. O amor desperta a para não ver o negro Ismael que se encerra em
voragem do monstro de olhos verdes do ciúme. um autismo no quarto que é seu túmulo. Amal-
diçoado pela mãe, cumpre a sina de, numa ten-
Os dois, o amor e o ciúme, trazem consigo, a tativa patológica, procurar retornar ao ventre da
seguir, o inferno da possessão, da desconfiança, mãe.
da querela e da cobrança.
A mesma temática ressurge em Senhora dos afo-
Desse conflito, brotado dos ínferos endógenos gados. O núcleo da ação dramática é dado pelo
do inconsciente, o ser humano torna-se um jo- desejo de Moema ficar só com seu pai. Elimina-
guete, um personagem no teatro de sua vida, dos os irmãos, as irmãs e a mãe, Moema perde
que o distancia do comando de seu destino. E o reflexo da própria imagem diante do espelho,
assim mergulha na torrente dos arquétipos míti- simbolizando a perda de sua identidade. No ins- MEMÓRIA DA CANA
cos, os quais percorrem as inexoráveis trilhas do tante da vitória de seu desejo incestuoso, em um Os fofos encenam - SÃO PAULO/SP/BRASIL - FIT 10ª Edição (2010)
Foto: Kika Antunes
mortífero, da tragédia. espetacular revertério, que é a marca do teatró-
logo, Misael, o pai, morre. Moema fica com sua soli- O tricô é o emblema de prosaica atividade fe- teatro inovador, que obrigava a plateia a se deixar ra distributiva, que as encaminhava ao juízo das
dão, imersa na insanidade da loucura. Mais uma vez minil de senhoras de correto proceder, já desti- mobilizar em seus elementos inconscientes. Moiras e de Themis, rumo ao destino fatal.
constatamos a forclusão da realidade, a verwerfung, tuídas de quaisquer pretensões voluptuosas no
operando, soberana. Causando o devastador des- campo amoroso. Nascia um estilo de teatro fascinante, provocati- Perdoa-me por me traíres é um ensandecido fes-
carrilamento no psiquismo do personagem. vo, catártico e... desagradável. Foi aí que Nelson tival de delírios de ciúme. Para Freud, o ciúme
O apelo à feiúra e ao aborto são insinuantes Rodrigues pôde confirmar sua afirmação de que do parceiro amoroso é uma projeção do desejo
Dorotéia é a complexa, enigmática e mítica peça marcas, marcando a vigência da pulsão de morte toda unanimidade de conduta e de percepção reprimido do ciumento de cometer aquilo que
desse “tarado de suspensório”. Reativa o mito que vigora nesse espaço atemporal. burguesa é burra. atribui, imaginária ou realisticamente, ao outro.
grego das Eríneas e das Parcas, predecessoras
das Fúrias romanas, mulheres mitológicas que Dorotéia é a mais emblemática de suas peças. Doro- Em 1943, Vestido de noiva escande, primoro- Em 1957, data da peça, a vilania dos amores clan-
protegem a ordem natural e social do mundo téia, o “presente de Deus”, é a evidência de que o samente, a tripartição do ego de Alaíde, numa destinos ou incestuosos era escoltada pelos pac-
incipiente em civilização - primitivo -, evitando apodrecimento existencial é certo quando a pessoa tentativa agônica de armar solução à pluralidade tos de suicídio. O aborto era abominável. Hoje,
e regrando a intromissão fertilizadora do agente se deixa capturar por periclitadas trilhas perversas. de tendências instintivas indomáveis, tais como o em 2012, tais temas perderam pregnância. A
masculino. Este é capaz de propiciar a orgia - o amor, a competição, a rivalidade, a traição, o ciú- violência gratuita, a estupidez relacional e a cor-
orgasmo -, mas pode induzir à desmesura, à es- Dentre as cinco peças psicológicas, Vestido de noiva me, a inveja, a má fortuna e a vingança, que, em rupção generalizada são temas que mereceriam
bórnia e à arrogância - hybris. é aquela que inovou o teatro brasileiro e consa- seu corpo e em seu psiquismo, tinham morada. da ironia e da genialidade de Nelson Rodrigues
grou em definitivo seu autor. Granjeou capital in- arguto tratamento dramático. Nelson, um primo-
D. Flávia, Carmelita e Maura vivem o recalque - Entre as Tragédias Cariocas I, situa-se A falecida. roso, que já se insinuava na venalidade e hipocri-
verdrangung - do masculino, reprimindo em seu sia de seus personagens.
inconsciente o significante do falo masculino. Para Repórter policial de um Rio de Janeiro dividido
tal, permanecem em vigília constante, evitando em Zona Sul, rica e resolvida, e Zona Norte, Glorinha, adolescente órfã criada pelo Tio Raul, co-
dormir, logo, sonhar com o desejo do sexo com-
NELSON, COM SUA pobre, esforçada, atrasada, Nelson situou a peça meça a frequentar a casa de tolerância de Madame
partido. Sua atitude acarreta sua desumanização DRAMATURGIA, na Zona Norte, colocando como protagonistas
suburbanos frustrados e fracassados que, de há
Luba. Raul amara e matara Judite, mãe de Glorinha,
uma mulher devassa. Propõe-se matar Glorinha.
crescente, acompanhado de degradação e de
apodrecimento do corpo. FOI UM muito, perderam o comando de seus destinos.
Os personagens são eivados de pathos, simples Seu irmão Gilberto, marido de Judite, percebe-se
Freud ensinou que a repressão cria duas realida-
ARROMBADOR, UM encarnações de forças instintivas vagando à deri- o indutor da traição de Judite, enlouquecido que
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des não conviventes no psiquismo. Nesse não há ESCANCHELADOR va das circunstâncias. está, vê, alucinado, amantes da esposa escorre-
dúvida, daí não se deixar pronunciar o MAS que rem pelas paredes. Exclama:
principiaria por abalar as até então certezas inex- DE (QUASE) Zulmira, tuberculosa, pobre, desesperançada, in-
feliz no casamento, quer ter um enterro magnífico “- Perdoa-me por me traíres”.
pugnáveis que mantêm excluídas de seu campo TODOS OS NICHOS de 25 contos de réis. Instrui o marido inútil, Tuni-
psíquico o novo e o masculino.
CONCEITUAIS nho, a buscar o dinheiro com Pimentel, dono de Essa paradoxal expressão quer dizer:
A chegada da prostituta Dorotéia acarreta a sub- frotas de lotação, ex-amante. Ele o faz, obtém o
versão nesse universo de mulheres desfeminiliza-
DA PSICANÁLISE dinheiro e consegue extorquir até mais para o sé- “Perdoa-me porque estou em tamanha falta para com
timo dia. Descobre que Zulmira e Pimentel foram você, Judite meu amor, tanto que te induzi a me trair”.
das, que vivem sob a égide da pulsão de morte. FREUDIANA amantes. Dá-lhe um enterro miserável de 400 mil
Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico, entendia réis e gasta o dinheiro na farra com os amigos, no O amor-paixão costuma ser escoltado pela des-
de carpintaria teatral. Introduz singelos e significa- jogo no Maracanã e em apostas no jogo. confiança e pelo ciúme, a tal ponto que o amante
tivos objetos em cena. mergulha no monstro verde do delírio celotípico,
telectual para o fracasso e a controvérsia gerada
Perdoa-me por me traíres é, de todos, o título delírio de ciúme. Chico Buarque usou o tema em
por dúzia de peças seguintes, sobrevivendo à pul-
O jarro lembra a assepsia feminina nos prostíbulos. mais desconcertante. Mil perdões:
são epistemofílica e à pessoa de Nelson, atrevido,
desafiante, altaneiro, pelas décadas seguintes: de
As botas representam a intrusiva penetração do Flor da obsessão - Nelson era maniado com a fide- Te perdoo
1943 até sua morte, em dezembro de 1980.
macho no desvitalizado âmbito de fêmeas de há lidade conjugal. Casado com Elza, vivia o drama de Por fazeres mil perguntas
muito abandonadas. quase todo homem, de que a sexualidade masculi- Que em vidas que andam juntas
Em Vestido de noiva, o iniciante dramaturgo co-
na se sente constrangida e manietada no valioso vín- Ninguém faz.
loca em mescolância, em cena, a realidade do
A náusea traduz a absoluta aversão da carnali- culo do casamento. Moralista, católico, viveu tortu- Te perdoo porque choras
atropelamento de Alaíde, sua cirurgia; a memória
dade dessas mulheres ao homem e é a manifes- rado por sua volúpia de apaixonar-se fácil por outras Quando eu choro de rir
dos feitos de Madame Clessy e a fantasia do que
tação fisiológica inversa do orgasmo. várias mulheres. Queria ser fiel e não conseguia. Te perdoo por te trair.
lhe sucederia depois.
As chagas são o câncer arruinante dos corpos e Exigia fidelidade de suas personagens sabendo o Chico inverte o sentido do título da peça de Nel-
Frases curtas, diálogos entrecortados, flashbacks,
da beleza que negam – verneinung – a feminilidade. quanto elas também não se mantinham nos pa- son. Este emite a lapidar assertiva: “Amar é ser fiel
jogos de luzes, mudanças de cenários criavam um
drões e, assim, as entregava a Nêmesis, a justicei- a quem nos trai!”.
Raul possui a tara, o secreto gozo de que a mu- Conspiram, denigrem e corrompem o belo gesto
lher o traísse: primeiro Judite, agora Glorinha. humano de Arandir diante da morte.
“Sou traído por uma mulher que eu amo”.
Foi com Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara
Supremo gozo mortífero para o paranoico! Resende que surgiu certo otimismo quanto à
possibilidade de um melhor destino terreno para
Glorinha propõe a Raul que os dois se envene- o homem, a partir da tomada de atitudes corre-
nem e morram juntos. Ele ingere. Ela finge tomar. tas e sensatas.
Enquanto Raul agoniza, ela, agora Pola Negri,
confirma encontro com o deputado Jubileu de Na peça, mostra-se que não há canalha integral.
Almeida no lupanar de Madame Luba. Edgar não se deixa corromper por seu patrão por
cinco milhões de cruzeiros para que se case com
Os sete gatinhos é a história do contínuo, pai de sua filha recém-currada por um bando de negros.
cinco filhas. Prostitui as quatro maiores no anseio Prefere ficar com Ritinha, prostituta, que encon-
de preservar a caçula para um casamento bur- tra redenção em seu amor por Edgar.
guês. Mas esta se entrega a um conquistador
barato. Noronha, revoltado, passa a agenciar o
lenocínio das próprias filhas. Estas resolvem matá-lo.
PARA NELSON
O Boca de Ouro, de 1959, é uma imersão de
Nelson Rodrigues no submundo carioca. Boca, RODRIGUES, A
bicheiro milionário, troca sua dentadura por ou-
tra toda feita de ouro para realizar um sonho de
PUREZA DO AMOR
menino. Assassinado, Caveirinha, repórter, colhe ERA TUDO, O IDEAL
depoimentos de Guiomar, que primeiramente o
descreve como facínora. Arrepende-se e o des-
A SER ALMEJADO
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creve como pessoa boa e generosa.
Nelson avalia que a mitologia suburbana criada “Mineiro só é solidário no câncer”, frase lapidar
em torno do Boca é uma sequência incongruente de Otto Lara Resende, repetida na peça, é o
Mulher Sem Pecado
de versões criadas por Dona Guigui e publicada mote do qual se serve Nelson para avisar o já Cia de Teatro Arlecchino - FIT 11º Edição (2012)
pela imprensa. Jornalista de escol, Nelson sabia o sabido desde o Leviatã, de Hobbes: os homens Foto: Eliane Torino
quanto a imprensa podia ser venal e maligna. adoram, entredevoram-se e, raramente, nem no
câncer, são solidários.
O Beijo no Asfalto é sua peça de inserção na subli-
midade do amor. Ritinha e Edgar terminam correndo, descalços,
em direção ao mar, numa figura de recuperação
Amado Ribeiro, repórter, viu um homem atrope- da pureza perdida.
lado por um lotação. Um indivíduo aproximou-se pida, contrapondo sua dignidade, anulando as fetadas na cara. Depois, toma seu rosto entre as
do moribundo, segurou sua cabeça e deu-lhe um A violência perpassa pela vida das personagens de canalhices de Osvaldinho com sua bondade. Ela mãos e, soluçando, explicita:
beijo na boca. Quem são aqueles homens? Qual Nelson Rodrigues. Assume-se como um Coélet, aceita o jogo de cena sacana de Osvaldinho que,
relação eles mantinham? Amado e o delegado ar- um Pregador, procurando exorcizar o homem co- açulado pelo desejo que ela tão bem esgrime, o “Seu idiota, não quero seu dinheiro, quero teu amor”.
mam uma relação homossexual entre Arandir e o mum de seu destino banal. leva a aumentar sucessivamente os lances.
morto. As denúncias no jornal são cada vez mais Leitor voraz desde a infância, Nelson Rodrigues
sórdidas e cruéis. Desagrega-se a família. Arandir Depois de 13 anos de interregno, em 1974 surge “Dr. Osvaldo, desde menina que eu espero por diz que não leu Freud. Certamente conhecia os
é assassinado por Aprígio, o sogro, que secreta- novidade. A peça Anti-Nelson Rodrigues contém um grande amor... Um amor que continuasse conceitos psicanalíticos que, na década de qua-
mente o amava. Amado, Cunha e Aprígio, inca- todos os ingredientes comuns à sua dramaturgia. para além da vida e para além da morte”. renta, começaram a circular nos meios cultos.
pazes de conter sua homossexualidade latente, Agora, combinados com razoável dose de hu- Inconsciente, Id, Ego, mecanismos de defesa,
utilizam a cena do beijo para imolar Arandir. mor. Um rico herdeiro psicopata, Osvaldinho, é Numa dramática reviravolta, Joyce recebe de complexo de Édipo, perversão, neurose, incesto,
conduzido pela habilidade com que Joyce vai bali- Osvaldinho polpudo cheque com que ele a com- narcisismo, depressão, sonho, imaginação, sím-
“Não me arrependo... foi a coisa mais sublime que zando novos terrenos por onde ele pode deslizar prava. Ela rasga-o em pedacinhos, atirando na bolos, sublimação, comparecem aos borbotões
já cometi. Atender ao desejo de um moribundo...” e crescer. Joyce arrosta os riscos de ser corrom- cara de Osvaldinho, que fica atônito. Dá-lhe bo- em sua obra. O fato é que, com suas peças, Nel-
son Rodrigues foi um escarafunchador do baú, Suas peças e seus livros são exemplos da imo- Negação como mentira, implica mais negação. Ver- - é o primeiro imprescindível passo para introje-
universo conceitual da psicanálise. ralidade, da calhordice e da venalidade a nós neinung, negação simples, consciente da existência tá-lo em nosso psiquismo, como representação
comuns, bem como a um povo. Nelson não do recusado. É o substituto intelectual do recalcado. do objeto perdido, simbolizado como lembrança
Mais que isso: Nelson, com sua dramaturgia, foi escreveu uma bíblia, talvez dez por cento dela, e, a seguir, como palavra/fala/lamento/discurso.
um arrombador, um escanchelador de (quase) em sacanagens e hediondices e atrocidades. Re- Na trama teatral, logo o personagem descamba
todos os nichos conceituais da psicanálise freu- tratou o ser humano com toda a sua contradição para a recusa da realidade verleugnung, que, no A palavra é a presença viva de uma negativida-
diana. Quase não houve nicho, canto, grotão do e complexidade, com sua avidez pelo absoluto entanto, teima em ser reeditada e reconsiderada: de morta distanciada. A palavra/o discurso é o
psiquismo humano que ele não tenha denuncia- da felicidade, sendo quase certa para levá-lo ao “Isso, essa coisa não me serve, não me interessa”. ersatz, a compensação que nos resta diante do
do e iluminado. fracasso existencial. objeto morto que se foi.
E assim, com frequência, o personagem rodri-
A vida humana, de regra, transita do miserável ao Nelson Rodrigues possuía um faro para as ex- guiano é compelido ao mais radical tipo de ne- Nessa esgrima da língua portuguesa, Nelson Ro-
terrível. E os seres guiados por suas insensatezes crescências e as abominações do homem con- gação, a forclusão – verwerfung –, mediante a drigues foi genial!
e por seus desejos em demasia, desmesurados, temporâneo. O jornalismo e a crônica policial qual exclui o significante, o fato intolerável de seu
tendem a escolher, incautamente, os caminhos foram fonte perene da qual extraía a seiva vene- campo psíquico. É quando, então, imerso em
mais fáceis, quase sempre aqueles que, logo, se nosa de suas peças. pleno transcurso mortífero do instinto de morte, 1
Marco Aurélio Baggio é psiquiatra, psicanalista e presidente
revelam mais nefastos. o personagem enlouquece, mata ou suicida.
da Sociedade Brasileira de Médicos e Escritores.
Assim, ele punha em cena um elenco de EUS ali-
Os instintos que impelem o homem são polimor- mentados pelo leite amargo/azedo da ferocidade Nelson Rodrigues é um ícone brasileiro. Sua
fos, plurívocos, exigentes e tendem à busca do humana. Encanta-se pelos monstros. obra possui originalidade, invenção, força. “Flor
prazer em descarga rápida. Na dramaturgia de da obsessão”. Sabia ser necessário repetir para REFERÊNCIAS
Nelson, personagens banais rapidamente fazem “Enchemos o palco de monstros que nos intimi- não ser esquecido. Escreveu 17 peças pratica-
BAGGIO, Marco Aurélio. Os Concertos da Vida – Música Po-
dam para manter os nossos contidos (recalca- mente com as mesmas temáticas para, de um pular Brasileira. Campinas: Editorial PSY, 1996.
dos), para deles (em catarse e contraexemplo) lado, escarmentar seus demônios e, de outro,
__________. O Campo Psíquico no Teatro de Nelson Ro-
nos libertarmos”. para firmar-se como dramaturgo maior. Deci- drigues. Hoje em Dia. Belo Horizonte: 24 ago. 1989.
frou o brasileiro.
NELSON
96 É assim que ele acreditava na função terapêutico- __________. Delírios de Ciúmes. Estado de Minas. Belo
97
RODRIGUES É UM -psicanalítica do teatro. Evitando que nossos de- “É um pé-rapado, com complexo de inferiorida- Horizonte: 2 mar. 2002.
de, um narciso às avessas”. __________. Textos Insinceros – Dorotéia. Contagem: Santa
ÍCONE BRASILEIRO. mônios vicejem e pululem por aí.
Clara, 2006.
SUA OBRA POSSUI No teatro do absurdo que ele criou, sem saber “Cochichamos o elogio e berramos o insulto”. __________. Compêndio de Psiquiatria. Rio de Janeiro: Di-
Livros, 2011.
ou sabendo, Nelson Rodrigues usou e abusou do
ORIGINALIDADE, mais eficaz e definitivo incisivo elenco de meca- “Somos um povo burro”. HANNS, Luiz. Dicionário Comentado do alemão de Freud.
INVENÇÃO, FORÇA nismos de operação psíquicos, que são as quatro Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Desde o simples Não! - partícula de delimitação “Como é bom o doer de velhas penas”.
opções pulsionais em curto-circuito, acarretando
a sina de percorrer os circuitos mortíferos do sui- ou de contradição presente na fala corrente; pas-
sando pela negação - verneinung -, negação cons- “Até onde saberei ir na minha tarefa de surpreen-
cídio, do assassinato, do aborto. Enfim, buscam der o burguês com novos detalhes escabrosos?”,
ativamente a própria morte por escape extremo ciente de uma realidade desagradável - “Não que-
ro saber”; “Não tô nem aí”; “Nem te ligo”. diz Nelson.
de baixa qualidade para os conflitos que não sou-
beram resolver a tempo e a propósito. Nelson e seus personagens não aceitavam carpir
Utilizou por demais a repressão ou o recalque
- verdrangung - quando o personagem é cons- e sofrer as perdas que o destino lhes acometia.
Passados 22 anos de sua morte, após 30 anos de Nelson teve lutos demais, rápidos demais para
obra concernida e comemorando seu centená- ciente do fato, mas separa dele o afeto incômodo
indecente correlato, mantendo o afeto preso na elaborar. Suas 17 peças podem ser consideradas
rio de nascimento, podemos avaliar com maior tentativas mais ou menos bem/malsucedidas de
inserção e com maior argúcia, em plano largo, o goela do inconsciente.
perlaborar suas perdas. Sua vida transcorreu sem
verdadeiro valor de sua obra. e com estrela.
Negação da realidade do fato, do afeto, do even-
Nelson Rodrigues foi um gênio brasileiro, do- to é mecanismo psicanalítico rápido, barato, e
Acolher a crueldade da perda do objeto querido,
tado de talento e estro para o teatro. Forjou sua eficaz. O preço é que cria uma falha, um rombo
pessoa, patrimônio, amor, filho, ideal - que se foi
obra apesar da burrice racional. na cadeia significante do indivíduo.
A ARTE DE
IR ALÉM DOS
ESPETÁCULOS
VALMIR SANTOS1
A 66ª edição do Festival de Avignon, prevista para ais e federais. O período viu aflorar iniciativas afins
julho de 2012, tem como identidade visual a si- nas agendas culturais de Brasília, São José do Rio
lhueta de um homem com o braço direito erguido, Preto, Salvador e Recife, alinhadas ao time desbra-
dedo em riste, vociferando com um megafone na vador que já vinha com algum alento desde o final
mão esquerda. A jornada francesa sintoniza com o dos anos de 1980, início dos 1990: Londrina, Curi-
espírito do movimento global “ocupe” em praças, tiba, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro. 99
parques e calçadões. Concerne também ao pionei-
rismo de seu fundador, Jean Vilar (1912-1971). Em A despeito da falta de políticas públicas mais asser-
meados dos anos 1940, o ator e diretor deslocou tivas quanto ao papel dos festivais brasileiros - a
o foco tradicional dos edifícios teatrais parisienses maioria dos organizadores gasta todos os neurô-
para uma cidade de contornos medievais, cercada nios para viabilizar economicamente suas progra-
por muralhas, ao sul do país, onde o principal espa- mações até os 90 minutos do segundo tempo -,
ço para as artes cênicas era, e ainda é, ao ar livre: o essas coordenações e respectivas curadorias ainda
pátio do Palácio dos Papas, construção gótica usada se revelam tímidas quanto ao papel de agitador cul-
como residência pontifícia no século XIV. tural que poderiam assumir para si de maneira mais
convicta, incisiva e continuada, à la Jean Vilar.
Foi a partir da iniciativa de Vilar que a opção não
convencional passou a disputar holofotes com o Ou à la Nitis Jacon, a psiquiatra que inscreveu um
palco italiano, influenciando a percepção dos cria- modo singular de militância (arte + resistência) nos
dores e do público para todo o sempre. Evocar 44 anos do Festival Internacional de Londrina, o
Avignon aqui tem a ver com a capacidade de um FILO, dos quais ela assinou a direção artística por
festival fundir-se à cidade e, mais sublime ainda, afe- mais de 30 anos, praticando e ensejando projetos
tar a linguagem das artes cênicas que é, ou deveria de políticas públicas de cultura. Da fase amadora
ser, em suma, sua razão de existir. universitária à institucionalização, da mostra latino-
-americana à fase internacional mais abrangente, o
Sentimos falta desse ímpeto proativo no panorama encontro que transcorre na cidade do norte para-
atual dos principais festivais no Brasil, sejam eles na- naense atravessou a ditadura militar e reafirmou,
cionais ou internacionais. A década dos anos 2000, com a abertura democrática, a “evolução de uma
para ficar num recorte que nos é próximo, foi pró- consciência cada vez mais arguta da responsabilida-
diga no aporte de recursos das leis de incentivo de histórica da ação cultural”, como afirma a crítica
(públicos) combinado às verbas municipais, estadu- Mariangela Alves de Lima2. Pode-se indagar que
Cartaz do 66º Festival d’Avignon (2012)
ou temporadas. Costuma ser influenciada pela cional de Teatro de São José do Rio Preto, na 12ª
régua da recepção crítica em outras paragens. edição, e do Festival Internacional de Artes Cêni-
PROGRAMAR UM Apesar desse movimento, a tônica ainda é a da cas da Bahia, o FIAC, de Salvador, que vai para a
pouca margem para o desconhecido. Soa aco- quinta jornada. A sensação de processos unifor-
FESTIVAL TEM modado também o discurso da diversidade de mes nesses e nos demais pares, no entanto, deriva
MUITO A VER formas, conteúdos e geografias, como se, com
isso, isentasse os responsáveis pela empreitada
das demandas em captar recursos patrocinados e
da prioridade máxima delegada à composição da
COM CIÊNCIA E de dizer a que veio quanto aos anseios e à me- tabela de peças, coreografias e intervenções em
mória do evento. A sua incisão crítica e autocrí- detrimento de surpreender com ações ousadas
ARTE, OU SEJA, tica. A ambição sobre a prática e o pensamento que possam entrelaçar, também, coragem política,
COM REFLEXÃO do fazer teatral. O vínculo com o território a que sociabilidades e linguagens da cultura.
pertence. A instigação dos criadores locais.
E INTUIÇÃO No verbete “festival”, Patrice Pavis afirma que, às
não é da alçada dos certames deflagrar tais predica- PELA EQUIPE Outro exemplo de um festival longevo é o Porto vezes, nos esquecemos de que o adjetivo tam-
dos tangíveis aos governos. Mas a influência de um Alegre em Cena, que há 18 edições tem o mérito bém encerra o sentido de festa, referendando da-
festival cênico sobre moradores e visitantes, sua
LIDERADA POR UM de firmar uma porta permanentemente aberta aos tas ou consagrações religiosas desde a Antiguida-
propulsão ao ato coletivo, à vida comum, o cre- ARTICULADOR países sul-americanos (ponte que Salvador, Uber-
lândia, São Paulo e Santos ergueram para si em
de, como Osíris, no Egito, e Dionísio, na Grécia:
dencia à apropriação desse ativo. Independe se é
realizado por organismos públicos, entidades sem mostras voltadas à região ibero-americana). Em Estas cerimônias anuais marcavam um momen-
de sua existência. É preciso oferecer-lhe a dúvida, toda edição, o público gaúcho depara com mon- to privilegiado de regozijo e de encontros. Deste
fins lucrativos ou privadas.
a inquietação, o mistério do ainda desconhecido, tagens da Argentina e do Uruguai, obrigatórias na acontecimento tradicional, o festival conservou
a desconfiança da concepção paranoide da ver- percepção do diretor artístico e curador Luciano uma certa solenidade na celebração, um cará-
Programar um festival tem muito a ver com ciência ter excepcional e pontual que a multiplicação e a
e arte, ou seja, com reflexão e intuição pela equipe dade incontestada. Estimular sua humanidade, Alabarse, além de representantes de outras na-
sua expectativa, seu espanto, seu confronto com banalização dos modernos festivais muitas vezes
liderada por um articulador (ou mais de um) que ções cotejados anualmente. Uma vez assimilada a
a diferença e o oposto. [...] O Festival Internacio- esvaziam de sentido. [...] Este moderno ressur-
se espera sensível e informado. Segundo Sidnei difusão, como a prática de um festival pode intera- gimento do festival sagrado atesta uma profunda
nal de Londrina se propõe aos artistas e à popu- gir de maneira mais radical no fenômeno das tro-
Cruz, que por duas décadas coordenou o proje- necessidade de um momento e de um lugar onde
100 lação como alternativa à mediocrização política e
cas culturais e sociais? Houve ocasiões em que o 101
to Palco Giratório, do Departamento Nacional do intelectual e como referência de perseverança e um público de ‘celebrantes’ se encontre periodi-
SESC, elaborar atividades cênicas implica um exer- festival construiu uma circulação de peças em mão camente para tomar a pulsação da vida teatral,
lucidez quando escasseiam motivos para a espe-
cício sistemático entre a regularização e a inova- dupla com Buenos Aires e Montevidéu. Pergun- satisfazer às vezes a falta de ir ao teatro no in-
rança4.
ção. Esse conjunto de possibilidades depende do tas: como lidar daqui para frente com esse legado? verno, e, mais profundamente, ter a sensação de
que o lugar oferece, das condições socioculturais, Qual é a missão plausível na “maioridade”? pertencer a uma comunidade intelectual e espi-
Apesar de a idealizadora seguir como presidente
ritual encontrando uma forma moderna de culto
dos contextos político-econômicos, das demandas de honra do FILO, as edições recentes deixam
Vislumbramos que essa potencialidade pede e de ritual5.
e potencialidades da sociedade civil. “É importante a desejar em relação à contundência estética e
perceber que a ação política de fato a ser agen- mais ambição, por exemplo, no investimento
política de outrora.
em coproduções. O Núcleo de Festivais Inter- Pois de festa o Brasil entende. Cabe aos festivais
ciada é aquela que mergulha na negociação com-
nacionais de Artes Cênicas do Brasil já realizou consolidados abrir-se à incitação e exercer o pro-
plexa da articulação social de diferenças culturais, Considerando-se a linha de tempo da década pas-
dois projetos nesse sentido, com um espetáculo tagonismo desde o seu quintal para o mundo.
influenciando as redes de valores e significados que sada, não identificamos uma atuação orgânica entre
constituem o patrimônio consciente e inconsciente percorrendo as respectivas praças. Essa estraté-
os festivais citados quanto ao estabelecimento de
do corpo de uma sociedade” .
3
gia resultou saturada, entre outras razões, por-
conexões e rupturas nos campos artístico, político
que condicionava à circulação automática pelos 1ValmirSantos é jornalista e pesquisador de teatro. Consultor
e social. Via de regra, as coordenações gerais, dire-
Nitis Jacon não perdia tempo com platitudes no respectivos calendários. Somos partidários da co- da curadoria desta edição do FIT-BH, debutou na função de
ções artísticas e curadorias ficam reféns da progra- curador em 2011, no 14º Festival Recife do Teatro Nacional.
texto do programa de mediação com o público. produção caseira, na qual um festival invista com
mação em si, raramente colocada em transversal 2LIMA, Mariangela Alves de. Apresentação. In: JACON, Nitis.
A cada ano ela escrevia um editorial em que le- dignidade e planejamento em artistas do seu pe-
ou capaz de adquirir capilaridade não protocolar Memória e recordação: Festival Internacional de Londrina - 40
vantava questões, expressava seu ponto de vista daço, às vezes em simbiose com convidados de anos. Londrina: edição da autora, 2010, p. 10.
junto à comunidade. Os esforços são empreendi-
sem peia. Vide o trecho do documento vindo à fora, e essa obra carregue o nome da respectiva 3
dos para trazer alguma companhia bem cotada no CRUZ, Sidnei. Palco Giratório: uma difusão caleidoscópica
luz naquela memorável edição de maio de 1992, cidade que a promoveu. das artes cênicas. Fortaleza: SESC-CE, 2009, p. 23.
circuito europeu ou pinçar algum ícone redivivo ou
4 JACON, Nitis. Memória e recordação: Festival Internacional
a 24ª, a cinco meses do impeachment de Collor: recente. Esses procedimentos são legítimos, é evi-
A rigor, programação não é problema nos festi- de Londrina - 40 anos. Londrina: edição da autora, 2010,
dente, mas não esgotam os desafios. p. 200.
Se o indivíduo, no melhor dos regimes políticos, se vais. As seleções são susceptíveis à valsa do que 5PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva,
conformar à segurança instituída, a uma vida sem vem à baila. Mesmo as iniciativas que estão nos
A escolha das criações brasileiras, igualmente, se- 1999, p. 166.
buscas, sem desejos, sem dúvidas e sem pergun- primeiros anos de paleta internacional defendem
gue o faro dos programadores em visita a festivais
tas, estará condenado ao tédio e à mediocrização bem suas escolhas. É o caso do Festival Interna-
EXPEDIENTE
FIT Revista 4
IDEALIZAÇÃO
Marcelo Bones e Rodrigo Barroso
COORDENAÇÃO EDITORAL
Paula Senna
SUPERVISÃO EDITORIAL
Valmir Santos
PROJETO GRÁFICO
Zoo Comunicação
REVISÃO
Trema textos.
TRADUÇÕES
Jimena Castiglioni, Paula Soares Faria e Regina Brito
COLABORADOR
Tiago Penna
IMPRESSÃO
Rona Editora
AGRADECIMENTOS
Eugênio Sávio, Guto Muniz e Gustavo Falabella