Você está na página 1de 53

POLÍTICAS PÚBLICAS Sabemos que o FIT-BH, por sua qualidade, seu

alcance e sua respeitabilidade nacional e interna-


Ao lado de inúmeros projetos especiais inseridos
nesta edição do Festival, como o Cine FIT, o FIT-
cional, cumpre vários papéis. O primeiro e mais -Formação, a Rodada de Negócios, a Virada Tea-
DE ARTES CÊNICAS: importante é o de ofertar ao conjunto de cida-
dãos belo-horizontinos espetáculos teatrais iné-
tral, a V Mostra Movimentos Urbanos e as Rodas
de Conversas, temos a satisfação de apresentar,
ditos na cidade, diversos na estética, na origem aos interessados na discussão das artes cênicas,

AÇÃO, geográfica e em suas linguagens. Esta edição su-


blinha mais que nunca os diálogos do teatro com
a 4ª edição da Revista FIT. Com esta iniciativa,
reiteramos a convicção de que a REFLEXÃO é

FORMAÇÃO, outras formas de expressão artística e a apropria-


ção do espaço público pela arte. O conceito de
a etapa mais importante como mediadora das
ações de conscientização e de transformação. Em

REFLEXÃO E “teatralidade e seus deslocamentos”, percorrido


pelos curadores Marcelo Bones, Yara de Nova-
seus 21 artigos, com temas como a crítica teatral;
o apontamento de novas tendências cênicas; o

TRANSFORMAÇÃO es e Grace Passô, e que norteou a seleção dos


espetáculos nacionais e internacionais poderá ser
conferido nas 154 apresentações teatrais ao lon-
patrocínio às artes; a ocupação de espaços públi-
cos, dentre outros, a Revista FIT apresenta a livre
opinião de nossos convidados-articulistas: profes-
go do Festival, que acontecerá em 60 diferentes sores, críticos de arte, atores, diretores, jorna-
THAÏS VELLOSO locais da cidade, cobrindo todos os centros cul- listas, tanto nacionais quanto internacionais. A 4ª
COUGO PIMENTEL1 turais geridos pela Fundação Municipal de Cul- Revista FIT, também lançada em edição trilingue,
tura, seus teatros municipais e mais 29 praças, em meio digital, presta, ainda, uma merecida e
parques e ruas de Belo Horizonte. A ênfase dada oportuna homenagem aos 30 anos do Grupo
A Prefeitura de Belo Horizonte - PBH e a Fun-
pelo FIT-BH aos espetáculos de rua e, portanto, Galpão, que projeta o nome de Belo Horizonte
dação Municipal de Cultura - FMC, comprome-
gratuitos, reflete uma deliberada intenção de uni- no cenário internacional das artes cênicas, e aos
tidas com a transformação de nossa cidade pela
versalização do direito constitucional à cultura e, 100 anos de nascimento de Nelson Rodrigues,
via de ações públicas transparentes, democráticas
ainda, a valorização dos espaços públicos como um dos mais importantes e consagrados drama-
e permanentes, comemoram a realização da 11ª
cenários que nos convidam ao exercício da liber- turgos brasileiros.
edição do Festival Internacional de Teatro Palco e
dade, da sociabilidade e da fruição.
Rua de Belo Horizonte - FIT-BH e o lançamento
do 4º número da Revista FIT. Esta edição, reali- Já não se pode falar em desenvolvimento urbano
zada majoritariamente com recursos públicos da Além de ser a mais importante política de fomen- e humano dissociado de desenvolvimento cultu-
Prefeitura de Belo Horizonte (83%), conta ainda to às artes cênicas da cidade, formadora e reno- ral. Como gestores públicos de cultura, reafirma-
com a correalização da Associação Pró-Cultura e vadora de plateias, o Festival, ao longo de seus 18 mos, com esta publicação, nosso desejo e missão
Promoção das Artes e as imprescindíveis parce- anos de existência, tem oportunizado aos artistas de transformar a realidade pela potencialização
rias estabelecidas com a Petrobras, os Correios, profissionais e em fase de profissionalização inú- das expressões artísticas. Que o FIT-BH, exem-
a Oi e a Fundação Nacional de Artes. Da mesma meras possibilidades de aprimorar sua formação plo vivo dessa potência, cumpra sempre a asser-
forma, não realizaríamos um projeto de tal en- com intensas ações de intercâmbios e convivên- tiva que nos legou o poeta russo Vladmir Maiako-
vergadura sem o apoio incondicional das diversas cias. Processos criativos, pesquisas de linguagens vski (1893-1930): “A arte não é um espelho para
secretarias, fundações e autarquias da PBH, “par- e construções dramatúrgicas são estimulados refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”.
ceiros internos” fundamentais no desenho do FIT. pelo Festival, propiciando aos interessados a vi- Desejamos um ótimo Festival e uma excelente
A todos vocês, o nosso aplauso. vência de novas experiências artísticas. leitura para todos.

1
Thaïs Velloso Cougo Pimentel é presidente da
Fundação Municipal de Cultura.
OPERAR ATOS RITUAIS um deseja que ele seja, pois é teatral o que quer e
pode ser teatro. Inclusive quando ele é subtraído,
(Peru); Gólgota Picnic (Espanha); Ópera dos Vivos (São
Paulo) e Naquele Bairro Encantado (Minas Gerais).
não está lá segundo as convenções reconhecíveis.
OU SIMBÓLICOS COM Na leva dos trabalhos limiares no FIT, de frontei-
Às vezes, as perspectivas social e política atra-
vessam dilaceradamente o indivíduo, a célula de
VERDADE ras diluídas, podemos listar as produções Oxlajuj
B’Aqtun (Guatemala); Quiet (Israel); Lisboa (Itália);
uma sociedade, como em El Autor Intelectual e
Los Autores Materiales (Colômbia), às voltas com
Viajantes Móveis e Transfiguration (França), Theatre os conflitos internos daquele país.
POR GRACE PASSÔ, (República Tcheca), Translunar Paradise (Inglaterra),
Bença (Bahia), Depois do Filme e Estamira (Rio de
MARCELO BONES E Janeiro), O Idiota e Ópera dos Vivos (São Paulo); Res- A DRAMATURGIA
YARA DE NOVAES1 sonâncias e Dressur + Play again (Minas Gerais).

Outra variante em termos de conteúdo e forma


DO ESPECTADOR
é o acercamento das realidades social e política.
Interessa-nos essa troca de lugar, a inversão de
O verbo “curar” e o substantivo “curadoria”, am- acolhemos criadores obcecados pela síntese, O desafio de transpô-las para a cena conforme o
expectativas quando o próprio espectador é co-
bos envolvem cuidados. No exercício dessa fun- pela depuração daquilo que os torna específicos, relato documental da história recente de um país
locado na condição de “ator”, às vezes cúmplice
ção compartilhada, fizemos as vezes de funâmbu- particulares, difíceis de ser nomeados, classifica- ou o testemunho de um cidadão sobre a violên-
na imersão narrativa sem que os artistas interajam
los no arame: entre a responsabilidade atávica da dos. É como se cada um portasse uma cosmogo- cia inscrita na memória de sua pele.
efetivamente - a inclusão se dá pela composição
cultura na administração pública e o risco que a nia, um oceano. Todos estão por inteiro. Cada
espacial, a proximidade que catapulta para o inte-
arte reivindica de todos que lhe pedem passagem. um manifesta o seu desejo de teatro. As realidades políticas submetidas ao teatro ex-
rior de uma sala de estar, de uma cozinha ou de
põem uma vontade de presentificação do pas-
um vagão de um trem.
Nosso passaporte são as artes cênicas. Entre as No verbete Teatralidade, do dicionário organiza- sado. A história não surge como pano de fundo,
questões que movem os sentidos da curadoria do pelo pesquisador francês Jean-Pierre Sarrazac, mas como unidade global, com direito a fissuras,
O espectador não é somente aquele que vai “com-
nesta 11ª edição do Festival Internacional de Tea- recém-lançado no Brasil, lemos que “A teatralida- sem delimitar um episódio desse ou daquele pe-
pletar” o espetáculo, mas torna-se de fato um ele-
tro Palco e Rua de Belo Horizonte, o FIT-BH, está de, considerada síntese alquímica, gera por fim ríodo. A história é submetida ao crivo do teatro,
mento dramatúrgico, um “coautor” mais a fundo.
o conceito de “teatralidade e seus deslocamentos”. um desaparecimento do texto sob seu potencial ao recorte dos artistas.
universalista, pois recorre a outras sensações; o
A relação com os espaços públicos é cara à história
Citamos o exemplo da dramaturgia expandida potencial substitui o real; o devir, o ser; o virtual, Elencamos dramaturgias que tangenciam um po-
do FIT-BH. Compreendemos sua territorialidade
para além da literatura dramática, escrita também o atual. A interpretação atenua a irredutibilidade lítico, um governo autoritário, mas o protagonista
para além das praças e dos parques. Pautamos,
por meio do corpo, do espaço cênico, da alteri- da coisa interpretada”2. é sempre o teatro, a organização desse material
por exemplo, o auditório da antiga Faculdade de
dade plantada na paisagem da praça. A interface levantado. Algumas obras abordam indiretamente
Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), hoje ocu-
com outros campos artísticos, como o cinema, o Há alguns códigos de cena que, em princípio, não são fatos históricos prementes, como os movimentos
vídeo, a dança e as artes visuais multiplicam ain- reconhecíveis como teatro, mas constituem o teatro por independência na chamada Primavera Árabe
da mais essas possibilidades de “textos” para o que essa equipe criadora assim deseja, ampliando a ou períodos dolentes como as ditaduras militares
espectador imerso nos fragmentos do cotidiano potência dessa arte. Às vezes, a falta de teatro para chilena e brasileira. Mas a geopolítica, mais uma
digital. Se antes a vida estava por um fio, hoje ela alguns pode significar justamente a potência de teatro vez, desponta submetida ao que é singular para
está por um frame na reinação das telinhas. para outros, por mais paradoxal que pareça. determinado agrupamento teatral.

Um festival que abarca tamanha diversidade de Quando se ouve que “isso não é teatro”, pode es- Circunscrevem essa linha de atuação espetáculos
linguagens e culturas pode induzir a uma progra- tar aí toda a potencialidade desse teatro do avesso. como El Último Ensayo e Sin Título - Técnica Mixta
mação liquefeita. Nossa percepção é contrária: Supomos e raciocinamos que teatro é o que cada
pado pela Secretaria Municipal de Educação. O Romeu e Julieta, que foi recentemente reapresen- Servidor de Dois Estancieiros (Porto Alegre) e Mis-
edifício que foi palco de um dos episódios de re- tada em Londres e depois percorrerá outros esta- tero Buffo (São Paulo).
sistência política à ditadura militar por estudantes, dos. Sua produção mais recente, Eclipse, também
professores e funcionários universitários vai abri- foi escalada para comemorar os 30 anos do cole- Como certa vez expuseram com muita felicida-
gar Villa+Discurso. A montagem do Chile sonda tivo. Como ele, o Yuyachkani, do Peru, que tam- de os italianos Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti,
o passado repressor evocando criticamente sua bém vem com dois trabalhos, já soma 41 anos de ao discorrerem sobre o coletivo americano The
ex-presidente, Michelle Bachelet. Ela foi presa, história. Do Rio Grande do Norte, o Clowns de Living Theatre, o fundamental é operar “atos ri-
teve o pai assassinado sob o regime do general Shakespeare atravessa os 18 anos com Sua Ince- tuais ou simbólicos com verdade”4, não importa
Augusto Pinochet, mas seu governo resultou bas- lença, Ricardo III, sob direção de Gabriel Vilela, o o lugar. Eis a tarefa que acreditamos caber às mu-
tante pragmático quanto a esses rastos. mesmo do mineiro Romeu e Julieta. A Compa- lheres e aos homens das artes cênicas.
nhia do Latão se aproxima dos 15 com Ópera dos
Vivos. Enquanto a mundana companhia, grafada Nossos sinceros desejos de boa viagem a todos
Instiga-nos relativizar o que habitualmente é es-
assim em minúsculas, vai a Dostoievski, O Idio- os espectadores e criadores.
tabelecido como o lugar do teatro na cidade. A
ta, catalisando atores de núcleos expressivos da
descentralização do Festival em Belo Horizonte
cena paulista, como Oficina, Vertigem e Compa-
agenda apresentações no Centro Cultural Padre
nhia Livre. Isso reflete que a concepção de grupo
Eustáquio, da Fundação Municipal de Cultura, e
fixo tem mudado. As pessoas estão se vinculando
em equipamentos da região do Barreiro, como 1
Grace Passô é atriz, dramaturga, diretora e cofundadora do
também a trabalhos cooperativados, suscetíveis a
o Parque das Águas e o Centro Esportivo Milio- Grupo Espanca!; Yara de Novaes é atriz, diretora, profes-
intercâmbios, a estados moventes. sora de teatro e cofundadora do Grupo 3 de Teatro; Marcelo
nários. Entre as demais obras que ressignificam o
Bones é diretor, professor de teatro, cofundador do Grupo
espaço ao ar livre, estão Domínio Público (Espa- Teatro Andante e Diretor Artístico do 11º FIT-BH. Os três
Dentro desse teatro contemporâneo, há, e con-
nha), Time Out (Alemanha) e Por Que a Gente Não assinam a curadoria desta edição. O presente artigo contou
tinua havendo, espetáculos que têm suas raízes com a colaboração do jornalista Valmir Santos, consultor desta
É Assim? Ou Por Que a Gente É Assado? (Ceará)
na tradição do teatro popular, cuja formação da curadoria do FIT-BH 2012.
roda é fundamental. 2
SARRAZAC, Jean-Pierre. Léxico do drama moderno e contem-
Esta edição do FIT contemplará uma estreia na- porâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 180.
cional. Belo Horizonte assistirá em primeira mão
Nessa ágora, o artista não tem frente ou verso,
3
LIMA, Mariangela Alves de. Apresentação. In: ABREU, Luis
ao novo espetáculo protagonizado pelo ator pa- Alberto de. Comédia popular brasileira. São Paulo: Fraternal
esquerda ou direita. É a partir dessa visão do
raense Cacá Carvalho, umnenhumcemmil, des- Companhia de Artes e Malas-Artes, 1997, p. 11.
todo que ele está desafiado a conquistar a aten-
fecho da trilogia em torno da obra do escritor 4
CRUCIANI, Fabrizio e FALLETTI, Clelia. Teatro de rua. São
ção do público. Como situa a crítica Mariangela Paulo: Hucitec, 1999, p. 89.
italiano Luigi Pirandello, sob direção de Roberto
Alves de Lima, nesse tipo de manifestação “o pú-
Bacci. Esse italiano também integra a programa-
blico é detentor de uma rica herança e é possível
ção com o seu coletivo da Fondazione Pontedera
reativar esse imaginário. Este teatro não quer ser
Teatro. Desdobrando uma homenagem ao poeta
revelação, mas, antes, confirmar e exaltar a ri-
Fernando Pessoa, adaptando seu O Livro do De-
queza e a legitimidade da cultura do público”3.
sassossego para o palco, em Abito, e celebrando
seus heterônimos no espetáculo de rua Lisboa, São linguagens herdeiras das mais diversas esté-
com atores cantando, declamando poemas ou ticas teatrais, e elas estarão representadas por
pedalando em bicicletas. espetáculos de rua e de palco influenciados pela
Commedia dell’Arte, seus arquétipos populares
O teatro de grupo é outro segmento prestigiado universais, além da tradição do picadeiro.
neste evento, como dão conta edições memo-
ráveis do FIT. O Grupo Galpão reestreia aqui a Nessa esteira, estão presentes A Farsa do Advo-
remontagem do seu maior sucesso, a obra-prima gado Pathelin (Presidente Prudente-SP), Miséria,
SUMÁRIO
CORPO A CORPO DAS ARTES DE PERFORMANCE E A
EXPERIÊNCIA NO PLURAL
FERNANDO MENCARELLI

50
COMPROMISSO E RENOVAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO DOS

12 54
OCUPANDO AS RUAS DE BELO HORIZONTE OU OS
FESTIVAIS DE ARTES CÊNICAS ESPAÇOS PÚBLICOS NÃO MORRERAM
GUILLERMO HERAS JULIANA GONZAGA JAYME

18 PARA UM PARADIGMA REFLEXIVO E PARTICIPATIVO


ALBERTO LIGALUPPI EM COLABORAÇÃO COM LEANDRO OLOCCO
O DISSIDENTE TEATRO BRASILEIRO
ALEXANDRE VARGAS 59
63 GRUPO GALPÃO: UMA TRAJETÓRIA CAMALEÔNICA
EDUARDO MOREIRA

23 UM NOVO PARADIGMA PARA UMA NOVA ETAPA

66
CARLOS GIL ZAMORA PATROCINAR É
COMPACTUAR COM A ARTE
REGINA STUDART

26
FIDAE, UM TESOURO A DESCOBRIR
(um festival em um país e um país em um festival)

71
IVÁN SOLARICH
PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO SEMPRE DE MÃOS DADAS
BIA MORAIS

FALTA DE IMAGINAÇÃO
CRÍTICA E AUTOCRÍTICA 74
30
RICARDO LIBÓRIO
LEO CUNHA

35 FESTIVAIS: INFORMAR, FORMAR E TRANSFORMAR


GLÓRIA REIS
O SENTIDO DA CRÍTICA
FÁTIMA SAADI 78

38
O TEATRO BRASILEIRO: IMPASSES E TENDÊNCIAS NO ANO DA GRAÇA
DE 2012 OU UM LEXOTAN, POR FAVOR!
NOTÍCIA DA CRÍTICA
MACKSEN LUIZ 83
LUCIANO ALABARSE

AS FORMAS NÃO CONVENCIONAIS E O PÚBLICO DE TEATRO


CÍRCULO RODRIGUIANO
MARCO ANTÔNIO BRAZ 88
43
ADÉLIA NICOLETE

90
A RELEVÂNCIA DA OBRA RODRIGUIANA
SOB O PRISMA DA PSICANÁLISE
MARCO AURÉLIO BAGGIO

46
O ATO DO ESPECTADOR: EMBRENHAR-SE
EM ZONAS DESCONHECIDAS
FLÁVIO DESGRANGES
A ARTE DE IR ALÉM DOS ESPETÁCULOS
VALMIR SANTOS 99
COMPROMISSO E
RENOVAÇÃO NO
DESENVOLVIMENTO
DOS FESTIVAIS DE
ARTES CÊNICAS
GUILLERMO HERAS1

Primeira premissa: se os festivais cênicos não existissem,


teriam que inventá-los. Segunda premissa: aqui e agora,
depois de doze anos de travessia do novo século, falta uma 13
reflexão profunda sobre aqueles discursos que possibilitem
a sustentabilidade e a renovação de que os festivais pre-
cisam para continuar servindo ao entorno cidadão para o
qual foram criados.

Se fôssemos historiadores, teríamos que assumir que as


competições dramáticas foram fundadas já na Grécia Clás-
sica, delas participavam os maiores autores da época e elas
tinham todas as características de um possível festival: um
tema concreto, financiamento da cidade, programação di-
ferenciada do habitual, cerimônia cidadã na recepção dos
espetáculos e criação de espaços de comunicação cultural
diferenciados com respeito à vida cotidiana. Poderíamos
pensar também em certas manifestações da Espanha no
Barroco, sobretudo antes da comemoração da Semana
Santa (as festas da Tarasca e os carnavais), ou em algumas
propostas desenhadas para os reis ingleses e franceses em
diversas épocas, que poderiam ter um ar de festival, inde-
pendentemente das classes sociais concretas que assistis-
sem às representações destes eventos.
TRANSFIGURATION
Olivier de Sagazan - FRANÇA - FIT 11ª Edição (2012)
Foto: Didier Carlucio e Olivier de Sagaza
Na Europa do século XX o exemplo de Avignon turnê pela região. Nem eventos especiais, nem Para eles é suficiente navegar pela internet e se- se transformar em uma atitude na qual os festivais
é utilizado como referência de início dos festivais fóruns de discussão, nem encontros profissionais lecionar vários espetáculos que normalmente já fossem verdadeiros artífices de INTERCÂMBIO E
contemporâneos, mas não podemos esquecer e com o público, nem coerência nos espetáculos oferecem uma segurança por ter sido um sucesso INTEGRAÇÃO.
que, em Mérida, sobre as ruínas do teatro ro- selecionados, nem projeção para o futuro, nem em outro festival.
mano é realizado um projeto para os clássicos análise do que essa cidade realmente precisa no Sempre voltando ao conceito de FESTA, de evento
greco-latinos antes da guerra civil espanhola, ou que se refere a um programa de artes cênicas; Um festival hoje em dia pode cumprir critérios que junta em um tempo e um espaço precisos os
que cidades como Nancy, Wroclaw, Belgrado, apenas uns fogos de artifício para que sejam as- bem diferenciados. Pode ser um festival total- elementos suficientes de surpresa, comunicação e
Pontedera e Edimburgo se jogam nos anos 1970 sociados à maior festa da cidade. É claro que são mente especializado em um gênero (infantil e prazer cultural que talvez não estejam presentes
desenvolvendo projetos de festival que, em al- necessários os festivais locais, regionais e autôno- juvenil, marionetes, dança contemporânea, balé todos os dias para que se possa desfrutá-los.
guns casos, transcendem o tempo em que foram mos, mas, sem dúvida, as suas estratégias inter- clássico, performances, teatro clássico, dramatur-
criados. É claro que na América Latina desde co- nas deviam ser diferentes do que as propostas no gia atual, circo, etc.) ou bem pode ser absoluta- Felizmente existem no planeta inteiro festivais que
meços dos anos 1970 acontecem aventuras es- entorno do nacional e internacional. mente generalista. Não me parece que isso seja atendem a essas linhas de compromisso e reno-
pecíficas, tais como Manizales, Caracas, Londrina, um debate interessante. Acho que as duas opções vação que são necessárias para que uma ação
Bogotá, Santiago de Chile, Córdoba, São José de Seguinte questão: para quem é desenhado um são totalmente válidas, mas eu, sim, gostaria que cultural não sofra de esclerose. A difícil tarefa de
Costa Rica, Guanajuato… Seguidas, anos mais festival? Para os profissionais do meio? Para a sa- aparecesse como personalidade própria de cada um diretor, curador ou gestor de festivais tem sido
tarde, por Buenos Aires, Caracas, Rio de Janeiro, tisfação dos políticos que estão no poder nesse festival a definição dos seus eixos de comunicação correspondida com excelentes estratégias que
Manta, São Paulo, Belo Horizonte, Lima, La Paz, momento? Para os programadores de outros com os dois aspectos fundamentais nos quais vai não devem se embasar pela saturação ou medio-
Panamá e muitos outros, considerando a diversi- festivais? Ou para os cidadãos do território onde desenvolver a sua atividade: o dos cidadãos e o cridade de outros festivais carentes de conteúdos.
dade dos seus objetos, o orçamento financeiro acontece o festival? As perguntas são claras, mas, do meio criativo e profissional que o acolhe.
e o entorno sociocultural em que se formaram. quando analisamos muitos dos festivais que acon- Para continuar aprofundando no tema de pensar
tecem hoje no mundo, podemos comprovar que os festivais para o futuro, levo um tempo pro-
Com o passar de um século para o outro, pode-se eles são uma “loja” da grande variedade de estilos pondo algumas questões que são de bom senso
constatar que cada país tem multiplicado, por um e tendências de criação artística do mundo, mas e que poderiam abrir possibilidades para um de-
numero às vezes incrível, a quantidade de festivais em uma fusão confusa quanto à proposta artísti- ACHO QUE NÃO senvolvimento mais profundo dos festivais com
que se desenvolvem no seu território. E é aqui que ca e social. Acho que não são muitos os festivais caráter internacional. Entre essas questões estão:
14 deveríamos começar a primeira reflexão para ten- que realmente têm um discurso ético, estético, SÃO MUITOS OS criar um autêntico banco de dados dos festivais 15
financeiro, social e sustentável. Por outro lado do mundo, separados em categorias por regi-
tar criar neste artigo um pequeno mapa de fraque-
zas e fortalezas que aparecem hoje no horizonte são muitos os que ou bem reprodu-
FESTIVAIS QUE ões, pelas suas características específicas e pelas
dos festivais das artes cênicas da Ibero-América. zem identicamente as fórmulas dos REALMENTE TÊM suas linhas de programação; abrir portais de in-
realmente criativos, ou bem acham formação virtual que mostrem as características
São realmente festivais todas aquelas atividades suficiente colocar na grade uma acu- UM DISCURSO dos festivais e permitam uma comunicação mais
mulação de títulos, nomes e compa- fluida com os criadores do mundo inteiro - esses
que se declaram como tais? Essa pergunta que
nhias sem atender ao eixo central do
ÉTICO, ESTÉTICO, portais, coordenados por órgãos públicos ou par-
geralmente chateia os gestores de festivais de pe-
queno porte deve ser entendida em um nível que por que e do para quem de qualquer FINANCEIRO, ticulares, serviriam para que neles se colocassem
não tem a ver com a quantidade de espetáculos projeto cultural. Hoje em dia, está as ofertas de companhias, grupos e criadores do
que há na programação, e, sim, com o DISCUR- surgindo um novo modelo de pro- SOCIAL E país para as direções dos festivais, com o objetivo
gramador que poderíamos chamar de fazer parte da programação -; criar organiza-
SO interno do festival. Acho que muitas vezes se
ironicamente de: “agente youtube”.
SUSTENTÁVEL ções específicas de diretores de festivais (sei que
confunde o que pode ser um festival com outro
modelo de evento similar, mas com característi- existem algumas, mas podem se estender e me-
cas próprias, assim seja uma mostra, uma feira, lhorar) para tratar dos problemas concretos dos
um ciclo ou simplesmente uma programação que eventos; criar critérios do âmbito territorial de
esconde que nessa cidade não existe uma tem- Insisto em que estas reflexões têm a ver com um festival, mostra, bienal ou feira; criar cumplici-
porada regular de teatro. Esse hábito tem sido aqueles festivais que queiram transcender as suas dade com os possíveis espectadores que podem
muito utilizado, por exemplo, na Espanha. Muitas fronteiras para apostar numa certa “glocalida- assistir às apresentações programadas; colocar o
prefeituras substituem programações habituais ou de”, ou seja, que essa dialética tão interessante cidadão, outra vez, no eixo do discurso da sua
de temporada para utilizar o seu orçamento em que produz possa mostrar as criações que de- importância como protagonista na participação
um evento pontual no qual colocam o nome de terminam a identidade do nosso entorno para dessa festa, sendo tão importante como o pró-
festival, e ainda por cima com o adjetivo interna- contrastá-las com aquelas que vêm de qualquer prio artista, na comemoração do festival; estabe-
cional, quando o conteúdo da sua programação parte do mundo. Disso, vem a ideia de manifes- lecer critérios internos na própria programação
é: vários grupos locais ou regionais e uma com- tar uma característica de interculturalidade que, para esclarecer os diferentes segmentos que po-
panhia estrangeira que nesse momento está em alheia a qualquer tentação de exotismo, pudesse dem ser programados (internacionais, nacionais
e locais), visto que os seus sistemas de produção podem
condicionar a assistência aos seus espetáculos se o recep-
tor não tiver a suficiente informação; favorecer as copro-
duções entre festivais com criadores, tanto do próprio país
como do estrangeiro, procurando novas formas além da já
conhecida forma de pagamento de algumas apresentações
desse produto nesse festival; procurar formas de promoção
compartilhadas por vários festivais; apostar no risco e na
pesquisa e não somente em produtos já avaliados por mer-
cados estabelecidos, sejam estes tradicionais ou das “novas
tendências”; apoiar as dramaturgias vivas, tanto de autores
com currículo como dos novos, para fugir do monopólio
de certos “espetáculos de festival” baseados em fórmulas
fáceis de impacto visual ou efeitos banais; pesquisar em to-
das as formas de divulgação das redes sociais e dos novos
sistemas de comunicação cidadã e aproveitar as novas tec-
nologias para conseguir uma dinâmica melhor nos sistemas
de transferência de informação entre festivais; transformar
os festivais em verdadeiros fóruns de debates, pesquisa e
análise de todas as áreas das artes cênicas e insistir na ima-
gem do festival como cerimônia ou festa de convivência en-
tre criadores e espectadores.

Finalmente, um apontamento que considero essencial na


nossa situação atual: os festivais podem e devem ser a re-
16 ferência para permitir a mobilidade dos artistas, e dos seus 17
projetos de produção. É o momento de repensar profun-
damente sobre a relação do discurso dos programadores
com o dos criadores. E nesse sentido os curadores e dire-
tores de festivais podem ajudar muito, com a ideia de não
ser simples “compradores” de propostas, e, sim, cúmplices
e corresponsáveis de projetos que ajudem no desenvol-
vimento de possibilidades produtivas dos sonhos criativos
dos artistas. Os festivais são excelentes plataformas para
mostrar espetáculos que não têm saída fácil em mercados
convencionais. Por isso um diretor ou curador de festival
deve se transformar muitas vezes em um descobridor de
talentos e de projetos de elevado valor criativo, mas alheios
aos mercados de consumo.

Olhemos por onde olhemos, os festivais são imprescindí-


veis para garantir a boa saúde da realidade cênica de um
país, além de ser uma aventura compartilhada que, sem
dúvida, vale a pena ser vivida em toda a sua intensidade em
qualquer parte do mundo onde se acenda a chama de um
festival com vocação de risco, renovação e compromisso.

1
Guillermo Heras é formado pela Real Escuela de Arte Dramático y
Danza de Madri. Foi diretor do grupo teatral Grupo Tábano (1974-1983)
e do Centro Nacional de Nuevas Tendencias Escénicas (1983-1993). É
Secretário Executivo do Programa Iberescena.
PARA UM
PARADIGMA
REFLEXIVO E
PARTICIPATIVO
ALBERTO LIGALUPPI1
em colaboração com
LEANDRO OLOCCO

Vamos começar com dois olhares ao tema que


nos convoca, que podem representar alternativas
válidas de referências: o estado atual dos festivais
de teatro na América Latina.
18 19
O Festival Today Today, de Maputo, é organizado
conjuntamente pelo célebre escritor de novelas
policiais Henning Mankell e pela reconhecida
feminista e artista africana Manuela Soeiro. Eles
também são os encarregados do Teatro Aveni-
da da mesma cidade. Os convidados e os artistas
colaboram em parceria com as tribos da savana
africana, lutam contra a malária e trabalham em
acampamentos de crianças com AIDS. Esse inter-
câmbio, que é pouco comum em festivais, levan-
ta uma reflexão interessante entre o fato criativo
e a extrema crise social.

O Festival Oerol, que acontece na ilha Ters-


chelling, ao norte dos Países Baixos, diferente
do Today Today, tem caráter regular e transforma
ESCRAVO - A CANÇÃO DE UM EMIGRANTE
toda a ilha em um espaço de diálogo contínuo Farm in The Cave - REPÚBLICA TCHECA - FIT 9ª Edição (2012)
entre o artístico e o social. Terschelling vira um Foto: Guto Muniz

grande cenário fantástico nos dias do festival.


Ambos os festivais se caracterizam, além das suas A grande efervescência nos anos 1990, causa- a distância se reduz ao zero e o relógio internacional
maravilhosas paisagens, por sua programação e ló- da por circunstâncias políticas internacionais, tais aproxima as suas agulhas, os grupos não têm o tem-
gica de organização, pelos seus espaços de encon- como a queda da União Soviética e o avanço do po necessário para se encontrar e conseguir reflexões
tro reflexivo e pela significação social que vincula o neoliberalismo como modelo dominante, deixou de conjunto. Fica difícil conceber um paradigma que
evento com os seus habitantes e com os visitantes. que a economia mandasse nas ideias. Ou seja, os esteja centralizado no fato artístico com as circunstan-
festivais começaram a ser pensados de acordo com cias acima descritas.
Os festivais de teatro deviam ser, de maneira ge- a sua viabilidade econômica. Só podem participar
ral, o encontro imprescindível e essencial entre os grandes grupos de teatro que resistem a turnês, O fato artístico cênico se desenvolve de maneira única
o artista e o público que constitui o fato teatral. É e muitas agrupações com talento, mas com pouca em cada apresentação. A virtude do teatro, em con-
festival porque é comemoração e festa, é opor- capacidade de gestão, ficam para trás. O vínculo traste com uma época marcada pela produção em
tunidade de apreciar as diferentes expressões e humano que era a característica principal desses série e a consequente eliminação do artesanato em
de conhecer as peças e realidades de grupos de encontros começa a se perder, assim como as par- quase todos os níveis, está justamente no seu cará-
teatro da América Latina e do restante do mun- ticularidades das propostas artísticas. No Festival de ter humano, na sua arte específica enquadrada em um
do. Revisemos brevemente a sua história em Londrina já se falava, na década de 1990, da ideia tempo e um espaço delimitados. Devemos imitar a
nosso continente. de festivais temáticos como possível solução de um essência do teatro, a reflexão e a unidade, e deslocá-la
problema que começava a se perceber. para a dinâmica dos nossos festivais.
Os festivais latino-americanos de teatro já têm
O Japão tem iniciado um processo que pode nos ser-
uma boa trajetória. Em 1961, a Casa das Amé-
vir como referência. Lá se materializou (se fez carne) o
ricas de Cuba convocou o Primeiro Festival de
Teatro da América Latina, que se transformou em
OS FESTIVAIS conceito de ‘glocalização’ - que diz respeito a achar o
local no global, o particular no massivo - e isso se traduz
Festival Internacional em 1964. Mas foi o Festival DE TEATRO em projetos como AIR (Artists In Residence), em que os
Internacional de Teatro, realizado em Manizales
(Colômbia), que pôde mostrar, desde sua pri- DEVIAM SER, DE vínculos e o intercâmbio fazem parte do fato artístico.
meira edição em 1968, a maior continuidade na
América Latina.
MANEIRA GERAL, A somatória das perguntas referidas neste artigo - é
possível recuperar o festival internacional de teatro
20 O ENCONTRO 21
como espaço de encontro da comunidade artística?
Desde finais dos anos 1960, têm se sucedido,
em toda a extensão do continente, numerosos IMPRESCINDÍVEL Inscrevê-lo novamente de uma maneira orgânica no
imaginário das cidades, dos seus moradores e visi-
e variados espaços de encontro. As últimas cinco
décadas têm sido um período turbulento para a
E ESSENCIAL tantes? Ou seja, conseguir uma reflexão participativa
que seja traduzida na arte e nos seus modos de se
realidade social, econômica e política da região. ENTRE O ARTISTA apresentar? - resulta de extrema importância a todos
Ditaduras e democracias passaram, a violência e
a esperança se espalharam por todas as terras, e,
E O PÚBLICO aqueles que amam os festivais.

neste contexto, surgiram os festivais de teatro. QUE CONSTITUI O A resposta que devemos considerar imediatamente é:
Na década de 1980, com a volta da democracia, sim. Sim, porque o teatro está vivo e continua sendo
foi gerado um movimento de reencontro entre o FATO TEATRAL um espaço único de reflexão. Sim, porque as pergun-
espectador e o criador cênico. A recuperação da tas estão feitas e a busca por respostas de gestores e
rua, dos vínculos postergados pela ditadura, e da criadores demonstra um movimento que vai necessa-
liberdade se traduz em todos os festivais da Amé- Assim entramos no século XXI, quando se revela riamente na direção correta. Todo movimento é um
rica Latina. As programações se recarregam de cada vez com maior intensidade a crise dos fes- sinal de inquietação, já são mais de 40 anos de festivais
todas as ideias que circulam, que foram se ges- tivais de teatro na América Latina. Não só o sig- e continuamos inquietos, a pulsação segue no ritmo.
tando de uma maneira contida para terminar de nificado da dramaturgia se vê afetado pelas ideias
germinar em explosões de alegria à medida que da pós-modernidade vinculadas à mercantiliza-
os regimes ditatoriais foram caindo. ção. O resultado disso é um relativismo, bem 1
Alberto Ligaluppi é diretor geral do Complexo Teatral de Buenos
próprio dos nossos tempos, no qual a curadoria Aires. Foi codiretor do Festival Internacional de Buenos Aires
Com a recuperação dos espaços democráticos, dos festivais tende a perder identidade. A essa (2008-2010) e do Festival Latino-americano e curador do Festival
abriu-se um período fértil e de expressão urgente equação somam-se a dinâmica da programação MERCOSUL.

para o povo. A sociedade civil ganhou poder e os e a logística organizacional dos festivais. Os espa-
artistas se associaram aos gestores culturais, e tudo ços para participar do fato artístico coletivo que
isso permitiu a criação de ambientes privilegiados significa um festival estão cada vez mais escassos.
para esses encontros. Na virtuose da era das comunicações, em que
UM NOVO
PARADIGMA
PARA UMA
NOVA ETAPA
CARLOS GIL ZAMORA1 23

VOYAGEURS IMMOBLIES
Philippe Genty - FRANÇA - FIT 11ª Edição (2012)
Foto: Pascal Francois
Na programação de um festival, o conteúdo A reiteração do modelo, a estrutura interna Ao meu modo de ver, é substancial que um
das peças, atividades paralelas e dos eventos é que deve organizar a vida própria que ganha festival se enquadre em uma ação global; que
o seu manifesto ideológico. Os festivais inter- categoria por meio de formação ou senão de sirva, ao mesmo tempo, de início ou final de
nacionais têm sido uma ferramenta maravilhosa intercâmbio, e a necessidade de encontro com outro evento de alcance maior, como comple-
para o conhecimento e divulgação de tendên- os públicos criam uma tensão na programação mento de outra programação já habitual, com
cias cênicas mais arriscadas a cada momento. - de priorizar os objetivos - que é resolvida de ações de divulgação e relacionamento com no-
E isso tem dois objetivos: que os profissionais diferentes formas e todas elas são válidas, por- vos públicos.
do lugar onde acontecem os eventos possam que respondem ao seu momento e são conse-
conhecer e descobrir outros olhares sobre o quência dos recursos econômicos, técnicos e Um festival, mesmo que seja o mais grandioso
fato teatral, e ajudar a consolidar públicos que humanos que existem. de todos e conte com uma programação inter-
estejam atualizados com o que acontece no nacional de excelência, se ele for realizado na
universo teatral. Na experiência europeia, foi É de muita importância estabelecer outra es- base da contratação sem limites de orçamento,
nos anos 1980 e 1990 que os festivais ganha- cala de valores, procurar outro paradigma para nunca terá o mesmo valor e a possibilidade de
ram uma importância cultural, social, econô- uma nova etapa na qual novas dificuldades eco- influenciar, perdurar e se transformar em um
mica e artística de magnitude. Foi criado um nômicas vão começar a aparecer. O objetivo evento de utilidade cultural, social ou artística,
modelo de funcionamento, nasceram circuitos é encontrar o equilíbrio entre o investimento em comparação com outro festival mais equi-
que se nutriam de espetáculos firmados pelos local, regional ou nacional, com a influência dos librado, que ajude no crescimento coletivo. O
mesmos autores, com os mesmos estilos, que públicos e das realidades teatrais de cada lugar. primeiro vai ter mais repercussão midiática, vai
dominaram as programações. Festivais que ti- ocupar o interesse geral durante alguns dias,
nham nascido com o foco na convivência se e pode ser possível que sirva até para pro-
profissionalizaram, os sistemas de produção mover uma cidade ou um país. Mas vai deixar
foram mudando e isso acabou impedindo o in-
tercâmbio. Dessa forma o seu efeito sobre os
OS FESTIVAIS uma insatisfação no ar e uma sensação ruim de
comparação com a realidade teatral invadida.
estudantes e profissionais diminuiu. Ao mesmo INTERNACIONAIS A eleição de um modelo ou outro sempre é o
tempo cresceu uma figura catalisadora do es- fruto de alguma determinação política.
24 forço: o programador. Neste século, da nossa TÊM SIDO UMA 25
estreia, os nossos festivais cresceram - também FERRAMENTA Uma última consideração: os festivais devem
desapareceram ou diminuíram outros -, alguns estar especializados ou senão ter espaços mar-
deles resgatam fórmulas já testadas, e procu- MARAVILHOSA cados dirigidos a algum ponto bem concreto
ram na convivência um elemento concentra- sobre o qual devem girar todas ou muitas das
dor das energias, mas atendendo o público e PARA O suas atividades paralelas. Conceitos, ideias, pa-
satisfazendo às necessidades dos patrocinado- CONHECIMENTO íses, regiões geográficas, línguas ou linguagens,
res, assim sejam instituições ou empresas pú- artistas, tendências que sejam visíveis e claras
blicas ou privadas que medem estes assuntos E DIVULGAÇÃO para ajudar na sua própria identidade e na sua
com uma calculadora e não com a análise de diferenciação dos demais. Não é saudável que
qualidade apropriada, da relevância além dos
DE TENDÊNCIAS os festivais sejam tão similares, às vezes até
resultados de números de público. CÊNICAS MAIS idênticos, tão generalistas e pensados para o
mercado da distribuição.
ARRISCADAS
1
Carlos Gil Zamora é diretor e crítico de teatro.
Dirige a Revista ARTEZ, publicação especializada
em artes cênicas veiculada na Espanha.
FIDAE, UM
TESOURO A
DESCOBRIR
(UM FESTIVAL
EM UM PAÍS
E UM PAÍS
26 EM UM FESTIVAL) 27

IVÁN SOLARICH1

Quando nos anos 1970 o Uruguai tinha


a intenção de organizar o seu primeiro
festival… chegou a ditadura. Tivemos
que esperar até 1984 para que o Uru-
guai começasse a abrir as suas portas
para a criação internacional, isto com a
força fundamental dos críticos de teatro
(iniciativa inédita no mundo).

TIERNO BOKAR
Peter Brook / CICT - FRANÇA - FIT 7ª Edição (1998)
Foto: Guto Muniz
Foi assim que, até o ano 2000, comemoramos a
cada dois anos a Mostra Internacional de Teatro. PARA ONDE
Com a crise, essa iniciativa se viu interrompida,
e, salvo uma experiência em 2005 organizada
pelo Teatro El Galpón, tivemos novamente um
VAMOS EM
parênteses de dez anos para que a cena mundial
voltasse a nos visitar.
2013?
O nosso desejo é que o Fidae se estabeleça
Então, pela primeira vez, o Estado, por meio
como um festival de forte influência da América
do seu Ministério de Educação e Cultura, e
Latina, em que dois terços da sua programação
com a importante ajuda da Prefeitura de Mon-
internacional tenham relação com a região e o
tevidéu, começa a organizar o que hoje em dia
continente. Mas sem perder, por esse motivo,
leva o nome de Festival Internacional de Artes
a vocação de cultura universal. Nesse sentido,
Escénicas (Fidae).
estamos trabalhando para poder contar pela
primeira vez na nossa programação com a
Dessa forma, com muito sucesso tanto artísti-
presença da África e também da Ásia.
co como de público na última edição de 2011,
começamos a percorrer o lento - e tomara ago-
ra sim permanente - caminho do contato das pontos fortes e fracos de maneira real, viva e
pessoas com o que há de melhor na cena local sem preconceitos.
e internacional. Ou seja, o caminho do hábito
com as artes.
O NOSSO DESEJO Durante muitas décadas o Uruguai - por uma
É QUE O FIDAE rede complexa de fatores - permaneceu de
E já são muitos e bem variados os desafios que costas ao continente e muito dependente da
28 o Fidae está levantando. Primeiramente, desafios SE ESTABELEÇA Europa. Talvez o único efeito positivo que 29
tiveram os terríveis anos 1970, especialmente
que têm a ver com a sua gênese, porque o Fidae
é um festival público, e isto traz responsabilidades
COMO UM no Cone Sul, como consequência do Plano
adicionais. As principais: continuar cuidando da FESTIVAL Condor, foi o fato de termos sido integrados em
qualidade, do acesso e da integração - qualidade um continente torturado, preso e desaparecido
para construir um olhar; acesso para democratizar DE FORTE ao mesmo tempo. Nosso olhar com a pressão
do terror começou a ver mais perto, aqui ao
a participação; integração para não aprofundar as INFLUÊNCIA DA lado, como ‘parte de’.
distâncias sociais e integração da nossa geografia
como nação, em um corpo comum. Como festi- AMÉRICA LATINA
val, somos iniciantes nos três caminhos. Hoje temos a possibilidade de que seja a beleza
- a beleza das artes cênicas - e não o terror
Em outubro de 2011, durante quatorze dias, dez que direcione os nossos olhares renovados e
países conjugaram as suas propostas construindo esperançosos para mais perto ainda, mais ao
Queremos duplicar o programa de extensão
um olhar; dezenas de salas, espaços públicos e lado, mais ‘parte de’.
social que o Festival teve em Montevidéu (cidade
alternativos promovendo a democratização do na qual se concentra a metade da população do
acesso para o cidadão; creches, escolas e resi- Queremos, precisamos, que o vosso já enorme
país), para poder sentir que o Fidae pertence
dências de idosos abrigaram milhares de pessoas. e tradicional festival nos aceite como primos de
aos bairros assim como a todas as classes
E, pela primeira vez, um festival internacional saiu caminhada.
sociais. Queremos estar presentes em pelo
da capital e chegou até Maldonado, outro estado menos quatro pontos do país, desenvolvendo
localizado ao leste de Montevidéu. Pela democracia e pela arte. Em definitivo, pelo
um espírito cada vez mais descentralizador e
nosso povo.
nacional. E, finalmente, queremos qualificar
Mas foi só um começo. A relativamente curta tra- a presença cênica do país, não só mantendo
dição iniciada nos anos 1980 foi fraturada. Agora metade do volume do Festival, mas também 1
Iván Solarich é diretor, ator, docente e investigador teatral,
a ideia é que desde o Fidae possamos nos tornar colocando a nossa arte em igual posição que a é também diretor do Festival Internacional de Artes Escénicas
a paisagem do cidadão. do resto do mundo - e também levantando os de Uruguay (Fidae).
FALTA DE
IMAGINAÇÃO...
RICARDO LIBÓRIO1

Convidado pela organização do FIT-BH a contribuir


com uma reflexão a respeito dos festivais, esclareço
que minhas opiniões aqui expressam meramente a ob-
servação do cotidiano da produção cultural no Brasil,
nos últimos 12 anos, e a participação na criação e co-
ordenação do Festival Internacional de Artes Cênicas
da Bahia, que chega, este ano, à sua quinta edição.
31
Nesse período, tive a sorte de participar do Núcleo de
Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil, que
sempre foi uma inestimável experiência no comparti-
lhamento de informações e debates sobre as nossas
realidades. A experiência tem sido também enrique-
cida pelo convívio com diversos outros realizadores,
grupos e artistas, em visitas a festivais diversos e na
própria realização do FIAC.

Vivemos um período em que muito se fala em crise


dos festivais. Alguns narradores podem sugerir que a
crise não é específica dos festivais, mas da produção Aguto
cultural de forma mais ampla. Eu, particularmente, PARADA DE RUA AFRICANA - ÁFRICA - FIT 4ª Edição (1998)
Créditos: Guto Muniz
vejo com desconfiança diagnósticos que tendem a sim-
plificar uma avaliação desse tipo. E fico a me perguntar:
será que realmente vivemos uma crise?
aceitar a perspectiva da ocorrência de reduções, que atuamos. Outros grupos passam a reivindicar secretários ou ministros, mas àqueles que verda-
contingenciamentos, estagnações e até mesmo o acesso ao financiamento e, ao mesmo tempo, deiramente têm o poder e a responsabilidade de
descontinuidades. É próprio da dinâmica social. a população passa a ter outras opções de acesso decidir os rumos e os investimentos de uma so-
aos bens culturais. Tudo isso vai expondo ques- ciedade. E, no Brasil, obra é investimento, cultura
E, diante dessa visão, me ponho a duvidar da per- tionamentos ao papel dos festivais e amplia o de- é custo. Não conheço e nem tenho notícia de um
tinência do termo “crise”. Ou, ao menos, rejeito safio das estratégias necessárias para se justificar mandatário, nas três esferas, que tenha verdadei-
o uso do termo como algo próprio de um mo- perante os seus públicos e a sociedade. ramente a noção da importância do desenvolvi-
mento. Ao longo dos anos, o que observo é o mento cultural para um povo. Não percebem a
surgimento de muitos festivais, mostras e outras Não quer dizer, entretanto, que a coisa esteja re- produção cultural na sua verdadeira dimensão
iniciativas: crescimentos e avanços de alguns, re- solvida, muito pelo contrário. Apenas em lugar de econômica e social. Não percebem o potencial
trocessos de outros. Turbulências, mudanças de defender que vivemos uma crise, prefiro afirmar do acesso à cultura como alavanca para gerações
estratégias, tropeços, descontinuidades. Enfim, que continuamos em crise e ainda não enxerga- futuras. Não conseguem alcançar minimamente
cada caso é um caso. mos uma saída. Nascido na década de 1970, sou o conceito de economia criativa. Não enxergam
de uma geração que vivia em um país predestina- produtores e artistas como parceiros em um pro-
Se os festivais ou a produção cultural vivem uma do à “crise”. Não conheço momento em que não jeto de nação. Para eles, produtores e artistas são
crise, então já a vivem continuamente, por dé- vivíamos uma “crise” em todos os setores. apenas grupos de pessoas extravagantes que não
se cansam de reivindicar benesses para garantir
E chega o período em que o País começa a en- sua sobrevivência ou as suas vaidades. E a arte
xergar a possibilidade de um futuro diferente, em é vista tão somente como elemento para alegrar
que o crescimento e o enfrentamento de desa- ou aliviar o cotidiano, a cereja do bolo.
SE OS FESTIVAIS fios se tornam uma tese plausível. Mas, perple-
OU A PRODUÇÃO xo, o setor cultural se vê preso. Mais grave do E, aos subalternos daqueles que realmente po-
que as dificuldades específicas que vivemos ano dem decidir a cultura que teremos, só resta mes-
CULTURAL VIVEM a ano é a constatação de uma absoluta falta de mo o fardo de gerenciar o que resta.
caminho, a ausência de imaginação. Não somos
UMA CRISE, capazes de enxergar uma política e novos cami-
32 33
ENTÃO JÁ VIVEM nhos que signifiquem um avanço real, para além 1
Ricardo Libório é coordenador geral do Festival Internacional
das intenções e do reconhecimento da “impor- de Artes Cênicas da Bahia.
CONTINUAMENTE, tância do desenvolvimento cultural” nos discur-
sos. Convivemos com lindas palavras nos planos
POR DÉCADAS nacionais. Campo fértil para teses acadêmicas.
Passamos anos chegando aos mesmos diagnós-
ticos em eventos públicos. Viva a democracia!
Entendo que o surgimento do novo, nos mais cadas. Desde que comecei a trabalhar especifi- E todos parecem sempre estar do mesmo lado.
diversos campos da atividade social, é natural e camente com produção cultural, as dificuldades Do lado da verdade. E já nos acostumamos ao
próprio das sociedades em que vivemos. Muitos e os desafios para viabilizar um festival ou outras receituário básico com as palavras-chave nesses
de nós, seres humanos, somos movidos pelo ins- iniciativas culturais, se não eram as mesmas, ti- eventos públicos: “é preciso se criar uma políti-
tinto de realizar algo. E tanto quanto é da nature- nham as mesmas “dimensões”. Creio que pensar ca que dê conta... que garanta... que assegure...
za humana a capacidade de empreender e criar, o contrário seria supor que outrora as condições que fomente... que preserve...”. Realmente, é
sendo uma boa experiência, em geral também é sociais, políticas e econômicas eram mais favo- preciso. Mas não conseguimos vislumbrar o País
natural o desejo de continuar ou replicar, conso- ráveis do que agora. Creio que não. Creio que como uma potência cultural.
lidar e crescer. as condições sempre foram desfavoráveis. O que
surgiu, o que aconteceu, o que foi viabilizado Na produção cultural, não conseguimos pensar
Mas, apesar dos nossos desejos e impulsos, es- sempre foi fruto de uma combinação casuística. grande. Temos que aceitar e viver o complexo
tamos submetidos à dinâmica das sociedades em Pessoas que estavam no lugar certo, na hora cer- de vira-lata plenamente, como se estivéssemos
que vivemos. E daí que percebo que toda reali- ta. Não foi resultado de uma lógica, de um plane- submetidos a esta realidade por um karma. Ine-
zação, tudo que se torna concreto, é fenômeno jamento, de uma política. xistem, no Brasil, políticos verdadeiramente vi-
decorrente da combinação de várias vontades e sionários. Temos uma classe dirigente limitada
vários fatores. E, no âmbito social, tanto quanto é E aqui chegamos ao ponto. Não creio que vive- ao pensamento cartesiano, à logica decimal e
natural o surgimento do novo e eventualmente a mos uma crise. Novos desafios são postos muito acostumada a raciocinar apenas em avaliações de
continuidade e o crescimento, também devemos mais por conta das alterações no ambiente em causa e efeito imediatas. Aqui, não me refiro a
FESTIVAIS:
INFORMAR,
FORMAR
E TRANSFORMAR
35
GLÓRIA REIS1

Como definir um festival? O que provoca? Pode sedimen-


tar ideias? É capaz de abrir caminhos e construir propostas?

Eventos de caráter periódico, os festivais são realizados


para promover o encontro e as apresentações de artistas
e grupos. Não raro, vão assumindo, também, a função
de geradores de novos grupos e movimentos artísticos,
como é o caso, só para citar um exemplo, dos Festivais de
PARADA NA RUA
Grupo Lume - BRASIL - FIT 5ª Edição (2000)
Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Foto: Kika Antunes
E são exatamente a função semeadora e o caráter aglutinador
dos festivais de teatro que exigem reflexões cada vez mais
sistematizadas sobre seus impactos na produção artística e na
cena cultural das cidades em que se realizam, especialmente
quando a virtualização facilita o acesso às informações e o
contato entre os agentes envolvidos.

O que significa participar de um festival de teatro seja como


artista, produtor, oficineiro, aluno, debatedor, plateia? Por
que cidadãos, com histórias tão peculiares, fazem essa es-
colha? O que vão buscar ali e com que se defrontam?
cidade, um festival de teatro não é cancelado constatar interferências desses eventos em seu coti-
por acaso e também não se sustenta pela von- diano e, assim, desencadear análises relacionadas ao
tade de um pequeno grupo. Deve ser fruto do lugar ocupado pela cultura, buscando mapear sua
desejo do público por obras de boa qualidade, intervenção no devir da cidade.
de demandas de uma sociedade que cobra uma
participação mais efetiva na pesquisa, na criação, Numa sociedade superespecializada, que faz
na profissionalização, na sistematização e na dis- da compartimentação e do isolamento entre os
tribuição do fazer artístico. grupos um recurso para assegurar a dominação,
o artista deve ser um multiplicador dos pontos
de vista. Fugir à clausura e contribuir para que
outras pessoas o façam implica modificar-se e di-
versificar os enfoques. As artes cênicas, manifes-
tação do instante e do efêmero, poderão assim
HÁ PESSOAS instigar significações mais perenes.
Lugar de exposição de projetos de variados teo- Os festivais permitem mergulhar em distintas reali-
res, um dos mais favoráveis campos de encontro dades da produção teatral e fornecem instrumentos
QUE PASSAM A Nesse sentido, o que os festivais de teatro po-
dem provocar vai muito além de uma vivência
de similitudes e antagonismos, os festivais reú- para o reconhecimento de amplo leque de exercí- ACOMPANHAR estética. Atuam como uma experiência de for-
nem experiências pessoais, propostas estéticas e cios de expressão. Quem encena, quem assiste,
pensamentos artísticos diversos. Esses momen- quem debate, quem estuda está ali para conhecer A VIDA TEATRAL mação que deve informar, desformar - no senti-
do de tirar da forma padrão - e transformar não
tos de convívio com a pluralidade, de conflitos técnicas, instrumentalizar-se, investigar caminhos,
entre tradições e inovações são extremamente emocionar-se, imaginar, levantar questões, encontrar
DA CIDADE APÓS só a comunidade artística, mas também outros
habitantes da cidade.
necessários à dinâmica do fenômeno teatral e formas de dialogar nas fronteiras tênues entre a razão PARTICIPAREM DE
constituem preciosa fonte de inspiração para as e a emoção. A participação em um festival é mar-
possibilidades cênicas. cante quando possibilita reter vivências e prolongá- ALGUM EVENTO
-las, quando propicia a sensação de intimidade com
36 O acelerado movimento de circulação de in- a criação artística.
INTEGRANTE DA 37
formações e as facilidades de intercâmbio de PROGRAMAÇÃO
contatos levantam questões sobre o ineditismo, Espaço do caos e da síntese, os festivais trazem à
o caráter vanguardista e a novidade das obras tona diferenças individuais e coletivas, provocam DO FIT
apresentadas. Os mais extremistas chegam a inquietações, explicitam zonas de conflitos e de
questionar a validade da presença física dos ar- negociações, despertam sonhos e desejos, tudo
tistas junto ao público e até colocam em pauta transformado em obra de arte.
propostas de realização de festivais de teatro via Como um desenrolar desse processo, a progra-
comunicação virtual... A convivência extremamente fértil que os festi- mação dos festivais deve dar relevância às dis-
vais proporcionam pode ser comprovada pela cussões sobre o fazer artístico não somente re-
Não se pode negar a urgência de reflexões so- voz de vários participantes do Festival Interna- duzido à sua dimensão estetizada, mas também
bre mudanças nos formatos, nas opções de ati- cional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizon- compreendido no plano das relações sociais
vidades a serem oferecidas e nas formas de di- te - FIT-BH. Há atores que não hesitam em como participante da produção simbólica do
álogo com a população das cidades envolvidas, dizer que sua formação foi profundamente in- espaço urbano. As experiências desenvolvidas
mas vale reafirmar que essas discussões devem fluenciada por um espetáculo ou por um bate- na diversificada rede de atividades promovidas
se fundamentar na essência do fenômeno teatral: -papo descontraído ou ainda por um encontro
1
Glória Reis é historiadora e mestre em Ciências Sociais
por um festival de teatro são exemplos de como
na linha de pesquisa Cultura Urbana; professora do Centro
a relação artista-público, carregada de subjetivi- inusitado ocorrido durante a realização do FIT. criação e produção em artes cênicas exigem a de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado, da
dade e retroalimentadora, única, que acontece Nas escolas de formação de atores da cidade, atitude de olhar em várias direções ao mesmo Escola de Teatro PUC Minas e do Centro Universitário de
ali, naquele momento, e não se repete. A via de encontramos alunos que afirmam terem sido tempo, em um movimento para dentro e para Belo Horizonte. Colaboradora da Enciclopédia Virtual Itaú
Cultural, redigindo verbetes sobre teatro.
mão dupla que liga palco-plateia é percorrida por instigados ao mundo teatral pelo FIT, com seus fora que se expande na interação com os ou-
sensações, palavras, movimentos, sons e ima- espetáculos e oficinas, aguçando a vontade de tros e constitui a visão caleidoscópica que a arte
gens que propiciam ao ato teatral uma atmosfera seguir carreira e fazer do teatro sua opção pro- pode proporcionar.
muito peculiar, dificilmente captada pelas lentes fissional. Há pessoas que passam a acompanhar
da transmissão digital, sempre contaminada pelo a vida teatral da cidade após participarem de al- Para isso, os debates precisam atrair também
olhar, pelo ponto de vista de quem seleciona e gum evento integrante da programação do FIT. quem não está envolvido diretamente nos pro-
produz o conteúdo que está na tela. Por sua importância no contexto cultural de uma cessos artísticos, ou seja, aqueles capazes de
O TEATRO BRASILEIRO:
IMPASSES E TENDÊNCIAS NO
ANO DA GRAÇA DE 2012
OU UM LEXOTAN, POR FAVOR!
39
LUCIANO ALABARSE1
Há cerca de quatro anos, em Berlim, assistindo Com características completamente diferentes, e
a montagens do teatro alemão a convite do Ins- por motivos distintos, o Brasil barroco, que co-
tituto Goethe, chamou-me a atenção a grande nhecemos tão bem, poderia aproveitar essa refle-
quantidade de montagens baseadas em textos de xão objetiva e cruel. Uma coisa é certa: a encena-
Anton Tchekhov. Em dez dias, vi nada menos do ção brasileira, cantada em prosa e verso por um
que seis obras diferentes do célebre dramatur- grupo de profissionais respeitabilíssimos, mostra
go russo. Em encontro com jornalistas e críticos sinais de esgotamento evidente. Os principais en-
teatrais, quando foi dada a palavra ao seleto gru- cenadores do teatro brasileiro contemporâneo re-
po dos diretores de festivais presentes ao en- petem fórmulas e/ou nos apresentam espetáculos
contro, perguntei sobre essa coincidência. Uma de experimentalismo duvidoso. Meu objetivo aqui
mal-humorada crítica alemã, de cujo nome não não é apontar nomes ou espetáculos, mas sim
me lembro, olhou direto nos meus olhos e, com constatar uma fase, uma safra de alguns anos já,
típica ironia germânica, disparou: “coincidência”? extremamente confusa e pouco original. Se você
– para logo em seguida emendar: “quando o te- acompanha a produção teatral brasileira, responda
atro não sabe para onde ir, ou que rumo tomar, agora, sem pensar muito: que montagem nos últi-
deve montar Tchekhov. É o que está acontecen- mos anos chamou realmente / verdadeiramente /
do neste momento na Alemanha. O teatro ale- ‘transformadoramente’ a sua atenção? Que espe-
mão está num beco sem saída, sem saber que táculo brasileiro acendeu luzinhas na sua cabeça e/
rumo seguir. Nada mais natural, então, do que ou balançou seu coração? Para além da admiração
montar Tchekhov neste momento”. Essa obser- aos nossos atores extraordinários, ao currículo
vação ficou gravada na minha memória, como de nossos encenadores bem preparados, e sem
HAPPY DAYS um dos momentos marcantes da visita àquele nenhuma intenção apocalíptica, posso responder,
Change Performing Arts - ITÁLIA - FIT 10ª Edição (2010)
Foto: Guto Muniz que já foi considerado o país da vanguarda e da com objetividade cartesiana: nenhum.
experimentação cênica por excelência.
Não estou alinhado àqueles que adoram a pos-
tura de terra arrasada, com má vontade evidente
para capturar a atenção dos estudiosos e do pú-
blico em geral, quando desprezam o legado his-
UM LEXOTAN, POR
- detesto esse tipo de gente, aliás, os que afir- tórico do teatro ocidental. Proporcionalmente, FAVOR!
mam que tudo é equívoco ou cópia nos palcos em nove de dez espetáculos a que assisto hoje,
do País, que tudo é aborrecido na nossa pro- parece que a vida real dá de dez em relação ao O teatro, para além de fabulações gramaticais in-
dução teatral. Não estou desconhecendo uma teatro, muito mais complexa, mais desafiadora, teligentes e interessantes, sempre se concretizará
nova e talentosa geração de novos pesquisado- mais híbrida do que qualquer experimentação na prática. Atores precisam mostrar, com amplo
res cênicos, que tentam levar adiante suas ideias, teatral de que eu tenha conhecimento. Que o domínio corporal, esse dom que alguns chamam
suas possibilidades, suas vontades. Há gente sé- “talento”, palavra erradamente depreciada nos cír-
acesso à informação nesses dias “internéticos”
ria e talentosa surgindo, afinal? É claro que sim. culos sofisticados do teatro brasileiro. A busca da
Os últimos cinco - todos eles! -, independentemen- é diferente e muito mais amplo e democrático
Sempre tem. O que estou tentando explicitar modernidade, igualmente, joga muita gente, que
te de serem textos originais ou consagrados, mos- não há a menor dúvida. Esse traço marcante dos poderia contribuir decisivamente para o avanço de
diz respeito à linguagem cênica desenvolvida em
travam atores de pé diante do público, apresentan- nossos dias não ajudou o teatro, pelo contrário. nossos resultados, em experimentalismos desprovi-
nossos rincões, dos mais cosmopolitas aos mais
do a trama e os personagens, indicando cenários Instalou uma espécie de ditadura tecnológica, dos de humanidade e significado. O abandono puro
artesanais centros de nossa criação. Do mais fes-
prováveis e inexistentes, procurando uma moder- como se fosse obrigatório seu uso e domínio e simples do aspecto dramatúrgico pela “novidade”
tejado grupo de experimentação paulistano (pois
nidade, o que nivelava, letargicamente, todos eles. em nome de uma modernidade “igualizante” e narrativa tem gerado frutos cênicos de eficácia zero.
não desconheço que, para o bem e para o mal,
Em algum momento, cheguei a pensar que estava enfadonha. Dia desses, conversando com um
é em São Paulo que está o melhor e o pior do
vendo o mesmo trabalho, ininterruptamente, o que jovem (e talentoso) ator gaúcho, ele me falava Enquanto o teatro tentar priorizar apenas a su-
teatro brasileiro) ao mais obscuro agrupamen-
não era o caso). maravilhado, como se tivessem reinventado/re- perfície em detrimento do fundo - e quero aqui
to teatral do interior do País, o esgotamento da
aberto o caminho das Índias, sobre teorias que definir “fundo” como o relato exato das mais sig-
linguagem teatral é evidente. Como se estivés-
devem, algumas pelo menos, estar completando nificativas experiências humanas, dentro de uma
semos todos procurando ultrapassar a fronteira
sociedade e de um tempo específicos, com sen-
cem anos. O detalhe é que o jovem ator falava
perigosa da tradição, às cegas, às claras, mais ou
menos preparados para essa tentativa. A ques-
O ESPETÁCULO com certo desprezo de Stanislavski, sem ter tido
timentos que perpassam os séculos e se mantêm
absolutamente vinculados ao DNA humano - es-
tão dramatúrgica me parece central nesse vívido VEM SENDO tempo sequer de se aprofundar em seu méto-
taremos semeando terra estéril. Seja qual for a
momento. Leio e acompanho concursos, ofici- do constitutivo. Para ele, que também não deve
40 nas e publicações da área buscando novos tex- AÇOITADO COM ter tido tempo de se aprofundar nos postulados
forma procurada, na intersecção com hibridismos
e outras linguagens artísticas, o que não pode 41
tos, autores e dramaturgias, mas não encontro
nenhum grande texto a demarcar novas frontei-
FORÇA, COMO que marcaram o século XX (Meyerhold / Gro- faltar no palco é a experiência temporal de uma
tovski / Barba / o Living Theater/ o teatro pós- sociedade, de um grupo, de um conflito humano.
ras em nosso panorama de criação. Não sem SE O PROCESSO, -dramático, enfim...), o teatro não pode ser uma Aristóteles e Beckett, de maneira crucial, defini-
motivo a obra de Nelson Rodrigues continua coisa velha, requentada. Conclusão certa por ram e redefiniram o conceito de ação dramática.
capitaneando atenções e homenagens, como a MUITAS VEZES, raciocínios absolutamente equivocados, em mi- Um, lá atrás, teórico brilhante; outro, muito pró-
pedra de toque da dramaturgia nacional. Nes-
se contexto, o trabalho de Roberto Alvim, em
FICASSE MAIS nha opinião. Uma verdade indiscutível, cada vez ximo, dramaturgo seminal. É possível fazer teatro
mais patente (mas quase sempre esquecida), é abdicando da experiência fundamental e estrutu-
todos os aspectos, parece-me o mais sólido e IMPORTANTE QUE que o mundo não começa quando começamos, rante de colocar o homem, este contemporâneo,
entusiasmador, como a desmentir minhas som- no centro do palco? Não, é a minha resposta.
brias considerações. Mas Alvim é uma exceção. O RESULTADO e desprezar os pilares teóricos de nossa pro-
Simples assim. Complexa assim. Qualquer tenta-
fissão é cilada das maiores. A tal conversa, que
Ou não? tiva de afastar o “mistério cidadão” do palco con-
enveredou pelas ideias da biomecânica, não-
temporâneo resultará em perda de tempo, ener-
O que me cansa, hoje mais do que antes, é certa -interpretação e outras postulações discutíveis, gia e talento. Como o próprio desenvolvimento
Defendo, e sempre acreditei nisto, que o tea-
superficialidade em relação à demanda/conside- tro é o reino propício no qual tradição e ruptu- foi produtiva para ambos. No meu caso, para humano, é preciso respeitar fases dessa trajetó-
ração crítica que envolve o discurso teatral de ra precisam estar/caminhar juntas, sob pena de fortalecer a ideia de que, sim, tenho horror aos ria, sem abrir mão de viver cada uma delas, sem
alguns. O espetáculo vem sendo açoitado com sucumbirmos a um museu de velhas novidades modismos que desprezam os fundamentos do desconhecê-las, até a depuração e o refinamento
força, como se o processo, muitas vezes, ficasse ou a resultados de eficácia zero, em que uma ofício teatral e, sem eles, se dispõem a inventar de nosso talento, nossa voz, nossa vontade, nossa
mais importante que o resultado. Uma mesmice vanguarda sonolenta mostrará as caras e afugen- a roda teatral. Meu jovem amigo provavelmente identidade artística.
incrível invade a cena em nome de pseudomo- tará o público - ainda e sempre a razão última me ouvia como se estivesse diante de um dinos-
dernidades requentadas (parênteses: escrevo este de qualquer ato de uma profissão que precisa sauro generoso, papel que não me parece caber O desafio é grande, grandioso. E é por isso que
artigo, examinando os quase trezentos DVDs que desse elemento indispensável para ser validada. no que quero defender, o da consistência teórica vale a pena.
chegaram ao “Porto Alegre em Cena” para análise. A própria palavra “vanguarda”, que utilizei há e prática, aquela cujo domínio e conhecimento
Meu jeito de olhá-los é sempre o mesmo: separo pouco, parece-me datada e perigosa. As novas levam qualquer artista a dominar seu corpo, seu 1
Luciano Alabarse é diretor de teatro e curador do “Porto
uma pilha que caiba em minha mão, não leio os tendências envelhecem rapidamente, perdem espírito, sua capacidade, seus recursos, suas op- Alegre em Cena”.
dossiês, vou direto ao produto que me é oferecido. o prazo de validade, e se mostram insuficientes ções estéticas e criadoras.
AS FORMAS NÃO
CONVENCIONAIS
E O PÚBLICO
DE TEATRO 43

ADÉLIA NICOLETE1

Um guia de entretenimento de São Paulo em março de


2012 registra mais de 50 espetáculos teatrais na cidade2.
Se nos detivermos no perfil de cada um, veremos que a
maioria transgride, mais ou menos radicalmente, a estru-
tura dramática consagrada. Assim, notamos a utilização de
recursos tais como ausência de uma história facilmente
reproduzível; simultaneidade ou fragmentação de cenas/
situações; paralelismo e assincronia das falas, emissão de
texto que foge à troca dialógica, ou um diálogo que parece
conversa; trânsito por diferentes tempos e lugares; interlo-
cução com a dança, a música, o cinema, as tecnologias; in-
definição, indeterminação ou inexistência de personagens;
participação mais concreta do espectador, motivada pela
disposição da plateia, pela movimentação no espaço ou
pela interação com a cena; o caráter de experiência, de
evento ou comunhão, de “presentificação” mais que de
JURUJUJAJA: EL DESASTRE CONTINÚA representação, e tantos outros. Isso tudo desenvolvido,
Nanny Cogorno - ARGENTINA - FIT 6ª Edição (2002) em grande parte, por coletivos de criação - fator determi-
Foto: Guto Muniz
nante para a liberdade de pesquisa, pelo não atrelamento
às exigências de um mercado que supõe o que vai atrair ou
não público e prestígio.
O que temos notado, porém, é “acertar as contas com o seu tempo, tomar posição em relação obscuros”. É contemporâneo quem é capaz de obra e processo são indissociáveis. Pensamos
que mesmo com o aumento de tra- ao presente3”. “Intempestivo” traz um sentido de inadequação, mergulhar nessas trevas e criar daí a sua obra5. que uma formação de público só se efetiva com
balhos que fogem a uma estrutura de algo que não é próprio ou característico do tempo em que É isso: afastarmo-nos do presente a fim de bus- o compartilhamento da criação, pois quando se
dramática conhecida - e reforçada ocorre. Portanto, para Nietzsche - e para Agamben - é ver- carmos o que há de escuro nele, porque as luzes conhecem as bases, as inquietações e propostas
pelas novelas e pelo (melo)drama dadeiramente contemporâneo aquele que é “extemporâneo”, são o aparente, o óbvio e, por isso, o que é mais que movem o trabalho, as referências práticas e
cinematográfico - permanece certa que não está perfeitamente ajustado com o tempo presente fácil de identificar. Portanto, mais do que precon- teóricas do grupo, por exemplo, pode-se chegar
resistência a tais iniciativas. Reações e, por isso mesmo, é capaz de percebê-lo e apreendê-lo mais ceito ou ignorância, aqueles comentários acerca a uma compreensão maior do resultado6. Parale-
semelhantes às que encontramos do que qualquer outro4. É como se o fato de estarmos com- do teatro contemporâneo revelam que estamos, lamente, os festivais e mostras têm papel funda-
em certas exposições de artes visu- pletamente mergulhados no presente e em tudo o que isso muitas vezes, identificando a luz, o aparente da mental na oferta de uma diversidade de produ-
ais são hoje recorrentes no teatro, implica - permanente atualização - nos tirasse a capacidade de obra. E que talvez, para uma melhor fruição, pre- ções, cursos e seminários com vistas à ampliação
mesmo por parte de colegas: “isso nos posicionarmos frente a ele. Só o conhecemos verdadei- cisemos aprender a identificar o que a obra não de referências e à reflexão, tanto por parte dos
não é arte”, “isso não quer dizer ramente quanto dele nos afastamos e sobre ele formulamos revela. Isso se faz, a nosso ver, colocando-nos artistas quanto do público em geral. E aliamos a
nada”, “faz-se qualquer bobagem nosso pensamento. diante dela sem as lanternas que trazemos sem- essas duas vias a constante reflexão teórica e sua
e vira arte contemporânea”. Diga- pre conosco: nossas referências e preferências, divulgação em publicações especializadas e meios
mos que “teatro contemporâneo” Agamben utiliza também a imagem das trevas do presente. verdades, certezas, nosso modo de ver, nossos acessíveis ao espectador em geral - a internet
é, para grande parte do público, a Sugere que se olhe o escuro do próprio tempo e não suas critérios e julgamentos. Mergulhar os olhos nas tem sido grande aliada nesse sentido.
definição de um tipo de espetáculo luzes para identificar o contemporâneo, afinal, “todos os tem- trevas que a obra nos propõe, aceitando a ver-
complicado, que não somos capa- pos são, para quem deles experimenta a contemporaneidade, tigem, o desconforto, o desequilíbrio, a insegu- Quem sabe, numa ação conjunta entre artistas,
zes de “decifrar” e que, em geral, rança e, aos poucos, deixar que ela mesma nos organizadores de eventos e pesquisadores, pos-
não diverte. Isso não deixa de ter mostre o que traz oculto. samos conquistar cada vez mais espectadores
um fundo de verdade: o “contem- que fruam, destemida e apropriadamente, de um
porâneo” oferece mesmo alguns O “CONTEMPORÂNEO” Sabemos o quanto há de relativo nessa proposi- teatro não convencional.
obstáculos e cabe a nós, artistas e ção. O sucesso maior ou menor desse mergulho
pesquisadores, oferecer condições OFERECE MESMO vai depender da predisposição do espectador e
para que eles sejam ultrapassados
pelo público.
ALGUNS OBSTÁCULOS de sua formação, da mediação com a obra, do
exercício e sua frequência, etc. Trata-se, porém,
44 1
Adélia Nicolete é dramaturga e doutoranda em Pedagogia 45
E CABE A NÓS de uma prática necessária em relação à arte con- do Teatro pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP.
O filósofo italiano Giorgio Agamben temporânea.
sugere algumas imagens para se
OFERECER CONDIÇÕES 2
Divirta-se. O Estado de S. Paulo. 23/3 a 29/3/2012, pp. 67
a 82.
referir ao termo “contemporâneo” PARA QUE ELES SEJAM A nosso ver existem três caminhos principais e 3
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros
ensaios. Trad. de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos,
que podem ajudar nossa reflexão. coligados para que o contato com o teatro não
Fala primeiramente da “intempesti- ULTRAPASSADOS PELO convencional se torne uma prática menos dolo-
2009, p. 57.
4
Idem, p. 58.
vidade”, retomando Nietzsche, que PÚBLICO rosa e mais efetiva. Um deles é a abertura do
5
Idem, p. 63.
em 1874 publicou Considerações processo criativo ao espectador e a desmistifi-
intempestivas, cujo objetivo era cação do fazer artístico. Grande parte das vezes
6
Em relação a isso recomendamos a leitura de PAVIS, Patrice.
A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003.
O ATO DO ESPECTADOR:
EMBRENHAR-SE
EM ZONAS
DESCONHECIDAS
FLÁVIO DESGRANGES1
- MAS O QUE QUER DIZER ESSE
POEMA? - PERGUNTOU-ME
ALARMADA A BOA SENHORA.

- E O QUE QUER DIZER


UMA NUVEM? - RETRUQUEI
TRIUNFANTE.

- UMA NUVEM? - DIZ ELA. -


UMA NUVEM UMAS VEZES QUER
DIZER CHUVA, OUTRAS VEZES 47
BOM TEMPO...

MARIO QUINTANA2

LALALUNA
Spoon Tree Productions - EUA - FIT 9ª Edição (2008)
Foto: Guto Muniz
O breve e irônico jogo de palavras do poeta com A palavra experiência, advinda do latim experiri, propõe como interrupção da percepção habitual. entendimento de mensagens, pois a experiência
a boa senhora, anteriormente referido, convida- traz consigo o sentido de provar, tentar. “O ra- O ritmo estético, assim, se constitui como viola- estética se realiza como produção de sentidos. O
-nos a enfrentar tarefa tão difícil quanto cativante, dical é periri, que se encontra também em peri- ção do ritmo prosaico. “Não se trata de um ritmo que solicita invenção na linguagem, ou invenção
pois coloca em questão o insondável na relação culum, perigo. A raiz indo-europeia é per, com a complexo, mas de uma violação do ritmo, e uma de linguagem. O papel do leitor em arte, assim
do espectador com o objeto artístico. Ler um qual se relaciona antes de tudo a ideia de traves- violação tal que nós não podemos prever; se esta concebido, muito se aproxima do próprio papel
poema, diz o poeta, ou ler uma cena teatral - sia”6. O que nos sugere a noção de se colocar violação se torna um cânon, ela perderá a força do escritor.
e aqui estamos compreendendo o espectador em risco, de se embrenhar em zonas desconhe- que tinha como procedimento interruptivo”8. O
como leitor da escrita cênica -, em nosso caso, é cidas, cruzar regiões perigosas, e que nos possi- acontecimento teatral solicita, assim, a instaura-
como ler uma nuvem. E o que se pode dizer de bilita pensar a experiência poética como perdição ção de outra lógica temporal, interrompendo o
uma nuvem? O que inquieta no poema, assim, na linguagem, como invenção de possibilidades ritmo cotidiano, fundando um espaço para a ne-
é a presteza e a objetividade com que a boa se- de fazer soar o desconhecido, o não-dito, como cessária participação do espectador.
nhora se livra da questão acerca dos sentidos que percurso de produção de conhecimentos e de
se podem atribuir a uma nuvem, ante a infinidade subjetividades. O que não tem nada de irracional
de leituras possíveis. A resposta surge resoluta, e muito menos de confusão, mas que se afasta
parece saltar da ponta da língua, como se já es- da razão instrumental e instaura o prazer de um
tivesse pronta há muito tempo e não permitisse procedimento que se contrapõe ao modo mera- UMA CENA NÃO
alternativa qualquer. mente operacional de ver, sentir e pensar a vida. QUER DIZER
O título que Quintana dá ao poema acima cita- O sentido de uma cena teatral não se constitui NADA QUE SE
do, Exegese3, termo que alude à explicação ou como um dado prévio, estabelecido antes da lei-
interpretação de uma obra de arte, tanto nos tura, algo pronto, fixo, atribuído desde sempre
RESUMA A UM
traz à tona os muitos caminhos possíveis para se pelo artista, mas algo que se realiza na própria SIGNIFICADO
empreender uma leitura, quanto nos permite co- relação do espectador com o texto cênico. Atri-
locar sob investigação o próprio intento da arte, buir sentidos, portanto, quer dizer estabelecê-los PREVISTO DE
pois explicar um poema seria, em certo sentido, em relação a nós mesmos. O que solicita dispo-
48 ato tão duvidoso como o de definir a tarefa do nibilidade para se deixar atingir pelo objeto, para
ANTEMÃO
49
artista, ou mesmo, indo adiante, o de arriscar-se se deixar atravessar pelo fato, para embarcar no
a formular uma resposta taxativa ao deparar-se processo de leitura, pois uma cena não quer di-
com a indizível questão: para que serve a arte? zer nada que se resuma a um significado previsto
Ante tal pergunta, nosso poeta possivelmente en- de antemão, a que se queira ou se deva chegar. O ato de leitura - ato, pois a leitura solicita pro-
cerraria o assunto - e para isso tomo-lhe aqui ou- É justamente nessa indeterminação, como even- dução, invenção - se constitui como instância
tro verso emprestado, dizendo: “Não, o melhor é to provido de finalidade, mas sem um fim pre- fundamental do fato artístico. Sem essa atuação
não falares, não explicares coisa alguma. Tudo ago- viamente instituído, que se organiza o aconteci- do leitor, que desempenha um gesto necessa-
ra está suspenso”4. Ou, quem sabe, Quintana re- mento artístico, que, tal como uma nuvem para riamente autoral, o evento não se realiza. Ou, 1
Flávio Desgranges é professor do Departamento de Artes
trucaria, em seu modo zombeteiro e provocativo, o poeta, pode explodir em potencial de sentidos, Cênicas da Universidade de São Paulo. Autor dos livros: Pe-
compreendido de outro modo, a obra de arte
dagogia do Espectador e Pedagogia do Teatro: provocação e
que a arte, como as nuvens, não serve para nada. se assim o quisermos. só se efetiva, segundo a acepção teórica de Iser, dialogismo, pela Editora Hucitec.
na realização do leitor. Ou seja, o texto cênico 2
Poeta brasileiro (1906-1994).
A maneira decidida com que a boa senhora define O ato de leitura solicita a instauração de um se constitui como obra no momento em que é 3
QUINTANA, Mario. Sapato florido, São Paulo: Globo,
o sentido das nuvens, afastando-se das flutuações tempo que contrarie a lógica do cotidiano, que processado pelo espectador. “O texto, portanto, 2005, p. 78.
do jogo de linguagem que lhe foi proposto, no- abra espaço para outro modo perceptivo, que se realiza só através da constituição de uma cons- 4
__________. op. cit., p. 74.
meando o inominável, parece sugerir um modo nos afaste do conhecido, do usual, do esperado. ciência receptora. Desse modo, é só na leitura 5
__________. op. cit., p. 147.
apressado, quase afoito, de empreender a leitura, O ato criador, “que enriquece o acontecimento que a obra enquanto processo adquire seu ca- 6
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência ou so-
indisponível para as incertezas da experiência poé- existencial, é por princípio um ato extrarrítmico”. ráter próprio”9. A experiência estética não pode, bre o saber da experiência. São Paulo. Revista Brasileira de
tica. Ou será que as nuvens, “esses lerdos e des- A existência ritmizada se estabelece por sua gra- pois, ser concebida como algo que se dê sem a Educação. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gradua-
mesurados cágados das alturas” , não podem ser tuidade, sem finalidade, ou regida por uma finali- ção em Educação, jan-abr 2002, nº19, pp. 20-28, p. 25.
efetiva atuação do espectador, e sem que este
pensadas para além de sua utilidade na previsão do dade que não emana de uma escolha, de um jul- se disponibilize para uma produção de sentidos
7
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 1992, p. 133.
tempo? Ou, dito de outra maneira, como disponi- gamento, que não implica responsabilidade. Na a priori inexistentes. O ato do espectador, dis-
8
CHKLOVSKI, Viktor. L´art comme procédé. In: TODOROV,
bilizar-se, na relação com poemas, cenas e nuvens, linguagem, o ritmo prosaico, tal como o ritmo de tante dos limites das teorias da comunicação e Tzvetan (org.). Théorie de la littérature. Paris: Éditions du
para um modo de leitura que ultrapasse a barreira uma canção que acompanha e facilita o trabalho, reconhecido na dimensão artística que o consti- Seuil, 2001, p. 97.
da dimensão lógico-racional, e se permita saborear torna-se importante como fator automatizante; tui, não se resume ao recolhimento de informa- 9
ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura. v. 1. São Paulo: Ed. 34,
os descaminhos da experiência com a arte? o que não ocorre com o ritmo poético, que se ções, ou à decodificação de enunciados, ou ao 1996, p. 51.
APOCALIPSE 1.11
Teatro da Vertigem - SP/BRASIL
Antiga Delegacia Seccional - Centro - FIT 7ª Edição (2004)
Foto: Kika Antunes

51

CORPO A CORPO DAS


ARTES DE PERFORMANCE E
A EXPERIÊNCIA NO PLURAL
FERNANDO MENCARELLI1

As mudanças no cenário cultural têm sido rápidas associação precisa ser permanentemente discu-
e contínuas com a ascensão das mídias móveis e tido e disputado em um momento em que uma
da internet. O campo cultural, em sentido am- “lógica de mercado” parece ter se naturalizado
plo, e o da arte, em particular, estão inteiramen- em diversas instâncias da sociedade. Por outro
te implicados no processo de transformação por lado, a cada vez mais acentuada desigualdade so-
vezes denominado capitalismo da informação. A cial, produzida pelas novas formas de articulação
chamada economia criativa faz parte dos progra- global do capital, envolve outros atores na busca
mas públicos e das políticas culturais. Inovação e por estratégias de transformação da sociedade
criatividade são palavras que agora aparecem re- que coloquem as questões da arte e da cultura
correntemente associadas às ações públicas para no centro da agenda de preocupações.
o desenvolvimento econômico. O sentido dessa
No caminho de uma conectividade cada vez mais inclusiva, novos proble- Concorre para isso, no Brasil, a afirmação de um E acerta também quando se coloca como desafio
mas e questões se apresentam, tais como o das relações possíveis no plano modelo de criação teatral fundado na grupalida- reinventar-se.
da cibercultura, das redes sociais, da tríade arte-corpo-tecnologia. A inte- de, que vem se desenvolvendo desde os anos
ratividade e as formas de convívio virtuais integram esses processos com 1960 e ganhou nova escala a partir dos anos Como avançar? Depois de sua institucionaliza-
novas possibilidades de fluxos e de relações. A ciência e a arte de ponta 1980, representando hoje uma parcela expressi- ção, a questão mais importante, creio, é pen-
têm se ocupado cada vez mais desses territórios e das questões que eles va da produção no País. Tendo emergido em um sar os festivais não como ocorrência, mas como
levantam. As ciências sociais e a filosofia problematizam as formas assumidas contexto internacional e latino-americano que processo; não como programação, mas como
pelo poder, por meio de análises como a do biopoder. Na contraface dessa apostava nesse modelo, o movimento de teatro ação cultural. Um grande desafio, mas, talvez,
virtualização em larga escala, emergem deslocamentos e novas formas de de grupos ganhou fôlego e permanência no Bra- um grande salto. Uma mudança de paradigma
articulação coletiva em que as práticas performativas desempenham papel sil e é uma das principais características de nossa que vem sendo pensada, mas que ainda não se
central. As novas formas de socialização propiciam ações artísticas, culturais produção teatral no contexto internacional. efetivou, na qual o festival seria um ponto de
e políticas nos territórios da cidade, ressignificando e reinventando seus convergência e de compartilhamento de ações
espaços públicos. Espalhados pelo País em grande número, repre- ampliadas e deslocadas no tempo e no espaço,
sentam uma parcela importante da produção em múltiplas esferas. Creio, ainda, ser impor-
teatral de Minas Gerais, têm contribuído para a tante analisar o papel do poder público como
renovação artística local, com repercussão na- agente na dinâmica que hoje envolve os agentes
cional e internacional, e atuam em uma nova culturais locais que atuam na área, sejam eles os
O MOVIMENTO DE TEATRO DE zona em que são indissociáveis as dimensões grupos, os centros de formação, os espaços cul-
estéticas, éticas e políticas de suas ações artísti- turais, uma série de festivais e outros projetos
GRUPOS GANHOU FÔLEGO cas. As transversalidades e interlinguagens apro- consolidados na cidade. Como exemplo, pode-
E PERMANÊNCIA NO BRASIL ximam também os coletivos e artistas de outros mos citar o tema dos festivais. Belo Horizonte já
campos, como as artes visuais e a música. tem festivais em número e áreas suficientes para
E É UMA DAS PRINCIPAIS pensar numa política pública que ofereça aos
CARACTERÍSTICAS DE NOSSA Essa pode ser uma das formas de compreender- seus produtores estrutura, equipamentos, apoio
mos a voga dos festivais de teatro, dança, cir- logístico, divulgação e um plano de integração
PRODUÇÃO TEATRAL NO co e performance que se multiplicam em escala para criar uma programação artística/cultural 53
nacional e internacional nas últimas décadas. A anual da cidade, uma rede em que esses festivais
CONTEXTO INTERNACIONAL forma como a cidade recebeu e se apropriou do seriam reconhecidos e apoiados como eventos
FIT-BH desde suas primeiras edições, tornando- de interesse público regulares que contribuem
-o um dos grandes eventos públicos da cidade, para a afirmação da cidade em sua vocação cul-
pode ser compreendida nesse contexto e de- tural. Mas essa reflexão pode se estender a uma
manda o esforço permanente dos agentes públi- série de outros campos.
As artes de performance, ou seja, o teatro, a dança, o circo e seus novos
cos de operarem na construção do sentido dessa
formatos, têm um papel importante a desempenhar nesse processo por
prática em conjunto com as forças convergentes Em uma cidade como Belo Horizonte, hoje, há
se fundarem na relação entre o artista e seu público, na experiência do
dos agentes artísticos e das demandas públicas um vigor expresso nos movimentos artísticos e
encontro, por terem acumulado ao longo de séculos técnicas de trabalho
que a consolidaram. O FIT-BH tem procurado e culturais, na sociedade civil e em sua capacidade
sobre si, de contato e de ações coletivas. Seja por meio da narrativa, do
encontrado suas formas de atuar ao longo des- de renovação que precisa encontrar resposta nas
mito, da fábula, da imagem ou da imersão em outros sentidos, o corpo a
ses anos, quando se dedica à presença do teatro instâncias públicas. Uma arena como o FIT-BH,
corpo das artes da performance trabalha para a expansão da percepção e
de rua e à ocupação dos espaços não destinados em que se pode exercitar a experiência da cidade
da consciência do sujeito e sua condição e constrói experiência no plural.
previamente a apresentações teatrais, quando como invenção coletiva, é também um lugar pri-
Operando transversalmente entre a sociedade e o indivíduo, as artes de
apresenta uma programação descentralizada, vilegiado para aprofundar esse corpo a corpo en-
performance criam e atuam na dimensão do coletivo, seja internamente
quando expande suas ações para os campos da tre sociedade civil, estado e comunidade artística.
em suas estruturas, seja em sua relação com os públicos locais, regionais,
pedagogia e da reflexão crítica, quando entende
nacionais ou internacionais, a partir de suas proposições artísticas e seus
que sob o termo teatro estão as formas novas
processos criativos. Tanto do ponto de vista da experiência compartilhada,
e tradicionais, da intervenção à performance. O
corpórea, afetiva e simbólica, quanto da proposição de visões críticas e/ou 1
Fernando Mencarelli é professor de teatro na UFMG,
FIT-BH acerta também ao colocar como objeti-
alternativas ao imaginário veiculado exclusivamente por interesses comer- pesquisador do CNPQ e diretor teatral. Foi presidente da
vo explorar as “inúmeras possibilidades de apro-
ciais, o teatro e as outras formas de artes de performance competem hoje Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes
priação coletiva do espaço público”, entendendo Cênicas - ABRACE e coordenador da Pós-Graduação em
fortemente pela constituição e ressignificação do campo simbólico na era da
que “a cidade, território da circulação, do traba- Artes da EBA/UFMG.
cultura da informação. Ainda que sua escala seja aquela possível para uma
lho, da moradia e do lazer, deve ser também ce-
arte do encontro ao vivo, suas questões e suas estratégias contaminam o
nário permanente da fruição artística e cultural”.
território poroso das relações em rede que se multiplicam.
Em 1992, num artigo sobre a sociabilidade urbana,
Maria Ângela D’incão relata uma conversa que teve
com seus jovens sobrinhos, na qual eles comentavam
que andavam nas ruas de São Paulo apenas de carro.
A partir desse relato, ela afirma: “Esse exemplo sugere
que existe, ao que parece, uma recusa da rua, uma
falência da cidade como local de interação: a rua é
perigosa, deve ser evitada” (D’INCÃO, 1992, p. 95).
D’incão não está sozinha nesse diagnóstico. Na verda-
de, vários são os autores que apontam para a morte
ou o declínio do espaço público na cidade contempo-
rânea, com a retração da sociabilidade vivida nas ruas
(SENNET, 1989; DAVIS, 1993; JACOBS, 2000; CAL-
DEIRA, 1997 e 2000; FRÚGOLI, 1995; FRÚGOLI e
PINTAUDI, 1992; entre outros).

Um bom exercício para pensar sobre esse diagnósti-


co seria imaginar o que todos esses autores diriam se
OCUPANDO AS estivessem em Belo Horizonte no dia 2 de junho de
1994, quando o grupo francês Générik Vapeur ocu-

RUAS DE BELO pou as ruas da cidade com o seu Bivouac - uma inter-
venção que nunca mais saiu da memória de quem ali

HORIZONTE OU esteve -, arrebatando os habitantes que, tomados de


susto, emoção, perplexidade, acompanharam aqueles
surpreendentes homens azuis que subitamente apare-
OS ESPAÇOS ciam nas ruas, nos ônibus e até nas árvores. Bivouac foi
o espetáculo que inaugurou o FIT em Belo Horizonte,
55
PÚBLICOS NÃO há 18 anos. De lá pra cá, foram 10 edições e em todas
elas vários espetáculos foram realizados nas ruas2. É

MORRERAM sob essa ótica que escrevo sobre o Festival Interna-


cional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte, bus-
cando problematizar a ideia do declínio dos espaços
JULIANA GONZAGA públicos nas grandes cidades.

JAYME1 Pensar o espaço público do ponto de vista sociológico


é levar em conta o seu caráter construído, o seu uso
por distintos (e, muitas vezes, desiguais) grupos e indi-
víduos. Pelo menos como tipo ideal, o espaço público
é o lugar da diferença, da heterogeneidade, do en-
contro com estranhos. Essa definição decorre do fato
de que esse espaço é (ou deveria ser) aberto e, daí,
é acessível a todos. Mas, exatamente por ser aberto,
tal acesso não significa ausência de conflito, pelo con-
trário, muitas vezes as diferenças no uso do mesmo
BIVOUAC
Générik Vapeur - FRANÇA - FIT 1ª Edição (1994) espaço podem revelar desigualdades e hierarquias, já
Foto: Eugênio Sávio que os encontros ali são mediados por relações de
poder, estilos de vida, segmentações e, muitas vezes,
segregações. Além disso, nem sempre se deseja en-
contrar e interagir com o estranho, como coloca Lyn
Lofland (1985). Aliás, essa recusa ao “outro” e a busca
da sociabilidade entre iguais, possível nos espaços pri-
vados e nos chamados espaços semipúblicos, como
os shoppings centers, é um dos motivos que leva cidade. Para citar apenas dois exemplos, gostaria
os autores acima citados a advogar a morte do de lembrar o já reconhecido duelo de MCs que,
espaço público nas sociedades contemporâneas. desde 2007, reúne jovens de camadas médias e
populares, moradores de rua, profissionais libe-
Não estou aqui querendo negar essa, digamos, rais, estudantes e até os chamados meninos em
dificuldade em conviver com o diferente. Por ou- situação de rua, nas noites de sexta-feira, sob o 1
Juliana Gonzaga Jayme é antropóloga, professora e
tro lado, não acredito que os espaços públicos es- viaduto de Santa Teresa - no centro de Belo Hori- pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências
tejam mortos, embora se perceba uma mudança zonte - em torno do rap. Nas tardes de sábado é Sociais e dos cursos de graduação em Serviço Social e
na forma como distintos grupos usam esses es- o Quarteirão do Soul que ocupa as ruas do centro Publicidade e propaganda da PUC Minas.

paços, buscando, muitas vezes, uma convivência de Belo Horizonte desde 2004, no qual pessoas 2
Os espetáculos trazidos pelo FIT acontecem também
entre iguais, talvez pelo próprio sentimento de de meia idade fazem um baile a céu aberto, dan- em palcos, mas cerca de 50% são realizados em espaços
públicos (Revista FIT, 2008).
insegurança comum nas grandes cidades, como çando a música soul (RIBEIRO, 2008) e também
foi explicitado na frase de Maria Ângela D’incão. já reúnem em torno do baile diferentes grupos
Mas a cidade é plural e diversa e seus espaços e indivíduos, não necessariamente vinculados à REFERÊNCIAS
públicos revelam essa diversidade, expressando black music.
diferentes estilos de vida, sociabilidade e modos ALMEIDA, Rachel de Castro. Paisagem urbana e espaço GOIS, Aurino José. Parque Municipal de Belo Horizonte:
público: um estudo de duas praças de Belo Horizonte. Disser- público, apropriações e significados. Dissertação (Mestrado
de lidar com os riscos presentes (ou imaginados)
tação de Mestrado. Belo Horizonte, Programa de Pós-grad- em Ciências Sociais) - Programa de Pós-graduação em Ciên-
nas interações com estranhos. Assim, mesmo uação em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica cias Sociais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
que tenha mudado a maneira de apropriação O ESPAÇO PÚBLICO de Minas Gerais, 2001. 2003.
dos espaços públicos, tanto pelo medo do crime ANDRADE, Luciana. Singularidade e igualdade nos espaços JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo:
como pela intolerância à diferença, não se pode
É O LUGAR DA públicos. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XLIII, Ano. Martins Fontes, 2000.
2, Julho-dezembro, p. 112-127, 2007.
dizer que ela não exista. DIFERENÇA, DA ANDRADE, Luciana; JAYME, Juliana; ALMEIDA, Rachel.
JAYME, Juliana; NEVES, Magda. Cidade e Espaço Público:
política de revitalização urbana em Belo Horizonte. Cadernos

Há autores que corroboram com o meu ar- HETEROGENEIDADE, Espaços Públicos: Novas Sociabilidades, Novos Controles.
Cadernos Metrópole 21. São Paulo: EDUC, p. 131-152, 1º.
CRH, Salvador, v. 23, n. 60, p. 605-617, set/dez, 2010.
LEITE, Rogério Proença. Contra-usos da Cidade: lugares e
gumento e, partindo de pesquisas empíricas, DO ENCONTRO COM Semestre, 2009.
espaço público na experiência urbana contemporânea. Campi-
chamam atenção para a não “naturalização” ou CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Enclaves Fortificados: a nova
56 ESTRANHOS segregação urbana. Novos Estudos CEBRAP, n. 47, p. 179-
nas: Editora da Unicamp; Aracaju: Editora UFS, 2004.
57
universalização dessa ideia de morte do espaço LISBOA, Camila Barcelos. As imagens do silêncio: uma análise
192, 1997.
público, na medida em que percebem a vitalida- sócio-antropológica das interações entre surdos de Belo Hori-
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, zonte. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Progra-
de de diversos espaços públicos, como praças e
segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/ ma de Pós-graduação em Ciências Sociais, Pontifícia Univer-
parques (ALMEIDA, 2001; GÓIS, 2003; LISBOA, Edusp, 2000. sidade Católica de Minas Gerais, 2007.
2007; ANDRADE, JAYME e ALMEIDA, 2009; O FIT, é óbvio, pode ser lido de diferentes ma- DAVIS, Mike. Cidade de Quartzo: escavando o futuro em Los LOFLAND, Lyn H. A world of strangers: order and action in
GIRÃO, 2010; TREVISAN 2012) ou, por outro neiras, mas quero pensá-lo aqui como um fenô- Angeles. São Paulo: Scritta, 1993. urban public space. Illinois: Wavelan Press, 1985.
lado, a possibilidade de “contra-usos” de lugares meno a partir do qual a noção de espaço pú- D’INCAO, Maria Ângela. Modos de ser e de viver: a socia- RIBEIRO, Rita. Identidade e Resistência no Urbano: o Quar-
enobrecidos, por pessoas que estariam cons- blico, mesmo aquela mais ideal, de local aberto bilidade urbana. Tempo Social: Revista de Sociologia USP, vol. teirão do Soul em Belo Horizonte. Trabalho apresentado no
4 (1-2), 1992. XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Caxambu-
trangidas de os frequentarem, devido a barreiras a todos, parece explicitar-se. Os espetáculos de
FIT Revista 3. Belo Horizonte, 2008 MG, 2008. Disponível em:
simbólicas e reais (LEITE, 2004; URIARTE, 2010; rua trazidos pelo Festival nesses 18 anos - se- http://www.letras.ufrj.br/linguisticaaplicada/gtidentidade/
FRÚGOLI Jr., Heitor. São Paulo: espaços públicos e interação
TREVISAN, 2012). jam eles “arrebatadores”, como Bivouac, ou mais social. São Paulo: Marco Zero, 1995. docs/recom/ribeiro.pdf.
contemplativos, como O Bracelete de Jade e Ou- FRÚGOLI, Heitor e Pintaudi, Silvana Maria (orgs.). Espaço, SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias
Escrevendo este texto em 2012 - pouco tempo tras Árias de Ópera Chinesa, do grupo Chinese Cultura e Modernidade nas Cidades Brasileiras. São Paulo: da intimidade. Trad. Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1989.
depois que uma série de movimentos de protes- Theatre Circle, de Singapura - juntam, em um UNESP, 1992.
URIARTE, Urpi Montoya. Por trás das fachadas coloridas.
tos ocupou as ruas de diferentes cidades do mun- mesmo espaço público, diferentes pessoas e gru- GIRÃO, Adriana Freire. “Para animar os ânimos”: interações,
sentidos e percepções do centro de uma grande cidade a partir Etnografias nos “novos” Bairros do Recife (Pernambuco) e
do, os Occupy, com reivindicações distintas, mas pos, que se unem em torno de um evento. Mas Pelourinho (Bahia). Ponto Urbe: Revista do núcleo de an-
de suas sonoridades comerciais. Dissertação (Mestrado em
que tinham em comum a ocupação dos espaços não só. Parece que, além dos próprios espetácu- Ciências Sociais) - Programa de Pós-graduação em Ciências tropologia urbana da USP. Ano 4, dez 2010. Disponível em:
públicos - a ideia de morte do espaço público los, distribuídos por toda a Belo Horizonte, há o Sociais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, http://www.pontourbe.net/edicao7-artigos/128-por-tras-
2010. das-fachadas-coloridas-etnografias-nos-novos-bairro-do-
pode parecer anacrônica. Gostaria de dizer, po- que Maria Antonieta Antunes Cunha chamou de recife-pernambuco-e-pelourinho-bahia.
rém, que as ruas e as praças de Belo Horizonte estado FIT (Revista FIT, 2008, p. 06) e esse esta-
são apropriadas há muito. Creio que os belo-ho- do, na maioria das vezes, se revela na ocupação
rizontinos parecem não se conformar com essa das ruas, praças e parques, antes, durante e de-
ideia de declínio ou morte do espaço público. pois das diferentes apresentações. Pode-se dizer
Isso se torna claro nas diferentes apropriações que, nos dias em que o Festival Internacional de
de espaços urbanos - que, por esses usos, se Teatro acontece, o sentimento de que a rua é
transformam em lugares - das regiões centrais da pública se torna mais evidente.
O DISSIDENTE
TEATRO
BRASILEIRO
ALEXANDRE VARGAS1
O Brasil vive um momento de sociabilidade bem
diferente daquele que originou diversos festivais
no País. É nesse contexto que a reflexão se es-
tabelece: para que os festivais não se afoguem,
é necessário repensar o novo processo de so-
ciabilidade brasileira. Os inúmeros festivais que
compõem o circuito do teatro brasileiro são dis-
tintos entre si e conservam características, traços,
perfis, negócios, lobbies, modelos de produção e
imagens inflacionadas que forjam uma identida- 59
de que foi arduamente construída ao longo dos
anos. Essa trincheira de convicção pode ser um
cárcere que ofusca o pensar contemporâneo so-
bre os novos caminhos dos festivais de teatro no
Brasil. Portanto, como fugir da acumulação, da
experiência que se cristaliza em uma identidade e
se converte involuntariamente em uma limitação?
Em que consiste a continuidade dos festivais de
teatro no Brasil para destilar novas imagens, fra-
grâncias e sabores? Para que algo tenha uma his-
tória, tem que haver certa continuidade entre seu
passado e seu presente. Então, a questão nuclear
dos festivais é não perder a revolta e redescobrir
a curiosidade intelectual e o desejo de diálogo
profissional, sem esquecer que os grandes defen-
sores dos festivais são os habitantes das cidades.

COCHE PORQUE? PORQUE COCHE?


Générik Vapeur - FRANÇA - 3ª Edição FIT (1997)
Foto: Guto Muniz
90.000 pessoas. O FTRPA procura, além de en- uma tendência atual do mundo. O FTRPA, em transcender. Trata-se de uma transcendência con-
focar a democratização da cultura e da informa- cada edição, materializa um Núcleo de Reflexão creta que consiste na superação dos limites que
ção, o fomento à diversidade cultural e artística. sobre o campo cultural contemporâneo, esti- tradicionalmente distinguem o que é teatro do que
mulando o estudo de questões locais e globais. não o é, entre a prática artística e a intervenção
O conceito estrutural é edificado em três eixos: Reconhecemos a importância de divulgar e tor- política ou social.
apresentações de teatro de rua, performances e nar compreensíveis as informações sobre o setor
intervenções urbanas, com grupos do Rio Gran- como ferramenta para o desenvolvimento dos Quase toda órbita do teatro de rua é marginal em
de do Sul e de outros estados; formação com saberes. Ao considerar a natureza desse debate, relação aos centros em que pulsam a vida e o tea-
workshops e oficinas; e reflexão com seminários, sobre as culturas distintas, optamos pela cons- tro (a cultura) de nosso tempo Brasil. O teatro de
palestras, conferências e lançamento de livros. trução de uma plataforma de acervo digital, o rua leva a marca de uma diversidade que pode ter
www.ftrpa.com.br, fazendo deste um conteúdo a debilidade de um limite ou a força e a dignidade
A Inquietação Conceitual de cada edição e uma que pode ser acessado a qualquer hora, nos re- de quem se reconhece em minoria, mas é, aci-
Agenda de Pesquisa surgem de uma confluência de cantos mais longínquos. ma de tudo, um modo particular de mover-se no
inquietudes advindas do universo cultural do tea- panorama do teatro que se realiza no País. Ele é
tro de rua realizado no mundo contemporâneo, Estabelecer relações de cooperação com o mun- dissidente porque cria uma distância sem separar-
que redefine o espaço urbano da sociabilidade. do artístico e suas diversidades expressivas é -se por completo para evidenciar suas diferenças.
fundamental na gestão do festival. Portanto, no Essas diferenças se tornam fecundas somente se
perfil da gestão está a capacidade de entender os convertidas em inquietações. Nesse sentido o Fes-
processos criativos. A diversidade de profissionais tival de Teatro de Rua de Porto Alegre propõe uma
que integram a equipe enriquece o modelo ad- troca antropofágica. Ele cria um momento efême-
NO PLANO ministrativo que visa à sustentabilidade por meio ro e ilusório de reciprocidade e paridade para ab-
NACIONAL, O da diversidade de recursos. sorver o essencial e expulsar o supérfluo.

TEATRO DE
RUA É UM RICO O LUGAR FÍSICO,
60 1
Alexandre Vargas é coordenador geral e diretor artístico do 61
CALEIDOSCÓPIO GEOGRÁFICO, Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre.

A GESTÃO DO DE CULTURAS AFETIVO E MENTAL


FESTIVAL DE TEATRO QUE PODEM DO TEATRO DE RUA
DE RUA DE PORTO TRANSFORMAR NO BRASIL

ALEGRE
A CRIATIVIDADE A consistência do teatro de rua reside no grupo
vulnerável de pessoas que o compõem. Esse te-
“Em que lugar físico, geográfico, afetivo e mental BRASILEIRA atro desaparece com essas pessoas, mas ele se
se encontra o teatro de rua no Brasil?”. É à luz move baseando-se em desenhos independentes.
dessa pergunta que foram estabelecidas as bases Sua forma, sua maneira de se organizar, de entrar
para a constituição do Festival de Teatro de Rua em contato com os espectadores e com a reali-
de Porto Alegre, que teve a sua 1ª edição em O Festival envolve contextos culturais, econô- dade social circundante, em muitos casos, não se
2009. Produzir reflexão, desafiar posturas e po- micos e sociais diferentes. No plano nacional, o adapta aos modelos teatrais vigentes. Em geral,
sicionamentos entre o tradicional e o contempo- teatro de rua é um rico caleidoscópio de culturas esse teatro deriva de necessidades pessoais e do
râneo é uma intencionalidade artística do festival. que podem transformar a criatividade brasileira. grau de distância dos valores e práticas reconhe-
No contexto de Porto Alegre, o festival é uma cidos e consolidados.
Em quatro anos, o FTRPA se consolidou. É con- estratégia para o crescimento e a regeneração de
siderado um dos maiores festivais do gênero no riquezas na cidade, pois insere Porto Alegre no A história do teatro de rua no Brasil ainda é sub-
Brasil. Em 2012, foram realizadas 150 inscrições contexto de cidade global ao redefinir o espaço terrânea, muitas vezes sem nome e sem fama.
de 15 estados do País. O sucesso é creditado aos de sociabilidade no urbano. Em muitos casos, é um terreno escuro e tur-
artistas e aos pesquisadores participantes, mas bulento de onde surgem e desaparecem valo-
acima de tudo pela aceitação da população de A interface entre o teatro de rua e a tecnolo- res imprevisíveis e experiências imprevistas. No
Porto Alegre. Estima-se que o público atingido gia é pensada para um desenvolvimento integral. entanto, é aqui que o teatro pode se renovar e
diretamente em cada edição gire em torno de Introdução, reflexão e geração de conteúdo são
Estreia do espetáculo Romeu e Julieta, do Grupo ESPECIAL GRUPO GALPÃO 30 ANOS
Galpão, em 1992, na Praça do Papa.
Foto: Magda Santiago.

GRUPO GALPÃO:
UMA TRAJETÓRIA
CAMALEÔNICA
EDUARDO MOREIRA1

O Galpão sempre teve uma curiosa característica:


apesar de montar espetáculos bastante distintos, com
linguagens que transitam em diferentes vertentes, indo
da rua para o palco, da farsa para o realismo, da dra- 63
maturgia própria para a adaptação de clássicos, o pú-
blico que nos acompanha, mesmo reconhecendo as
diferenças, sempre percebe uma identidade do Gal-
pão na maneira de montar as peças e de apresentá-
-las. E a pergunta que sempre permanece é: afinal de
contas, que tipo de identidade é essa?

A formação do grupo aconteceu em 1982, a partir do


trabalho desenvolvido com George Froscher e Kurt
Bildstein, diretor e ator principal da companhia ale-
mã “Teatro Livre de Munique”. Em quase seis meses
de atividade intensa, eles montaram um espetáculo (A
alma boa de Setsuan) e, mais do que isso, fizeram um
trabalho teatral de formação. Ao final, os atores fa-
lavam e entendiam uma linguagem teatral comum e
partilhada por todos. Depois das poucas apresenta-
ções do espetáculo, os alemães tomaram seu rumo e
teríamos ficado a ver navios, não fosse a nossa rápida
decisão de criar um grupo que desse continuidade e
desenvolvesse aquela linguagem em comum que havia
sido aprendida.
Apesar de o passo fundamental para a consolida- Linares, Eid Ribeiro, Gabriel Villela, Cacá Carva-
ção do nosso grupo ter sido a conquista de uma lho, Paulo José, Paulo de Moraes, Yara de Novaes
linguagem comum, tínhamos a exata medida de e Jurij Alschitz, só para citar os artistas que diri-
que um longo caminho de aprendizado e riscos giram espetáculos do Galpão. A lista ainda teria
ainda se colocava diante de nós. Esse é, aliás, o de ser engrossada por inúmeros outros com os
foco fundamental e diferenciador do trabalho, da- quais fizemos oficinas de direção, além de pre-
quilo que se denomina como “teatro de grupo”. paradores vocais, músicos, maestros, cenógrafos,
A construção de um espetáculo só faz sentido se dramaturgos, figurinistas, técnicos e produtores
colocada dentro da perspectiva de um processo que, por meio dos seus trabalhos, fizeram com
de aprendizado e risco, que está além do espe- que repensássemos nossa maneira de atuar e de
táculo em si. Montar peças é fundamental e será ver o teatro.
sempre o cerne do nosso trabalho, mas a monta-
gem precisa estar inserida na perspectiva do gru-
po e seu horizonte de conquistas artísticas. Aliás, O ELEMENTO DA
é bom que se diga que esse caminho de apren-
dizado e de riscos é infinito, e só termina com a DIVERSIDADE FOI E
morte. Ou, como diria o diretor Peter Brook, o
fim dessa perspectiva significa a morte do teatro.
CONTINUA SENDO
E aí talvez esteja a chave para a resposta de como
FUNDAMENTAL o público sempre enxerga, por trás da diversida-
Um exemplo bem claro desse objetivo artístico,
que está além da missão de montar espetáculos, é
PARA A NOSSA de de formato dos espetáculos, a cara do Galpão.
A disposição de estar inteiro naquilo que se pro-
a utilização da música tocada ao vivo pelos atores LONGEVIDADE E põe, de colocar a própria vida e de transformar
em nosso trabalho. Até 1986, o grupo não tinha,
coletivamente, nenhuma formação musical, nem SOBREVIVÊNCIA em vida que pulsa a expressão da nossa arte.

tocava instrumentos. Foi depois da participação


Para concluir, gostaria de dizer que, no ano em
64 em festivais internacionais, em que travamos con- 65
que o Galpão celebra os seus trinta anos de exis-
tato com companhias que usavam teatralmente Dessa forma, o trabalho do Galpão tende mui- pressão individual de cada um dos componentes
tência, certamente o elemento da diversidade
a música em seus espetáculos (Yuyachkani, do to mais à diversificação do que à especialização. pode ser uma pista. Assim como a marca de criar
foi e continua sendo fundamental para a nossa
Peru; Tascabile e Potlach, da Itália, entre outros), Com exceção do nosso método de criação inter- espetáculos que estabeleçam uma comunicação
longevidade e sobrevivência. Nos muitos encon-
que resolvemos encarar o desafio de estudar mú- na de cenas, chamado por nós de workshop, que sempre direta com o público, independentemen-
tros com artistas e grupos que fazemos em dife-
sica e tocar instrumentos musicais. E foi só depois é a criação de uma ideia cênica num regime de te do estilo.
rentes cidades do País, uma das perguntas mais
de mais de cinco anos de trabalho intenso que o urgência entre os próprios atores para ser apre-
comuns é: como vocês conseguem conviver por
projeto artístico de usar a música nos espetáculos sentada aos diretores, todos os nossos proces- Ao longo de trinta anos, o grupo passou e con-
tantos anos, afinal, um grupo de teatro requer
se concretizou, com a montagem de “Romeu e sos de ensaio e de criação de espetáculo variam tinua circulando pelas mais distintas linguagens,
uma espécie de compromisso semelhante a um
Julieta”, cuja estreia aconteceu em 1992. enormemente de montagem para montagem. como o teatro de rua, o universo do clown, o
casamento? A resposta óbvia é que precisamos
Por um lado, os workshops nos permitem manter circo, as pernas-de-pau, a acrobacia, a música, o
de muita paciência e perseverança. Na verdade,
A opção pela formação de um grupo de atores, viva a chama de um grupo de atores-criadores, espírito do cabaré, o teatro épico, o melodrama,
acho que algo que sempre ajudou a oxigenar as
sem um diretor fixo, evidentemente não foi pla- que participam ativamente de todo o processo o teatro de ações físicas, o realismo, o drama, o
relações internas dentro do Galpão foi o fato de
nejada. Ela aconteceu de forma natural. Desde o de criação. E, por outro, as mudanças de método tai chi chuan, o balé clássico, a dança de salão, o
sermos um grupo de atores que sempre trabalha
início, não havia uma liderança clara pelo fato de de criação são ingrediente fundamental para que teatro musical brasileiro, a ópera, a farsa, a bufo-
com diferentes diretores. Os pontos de vista e
sermos igualmente jovens e nenhum de nós pos- o grupo não caia numa fórmula e busque sempre naria, a tragédia, etc. Nosso campo de interesse
as metodologias diversas de ver o teatro desses
suir mais experiência ou um maior conhecimen- se reinventar. é ilimitado e acredito que o mais importante seja
diretores em seus processos de trabalho foram e
to do teatro. Nesse sentido, o fracasso de uma sempre buscar aquilo que nos falta, aquilo que
continuam sendo um elemento fundamental de
experiência de direção coletiva (a montagem do Mas, se os espetáculos variam tanto em seus temos desejo de tocar e conquistar. Não nos tor-
renovação das relações internas do grupo.
espetáculo Arlequim, servidor de tantos amores) formatos de criação e de resultado final, o que namos especialistas, mas somos artistas curiosos,
e o encontro com o diretor Ulisses Cruz, numa explicaria o fato de o público enxergar sempre a que buscamos sempre novos horizontes e limi-
oficina no Festival de Inverno da UFMG, foram cara do Galpão nas peças criadas? O fato de os tes. E procuramos, acima de tudo, tocar e viven-
mesmos atores, quase sempre, estarem em to- ciar essa matéria chamada teatro com o máximo
1
Eduardo Moreira é ator, diretor e um dos fundadores do
fundamentais para que o grupo redimensionas-
Grupo Galpão. Participou ativamente de todos os momentos
se sua organização artística e passasse a convidar dos os espetáculos não seria uma explicação su- de humanidade e de espírito de entrega. Estar
da trajetória do Grupo, que agora completa 30 anos. Além
diretores de fora da trupe. E assim aconteceu ficiente. Já a característica de fazermos um teatro pleno e inteiro naquilo que é nosso barro, nossa disso, Eduardo é colaborador frequente de diferentes
sucessivamente com Paulinho Polika, Fernando calcado muito mais no coletivo e menos na ex- ferramenta de trabalho e de vida. coletivos teatrais da capital mineira e de todo o País.
PATROCINAR É
COMPACTUAR
COM A ARTE
REGINA STUDART1

67

K@OSMOS
Puja - ESPANHA - FIT 10ª Edição (2010)
Foto: Daniel Protzner
Arte é criação. E criação não existe sem risco. Arte é risco, Como se trata de pesquisa, não se sabe que cami- festivais de teatro, cinco de dança e três de cir-
é folha em branco, salto sem rede. A arte mexe com as nhos serão percorridos, muito menos no que vai co, além de um festival multilinguagem. Se é que
pessoas, as tira do lugar-comum. É a beleza inesperada, a dar. É uma aposta cega, cujo resultado será sem- podemos fazer essa divisão nos dias de hoje, em
poesia do corriqueiro, o óbvio revelado. pre surpreendente, para o bem ou para o mal. que as linguagens são cada vez mais misturadas e
transversais.
Patrocinar arte é, portanto, uma aposta no escuro. Não Nossa primeira seleção pública foi a de 2006/2007
há bola de cristal. Os consagrados, os medalhões também e os resultados foram bem diversos daquilo que Os festivais cumprem importante função den-
erram. Certezas não existem. Então como conciliar os in- esperávamos. Quase todas as companhias opta- tro da cadeia produtiva das artes cênicas, não
teresses de uma empresa com os incertos rumos da arte? ram por fazer um trabalho diferente, fugindo de só como um espaço privilegiado de exibição de
Simplesmente deixando-a livre. A arte não pode ser dirigi- suas principais características. Souberam aprovei- espetáculos, mas também como grandes respon-
da, doutrinada, corporativa. Senão, não é arte. tar a oportunidade e arriscaram. sáveis por sua circulação pelo País e pelo inter-
câmbio de saberes e fazeres.
Para patrocinar arte, é preciso compactuar com o risco. Ser Além do estímulo à pesquisa, buscamos contem-
cúmplice. Tarefa nada fácil para quem está, como se diz por plar também a diversidade de linguagens e a dis- É nos festivais que as companhias se conhecem,
aí, “do outro lado do balcão”. Somos cobrados por chefes, persão regional. interagem e percebem a possibilidade de com-
colegas e superiores e pela opinião pública. Cansei de ouvir partilhar vivências. Hoje, o processo de criação
a frase já clássica: “mas como é que a Petrobras patrocina Desde 2006, a Petrobras selecionou, pelo Petro- coletivo é uma realidade. E não só entre os in-
isso?” Assim mesmo, grifado. bras Cultural, cerca de 55 companhias de teatro, tegrantes do mesmo grupo, mas também com
dança e circo, oriundos de todas as regiões do outros grupos, o que torna ainda mais rica essa
País, com linguagens tão distintas que vão do expe- rede criativa.
rimental ao popular, do teatro de rua ao teatro de
PARA PATROCINAR animação, do circo tradicional ao contemporâneo. O processo de criação colaborativa e a pesquisa
dramatúrgica dos grupos vêm se consolidando
ARTE, É PRECISO Ficamos com uma carteira de projetos rica e di- gradativamente. E isso vem se refletindo na grade
COMPACTUAR COM versificada. E isso acabou se traduzindo na Mos- dos festivais que, a cada ano, vem pautando mais e

O RISCO tra Petrobras, realizada em seis grandes festivais mais grupos que mostram trabalhos de qualidade 69
de artes cênicas no ano de 2011. A ideia da cada vez maior. E, ao pautar esses grupos, os gran-
Mostra surgiu quase que por acaso, ao consta- des festivais consolidam e legitimam seu trabalho.
tarmos que havia seis espetáculos patrocinados
pela Petrobras na grade da Mostra Oficial do Fes- Chegando à sua 11ª edição, é inegável o papel
É claro que nem tudo dá certo, mas se não houver o risco,
tival de Curitiba. Diante dessa realidade, por que do FIT-BH no crescimento e amadurecimento do
a ousadia, a busca pelo diferente, não vai haver o novo, o
não colocar um “selo” nesses espetáculos, iden- trabalho coletivo dos grupos mineiros. Ao des-
inusitado, o genial. Tentar, testar, pesquisar são fundamen-
tificando-os com o patrocínio da empresa? Afinal centralizar suas ações e pautar muitos espetáculos
tais para o desenvolvimento da arte.
de contas, qual outra empresa, no País, pode se de rua, o FIT-BH não só contribui para a popula-
orgulhar de patrocinar tantas companhias e com rização do teatro, mas também provoca e impul-
Foi com esse entendimento que abrimos seleção pública
tamanha qualidade? siona uma renovação constante da cena mineira.
para a área de artes cênicas no Petrobras Cultural, com a
proposta inédita de contemplar a manutenção de grupos e
A adesão dos festivais que patrocinamos foi ime-
companhias de teatro e dança.
diata, o que nos deixou extremamente felizes.
1
Todos quiseram realizar a Mostra Petrobras e até Regina Studart é coordenadora de Artes Cênicas da
E por que escolher grupos e companhias estáveis em vez Petrobras.
mesmo festivais que não são patrocinados pela
de montagens? Justamente por acreditar que o trabalho em
Petrobras pediram para fazer a Mostra dentro da
grupo e a convivência são terrenos férteis para experimen-
sua programação.
tações, pesquisa teatral e busca de novas linguagens e pos-
sibilidades cênicas. Olha só o risco...
A realização da Mostra Petrobras serviu para for-
talecer ainda mais a nossa marca, através da dupla
A proposta é patrocinar a manutenção de grupos e compa-
exibição, mas também - e principalmente - a nos-
nhias durante dois anos, em que o primeiro ano é dedicado
sa parceria com os festivais.
à pesquisa e o segundo, à montagem de um espetáculo
inédito, fruto dessa pesquisa. Não há estímulo maior à ou-
A Petrobras patrocina 17 festivais de artes cênicas
sadia artística do que dar condições de o artista criar, sem a
no Brasil, sendo 14 deles internacionais. São oito
obrigação de matar um leão por dia.
PRODUÇÃO E
DIVULGAÇÃO
SEMPRE DE
MÃOS DADAS1
BIA MORAIS2

Um convite e uma sugestão de tema para reflexão


para esta edição da FIT Revista: quais são os desafios
de um assessor de imprensa ao divulgar o trabalho de 71
grupos experimentais de teatro e festivais alternativos?
A imprensa é receptiva e dá espaço para o novo? A
assessoria de imprensa consegue efetivamente poten-
cializar a visibilidade de um grupo e/ou ator em peças
que exploram novas linguagens?

Por aproximadamente vinte anos em que atuei como


assessora de imprensa de festivais e grupos de teatro
nunca percebi, por parte da mídia em geral, restrições
ou preconceitos a novas linguagens. Ao contrário, há
uma admirável curiosidade pelo que é novo ou inédito
nesse campo.

Por esse motivo, escolhi falar sobre algumas atitudes


que auxiliam o artista a potencializar o impacto de seu
trabalho, seja qual for o gênero das artes cênicas a que
se dedica. Afinal, o que aumenta de verdade as pos-
sibilidades de repercussão de um espetáculo é o que
lhe é intrínseco: a qualidade do texto, do elenco, da
direção, do cenário, do figurino, da trilha. Contando
ou não com um assessor de imprensa, são os atores
e os diretores que “assinam” o produto, por isso as
sugestões que faço a seguir se destinam a eles.
DEUS E O DIABO NA TERRA DA MISÉRIA
Iogalé Cooperativa de Artistas Teatrais - BRASIL - 5ª Edição FIT (2000)
Foto: Guto Muniz
cesso desde o primeiro momento. É a curiosidade do público. Mas é preci- Outro item a merecer atenção é o material de
comum que os produtores de teatro se so conhecer o perfil de cada uma delas. divulgação de um espetáculo. Sugestões de pauta
lembrem da divulgação apenas quando o Sem isso, há o risco de a informação incorretamente escritas, fotos pouco artísticas e
espetáculo está em fase de conclusão, a se tornar redundante. E o efeito será o com baixa resolução, sem identificação dos foto-
uns 15 dias da estreia. Perdem-se aí boas contrário do que se quer. Mude o tex- grafados ou sem crédito, vídeos de má qualidade
oportunidades de dar visibilidade ao to, troque as fotos, ache novos ângulos, ou que pouco sugerem sobre o que é o espetácu-
produto. Na fase de concepção e pro- acrescente informações, sugira links so- lo prejudicam a percepção do jornalista e podem
dução de um espetáculo, surgem fatos bre o assunto. desmotivá-lo a dedicar espaço para a produção.
que, se transformados em teasers, gera-
rão curiosidade e expectativa. É preciso E mais: ator que se preze tem de conhe- O jornalista se sente mais estimulado, igualmen-
que tanto jornalistas do campo cultural, cer o seu público (virtual e real) e saber te, quando o artista consegue mostrar-lhe ângu-
quanto o público se sintam “provocados” falar de seu trabalho. É frustrante para o los interessantes que possam ser abordados em
a assistir ao espetáculo. Por isso os cria- repórter, ao entrevistar um ator ou um suas matérias. Isso se torna mais fácil se ele co-
diretor, perceber um descompasso en- nhece bem o perfil de cada meio de comunica-
tre artista e obra; ou que, por timidez ção. Não saber quem é o jornalista especializado
ou dificuldade de comunicação, o artista em artes cênicas em cada jornal é inadmissível
ATOR QUE SE não consiga discorrer sobre o que criou. em um ator, mas é preciso que, mais do que isso,
Em 2009, o saudoso crítico Marcello ele saiba qual ângulo do seu produto vai interes-
PREZE TEM DE Castilho Avellar, em entrevista para o sar a cada um deles.
CONHECER O trabalho “Divulgação Cultural - Pesquisa
e Levantamento de Dados”, de minha Enfim, é preciso que a parceria entre produção
SEU PÚBLICO autoria, apontava para um aspecto nem e divulgação seja eterna enquanto durar a vida
(VIRTUAL E sempre levado em consideração pelos
artistas: “não saber discorrer sobre seu
do espetáculo. Se assim for, bons resultados de
divulgação e público acontecerão naturalmente.
REAL) E SABER trabalho é consequência de não conhecer
72 o seu público, de não saber para que serve 73
FALAR DE SEU o seu trabalho, e de não poder, com isso,
TRABALHO argumentar e convencer a imprensa de
1
Disponível brevemente no endereço:
www.espaconave.org
que tem um bom produto para divulgar. O 2
Bia Morais é jornalista e assessora de imprensa. Foi
artista deveria sempre se perguntar: qual coordenadora de comunicação do FIT-BH nas edições de
Depois de meses e meses de concepção e produção de dores e produtores devem estar atentos é o valor disso que meu trabalho apresen- 1997, 1998, 2002, 2006 e 2008.
um espetáculo, não conseguir compartilhar com o público à divulgação todo o tempo, treinando os ta, para que isso serve? Porque o fato de
- os diversos públicos - o espetáculo criado é, no mínimo, olhos e as mentes para perceber quais ele não saber essa resposta dificulta a co-
frustrante. Afinal, quem se satisfaz em criar algo só para si são os “ganchos” que poderiam se con- municação com a mídia e com o público”,
ou para poucos? No sistema de produção de bens cultu- verter em notas na imprensa tradicional ensinou o crítico.
rais, todas as etapas (produção, distribuição, comercializa- ou em posts nas mídias sociais: fotos in-
ção e consumo) devem ser cumpridas. Nenhum ser quer teressantes de ensaios, notícias relevan-
criar só pelo prazer de criar. tes ou curiosas sobre o autor do texto,
sobre o diretor ou atores do espetáculo,
Aí cabe a pergunta: quem produz, quem cria produz e cria confirmação de apoios ou patrocínios,
para que, para quem? Penso que se cria para dar vazão a algum fato peculiar acontecido durante
um impulso interno irreprimível e para revelar ao outro a os ensaios, entre outros. Tudo isso é
invenção. Ou seja, quem cria ou produz um bem cultural informação, cujo fluxo deverá ser bem
não pode deixar de levar em conta a recepção, e a divul- planejado: Quantos posts por mês? Qual
gação é um dos mais importantes instrumentos para fazer é a periodicidade das sugestões de pau-
a produção cultural chegar ao primeiro público, que são os tas? Para quem? Em quais mídias?
jornalistas, e depois ao grande público.
As mídias sociais - Facebook, Twitter,
O cuidado e o rigor com todas as etapas da produção pre- Orkut, Youtube, blogs e outras - estão
cisam ser inegociáveis. E a divulgação tem que deixar de aí justamente para isso: criar expectati-
ser uma etapa, a última. Ela deve permear todo o pro- vas, ir informando aos poucos, aguçando
CRÍTICA
E AUTOCRÍTICA
LEO CUNHA1

Trágica e precoce, a morte de Marcello Castilho


Avellar, no final de 2011, parece sublinhar o fim de
um capítulo da crítica cultural em Belo Horizonte.
Marcello era remanescente de uma época em que
o jornal diário era o lugar prioritário, e às vezes úni- 75
co, onde o leitor buscava o texto crítico. Ele também
professava o tipo de crítica que ia além do julgamen-
to, da nota, da estrelinha. É claro, a opinião pessoal
de Marcello sempre esteve presente em seus textos,
mas aliada a uma grande capacidade de exame de
cada obra e de sua inserção no panorama maior de
um gênero, da trajetória de um artista, da arte como
um todo. Tal capacidade era alimentada por um no-
tável repertório (que lhe valia o apelido carinhoso de MÁQUINA HAMLET
El Periferico de Objetos - ARGENTINA - FIT 4ª Edição (1998)
“Barsa Careca”), não restrito somente a teatro, dança, Foto: Kika Antunes
cinema, literatura e quadrinhos, mas estendendo-se à
cultura de maneira mais ampla, incluindo a mitologia,
a filosofia, a política e outros campos.
as obras artísticas, seus princípios, ideias e ob- muito maior do que aquele em que a peça foi en-
jetos. Como lembra Barbara Heliodora em um saiada. A felicidade de saber que os ingressos se
depoimento (disponível em seu site5), o ensaio esgotaram. As dúvidas acerca da resposta positiva
permite ao crítico “expor em maior detalhe o do público. A consciência de que algumas apre-
tipo de raciocínio que o conduziu a determinada sentações saem melhores do que outras:
posição frente à obra ou ao artista em questão”.
Com isso, propicia um interessante meio ter- No sábado, a primeira sessão foi morna, correta,
mo entre as qualidades das melhores resenhas sem muito brilho. Em compensação a sessão das
(texto incisivo, sedutor, ágil, comunicativo) e da nove foi um dos melhores espetáculos que fize-
crítica acadêmica (embasamento teórico, análi- mos, estava tudo ali: o caos, a confusão, a raiva,
a tristeza e o tédio, todas as emoções pelas quais
se cuidadosa, rigor metodológico), ao mesmo
os personagens passam no decorrer do espetáculo.
tempo que evita os riscos destes dois campos:
a superficialidade e o julgamento voraz da críti-
Nesse exercício de autocrítica, não passa em
ca jornalística; o hermetismo e a falta de apetite
branco nem mesmo a reação da artista diante
pelo julgamento da crítica acadêmica.
dos comentários publicados na internet e em crí-
ticas da imprensa:
Nas primeiras edições do FIT-BH, na década de a crítica dramática possui uma vantagem acidental
1990, era fascinante acompanhar as reflexões, sobre a crítica de livros. Um livro continua a ser lido Em tempos modernos, assim como os comentários
as análises e os questionamentos que Marcello depois de esquecidas todas as críticas que o seu HÁ MUITO, TEMOS do público e suas reações durante e depois do es-
registrava, sistematicamente. Naquela época, aparecimento suscitou, se excetuarmos uma ou
outra realmente excepcional. Com as representa-
ASSISTIDO A UM petáculo, a crítica especializada, os amigos, entre
as críticas publicadas em jornal – especialmente outros, o que se publica na internet tem sido uma
quando vinham de um crítico como Marcello –
ções teatrais dá-se o contrário. As peças elas mes- ESVAZIAMENTO fonte de pesquisa da recepção do público, sempre
mas podem sobreviver, se o merecerem, mas cada muito interessante.
eram referência inevitável, mesmo para quem
determinada encenação ou cada particularidade PAULATINO DO
delas discordava. do desempenho só viverá enquanto delas persistir
um traço na memória ou alguma anotação escrita.
ESPAÇO DEDICADO Nesse ponto, fica evidente que atuação e recep-
76 ção, crítica e autocrítica se alimentam mutuamen- 77
O panorama atual é bastante diferente. Há mui- À CRÍTICA PELOS te e cada vez mais integram o mesmo universo.
to, temos assistido a um esvaziamento paulatino Para compensar essa lacuna, temos algumas
do espaço dedicado à crítica pelos veículos da poucas revistas especializadas, como “Tablado”,
VEÍCULOS DA
grande imprensa, provocado por diversos fato-
res, tais como:
“Cartaz” ou “Bravo!”, nem sempre duradouras. GRANDE IMPRENSA
Além disso, alguns jornais criaram suplementos 1
Leo Cunha é escritor e jornalista. Leciona as disciplinas
de fim de semana, de caráter mais reflexivo, nos “Jornalismo Cultural”, “Introdução à Crítica de Arte”, entre
- a dificuldade que o jornal tem de acompanhar a quais é bem vinda a crítica mais fundamentada, outras, em cursos de graduação e pós-graduação.
produção cultural cada vez mais volumosa; menos preocupada com a mera orientação de Na internet há espaço para vários tipos de crí-
2
Vale destacar que, mesmo nessas condições, vários
consumo. O próprio Marcello Castilho teve a tica, desde a ensaística (apontada acima) até o
jornalistas conseguem desenvolver um trabalho sério e
- o espaço crescente que os jornais reservam oportunidade de produzir belos ensaios sobre consistente em torno do teatro, como Soraya Belusi e
para os serviços (agenda, roteiros, programa- comentário mais rápido e pessoal, em blogs de Luciana Romagnolli, no jornal O Tempo, e Jefferson da
teatro e literatura nas páginas do caderno Pensar, críticos profissionais ou de amantes amadores do Fonseca, no jornal Estado de Minas.
ções, etc.), muitas vezes agravado pela diminui- no jornal Estado de Minas. Mas tal compensação
ção do número de páginas do caderno de cultu- teatro (com o perdão da redundância). 3
PRADO, Décio de Almeida. Apresentação do Teatro
é, sem dúvida, parcial. Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. XVII.
ra, como um todo;
Outra forma de crítica que se sente muito à von-
4
Prefácio do livro citado na nota anterior.
Se é raro na grande imprensa (e sempre foi, tade na rede é a autocrítica, exercitada pelos 5
Disponível em http://www.barbaraheliodora.com
- a dificuldade de manter no quadro um profis- como atesta Sábato Magaldi4, ao apontar o en-
sional que se dedique exclusiva ou majoritaria- próprios atores, encenadores e demais profis- 6
Disponível em http://marianalimamuniz.blogspot.com.br
saísmo de Décio de Almeida Prado no jornal O sionais envolvidos com o teatro. Um exemplo
mente à crítica, o que leva o mesmo jornalista a Estado de S. Paulo como exceção), o ensaio tem
acumular os cargos de crítico, repórter, redator recente e instrutivo pôde ser acompanhado no
encontrado campo fértil na internet. Ao contrá- blog da atriz Mariana Muniz6, ao longo de sua
ou subeditor2. rio do que prega o senso comum, a rede não é temporada com a peça Tio Vânia, de Tchekhov,
lugar exclusivo da velocidade e da concisão; ela com o Grupo Galpão.
No caso do teatro, o escanteamento da crítica é abriga também aquele texto de fôlego pratica-
ainda mais daninho, já que ela é muitas vezes o mente expulso das mídias tradicionais.
principal registro que se tem de um espetáculo, Em suas anotações, vários registros e emoções
como aponta o crítico inglês T. C. Worsley, cita- se mesclam. Os pequenos ajustes de uma apre-
Autorreflexivo por natureza, o ensaio possibili- sentação para outra. A tensão de atuar num palco
do por Décio de Almeida Prado3: ta uma análise sem pressa e continuada sobre
O SENTIDO
DA CRÍTICA
FÁTIMA SAADI1
Se há algo que podemos dizer sem hesitação a respeito da crítica
78 79
teatral é que ela é um texto que tem o espetáculo como horizonte.
Como é desejável para todo tipo de texto, também a crítica teatral
deve ser bem escrita, isto é, deve ser clara e preocupar-se com
transmitir ao leitor, da melhor forma possível, seus pressupostos,
argumentos e conclusões.

Sábato Magaldi afirma com todas as letras em sua coletânea Depois


do espetáculo2, que “a primeira virtude do crítico é a de saber es-
crever”. E acrescenta, em entrevista ao Folhetim n. 273, “o estilo da
crítica é fundamental para a análise da encenação”.

OUTRA VEZ MARCELO


Teatro de los Andes - SUCRE/BOLÍVIA - FIT 8ª Edição (1998)
Foto: Kika Antunes
Ao sublinhar a importância do estilo, Sábato cha- ção cênica de um texto, a separação do teatro se inseriu no escopo da relação sujeito-objeto e a queza das manifestações teatrais convida a novos
ma a atenção para o que pode haver de propria- em gêneros regidos por regras predeterminadas crítica, por meio de abordagens diversas - histó- e variados aportes analíticos. A multiplicação de
mente literário no texto crítico. E nos faz tam- e também a compreensão do teatro como imita- rica, sociológica, formal, psicológica e assim por abordagens e tensionamentos críticos é mais uma
bém pensar que a crítica, como qualquer obra ção do real. diante -, vai rastrear e tentar compreender a re- das riquezas da contemporaneidade, que busca
de criação, não pode separar a forma de dizer lação da obra com o mundo e com seus grandes ampliar e reafirmar a necessidade de que o teatro
daquilo que é dito. Assim como a arte não pode ser aprisionada no sistemas de narrativas. No entanto, também esse se coloque no espaço público como interlocutor
âmbito do mimético, a crítica também não pode esquema se desfaz e a contemplação da obra do que a sociedade tem criado de melhor em
Há, ou pelo menos desejamos que haja, um mo- se limitar a ser um reflexo do espetáculo e nem contemporânea coloca ao crítico outra série de matéria de reflexão sobre os sentidos da vida.
vimento criativo na escrita da crítica e isso de- a criar sobre ele juízos de valor, atribuindo-lhe problemas. Como observa Luiz Camillo Osorio,
veria afastar das fórmulas aqueles que escrevem notas ou considerando-o bom ou ruim, por cor- a obra de arte de nosso tempo sofre de uma in-
sobre espetáculos. responder mais ou menos completamente ao certeza ontológica, isto é, de uma oscilação entre 1 Fátima Saadi é tradutora e dramaturgista da companhia cari-
horizonte de expectativas da crítica ou do público ser e não ser arte. Nesse contexto, o papel da oca Teatro do Pequeno Gesto e edita a revista Folhetim e a
Há muitos anos já, por motivos os mais varia- para aquele tipo de peça. crítica é o de ser testemunha da obra, escrever coleção Folhetim/Ensaios.
dos, a crítica jornalística tem se pautado pelo se- com ela e não sobre ela. E, no espaço que se 2 MAGALDI, Sábato. Depois do espetáculo. São Paulo: Per-

guinte procedimento, erigido praticamente em Como bem demonstra Gerd Bornheim em “Da abre a partir das propostas de sentido que o crí- spectiva, 2003, p. 22.
3 Sábato Magaldi, em entrevista à revista Folhetim n. 27. Rio
norma: tomando o texto dramático como ponto crítica”4, a partir de meados do século XVIII, tico apresenta publicamente, instala-se a dimen-
de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2008, p. 71.
de partida, o crítico analisa em função dele todos quando a arte perde a evidência de sua função são política: reverberação (pública) de hipóteses 4 Gerd Bornheim. Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro:
os elementos do espetáculo, avaliando-os em (servir ao poder político e religioso) e são ques- abertas ao outro (a obra) desde sua elaboração5. Uapê, 1998, p.131-139.
sua coerência e consistência e atribuindo-lhes tionados tanto o seu fundamento (o Absoluto, 5 Luiz Camillo Osorio. Razões da crítica. Rio de Janeiro:

alguns adjetivos, elogiosos ou não. A começar Por sua extrema diversidade de formas e concep- Jorge Zahar, 2005, p. 14, 16, 48.
6 Depoimento à autora, por e-mail, em 09/04/2012.
por seu enrijecimento, essa fórmula deixa mui- ções, a obra teatral contemporânea nos estimula
to a desejar. Em primeiro lugar, por atribuir ao a pensar a partir de outros lugares, a partir do
texto uma descabida supremacia em relação aos ASSIM COMO A desconhecido, que vem instalar um curto-circui-
demais elementos e, depois, por considerar os to no já conhecido. Surgem novos suportes para
componentes não verbais do espetáculo como ARTE NÃO PODE o pensamento crítico dedicado ao fazer teatral,
80 mera ilustração da trama, desmerecendo-os em SER APRISIONADA como, por exemplo, a revista eletrônica Questão 81
sua concretude e em sua possibilidade de origi- de crítica que opera com flexibilidade de formato
nar redes de sentidos. Além disso, não concebo NO ÂMBITO DO e tamanho e, apesar de cobrir o panorama tea-
como se possa querer ainda estabelecer uma re- MIMÉTICO, A tral, não se submete à urgência que rege a cober-
lação rígida de causalidade de um elemento, no tura jornalística das temporadas.
caso o texto, sobre os demais, numa época em CRÍTICA TAMBÉM
que o pensamento se organiza em constelações Nas palavras de Dinah Ceasare, uma das criado-
abertas, provisórias e proliferantes e as fronteiras
NÃO PODE SE ras da Questão de crítica:
entre as artes se tornam tão tênues que quase LIMITAR A SER
não é mais possível (nem desejável) separar artes a ideia da revista tem a ver com a disseminação de
visuais, teatro, música, dança... UM REFLEXO DO pensamento e não propriamente de informações.
ESPETÁCULO É possível existirem dois textos sobre um mesmo
espetáculo, por exemplo. Se estamos lidando com
É claro que é muito grave a falta de espaço nos
um leitor de internet é preciso ter em considera-
jornais para a crítica de arte, o que obriga o crí-
ção que ele pode ler nosso texto ao mesmo tempo
tico a condensar seus argumentos e o induz a
em que busca atualizações na rede. Isso implica
pôr em segundo plano a preocupação quanto à Deus) quanto seu enclausuramento no âmbito da que meu texto possibilite pontos de fuga, saídas
forma de apresentação de suas ideias. Porém, é imitação do real, surge a necessidade da crítica virtuais. É mais precioso criar vazamentos que
ainda mais grave a aceitação de uma estrutura de que busca oferecer hipóteses sobre a obra ar- completudes. Nesse sentido é possível pensar so-
pensamento crítico que, desde o surgimento do tística. A ênfase agora vai estar não mais naquilo bre a própria crítica enquanto se escreve6.
conceito de encenação, no fim do século XIX, que a arte representa, mas naquilo que ela é. E a
deixou de ser operativa para o teatro. A partir fórmula lapidar de Kant, “a arte é uma finalidade Atualmente, a crítica mais produtiva não se dedi-
desse momento, passou-se a compreender cada sem fim”, ajuda os olhares críticos a se fixarem, ca ao inventário das formas pelas quais os espetá-
espetáculo como um conjunto inédito de deci- por um lado, no processo de constituição da culos se constituem, mas busca levantar as ques-
sões sobre a relação que será estabelecida en- obra, considerada um fim em si mesma, e, por tões que movem cada trabalho, inserindo-as no
tre os elementos cênicos que o compõem. Com outro, na fruição do objeto artístico por parte do panorama criativo que nos cerca e estabelecendo
isso, caducam a ideia do espetáculo como tradu- espectador. Do âmbito do transcendente, a obra as necessárias relações delas com a tradição. A ri-
NOTÍCIA
DA CRÍTICA
MACKSEN LUIZ1

83

ABITO
Fondazione Pontedera Teatro - ITÁLIA - FIT 11ª Edição (2012)
Foto: Roberto Palermo
A crítica teatral jornalística vive, ao longo de du- Durante essas três décadas, mudanças econômi-
zentos anos, dos séculos XIX ao XXI, o para- cas nas publicações interferiram na prática crítica,
lelismo entre a realidade editorial, econômica e já que os cadernos de cultura diminuíram os es-
cultural dos jornais e as especificidades do pa- paços e as orientações editoriais reduziram crí-
norama cênico de cada época. No século XIX, ticas a resenhas, análise a indicações, palavras a
quando se ensaiava construir um teatro de ex- estrelinhas. O preço do papel, a inflação incon-
pressão nacional, em que já se delineavam linhas trolável do período e a juvenilização das redações
cênicas – de um lado o romantismo, de outro promoveram esse progressivo esvaziamento.
o realismo -, surge o crítico Machado de Assis, Com a chegada da revolução digital, essas limita-
que debatia em seus escritos em jornal essas duas ções se ampliaram, transformando a cultura pop,
correntes. Era o início de uma prolongada e tu- via música e meios eletrônicos, em capas quase
multuada mediação entre a produção cênica e a diárias dos segundos cadernos. O teatro, acos-
recepção pública. sado pela avalanche de novas tecnologias e com
o envelhecimento de seu público, foi sendo re-
Até o estabelecimento do teatro brasileiro mo- legado a espaços cada vez menores e confinado
derno, cujo marco pode ser fixado com a estreia a um nicho, identificado como uma arte antiga,
de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com dentro do vibrante e espalhafatoso consumismo
O TEATRO ATUAL, encenação de Ziembinski, a crítica e os jornais da sociedade da diversão.
tinham estreita relação com o mercado teatral.
COM A DIVERSIDADE Aos críticos, eram atribuídas as tarefas de análise Assim como os jornais, que tentam estabelecer
QUE SUSTENTA A SUA dos espetáculos e da venda de publicidade des- a convivência do papel com os meios digitais, os
ses mesmos espetáculos. A obrigatoriedade mer- críticos de longa atividade na imprensa, alguns
CONTEMPORANEIDADE, cantil e a convivência com produtores e com os com mais de 40 anos contínuos de colaboração,
DESLOCA A CRÍTICA primeiros atores e atrizes das companhias com- deixaram as redações e se transferiram para o
prometiam a isenção e reduziam o exercício da eletrônico. Os jornais, cada vez mais escassos em
PARA O MUNDO crítica praticamente à divulgação. número, mantêm críticos que, apesar de acom- 85
panharem a temporada, nem sempre têm suas
DIGITAL, COM Com as transformações trazidas pelos elementos críticas regularmente publicadas. O teatro atual,
DIFICULDADE EM fundadores por Ziembinski e pela criação do Te- com a diversidade que sustenta a sua contempo-
atro Brasileiro de Comédias (TBC), a crítica se raneidade, desloca a crítica para o mundo digital,
LEVAR, PARA O MEIO, instrumentaliza por meio de Décio de Almeida com dificuldade em levar, para o meio, antigos
ANTIGOS LEITORES OU Prado, intelectual paulistano, criador do Suple- leitores ou conquistar novos. Os mais tradicio-
mento Literário do Estado de São Paulo que, ao nais conseguem ampliar seu leitorado, mas os
CONQUISTAR NOVOS longo de 20 anos, colaborou para a formação de mais recentes buscam, com seus blogs, visibilida-
uma geração de especialistas. O seu papel como de para conseguir um lugar no jornal em papel.
professor, aliado à criação da Escola de Arte Dra- O espectador de teatro, uma categoria cada vez
mática, deslocou o eixo teatral para São Paulo, mais envelhecida ou formada por um público
quebrando a hegemonia carioca. Sábato Magaldi eventual, tem acesso restrito ao eletrônico, o
foi o seu mais destacado discípulo, dando conti- que aprofunda a distância entre a cena e a plateia.
nuidade à sua ação didática no jornal, estendo-a A crítica acadêmica ainda está circunscrita aos li-
à universidade. Bárbara Heliodora e Yan Michalski mites da universidade, voltada para o consumo
seguiram a mesma escola, aquela que fixou a crí- de quem a produz.
tica teatral e suplementou a informação com em-
basamento acadêmico. Dos anos 1960 aos 1990,
os jornais mantiveram críticos permanentes que, 1 Macksen Luiz é critico de teatro por 42 anos do Jornal

além de registrarem o movimento teatral do pe- do Brasil, Autor do site especializado em artes cênicas
(macksenluiz.blogspot.com) e colaborador de várias
ríodo, analisaram as profundas modificações de
publicações.
linguagem e as crises de criação que permearam
a dramaturgia, a encenação e os intérpretes.
ESPECIAL
CENTENÁRIO
NELSON
RODRIGUES
CÍRCULO
RODRIGUIANO
MARCO ANTÔNIO BRAZ1

Começarei afirmando que sou diretor teatral homem se exibe sem medo de suas sombras e
com mais de 20 anos de trabalho profissional fantasmas. O fundo da cena do homem é outro
no teatro, e que em nenhum desses anos deixei homem a observar o homem. Cenograficamen- A OBRA TEATRAL DESGRAÇADA
uma única vez de mergulhar na obra rodriguiana. te passamos a ser inseridos como paredes que DE NELSON ... ATUALIDADE
Foram textos, leituras e encenações. Será que possuem olhos e ouvidos. Formei-me, envelhe-
consigo expressar o que foi que aprendi com ci, vim para São Paulo, aqui organizei o Círculo RODRIGUES PARA O HOMEM
toda essa paixão e esse esforço? Foi em 1979
(aos 13 anos) que li pela primeira vez o teatro
de Comediantes (atual Círculo dos Canastrões
– Cia. de repertório especializada no estudo e
É DE UMA CONTEMPORÂNEO!
de Nelson Rodrigues. Era um volume que con- na montagem da obra rodriguiana) e dei prosse-
tinha duas peças: Vestido de Noiva e O Beijo no guimento à pesquisa. Minha primeira montagem
Asfalto. Adorei Vestido, mas o que me impressio- paulistana de Nelson foi Perdoa-me Por Me Tra-
nou realmente foi O Beijo no Asfalto. No mesmo íres. Pouco após meus pais morrerem, a peça
momento reli a peça três vezes e em todas elas parecia ser uma fonte inesgotável de expiação
me surpreendi novamente. Sequer imaginava da minha família e a tentativa de compreender
naquela ocasião que eu pudesse vir a ser dire- o verdadeiro sentido da palavra amor, não dita,
88 tor teatral. Já na faculdade, retornei ao texto de velada. A partir daí a relação com o teatro de 89
O Beijo como montagem de formatura. Li como Nelson Rodrigues se tornou algo para além do
preparação de montagem todas as peças do dra- estudo, da pesquisa e da realização artística. Mais
maturgo na ordem cronológica e, para minha ainda, foi se tornando um ponto de vista, uma
surpresa, trancado duas semanas no meu quarto forma de ver o mundo. O que Nelson traz à
da Tijuca, devorei-as diversas vezes. “Graças” e tona é lama, dejeto e sombra, tudo que preten-
“batata” se tornaram expressões cotidianas. Foi demos esconder em detrimento da pureza de
minha primeira experiência artística como con- uma idealização moral. Com isso, sua equação
cepção e encenação. Meu professor orientador dramática descortina nossa hipocrisia em diver- O BEIJO NO ASFALTO
Cia. De Artes Reviu a Volta - BRASIL
dessa montagem, para minha total felicidade, foi sas camadas. Por isso Nelson foi durante muito FIT 4ª Edição (1998)
o saudoso mestre José Renato Pécora. Foi ele tempo estigmatizado com ecos de preconceito
quem me apontou o óbvio: “A obra teatral de que chegaram até o novo milênio. Vou em pou-
Nelson Rodrigues merecia uma Cia. de reper- cas palavras resumir o que Nelson me ensina. A çada atualidade para o homem contemporâneo! ma crítica e profunda. Não é possível recusar a
tório!”. A concepção cênica da montagem girava mim ensinou que só há interesse ainda por suas Portanto, o dramaturgo cumpriu e cumpre sua evidência da importância artística do seu teatro!
em torno da ideia de círculo: círculo de curiosos peças porque o povo precisa de que, em algum necessária tarefa de clássico. Atravessa os tem- Em 2012, ano da comemoração do centenário
que se aglomeram em torno do acidente e da palco, alguém esteja lembrando que “o brasileiro pos para nos fazer refletir sobre nossos tabus, do dramaturgo que faleceu em 1980, sua obra
morte, círculo que forma uma Praça da Bandei- que não é canalha na véspera, é canalha no dia hipocrisias e medos. Só quem tem medo de está mais viva do que nunca.
ra imaginária e cenográfica, círculo de vizinhos seguinte”. Ensinou-me que falar da morte com abrir a caixa preta do ser humano se fecha em
e alcoviteiros, enfim, círculo que simboliza ciclo humor é falar da vida com alegria! É a necessi- calúnias e preconceitos. Nelson Rodrigues não
e eternidade. Esse círculo se construiu em um dade de tentar explicar nossa imensa ignorância inventou a pedofilia, o racismo, o amor, a moral, 1
Marco Antonio Braz é diretor e encenador que se projetou
espaço arena de representação montado para a diante dos mistérios da vida. A dramaturgia de a hipocrisia, o homossexualismo, o lesbianismo, nos anos 1990 por suas montagens da obra de Nelson Ro-
encenação na Sala Cinza da Uni-Rio. A desco- Nelson Rodrigues não é para brincadeiras! Ne- a traição, a violência conjugal, a ambição, a luta drigues. É fundador e líder do grupo Círculo de Comediantes
berta e o estudo das possibilidades de represen- nhum dramaturgo da atualidade traz à cena tan- (atual Círculo dos Canastrões).
pelo poder, o casamento, a virgindade, o sexo, o
tação em arena desse texto de Nelson me leva- tas questões polêmicas para a nossa sociedade estupro, a pureza, o pecado, nem Cristo, nem o
ram a construir uma espécie de pequena estética quanto ele. Pois este é o óbvio ululante: a obra diabo, assim como a vida ou a morte! Mas todos
de encenação. Ali, no centro daquele círculo, o teatral de Nelson Rodrigues é de uma desgra- esses temas estão presentes em sua obra de for-
A RELEVÂNCIA DA OBRA
RODRIGUIANA SOB O
PRISMA DA PSICANÁLISE
MARCO AURÉLIO BAGGIO1

Por meio da criação de dezessete peças, Nelson Primeiro, as quatro peças centradas nos mitos
Rodrigues “compassivizou” seus infernais demô- gregos fundantes do Ocidente:
nios, economizou sua psicanálise, escarmentan-
do para o palco toda a sordidez e a excrescência 1- Álbum de família.
que o habitavam. 2- Anjo negro.
3- Senhora dos afogados.
Da curiosidade infantil indecente, passando pelas 4- Dorotéia.
“COMO É BOM O DOER
tragédias familiares, o homem Nelson Rodrigues DE VELHAS PENAS”.
se viu assediado pela crônica policial, e pela ne- Em Álbum de família Nelson Rodrigues trabalha
cessidade de sair da miséria cedo, ainda acossado aquilo que em psicanálise se conceitua como sen- “ADOECEMOS
por um superegóico moralismo sempre fracassa- do o complexo de Édipo, acrescido do desco- PORQUE NÃO AMAMOS”.
do, vencido por uma sexualidade trepidante, o medimento do incesto. Nessa peça, a forclusão
90 91
que o induziu a cometer as canalhices dos amo- da realidade – verwerfung – é tão radical e aca-
res infiéis. Anjo infantil de pureza. Visionário de chapante que causa a exterminação da família e “O ADULTO NÃO EXISTE.
uma sociedade hipócrita em dissolução. Profeta a loucura de D. Senhorinha. “Nonô me chama O HOMEM É UM MENINO PERENE”.
dos subterrâneos. Bandalho honesto. Pornográfi- – vou para sempre”.
co sem palavrão. Quixote em um Rio de Janeiro “O DINHEIRO COMPRA ATÉ
nos anos dourados na aparência, carcomido e Anjo negro, de 1947, é talvez a mais cruel e som-
cancerificado por dentro. bria obra de Nelson Rodrigues. Ismael usa do
AMOR SINCERO”.
mecanismo da negação consciente da realidade
Para Nelson Rodrigues, a pureza do amor era (verneinung) de sua negritude para acionar a atu- NELSON RODRIGUES
tudo, o ideal a ser almejado. ação, passando ao ato de casar-se com Virgínia,
mulher branca. Torna-se cúmplice desta, assassi-
No entanto, sabia ele que o amor era a véspera na de seus três filhos. Ana Maria branca é cegada
do pecado e da infidelidade. O amor desperta a para não ver o negro Ismael que se encerra em
voragem do monstro de olhos verdes do ciúme. um autismo no quarto que é seu túmulo. Amal-
diçoado pela mãe, cumpre a sina de, numa ten-
Os dois, o amor e o ciúme, trazem consigo, a tativa patológica, procurar retornar ao ventre da
seguir, o inferno da possessão, da desconfiança, mãe.
da querela e da cobrança.
A mesma temática ressurge em Senhora dos afo-
Desse conflito, brotado dos ínferos endógenos gados. O núcleo da ação dramática é dado pelo
do inconsciente, o ser humano torna-se um jo- desejo de Moema ficar só com seu pai. Elimina-
guete, um personagem no teatro de sua vida, dos os irmãos, as irmãs e a mãe, Moema perde
que o distancia do comando de seu destino. E o reflexo da própria imagem diante do espelho,
assim mergulha na torrente dos arquétipos míti- simbolizando a perda de sua identidade. No ins- MEMÓRIA DA CANA
cos, os quais percorrem as inexoráveis trilhas do tante da vitória de seu desejo incestuoso, em um Os fofos encenam - SÃO PAULO/SP/BRASIL - FIT 10ª Edição (2010)
Foto: Kika Antunes
mortífero, da tragédia. espetacular revertério, que é a marca do teatró-
logo, Misael, o pai, morre. Moema fica com sua soli- O tricô é o emblema de prosaica atividade fe- teatro inovador, que obrigava a plateia a se deixar ra distributiva, que as encaminhava ao juízo das
dão, imersa na insanidade da loucura. Mais uma vez minil de senhoras de correto proceder, já desti- mobilizar em seus elementos inconscientes. Moiras e de Themis, rumo ao destino fatal.
constatamos a forclusão da realidade, a verwerfung, tuídas de quaisquer pretensões voluptuosas no
operando, soberana. Causando o devastador des- campo amoroso. Nascia um estilo de teatro fascinante, provocati- Perdoa-me por me traíres é um ensandecido fes-
carrilamento no psiquismo do personagem. vo, catártico e... desagradável. Foi aí que Nelson tival de delírios de ciúme. Para Freud, o ciúme
O apelo à feiúra e ao aborto são insinuantes Rodrigues pôde confirmar sua afirmação de que do parceiro amoroso é uma projeção do desejo
Dorotéia é a complexa, enigmática e mítica peça marcas, marcando a vigência da pulsão de morte toda unanimidade de conduta e de percepção reprimido do ciumento de cometer aquilo que
desse “tarado de suspensório”. Reativa o mito que vigora nesse espaço atemporal. burguesa é burra. atribui, imaginária ou realisticamente, ao outro.
grego das Eríneas e das Parcas, predecessoras
das Fúrias romanas, mulheres mitológicas que Dorotéia é a mais emblemática de suas peças. Doro- Em 1943, Vestido de noiva escande, primoro- Em 1957, data da peça, a vilania dos amores clan-
protegem a ordem natural e social do mundo téia, o “presente de Deus”, é a evidência de que o samente, a tripartição do ego de Alaíde, numa destinos ou incestuosos era escoltada pelos pac-
incipiente em civilização - primitivo -, evitando apodrecimento existencial é certo quando a pessoa tentativa agônica de armar solução à pluralidade tos de suicídio. O aborto era abominável. Hoje,
e regrando a intromissão fertilizadora do agente se deixa capturar por periclitadas trilhas perversas. de tendências instintivas indomáveis, tais como o em 2012, tais temas perderam pregnância. A
masculino. Este é capaz de propiciar a orgia - o amor, a competição, a rivalidade, a traição, o ciú- violência gratuita, a estupidez relacional e a cor-
orgasmo -, mas pode induzir à desmesura, à es- Dentre as cinco peças psicológicas, Vestido de noiva me, a inveja, a má fortuna e a vingança, que, em rupção generalizada são temas que mereceriam
bórnia e à arrogância - hybris. é aquela que inovou o teatro brasileiro e consa- seu corpo e em seu psiquismo, tinham morada. da ironia e da genialidade de Nelson Rodrigues
grou em definitivo seu autor. Granjeou capital in- arguto tratamento dramático. Nelson, um primo-
D. Flávia, Carmelita e Maura vivem o recalque - Entre as Tragédias Cariocas I, situa-se A falecida. roso, que já se insinuava na venalidade e hipocri-
verdrangung - do masculino, reprimindo em seu sia de seus personagens.
inconsciente o significante do falo masculino. Para Repórter policial de um Rio de Janeiro dividido
tal, permanecem em vigília constante, evitando em Zona Sul, rica e resolvida, e Zona Norte, Glorinha, adolescente órfã criada pelo Tio Raul, co-
dormir, logo, sonhar com o desejo do sexo com-
NELSON, COM SUA pobre, esforçada, atrasada, Nelson situou a peça meça a frequentar a casa de tolerância de Madame
partido. Sua atitude acarreta sua desumanização DRAMATURGIA, na Zona Norte, colocando como protagonistas
suburbanos frustrados e fracassados que, de há
Luba. Raul amara e matara Judite, mãe de Glorinha,
uma mulher devassa. Propõe-se matar Glorinha.
crescente, acompanhado de degradação e de
apodrecimento do corpo. FOI UM muito, perderam o comando de seus destinos.
Os personagens são eivados de pathos, simples Seu irmão Gilberto, marido de Judite, percebe-se
Freud ensinou que a repressão cria duas realida-
ARROMBADOR, UM encarnações de forças instintivas vagando à deri- o indutor da traição de Judite, enlouquecido que
92 93
des não conviventes no psiquismo. Nesse não há ESCANCHELADOR va das circunstâncias. está, vê, alucinado, amantes da esposa escorre-
dúvida, daí não se deixar pronunciar o MAS que rem pelas paredes. Exclama:
principiaria por abalar as até então certezas inex- DE (QUASE) Zulmira, tuberculosa, pobre, desesperançada, in-
feliz no casamento, quer ter um enterro magnífico “- Perdoa-me por me traíres”.
pugnáveis que mantêm excluídas de seu campo TODOS OS NICHOS de 25 contos de réis. Instrui o marido inútil, Tuni-
psíquico o novo e o masculino.
CONCEITUAIS nho, a buscar o dinheiro com Pimentel, dono de Essa paradoxal expressão quer dizer:
A chegada da prostituta Dorotéia acarreta a sub- frotas de lotação, ex-amante. Ele o faz, obtém o
versão nesse universo de mulheres desfeminiliza-
DA PSICANÁLISE dinheiro e consegue extorquir até mais para o sé- “Perdoa-me porque estou em tamanha falta para com
timo dia. Descobre que Zulmira e Pimentel foram você, Judite meu amor, tanto que te induzi a me trair”.
das, que vivem sob a égide da pulsão de morte. FREUDIANA amantes. Dá-lhe um enterro miserável de 400 mil
Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico, entendia réis e gasta o dinheiro na farra com os amigos, no O amor-paixão costuma ser escoltado pela des-
de carpintaria teatral. Introduz singelos e significa- jogo no Maracanã e em apostas no jogo. confiança e pelo ciúme, a tal ponto que o amante
tivos objetos em cena. mergulha no monstro verde do delírio celotípico,
telectual para o fracasso e a controvérsia gerada
Perdoa-me por me traíres é, de todos, o título delírio de ciúme. Chico Buarque usou o tema em
por dúzia de peças seguintes, sobrevivendo à pul-
O jarro lembra a assepsia feminina nos prostíbulos. mais desconcertante. Mil perdões:
são epistemofílica e à pessoa de Nelson, atrevido,
desafiante, altaneiro, pelas décadas seguintes: de
As botas representam a intrusiva penetração do Flor da obsessão - Nelson era maniado com a fide- Te perdoo
1943 até sua morte, em dezembro de 1980.
macho no desvitalizado âmbito de fêmeas de há lidade conjugal. Casado com Elza, vivia o drama de Por fazeres mil perguntas
muito abandonadas. quase todo homem, de que a sexualidade masculi- Que em vidas que andam juntas
Em Vestido de noiva, o iniciante dramaturgo co-
na se sente constrangida e manietada no valioso vín- Ninguém faz.
loca em mescolância, em cena, a realidade do
A náusea traduz a absoluta aversão da carnali- culo do casamento. Moralista, católico, viveu tortu- Te perdoo porque choras
atropelamento de Alaíde, sua cirurgia; a memória
dade dessas mulheres ao homem e é a manifes- rado por sua volúpia de apaixonar-se fácil por outras Quando eu choro de rir
dos feitos de Madame Clessy e a fantasia do que
tação fisiológica inversa do orgasmo. várias mulheres. Queria ser fiel e não conseguia. Te perdoo por te trair.
lhe sucederia depois.

As chagas são o câncer arruinante dos corpos e Exigia fidelidade de suas personagens sabendo o Chico inverte o sentido do título da peça de Nel-
Frases curtas, diálogos entrecortados, flashbacks,
da beleza que negam – verneinung – a feminilidade. quanto elas também não se mantinham nos pa- son. Este emite a lapidar assertiva: “Amar é ser fiel
jogos de luzes, mudanças de cenários criavam um
drões e, assim, as entregava a Nêmesis, a justicei- a quem nos trai!”.
Raul possui a tara, o secreto gozo de que a mu- Conspiram, denigrem e corrompem o belo gesto
lher o traísse: primeiro Judite, agora Glorinha. humano de Arandir diante da morte.
“Sou traído por uma mulher que eu amo”.
Foi com Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara
Supremo gozo mortífero para o paranoico! Resende que surgiu certo otimismo quanto à
possibilidade de um melhor destino terreno para
Glorinha propõe a Raul que os dois se envene- o homem, a partir da tomada de atitudes corre-
nem e morram juntos. Ele ingere. Ela finge tomar. tas e sensatas.
Enquanto Raul agoniza, ela, agora Pola Negri,
confirma encontro com o deputado Jubileu de Na peça, mostra-se que não há canalha integral.
Almeida no lupanar de Madame Luba. Edgar não se deixa corromper por seu patrão por
cinco milhões de cruzeiros para que se case com
Os sete gatinhos é a história do contínuo, pai de sua filha recém-currada por um bando de negros.
cinco filhas. Prostitui as quatro maiores no anseio Prefere ficar com Ritinha, prostituta, que encon-
de preservar a caçula para um casamento bur- tra redenção em seu amor por Edgar.
guês. Mas esta se entrega a um conquistador
barato. Noronha, revoltado, passa a agenciar o
lenocínio das próprias filhas. Estas resolvem matá-lo.
PARA NELSON
O Boca de Ouro, de 1959, é uma imersão de
Nelson Rodrigues no submundo carioca. Boca, RODRIGUES, A
bicheiro milionário, troca sua dentadura por ou-
tra toda feita de ouro para realizar um sonho de
PUREZA DO AMOR
menino. Assassinado, Caveirinha, repórter, colhe ERA TUDO, O IDEAL
depoimentos de Guiomar, que primeiramente o
descreve como facínora. Arrepende-se e o des-
A SER ALMEJADO
94 95
creve como pessoa boa e generosa.

Nelson avalia que a mitologia suburbana criada “Mineiro só é solidário no câncer”, frase lapidar
em torno do Boca é uma sequência incongruente de Otto Lara Resende, repetida na peça, é o
Mulher Sem Pecado
de versões criadas por Dona Guigui e publicada mote do qual se serve Nelson para avisar o já Cia de Teatro Arlecchino - FIT 11º Edição (2012)
pela imprensa. Jornalista de escol, Nelson sabia o sabido desde o Leviatã, de Hobbes: os homens Foto: Eliane Torino

quanto a imprensa podia ser venal e maligna. adoram, entredevoram-se e, raramente, nem no
câncer, são solidários.
O Beijo no Asfalto é sua peça de inserção na subli-
midade do amor. Ritinha e Edgar terminam correndo, descalços,
em direção ao mar, numa figura de recuperação
Amado Ribeiro, repórter, viu um homem atrope- da pureza perdida.
lado por um lotação. Um indivíduo aproximou-se pida, contrapondo sua dignidade, anulando as fetadas na cara. Depois, toma seu rosto entre as
do moribundo, segurou sua cabeça e deu-lhe um A violência perpassa pela vida das personagens de canalhices de Osvaldinho com sua bondade. Ela mãos e, soluçando, explicita:
beijo na boca. Quem são aqueles homens? Qual Nelson Rodrigues. Assume-se como um Coélet, aceita o jogo de cena sacana de Osvaldinho que,
relação eles mantinham? Amado e o delegado ar- um Pregador, procurando exorcizar o homem co- açulado pelo desejo que ela tão bem esgrime, o “Seu idiota, não quero seu dinheiro, quero teu amor”.
mam uma relação homossexual entre Arandir e o mum de seu destino banal. leva a aumentar sucessivamente os lances.
morto. As denúncias no jornal são cada vez mais Leitor voraz desde a infância, Nelson Rodrigues
sórdidas e cruéis. Desagrega-se a família. Arandir Depois de 13 anos de interregno, em 1974 surge “Dr. Osvaldo, desde menina que eu espero por diz que não leu Freud. Certamente conhecia os
é assassinado por Aprígio, o sogro, que secreta- novidade. A peça Anti-Nelson Rodrigues contém um grande amor... Um amor que continuasse conceitos psicanalíticos que, na década de qua-
mente o amava. Amado, Cunha e Aprígio, inca- todos os ingredientes comuns à sua dramaturgia. para além da vida e para além da morte”. renta, começaram a circular nos meios cultos.
pazes de conter sua homossexualidade latente, Agora, combinados com razoável dose de hu- Inconsciente, Id, Ego, mecanismos de defesa,
utilizam a cena do beijo para imolar Arandir. mor. Um rico herdeiro psicopata, Osvaldinho, é Numa dramática reviravolta, Joyce recebe de complexo de Édipo, perversão, neurose, incesto,
conduzido pela habilidade com que Joyce vai bali- Osvaldinho polpudo cheque com que ele a com- narcisismo, depressão, sonho, imaginação, sím-
“Não me arrependo... foi a coisa mais sublime que zando novos terrenos por onde ele pode deslizar prava. Ela rasga-o em pedacinhos, atirando na bolos, sublimação, comparecem aos borbotões
já cometi. Atender ao desejo de um moribundo...” e crescer. Joyce arrosta os riscos de ser corrom- cara de Osvaldinho, que fica atônito. Dá-lhe bo- em sua obra. O fato é que, com suas peças, Nel-
son Rodrigues foi um escarafunchador do baú, Suas peças e seus livros são exemplos da imo- Negação como mentira, implica mais negação. Ver- - é o primeiro imprescindível passo para introje-
universo conceitual da psicanálise. ralidade, da calhordice e da venalidade a nós neinung, negação simples, consciente da existência tá-lo em nosso psiquismo, como representação
comuns, bem como a um povo. Nelson não do recusado. É o substituto intelectual do recalcado. do objeto perdido, simbolizado como lembrança
Mais que isso: Nelson, com sua dramaturgia, foi escreveu uma bíblia, talvez dez por cento dela, e, a seguir, como palavra/fala/lamento/discurso.
um arrombador, um escanchelador de (quase) em sacanagens e hediondices e atrocidades. Re- Na trama teatral, logo o personagem descamba
todos os nichos conceituais da psicanálise freu- tratou o ser humano com toda a sua contradição para a recusa da realidade verleugnung, que, no A palavra é a presença viva de uma negativida-
diana. Quase não houve nicho, canto, grotão do e complexidade, com sua avidez pelo absoluto entanto, teima em ser reeditada e reconsiderada: de morta distanciada. A palavra/o discurso é o
psiquismo humano que ele não tenha denuncia- da felicidade, sendo quase certa para levá-lo ao “Isso, essa coisa não me serve, não me interessa”. ersatz, a compensação que nos resta diante do
do e iluminado. fracasso existencial. objeto morto que se foi.
E assim, com frequência, o personagem rodri-
A vida humana, de regra, transita do miserável ao Nelson Rodrigues possuía um faro para as ex- guiano é compelido ao mais radical tipo de ne- Nessa esgrima da língua portuguesa, Nelson Ro-
terrível. E os seres guiados por suas insensatezes crescências e as abominações do homem con- gação, a forclusão – verwerfung –, mediante a drigues foi genial!
e por seus desejos em demasia, desmesurados, temporâneo. O jornalismo e a crônica policial qual exclui o significante, o fato intolerável de seu
tendem a escolher, incautamente, os caminhos foram fonte perene da qual extraía a seiva vene- campo psíquico. É quando, então, imerso em
mais fáceis, quase sempre aqueles que, logo, se nosa de suas peças. pleno transcurso mortífero do instinto de morte, 1
Marco Aurélio Baggio é psiquiatra, psicanalista e presidente
revelam mais nefastos. o personagem enlouquece, mata ou suicida.
da Sociedade Brasileira de Médicos e Escritores.
Assim, ele punha em cena um elenco de EUS ali-
Os instintos que impelem o homem são polimor- mentados pelo leite amargo/azedo da ferocidade Nelson Rodrigues é um ícone brasileiro. Sua
fos, plurívocos, exigentes e tendem à busca do humana. Encanta-se pelos monstros. obra possui originalidade, invenção, força. “Flor
prazer em descarga rápida. Na dramaturgia de da obsessão”. Sabia ser necessário repetir para REFERÊNCIAS
Nelson, personagens banais rapidamente fazem “Enchemos o palco de monstros que nos intimi- não ser esquecido. Escreveu 17 peças pratica-
BAGGIO, Marco Aurélio. Os Concertos da Vida – Música Po-
dam para manter os nossos contidos (recalca- mente com as mesmas temáticas para, de um pular Brasileira. Campinas: Editorial PSY, 1996.
dos), para deles (em catarse e contraexemplo) lado, escarmentar seus demônios e, de outro,
__________. O Campo Psíquico no Teatro de Nelson Ro-
nos libertarmos”. para firmar-se como dramaturgo maior. Deci- drigues. Hoje em Dia. Belo Horizonte: 24 ago. 1989.
frou o brasileiro.
NELSON
96 É assim que ele acreditava na função terapêutico- __________. Delírios de Ciúmes. Estado de Minas. Belo
97
RODRIGUES É UM -psicanalítica do teatro. Evitando que nossos de- “É um pé-rapado, com complexo de inferiorida- Horizonte: 2 mar. 2002.
de, um narciso às avessas”. __________. Textos Insinceros – Dorotéia. Contagem: Santa
ÍCONE BRASILEIRO. mônios vicejem e pululem por aí.
Clara, 2006.

SUA OBRA POSSUI No teatro do absurdo que ele criou, sem saber “Cochichamos o elogio e berramos o insulto”. __________. Compêndio de Psiquiatria. Rio de Janeiro: Di-
Livros, 2011.
ou sabendo, Nelson Rodrigues usou e abusou do
ORIGINALIDADE, mais eficaz e definitivo incisivo elenco de meca- “Somos um povo burro”. HANNS, Luiz. Dicionário Comentado do alemão de Freud.

INVENÇÃO, FORÇA nismos de operação psíquicos, que são as quatro Rio de Janeiro: Imago, 1996.

formas de negação. “Câncer é falta de amor”.

Desde o simples Não! - partícula de delimitação “Como é bom o doer de velhas penas”.
opções pulsionais em curto-circuito, acarretando
a sina de percorrer os circuitos mortíferos do sui- ou de contradição presente na fala corrente; pas-
sando pela negação - verneinung -, negação cons- “Até onde saberei ir na minha tarefa de surpreen-
cídio, do assassinato, do aborto. Enfim, buscam der o burguês com novos detalhes escabrosos?”,
ativamente a própria morte por escape extremo ciente de uma realidade desagradável - “Não que-
ro saber”; “Não tô nem aí”; “Nem te ligo”. diz Nelson.
de baixa qualidade para os conflitos que não sou-
beram resolver a tempo e a propósito. Nelson e seus personagens não aceitavam carpir
Utilizou por demais a repressão ou o recalque
- verdrangung - quando o personagem é cons- e sofrer as perdas que o destino lhes acometia.
Passados 22 anos de sua morte, após 30 anos de Nelson teve lutos demais, rápidos demais para
obra concernida e comemorando seu centená- ciente do fato, mas separa dele o afeto incômodo
indecente correlato, mantendo o afeto preso na elaborar. Suas 17 peças podem ser consideradas
rio de nascimento, podemos avaliar com maior tentativas mais ou menos bem/malsucedidas de
inserção e com maior argúcia, em plano largo, o goela do inconsciente.
perlaborar suas perdas. Sua vida transcorreu sem
verdadeiro valor de sua obra. e com estrela.
Negação da realidade do fato, do afeto, do even-
Nelson Rodrigues foi um gênio brasileiro, do- to é mecanismo psicanalítico rápido, barato, e
Acolher a crueldade da perda do objeto querido,
tado de talento e estro para o teatro. Forjou sua eficaz. O preço é que cria uma falha, um rombo
pessoa, patrimônio, amor, filho, ideal - que se foi
obra apesar da burrice racional. na cadeia significante do indivíduo.
A ARTE DE
IR ALÉM DOS
ESPETÁCULOS
VALMIR SANTOS1
A 66ª edição do Festival de Avignon, prevista para ais e federais. O período viu aflorar iniciativas afins
julho de 2012, tem como identidade visual a si- nas agendas culturais de Brasília, São José do Rio
lhueta de um homem com o braço direito erguido, Preto, Salvador e Recife, alinhadas ao time desbra-
dedo em riste, vociferando com um megafone na vador que já vinha com algum alento desde o final
mão esquerda. A jornada francesa sintoniza com o dos anos de 1980, início dos 1990: Londrina, Curi-
espírito do movimento global “ocupe” em praças, tiba, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro. 99
parques e calçadões. Concerne também ao pionei-
rismo de seu fundador, Jean Vilar (1912-1971). Em A despeito da falta de políticas públicas mais asser-
meados dos anos 1940, o ator e diretor deslocou tivas quanto ao papel dos festivais brasileiros - a
o foco tradicional dos edifícios teatrais parisienses maioria dos organizadores gasta todos os neurô-
para uma cidade de contornos medievais, cercada nios para viabilizar economicamente suas progra-
por muralhas, ao sul do país, onde o principal espa- mações até os 90 minutos do segundo tempo -,
ço para as artes cênicas era, e ainda é, ao ar livre: o essas coordenações e respectivas curadorias ainda
pátio do Palácio dos Papas, construção gótica usada se revelam tímidas quanto ao papel de agitador cul-
como residência pontifícia no século XIV. tural que poderiam assumir para si de maneira mais
convicta, incisiva e continuada, à la Jean Vilar.
Foi a partir da iniciativa de Vilar que a opção não
convencional passou a disputar holofotes com o Ou à la Nitis Jacon, a psiquiatra que inscreveu um
palco italiano, influenciando a percepção dos cria- modo singular de militância (arte + resistência) nos
dores e do público para todo o sempre. Evocar 44 anos do Festival Internacional de Londrina, o
Avignon aqui tem a ver com a capacidade de um FILO, dos quais ela assinou a direção artística por
festival fundir-se à cidade e, mais sublime ainda, afe- mais de 30 anos, praticando e ensejando projetos
tar a linguagem das artes cênicas que é, ou deveria de políticas públicas de cultura. Da fase amadora
ser, em suma, sua razão de existir. universitária à institucionalização, da mostra latino-
-americana à fase internacional mais abrangente, o
Sentimos falta desse ímpeto proativo no panorama encontro que transcorre na cidade do norte para-
atual dos principais festivais no Brasil, sejam eles na- naense atravessou a ditadura militar e reafirmou,
cionais ou internacionais. A década dos anos 2000, com a abertura democrática, a “evolução de uma
para ficar num recorte que nos é próximo, foi pró- consciência cada vez mais arguta da responsabilida-
diga no aporte de recursos das leis de incentivo de histórica da ação cultural”, como afirma a crítica
(públicos) combinado às verbas municipais, estadu- Mariangela Alves de Lima2. Pode-se indagar que
Cartaz do 66º Festival d’Avignon (2012)
ou temporadas. Costuma ser influenciada pela cional de Teatro de São José do Rio Preto, na 12ª
régua da recepção crítica em outras paragens. edição, e do Festival Internacional de Artes Cêni-
PROGRAMAR UM Apesar desse movimento, a tônica ainda é a da cas da Bahia, o FIAC, de Salvador, que vai para a
pouca margem para o desconhecido. Soa aco- quinta jornada. A sensação de processos unifor-
FESTIVAL TEM modado também o discurso da diversidade de mes nesses e nos demais pares, no entanto, deriva
MUITO A VER formas, conteúdos e geografias, como se, com
isso, isentasse os responsáveis pela empreitada
das demandas em captar recursos patrocinados e
da prioridade máxima delegada à composição da
COM CIÊNCIA E de dizer a que veio quanto aos anseios e à me- tabela de peças, coreografias e intervenções em
mória do evento. A sua incisão crítica e autocrí- detrimento de surpreender com ações ousadas
ARTE, OU SEJA, tica. A ambição sobre a prática e o pensamento que possam entrelaçar, também, coragem política,
COM REFLEXÃO do fazer teatral. O vínculo com o território a que sociabilidades e linguagens da cultura.
pertence. A instigação dos criadores locais.
E INTUIÇÃO No verbete “festival”, Patrice Pavis afirma que, às
não é da alçada dos certames deflagrar tais predica- PELA EQUIPE Outro exemplo de um festival longevo é o Porto vezes, nos esquecemos de que o adjetivo tam-
dos tangíveis aos governos. Mas a influência de um Alegre em Cena, que há 18 edições tem o mérito bém encerra o sentido de festa, referendando da-
festival cênico sobre moradores e visitantes, sua
LIDERADA POR UM de firmar uma porta permanentemente aberta aos tas ou consagrações religiosas desde a Antiguida-
propulsão ao ato coletivo, à vida comum, o cre- ARTICULADOR países sul-americanos (ponte que Salvador, Uber-
lândia, São Paulo e Santos ergueram para si em
de, como Osíris, no Egito, e Dionísio, na Grécia:
dencia à apropriação desse ativo. Independe se é
realizado por organismos públicos, entidades sem mostras voltadas à região ibero-americana). Em Estas cerimônias anuais marcavam um momen-
de sua existência. É preciso oferecer-lhe a dúvida, toda edição, o público gaúcho depara com mon- to privilegiado de regozijo e de encontros. Deste
fins lucrativos ou privadas.
a inquietação, o mistério do ainda desconhecido, tagens da Argentina e do Uruguai, obrigatórias na acontecimento tradicional, o festival conservou
a desconfiança da concepção paranoide da ver- percepção do diretor artístico e curador Luciano uma certa solenidade na celebração, um cará-
Programar um festival tem muito a ver com ciência ter excepcional e pontual que a multiplicação e a
e arte, ou seja, com reflexão e intuição pela equipe dade incontestada. Estimular sua humanidade, Alabarse, além de representantes de outras na-
sua expectativa, seu espanto, seu confronto com banalização dos modernos festivais muitas vezes
liderada por um articulador (ou mais de um) que ções cotejados anualmente. Uma vez assimilada a
a diferença e o oposto. [...] O Festival Internacio- esvaziam de sentido. [...] Este moderno ressur-
se espera sensível e informado. Segundo Sidnei difusão, como a prática de um festival pode intera- gimento do festival sagrado atesta uma profunda
nal de Londrina se propõe aos artistas e à popu- gir de maneira mais radical no fenômeno das tro-
Cruz, que por duas décadas coordenou o proje- necessidade de um momento e de um lugar onde
100 lação como alternativa à mediocrização política e
cas culturais e sociais? Houve ocasiões em que o 101
to Palco Giratório, do Departamento Nacional do intelectual e como referência de perseverança e um público de ‘celebrantes’ se encontre periodi-
SESC, elaborar atividades cênicas implica um exer- festival construiu uma circulação de peças em mão camente para tomar a pulsação da vida teatral,
lucidez quando escasseiam motivos para a espe-
cício sistemático entre a regularização e a inova- dupla com Buenos Aires e Montevidéu. Pergun- satisfazer às vezes a falta de ir ao teatro no in-
rança4.
ção. Esse conjunto de possibilidades depende do tas: como lidar daqui para frente com esse legado? verno, e, mais profundamente, ter a sensação de
que o lugar oferece, das condições socioculturais, Qual é a missão plausível na “maioridade”? pertencer a uma comunidade intelectual e espi-
Apesar de a idealizadora seguir como presidente
ritual encontrando uma forma moderna de culto
dos contextos político-econômicos, das demandas de honra do FILO, as edições recentes deixam
Vislumbramos que essa potencialidade pede e de ritual5.
e potencialidades da sociedade civil. “É importante a desejar em relação à contundência estética e
perceber que a ação política de fato a ser agen- mais ambição, por exemplo, no investimento
política de outrora.
em coproduções. O Núcleo de Festivais Inter- Pois de festa o Brasil entende. Cabe aos festivais
ciada é aquela que mergulha na negociação com-
nacionais de Artes Cênicas do Brasil já realizou consolidados abrir-se à incitação e exercer o pro-
plexa da articulação social de diferenças culturais, Considerando-se a linha de tempo da década pas-
dois projetos nesse sentido, com um espetáculo tagonismo desde o seu quintal para o mundo.
influenciando as redes de valores e significados que sada, não identificamos uma atuação orgânica entre
constituem o patrimônio consciente e inconsciente percorrendo as respectivas praças. Essa estraté-
os festivais citados quanto ao estabelecimento de
do corpo de uma sociedade” .
3
gia resultou saturada, entre outras razões, por-
conexões e rupturas nos campos artístico, político
que condicionava à circulação automática pelos 1ValmirSantos é jornalista e pesquisador de teatro. Consultor
e social. Via de regra, as coordenações gerais, dire-
Nitis Jacon não perdia tempo com platitudes no respectivos calendários. Somos partidários da co- da curadoria desta edição do FIT-BH, debutou na função de
ções artísticas e curadorias ficam reféns da progra- curador em 2011, no 14º Festival Recife do Teatro Nacional.
texto do programa de mediação com o público. produção caseira, na qual um festival invista com
mação em si, raramente colocada em transversal 2LIMA, Mariangela Alves de. Apresentação. In: JACON, Nitis.
A cada ano ela escrevia um editorial em que le- dignidade e planejamento em artistas do seu pe-
ou capaz de adquirir capilaridade não protocolar Memória e recordação: Festival Internacional de Londrina - 40
vantava questões, expressava seu ponto de vista daço, às vezes em simbiose com convidados de anos. Londrina: edição da autora, 2010, p. 10.
junto à comunidade. Os esforços são empreendi-
sem peia. Vide o trecho do documento vindo à fora, e essa obra carregue o nome da respectiva 3
dos para trazer alguma companhia bem cotada no CRUZ, Sidnei. Palco Giratório: uma difusão caleidoscópica
luz naquela memorável edição de maio de 1992, cidade que a promoveu. das artes cênicas. Fortaleza: SESC-CE, 2009, p. 23.
circuito europeu ou pinçar algum ícone redivivo ou
4 JACON, Nitis. Memória e recordação: Festival Internacional
a 24ª, a cinco meses do impeachment de Collor: recente. Esses procedimentos são legítimos, é evi-
A rigor, programação não é problema nos festi- de Londrina - 40 anos. Londrina: edição da autora, 2010,
dente, mas não esgotam os desafios. p. 200.
Se o indivíduo, no melhor dos regimes políticos, se vais. As seleções são susceptíveis à valsa do que 5PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva,
conformar à segurança instituída, a uma vida sem vem à baila. Mesmo as iniciativas que estão nos
A escolha das criações brasileiras, igualmente, se- 1999, p. 166.
buscas, sem desejos, sem dúvidas e sem pergun- primeiros anos de paleta internacional defendem
gue o faro dos programadores em visita a festivais
tas, estará condenado ao tédio e à mediocrização bem suas escolhas. É o caso do Festival Interna-
EXPEDIENTE
FIT Revista 4
IDEALIZAÇÃO
Marcelo Bones e Rodrigo Barroso

COORDENAÇÃO EDITORAL
Paula Senna

ASSISTÊNCIA DE COORDENAÇÃO EDITORIAL


Gustavo Monteiro

SUPERVISÃO EDITORIAL
Valmir Santos

PROJETO GRÁFICO
Zoo Comunicação

REVISÃO
Trema textos.

TRADUÇÕES
Jimena Castiglioni, Paula Soares Faria e Regina Brito

COLABORADOR
Tiago Penna

IMPRESSÃO
Rona Editora

AGRADECIMENTOS
Eugênio Sávio, Guto Muniz e Gustavo Falabella

COORDENAÇÃO GERAL FIT-BH


Rodrigo Barroso

PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA


Thaïs Velloso Cougo Pimentel

PREFEITO DE BELO HORIZONTE


Marcio Lacerda
Correalização: Realização:

Você também pode gostar