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Fortaleza - 2011
1
Associação
dos
Lojistas
da
Monsenhor
Tabosa
2
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
5
PLENÁRIAS
7
O
SINTOMA
ENTRE
MARX
E
LACAN
8
ALÍNGUA
HISTÉRICA
14
ALGUMAS
OBSERVAÇÕES
SOBRE
O
NÚCLEO
REAL
DO
SINTHOMA
E
A
EXPERIÊNCIA
DO
GOZO
OUTRO
24
“DAR
NA
PINTA”:
PARECER
MULHER
COM
CORPO
DE
HOMEM
32
SINTOMA
E
FANTASIA
NA
HISTERIA
MASCULINA
42
O
SINTOMA
E
O
AMOR
50
APOSTAR
NO
SINTOMA
56
SINTOMA
E
ESCRITA
OU...OS
ECOS
DO
SINTOMA
SELVAGEM
64
O
LIVRO
DE
CABECEIRA:
DA
ESCRITA
COMO
SINTOMA
AO
SINTOMA
COMO
LETRA
74
A
SATISFAÇÃO
DO
FINAL
DE
ANÁLISE
81
MESAS
SIMULTÂNEAS
90
“FAZER
UMA
ESCOLHA
OU
PERMANECER
NA
DÚVIDA?”
91
O
QUE
MARCÉLIO
SABIA
100
REFLEXÕES
SOBRE
A
DIREÇÃO
DO
TRATAMENTO
NA
CLÍNICA
DA
PERVERSÃO
109
A
PELE,
SUAS
MARCAS
E
O
CORPO:FENÔMENO
PSICOSSOMÁTICO
E
TATUAGEM
117
SINTOMA:
RUÍDO
DA
ALÍNGUA
NO
CORPO
128
CONSIDERAÇÕES
SOBRE
O
GOZO
EM
UM
CASO
CLÍNICO
DE
PSORÍASE
136
SINTHOME:
O
REAL
DO
SINTOMA
146
SINTOMA
E
FANTASIA
FUNDAMENTAL
152
O
NOME
DO
SINTOMA
160
A
ARTE
É
O
QUE
HÁ
DE
MAIS
REAL
168
OS
USOS
DO
CORPO
E
A
POLÍTICA
DO
SINTOMA:
O
CASO
DA
TRANSFORMAÇÃO
CORPORAL
175
O
REAL
DO
SINTOMA:
SUA
POLÍTICA
NA
CURA
184
SINTOMA
OU
FENÔMENO
PSICOSSOMÁTICO?
DECIFRA-ME
OU
TE
DEVORO!
195
CONSIDERAÇÕES
TOPOLÓGICAS
DA
PASSAGEM
DO
SINTOMA
AO
SINTHOMA
202
UM
ADOLESCENTE
EM
CENA
210
A
RELAÇÃO
DO
SINTOMA
COM
AS
LEIS
MORAIS
217
“SINTO
QUE
NÃO
TOM(A)ES”
–
SOBRE
A
DESIMPLICAÇÃO
SUBJETIVA
NA
SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA
223
A
FUNÇÃO
DO
ANALISTA
E
A
POLÍTICA
DA
PSICANÁLISE
NA
POLÍTICA
PÚBLICA
DE
SAÚDE
MENTAL
229
OS
IMPASSES
DA
TRANSMISSÃO
DA
PSICANÁLISE
E
DA
TRANSMISSÃO
EM
PSICANÁLISE
235
ASPECTOS
DA
RELAÇÃO
ENTRE
SINTOMA
E
ANÁLISE
241
PSICOSES
ORDINÁRIAS
E
ATOS
VIOLENTOS
246
ENTRE
A
SÍNDROME
E
A
MÃE:
MARCELA
252
O
HOMEM
CONDUTOR:
UM
CASO
DE
HISTERIA
MASCULINA?
260
DA
ILUSÃO
DE
COMPLETUDE
AO
ENCONTRO
SIMBÓLICO:
A
PEREGRINAÇÃO
AMOROSA
DO
SUJEITO
DESEJANTE
EM
“UMA
APRENDIZAGEM
OU
O
LIVRO
DOS
PRAZERES”,
DE
CLARICE
LISPECTOR
267
SINTOMA,
SINTHOME
E
FINAL
DE
ANÁLISE
277
3
“IMAGINE
O
QUE
EU
NÃO
FALARIA
SE
EU
NÃO
FOSSE
GAGO!”:
O
QUE
FALA
ESSA
GAGUEIRA?
283
CONSIDERAÇÕES
SOBRE
A
CONSTITUIÇÃO
DA
SUBJETIVIDADE
NA
PSICOSE:
CASO
SCHREBER
287
DE
UM
SINTOMA
NO
CORPO
A
UM
SINTOMA
ANALÍTICO:
UMA
CLÍNICA
A
PARTIR
DOS
FENÔMENOS
PSICOSSOMÁTICOS
294
A
CRIANÇA
COMO
SINTOMA
DOS
PAIS
EM
CASOS
DE
DISPUTA
DE
GUARDA
301
PSICANÁLISE
E
POLÍTICA
:
O
PSICANALISTA
COMO
SINTOMA
DA
CULTURA
307
SINTOMA
E
REPETIÇÃO
NA
NEUROSE
OBSESSIVA
314
O
SINTOMA
NA
ARTE
OU
A
ARTE
COMO
SINTOMA?
322
4
Apresentação
6
PLENÁRIAS
7
O Sintoma entre Marx e Lacan
Sonia Alberti1
Assim:
para
Lacan,
tanto
Marx
como
Freud
possuem
o
mesmo
objeto:
a
verdade,
além
disso,
para
ambos,
é
o
valor
desse
objeto
que
equivale
ao
sintoma.
1
AME
,
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
-‐
Brasil.
Membro
do
Fórum
Rio
de
Janeiro
8
Ou
seja:
o
valor
verdade
=
valor
sintoma,
o
sintoma
em
Marx
e
em
Freud.
Até
aí
pude
ir
no
último
trabalho
apresentado,
em
particular
em
São
Paulo
quando
tive
a
oportunidade
de
falar
no
FCL
de
lá.
O
que
proponho
hoje,
e
será
rápido,
é
um
pequeno
avanço:
o
sintoma
entre
Marx
e
Lacan.
Em
1844,
época
em
que
Marx
estabelece
as
bases
filosóficas
para
toda
sua
obra,
a
verdade
em
questão
é
a
do
sistema
capitalista
que
Proudhon
julgava
estar
se
socializando
cada
vez
mais.
É
no
questionamento
dessa
hipótese
de
Proudhon
que
encontramos
talvez
a
mais
evidente
acepção
do
emprego
do
termo
sintoma,
por
Marx,
na
maneira
como
Lacan
o
marca.
Retomemos
toda
a
passagem
em
Marx:
10
Retomemos
com
vagar
a
passagem
lida,
os
comentários
de
Marx
sobre
as
teses
de
Feuerbach:
2)
“É
a
vitória
total
da
propriedade
privada
sobre
todas
as
qualidades
que
ainda
são
aparentemente
humanas,
e
a
total
sujeição
do
dono
da
propriedade
privada
à
essência
da
propriedade
privada
–
o
trabalho”.
O
capital
que
produz
mais
capital
submete
o
dono
da
propriedade
privada
ao
trabalho
pois,
para
produzir
é
preciso
trabalhar.
Colocar
o
capital
a
trabalho.
Ao
mesmo
tempo,
Marx
já
denuncia
aqui
o
fim
do
humanismo,
pois
o
homem
é
agora
submetido
ao
capital
que
o
faz
trabalhar
para
este
mesmo
capital.
Se
até
então
ainda
havia
uma
ideia
de
fazê-‐lo
para
o
homem,
agora
fica
claro
–
já
que
essa
ideia
era
somente
uma
noção
que
vinha
das
aparências
porque,
em
essência,
a
propriedade
privada
privilegiada
até
então,
era
somente
sustentada
pelo
trabalho,
seu
capital
–
que,
na
realidade,
é
pelo
capital
que
o
homem
trabalha.
E
isso
independente
de
esse
homem
ser
o
proprietário
ou
o
operário,
como
se
vê
na
frase
seguinte:
11
3)
“Certamente,
o
capitalista
industrial
também
goza”.
Frase
um
pouco
estranha.
Como
assim:
“também”?
Só
posso
entender
essa
frase
quando
eu
entender
que
o
próprio
gozo
é
esse
capital
que
já
estava
lá
apesar
de
velado
pelas
“qualidades
aparentemente
humanas”.
6)
Novo
mal-‐estar
na
civilização:
em
mal
de
desejo,
desejo
do
qual
o
sujeito
já
não
pode
usufruir,
gozar,
“o
indivíduo
que
goza
é
subsumido
ao
indivíduo
que
acumula
capital.
Antes,
a
situação
era
o
contrário”
[o
indivíduo
que
acumulava
capital
o
fazia
para
gozar
com
ele,
provocando
o
desperdício
da
riqueza],
pagando
o
preço
para
desejar.
8)
“alienação
crescente”
pois
o
próprio
gozo
que
se
perde,
que
se
aliena,
é
ele
mesmo
o
capital
a
incrementar
a
produção,
gozo
a
mais
ou
mais
de
gozar.
MARX,
K.
(1844)
Human
Requirements
and
Division
of
Labour.
Under
the
Rule
of
Private
Property.
In
Economic
and
Philosophical
Manuscripts
of
1844.
Consultado
no
site:
http://www.marxists.org/archive/marx/works/1844/manuscripts/needs.htm
13
Alíngua Histérica
Jairo Gerbase1
Sob o título de alíngua histérica, escrita com uma só palavra como propõe Lacan,
gostaria de justificar nossa hipótese de trabalho segundo a qual, o campo das neuroses, campo
do inconsciente real, é uma espécie de território onde domina uma língua oficial – alíngua
correspondem a um dialeto.
obsessiva (1909) v. X] Freud afirma que “A linguagem de uma neurose obsessiva, ou seja, os
meios pelos quais ela expressa seus pensamentos secretos, presume-se ser apenas um dialeto
1
AME,
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campos
do
Fórum
Lacaniano
–
Brasil.
Membro
do
Fórum
Salvador
14
respeito com mais facilidade de vez que se refere com mais proximidade às formas de
Esta relação entre alíngua e dialeto pode ser estendida às demais formas da neurose
inclusive à paranoia se tomarmos por referência o caso de Cecília [Caso 5 - Srta. Elisabeth
Von R. (Freud) v.II] no qual ele afirma que “... a histeria tem razão em restaurar o significado
original das palavras ao retratar suas inervações inusitadamente fortes. Com efeito, talvez seja
errado dizer que a histeria cria essas sensações através da simbolização. É possível que ela
não tome em absoluto o uso da língua como seu modelo, mas que tanto a histeria quanto o uso
Quer dizer que não apenas a histeria, a obsessão, a fobia e a paranoia, mas a própria
língua faz uso da alíngua, ou como diria Lacan o objeto da lingüística não é a língua, mas
alíngua.
Se me for objetado que Freud também destacou acima que o pensamento obsessivo é
obsessão à categoria de uma neurose exemplar, refutaria que ainda assim não faz discurso:
das demais formas de sintoma pode ser encontrada na fórmula 9 do artigo [Fantasias
histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908) v.VIII] “(9) Os sintomas histéricos são a
expressão, por um lado, de uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro lado, de
uma feminina”.
Trato esta fórmula como um teorema e faço sua demonstração traduzindo fantasia
sexual inconsciente masculina, primeiramente por significação fálica e, em seguida por gozo
fálico [J ], posto que o gozo fálico é aquele que toma por referente (ou significação -
Bedeutung) o falo; por outro lado, traduzo a fantasia sexual inconsciente feminina por
significação tórica e, em seguida, por gozo do Outro [J ], posto que o gozo do Outro é aquele
que toma por referente o furo e que se pode mostrar seja através do símbolo do conjunto vazio
Freud termina este artigo afirmando que “No tratamento psicanalítico é extremamente
importante estar preparado para encontrar sintomas com significado bissexual. Assim não
resolvido um dos seus significados sexuais, pois ele ainda é mantido por um, talvez
insuspeito, que pertence ao sexo oposto. No tratamento de tais casos, além disso, podemos
16
conveniente possibilidade de constantemente passar suas associações para o campo do
sintoma completo, como trabalho acabado, donde seu valor de alíngua oficial, devemos
traduzir por significado asexual, posto que sabemos que a outra parte da sexualidade não pode
lalíngua [Lalíngua nos seminários, conferências e escritos de Jacques Lacan, organizado por
Dominique Fingermann e Conrado Ramos e publicado em Stylus 19, OE 492] “... Esse dizer
provém apenas do fato de que o inconsciente por ser ‘estruturado como uma linguagem’, isto
é, como alíngua que ele habita, está sujeito à equivocidade pela qual cada uma delas se
distingue. Uma língua entre outras não é nada além da integral dos equívocos que sua história
deixou persistirem nela. É a veia em que o real – o único, para o discurso analítico, a motivar
seu resultado, o real de que não existe relação sexual - se depositou ao longo das eras...”
Citação que nos autoriza a atualizar o inconsciente estruturado como uma linguagem em o
Prefiro traduzir lalangue por alíngua que por lalíngua porque apesar da segunda
não é uma estrutura deve-se responder afirmando que o inconsciente real estruturado como
17
O discurso histérico
Passemos ao discurso histérico que escrevemos desse modo e que podemos ler de
várias maneiras. Vamos ler esse matema tal como Lacan o leu no texto sobre o sentido
analítico lhe trouxe alguma luz, isso ainda é preciso ser demonstrado. A clínica é mais antiga.
O que é uma clínica? Não podemos dizer só há uma estrutura clínica, a estrutura de
linguagem, a estrutura significante, que escrevemos [S( )], porque isso não é uma clínica. A
primeira afirmação e da primeira não-afirmação, nesse nível ainda não há uma clínica, porque
18
estamos no nível da gênese do julgamento, e nesse nível ou admito ou expulso, nesse nível
Creio que é por esta razão que Lacan afirma que existe uma clínica no nível das
formas do sintoma. Uma clínica depende das formas de sintoma. É preciso que o sintoma
tome forma, configuração, para que se possa dizer: existe uma clínica.
É necessário que o sintoma tome a forma que convém à estrutura do sintoma para que
possamos falar de clínica. Portanto, a clínica é das formas do sintoma, das formas neuróticas
do sintoma, que podemos escrever como [Σn] e que sabemos que resultam da estrutura do
recalque, ou das formas que podemos escrever como [Σp], do sintoma psicótico, que é outra
intervalo próprio da neurose, que também se pode escrever como e funciona como
19
Um que vai da debilidade à psicose. Alíngua é uma holófrase. É um jouis-signes distinto da
linguagem.1
Podemos partir de [S( )] e deduzir daí o discurso histérico; isso torna possíveis as
significante e, num segundo nível, a estrutura do sintoma, que é, por exemplo, o discurso
histérico.
Hoje vou dizer que o discurso histérico é a estrutura do sintoma por excelência, dado
que esse discurso operou do lado da afirmação primordial, operou negando essa afirmação de
modo veemente, afirmando: tenho horror de saber disso, que é o que se chama de mecanismo
do recalque e que permite constituir a estrutura do sintoma que atinge um discurso, o discurso
De acordo com essa concepção, a obsessão e a fobia deveriam ser consideradas como
formas do discurso histérico, ou tipos de sintoma que resultam da estrutura do recalque. Dessa
maneira gostaria de elevar o discurso histérico à estrutura de todo sintoma ou, pelo menos, à
histérico.
1
SOLER,
C.
O
corpo
falante.
Caderno
de
Stylus,
p.27.
20
Freud, dizer que a obsessão é um dialeto da histeria, ou que é uma forma inacabada do
sintoma. Poderíamos usar o léxico de Joyce e dizer que o sintoma obsessivo é um “Work in
também um “Work in progress”, dado que não sabemos se ele vai se concluir em um sintoma
Podemos estender este argumento ao extremo para poder dizer que inclusive a
paranoia uma vez colocada no dispositivo analítico, isto é, uma vez operada a partir do
discurso do analista deve ser hystorizada ou histerizada a fim de se tornar sintoma analítico.
clínicas não são intercambiáveis. Porém, atenção: não disse que a histeria pode virar paranoia,
nem mesmo disse que a paranoia pode virar histeria, disse que o paranoico pode historizar seu
21
discurso posto que a paranoia é igualmente um fato de discurso. O paranoico continuará
uma estabilização.
preocupa desde já em proteger o ambiente, por exemplo, reaproveitamento da água suja para a
descarga. Suas máximas: o homem destrói o ambiente; o sol vai esfriar; o índio já era artista
muito antes de Tarzan... Com quatro anos de idade perguntou à sua mãe: e quando a água do
mundo acabar? Ela respondeu: não vai acabar. Ele replicou: como não vai acabar se todo
mundo usa a água? Desenvolveu uma inibição escopofílica [fobia social] que lhe impôs um
atraso escolar considerável, uma procrastinação. Para me explicar diz que era uma criança tão
hiperativa que certa vez seu pai foi à escola lhe obrigar a pedir desculpas à professora e aos
22
colegas; morreu de vergonha. Seu pai gostava de lhe expor ao ridículo: vestir-lhe de palhaço
com a cara lambuzada em festas juninas; em um carnaval lhe vestiu uma fantasia de índio,
sem roupas, sob o argumento irônico de que: índio anda nu. De modo que acredito que esta
fixão de gozo determinou tanto seu sintoma como sua escolha vocacional.
23
Algumas observações sobre o núcleo real do sinthoma e a experiência do
gozo Outro
Elisabeth da Rocha Miranda1
satisfação pulsional que não pode alcançar seu alvo de forma direta. É uma mensagem cifrada
que pede interpretação. Para Lacan, o sintoma endereçado ao Outro ganha uma significação.
A “dialética do senhor e do escravo” elaborada por Hegel foi uma referência quando em 1953
no texto “Função e campo da palavra e da linguagem” Lacan nos dá uma primeira leitura da
seu poder” (Lacan,1958) ele concebe o inconsciente como tendo “a estrutura radical da
sincronia significante inscrita no lugar do Outro, longe de ser uma plenitude compacta,
contém rupturas. Na seqüência sincrônica da linguagem abre-se uma hiância que se revela na
incompletude do Outro é um fato de estrutura, o que faz Lacan defini-lo como lugar da fala,
O recurso do sujeito para lidar com essa falta é o apelo ao significante Nome-do-Pai
significação fálica, produzida retroativamente, está regida pela função paterna, que se
1
AME,
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
-‐
Brasil,
membro
do
Fórum
Rio
de
Janeiro
24
inscreve no seio do Outro, em A. O sintoma se apresenta, neste momento, como metáfora
entanto, a estrutura do sintoma não se limita à estrutura da metáfora, já que o sintoma não se
resolve de todo em uma análise da linguagem. O sintoma está enraizado em algo de uma
natureza distinta do significante, o que se comprova com a teoria das pulsões. A compulsão à
A lógica da enunciação não pode encontrar no campo do significante seu próprio fundamento.
Não há Outro do Outro, visto que todo enunciado de autoridade possui como única garantia
sua própria enunciação. Nenhuma metalinguagem pode articular a verdade última do desejo.
Há um significante que marca que ao Outro falta, constituindo-o por uma falha e que se
escreve com o matema . A ordem simbólica está articulada em torno de um furo, o que
nos permite considerar como o matema do Nome-do-Pai. Ainda que tenha sido
consideremos o pai simbólico como o significante mestre (S1). Lacan destaca que o pai da
horda primitiva, cujo desaparecimento instaura a lei, não transmite nenhuma mensagem, de
tal maneira que sua função se iguala a um significante sem significação. A referência a sua
morte vai a favor do Outro marcado por uma hiância. “O cadáver é um significante, mas o
túmulo de Moisés está tão vazio para Freud quanto o de Cristo para Hegel. Abraão a nenhum
dos dois revelou seu mistério” (Lacan, 1960: 833) diz Lacan em 1960. Na única aula do
25
seminário “Os nomes do pai”, Lacan (1963) diz que o sacrifício exigido por Deus a Abraão
nos faz entender que a herança do pai freudiano reside no complexo de castração.
a ela, gozo limitado pela renúncia ao objeto primordial de gozo. Essa tese se afirma com as
Lacan.
sexual. Uma amarração das três instâncias R.S.I. constitui a topologia mínima capaz de captar
a estrutura do sujeito e construir a realidade para o ser falante. A topologia dos nós baseia-se
na idéia do furo, já que o desejo só se sustenta em uma falta (Lacan, lição de 15 de abril de
1975). “A cadeia borromeana é um triplo furo” (Lacan, 1975: 267) que delimita o quarto furo
onde se aloja o objeto a. Esses furos se presentificam de maneiras diversas em cada um dos
três registros; no registro do simbólico, ele aparece como a hiância fundamental, como a
incompletude do Outro, como já dissemos, não há Outro do Outro, ao Outro falta, ele é
de 10 de dezembro de 1974), para além do que a imagem do corpo tenta elidir, o furo se faz
através da negativização do falo (–phi); no registro do real, temos a hiância posta às claras
pela não relação sexual, que marca a impossível completude do ser sexuado.
Esta, como já dissemos, é composta de três registros, RSI, que por si só não dão ao humano a
26
estrutura necessária para que ele aceda ao falasser (parlêtre) e como tal poder utilizar-se do
discurso como recurso à falta-ser. É necessário o quarto nó que amarre os três e esse quarto nó
é o Nome-do-Pai, que nesta ocasião Lacan faz equivaler ao sinthome. Temos então o objeto a
enquanto puro vazio, marca da castração, da falta radical constitutiva do sujeito alojado no
quarto furo delimitado pelo RSI. Neste mesmo lugar Lacan situa o sinthome e o Nome-do-
Pai.
O sinthome escrito assim em uma nova grafia tomada do francês antigo é utilizado por
Lacan para designar o conceito de sinthoma como quarto nó correlativo ao Nome-do-Pai. Para
forjar este novo conceito diz Lacan, foi “preciso reduzir o sinthoma em um grau para
considerar que ele era homogêneo à elucubração do inconsciente” (Lacan, 1976: 134). O
conceito anterior era o de uma metáfora estanque, cujo sentido era possível de se extrair; a
fundamental. Algo do sinthoma escapa ao sentido de tal maneira que no final de uma análise
resta-nos apenas “saber fazer com seu sintoma” (Lacan, lição de 16 de novembro de 1976). Se
existe um núcleo incurável, resta-nos assumi-lo, o que produz uma modificação do sujeito na
inconsciente transportada ao simbólico, ele é “é o que as pessoas têm de mais real” diz Lacan
27
inconsciente mordeu o real. Logo, pode-se falar de sinthoma quando há uma marca de
inconsciente do sujeito que se enodou com algo do real de seu gozo. O sujeito não é só
relativo ao significante, o que realmente lhe dá existência, está ligado ao real de seu gozo, ao
real do sexo.
não na relatividade significante e é, finalmente, a alteridade feminina que põe sobre o tapete o
laço do sexo com o real. No entanto, o problema do neurótico não é que o Outro do Outro
não exista, mas o que existe no lugar da inexistência do Outro como real. O sujeito tem que
lidar com o que existe como alteridade. Confrontar-se com a alteridade é confrontar-se com a
questão do que existe aí onde o Outro está barrado , é confrontar-se com a ex-sistência.
É na barra colocada sobre o Outro, nesta falta, nesta falha que se articula o lugar do
gozo. O gozo fálico é limitado pelo Um da exceção enquanto que o é o lugar no qual
Lacan situa o gozo feminino, outro que fálico, e que está em relação ao lado não-todo, em
relação a não existência do Um da exceção que seria a mulher se ela existisse, logo lugar da
1975 não é o gozo do Outro do significante, nem o Outro como corpo, mas Outro real, quer
dizer impossível, é o furo abissal e impossível que existe no lugar do Outro do Outro que não
O sinthoma é uma resposta à possibilidade sempre presente dos três registros R.S.I. se
confundirem. Resposta que se faz através do ser sexuado, pois o gozo referido ao objeto a
enquanto perda exclui a diferença sexual. O ser sexuado se faz através do gozo implicado na
28
fantasia fundamental e se articula ao núcleo real do sinthoma, ao gozo do sinthoma. É no
lugar de J(A barrado) que Lacan inscreve o artifício do sinthoma como quarto elemento da
para as mulheres e o protesto viril para os homens, mas para uma análise lacaniana que vai
além do falo, a castração se verifica no como significante do gozo feminino, que se trata
A partir daí podemos fazer uma diferença entre o gozo do sinthoma histérico, que é o
gozo da privação do phallus e o gozo Outro que Lacan em O Seminário, livro: 20 Mais
ainda...faz corresponder ao gozo de Deus, como a outra face de Deus. O gozo de Deus
genitivo subjetivo tem a face do Nome-do-Pai e outra face que é o gozo feminino que
demanda ainda e sempre amor. A demanda de amor parte do Deus barrado e a hiância que
marca o abismo que o Outro representa, faz com que a demanda de amor jamais seja
satisfeita. A noção de gozo de Deus é introduzida por Lacan na falha dono borromeo.
Chegar a decantar seu sintoma, chegar ao núcleo real do sintoma é uma possibilidade
relatório do Seminário, livro15 O ato analítico diz que: é “a partir da estrutura de ficção pela
qual se enuncia a verdade que ele –o sujeito- fará de seu próprio ser, estofo para a produção
de um irreal” (Lacan, 1969, p.372). Irreal que remete ao vazio de ser e à estrutura de ficção.
Final em que o sujeito chega a tocar a estrutura, cuja chave é o gozo do Outro barrado J(A
29
barrado), hiância que conforme Lacan em O Seminário livro 23 o sinthoma se abre entre
imaginário e o real.
qual nós não podemos gozar e que imputamos à Deus, e neste lugar não há nada de nada.
no final de uma análise pode-se experimentar um silêncio inominável que liberta e apazigua.
gozo Outro feminino, sempre que se ocupa a posição feminina e se cai no vazio de e
Bibliografia
30
LACAN,J. (1953) Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” In Escritos.
———— (1957-1958). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses”.
-------------(1958) “Die Bedeutung des Phallus” In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
————. (1972-1973). O seminário, livro 20, Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985.
31
————. (1975-1976). O seminário, livro 23, O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.
1
Georgina Cerquise
Freud
avança
em
sua
tese
quando
pesquisa
a
sexualidade
infantil,
postulando
que
tanto
a
impossibilidade
de
o
sujeito
liquidar
o
complexo
de
Édipo
quanto
a
tentativa
de
evitar
deparar
com
a
castração
têm
conseqüências:
levam
o
sujeito
a
uma
rejeição
da
sexualidade,
conduzindo-‐o
à
neurose
histérica.
Caso
Clínico:
A
mãe
de
um
jovem
de
dezoito
anos,
em
entrevista,
pede
para
que
seu
filho
seja
atendido,
alegando
uma
necessidade
de
ajuda.
Esclarece
que
ele
escolheu
o
pior
caminho,
pois
assumiu
a
homossexualidade.
Acrescenta
que
ela
tivera
problemas
no
parto
e
que
isso
ocasionou
muitas
dificuldades
no
desenvolvimento
do
filho.
No
período
escolar,
custou
para
ser
alfabetizado
e
“sempre
teve
a
pecha
de
retardado,
esquisito,
inconveniente
e
exibido”.
Ainda
não
conseguiu
concluir
o
primeiro
grau,
apesar
dos
esforços
da
mãe
para
colocá-‐lo
em
escolas
especiais.
No
momento
do
1
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
–
Brasil.
Membro
do
Fórum
Rio
de
janeiro
32
encaminhamento,
estava
cursando
a
sexta
série
do
primeiro
grau,
numa
escola
municipal.
A
mãe
revela
que
ficou
doente
durante
anos,
com
uma
depressão
que
lhe
jogava
na
cama,
não
tendo
cuidado
direito
dos
filhos.
Diz
também
que
o
alcoolismo
do
marido
derrubou-‐lhe
e
que
não
teve
escolha:
mandou-‐o
embora.
Ela
interroga-‐se:
“Será
que
isso
que
acontece
com
meu
filho
é
falta
de
pai?”
Para
o
sujeito
histérico,
há
um
reconhecimento
da
falha,
da
impotência
do
pai.
Isso
não
quer
dizer
que
ele
deixe
de
ostentar
os
títulos
simbólicos
de
pai,
“mas,
como
um
ex-‐combatente,
tem
os
títulos,
mas
está
fora
de
combate”
(Kaufmann,
1998,
p.
249).
A
teoria
freudiana
de
1888
postula
que
nos
sintomas
da
histeria
pode
ser
observada
uma
série
de
distúrbios
psíquicos:
alterações
no
curso
e
na
associação
de
idéias,
exagero
e
supressão
dos
sentimentos.
As
manifestações
histéricas
têm
uma
característica
marcante:
são
sempre
exageradas.
Percebe-‐se
que
o
jovem
tem
um
comportamento
histriônico.
Há,
na
sua
fala,
significantes
expressivos
que
dão
contorno
de
um
possível
diagnóstico
de
histeria:
voraz,
exagerado,
escandaloso
e,
em
especial,
“dar
na
pinta”
–
expressão
que
para
ele
significa
chocar
e
aparecer,
no
meio
da
boate,
com
roupas
diferentes
e
danças
sensuais,
sem
dar
bola
para
ninguém.
2
Alcunha
dada
aos
homossexuais
que
se
exibem,
que
são
escandalosos
33
Chamando
atenção
pelo
ônibus
com
roupas
extravagantes,
o
jovem
atravessa
a
cidade
em
busca
de
boates
e
lugares
onde
há
festas
de
gays,
sem
levar
em
conta
a
preocupação
da
mãe
que
lhe
adverte
sobre
a
violência
da
cidade.
Mesmo
assim,
ele
sai
sem
preocupar-‐se
com
nada.
“Eu
tenho
de
sair,
não
posso
perder
tempo,
eu
não
penso
em
ficar
velho,
prefiro
morrer
a
chegar
aos
trinta
anos”.
Segundo
a
postulação
freudiana,
“a
histeria
masculina
tem
a
aparência
de
uma
doença
grave;
os
sintomas
que
ela
produz
quase
sempre
são
rebeldes
ao
tratamento”
(Freud,
1888,
p.
95).
Esclarece
que
sempre
vai
para
o
“quarto
escuro3”
da
boate
e
transa
com
que
estiver
ali
e
que
não
costuma
ficar
com
ninguém.
“Eu
não
gosto
de
homem,
eles
não
prestam,
esses
gays
são
homens
também,
isso
é
a
pior
raça:
são
competitivos,
querem
sempre
derrubar
o
outro”.
Curiosamente,
revela:
“Gosto
mesmo
é
de
mulher,
elas
são
o
máximo,
eu
procuro
imitá-‐las,
quero
superá-‐las,
mas
sem
cair
no
ridículo
de
amar
sem
ser
amado.
Percebe-‐se
aqui
o
narcisismo
e
a
identificação
com
as
mulheres.
Tal
qual
a
jovem
homossexual,
ele
apresenta
uma
amargura
generalizada
pelos
homens.
Com
muita
emoção,
o
paciente
traz
para
a
sessão
um
pai
falho:
“Não
sei
onde
ele
está,
é
um
alcoólatra”.
Rememora
sua
infância
sofrida,
com
a
mãe
deprimida
e
o
pai
brigando
dentro
de
casa.
“Quando
eles
começavam,
eu
ia
para
a
rua
e
fazia
sacanagem
com
os
meninos
da
vila.
Era
a
alegria
da
meninada,
porque
já
era
um
exagerado,
tinha
uma
fila
para
transar
comigo,
depois
eu
sentia
nojo
e
ficava
muito
triste”.
No
“caso
Dora”,
Freud
pontua:
“Eu,
sem
dúvida,
consideraria
histérica
uma
pessoa
na
qual
uma
ocasião
para
a
excitação
sexual
despertasse
sensações
que
fossem,
preponderante
ou
exclusivamente,
desagradáveis;
eu
o
faria,
fosse
ou
não
a
pessoa
capaz
de
produzir
sintomas
somáticos”
(Freud,
1905,
p.
26).
Na
tentativa
de
esclarecer
melhor
os
episódios,
a
analista
pede-‐lhe
que
desdobre
sua
fala:
“Será
que
sou
assim
por
que
meu
pai
não
me
olhava?
Eu
tentava
chamar
atenção
dele,
queria
um
pai
como
todos
3
“Quarto
escuro”
é
o
local
de
encontro
em
que
os
gays
transam
sexualmente.
É
costumeiro
não
haver
reconhecimento
do
parceiro.
Segundo
a
fala
do
paciente,
esse
local
funciona
como
um
“vale
tudo”.
34
os
meninos
tinham.
Ele
era
um
homem
bêbado,
um
pobre
coitado,
mas
eu
sempre
defendi
meu
pai,
eu
gosto
muito
dele”.
Após
esse
primeiro
momento
da
análise,
o
paciente
faltou
às
sessões
por
duas
semanas.
A
analista
recebe
um
telefonema
da
irmã
que
pede,
aflita,
para
que
a
família
seja
atendida.
Na
sessão,
comparecem
a
mãe,
o
paciente
e
sua
irmã.
A
mãe,
enlouquecida,
diz
que
o
paciente
ficara
doente,
com
erupções
na
pele,
e
que
o
médico
lhe
pedira
um
exame
de
HIV.
Repreende
o
filho
com
dureza
e
chora
copiosamente.
O
jovem
está
acabrunhado
e,
até
mesmo,
apavorado,
mas
tenta
disfarçar
a
angústia:
“Não
estou
nem
aí,
seu
eu
tiver
com
a
“doce3“,
melhor,
eu
não
quero
viver
até
os
trinta
anos,
não
suporto
a
idéia
de
envelhecer,
de
ficar
com
o
corpo
velho;
por
isso,
aproveito
tudo
agora”.
O
resultado
dá
positivo,
revelando
a
presença
do
vírus
no
rapaz
e
instalando
o
caos
familiar.
O
paciente
chega
para
a
análise
com
o
corpo
coberto
de
erupções,
pede
uma
cadeira
de
pouco
uso:
“Eu
peguei
sarna,
não
quero
passar
isso
para
seus
pacientes”.
Sem
falar
sobre
o
resultado
do
exame,
diz
que
sua
mãe
está
louca,
que
sua
irmã
é
irresponsável
porque
não
cuida
dos
filhos.
A
analista
intervém
e
pergunta
o
que
estava
realmente
acontecendo.
Ele
responde,
aos
gritos
e
histericamente,
que
não
queria
falar,
mas
que
não
podia
esquecer
e
que
sabia
que
iria
morrer
jovem.
Frente
a
essa
atuação,
a
analista
pergunta-‐lhe
diretamente
sobre
o
resultado
do
exame.
Ele
chora,
grita,
revolta-‐
se
e
diz
que
o
pior
era
não
poder
transar
livremente:
“Eu
estou
enterrado
vivo.
Como
pode
uma
pessoa
nova
como
eu
ficar
sem
sexo?”
3
Gíria
usada
pelos
gays
para
designar
o
vírus
HIV.
35
Completamente
transtornado
frente
aos
limites
impostos
pelo
médico,
como
defesa,
não
esboça
nenhuma
elaboração
quanto
à
doença.
Não
quer
saber
de
nada
disso,
preocupa-‐se
em
ser
descoberto,
em
“dar
pinta”,
com
o
corpo,
de
que
estava
“pegado”4.
“Eu
não
me
preocupo
em
morrer,
eu
só
não
quero
ficar
como
um
coitado,
eu
prefiro
morrer
jovem
a
ficar
velho”.
Teríamos
aqui
o
desdobramento
da
fantasia
“envelhece-‐se
uma
criança,
ou
pinta-‐se
uma
criança”?
O
paciente
prossegue:
“Eu
nunca
achei
que
pegaria
a
doce,
ninguém
fala
o
que
tem
e
vai
passando
para
os
outros”
A
mãe
revela:
“Vivo
no
inferno,
meu
filho
está
com
HIV,
não
consegue
estudar,
não
faz
nada,
só
pensa
em
futilidades.
Continua
arriscando-‐se
pela
noite,
sai
sem
dinheiro,
com
roupas
estranhíssimas,
que
podem
provocar
a
agressão
dos
outros”.
Essas
roupas
são
peças
femininas
em
um
vestuário
masculino,
do
tipo:
calça
jeans
masculina,
bordada
com
paetês
e
brilhos;
blusa
cor
de
rosa;
botina
do
Exército;
anéis
de
caveira
com
pulseiras
de
miçangas;
gargantilhas;
cinturão
masculino.
Cabe
aqui
citar
o
Abade
de
Choisy5:
“Quando
alguns
homens
possuem
ou
crêem
possuir
traços
belos,
que
podem
inspirar
amor,
tratam
de
aumentá-‐los
com
seus
adornos
femininos.
Sentem,
então,
um
inexprimível
prazer
de
ser
amado”
(Choisy,
1985,
p.
13).
O
jovem
revela
que
adora
“se
montar”6,
e
nas
boates
e
festas,
destaca-‐se
com
suas
“peças”
femininas;
sempre
que
pode,
dança
e
se
exibe:
“Todos
pensam
que
eu
me
drogo,
4
Gíria
referente
a
quem
tem
o
vírus
HIV.
5
Referência
feita
por
Lacan,
no
artigo
“A
carta
roubada”
(In:
Escritos,
1998),
a
respeito
de
um
homem
que
se
vestia
de
mulher
para
amar
as
donzelas
que
deviam
estar
vestidas
de
homem.
6
“Montar-‐se”
significa
vestir-‐se
com
adereços
ou
roupas
femininas.
36
mas
não
tem
nada
a
ver.
Eu
só
bebo
água,
porque
estou
sempre
sem
dinheiro,
bem
que
gosto
de
um
vinho.
Agora,
estou
comprando
pinturas
e
cílios
postiços,
vou
me
maquiar
para
sair
na
night”.
O
que
você
pretende?
–
indaga
a
analista.
“Parecer
uma
mulher
com
um
corpo
de
homem”.
Lacan
(1985[1955-‐56],
p.
204)
ressalta
que:
“nos
sintomas
histéricos,
é
sempre
de
uma
anatomia
imaginária
que
se
trata”.
Cabe
aqui
uma
questão
diagnóstica:
No
caso,
estaríamos
diante
de
um
desmentido
da
castração
ou
do
recalque?
De
uma
neurose
ou
perversão?
Lacan
(1956-‐57,
p.
121),
ao
citar
a
tese
freudiana
de
que
a
perversão
é
o
negativo
da
neurose,
marca
a
diferença
entre
o
mecanismo
de
um
fenômeno
perverso
e
a
perversão
categórica,
chamando
atenção
de
que
o
molde
da
perversão
se
forma
a
partir
da
valorização
da
imagem.
“Você
sabe,
eu
gosto
de
ser
homem,
mas
não
gosto
de
homem,
eles
não
prestam.
O
único
homem
que
eu
amei
foi
meu
pai,
mesmo
assim
ele
me
abandonou,
nunca
se
preocupou
comigo.
Talvez,
se
ele
não
tivesse
ido
embora,
eu
seria
diferente”.
Por
quê?
“Eu
acho
que
não
teria
coragem
de
decepcioná-‐lo”.
Em
“A
dissolução
do
complexo
de
Édipo”,
Freud
teoriza
que
há
duas
saídas
para
o
complexo
de
Édipo:
uma
satisfação
ativa,
e
outra
passiva.
Na
primeira,
a
criança
poderia
colocar-‐se
no
lugar
de
seu
pai,
à
maneira
masculina,
e
ter
relações
com
a
mãe,
tal
como
o
pai,
sendo
que
este
ocuparia
um
lugar
de
estorvo.
Na
segunda,
a
criança
poderia
assumir
o
lugar
da
mãe
e
ser
amada
pelo
pai.
O
paciente
agora
apresenta
o
projeto
de
trabalhar
como
cabeleireiro
ou
com
moda:
“Não
sou
uma
bichinha
doméstica,
não
suporto
trabalho
de
casa.
Também
não
consigo
aprender
nada
na
escola,
mas
tenho
vergonha
de
dizer
que
ainda
estou
no
primeiro
grau”.
Esse
tempo
de
análise
foi
de
intensa
angústia
e
desespero.
Sem
conseguir
nada
do
que
deseja
e
com
muitas
reclamações,
revela
uma
fantasia:
“Tenho
vontade
de
trabalhar
na
night,
dançando,
fazendo
show
de
“drag-‐queen”.
Sempre
que
danço,
eu
abalo.
Gosto
muito
de
palco
e,
nas
boates,
fico
bem
no
lugar
onde
posso
aparecer.
O
jovem
trabalha
essa
idéia
e
pede
ajuda
às
suas
amigas
mulheres.
Começa
a
busca
por
roupas
e
acessórios
femininos
que
lhe
possam
favorecer
nessa
empreitada.
A
mãe
nada
sabe
disso,
visto
que
ele
esconde
as
roupas.
A
mãe
sempre
pergunta
e
cobra
o
trabalho,
o
estudo
e
lembra
que
ele
tem
o
vírus.
Isso
basta
para
que
se
desencadeiem
brigas
e
agressões
verbais
ditas
na
janela
para
envergonhar
a
mãe
e
fazê-‐la
parar
de
falar.
38
Nesse
momento,
a
rebeldia
se
entrelaça
com
uma
concretização
do
desejo,
pois
ele
cava
uma
oportunidade
de
dublar
uma
música
num
concurso
de
certa
boate
gay.
Escolhe,
sozinho,
uma
música
e
resolve
“montar-‐se”
de
“drag-‐queen”,
planejando
o
show.
Trata-‐se
de
uma
competição
em
que
o
ganhador
recebe
um
prêmio
em
dinheiro.
Como
treinamento,
participa
de
uma
parada
gay
“montado
de
mulher”.
Escondido
da
mãe,
tal
qual
Anna
Ó,
ele
arma
seu
“teatro
privado’’
durante
o
dia:
ensaia
frente
ao
espelho
a
dublagem
de
uma
música
em
inglês,
idioma
que
não
domina,
repetindo
as
palavras,
sem
distinguir
seu
significado.
Há,
porém,
três
significantes
de
que
ele
se
apropria
para
estabelecer
os
gestuais
da
mímica:
my
eyes,
my
hair,
my
lips.
O
jovem,
realmente,
dá
seu
show.
Frente
às
vicissitudes
do
desejo,
ele
tem
uma
estratégica
histérica:
no
palco,
correndo
o
risco
máximo
como
todos
os
jovens
costumam
fazer,
ele
entra
em
cena
com
o
nome
artístico
de
“Ohana”.
“En-‐cenando”
seu
número
no
começo
da
apresentação,
ao
sacudir
seus
cabelos
postiços,
a
peruca
cai
em
pleno
palco,
já
que
não
foi
devidamente
presa
para
agüentar
os
gestos
da
dança
e
da
mímica7.
Ohana,
em
desespero,
fica
sobre
o
foco
do
refletor
vestido
de
“drag”,
sem
a
peruca
e
sem
ação.
Vaiado,
ridicularizado,
como
um
objeto
que
cai,
como
um
nada,
ele
sai
de
cena
e
desmaia
em
pleno
palco.
“O
nada
e
o
olhar
são
aqui
duas
formas
de
referências
ao
objeto
em
que
o
sujeito,
nesse
momento,
se
fixa”
(Alberti,
1995,
p.
81).
Como
resposta
a
esse
embaraço
máximo,
surge
a
angústia
frente
ao
real
impossível
de
simbolizar.
O
jovem,
abalado,
sem
resistência,
pega
uma
virose,
mas
seu
organismo
recupera-‐se
e
ele
volta
à
análise.
Impactado
com
os
acontecimentos,
faz
um
acting-out:
pinta
seus
cabelos
de
rosa
e
tortura
a
mãe
para
que
lhe
dê
dinheiro.
Ameaçando
jogar-‐se
pela
janela,
aos
gritos,
quebra
uma
mesa
e
sai
pela
noite.
Em
análise,
confessa:
“Saí
como
uma
pantera
cor-‐de-‐
rosa
só
para
chocar
e
dar
pinta
de
gay
maluco.
“Não
pense
que
esqueci
a
vergonha
que
passei
no
show”.
7
A
estratégia
histérica
frente
ao
desejo
é
torná-‐lo
insatisfeito.
39
Indagado
sobre
o
que
ele
pretendia
fazer
frente
ao
fracasso,
chora
e
grita:
“Eu
preciso
trabalhar,
achava
que
era
um
caminho
fácil
ser
artista
e
me
vestir
de
mulher.
Agora,
cai
na
real,
tenho
de
inventar
outra
coisa”.
Após
os
episódios,
toma
outra
diretriz:
pede
ajuda
às
suas
amigas-‐mulheres
e
aceita
trabalhar
numa
feira
de
bairro.
Corta
couro,
pinta
cinturões
e
“chama
a
freguesia
com
sua
pinta
dando
pinta”,
distribuindo
panfletos
em
praça,
exibindo-‐se,
mesmo
com
roupas
de
homem.
Poderíamos
pensar
que
a
fantasia
fundamental
do
paciente
seria
tal
qual
o
ditado
Bíblico:
“Pai,
por
que
me
abandonastes?”.
Para
a
analista,
Ohana
não
engana:
em
praça
pública,
faz
um
apelo
de
reconhecimento
ao
pai.
Talvez
pudéssemos
pensar
que
o
jovem,
neuroticamente,
engendra
com
seu
corpo
uma
defesa
contra
o
aviltamento
do
pai.
Segundo
Lacan,
“só
nos
detemos
nas
coisas
quando
as
consideramos
como
possíveis.
De
outro
modo,
contentamo-‐nos
em
dizer:
é
assim,
e
nem
mesmo
procuramos
ver
que
é
assim”
(Lacan,
1985[1955-‐56],
p.
115).
Bibliografia:
ALBERTI, S. – Esse Sujeito Adolescente. Rio de Janeiro: Relume & Dumará, 1995.
CHOISY,
A.
–
Memorias
del
Abate
de
Choisy:
Vestido
de
mujer.
Buenos
Aires:
Manantial,
1987.
_____– “Fragmentos da análise de um caso de histeria”. [1905].v. VII In: op. cit
_____–
“Psicogênese
de
um
caso
de
homossexualismo
numa
mulher”.
[1920].
In:
op.
cit.
v.
XVIII.
_____– “A dissolução do complexo de Édipo”. [1924]. In: op. cit. v. XIX.
LACAN,
J.
O
Seminário,
Livro
3:
As
psicoses.
[1985[1955-‐56].
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
1985.
40
_____–
O
Seminário,
Livro
4:
A
relação
de
objeto.
[1956-‐1957].
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
1995.
41
Sintoma e Fantasia na Histeria Masculina
Andréa Brunetto1
1
AME,
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
-‐
Brasil.
Membro
do
Fórum
Campo
Grande
2
Freud,
S.
“Bate-‐se
em
uma
criança”,
in:
ESB.
Vol.
XXII.
Rio
de
Janeiro:
Imago
Editora,
1976.
42
lhe serve para “avaliar o papel desempenhado pela diferença de sexo na dinâmica da
neurose”.3
Os exemplos da clínica
Caso 1: Este homem procura a análise, pois tinha rompido com sua analista que tentava
controlá-lo. Apresenta muitos sintomas conversivos e sua posição é de denunciar a falta do
Outro. Diante de um Outro que espera que ele pague a conta, ele fala não. Assim, seu drama
não é dizer não às demandas freqüentes de sua esposa, mas saber por que está com ela, com
essa mulher ‘perdida’, que não sabe quem é e nem o que quer. Por vezes tem os mesmos
sintomas de sua mulher: náuseas, enjôos, dor de estômago. Mas nesse momento sua análise
centra-se na relação com seu orientador, esse homem ‘quase cruel’ que o criticava como seu
pai o criticava. Quando ele mostrava seus erros, sentia-se incapaz. E enquanto o orientador
falava, lembrava dele próprio, menino ainda, fazendo as tarefas com o pai e ele lhe dizendo
‘você vai estudar mais, senão vou te bater’. E atualmente, durante essas orientações, sente um
torpor pelo corpo. Vai para casa, enquanto dirige sente uma leve náusea. Dias atrás, quando
entrava em casa, desmaiou, acordou segundos depois, com o corpo doído como quem leva
uma surra.
Não apenas com o orientador ele encena o espancamento paterno prometido em sua
infância, mas tem sintomas que se assemelham aos de uma mulher grávida. Ele não fez essa
relação, mas talvez copiando os sintomas de sua mulher, ensaie uma resposta do que ela quer
e ainda não sabe: um filho. Como dar um filho a uma mulher se sua fantasia está construída
para dizer não a toda demanda do Outro? E, também, a partir da encenação dos sintomas de
sua mulher, coloca sua questão: sou homem ou mulher? Sou capaz de procriar? Fazendo uma
analogia com o caso clínico descrito por Michael Joseph Eissler, e que Lacan comenta no
Seminário III, as psicoses.4
3
Ibid,
p.239.
4
Lacan,
J.
“O
seminário,
livro
3:
as
psicoses”.
Rio
de
janeiro:
JZEditor,
1985.
43
Caso 2: È o enganado, procurou análise por que se envolveu em um negócio que lhe trouxe
grandes prejuízos financeiros. Todo mundo dizia que deveria sair disso, que seu sócio não era
confiável, mas não o fez. Apresenta um discurso da insatisfação, com tudo e todos, mostra
falhas na analista, que não lhe responde se deve pegar os novos projetos que aparecem e que
conta em suas sessões. Alega que se sua mulher tivesse dito com mais veemência para sair do
projeto falido, ele teria feito. Não tem lugar no Outro senão sendo passado para trás. É sua
expressão, que tem outro sentido e toca na fantasia ‘bate-se numa criança’: bate-se atrás, no
traseiro. Versão, aliás, freqüente, segundo Freud.5 Em uma das vezes comete um lapso e em
vez de dizer o nome do ex-sócio, fala o do irmão. Um irmão violento e cruel – que na
atualidade é um criminoso – que lhe batia. Lembra das surras que o irmão lhe dava enquanto
tomava banho, nu, levando tapas nas costas e nádegas. Pergunta-se: por que não revidei, se
era maior e mais forte? Entre a sessão que lembra essa cena e a próxima, conta à analista que
desmaiou no chuveiro.
Caso 3: Um homem que está casado pela segunda vez com uma mulher rica e repete com ela
as queixas que sua primeira mulher lhe fazia: você não me valoriza só porque sou mais pobre.
Com a segunda mulher encontrou a mulher bonita que procurava, pois a anterior era
descuidada. Nesse segundo casamento se descontrola e bate na mulher. É essa a queixa que o
trás à análise. Quando se queixa de que a mulher não o reconhece, ao mesmo tempo é uma
queixa feminina – “sinto na carne o que minha ex sofria” – e paterna. O pai sofria diante de
uma esposa, sua mãe, durona, que cuidava de todos e não cuidava dele. O sentir na carne,
destacado por uma interpretação da analista, é literal, pois durante estas brigas, retorce o
corpo, é como se uma entidade feminina fosse incorporar e tem de fazer força para manter o
domínio. Este sujeito nos mostra o exemplo freudiano da mulher que se cobre com uma mão,
com pudor, e se despe com a outra. Quando se encontrou, na primeira entrevista, com a
analista, lembrou-se que lhe tinha sido vaticinado que esta não era a mulher de sua vida,
encontraria uma mulher bem alta. Alta é o significante qualquer que o prende às entrevista
preliminares.
5
Freud,
S.
“Bate-‐se
em
uma
criança”,
op.
Cit.,
p.
44
Neste segundo casamento, com esta mulher aos moldes da mãe, vamos dizer assim,
coloca em ato as surras que levava dela. É ele que bate na mulher, mas não é tão simples
afirmar em que lugar ele está: sonha que está apanhando de uma mulher mais velha. Ao
contar o sonho diz: não é minha mãe. Fazendo essa negativa, há uma suspensão do recalque,
embora não uma aceitação do recalcado.6
Fazemos referência a essa negativa, pois nestes casos que relatamos, é o mais perto
que um sujeito chega de reconhecer o prazer da fantasia. Freud afirma que o prazer nessa
fantasia ficará inconsciente, mas em um dos casos que descreveu, tal não aconteceu. “Esse
homem preservava claramente na memória o fato de que costumava empregar a idéia de ser
espancado pela mãe com a finalidade de masturbação”7. Alega que não pode explicar isso,
mas esboça uma hipótese: quando a fantasia incestuosa de um menino converteu-se na
fantasia masoquista correspondente, ocorreu uma inversão a mais do que no caso do menino,
ou seja, a substituição da atividade pela passividade.
Caso 4: É um jogador, um jovem que perde muito dinheiro em jogos de azar e quando fica
sem dinheiro nenhum, e com dívidas, chama o pai para pagar suas contas, negociar com
pessoas um tanto duvidosas. Diz que seu pai prefere a ele, pois se preocupa mais com ele do
que com os irmãos. Uma das vezes em que desaparece para jogar, e que a família fica
preocupada, é às vésperas de uma viagem dos pais, algo como um segunda ou terceira lua-de-
mel. Quando tudo se resolve, o pai decide não ir, para cuidá-lo. Sente-se vitorioso, o pai se
dedica mais a ele que à própria esposa, sua mãe. Compete com a mãe pela atenção do pai, fala
dele como, no geral, só as mulheres falam do pai, na clínica: com uma demanda incessante de
amor ao pai e como um ‘paizinho’ que gosta mais dele do que dos demais. À parte essa
fantasia de ser o menininho do pai, tem namoradas, consegue a ereção e leva a cabo as
relações sexuais. Quem o castiga é a mãe, com sua severidade, mas não lembra de ser
espancado. Nos homens, estar sendo espancado pela mãe é a terceira fase, sucessora de ‘estou
6
Freud,
S.
“A
negativa”
(1925),
in:
ESB.
Vol
XIX.
Rio
de
Janeiro:
Imago
Editora,
1976,
p.
296.
7
Freud,
S.
“Bate-‐se
em
uma
criança”,
Op.
Cit.,
p.231.
45
sendo espancado pelo meu pai’, corresponde, nas meninas, ao ‘vejo um menino sendo
espancado’.
A fantasia do menino é masoquista desde o começo, marca Freud. Ele não encontrou
uma primeira fase sádica, como nas mulheres e “deriva de uma atitude feminina em relação
ao pai”8. Na menina, parte de uma situação edipiana normal; no menino, de uma situação
invertida, no qual o pai é tomado como objeto de amor.
Neste último caso, a passividade é maior do que nos outros. Não há irritabilidade
contra o pai.. O pai é aquele que “o salva”. Ele “apronta” nos jogos de azar, em outras
cidades, para o pai ir buscá-lo. É um jogador inveterado, como Dostoievski, porém sem suas
crises epiléticas – histeroepilepsia, nomeia Freud. Porém esse paciente apresenta uma inibição
motora – cataplexia narcoléptica, segundo a psiquiatria - entre acordado e dormindo, sente
que sua menta está viva e o corpo morto, passa segundos sem conseguir mexer o corpo. “A
sensação é de estar morrendo, ou já estar morto e não saber”.
Tal como no caso de Dostoievski, suas crises tem o valor de uma punição9. Freud
escreve que essas crises semelhantes à morte – já tinha falado sobre elas na Carta 58 a Fliess –
refletem o seguinte desejo: “Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos nós essa outra
pessoa e estamos mortos. Nesse ponto a teoria psicanalítica introduz a afirmação de que, para
um menino, essa outra pessoa geralmente é o pai e de que a crise constitui assim uma
autopunição por um desejo de morte contra um pai odiado”.10 E explica que a punição do
supereu funciona assim: “Você queria matar seu pai, a fim de ser você mesmo o pai. Agora
você é seu pai, mas um pai morto”.11
Nas “crises de morte” encena sua vertente de ódio ao pai, encena em seu corpo.
Como Antonio Quinet escreve em Histerias, “o histérico oferece seu corpo como cama e mesa
do Outro e diz sirva-se! Seu corpo é erogeneizado pelo Outro. O corpo é também a mesa de
8
Ibid,
p.
247.
9
Freud,
S.
Dostoievki
e
o
parricídio
(1928).
ESB,
vol.
XXI.
RJ:
Imago
Editora,
1976,
p.
211.
10
Ibid,
p.
211.
11
Ibid,
p.
214.
46
jogo – citando Lacan de Radiofonia - entre o consciente e o inconsciente, entre o sentido e o
não-sentido, entre a presença recalcante da razão e o retorno do recalcado”.12
12
Lacan,
J.
Radiofonia
(1970).
Outros
escritos.
RJ:
JZEditor,
2003,
p.
414.
13
Lacan,
J.
O
seminário,
livro
V:
as
formações
do
inconsciente
(1957-‐58).
RJ:
JZEditor,
1998,
p.
201.
14
Freud,
S.
Dostoievki
e
o
parricídio
(1928).
ESB,
vol.
XXI.
RJ:
Imago
Editora,
1976,
p.
212.
15
Ibid,
p.
213.
47
nu, para além do desejo insatisfeito, a incompetência de bancar o homem para uma mulher.
Na hora em que o desejo pega fogo, não há nada a fritar, nenhum peixe fálico em jogo.”
Como diz o Caso 1, o histérico cobrado pelos pais, pelo orientador, pela mulher e
pela ex-analista, “quando estou com minha mulher, na cama, sinto enjôo e náusea”. Que seja
exatamente nessa hora, em que tem de mostrar os documentos, que a fantasia de procriação
venha à tona, mostra bem a falta do peixe fálico.
Por que nesse caso clínico, do jogador, diferente dos outros três, não aparece a
fantasia ‘bate-se numa criança’? O Édipo invertido, no qual o pai é tomado como objeto de
amor, o fez prescindir da fantasia ou reflete apenas os limites de sua relação com o saber?
É claro que não interpretamos a partir da fantasia, fazê-lo seria interpretar a partir da
“apreensão da sensibilidade imaginária do sujeito”. O campo propriamente analítico, afirma
Lacan, no Seminário 3: as psicoses16 é o sintoma. O sintoma desse jogador, que faz de seu
corpo mesa de jogo do significante do Outro é que tem uma cor que mostra bem que ele é um
estrangeiro na sua família, um adotado, um estrangeiro como o avô. E usa seu sintoma, “essa
satisfação às avessas”, para marcar um lugar no Outro. Ser um adotado, um estrangeiro, lhe
dará um lugar no Outro? a Diminuirá seu gozo da privação e sua errãncia? Quanto a estas
últimas perguntas, só a aposta da clínica, no só depois, poderá responder.
Referências bibliográficas
48
Freud, S. “A negativa” (1925), in: ESB. Vol XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
Lacan, J. O seminário, livro V: as formações do inconsciente (1957-58). Rj: JZEditor, 1998.
Lacan, J. “O seminário, livro 3: as psicoses”. Rio de janeiro: JZEditor, 1985.
Lacan,
J.
Radiofonia.
In:
Outros
Escritos.
Rio
de
Janeiro:
Jorge
Zahar
Editor,
2003.
Quinet. A. Histerias. I Colóquio da EPFCL- Fórum Rio: Histeria, sujeito, corpo e discurso.
Julho de 2003.
49
O Sintoma e o Amor
Vera Pollo1
1
AME,
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano-‐
Brasil.
Membro
do
Fórum
Rio
de
Janeiro
50
condensa
o
traumatismo
de
lalíngua
e
o
sinthoma-‐nome
que
lhe
permite
entrar
na
polis
como
Mestre
das
letras.
Ora,
desde
que
Lacan
endereçou
a
Jenny
Aubry
sua
“Nota
sobre
a
criança”,
em
1969,
fomos
conduzidos
a
pensar
a
transmissão
dos
pais
aos
filhos
em
termos
de
resposta
sintomática,
a
qual,
mais
do
que
a
identificação,
desvela
a
verdade
de
uma
geração.
Isto
porque
o
sintoma
implica
a
relação
e
não
a
equivalência.
(Morel,
2009,
p.63)
Como
o
sintoma
da
criança
é
uma
resposta
particular
ao
desejo
dos
pais
que
presidiu
seu
nascimento,
o
qual
é
alimentado
pelos
sintomas
deles,
os
sintomas
das
crianças
prolongam
os
dos
pais,
corrigem
seus
desejos,
criam
o
que
era
até
então
inédito.
Nesse
caso,
estamos
bem
longe
da
identificação
e
dos
egos
“eguais”.
Porém,
na
impossibilidade
de
produção
de
um
sintoma
inédito,
ainda
assim
um
prolongamento
sintomático
pode
unir,
como
laço
de
amor,
duas
ou
mais
gerações
de
uma
mesma
família.
Eis
como
Lacan
interpreta
a
relação
entre
Joyce
e
sua
filha
Lucia.
Para
Lacan,
é
possível
observar
nas
cartas
escritas
por
Joyce
que
ele
considera
a
filha
muito
mais
inteligente
que
todo
mundo
e
acredita
que
ela
o
informa
de
coisas
que
51
acontecem
com
pessoas
que
sequer
conhece.
“
Minha
esposa
e
eu”
–
escreve
Joyce
–
“
vimos
centenas
de
exemplos
da
clarividência
dela”.
(Ellmann,
p.835)
Lacan,
que
em
uma
apresentação
de
pacientes,
tivera
a
oportunidade
de
entrevistar
um
sujeito
que
dividia
seu
sintoma
em
dois
tempos:
um
primeiro
tempo
em
que
sofria
de
“falas
impostas”
–
ou
seja,
uma
das
formas
do
automatismo
mental
descrito
por
Clérambault
-‐,
um
segundo
tempo
no
qual
compreendeu
que
tais
coisas
lhe
aconteciam,
porque
era
um
“telepata
emissor”,
encontrou
uma
grande
semelhança
com
o
sintoma
de
Joyce,
porém
o
segundo
tempo
era
sua
atribuição
à
filha
de
alguma
coisa
que
estava
no
prolongamento
de
seu
próprio
sintoma:
ele
sofria
de
falas
impostas,
Lucia
era
telepata.
(sem.
23,
p.93)
O
biógrafo
Ellmann
relata
que
Joyce
nutria
a
secreta
esperança
de
que
a
filha
escaparia
de
sua
própria
treva,
quando
ele
saísse
da
noite
escura
do
Finnegans
wake.
Jung
não
foi
o
primeiro
nem
o
único
a
notar
a
intensidade
do
laço
que
os
unia.
Quando
recebeu
Lucia,
ela
já
passara
por
inúmeros
médicos.
Jung
teve
acesso
aos
poemas
que
sua
paciente
escrevia
e
concluiu
que
ela
imitava
de
forma
descontrolada
idéias,
fixações
e
linguagem
que
o
pai,
todavia,
controlava.
Também
Paul
Léon
parece
ter
afirmado
o
seguinte:
“o
Sr.
Joyce
confia
unicamente
numa
pessoa,
e
essa
pessoa
é
Lúcia.
Qualquer
coisa
que
ela
diga
ou
escreva
é
o
que
o
guia.”
E,
como
se
não
bastasse,
o
próprio
Joyce
confidenciou
a
uma
amiga:
“As
pessoas
falam
da
minha
influência
sobre
minha
filha.
Mas
e
a
influência
dela
sobre
mim?”
(Ellmann,
p.
840,
843)
Passemos
agora
a
uma
pergunta
de
Lacan:
“O
que
nos
indicam
as
cartas
de
amor
para
Nora?”
Tudo
indica
que,
para
os
professores
de
literatura,
o
que
mais
surpreende
nas
letras/cartas
de
Joyce
é
a
báscula
que
as
arrasta
do
mais
terno
lirismo
à
linguagem
mais
crua
e
obscena.
O
próprio
poeta
o
percebe
e
nelas
menciona
as
duas
faces
do
sentimento
que
o
liga
a
Nora:
“Há
uma
parte
feia,
obscena
e
bestial,
e
há
uma
parte
pura
e
santa
e
espiritual.”
(1909/1988,
p.
38)
“Tu
me
agradeces
pelo
lindo
nome
que
te
dei.
Sim,
querida,
‘minha
linda
flor
agreste
das
sebes!
Minha
flor
azul-‐marinho
encharcada
de
chuva!’
é
um
nome
bonito
[...]
Mas,
lado
a
lado
e
no
âmago
deste
amor
espiritual
que
tenho
por
ti
há
também
um
desejo
bestial
e
bruto
por
todos
os
pedacinhos
de
teu
corpo,
52
todas
as
partes
secretas
e
vergonhosas
dele,
pelos
cheiros
todos
dele
e
por
tudo
que
ele
faz
[...]
Ensinei-‐te
a
quase
desmaiar
quando
ouves
minha
voz
cantando
ou
murmurando
à
tua
alma
a
paixão
e
a
tristeza
e
o
mistério
da
vida
e
ao
mesmo
tempo
ensinei-‐te
a
fazer
trejeitos
indecentes
com
a
língua
e
os
lábios
[...]
meu
amor
leal,
minha
colegial
travessa
de
olhar
lânguido,
minha
puta,
minha
amante,
tudo
quanto
queiras
(minha
amantezinha
punheteira,
minha
putinha
fodedora!)
serás
sempre
minha
flor
agreste
das
sebes,
minha
florzinha
azul-‐marinho
encharcada
de
chuva.”
Assinado:
Jim
(1909/1988,
p.54-‐55)
Certa
feita
Nora
comenta
a
reação
de
Joyce
diante
de
um
novo
vestido
de
festa
que
acabara
de
comprar:
“Jim
achou
as
costas
decotadas
demais
e
decidiu
que
teria
de
costurar
as
costas
do
vestido.
Naturalmente
ele
fez
pontos
todos
tortos
[...]
Queria
que
vocês
o
tivessem
visto
costurando
minha
pele
e
espinha.”
(Ellmann,
p.830)
Ele
não
queria
que
ninguém,
além
dele,
sequer
olhasse
o
que
quer
que
tocasse
o
corpo
de
Nora.
53
Em
22
de
novembro
de
1909,
escreve-‐lhe
em
uma
carta:
“Arrisco-‐me
a
dizer
somente
uma
coisa.
Dizes
que
queres
que
minha
irmã
te
leve
daqui
umas
roupas
de
baixo.
Por
favor,
não
faças
isso
querida.
Eu
não
gosto
que
ninguém,
nem
mesmo
uma
mulher
ou
uma
moça,
veja
as
coisas
que
te
pertencem.”
(Cartas,
p.53)
Menos
de
um
mês
antes,
ele
lhe
escrevera;
“Tenho
andado
indagando
sobre
um
conjunto
de
peles
para
ti
e
se
meus
negócios
correrem
bem
vou
simplesmente
afogar-‐te
em
peles
e
vestidos
e
capas
de
toda
sorte.”(p.47)
Lacan
(2007:93)
não
sabe
ao
certo
se
Joyce
escrevia
para
libertar-‐se
do
parasita
falador
ou,
ao
contrário,
para
deixar-‐se
invadir
por
propriedades
de
ordem
essencialmente
fonêmica
da
fala,
isto
é,
sua
polifonia.
Mas
não
duvida
daquilo
que
também
percebe
e
assim
formula:
no
final
das
contas,
ele
[o
homem]
faz
amor
com
seu
inconsciente,
e
mais
nada
(Idem:123).
É
possível
que
as
cartas
a
Nora
testemunhem
apenas
o
gozo
de
Joyce
com
o
corpo
do
Outro
simbólico,
com
as
palavras
de
amor,
de
desejo
e
de
repugnância.
Como
dissemos
acima,
elas
vão
do
tom
mais
lírico
ao
mais
abjeto.
Em
certo
sentido,
aproximam-‐se
da
dupla
valência
do
objeto
a,
em
sua
face
narcísico-‐imaginária
e
em
sua
face
real.
Nesse
caso,
Joyce
teria
amado
mais
a
arte
de
escrever,
do
que
a
mulher
de
carne
e
osso
a
quem
enviava
suas
cartas.
Nora
não
ocupava
para
ele
o
lugar
de
mulher-‐sinthoma,
alguém
que,
enquanto
objeto
amado,
lhe
teria
servido
de
intermediário
para
crer
nas
mulheres
em
geral.
Não
havia
mais
que
uma
mulher
para
Joyce,
e
este
mulher
era
Nora.
Ele
a
elegera,
mas
com
a
maior
das
depreciações.
Eis
outra
pergunta
que
Lacan
se
faz:
por
que
Joyce
elegera
Nora
com
a
maior
das
depreciações?
(2007:81)
Tudo
indica
que
Joyce
sabia
que,
se
fazer
amor
é
poesia,
em
contrapartida,
o
ato
de
amor
corresponde
à
perversão
polimorfa
do
macho,
pois
há
um
mundo
entre
a
poesia
e
o
ato
(Lacan,
1985:
98)
Objeto
de
amor,
objeto
transicional,
ou
simplesmente
objeto
de
um
ciúme
delirante,
o
que
quer
que
Nora
tenha
sido
preferencialmente
para
Joyce,
este
a
54
compartilhou
conosco.
Sentimo-‐nos
os
destinatários,
entre
muitos,
das
missivas
joycianas.
Referências Bibliográficas
-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐
Cartas
a
Nora
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São
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LACAN,
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Rio
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Jorge
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-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐
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letra
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20:
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Rio
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Janeiro:
Jorge
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-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐
(1975-‐1976)
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Rio
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Janeiro:
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-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐
(1970)
“Lituraterra”
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Rio
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Jorge
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2003,
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-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐-‐
(1976-‐1977)
O
Seminário,
livro
24:
L’insu
que
sait
de
l’une-bévue
s’aile
à
mourre.
Inédito.
Lição
de
15
de
março
de
1977.
SOLER,
Colette.
“Joyce
,
martyr
de
la
langue”
in
L’aventure
litteraire
ou
la
psychose
inspirée.
Paris:Editions
du
Champ
lacanien,
2001,
pp.83-‐99.
55
Apostar no Sintoma
Zilda
Machado1
Comecemos
com
Freud.
Na
conferência
Os
Caminhos
da
formação
do
sintoma,
ele
nos
ensina:
O
sintoma
é
causado
pela
força
da
pulsão
que
ao
pressionar
por
satisfação,
encontra
a
barreira
da
censura
e
não
pode
ser
realizada.
O
que
há
nesse
momento
é
angústia,
o
mal-‐estar
que
força
o
advento
do
mecanismo
do
recalque.
Devido
então
ao
recalcamento,
o
desejo
que
agora
é
inconsciente
regride
tomando
a
via
da
fantasia
a
um
tempo
onde
houve
a
possibilidade
de
se
obter
satisfação,
pois
uma
coisa
que
Freud
nos
aponta
é
que
o
sujeito
não
abdica
jamais
de
um
prazer
já
experimentado.
Aí
encontramos
os
conceitos
de
regressão
(o
retorno
pela
via
da
fantasia)
e
de
fixação
(ao
ponto
onde
houve
maior
satisfação).
Mas
o
aparelho
continua
pressionando.
A
pulsão
é
uma
força
constante
que
não
dá
trégua
ao
sujeito.
Há
novamente
outra
tentativa
de
buscar
a
satisfação,
só
que
desta
vez,
sob
a
ação
do
recalque,
ela
já
não
é
direta.
É
o
que
chamamos
“o
retorno
do
recalcado”.
Aí
nesse
momento
o
sujeito
constrói
o
sintoma,
uma
“formação
de
compromisso”
entre
o
desejo
inconsciente,
provindo
da
pulsão
sexual,
e
a
força
da
censura
que
ele
trata
de
burlar.
Constrói
assim
um
substituto
que
lhe
permitirá
encontrar
a
satisfação
desejada,
ao
preço
de
não
reconhecê-‐la
como
tal.
Para
Freud,
o
sentido
do
sintoma
é
sexual.
E
Lacan,
no
início
de
seu
ensino,
toma-‐
o
por
esta
mesma
vertente.
Na
“Instancia
da
letra”
Lacan
diz:
“é
a
verdade
do
que
o
desejo
foi
em
sua
história
que
o
sujeito
grita
através
de
seu
sintoma”.
[p.
522].
No
entanto,
ao
longo
de
seu
ensino
Lacan
fará
profundas
modificações
em
sua
abordagem
do
sintoma,
o
que
trará
diversas
consequências
para
o
dispositivo
analítico
e
à
questão
1
AME,
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
-‐
Brasil.
Membro
do
Fórum
Belo
Horizonte
56
do
final
da
análise,
quando
ele
dirá
que
o
sentido
do
sintoma
é
um
só:
o
sentido
do
sintoma
é
o
Real.
(sentido
como
direção,
nos
dirá
Soler).
Temos
então
o
sintoma
como
a
presentificação
do
retorno
do
recalcado
pulsional
tecido
nas
veredas
da
fantasia.
É
realização
de
desejos
recalcados
e
infantis
e
satisfação
pulsional
substituta
que
se
sustenta
em
uma
fantasia
inconsciente
e
se
articula
e
se
fixa
à
gramática
pulsional.
Assim
se
dá,
portanto,
o
acesso
do
sujeito
à
sexualidade:
de
forma
conflituosa,
desviada
e
sintomática.
E
assim
inaugura-‐se
o
psiquismo
na
interdição
do
objeto
primordial,
matriz
à
qual
se
dirige
originalmente
o
desejo,
que
cai
sob
a
barra
do
recalque,
colocando
o
sujeito
para
sempre
à
procura
do
objeto
perdido.
Interdição
–
interdicção
–
inter-‐dito.
A
sexualidade
humana
está
fadada
a
se
realizar
necessariamente
através
das
palavras:
gozo
fálico.
57
leva
em
consideração.
A
perversão
com
o
fetichismo
traz
um
mecanismo
que
ao
mesmo
tempo
a
reconhece
e
a
nega].
2
No
entanto
sabemos
que
embora
todo
o
esforço
do
sujeito
seja
nesse
sentido
[de
burlar
a
castração],
isso
é
impossível
pois,
no
psiquismo,
“é
a
insatisfação
que
constitui
o
componente
primordial”,
nos
diz
Lacan3.
Essa
é
a
nossa
condição
de
acesso
à
sexualidade.
Daí
vem
a
máxima
de
Lacan:
“não
há
relação
sexual”,
pois
ele
o
diz
textualmente:
“a
relação
sexual
só
existe
entre
gerações
vizinhas”:
filhos
de
um
lado,
pais
de
outro.
Ao
fazer
a
escolha
do
recalque,
o
sujeito
opta
pela
“não
relação
sexual”.
Ele
opta
pela
interdição
[do
incesto],
pela
inter-‐dicção.
Assim,
chega
o
sujeito
à
análise,
buscando
se
aliviar
um
pouco
dos
sintomas
que
o
afligem,
pois
por
estrutura,
o
neurótico
acreditar
que
há
um
Outro
que
sabe
o
que
lhe
acomete.
Mas
ele
só
quer
reparar
um
pouco
a
fenda
que
se
esgarçou
um
pouco
demais.
Nada
de
querer
saber
da
castração.
2
Já
a
escolha
do
tipo
clinico
[histeria,
neurose
obsessiva
ou
fobia],
nos
diz
Freud,
tem
a
ver
é
com
outra
coisa
–
com
a
modalidade
da
defesa.
Lembremos
que
o
rochedo
da
castração
se
refere
à
posição
de
homens
e
mulheres
diante
da
castração.
No
homem,
protesto
viril,
e
na
mulher,
pênis-‐neid,
ou
inveja
do
pênis.
3
Da
psicanálise
em
suas
relações
com
a
realidade.(p.
354),
4
Seminário
XI
p.
158
58
Mas,
o
sujeito
pode
entrar
em
análise,
ele
pode
se
tornar
dócil
ao
discurso
analítico
e
querer
saber
um
pouco
do
que
o
determina.
Aí
então
sim,
ele
poderá
vir
a
consentir
com
a
castração.
A
meu
ver,
isso
só
advém
mesmo
é
ao
final
da
análise,
ao
consentir
com
uma
perda
de
gozo.
Assim
é
que
ele
pode
vir
a
consentir
com
a
escolha
de
A,
e
consentir
com
a
perda
de
B,
ou
vice-‐versa.
Poder
perder
-‐
a
essa
posição,
a
meu
ver,
só
o
discurso
analítico
pode
levar
um
sujeito.
Ao
permitir
a
ele
subjetivar
a
falta,
indo
da
perda
à
causa
do
desejo.
Ali
onde
o
sujeito
pode
sustentar
o
desejo
como
o
vazio
de
objeto,
puro
wunch.
Mas,
Lacan,
na
conferência
à
imprensa
nos
chama
a
atenção
para
uma
questão
importante:
‘embora
essas
engenhocas
comam
a
gente,
isso
acontece
porque
a
gente
se
deixa
consumir’.
E
ele
nos
diz:
“por
isso
não
estou
entre
os
alarmistas
nem
os
angustiados.
Quando
nos
saciarmos,
pararemos
com
isso,
e
nos
ocuparemos
das
verdadeiras
coisas,
ou
seja,
da
religião”.
Pois,
o
discurso
religioso,
ao
contrário
do
da
ciência,
não
só
promete,
esse
cumpre
a
função
de
tamponamento
da
castração
ao
dar
sentido
a
tudo.
Por
isso
Lacan
diz:
“São
capazes
de
dar
um
sentido
a
qualquer
coisa,
até
um
sentido
à
vida
humana,
por
exemplo”.
59
portanto,
precipuamente,
de
como
o
sintoma
será
tratado
no
próprio
dispositivo
analítico.
Sabemos
das
longas
análises
que
foram
ao
limite
da
interpretação
e
os
efeitos
disso
no
corpo
dos
analisantes.
Então,
se
é
o
sintoma
(o
que
provém
do
real)
que
leva
o
sujeito
à
análise,
como
a
psicanálise
–
uma
prática
cujo
instrumento
é
a
linguagem
-‐
pode
operar
para
tratar
o
real
em
jogo
no
sintoma?
Como
ela
pode
operar
para
levar
a
análise
à
sua
conclusão?
Aqui
então
é
que
Lacan
nos
esclarece
quando
ele
diz
que
a
única
maneira
de
se
lidar
com
o
sintoma
é
pelo
equívoco
significante.
Só
assim
ele
não
engordará
de
sentido.
Ou
seja,
não
é
pelo
sentido
que
o
real
é
atingido.
Trata-‐se
de
um
trabalho
com
a
linguagem
depurada
de
sentido
–
lalíngua
-‐
cujo
único
fundamento
é
a
sonoridade,
a
homofonia
significante.
Lalíngua
é,
pois,
a
linguagem
que
concerne
à
experiência
da
psicanálise.
Pela
maneira
como
a
língua
materna
foi
escutada
e
provocou
ranhuras
no
corpo,
foi
escrito
ali
o
texto
inconsciente.
Implica
a
palavra
dita
pelo
Outro,
mas
implica
também
o
escuta-‐dor,
ou
seja,
o
afeto
causado
pelo
que
se
escutou.
O
sintoma
se
relaciona
então
é
ao
modo
pelo
qual
lalíngua
mordeu
o
corpo
a
partir
não
só
do
que
foi
5
P.
31
60
falado
do/ao
sujeito,
mas
da
contingência
–
e
da
ambiguidade
-‐
do
que
foi
ouvido,
no
encontro
fortuito
que
dará
a
cada
um
sua
singularidade
de
gozo.
Na
Conferência
de
Genebra
sobre
o
sintoma
Lacan
nos
aponta
–
“aí
está
a
moterialidade
do
inconsciente”:
a
materialidade
linguageira.
É
da
materialidade
da
palavra
encarnada,
de
lalíngua
entalhada
na
carne
do
sujeito
que
emerge
o
sintoma.
Ele
comemora,
para
além
de
todo
o
sentido,
a
saga
do
sujeito
na
linguagem,
o
nascedouro
de
sua
posição
como
um
falasser.
Aí
está
o
x
a
que
Lacan
se
refere
no
seminário
RSI
quando
ele
então
dirá
que
“esse
x
é
o
que
do
inconsciente
pode
se
traduzir
por
uma
letra”
[RSI
p.
23].
Letra
que
marca
“o
modo
particular
de
cada
um
gozar
do
inconsciente,
na
medida
em
que
o
inconsciente
o
determina”.
[RSI
p.
37]
No
final
de
seu
ensino
Lacan
descobre
uma
formação
do
sintoma
que
prescinde
do
recalque,
que
prescinde
de
uma
amarração
ao
inconsciente.
Sintoma
que,
portanto,
tem
função
de
suplência
ao
Real
e
que
é
ele
mesmo
real,
articulado
à
letra
e
ao
gozo.
Trata-‐se
do
sintoma
que
se
depura
ao
final
da
análise.
Após
toda
interpretação
possível,
até
toda
a
decodificação
pela
via
da
linguagem,
o
sintoma
permanece
como
um
caroço
de
real
–
evento
corporal,
nos
diz
Lacan.
Ponto
zero
da
relação
do
sujeito
com
a
linguagem,
reduzido
a
seus
elementos
mínimos,
aos
restos,
às
marcas
deixadas
pelo
encontro
do
sujeito
com
a
materialidade
e
ambiguidade
significante
em
lalíngua,
tecido
significante
inscrito
a
ferro
e
fogo
no
corpo
como
texto
inconsciente.
Este
tipo
de
sintoma,
que
Lacan
grafa
Sinthome,
pôde
ser
formulado
a
partir
do
caso
Joyce,
quando
a
amarração
da
estrutura
pôde
ser
feita
fora
da
lógica
do
inconsciente
(tributária
do
Nome-‐do-‐pai),
fora
da
significação
da
linguagem.
Alguns
dizem
que
a
partir
daí
podemos
prescindir
da
nomenclatura
neurose,
psicose
e
perversão,
pois
o
que
importa
agora
é
o
enodamento
sintomático,
não
importando
mais
a
estrutura.
Ou
seja,
tomando
o
caso
Joyce,
Lacan
pôde
demonstrar
como
esse
sujeito
se
sustentou
sem
o
desencadeamento
da
psicose
por
ser
capaz
de
criar
um
sintoma
que
lhe
fez
as
vezes
dessa
função.
Mas
o
que
Lacan
demonstra
também
é
a
operação
do
final
de
análise:
o
sintoma
que
subsiste
para
além
da
crença
no
inconsciente.
Tomar
Joyce
é
verificar
em
um
sujeito
que
não
foi
mordido
pelo
inconsciente
–
um
“desabonado
do
inconsciente”,
como
aponta
Lacan,
como
ele
foi
hábil
em
operar
com
a
linguagem
prescindindo
de
todo
o
sentido,
decompondo-‐a
em
puro
jogo
de
letras
e
sons.
Ou
seja,
Joyce
trabalhou
com
a
linguagem
para
além
da
fala
com
suas
significações,
foi
ao
recurso
da
escrita,
à
letra,
ao
ponto
onde
o
sintoma
já
não
é
mais
passível
de
ser
analisado.
Joyce
mostrou
com
todo
o
seu
trabalho
com
a
letra,
saber
fazer
com
isso.
Foi
isso
que
causou
sobremaneira
o
interesse
de
Lacan,
pois,
como
ele
o
afirma:
“que
alguém
faça
disso
um
uso
prodigioso,
interroga
por
si
o
que
diz
respeito
à
linguagem”6.
Ou
seja,
como
o
homem,
doente
da
linguagem,
cativo
do
imaginário
que
nos
leva
ao
destino
inelutável
da
debilidade
mental
por
sempre
darmos
sentido
a
tudo,
pode
usar
a
linguagem
justamente
no
ponto
de
operar
com
seu
osso,
com
a
letra,
seu
ponto
mínimo,
de
maneira
assim,
desconectada
do
inconsciente?
Isso
concerne
ao
final
da
análise,
nos
afirma
Lacan,
e
Joyce
demonstra
a
possibilidade
dessa
operação.
6
Conf.
Joyce,
o
Sintoma”
Sem.
23.
p.
162].
62
Pudemos
acompanhar
o
trabalho
apresentado
por
Mario
Brito7
em
seu
depoimento
de
passe.
Ali
quando
o
sujeito,
ao
se
dirigir
às
entrevistas
de
passe,
perde
o
passaporte.
Ao
invés
de
se
perguntar:
“por
que
perdi
o
passaporte,
o
que
isso
quer
dizer?,
por
exemplo,
puder
fazer
simplesmente
uma
escrita,
como
o
fez
Mario:
“ao
passe
sem
passar
por
te”.
O
final
da
análise
é,
portanto,
ir
ao
ponto
onde,
ao
se
poder
prescindir
do
sentido,
ao
consentir
com
a
perda
de
gozo,
o
sujeito
puder
“deixar
o
sintoma
ao
que
ele
é,
um
acontecimento
corporal”
e
souber
fazer
(savoir
y
faire)
alguma
coisa
com
o
que
comemorou
a
inscrição
de
lalíngua
no
leito
de
seu
corpo,
ali
quando
justamente
ele
não
mais
acredita
no
seu
inconsciente.
Mas
surgirá
daí
um
analista
se
ele
continuar
acreditando
–
mais
do
que
isso,
amando
-‐
o
inconsciente.
Não
mais
o
seu,
mas
o
inconsciente
como
estrutura.
É
aí
que
surge
o
desejo
novo,
o
desejo
do
analista
que
o
levará
ao
entusiasmo
de
querer
se
oferecer
a
levar
outros
até
o
ponto
onde
ele
próprio
pôde
ir
em
sua
análise.
7
BRITO,
Mario.
Al
passe
sin
passa-‐por-‐te.
Trabalho
apresentado
no
Espaço
Escola
do
XI
Encontro
da
EPFCL|
AFCL-‐Brasil.
63
Sintoma e Escrita ou...os Ecos do Sintoma Selvagem
Uma vinheta clínica faz contraponto a essa questão. Evoco Lacan em 1973: na análise
há de se ter o sentimento do risco absoluto.3 Modo de assinalar o afeto em questão e a
dimensão da verdade mentirosa.
Escrever o sintoma designa neste texto que apresento: definir o sintoma analítico.
Portanto, escrever o sintoma inclui o conceito de transferência, ainda, inclui o analista como
sendo aquele que responde pela posição do inconsciente.
Desde Freud o sintoma é o estrangeiro que tende a exilar-se para promover uma
satisfação proibida. Sintoma extraterritorial ao eu. Nome do enigma promovido por um
sofrimento que incomoda e que perturba pela sua insistência. Ele nos adverte que todo
sintoma tem um sentido sexual, oriundo do trauma e da fantasia (realidade psíquica)
1
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do campo Lacaniano
2
LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
3
LACAN, J. (1975 – 1976). El Seminário, libro XXII: el sinthome. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 45
64
Como se escreve o sintoma na psicanálise?
Estamos a debater que, com Lacan, há duas grandes vertentes que permitem dizer
como se escreve o sintoma, as mesmas enlaçam todos os meandros do seu ensino:
A mensagem é o significado do Outro s(A). Mas sabemos que essa mensagem nada
mais é do que a interpretação do sujeito sobre sua existência inefável. Nela se articulam: a - O
traumático, entendido como não termos a disposição uma resposta última vinda do Outro, um
último significante que nos dei a resposta definitiva sobre o que somos S( ), nem mesmo
sobre o que queremos, uma vez que a Bedeutung do falo se suporta no significante da falta de
significante (Ф); b - A construção do fantasma como resposta cristalizada que enoda
imaginário e simbólico, como fixação dessa ficção que é a interpretação do sujeito sobre o
desejo do Outro promove.
A escrita de uma letra se suporta na questão sobre qual é a função dessa letra. São as
articulações dos anos ´70. Em primeiro lugar temos a letra como detrito, isolada de qualquer
qualidade, tendo a mesma um estatuto secundário à linguagem. A letra indica: o furo no saber,
a ruptura do semblante (significante), artefato a não habitar mais que a linguagem, sem poder
confundi-la com o significante.
Por outro lado, a escrita da letra testemunha sobre o furo no saber. A letra tanto limita
o gozo quanto o evoca. Isso que evoca não refere ao furo no saber, mas ao puro exercício de
uma fala não-sense que leva ao encontro desse furo no saber, até seu limite. Entendo ser essa
a tese que nos propõe Colette Soler no seu livro Lacan, l´inconscient réinventé4 quando,
4
SOLER, C. Lacan, l ´inconscient réinventé. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.
65
evocando Lacan no Prefacio do Seminário XI5, nos diz que o passe ao real precisa (é minha
leitura do texto de Soler) de três tempos: 1. A formação do inconsciente (lapso). 2. O
inconsciente como espaço de significantes associados livremente, onde estão em função o
sentido, a historização e o inconsciente – verdade. 3. O inconsciente fora-sentido, analfabeto
que fez funcionar o significante besta. Nesse terceiro tempo a escrita do sintoma é função
reduzida a sua máxima expressão de um gozo - por que não dizê-lo? – estranho, estrangeiro,
mas sem função de enigma.
Parece-me que assim posso apreender o que Lacan nos diz no Seminário RSI, na aula
de 21 de janeiro de 1975, quando escreve, usando-se da formulação matemática f (x), o gozo
do inconsciente que se denuncia no sintoma. Isto é: o modo como cada um goza do seu
inconsciente. Essa letra que se traduz do inconsciente, que é detrito; é isolada de qualquer
qualidade. Essa letra tem identidade de si a si. Portanto o que se lê do sintoma é efeito da
erosão da linguagem. É daí que se retira o estatuto da escrita nesse contexto, de uma letra que
afirma o gozo, fora do sentido. Por essa razão, essa letra se escreve entre real e simbólico.
Mas ela vem do real.
5
LACAN, J. Prefácio à Edição Inglesa do Seminário XI. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2003, PP 567-569.
66
inconsciente consiste, todo um é suscetível de se escrever
como uma letra. Sem dúvida, seria preciso convenção. Mas, o
estranho é que é isto que o sintoma opera selvagemente. O
que não cessa de se escrever no sintoma vem daí. (21.01.75)6.
primeiro selvagemmente, depois f(x). Portanto, essa repetição é em, se mesma, a escrita do
sintoma. Digamos que há uma ‘linha direta” entre “o que não cessa de se escrever”
Razão pela qual me impactou ler e ouvir o nosso colega Jairo Gerbase, na seguinte
afirmação:
selvagemente o qual indica que ai o real está em questão. Por isso há de se contornar. Isso não
modo de escrita. ... Sim, porque no parlêtre isso não se agüenta. Mas, paradoxalmente, é isso
com o qual o parlêtre goza. O real é o impossível: com isso o parlêtre goza e se civiliza. É
essa minha leitura da ênfase dada, a partir dessas articulações sobre lalangue.
6
LACAN, J. (1975). O Seminário, Livro XXII: RSI, inédito.
7
GERBASE, J. A hipótese Lacaniana, inédito. Cópia gentilmente cedida pelo autor.
67
Lalangue evidencia o gozo da fala: é disso que somos feitos os seres falantes, nossa
carne. Por essa razão não podemos perder de vista a dimensão “parl” do parlêtre. E isso que
está em jogo, desde o início, no sintoma. Volto a Lacan de 19588. O que ele nos diz: O
SINTOMA FALA. ISSO FALA! Na escrita selvagem há gozo fálico. Gozo que provêm da
relação do simbólico com o real. No sujeito que tem o suporte no parlêtre – INCC – está o
poder de conjugar a palavra com esse gozo que se experimenta como parasitário, devido à fala
E é por essa razão que na transferência ele - Isso – se põe a falar. Claro que se precisa
de um consentimento daquele que se queixa para ler no que se ouve do “Isso fala”. E vejam
que é nesse ano que Lacan aponta que o sintoma se diferencia das outras formações do
inconsciente pela repetição. Agora, a questão é que no fundo esses enunciados são indizíveis,
por isso a dimensão Real em questão. Nessa fala há de se recortar a potência patogênica de
enunciados indizíveis9.
Isso posto, considero que as análise que dirigimos devem ter presente o sintoma-
Uma jovem chega ao consultório trazendo uma queixa, bem precisa: “meu problema é
que posso estar e não estar ao mesmo tempo. É o que mais faço. Posso passar ao largo, sem
que os outros percebam ou sem que eu mesma perceba o que passa para mim”.
8
LACAN, J. (1957-1958). O Semináro. Livro V: As formações do inconsciente. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
9
GERBASE, J. A hipótese Lacaniana, inédito. Cópia gentilmente cedida pelo autor.
68
Eis o que inaugura as entrevistas sobre esse sintoma que decido nomear, assim como
ela nos diz: “passar ao largo”. Ela se interroga pelo traço infernal desse ser que se esvai e que
lhe faz acreditar que nada vale a pena nesta vida... aliás,que poderia morrer sem deixar dores
Num segundo momento no qual a analista – ocupada em não sublinhar esse traço
ressonância do enigma de um saber não sabido – retomo, num segundo momento que por sua
vez delimita a entrada em análise, o passar ao largo se associa a uma cena sexual para a qual
ela diz “olha, não dei a mínima”. Essa cena traduzia sua primeira relação sexual: não lembra,
entrou e saiu sem saber com quem, menos ainda para que.
Esse “não dei a mínima” que a analista sublinha, permite que o sujeito recolha do
tesouro dos significantes uma conjunção entre o “não dar a mínima” e o “passar de largo”.
Mas o inconsciente insiste..... A questão que aparece não é “não dar a mínima”, mas o
“Olha”. Na volta desse buraco uma cena com o encontro do gozo do olhar se prioriza, cena na
qual um exibicionista lhe intercepta na rua, lhe da-a-ver o que escolhe como ponto de caça-
“Encontrei o que tanto temia: o abuso sexual”. Abuso sexual? “As vezes me incomoda
o olhar do meu pai”. Eis a versão da obscenidade do pai que se desenrola por algum tempo,
dando marco à sua ficção de passar ao largo que agora se torna “passar despercebida”. Ponto
de fixão pulsional que liga sintoma e o objeto, promovendo as diferentes torções sucessivas
dos ditos.
69
Portanto: passar ao largo se vincula com a suspeita de passar ao largo para o Outro:
ele não me quer o suficiente, não lhe interesso. Passar ao largo é a interpretação em falso do
que o sujeito toma da mensagem do Outro, e é o que faz com que a analizante faça da sua
vida, em resposta, um passar ao largo do que quer, do que busca, do que encontra. Por outro
lado “passar despercebida” lhe confronta com o enigma mais obscuro do capricho do Outro,
e com sua reposta que evoca o fato de saber que a pulsão é o eco no corpo do fato que há um
dizer.
Segundo tempo: a entrada em análise: passar ao largo toma sua evidencia no enlace do
significante com a realidade sexual, isto é, com o realidade fantasmática que enoda
imaginário e simbólico, dando a essa realidade o gozo-sentido, que lhe define: jouissance.
Portanto, entrada na transferência e tempo de acreditar que a fantasia tem como mira a última
É ai que a ética do tempo do parlêtre deve ser sustentada para não esquecer que há de
se fartar do significante para tocar (atingir?) o real. Fartar-se significa usar dela até o abuso,
almejando atingir a última verdade, mas que fracassa na tentativa, por atingir a cada vez o
furo no saber.
Uma arma contra o acúmulo de sentido - o qual por sua vez é o produto da defesa
correspondente. Uma vez que ali o sintoma fica vizinho da mentalidade débil que enoda
imaginário e simbólico. E é desde lá, também, que teremos de laborar para que não fique
descansando no limbo do sentido. Por isso trata-se de, nessa proliferação de sentido, priorizar
Essa repetição do sintoma, que se define como necessário, se constata, mais uma vez
na clínica quando essa mulher se implica na sua demanda e desenha o sintoma analítico com
algo inusitado, um significante. Diz que outro modo de passar ao largo é sentir-se meio
morta. Desse “meio-morta” se recolhe apenas uma simples falta de atenção que põe em risco
seu trabalho, quotidianamente. Nesse frescor do início do trabalho analítico, retorna e traz
uma lembrança infantil: “Meu pai dizia “mezzo-morto”. Com esse termo – que não existe no
português – apontava quando algum paciente estava muito doente, quase morrendo, cansado,
chapado. “Ele falava isso e eu ria, mas acho que ao mesmo tempo me assustava”. “Mezzo-
morta” é “jogar um pedaço de vida fora”, como nesses esquecimentos, lapso de atenção.
71
primeira vez esse termo, nesse motérialisme10 onde reside a tomada
do inconsciente – quero dizer que é o que faz com que cada um não
tenha encontrado outros modos de sustentar a não ser o que a pouco
chamei o sintoma.11
Impregnação do ser vivo pela linguagem. Mezzo-morta. Uma adolescência na qual sua
pele branca é o que carrega o brilho fálico. “Pele branca, sem sol, com olheiras, adorando
passar mal para ficar com a boca branca e a pele do dedo roxa”. Adorava também a tela de
Ofélia morta, Nirvana e seu CD Funeral. Isso a leva até um certo limite: bêbada de álcool,
corta seu braço e termina em um psiquiatra. Tempos da sua adolescência que incluem seu pai
doente de câncer. Mais um elemento: mezzo-morta estava sua mãe quando paria seus filhos.
Alingua não faz acervo, não acrescenta, mas impregna. O acervo, do lado do sentido,
fica por conta da associação livre. Abre-se, nesse primeiro tempo que indica a iminência da
entrada em análise a partir de um significante que lhe representa na história edípica, uma
palavra fora do dicionário, uma palavra em equívoco. Uma palavra que contem a marca de
acontecimento, mas que por sua vez, se oferta como um jogo de entrada na transferência a
10
condensação de mot (palavra) e materialisme (materialismo)
11
LACAN J. (1975).
Conferência
em
Ginebra
sobre
o
sintoma.
Copiada
da
Biblioteca
do
Campo
Psicanalítico.
www.campopsicanalítico.com.br.
72
Se tivermos em mente a pergunta de como se escreve o sintoma, ou seja, do que ele
opera selvagemente, poderemos privilegiar o equívoco para com ele evocar o enodamento dos
gozos e incidir nos mesmos. Mas o sintoma-selvagem não se deixa dominar totalmente, ele
insiste em se inscrever deixando em evidência o “Gozo opaco, por excluir o sentido”12. Por
essa razão - entendo - na análise operar com a escrita pode ser ético, porque ela reduz ao
máximo o sentido. Eis o modo em que temos de transformar o sintoma- selvagem em sintoma
12
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 566.
LACAN, J. Prefácio à Edição Inglesa do Seminário XI. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2003, PP 567-569.
73
O Livro de Cabeceira: da escrita como sintoma ao sintoma como letra
Inicio
esse
trabalho
com
uma
questão
colocada
por
Lacan
no
Seminário
23:
“O
problema
todo
reside
nisso
–
como
uma
arte
pode
pretender
de
maneira
divinatória
substancializar
o
sinthoma
em
sua
consistência,
mas
também
em
sua
ex-‐sistência
e
em
seu
furo?”
(p
38).
É
com
essa
inspiração
que
contarei
com
o
auxílio
de
um
filme
de
Peter
Greenway
(1996),
chamado
“O
livro
de
cabeceira”,
para
me
ajuda
a
transmitir
como
o
conceito
de
letra
no
último
ensino
de
Lacan
permitirá
a
reformulação
do
lugar
do
sintoma
na
clínica
psicanalítica.
1
AME,
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
–
Brasil,
Membro
do
Fórum
São
Paulo
74
Elas
são
imagens
e
texto,
simultaneamente.
Podem
ser
lidas
como
texto
e
vistas
como
imagens”.
Trata-‐se
de
indagarmos
se
a
advento
do
conceito
de
letra
em
sua
especificidade,
implicaria
numa
renúncia
de
Lacan
à
tese
da
primazia
do
significante.
Ora,
no
texto
“O
carteiro
da
verdade”
(Le
facteur
de
la
verité,
1971),
Derrida
acusa
Lacan
de
pertencer
à
tradição
idealista
da
filosofia
ocidental,
que
defende
–
desde
Platão
–
o
privilégio
da
transmissão
oral
em
detrimento
da
escrita.
Se
vocês
se
lembrarem,
em
várias
passagens
do
Seminário
18,
Lacan
responde
às
críticas
de
Derrida,
bem
como
em
Lituraterra
em
A
Terceira
e
no
Seminário
24.
75
aparência
de
saber,
e
não
a
verdade”.2
Com
esse
mito,
Sócrates
tenta
convencer
Fedro
de
que
não
se
pode
chegar
ao
justo,
o
bom
e
o
verdadeiro
pela
via
da
escrita,
já
que
ela
vaga
sem
pai,
indiscriminadamente.
A
memória,
para
Platão,
é
a
compreensão
viva
da
alma.
Assim
“só
há
sabedoria
na
alma
e
nunca
em
escrituras”.
Daí
a
supremacia
do
conhecimento
oral
(verdadeiro)
em
detrimento
da
escrita
(aparência).
Ao
mesmo
tempo,
o
lógos
é
tratado
como
um
corpo
vivo:
“ter
um
corpo
que
seja
o
seu”.
Derrida
retoma
esse
mito
platônico
apresentado
no
Fedro
fazendo
uma
crítica
à
tradição
platônica
ocidental
que
preconizaria,
segundo
seu
argumento,
a
irredutibilidade
do
significante
e
sua
primazia
em
relação
à
escrita.
Pode-‐se
perceber
a
presença
constante
de
Lacan
como
referência
oculta,
nesse
livro.
Tomando
como
eixo
uma
análise
minuciosa
da
escrita
como
Pharmakón
(
a
um
só
tempo
veneno
e
remédio),
Derrida
inverte,
entretanto,
seu
sinal,
apontando
positividades
exatamente
ali
onde
Platão
encontrava
seus
inconvenientes.
Por
exemplo,
na
“ausência
de
pai”
na
escritura
e
sua
presença
na
fala.
Lacan
é
acusado
por
Derrida
de
“formalismo
estruturalista”.
Há
uma
belíssima
resposta
de
Lacan
a
respeito
da
diferença
entre
forma
e
estrutura,
apresentado
em
uma
conferência
proferida
na
Bélgica
em
26
de
fevereiro
de
1977,
que
deixo
aqui
apenas
indicado.
Proponho,
entretanto,
como
contraponto,
outra
leitura
do
Fedro
mais
coerente
com
Lacan,
que
destaca
a
escrita
como
ikhnos,
o
sinal,
as
pegadas,
as
pistas
de
caminhos
já
trilhados,
de
diálogos
vivos
que
forjaram
modos
de
ser3.
Essa,
me
parece,
é
a
dimensão
que
Lacan
almeja
dar
à
escrita:
nem
o
simulacro
do
corpo
imagem,
nem
o
verdadeiro
incorpóreo,
nem
mesmo
a
experiência
do
corpo
como
substância
gozante
da
lalíngua,
mas
a
dimensão
de
cifra
dessa
experiência
de
gozo.
É
do
sintoma
como
letra
que
se
trata,
na
minha
leitura,
o
filme
“O
livro
de
cabeceira”.
Há,
evidentemente,
várias
leituras
possíveis,
especialmente
para
um
filme
complexo
como
esse,
mas
tomarei
a
“licença
poética”
de
tomá-‐lo
como
um
caso
clínico
e
dividi-‐lo
em
alguns
recortes:
2
Platão.
Fedro.
Martin
Claret,
p.
119
3
Reis
Pinheiro,
M
“Fedro
e
a
escrita”.
In:
Anais
de
filosofia
clássica,
vol.2
n.
4,
2008
76
Vemos,
então,
que
o
gozo
da
lalingua
materna,
a
letra
que
cifra
esse
gozo,
a
produção
das
primeiras
identificações
e
a
verificação
fantasmática
estão
presentes.
Como
afirma
Lacan
na
aula
de
21/01/1975
do
Seminário
RSI,
o
sintoma
é
a
função
do
sintoma,
no
sentido
matemático.
E
o
x
da
função
“é
o
que,
do
Inconsciente,
pode
ser
traduzido
por
uma
letra”.
Mas,
segundo
Lacan,
“qualquer
um
é
suscetível
de
se
escrever
como
letra”.
Da
contingência
da
cifra
de
“qualquer
um
que
para
de
não
se
escrever”,
entretanto,
opera-‐se,
de
modo
selvagem,
como
ele
ensina,
algo
que
passará
para
a
modalidade
lógica
do
necessário:
“o
que
não
cessa
de
se
escrever”.
No
caso
de
nossa
personagem,
é
a
própria
escrita
no
corpo
que
ocupa
o
lugar
do
x
na
“função
sintoma”.
77
O
filme
mostra,
então,
a
escrita
do
destino,
ou
seja,
a
verdade
mentirosa
de
Nagiko
na
tentativa
de
salvar
o
pai
da
humilhação
diante
do
editor.
O
primeiro
marido
é
escolhido
pelo
editor
do
pai,
numa
“troca
de
favores”
aos
moldes
daquela
suposta
por
Dora
entre
seu
pai
e
o
Sr.
K.
Trata-‐se
de
um
praticante
de
arco
e
flecha,
incapaz
de
reconhecer
o
valor
da
literatura
e
da
escrita
que
é
vital
para
Nagiko.
Na
ausência
do
pai,
ela
tenta
escrever
a
saudação
ritualística
dos
aniversários
no
espelho.
Seu
“Livro
de
cabeceiras”
é
repleto
de
listas
negativas.
O
marido,
inconformado,
incendeia
seus
escritos.
Os
papéis
são
queimados,
mas
a
“substância
gozante”
resiste
ao
fogo.
O
pai,
humilhado
e
subjugado
pelo
editor,
acaba
por
cometer
um
suicídio
ritual.
Nagiko
foge
então
para
Hong
Kong
e,
para
manter
a
tradição
do
pai,
obstina-‐se
em
encontrar,
nos
seus
amantes,
o
calígrafo
ideal,
fazendo
de
seu
próprio
corpo,
o
papel.
O
que
importa
para
ela
é
o
ato
da
escrita,
a
caligrafia
em
si:
“a
palavra
significando
chuva
deveria
cair
como
chuva.
A
palavra
significando
fumaça
deveria
cair
como
fumaça”.
Nagiko
repete
o
destino
paterno,
fazendo-‐se
de
objeto
de
troca
sexual,
recebendo
como
“mais
de
gozar”
a
escrita
em
seu
corpo.
78
escrever
em
seu
corpo.
Podemos
supor
aqui
uma
passagem
da
ordem
do
ter
um
sintoma
como
f(x)
a
ser
o
sintoma
de
um
homem.
Quem
é,
entretanto,
enganado
no
“jogo
do
amor”?
Para
a
mulher,
o
homem
pode
ser
uma
devastação.
Tomada
pelo
ciúme,
Nagiko
rompe
com
Jerome
e
passa
ao
ato,
voltando
a
seus
amantes.
Ainda
jogando
com
semblantes,
Jerome
decide
simular
a
cena
de
Romeu
e
Julieta
que,
entretanto,
torna-‐se
real.
Jerome
morre
envenenado
com
a
tinta
usada
por
sua
amada
para
escrever
em
seu
corpo.
Eis
a
face
veneno
do
pharmakon..
Numa
das
cenas
mais
fortes
do
filme,
o
editor
rouba
o
cadáver
de
Jerome,
e
tira
a
sua
pele
para
fazê-‐la,
literalmente
de
papel.
As
vísceras
e
outros
pedaços
de
carne
vão
para
a
lixeira.
Incrível
transmissão
em
linguagem
cinematográfica,
do
que
Lacan
nos
ensina
em
Radiofonia:
nada
melhor
para
representar
o
corpo
simbólico
do
que
o
cadáver.
79
vingança
no
último
livro:
“O
livro
dos
mortos”.
Enterra,
então,
o
livro
feito
com
a
pele
do
amante
e
pode
se
separar
de
seu
destino
fantasmático.
Há
alguns
comentadores
desse
filme
que
vêem
nesse
final
a
confirmação
da
idéia
de
Derrida
de
que
a
escrita
é
mais
verdadeira
porque
pode
prescindir
do
pai.
Eu
prefiro,
com
Lacan,
entendê-‐lo
pela
via
da
identificação
ao
sintoma:
“sintoma
como
aquilo
que
se
conhece
melhor”
(Sem
24).
Ou,
em
outras
palavras,
tornar
o
gozo
possível
através
da
emenda
entre
ser
sinthoma
e
o
real
parasita
de
gozo
(Sem.
23.
p.
71).
Para
mim,
o
que
“O
Livro
de
cabeceira”
ensina
é
que
é
possível
separar-‐se
do
sentido
da
fantasia.
E
quanto
ao
Pai,
fiquemos
com
Lacan:
“Por
isso
a
psicanálise,
ao
ser
bem
sucedida,
prova
que
podemos
prescindir
do
Nome-‐do-‐Pai.
Podemos
sobretudo
prescindir
com
a
condição
de
nos
servirmos
dele”.
(Sem.
23,
p.
132).
80
A Satisfação do Final de Análise
Antonio Quinet1
Quando ele entra em análise ele fica satisfeito com a decifração e com o
processo analítico. É a satisfação da associação livre, do descobrimento dos fatos,
1
AME,
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
-‐
Brasil,
Membro
do
Fórum
Rio
de
janeiro
2
Jacques Lacan, Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.p. 568.
81
dos ditos, das fantasias e sua articulação com a cadeia significante da sua história. A
satisfação analisante se situa no lado da busca da verdade, é a satisfação do gaio
saber. Este é o gozo do deciframento, satisfação relativa ao saber extraído da
associação livre. Le gai savoir é uma referência de Lacan em Televisão, à poesia
provençal, do tema do amor cortês, para indicar o manejo significante da língua
poética. Em análise corresponde à descoberta do inconsciente poeta, espirituoso,
brincalhão que rola e deita e pula na cama elástica da língua. O saber que se elabora
na associação livre arranca o sujeito da tristeza, pois ele reencontra o fio de seu
desejo que estava extraviado. Essa satisfação de um saber alegre, com brincadeiras
de linguagem, vai até o final da análise.
82
satisfação da suspensão das inibições e da atenuação da angústia, como por
exemplo, num caso de passe quando da queda do objeto olhar.
3 Jacques Lacan, Outros Escritos, op. cit, p. 568.
83
histohisterização da análise abstendo-me de impor esse passe a todos, porque não
há a todos no caso, mas esparsos disparatados”. Essa expressão de Lacan aponta
que os analistas não fazem um todo, a Escola não toda . Não é um Outro
reconstituído para o analisante (como se chegou a propor explicitamente na AMP)
que se deparou com a falta do outro em sua análise. O dispositivo do passe não
constitui a Escola como um conjunto, nem a instituição que a sustenta – somos
uma coleção de “esparsos disparatados”.
84
“Deixei à disposição, diz Lacan, para testemunhar da melhor maneira
possível sobre a verdade mentirosa”. Ao falar sobre verdade mentirosa, não há uma
desqualificação da verdade. É uma constatação: não se pode distinguir totalmente a
verdade da mentira. O sujeito testemunha dessa verdade mentirosa. Ele sabe que a
verdade é mentirosa mas não deixa de ser verdade. Trata-se daquilo do qual o
passante foi constituído a partir dos significantes do Outro e a partir dos quais você
fez a suas escolhas, ou seja, aquilo que os gregos chamavam de destino, no qual o
sujeito é mais falado do que fala, mais agido do que age, etc. Considerar o destino
como uma verdade mentirosa já é uma forma de você se desalienar do Outro, lá
onde está inscrita sua história verdadeira, que no entanto, mente – ela mente sobre
o que é o ser.
4 Jacques Lacan, 1967.
86
relatarem suas formações do inconsciente em Roma e Fortaleza – lapsos e sonhos
durante o procedimento do passe. O sujeito sabe que ele não disse tudo, mas está
satisfeito não apenas com o que já disse e a que chegou mas também está satisfeito
com seu recalque. “É somente, diz Lacan, quando o seu (“não quero nem saber”)
lhe aparece como suficiente que você... se destaca normalmente de sua análise”.5 O
“suficiente” corresponde aqui ao que é o satisfatório do final de análise, a um “é
suficiente, estou satisfeito” – satisfação do saber adquirido, mesmo sabendo que
resta a saber... e, no entanto, está bem assim. E o sujeito deixa de estar insatisfeito
com o que sabe e sai contente com isso. Quer também dizer que você está
satisfeito com seu sintoma, ou seja, sua maneira de gozar do inconsciente, até para
saber lidar com ele de uma maneira que não seja sofrimento.
A análise pode chegar “ao ponto em que o bem-dizer satis-faça”.6 Eis uma
satisfação de fim de análise: ela é relativa ao manejo da língua como bem-dizer que
satisfaz o sujeito em se dizer (“eu sou...”) ou dizer seu sintoma (forma de gozo).
Nesse termo de Lacan, encontramos também o fazer que nos remete ao saber fazer
com o sintoma. Quando o sujeito está no processo analítico ele está no “não basta”
e sempre procura um dizer melhor, um dizer a mais que responda a esse “não
basta”. No final de análise o bem-dizer que satisfaz permite o “Basta!”, ou melhor
dizendo, ele produz esse “Basta” cuja satisfação marca o final de análise. O bem
dizer do seu sintoma não ocorre sem a histohisterização que dá conta da história do
seu sintoma, da sua fantasia, das ficções secretadas pelo inconsciente durante a
análise, até que se chega ao bem-dizer do lado do sintoma, ao lado de um satis-
fazer. Essa satis-fação, é da ordem do real, de uma satisfação no fazer. Trata-se de
5
Jacques Lacan, Seminário 20, Seuil, p. 9.
6
Jacques Lacan, “...Ou pire”, Autres écrits, p. 551.
87
um fazer com seu sintoma. Essa satisfação do fazer podemos aproximá-la do que
diz Freud do que se espera de uma análise: poder amar e trabalhar. Parece pouco? Mas
é muito! Eis um fazer do real que satisfaz e pode por um fim à busca da verdade
que é sempre mentirosa.
- a vertente que diz respeito á sexualidade:- o sujeito está satisfeito com sua
maneira de gozar sexualmente – é o que pudemos verificar a partir do testemunho
dos passantes. Ele não está mais nem na insatisfação nem na impossibilidade e nem
na metonímia desvairada de transar com todo mundo. O sujeito pode enfim
consentir com um modo de gozar outrora recusado ou desconsiderado. Essa
88
vertente da satisfação sexual é extremamente variável, mas ela sempre traz a paz.
Final da guerra: guerra dos sexos, guerra consigo mesmo. Evidente que é uma paz
que não impede nem a batalha nem de ir à luta!
89
MESAS
SIMULTÂNEAS
90
“Fazer uma Escolha ou Permanecer na Dúvida?”
Rainer Melo1
O caso que ilustra este trabalho é de um sujeito (42), casado há 22 anos, que
relação à sua divisão entre duas mulheres que ama, cada uma diferente, perdido na
a divisão subjetiva exprimindo-‐se na divisão do objeto de amor. O problema da divisão
subjetiva estaria facilmente solucionado se o sujeito fizesse a escolha. A ironia consiste
no fato de um homem possuir duas mulheres e, no entanto, continuar insatisfeito.
Freud1 afirma: “A linguagem de uma neurose obsessiva, ou seja, os meios pelos
1
Psicanalista membro da EPFCL/ AFCL. Psicóloga. Licenciatura em Psicológia CES/ JF) Pós-Graduação em
Psicanálise (CES/JF).
91
obsessiva”2.
É
um
pensamento
contínuo,
em
que
há
uma
satisfação
libidinal,
uma
copulação de significantes. As idéias obsessivas que vêm sem cessar, os rituais, são para
evitar que pense. O sujeito, para entrar em análise, é necessário entrar para o discurso
Caso Clínico
origem tradicional e rica, e uma mulher jovem, de família simples e pobre, ambas
inteligentes e bonitas. A primeira representa o aconchego familiar, mãe de seus filhos e
companheira de 22 anos. A outra representa o novo, o desafio, o proibido. Ama as duas,
não consegue saber qual a preferida, pois ama cada uma de forma intensa.
Teme fazer uma escolha e arrepender-‐se. As duas cobram uma posição que não
consegue assumir, fica dividido, mente a ponto de confundir o que é sua verdade. Fica
em circuito fechado do qual não consegue sair, mas essa é uma estratégia que utiliza
para manter seu desejo impossível sem fazer uma escolha. É a forma de estar sempre em
outro lugar para não correr risco. “O obsessivo usa a manobra covarde de não correr
riscos, eximindo-‐se de seu desejo; se ele não arrisca não goza, e o gozo do qual se priva é
transferido ao outro imaginário, que assume como gozo do espetáculo”3.
92
Constelação
Familiar
Lacan defende que a constelação do sujeito é formada na tradição familiar pela
narração de certo número de traços que especificam a união dos pais. A constelação
originária que presidiu ao nascimento do sujeito, ao seu destino, quase à sua pré-‐
história, as relações familiares fundamentais que estruturam a união dos seus pais
mostram ter relação precisa e definível com o que aparece como sendo o mais
fantasmático do cenário imaginário ao qual chega como solução da angústia.
a uma família tradicional, rica e de prestigio. Quando jovem, o pai do sujeito também
ficara dividido entre duas mulheres, preferindo escolher aquela que lhe desse prestigio
na sociedade. Esse pai, homem educado, mas autoritário, impunha suas decisões que
eram acatadas pela mulher. O sujeito sempre ouviu de sua mãe: “A família tem de ser
preservada e deve ficar acima de qualquer interesse”, dito materno que o sujeito sempre
traz para sua análise e lhe provoca culpa, conflitos e dificuldades nas suas decisões.
Observa que as duas mulheres com as quais se relaciona são como o pai, autoritárias, e
lhe provocam medo, afirma ter “medo delas como do pai.” A lembrança das atitudes
autoritárias do pai é trazida para a análise, como no sonho que o sujeito relata, dividido
em três níveis: No primeiro nível, no quintal de sua casa, há um lugar proibido para
brincar. Mesmo com hesitação, consegue ultrapassar. No segundo nível, vê surgir, numa
espécie de névoa, um homem, uma mulher e duas crianças. Tenta tocar o homem, que
93
lhe
diz:
Você
não
pode
ultrapassar
o
limite
e
me
tocar.
Sente
calafrio,
obedece
e
não
se
aproxima. Desse segundo nível, vê o terceiro nível cercado em fogo, faz o sinal da cruz e
o medo se esvai. Nas associações, o pai autoritário e o temor, a lembrança dos castigos
impostos. Em um deles, Paul recusava determinado alimento. Todos estão à mesa, o pai
se levanta, coloca o rosto da criança dentro do prato e, em seguida, o deixa de pé como
castigo, o rosto sujo, olhando todos à mesa, paralisado. Perguntado sobre a reação da
mãe nessas ocasiões, responde que ela nunca interferia nas atitudes do pai. Os ditos da
O obsessivo se mortifica, coloca-‐se no lugar da falta do Outro, é uma forma de
salvar o Outro. Não só como a castração da mãe, mas a inconsistência dos ditos da mãe.
Não pode pedir nada, para não mostrar a sua falta, diferentemente da histérica que
demanda sempre. Se o obsessivo mostra a falta, vai ficar evidente que ele não é o falo, o
falo como símbolo da falta do Outro. Aceitar ser o falo é condição para não ceder ao
desejo.
engravidara. Ainda hoje “admira sua mulher, acha-‐a linda, sente atração e gosta de sexo
com ela”. Tudo caminhou bem por alguns anos. Depois Paul começou a sentir “certas
estranhezas”, como o corpo separado de sua cabeça, os pensamentos invadirem o corpo,
se por outras mulheres, até que encontrou a jovem Nina, cuja relação dura há cinco anos.
94
sentindo-‐se
culpado
e
dividido.
Segundo
Freud,
o
que
caracteriza
o
sintoma
obsessivo
O caso de Paul nos remete ao famoso caso de Freud, “O Homem dos Ratos”, com
neurose obsessiva, onde aparece a ambivalência afetiva caracterizada por Freud como a
clivagem entre o amor consciente e o ódio inconsciente, aparece essa ambivalência em
relação ao pai e a senhora que ele venera. Desse modo manifesta os sintomas como
forma de apreensões obsessivas, medo de que aconteça algo ruim com a senhora ou que
o pai morra (que já estava morto). No caso de Paul vêm sempre o medo e as dúvidas. "Se
eu sair de casa algo ruim pode acontecer com minha mulher e meus filhos. Minha
mulher vai deixar de me amar e ficar com outro. E a outra, se eu deixá-‐la? Algo vai
faltar”.
sonho, no qual o sujeito se vê numa estrada, numa encruzilhada, onde aparecem, de um
lado, a mulher, mãe de seus filhos e, do outro, a analista, objeto proibido, algo intocável.
Desse modo, se constitui o analista como objeto causa de desejo, constituição essencial
95
proibição
com
a
satisfação,
de
tal
forma
que
o
que
fora
originalmente
um
mandamento
obsessivo entre dois impulsos: o de ódio e o de amor. Freud descobriu que, mesmo na
existência desses dois opostos, é na presença do ódio que se encontra a base de cada
sintoma obsessivo, como resposta sempre à mão para se defrontar com signos de que o
nenhum, "fico pulando de um lado para outro, mentindo para não decidir entre a
mulher, esposa rica, e a jovem pobre. Sempre confuso, sob pressão, com a sensação de
estar assentado numa caixa de pólvora pronta a explodir, como nos sonhos se repetindo
estará onde se joga o jogo e, por isso, quase nada do que ocorre lhe interessa, tudo o que
desejo que, por outro lado, lhe dá alimento. E sempre adiando: mais tarde, mais um dia...
Trava-‐se uma luta, constituída de idéias contrarias expiatórias que ocupam toda
sua atividade mental diurna e noturna. “O obsessivo pensa avaramente. Ele pensa em
circuito fechado. Ele pensa para ele sozinho”6. Esse debate permanente opera-‐se em um
clima
de
dúvidas
bem
sistemáticas,
não
levando
a
nenhuma
certeza.
Surge
nessas
96
dúvidas
sempre
uma
interrogação,
que
gera
procuras
de
respostas
de
soluções,
sendo
algum ato grave, imposto a ele por suas idéias, mas de tê-‐lo feito de modo inadvertido.
“(...) Essa cisalha chega à alma com o sintoma obsessivo, pensamento com o qual a alma
sujeito, cuja dúvida e a falta de certeza impedem seu ato, que é sempre adiado. Daí a
não acontece. Uma análise possibilita que o sujeito fale, ou seja, coloque em palavras o
seu pensamento. É preciso que o gozo passe do pensamento para o ato, invertendo
Considerações
Verificamos no caso apresentado verdadeira batalha entre as idéias, que entram
Sabemos que não há respostas para as perguntas de Paul, porque as perguntas são
sintomas disfarçados. O sintoma não é para ser respondido e sim para ser trabalhado em
análise. Paul precisa descobrir que sua felicidade não depende de uma decisão imediata.
Escolher Nina ou Cal não determina o sucesso de sua vida. Seu verdadeiro sucesso
consiste em decifrar seu conflito e descobrir os motivos que o levam sempre a uma
encruzilhada.
97
Notas
Referência Bibliográfica
FREUD, S. (1909) Um caso de neurose obsessiva (1909). Imago Editora. Rio de Janeiro.
1980. Vol X.
FREUD, S.Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (Contribuições à
psicologia do amor.(1911). Imago Editora. Rio de janeiro. 1980. Vol XI.
FREUD, S. Recordar, Repetir e Elaborar (1914). Imago Editora. Rio de janeiro. 1980.
GALLANO, Carmen. Enfermares del cuerpo fuera del sexo: uma clínica del obsessivo
(2010). Roma. 2010. Inédito.
LACAN, Jacques. A Psicanálise e seu Ensino. (1957). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed. 1998.
98
LACAN, Jacques. O Seminário livro 5: As Formações do Inconsciente (1957/1958). Rio de
Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1999.
LACAN, Jacques. (1974) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
LACAN, Jacques (1975) Conferência de Genebra sobre o Sintoma. Opção Lacaniana. São
Paulo, n.19, 1988.
QUINET, Antonio. Zwang und Trieb (1998). Os destinos da Pulsão. Rio de Janeiro.
Kalimeros, p. 67-77. 1998.
99
O que Marcélio Sabia
1
Membro
da
Escola
de
psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano-‐
Brasil.
Membro
do
Fórum
Fortaleza.
100
No entanto, diferentemente dessas profissões, o ofício da psicanálise vai demarcar
uma diferença radical na forma como podemos acolher as vicissitudes pelas quais um sujeito
passa no seu processo de aprendizagem. Também reconhecemos que, nos ditos “problemas de
aprendizagem” há alguma coisa que emperra, há uma pedra no meio do caminho. Pode ser
que haja aí, para alem da demanda dos pais, um sintoma. Ocorre que sintoma, aqui não é
entendido como um déficit, uma anomalia a ser corrigida. O sintoma, para a psicanálise é um
índice do sujeito e das tensões que se revelam entre este e o seu desejo, inconsciente.
O Sintoma na psicanálise
O sintoma já é considerado, antes mesmo da psicanálise, um importante conceito na
medicina. Com Michel Foucault (1980) vemos como este está conceituado no seio do projeto
anatomopatológico da medicina, onde o sintoma sempre corresponde a lesão de um órgão,
alteração que precisa ser corrigida para reencaminhar o organismo em direção à normalidade.
A psicanálise nasce de um encontro: aquele que se dá entre Freud e o sintoma das
histéricas. Destituído de lugar no saber médico, com Freud o sintoma ganhou estatuto de
mensagem. Portador de um texto que remete ao sexual, ou melhor, a uma falha no sexual.
Alem disso, Freud também afirma que os sintomas neuróticos são resultado de um conflito.
Na premência constante das pulsões, algo não pode ser aceito ou por ser incompatível com o
eu ou por afrontar seus padrões éticos. A libido insatisfeita é obrigada a abandonar a realidade
e buscar outras vias de satisfação. Daí temos uma outra peculiaridade do sintoma em Freud. O
sintoma é um acordo, uma peça de ambigüidade engenhosamente escolhida, com dois
significados em completa contradição mutua. (FREUD, 1916, p.421) Assim, a libido
consegue encontrar alguma satisfação, embora seja uma satisfação que mal se reconhece
como tal.
Lacan também se interessou por essa face de carta endereçada ao Outro (face
simbólica do sintoma), mas também soube extrair daí a dimensão de gozo que o sintoma
presentifica, apontando para uma face real do sintoma. No texto intitulado “A Terceira”
Lacan (1974, p.24) afirma: o sentido do sintoma é o real, na medida em que ele se atravessa
aí para impedir que as coisas andem, no sentido de que elas dão conta de si mesmas de
101
maneira satisfatória. Sentido aqui não no sentido de significação, mas no de vetor. Ou seja, o
sintoma é um vetor apontando para a presença do real.
O Caso Clínico
Os pais de Marcélio, 11 anos, me procuram em Junho de 2009 porque, segundo os
pais “a professora disse que ele precisava de psicólogo”. É muito inquieto, não presta atenção
na aula e briga constantemente com os outros alunos. Alem disso, embora esteja cursando
pelo quarto ano consecutivo a terceira série, não consegue ler nem escrever. Trata-se de um
caso atendido em um serviço público de Fortaleza-CE situado em uma região muito carente
da cidade.
O desafio nas entrevistas preliminares foi tentar localizar algo na fala de Marcélio que
o implicasse para alem da demanda de adequação do comportamento endereçada a mim pelos
pais e pela escola e que ele parecia endossar. Falava muito pouco e, nesse pouco, deixa
entrever que acredita que está ali para ser mais comportado, para parar de brigar na escola e
pra conseguir aprender. Peço-lhe para me falar sobre isso, “não conseguir aprender” e
descubro que não se trata simplesmente de não conseguir, há uma singularidade muito
relevante em sua história. Ele diz: eu sabia ler e escrever, mas um dia o colégio caiu. Tive que
ficar em casa por uns meses e quando eu voltei tinha “esquecido de tudo”. Suas dificuldades
dizem respeito tanto a leitura como a escrita. Também esquece com freqüência do que vai
dizer: às vezes a palavra vem reta na minha cabeça mas na hora de dizer sai outra coisa.
A passagem que vai permitir a Marcélio sair da demanda dos pais para uma
formulação de sua própria questão ocorre certo dia em que ele reconhece uma das pacientes
que atendo como sendo uma de suas vizinhas e me pergunta porquê ela está ali. Respondo que
as pessoas vem para cá porque tem alguma coisa que as aflige, que as faz sofrer e vem buscar
ajuda. Pergunto se é o caso dele. Ele diz que tem sim, que ele sofre porque esqueceu algumas
coisas e que acha que eu poderia ajudá-lo a lembrar. Outro fato que lhe intriga é que ele, por
diversas vezes, acordou e estava em pé, em frente a geladeira, por exemplo, e não se lembra
como chegou lá.
102
Esse momento foi um marco na direção do tratamento pois, enfim, seu endereçamento
à analista começa a se delinear. Agora comparece sozinho à sua análise, sempre preocupado
em vir “bonito” para a sessão, segundo relato da mãe.
Percebemos que, para além de uma dificuldade de alfabetização, o que se verifica no
caso de Marcélio é um regressão a uma fase anterior, onde algo se fixa no não saber. Para
abordar como isso se dá, é importante tecermos alguns comentários sobre o que a psicanálise
tem a dizer sobre o processo de alfabetização.
No texto sobre as afasias, ainda num momento pré-psicanalítico, Freud (1915a)
identifica o que está em jogo nos diversos momentos de aquisição da linguagem, num
percurso que vai da aquisição da fala à aquisição da escrita. Aprendemos a falar, segundo ele,
servindo-nos de uma linguagem própria; criamos, uma espécie de dialeto. Fazemos isso
associando uma imagem sonora da palavra (que adquirimos do outro) a uma sensação de
inervação da palavra, associando diferentes e estranhos sons de palavras a um único som que
nós mesmos produzimos. No processo que se segue, passamos a tentar tornar esse som
produzido o mais próximo possível da linguagem dos outros.
O processo de aquisição da leitura e da escrita, envolve, segundo Freud, uma reedição
desse processo, um segundo esforço de associação. Associamos as representações obtidas ao
pronunciar cada uma das letras e, dessas associações, percebemos surgirem novas
representações de palavras. Reconhecemos no que aí obtemos o som da palavra tal como a
conhecíamos, e então, lemos compreendendo. Segundo ele, esse processo é facilitado pela
semelhança que há entre o dialeto dos primeiros anos de vida e a linguagem escrita.
Percebemos que há uma proximidade entre esse dialeto a que Freud se refere e aquilo
que anos mais tarde Lacan vai chamar de lalangue2. Lalangue não é a linguagem, ela é antes
um banho de obscenidade como diz Colette Soler (2010, p.29) ao se referir a esses uns,
essaim3, enxame de significantes que a criança recebe de primeiro grande outro, a mãe.
lalangue, portanto, não é da ordem do simbólico, mas do real. A autora nos adverte que não
2
Neologismo
criado
por
Lacan.
O
termo
“lalangue”,
faz
referencia
a
“lalação”,
primeiros
sons
emitidos
pelo
bebê.
3
Em
Frances
há
uma
homofonia
entre
“essaim”,
enxame
e
“esse
uns”,
S1,
termo
que
Lacan
utiliza
para
se
referir
ao
enxame
de
significantes.
103
se trata, portanto de aprendizagem, mas de impregnação, de marcas que a criança recebe: são
termos que excluem o domínio e a apropriação ativa e, portanto, a identificação.
Desses sons sem sentido alguns vão se depositar, sob a forma de detritos, os primeiros
uns sonoros. Segundo Soler (2010) é só num a posteriori, tempo do encontro com o
impossível do sexo, que esses uns vão se conectar ao problema do gozo do sujeito,
especialmente do gozo fálico. Aqui não se trata da combinatória do significante, mas desses
uns erráticos, que se conectam diretamente com o gozo corporal. Nesse litoral que se escreve
entre saber e gozo está em jogo não só a contingência do que foi falado pelo outro, mas,
principalmente, a contingência do que foi escutado.
Ainda durante as entrevistas, fiquei sabendo (através do pai) de um acontecimento que
vai retornar várias vezes na fala do filho. A família morava em uma cidade do interior: o pai,
a mãe, a filha mais velha e Marcélio filho, então com cerca de três anos de idade. Certo dia, o
pai está bebendo em um bar e entra numa briga. Vai até em casa, deixa o filho que estava com
ele no momento, pega uma faca e mata o colega com quem discutiu. Perseguido pela policia
ele se esconde para livrar o flagrante e depois se entrega. Há três anos ficou sabendo de sua
sentença: cumpriria pena em regime semi-aberto.
Há cerca de tres anos também, nasceu a filha mais nova do casal. Na fala da mãe o pai
aparece como violento e muito ciumento: chegava em casa bêbado e obrigava as crianças a se
ajoelharem e escreverem o alfabeto na parede: “ele ficava rindo, parecia um louco”. Diz ainda
que apanhou muito durante a gravidez do Marcélio: “será que isso tem a ver com o jeito dele
ser hoje?”
Aos poucos, Marcélio começa a me falar sobre sua vida na escola e em casa. Me diz
que tem um irmão que está preso, o Daniel. Essa afirmação me surpreende pois nem a mãe
nem o pai tinham me falado da existência desse irmão. Fala também que o pai tem mais cinco
filhos com outra mulher que conheceu antes de sua mãe. Ainda sobre a prisão de Daniel, faz
uma relação com seu sintoma e afirma: Ele foi preso, no mesmo dia eu fui pra escola, a tia
mandou eu ler e eu não sabia mais. Marcélio briga muito na escola, e ao perguntar o porquê
disso ele me diz que os meninos chamam sua mãe de rapariga, e me pergunta o que é isso.
Com o meu silêncio, ele me diz noutra pergunta: rapariga num é moça?
104
Com essas informações novas e conflitantes e como Marcélio continua muito calado
durante as sessões, sugiro trabalhar com desenhos, ao que ele se mostra muito interessado.
Seguem-se ai várias sessões onde ele desenha várias pessoas, escreve seus nomes (alguns
corretamente, com uma letra bem caprichada – O dele, o do pai) e outros que ele não
consegue escrever e me pede ajuda – Daniel e Cibita, uma prima com quem ele gosta de
brincar) depois me fala sobre o que produziu. Noutras sessões ele recorta as figuras,
formamos arvores genealógicas ou encenamos histórias com os personagens que ele
desenhou.
Nesses jogos e desenhos o que começa a se delinear é a duvida de Marcélio sobre
quem é essa família, principalmente sobre esses filho que a mãe teria no interior. Ele diz que
não tem certeza se Daniel é filho ou irmão dela, mas acha que são filhos. Ele passa a
investigar isso junto a mãe que explica que eles, na verdade são seus primos, filhos de uma
irmã dela.
Outra questão que surge é com relação ao seu nome próprio: “Meu nome é igual ao do
meu pai e eu não sei porque”, “uma amiga minha falou que esse nome é uma peste”. Certo dia
deixa escapar com um sorriso no rosto que sua mãe (e quase todos na rua) o chamam de Bebê
e que ele gosta muito de ser chamado assim.
Em uma sessão me diz: acho que eu nasci doente, com alguma doença, por que até
meu irmão mais novo sabe mais do que eu. Pergunto então: o que você sabe sobre o seu
nascimento? “Eu nasci da barriga, me tiraram de lá. Tu conhece a novela do Zé trovão ? Eles
apostaram uma corrida. Se a Ana Raio perdesse tinha que dar um beijo nele, se ela ganhasse,
num tinha não. Ela perdeu e eles se beijaram, os cavalos deles também, porque tem o mesmo
nome que eles. Pergunto porque ele lembrou disso? Porque foi bom. Acho que é assim, eu
lembro do que é bom. O que é ruim eu esqueço”.
Noutra vez, me diz que sua avó mandou um recado para seu pai. Os irmãos do homem
que ele matou estão querendo matar ele. Ele não pode ir pescar em... “idubaiu”4. A palavra
certa não sai. Ele tenta varias vezes mas automaticamente só sai ‘idubaiu”. Pergunto se ele
quer escrever. Ele escreve: “Dubaiu”. Depois tenta novamente: “Trubaiu”, e me diz: “não é
4
Imagino
que
ele
está
fazendo
referencia
ao
município
cearense
de
Banabuiú.
105
isso. Eu não consigo dizer”. Pede pra ir lá fora perguntar a um vizinho que o acompanhava e
diz: “a palavra certa é Donabuiu”.
Eu marco que ele lembrou do buiu, mas esqueceu o Dona. Digo, Dona também é um
nome de mulher. Esse significante surge como S1 que articula um enxame, ponto de
articulação ligando-se a outros uns que apontam para todas as questões de Marcélio:
Donabuiú – Banabuiú – cidade onde o pai matou
Dona – significante que aponta para o feminino
Dedina – a mãe chama-se edina, mas ele escreve assim
Daniel – que, como ele mesmo destaca, também escreve com D.
Noutra situação me fala de uma cena que assistiu. A irmã mais nova, de três anos
ainda mama e às vezes dorme no peito. Certo dia, conta ele, viu o irmão do meio deitar na
cama, botar o outro peito para fora e mamar.
Percebemos nessa escansão do significantes duas questões se colocam no caso:
1- Marcélio se debate com questões que dizem respeito ao enigma do sexo:
sua ascendência, a sexualidade materna e a indefinição de limites quanto a
isso. A mãe é rapariga? E esses irmãos, de onde vieram? Podem os filhos
gozar do corpo da mãe ? porque ela dorme? O que pode o pai?
2- Seu sintoma, esquecer o que sabia, irrompe por volta dos 7 anos de idade,
num momento em que essas questões se presentificam: nasce a irmã mais
nova, o pai vai ser preso, o irmão é preso.
O que podemos extrair daí aponta em primeiro lugar para a atuação da pulsão
epistemofílica. Marcélio andou procurando saber, investigando sobre sua origem e a origem
desses irmãos. No texto Leonardo Da Vinci e uma Lembrança de Sua infância (1910), Freud
afirma que uma fase cheia de investigações é freqüente nas crianças pequenas. Elas visam
saber de onde vêm os bebês, como eles são feitos? No limite, essas questões apontam também
para a origem do próprio sujeitinho: de onde eu vim? Por que eu nasci? O que eles querem de
mim?
Marcélio provavelmente andou procurando essas respostas e, posteriormente,
encontrou ao longo de sua investigação algum limite desse saber. (Esse limite é estrutural,
106
pois a investigação fatalmente caminha para um ponto impossível de dizer e para o
reconhecimento de uma falta, principalmente a falta no Outro). Nesse momento, opera o
recalque que, por definição, trata-se exatamente de um mecanismo que visa afastar
determinada coisa da consciência, mantendo-a à distancia (FREUD,1915b). Seria seu sintoma
(esquecimento) equivalente ao próprio mecanismo do recalque? É o próprio Freud quem nos
responde, ao afirmar que Sintoma e recalque não são a mesma coisa, longe disso, seguem
caminhos de formação completamente diferentes, pois o sintoma equivale, na verdade a um
segundo momento, o momento em que algo desse recalcado busca acesso à consciência, um
retorno do recalcado.
Tomemos novamente o caso de Marcélio: ele inicia, ainda numa fase remota suas
investigações. Desiste delas e atribui uma resposta ao enigma como qual se depara, Daniel é
meu irmão. Num momento posterior, marcado por solicitações escolares, nascimento de uma
irmã, prisão do Daniel e do Pai, algo desse conteúdo recalcado tenta voltar. Vacilando o
recalque, ele faz um sintoma, esquece o que sabia ler, sintoma cujo sentido, o vetor, como diz
Lacan é apontar para o mesmo núcleo real com que esbarraram suas pesquisas sexuais, o
impossível de saber.
Nesse sintoma desvela-se ainda a posição de gozo de Marcélio. Apesar de haver
incidência do Nome-do-pai, a saída pela identificação ao significante paterno é recusada por
ele: “Não gosto de ter esse nome, esse nome é uma peste”. Prefere ser chamado pelo nome
que recebeu da mãe, o Bebê. Continuar a ser o bebê da mamãe. Mas esse nome porta a marca
de seu gozo, marca do impossível da relação, pois bebês não sabem ler.
Referências Bibliográficas:
107
FREUD, S. (1910) Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância. v. 11. In: Edição
standard brasileira de obras completas de Sigmund Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
___________. (1915a). O Inconsciente (Anexo C). In: Edição standard brasileira das obras
Edição. Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XVI. Rio
LACAN, J. A Terceira (1974). Che Vuoi, ano 1, n. 0, Porto Alegre, Cooperativa Cultura
1993.
108
Reflexões sobre a direção do tratamento na clínica da perversão
A idéia axial deste trabalho é trazer reflexões sobre alguns aspectos em relação à
Consideramos que o perverso que procura o analista está na posição em que sente a
angústia de castração. Quando chega é porque a defesa não funciona mais e a angústia
transborda. O sujeito vem nos dizer algo que no momento funciona mal e que antes
funcionava bem. Agora funciona mal, até de forma perigosa. Está preocupado, e se queixa de
não poder controlar os impulsos, sabe o que lhe acontece, mas não consegue reagir, portanto
quer ajuda. Será que nós analistas estamos à altura de tal tarefa? Será que sabemos manejar a
São questões que nos inquietam já faz alguns anos. Assim, pensamos que a
posição ética, e que pode a posteriori ser interpretada como um ato. Além disso, torna-se
fundamental ressaltar que ao prescindir da hipótese diagnóstica não temos a mínima condição
de dirigir o tratamento, pois tanto o dito como o dizer do analisante acabará ficando a deriva,
1
MARIA LÚCIA ARAÚJO – Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil,
Membro do Fórum do Campo Lacaniano - São Paulo. Trabalho apresentado no XI Encontro Nacional da EPFCL/IF-
Brasil (2010). araujomalu@uol.com.br
109
Soler em seu curso sobre “A querela dos diagnósticos” nos lembra que Lacan mostrou
a necessidade do diagnóstico para sabermos se o sujeito que nos procura pode se beneficiar do
tratamento analítico, pois o saber clínico orienta a ação. Assim, o diagnóstico implica um
julgamento ético, que está longe de ser um julgamento de saber (SOLER, p.18)
Sendo assim, o que nos interessa aqui investigar não é apenas o sujeito perverso que
demanda análise para saber sobre o dispositivo, já que sua formação o exige, mas também
aqueles sujeitos que são trazidos porque correm sérios riscos de vida e colocam em risco a
vida de outros. Tanto em um caso como no outro as demandas ocorrem quando sobrevêm
posição ética dizendo: “Tratemos, em nossa elaboração de ser rigorosos! O sofrimento tem
sua linguagem [...] O sofrimento é um fato, isto é, encerra um dizer.” (LACAN, p.63)
Dessa forma, nós analistas estamos convocados a tomar uma posição ética em relação
ao nosso próprio desejo de analista. Pois sabemos, que a análise de um sujeito perverso se
passa quase que o tempo todo no acting–out que se dirige ao Outro. Entretanto, entendemos
que é por essa via que o analista pode operar na direção do tratamento, ou seja, interpretar o
analistas, logo, ele, o acting-out, se dirige ao analista. Se ele ocupou este lugar, pior para ele.
Ele tem de qualquer forma a responsabilidade que pertence a esse lugar que ele aceitou
110
Outro aspecto que vale a pena ressaltar é que uma forma possível do desejo perverso é
a vontade de gozo, que é uma vontade decidida de gozar realizando sua fantasia. E, que a
Contudo, salientamos que o desejo perverso não é uma pergunta, mas sim uma
resposta, pois o perverso sabe o que quer e isso se deve a sua petulância perversa, que o faz
convencido de saber a verdade escondida. Para esse sujeito não há falta, pois o fetiche
A perversão se utiliza de diversas estratégias para negar a falta no Outro, tais como: o
masoquismo que tem a intenção de angustiar o outro, o sadismo que quer produzir a divisão
do outro, o exibicionista que quer mostrar e assustar; o voyer que quer ver surgir o olhar do
outro. São alguns estilos de negar a falta. O que nos faz deduzir que há um lugar que o sujeito
ocupa em relação ao desejo do Outro, e que há um lado desejo e um lado gozo. A tipologia é
uma diferenciação nessa trilha entre desejo e gozo. O sujeito vai criando cenas. Assim o
analista ao fazer a distinção tipológica tem acesso a uma ferramenta fundamental para a
direção do tratamento, que vai ajudá-lo nas intervenções onde está a fantasia.
Lacan nos adverte que “a fantasia perversa, tem uma propriedade que podemos agora
destacar.“ [...] há aí uma redução simbólica, que eliminou progressivamente toda estrutura
afinal de contas enigmático, porque guarda a carga - mas a carga não revelada, inconstituída,
não assumida pelo sujeito daquilo que é no nível do Outro a estrutura na qual ele está
111
Ora, o ponto que queremos ressaltar aqui, nesta afirmação de Lacan é o significante
este parágrafo, do seminário 4 , onde nos indica que “ [...] a tese de Lacan é que há uma
propriedade que deve ser sublinhada: a existência de uma redução simbólica que tem como
resultado uma dessubjetivação. Entendamos : um processo que equivale a uma anulação, uma
conserva todos os elementos da relação significante, mas em curto circuito. E, mais: um curto
circuito no nível do sujeito. Sobretudo, porque a redução simbólica tem como efeito uma
dessubjetivação.”(CABAS, p.184)
sujeito. Ocorre que como nos lembra Godino “Esse esvaziamento que emerge como um
proposição que já nos foi demonstrada, que ao coincidir com a dessubjetivação nos deixa
mesmo como objeto através do fetiche que faz função de véu, lugar da projeção imaginária.
112
Ora, sabemos que o sujeito aparece quando há uma questão e o sintoma quando há
uma solução. Embora falsa essa solução, aparece como uma resposta à angústia de castração.
com o qual tampona a castração feminina. Julien salienta que “[...] o fetiche é, portanto, uma
defesa contra a angústia do desejo da mãe, é bem por isso que ele tem a mesma função que a
fobia: colocar uma proteção em posto avançado diante do perigo de ser engolido pelo desejo
e não a partir do recalque, como ocorre na neurose. Os perversos que chegam à análise se
queixam que há uma dificuldade de colocar limite ao próprio gozo, revelando que há uma
Segundo Lacan, “Há neles uma subversão da conduta apoiada num saber-fazer, o qual
está ligado a um saber, ao saber sobre a natureza das coisas, há uma embreagem direta da
conduta sexual sobre o que é sua verdade, isto é, sua almoralidade.” (Sem.20, p.117)
Além disso, nesta estrutura há uma coincidência de desejo e gozo e a tentativa de fazer
existir a relação sexual. O fetiche, que é a prova clínica da estrutura equivale ao sintoma na
neurose.
o imaginário e o real afirmam que desde 1927, Freud, “[...] introduzia-nos no estudo do
fetiche indicando que ele deveria ser decifrado. Decifrado como um sintoma ou uma
mensagem. Ele nos diz mesmo em que linguagem o fetiche deve ser traduzido “Desde o
113
início, tal abordagem situa o problema de modo explícito no campo da pesquisa do sentido na
linguagem e não uma vaga analogia ao campo visual [...]” Dessa forma, “O imaginário é
Entretanto, quando Lacan avança ao longo de seu ensino chega a nos alertar que “A
perversão não é definida porque o simbólico, o imaginário e o real estão rompidos, mas, sim,
porque eles já são distintos, de modo que é preciso supor um quarto que, nessa ocasião, é o
representação, do dito. Como ocorre no “ato obsceno” ele mostra além da cena, revela o
primado, ou melhor, o que existe aquém da palavra – a imagem “[...] como se houvesse um
encurtamento do espaço entre a fantasia e o ato. “Na clínica o perverso mostra falando, -
tendo o analista como participante da cena perversa. As fantasias são encenadas. “[...] a
de mostração. O perverso se serve tanto do corpo como das palavras. O que ele quer é
Ora, se o perverso toca algo da realidade com o fetiche e, além disso, há algo de
fantasia no fetiche é com esse objeto que vamos operar na direção do tratamento.
A psicanalista Márcia Mello, que tem uma grande experiência com a clínica da
perversão, afirma que “quando rompe o vínculo com a realidade, a perversão substitui a
114
fantasia por um ato, atua na realidade ainda que insista na fantasia inconsciente. A diferença
do neurótico é que o perverso faz isso exercendo a “vontade de gozo” amparado no objeto
endereçado ao parceiro; evocando sua presença numa imagem, daí a importância do fetiche
estrutura perversa, cujo desejo sempre fracassa, por causa de sua posição fantasmática que
está sempre em continuidade com a realidade, sair dessa posição? Será que a partir de uma
mudança na posição de gozo o sujeito poderia terminar sua análise em direção a um saber
Ora, sabemos que em todas as estruturas existe algo em comum, isto é, todas sem
Diante dessa constatação, nossa tendência a partir da experiência clínica com tais
sujeitos é pensar que na perversão mais do que na neurose ou na psicose o sujeito precisa do
Todavia, consideramos que é nos deixando guiar pela estrutura que obteremos dela
seus efeitos, sem jamais esquecer que a formalização não nos exime de escutar a
certificar-se do efeito da linguagem. A estrutura é apanhada a partir daí. Daí, isto é, do ponto
115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
116
A Pele, suas Marcas e o Corpo:Fenômeno Psicossomático e Tatuagem
“Minha vida é o mar. Surfo desde pequeno e neste momento fui afastado destes instantes de
texto de Mishima4, Leonardo sente-se atraído para o mar. Nervoso, somente atinge momentos
partículas da areia ou ainda, no sublime ato de avistar no horizonte os primeiros raios solares
Ao mesmo tempo são o olhar e o som que o lembram freqüentemente que seu corpo
existe e encontra-se adoecido. Escuta os estalidos das feridas que rompem sua pele e
produzem vermelhidões espalhadas pelos joelhos, pernas e cotovelos e, portanto, são estas
mesmas feridas que ferem sua visão. Olhar seu corpo é insuportável, escutar a explosão das
1
Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano- SP. Coordenadora da Rede de Sintoma e Corporeidade- FCL-SP e
do Circuito Ponto de Estofo- MC-SP. Pós-doutoranda em Psicologia Clínica- USP- SP. Bolsista FAPESP.
tatiassadi@uol.com.br
2
Psicanalista. Membro da Escola do Campo Lacaniano-SP e do Fórum do Campo Lacaniano-SP. Coordenadora da Rede de
Sintoma e Corporeidade- FCL-SP e do Circuito Ponto de Estofo- MC- SP. Mestre em Psicologia pela Universidade São
Marcos. heloramirez@gmail.com
3
Todas as falas em itálico são do analisante.
4
Mishima (1987). Morte em pleno verão. Contos. Rocco.
117
Estes são os motivos que levam este jovem a procurar análise depois de tentar várias
intervenções para sua afecção de pele: a psoríase. Freqüentou médicos, buscou tratamentos
fala de outrem recebeu a indicação da psicanálise como uma direção ao seu mal estar.
consultório relutando em falar. Não podia acreditar que uma “terapêutica” pela fala pudesse
afetar seu corpo. Demandava uma cura do corpo e retornar ao mar, sem se envergonhar de sua
- Tenho lesões por todo corpo que fazem uma espécie de desenho assombrado.
corporais. Gesticula, aponta os dedos para as partes do corpo em que foi invadido pela
psoríase e esbraveja utilizando um vocabulário de baixo calão. Mostra a parte inferior das
pernas levantando as calças em uma convocação do olhar da analista. Ao falar das lesões
118
Abro um parênteses para dizer que em nossa experiência clinica na Rede de Pesquisa em
características que se repetem na fala ou mesmo em gestos daqueles que nos foram
encaminhados com lesões dermatológicas, por exemplo: o não pudor em mostrar o corpo
invadido por uma lesão ou a vergonha como causa e impossibilidade da quebra dos laços
sociais ou para além disto, a impossibilidade de falar sobre sua afecção de pele.
nestas repetições clínicas decidimos escutar as hipóteses relativas ao aparecimento das lesões.
Para nossa surpresa, num primeiro tempo, nada era possível dizer sobre o vitiligo, a psoríase
traçar hipóteses para suas lesões, e, como segundo tempo, ou conseqüência desta tática, eles
E foi desta maneira que aconteceu com Leonardo. Suas primeiras lesões apareceram
quando ele era ainda uma criança, aos seis anos. Naquela época era briguento e rigoroso com
seus afazeres e como resultado estava sempre de “cabeça quente”. Certa vez enquanto
pensava insistentemente sua cabeça esquentou e uma coceira súbita surgiu no couro cabeludo
de onde soltaram-se “casquinhas escurecidas”. Como remédio para este ardor a mãe, sábia e
protetora, receitou-lhe que esfriasse a cabeça. Explico. Esfriar a cabeça para ela era uma
forma de barreira ao pensamento, era preciso mergulhar no mar gelado para construir este
5
Estas
três
lesões
de
pele
foram
as
que
trabalhamos
nos
Hospitais:
Escola
Paulista
de
Medicina-‐SP;
Policlínica
de
Mogi
das
Cruzes
e
Universidade
do
ABC.
119
dique. Lembra-se que depois deste feito tanto a coceira quanto a escamação melhoraram
porque havia obtido uma nota baixa em uma avaliação escrita na escola e como punição pela
indisciplina e irresponsabilidade teve uma escamação capilar que lhe causava inibição diante
dos colegas.
Aos 16 anos, portanto, 10 anos mais tarde, depois de ter fumado maconha com os amigos
atropelou uma pessoa de bicicleta. Sem saber como reagir e com medo das conseqüências que
teria que assumir fugiu da policia refugiando-se nos braços da mãe. No mesmo instante que
escapou à punição social sentiu a carne arder em chamas, como se estivesse queimando e
placas vermelhas se espalharam por algumas regiões do seu corpo. Dias depois estas placas
começaram escamar e obteve o diagnóstico de psoríase. Sem saber o que este “palavrão”
significava, ingeriu alguns remédios que não se recorda quais foram e espalhou pelo corpo
cremes, sendo assim, após dois meses sua pele voltou ao normal.
Mais um episódio ocorrido 10 anos depois. Aos 26 anos, quando ainda namorava, depois
de levar sua garota ao aeroporto para uma visita familiar, ele estacionou seu carro em um
encontrou uma amiga dos tempos da faculdade, trocaram olhares e subitamente sentiu-se
atraído por ela. Instantes depois de uma pequena conversa dirigiram-se ao motel. Enquanto
faziam sexo Leonardo sentiu que algumas regiões de seu corpo estavam “rasgando de tanto
6
Nota-‐se
claramente
o
efeito
de
sugestão
a
partir
da
fala
do
outro.
120
calor”, uma coceira intermitente o envolvia e quando foi se vestir verificou novas placas em
De dez em dez anos um episódio tomado como fora da lei, como contravenção moral
aplacavam Leonardo que era punido pela psoríase. Sua hipótese era de que a doença tomou o
clinica psicanalítica. Algo acontece com estes sujeitos endereçando à ordem do escrito e na
maioria dos casos os psicanalistas não sabem lê-lo. “Tudo se passa como se algo estivesse
signatura, de hieróglifo, de traço unário. Sobretudo, nos debruçamos sobre estas premissas
para abordar a tática da psicanálise neste caso clinico apresentado pela lesão de órgão, ou
como pronunciado por Lacan em 1966, por uma questão epistemo-somàtica. A indagação
estavam postas: se existe um escrito no corpo, dado a não ler, qual a responsabilidade do
Pois bem, neste caso em particular um ponto nos surpreendeu para além da lesão de pele.
Contou Leonardo que fez todo o tipo de tratamento, inclusive ingeriu remédio biológico, que
7
Homofonicamente
maldição
e
mal-‐dicção.
8
Lacan,
J.
(1998)
Conferencia
em
Genebra
sobre
o
sintoma
(1975).In
Opção
Lacaniana
n.
23.
Dezembro
de
1998.
p.
13-‐14-‐
São
Paulo.
121
somente é prescrito em casos em que todo o corpo do paciente é tomado pela afecção. Vale
salientar que suas marcas eram localizadas em zonas de atrito, tais quais joelhos e cotovelos.
sociais. No entanto, sua vida foi desregrada em assuntos sexuais e de uso de entorpecentes.
freqüentes. Como marco para esta mudança subjetiva tatuou na pele o mar e um lutador de
jiu-jitsu, conseguindo eternizar na carne seu amor pelo esporte e sua “salvação da vida
mundana”.
Com a aparição “dela”, como Leonardo designou a lesão de pele, teve que parar de lutar
porque a psoríase seria mais propensa a aparecer quanto maior o atrito da pele. Como nenhum
dos tratamentos regrediu sua lesão após seus 26 anos optou por adornar sua pele com
pequena tatuagem do mar foi ganhando contornos mais definidos, espécies diferentes de
peixes e vegetação surgiram em regiões que a psoríase formava uma borda. Um coqueiro foi
pintado em uma das pernas e um sol em outra. As marcações corporais foram se expandindo
pela extensão de sua pele para tentar compor junto com o desenho um cenário que apagaria a
lesão.
Em contrapartida, o que Leonardo não contava era que a psoríase, como uma “praga”,
aumentou com os contornos da tinta colorida no órgão pele. Conclusão: ele não sabia mais
122
aonde começava sua tatuagem e, tampouco, aonde terminava sua psoríase. As marcas foram
Ana Costa em seu livro Marcas Corporais e tatuagens (2003) recorta dos textos de Lacan
duas passagens em que o ato de tatuar é questionado. O primeiro deles, e dizemos, não é uma
ordem cronológica, surge em Subversão do Sujeito e dialética do desejo de 1966. Ali Lacan
apresenta uma metáfora de um escravo que porta uma mensagem tatuada em seu couro
cabeludo. Sem que soubesse da tatuagem, tampouco do seu conteúdo ele transporta a
mensagem que poderia ser sua própria condenação a morte. O comentário de Lacan ao
debruçar-se sobre esta passagem diz respeito ao elo da pulsão com a tatuagem, deste tanto,
enfatiza o corpo como depósito de traços invisíveis e incompreensíveis que podem ser
materializados e endereçam a uma leitura. Neste sentido, estamos diante de uma contradição
em relação aos fenômenos psicossomáticos segundo o que Lacan nos apresenta na citada
Conferência. Estes fenômenos são dados a “não-ler”. Pode-se então levantar uma idéia de que
a tatuagem pede um olhar, uma decifração, ou seja, a busca de um lugar no amor do outro,
convocando um sentido?
psicanálise (1964) atrela a tatuagem a uma função erótica. Poderia, deste feito, ser lida como
uma encarnação do órgão, diferente dos cortes e cicatrizes que apontariam para um
seria a do traço unário. E continuando através desta lógica, Lacan comunga, no mesmo
123
seminário, da idéia de que o traço unário se marca como tatuagem, como o primeiro dos
significantes, operando assim no nível da contagem, instituindo uma diferença que singulariza
o lugar do sujeito.
Capturadas por esta construção remetemos o leitor novamente a um pequeno passeio pela
Conferência em Genebra, lugar em que Lacan pontua que no FPS estamos diante da lógica do
reduzi-los a um sentido único. Nosso objetivo é articular, se possível for, as duas aparições
No percurso desta premissa que seguimos as pistas de Lacan. Foi em momentos distintos
de sua obra que falou sobre o fenômeno psicossomático. Vale-nos capturar um tempo em que
em seu seminário livro 2 ele o articula a uma inscrição ou impressão direta na carne.
Lembremos que estamos diante dos anos 55 e 56, quando 20 anos mais tarde, portanto em
1975 sua apresentação na conferencia destinada ao sintoma é que a lesão poderia ser tomada
pela inscrição significante na carne. Uma tradução para esta consideração é a de ocorreria um
Alguns psicanalistas baseados, sobretudo, nas concepções feitas por Lacan9 sobre o
hipótese que nesta formação fenomênica não aconteceria uma holófrase total, mas,
9
Lacan,
J.
Os
quatro
conceitos
fundamentais
da
psicanálise.seminário:
livro
XI.
124
especialmente uma holófrase local, situada no par S1S2, impedindo o deslizamento na
cadeia significante. Todavia, isto não atestaria a ausência do desejo, sua foraclusão, o
mecanismo desta holófrase local, estariam congelados, gelificados, isto quer dizer,
Logo, tocar os fenômenos pela via do significante, da decifração seria uma operação
articulando o gozo a metonímia, podemos chegar a conclusão que estamos diante do objeto
Algo nos faz questionar que o axioma o inconsciente estruturado como linguagem,
tendo o significante e a interpretação como suas molas propulsoras não são suficientes para
como um gozo especifico que poderíamos apostar ser um gozo Outro, situado na
articulação borromeana entre real e imaginário. Assim neste gozo haveria uma fixação
Pode-se concluir que o Fps surge na clinica muito mais como uma resposta do que
125
No sintoma temos uma mensagem dirigida ao Outro e uma cifra que demanda
decifração, enquanto que no FPS temos algo escrito no corpo, marcado na carne. Mas, a
questão que não faz calar é se tomamos os últimos ensinamentos de Lacan, sobretudo
naquilo que diz sobre o sintoma como acontecimento de corpo, tanto o sintoma como o
seus significantes mestres enquanto que psoríase seu significante isolado. Ou melhor, o
que o representava de fato como sujeito era ser marcado, ser um carne viva- um
fazia peripécias e ele era quem era “marcado na carne” . O pai pegava um chicote de cavalo
e o castigava, o irmão o acusava e ele não sustentava pela palavra sua inocência. Como
sempre moraram no litoral passear no mar transformou-se em sua rotina.. Contudo, como
tinha a pele muito clara ficava vermelho com o excesso do sol e com a tez “escamando, em
carne viva”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Ramirez e Tatiana Assadi. São Paulo, Editora Anna Blume. ( no prelo)
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Paulo
126
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psicossomático. Psychê, São Paulo, p. 81-96.
ASSADI, T. C. e outros. (2003). O menino e o efeito pirilampo. Um estudo em
Psicossomática. Ágora, Rio de Janeiro, v. 6, p. 99-114..
Costa, Ana. (2003). Marcas Corporais e tatuagem. São Paulo, Casa do Psicólogo.
LACAN, J. (1985). O Seminário: livro 2: o Eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise. (1954-55). Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editora.
127
Sintoma: ruído da alíngua1 no corpo
Silvia Amoedo2
Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita.
(Clarice Lispector)
Pode-se dizer que o sintoma é um ruído da alíngua no corpo? Dos casos clínicos
para o próprio sujeito e que dá corpo ao corpo do ser falante, antes inerte. Como representante
Lacan dá ênfase às coisas ouvidas antes da aquisição da linguagem, quando a criança ainda
não tem acesso ao sentido do significante, o que denomina de a alíngua, cuja impressão sobre
o corpo deixa vestígio que ressurge, do real, como ruído no corpo, anunciando o impossível
da relação sexual. O sintoma é um evento corporal, solução para a des/ordem, divisão causada
latim casus, que quer dizer aquilo que cai. Caso é também acontecimento, eventualidade,
qual correm as palavras que tentam dizer da impossibilidade do leito conjugal e do leito
continuam, para todos aqueles que se debruçam sobre a fonte freudiana, jorrando no processo
que sustenta, com substância de gozo, o corpo do ser falante? O que se pode escutar, na
relação analítica – que dispõe precisamente da linguagem como instrumento –, do eco desse
evento corporal constituído de alíngua, antes da linguagem? São as pulsões no corpo, segundo
Lacan, o eco do fato de que há um dizer [...] é preciso que o corpo lhe seja sensível
(1975/1976, p.18).
Para abordar essas questões, pretendo, com recortes clínicos, seguir alguns dos
rastros deixados no divã. A palavra do analisante é o meio através do qual a psicanálise opera.
sujeito vacila, quando diz ou duvida e, ainda, quando não consegue sequer dizer, como mostra
a experiência analítica.
O sujeito A., após ter-se submetido a vários tratamentos para uma dermatite de
contato, procura análise quando conclui que o saber médico falhara em seu caso. Sobre o
sintoma, ela sabe que se trata de uma reação alérgica da pele, quando entra em contato com
alguma substância; mas qual substância? A pele coça, formam-se bolhas, que viram feridas,
seca e descama, num ciclo que se repete desde que A. se entende por gente. Ela se queixa:
129
Isso faz com que eu não trabalhe na minha profissão e não tenha relação sexual com ninguém!
E, coçando a pele, passa a discorrer sobre suas impressões: sentia uma sensação estranha de
satisfação, quando criança, ao escutar o ruído das unhas de sua mãe coçando as costas de seu
pai. De súbito, ela associa essa lembrança com a satisfação e o ruído que escuta ao coçar as
próprias feridas do corpo. Encerro a sessão com a pergunta: Que ruído é esse no corpo? O que
Para que um dito seja verdadeiro, é preciso ainda que se o diga, que haja nele um
dizer, (1972, O aturdito, p. 449). O sujeito A. diz que a cena tinha uma conotação sexual, que
se expressava nos sussurros que seu pai emitia. As feridas servem, então, como barreira, para
me impedirem de tocar ou ser tocada por outro corpo? – pergunta. Isso é uma contradição:
não faz sentido! – afirma, admitindo que gosta muito de tocar e ser tocada. Mas a pele
des/camada continua a coçar, como se quisesse dizer coisas que não são do sujeito, para
cessar a sensação indefinível que o prurido provoca e o consequente ruído que causa
desordem.
O sujeito B., por sua vez, sofre com os desarranjos que o acometem cada vez em que
é confrontado com uma situação em que tenha que dar prova de sua virilidade. A pré/tensa
relação sexual, como diz, configura-se como o maior deles e, só de pensar, a barriga começa a
fazer um barulho estranho, ronca sem parar, culminando numa desinteria que o deixa sem
consistência. Ele se lembra de que, quando criança, se excitava quando ficava acordado na
cama escutando barulhos vindos do quarto dos pais, e só dormia depois de ouvir os roncos do
pai, quando se assegurava de que não haveria mais relação sexual entre eles. Isso o atordoava.
130
Pontuo: Sua barriga também ronca! Como indica Lacan (1975-1976), só é possível liberar
algo do sintoma pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no
experiências esquecidas. Esse barulho retorna: Sonhei que tinha relações sexuais com uma
mulher, uma mulher muda – relata. Diz que as mulheres, quando falam o acessam, mas que
nenhuma mulher pode acessá-lo por inteiro, senão ele esgarça, como um tecido. E acrescenta:
O melhor encontro sexual é mesmo no silêncio! O dito encobre um dizer – o real – que ex-
siste no sujeito e que se anuncia assim: não há relação sexual – senão como interdição, no
silêncio. Em Alíngua também é nó, diz Gerbase (2010, p. 65): ainda que se possa representar e
discernir os ditos resta sempre algo que não se representa e que não se diz. A palavra falta e
Sintoma do real? De que se trata? Sim, quero a palavra última que também é tão
primeira que já se confunde com a parte intangível do real (Lispector, 1998, p.12). Seguir o
fio do discurso analítico, segundo Lacan (1972-1973, p. 61), tende para refraturar, marcar
Retorno às fontes freudianas, aos primórdios, quando Freud concebe o sintoma como
Freud (1896, p. 185) constatou que, em qualquer caso e em qualquer sintoma, chega-
na etiologia das neuroses, como substituto sexual, já tivesse chamado a atenção de Freud
desde as primeiras observações clínicas, naquela ocasião, como ele mesmo disse, ele não
tinha ainda aprendido a reconhecê-la como seu destino inexorável, como impossibilidade da
relação sexual.
conduziu Freud a elaborar a hipótese sobre o inconsciente, que Lacan, em seu retorno a Freud,
enunciou como estruturado como uma linguagem. Com a linguagem, como diz Lispector
(1999, p. 176): Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma
linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A linguagem é a
matéria-prima, o real é o lugar onde vou buscá-la – e como não acho. Posteriormente, Lacan
acrescenta que o inconsciente é estruturado como uma linguagem nos efeitos de alíngua, que
já estão lá como saber, vão bem além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar
imaginário, o corpo que encontra unidade com a antecipação da imagem corporal, quando a
criança, capturada pelo engodo especular, fabrica fantasias, que vão desde uma imagem
despedaçada do corpo até a forma da totalidade deste. Mas é a linguagem que concede ao ser
132
falante um corpo simbólico, esteja ele vivo ou morto. Com a sepultura, da morte emerge o
símbolo que preserva o corpo do ser vivente. O simbólico tem, portanto, relação com a
frase poética, que vale ao mesmo tempo por seu tom, sua estrutura, seus trocadilhos, seus
ritmos, sua sonoridade. Tudo se passa em diversos planos, e tudo é da ordem e do registro da
linguagem (Lacan, 1953, p.24). Como observa Lacan, os sintomas de Dora, caso clínico de
Freud, são elementos significantes, mas na medida em que sob eles corre um significado
1957, p.149).
Sobre a linguagem, diz Lispector (1999): A linguagem é meu esforço humano. Por
destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o
indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Pode-se
dizer que a linguagem toca o gozo – o indizível, o encontro do real como mostra o sonho
paradigmático do Homem dos lobos: “Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama.
[...] De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos
brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles.
[...] Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei” (FREUD,
Além da sensação duradoura de realidade que o sonho deixou após o despertar, dois
fatores foram destacados pelo paciente: o olhar atento dos lobos, como se tivessem fixado
133
toda a atenção sobre ele, e sua própria imobilidade diante desse olhar. Por trás do conteúdo do
sonho, existia provavelmente uma cena desconhecida, que ocorrera havia muito tempo.
Em A terceira (1975), Lacan diz que o sentido do sintoma é o real, que retorna sempre
ao mesmo lugar, que não cessa de se repetir para impedir o andamento das coisas – uma pedra
sucesso no sentido de todos; por outro lado, no sentido do um, do singular, as coisas
dos sujeitos A. e B., nomes de gozo do sintoma, identificadores do ser falante. Ruído e ronco
REFERÊNCIAS
FREUD, S. A etiologia da histeria (1896). In: Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 3.
______. História de uma neurose infantil (1918 [1914]). In: _____. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 17.
GERBASE, J. Alíngua também é nó, 2010.
LACAN, J. O Seminário – livro 4: a relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Zahar,
1995.
______. O Seminário – livro 20: mais ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
______. O Seminário – livro 23: o sintoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, ?
______. O simbólico, o imaginário e o real (1953). In: Nomes-do-Pai. Tradução André Telles.
Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
______. Joyce, o Sintoma (1976). In: Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Zahar, 2003.
134
______. A terceira (1975). Inédito.
LISPECTOR, C. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
______. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
135
Considerações sobre o gozo em um caso clínico de psoríase1
“... o que mais existe de mim mesmo está do lado de fora, não tanto porque eu o tenha
projetado, mas por ter sido cortado de mim...” (Lacan, 1962-1663)4
Helena fora indicada para fazer análise por outra paciente que também “lutava contra a
psoríase”, uma indicação que passou sem dúvida pela suposição de saber uma vez que a analista
Psicológicos do Paciente com Vitiligo e Psoríase” ligado à Rede de Sintoma e Corporeidade do FCL-
SP. No entanto, nesse primeiro momento a transferência não estava colocada na suposição de saber
sobre o sujeito do inconsciente, como é de se esperar em um caso de análise, mas numa suposição de
saber sobre o objeto psoríase, com o qual Helena convivia há muito mais de 30 anos. Tanto foi assim
que pediu à analista a indicação de um médico que pudesse ajudá-la a se livrar de uma vez por todas,
“dessa coisa horrorosa”, disso que “impregnou seu corpo”. Mostrou-se esperançosa e reanimada pela
1
O trabalho desenvolvido no Instituto da Pele da UNIFESP nos colocou em contato com a psoríase, doença de pele que no
Brasil atinge mais de cinco milhões de pessoas. Trata-se de uma afecção crônica de causa desconhecida que pode se
apresentar desde formas mínimas com pouquíssimas lesões até a chamada psoríase eritrodérmica, na qual toda a pele se
encontra comprometida. A forma mais frequente é a psoríase em placas, que se caracteriza pelo surgimento de lesões
avermelhadas e descamativas na pele. Em boa parte dos casos, considera-se que fenômenos emocionais estão relacionados
com o surgimento ou o agravamento da psoríase, associado a uma predisposição genética para a doença. O mal estar
geralmente é causado pela coceira e pelo prurido provocado, e, especialmente, nos casos mais severos, pelo aspecto das
lesões.
2
– heloramirez@gmail.com
3
– tatiassadi@uol.com.br
4
LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia[1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
136
cuja expectativa era por um fim às feridas de seu corpo, mais a ajuda da psicanálise. Lacan em a
Terceira 5 diz existe uma expectativa de um êxito da psicanálise: “O que lhe pedimos é que ela nos
livre tanto do real quanto do sintoma”. Mas sabemos, enquanto psicanalistas, que não é deste lugar
que devemos responder. Foi justamente isso que me fez rever este caso, pensar o que operou e qual
foi o manejo que produziu um efeito terapêutico e reduziu a psoríase à zero. Diferentemente da
demanda médica cujo princípio é eliminar o sintoma, para a psicanálise “o sintoma é uma formação
de gozo singular determinada ou ordenada pelo inconsciente”6, e atua como ‘solução’ uma vez que
surge na suplência ao “corpo a corpo de gozo”. A questão que está posta é “saber se e como a
psicanálise, que opera pela palavra, dá um acesso eficiente a algo do corpo que seria real.”7
O que da história de Helena foi subtraído e inscrito no real do corpo? Nos primeiros encontros
com o dispositivo de análise ela se limitou a descrever o longo percurso que trilhou e os detalhes da
sua peregrinação na busca de algo que resolvesse sua psoríase. A analista manteve o silêncio durante
boa parte das entrevistas, e que foi interrompido pela a questão: “Pare... Diga-me o que veio fazer
aqui?” Surpresa pela repentina interrupção em sua falação, Helena consegue responder: “eu sei que
boa parte do meu mal tem a ver com minha cabeça. Eu sei que tudo tem a ver com o meu emocional.
Eu sei que você pode me ajudar”. Estabelecia-se aí um reposicionamento da analista, o início de uma
Foi o choro convulsivo e copioso o quê marcou, daí para frente, as entrevistas
preliminares. Ao sentar-‐se na poltrona do consultório, invariavelmente, a garganta de Helena
5
A
Terceira.
7°
Congresso
da
Ecole
Freudianne
de
Paris,
31/10/1974
6
Soler,
C.
“Sintoma,
Acontecimento
de
corpo”
in
Caderno
de
Stylus
“O
Corpo
Falante”.
RJ,
EPFCL,
2010.
(p.31-‐
52)
7
Soler,
C.
“A
psicanálise
e
o
corpo
no
ensino
de
Jacques
Lacan”
in
Caderno
de
Stylus
“O
Corpo
Falante”.
RJ,
EPFCL,
2010
(p.65-‐91)
137
se
embargava
impedindo-‐a
de
falar
livremente.
Sua
voz
se
ouvia
entrecortada
por
soluços,
sons
tempo para que se recuperasse da angústia que a experiência suscitava até que pudesse
articular alguma fala. Em algumas sessões apenas sons, sem sentido, nenhuma palavra, não
sabia o que dizer e nem porque o choro aflorava quando estava com a analista. Helena não
compreendia o que se passava, era algo mais forte do que ela, alguma coisa que fugia ao seu
controle. Estes episódios me fizeram pensar em algo como uma re-‐atualização de lalíngua.
Seria possível? Um som separado de sentido, mas afetado, gozado pelo corpo, um som re-‐
atualizado na experiência de análise de uma erupção de gozo cuja origem aconteceu mesmo
antes da fala primeira? Esta é uma questão que merece consideração maior e que deixo aqui
Extraí da história de Helena alguns pontos importantes para relatar. Somente agora que
ela estava com quase 60 anos resolvera procurar por uma análise. Vivera toda sua vida abalada
pela tristeza. “Sozinha” não tinha com quem contar. Havia muito tempo que sua família se
“acabara”. Hoje só tem um irmão vivo e não consegue se entender com ele. Mas, sempre foi
assim: “sozinha”! Tinha apenas dez anos na época em que sua mãe morrera, foi terrível porque
“ainda precisava muito dela”. Na verdade, Helena começou a sentir a falta da mãe pelo menos
uns dois anos antes de sua morte quando a doença começou a se agravar e a se tornar
insuportável. Ela definhava a cada dia e sua ausência se fazia sentir em presença. Lembra-‐se
que ela gemia e chorava baixinho e que de seu quarto podia ouvir os seus ais e os soluços de
dor. O vômito e as cusparadas também faziam muito barulho, ficavam ecoando em seus
138
ouvidos
ao
ponto
de
precisar
tapá-‐los
para
conseguir
dormir.
Recorda-‐se
da
impotência
do
pai
diante da doença da mãe e relata uma cena onde o vê sentado numa cadeira, com as mãos na
cabeça como se a apertasse, chorando desesperado “feito uma criança. Me deu muita pena dele,
Outras cenas, porém dantescas, povoavam seus pensamentos. Na primeira delas, sua mãe
encantrava-‐se sentada à beira da cama, muito pálida, segurando nas mãos um penico cheio de
sangue. “Ela cuspia sangue. Era um horror”. Aquele foi um período marcado por uma série de
acontecimentos carregados de desalento e que ficaram para sempre em sua memória. No dia
em que a mãe morreu Helena voltou da escola e levou um grande susto. Ao entrar na sala
deparou-‐se com o caixão iluminado apenas pelas velas acesas em meio à sala escura. Naquele
tempo era costume velar os mortos em casa e forravam-‐se as paredes com um pano preto
numa demonstração do luto em que se viam envolvidos os familiares já que o preto era a
representação do nada da ausência e da escuridão. Helena disse que foi um “horror” tão grande
que ela saiu da sala gritando e chorando. “O meu pai teve o bom senso de não me deixar ir ver o
enterro dela”. Helena diz que “o mais impressionante” acontecimento daqueles tempos foi o
fato de que para ela era como se a mãe não tivesse morrido. Passou anos mentindo para as
colegas do colégio, fingindo que sua mãe estava viva. Quando alguém perguntava pela mãe ela
tinha sempre uma resposta pronta ou criava uma nova história. Dizia: “minha mãe não gosta;
ou minha mãe não quer que eu fique na rua; minha mãe não deixa; tenho que ir para casa
porque minha mãe tá esperando, etc.”. Deixou de participar da festa de formatura do colégio
porque não tinha como apresentar a mãe. Estas lembranças foram, nas sessões, sempre
139
acompanhadas
de
muita
angústia
e
comoção.
Helena
demanda
da
analista
uma
resposta
sobre
a razão de fazer o que fazia. Porque não dizia que a mãe já estava morta? “Tem de haver
alguma razão, sabe eu sinto falta dela até hoje. Morrer o pai é difícil, mas a mãe...”
Foram mais de dez anos alimentando a fantasia de que a mãe estava viva. Uma estratégia
para não sofrer a dor do luto. Sem perda, não há separação. Foi à concreção imaginária do
objeto de amor perdido que garantiu a Helena sustentar a falta que a mãe lhe fez privando-‐a de
proteção e amor. A invocação deste espectro assegurava-‐lhe a ilusão de que ela estava viva
suprindo-‐a, desta forma do desamparo avassalador. Não era uma visão fantasmagórica no
contrário era uma fixação, uma obsessão protetora que garantia sua sobrevivência dando-‐lhe
forças para o: “eu aprendi tudo na rua, do jeito que deu, com as amigas”. Levanto aqui a
hipótese de que esta não era uma simples falta que se substituiria por algum outro objeto, mas
algo com valor de um furo, insubstituível, que fazia desaparecer o lugar na combinatória, a falta
no lugar do Outro. Helena não conseguiu re-‐atualizar esta falta fundamental, porque não havia
a condição para isso: não tinha ao seu lado o Outro desejante. O lugar desde sempre vazio que
não pode ser ocupado pela mãe, ela própria impotente, abriga o seu fantasma como forma de
cerzidura. “É na medida em que a criança descobre que o Outro deseja, que poderá, por sua vez,
desejar sob a forma de um objeto que lhe retornaria como falta”.8
cena,
a
do
sangue,
certamente
faz
referência
à
dimensão
do
real
apontando
para
um
objeto
não
8
Nasio,
J.-‐D.,
Psicossomática
–
As
formações
do
objeto
a.
1993
RJ,
JZE
.
140
especular
próprio
da
sexualidade
feminina.
A
segunda
cena
mostra
o
horror
à
morte
irrompido
pela presença implacável do corpo inerte, sem vida. Cenas que apontam para o real em jogo e
Os primeiros pontos de psoríase apareceram nos joelhos e cotovelos logo depois que se
menstruou pela primeira vez. Ficou apavorada. Não tinha com quem falar sobre isso. Não sabia
muito bem o que fazer com todo aquele sangue. Teve que se “virar” sozinha. Passando o impacto da
menarca começaram a aparecer os primeiros pontinhos vermelhos, que só a incomodavam pelo fato
de coçar. Fez inúmeros tratamentos, passou por dezenas de médicos dermatologistas e outras opções
alternativas. Por ser um a doença crônica enfrentou diversas crises, de maior ou menor amplitude ao
longo de sua vida. Em determinada ocasião atravessou uma bem forte em que teve sua pele afetada
em quase 70%. As lesões estavam muito feias, a pele escamava e coçava sem parar. Como estava
“muito atacada” da psoríase, procurou um curandeiro de quem havia obtido ótimas referências. Ele
lhe ofereceu uma medicação cuja fórmula era composta com uma boa dose de cortisona. Helena
sabia que a formulação continha a droga, mas não sabia dos efeitos colaterais que ela provocava e
fez uso contínuo da solução. A psoríase desapareceu no tempo em que usou o remédio. Alertada pelo
farmacêutico que lhe aplicava as injeções e diante do inchaço que apareceu em seu rosto parou de
usar a medicação. O efeito rebote9 foi imediato, “um horror”, se viu atacada por uma psoríase
extremamente acentuada. No entanto, esta experiência foi importante para que conhecesse o efeito
que a cortisona tem de “limpar” a pele quase que instantaneamente. Daí para frente Helena passa a
fazer um uso conveniente do remédio sempre que tinha um encontro com alguém e sua pele estava
9
O
efeito
rebote
é
a
tendência
que
um
medicamento
tem
de
provocar
o
retorno
dos
sintomas
que
estão
sendo
tratados.
Em
casos
extremos
de
efeito
rebote
o
reaparecimento
dos
sintomas
poderão
ser
mais
graves
que
no
início
da
doença.
141
“atacada” besuntava-se com uma pomada e se livrava do constrangimento de sentir a mão do
companheiro no seu corpo áspero. Estes eram tempos de amor quando oferecia seu corpo,
Porque privilegiar esta história e o que nesta história foi pinçado como fundamentação da
clínica? Seguramente, porque aqui repercute a forma como foi escrita e que se repete quase
que invariavelmente em outros casos que temos atendido no Instituto da Pele quando se trata
de algo como psicossomática. Foi escrita no corpo, ou melhor, inscrita no corpo, incrustada na
carne em forma de lesão, uma linguagem que não passou pela simbolização, uma escrita
hieroglífica, ilegível, indecifrável, mas, que pode perfeitamente se revelar, já que fenômeno
Retomando a teoria, na fundamentação do fenômeno psicossomático o que ocorre é uma
cola em S2, sem o intervalo que possibilita a divisão do sujeito. Como não existe intervalo, não
existe também objeto perdido, estilhaços pulsionais. O sujeito é compactado ao objeto. É como
se todo o narcisismo se concentrasse nessa “marca que é antes de tudo uma assinatura”... Além
disso, Lacan10 fala em auto-erotismo sem relação de objeto, e precisa, “que a indução
significante, no nível do sujeito se passa de um modo que não coloca em jogo a afânise”,
10
LACAN,
J.
(1961)
O
Seminário.
Livro
11
–
Os
quatro
conceitos
fundamentais
da
psicanálise.
Rio
de
Janeiro,
JZE,
1973
–
3ªed.,
p.
215.
142
referindo-‐se
a
uma
espécie
de
bloqueio,
“de
congelamento
do
significante
no
corpo,
um
curto
Isso significa que o sistema significante perde sua consistência, já que um significante não
se remete mais a outro significante. Assim, conforme Nasio12 “há um objeto, e depois uma
chamada significante que não teve resposta significante, mas teve uma resposta de objeto. A
psoríase é uma resposta objeto para uma chamada significante, um significante remete a uma
psoríase.” Um significante é inventado que não é do Outro, é do Um, diferente dos outros e tem
significantes estão encarnados, ou ainda qual é a direção do tratamento diante da tomada de corpo
pelo fenômeno? Retomo Lacan13: “É por esse viés, pela revelação do gozo específico que há na sua
fixação que sempre é preciso visar abordar o psicossomático.” De que gozo específico se trata no
psicossomático? Trata-se de um gozo fora do sentido, um gozo que ex-siste ao sentido, um gozo
cortado da relação com o Outro, auto-erótico, um gozo do corpo próprio. Um gozo que nos remete a
uma foraclusão da significação fálica, portanto, do gozo fálico. No caso em questão vimos,
claramente, a prevalência do imaginário sobre o real. Não havia equivalência entre as consistências.
A estratégia foi fazer o sujeito trabalhar na elaboração do luto, isto é na simbolização do que há de
mais fundamental: o desamparo, o que incindiu no para além do horror. Para isso foi necessário, de
11
Este parágrafo também faz parte do artigo A Fantasia Encarnada: um estudo sobre o fenômeno
psicossomático. Heloísa Helena Aragão e Ramirez & Christian Ingo Lenz Dunker.
12
NASIO.
J.-‐D.
“Psicossomática”
–
as
formações
do
objeto
a.
RJ,
JZE,
1983.
13
In
Conferência
em
Genebra
sobre
o
sintoma.
143
fato, perder a mãe, o objeto amado, o que desencadeou sessões tão angustiantes. Paralelamente o
sujeito trabalhou com o gozo implicado no significante “sozinha” e no laço que isso fazia com a
psoríase, e com a dor, já que Helena “sentiu na pele” o abandono. “... pois o que eu chamo de gozo,
até mesmo da façanha. Incontestavelmente, há gozo no nível em que começa a aparecer a dor, e
sabemos que é somente nesse nível da dor que se pode experimentar toda uma dimensão do
Mas, Helena não conseguiu sustentar a experiência e vai-‐se embora. Diz para analista:
“chega não agüento mais, não quero mais sofrer, vou parar de vir aqui, não estou suportando!”
Restou à analista o sentimento de não ter sabido manejar adequadamente a angústia.
Pouco antes do Natal Helena mandou notícias por uma amiga. Pediu-‐lhe para me dizer
que estava muito bem, sem angústias e sem a psoríase. Estava “limpa de corpo e alma” e que
agradecia aos céus, todos os dias, o tempo em que esteve em análise. Foi bom saber disto. No
entanto, se o paciente melhorou ou não, não é disso que se trata se pensarmos no sintoma
como uma solução inconsciente dada por cada um “diante do enigma do corpo e seu saber”15. No
acontecimento de corpo dado pela via da histeria. É um fenômeno de corpo é “o despertar de
um corpo que em sua essência é silencioso.” 16 Não diz respeito à imisção do significante no
corpo, mas a uma fixação, a uma colagem do par S1 – S2. “Se evoquei uma metáfora como a do
14
LACAN,
J.
1966,
“O
Lugar
da
psicanálise
na
medicina”
in
Opção
Lacaniana
n°
32
15
Izcovich,
L.
O
Corpo
Sintoma.
In
Prelúdio
para
“O
Mistério
do
Corpo
Falante”
maio/2010.
16
Idem.
144
congelado,
é
porque
existe,
efetivamente,
essa
espécie
de
fixação...
O
corpo
se
deixa
levar
para
escrever algo da ordem do número.” 17 Exatamente por isso é que Lacan recomenda tratar o
psicossomático pelo viés do gozo. É preciso que o gozo tome um sentido. Assim, no manejo da
clínica com o paciente psicossomático é preciso fazê-‐lo trabalhar para chegar ao “sentido do
que se trata”, já que ele se encontra profundamente “arraigado no imaginário” e para dar
17 Lacan, J. (1975) Conferência de Genebra sobre o sintoma In Opção Lacaniana – Revista Brasileira de Psicanálise. São
145
Sinthome: o real do sintoma
deitado no berço, sofre os efeitos da lingua materna, que lhes deixam marcas indeléveis no
corpo. Tempo em que a linguagem para ele é ruído, ou rumores humanos, que lhes designa
um lugar no campo do Outro, como um sujeito “escuta-dor”. Ali, apenas se articulam letra e
gozo.
posteriori, deitado num divã, poderá se deslocar para a posição de um “fazer-dor” quando,
Na última lição do Seminário 20, Lacan diz que lalangue, não é, senão, “rastro de
gozo onde a linguagem cavalga sobre ela”. Daí se concluir ser o significante uma invenção a
1
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
-‐
Brasil.
Membro
do
Fórum
de
Fortaleza
146
A propósito da articulação entre lalangue e a construção do sinthome, pressupõe-se
que existe um meio. Esse meio é o “sintoma” do inicio de uma análise, que põe em cena o
sujeito “conta-dor”, que com seu sintoma , dirige-se ao analista na forma de demanda.
Sujeito, por que é ele quem fala, mas o quê ele diz é lalangue que fala nele, pois elucubrar
que algo desde o inicio permanece. Em Sintoma, Inibição e Angustia” Freud diz que “
sintoma é gozo”.
Para Lacan, no inicio de seu ensino, o sintoma era metáfora, mensagem dirigida ao
Outro, enigma, que uma vez desvendado, tinha efeito de verdade. Em “Função e campo da
fala e da linguagem”, embora ele diga, literalmente, que, “está perfeitamente claro que o
sintoma, por ser pleno de sentido, se resolve por inteiro numa análise linguajeira”, já faz
ao campo do simbólico, mas “escrito” sob o véu de Maia, não estaria também no campo do
real? A titulo de esclarecimento, a expressão “Véu de Maia,” é usada pelos orientais para
dizer que “ver algo sob o véu de Maia faz também existir o que não existe, tamponando
assim, a incompletude tão angustiante para o sujeito. Sem ele, sem o véu de Maia, constata-se
rapidamente o “nada”. Em RSI Lacan confirma isso ao afirmar que já estava na idéia do
147
A partir do inicio da década de 1970 Lacan se afasta do pensamento estruturalista,
onde o simbólico detinha primazia nas estruturas clinicas, para trabalhar com a perspectiva
de uma equivalência entre os três registros, e,a estrutura do sujeito passa a ser determinada,
Ao introduzir a teoria dos nós na segunda parte do seu ensino, o “discurso” cede lugar
Lacan alerta que “o efeito de sentido a se exigir do discurso analítico não é imaginário, não é
também simbólico; é preciso que seja real”. A assertiva anterior de que o simbólico faz furo
no real, sofre uma torsão e agora, é o real que faz furo no simbólico. Há um gozo no
significante irredutível à significação. Na clinica, não se trata mais apenas de escuta, mas
do que se “lê no que se escuta”. Por certo o sintoma está emaranhado em lalangue e é dado na
A teoria dos nós constitui a ultima elaboração de Lacan sobre o sintoma, chegando à
escrita do inconsciente por meio da cadeia borromeana. Nela o sinthoma surge como o
quarto elemento, que ao enlaçar os três registros - agora equivalentes entre si – produz uma
cadeia bo, e como nos lembra Lacan, “ se há equivalência, não há relação”. À falta de relação
sexual, o sujeito responde com o sinthoma: Cito: “ Sinthoma é a resposta que o sujeito
148
No Seminário 23, Lacan debruça-se sobre a obra de Joyce para teorizar a partir de
sua escrita. Para ele o escritor irlandês “acaba por ter visado com sua arte, de maneira
Artesão da literatura Joyce esculpe as palavras a partir de artifícios que cria com os
rejuntes e recortes de fonemas, rompendo com a significação e exibindo o que se pode fazer
com “lalangue”. Na conferência que Lacan proferiu no Bloomsday de 1975, ele batiza o
escritor pelo nome “Joyce, o Sinthoma” por ele ter feito, com sua arte, o sinthome.
Uma breve passagem do “Retrato do artista quando jovem” torna evidente as razões
que levaram a Lacan teorizar em cima da literatura de Joyce. Uma breve passagem do livro é
suficiente para nos dar essa clareza. Nela, Joyce consegue despir o significante ‘xuxu”de
“chuuuuuuuuuuu” , onde o leitor para lê-la terá que usar apenas a voz , provando que a
linguagem não se reduz apenas a produção de sentido. Por outro lado, a onomatopéia
comum à sua escrita, remete ao mecanismo dos sonhos que tem seu ápice em seu ultimo
trabalho “Finegans Wake” – narrativa densa que se inicia com uma palavra de 100 letras para
descrever uma queda, e que o leitor para lê-la também terá que usar a própria voz como
suporte da palavra, articulando a escrita com a função da fonação. A partir desses exemplos
149
Retornando à função do sinthome na estrutura do sujeito, parto da seguinte questão: o
Lacan não diz que Joyce era psicótico. Diz, para usar suas palavras, que Joyce tinha
“o pau um pouco mole”, e por isso precisou de sua arte para manter sua firmeza fálica. Sua
arte, para Lacan, é o verdadeiro fiador de seu falo, pois sem ela ele continuaria a ser um
pobre diabo e não o herói que toma corpo em Stephen Hero, do “Retrato...” Sua arte - seu
sinthome – fez funçao de S¹ que, ao dar força a seu ego, estabiliza sua estrutura ao torna-se o
pai que nomeia. E é claro, observa Lacan, que a arte de Joyce é alguma coisa de tão particular
que o termo sinthoma é de fato o que lhe convém, que enquanto suplência da carência do
Na primeira aula do seminário sobre Joyce, Lacan afirma ser o complexo de Édipo
como tal, um sintoma. É na medida em que o Nome-do-Pai é também o Pai do Nome, que
A fórmula da metáfora paterna no primeiro tempo de seu ensino nos trás o Nome do
pai operando como “S²”, em substituição ao desejo da mãe; agora ele surge como S1,
sintoma e sinthoma, e assim, afirmar que lalangue está lá desde o inicio, sendo ela a condição
da linguagem, e como observa Lacan “o equivoco toma conta de nossa lalangue, e o que ela
tem de mais picante é o que posso escrever como “mais isso não”. Se diz tudo, mas isso não.
150
Posso dizer que O mais isso não, aquilo que de lalangue não se pode dizer, é o que introduzo
Bibliografia
151
Sintoma e Fantasia Fundamental
Soraya Carvalho1
sintoma, este trabalho pretende esclarecer a relação entre esses conceitos em momentos
inconscientes na vida psíquica, bem como sua importância na formação dos sintomas,
diversificado em quatro: objeto seio, objeto fezes, objeto olhar e objeto voz. Para ele, a
Esse resto é o caráter real da fantasia, que Lacan reduziu a uma frase simbólica. E, se para
1
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
2
LACAN,
J.
Seminário,
livro
14:
a
lógica
da
fantasia
[1966/67]
Inédito
3
LACAN,
J.
Seminário,
livro
20:
mais,
ainda.[1972-‐73].
Rio
de
Janeiro:
Jorge
Zahar,
1982,
p.
171.
4
Id,
ibid.
[1966/67].
152
que a fantasia é a realidade do sujeito, a maneira como ele a organiza; e o desejo ancorado na
O sintoma, por sua vez, adquiriu diversas definições dentro da teoria psicanalítica. Em
Freud, ele foi o retorno do recalcado, o substituto de uma satisfação pulsional. Em Lacan, da
metáfora à letra, ele obteve definições como: “a maneira que cada um goza de seu
inconsciente5”, ou “o que faz existir a relação sexual”6, e, finalmente, o sintoma como produto
dos significantes de alíngua7. No presente artigo abordaremos a fantasia e sua relação com o
“A relação sexual não existe”, porque a linguagem não dispõe de um significante que
represente o gozo do Outro sexo, o que levou Lacan a concluir, “A Mulher não existe”. A
falta desse significante foi o que Lacan8 designou como a falha nos nós borromeanos,
responsável por tornar os sexos equivalentes. O sintoma faz suplência à falta desse
significante do Outro gozo, S(Ⱥ), ou seja, ao significante do Outro sexo, provocando a não
equivalência entre os sexos e fazendo existir a relação sexual. Para explicar como o sintoma
realiza essa suplência, cito Gerbase em Sintoma e fantasia9, onde ele propõe uma releitura do
texto freudiano de 1908, “A Histeria e sua relação com a bissexualidade”, mostrando como a
fantasia está implicada no sintoma, e como ela contribui na sua função de amarração. Nesse
artigo Freud afirma que "o sintoma histérico é a expressão simultânea de uma fantasia sexual
5
LACAN,
J.
Seminário,
livro
22:
RSI,
1975
–
Inédito.
6
LACAN,
J.
O
Seminário,
livro
23:
o
sinthoma,
[1975/76].
Rio
de
Janeiro:
Jorge
Zahar,
2007,
p.
98.
7
SOLER,
C.
Corpo
falante
Caderno
de
Stylus,
EPFCL,
2010,
p.23.
8
Id,
ibid,
2007,
p.
97.
8
Gerbase,
J.
Sintoma
e
fantasia.
Inédito
153
inconsciente masculina, e de uma fantasia sexual inconsciente feminina, introduzindo a
Gerbase afirma que “Uma fantasia é uma significação fundamental porque é o âmago do
sintoma, o último sentido a que posso reduzir o sintoma, a frase simbólica que o sintoma
expressa”. Deduzindo que “uma fantasia sexual inconsciente masculina é uma significação
fálica, e “uma fantasia sexual inconsciente feminina é uma significação não-toda fálica, uma
significação não-toda”. Desta forma, o autor propõe reescrever esta fórmula freudiana: “O
não-toda". De modo que o sintoma histérico, modelo de sintoma por excelência, é composto
pelos dois significantes que nomeiam o gozo, o significante fálico, [Φ], ou seja, aquele que se
pode escrever e pelo significante do Outro gozo, aquele que não se pode escrever. Dizer que
não se pode escrevê-lo não quer dizer que ele não exista.
O sintoma faz existir a relação sexual porque ele faz semblante ao significante do
Outro gozo, e a fantasia, ao possibilitar uma significação do Outro gozo e do gozo fálico,
fantasia, portanto, colabora com o sintoma, tornando sua tarefa menos “árdua”, na medida em
que o gozo ligado à fantasia toma a via do prazer, enquanto que, no sintoma, o gozo se
escreve pela vertente do desprazer. Por esta razão a fantasia vai se constituir numa recordação
sexual, enquanto que o sintoma, ao compensá-la, possibilita sua existência. O sintoma faz
suplência a essa falta, justamente porque ele traz, em sua essência, na fantasia, a significação
154
a essa falta. “A fantasia é uma significação a essa falta, a esse enunciado – para todo falasser
de sua falta-a-ser à sígno do seu ser de gozo11. Quanto ao gozo, em sua tese inicial, ele é
afetado pela linguagem, operação que produz como efeito, uma subtração de gozo. Na tese
posterior, o significante está no nível do gozo, o significante é objeto de gozo, ele é gozado.
Ao juntar esses dois elementos heterogêneos, significante e gozo, Lacan provoca uma virada
real. E assim, o gozo, inicialmente afetado pela linguagem, passa a ser afetado pela alíngua, e
o inconsciente, antes estruturado como uma linguagem, torna-se um saber no nível do corpo
substância, saber manifestado pelo sintoma. Isso levou Lacan a considerar os efeitos de
alíngua e não mais da linguagem, como prioritários e primordiais na formação dos sintomas12.
sentido, e seus efeitos são os afetos, posto que a alíngua afeta primariamente o gozo13. O
10
SOLER,
C.
Corpo
falante
Caderno
de
Stylus,
EPFCL,
2010,
p.11.
11
Id.
Ibid.,
p.13.
12
Id,
ibid.,
p.15.
13
Id,
ibid.,
p.19.
155
sintoma é constituído numa idade precoce, antes da aquisição da linguagem, através de uma
combinação entre a alíngua e o encontro com o gozo primeiro, entre significante e gozo.
“Diante do que é ouvido, o sujeito apreende significantes que ainda não dispõem de sentido,
restando dessa operação, o que Lacan chamou de alguns detritos, cacos”. “... os cacos são do
real, fora do sentido, sob a forma do Um sonoro, recebido do que foi ouvido”. Esses detritos
identidade de gozo e produzindo a matriz do sintoma. Entretanto, sabemos com Lacan que a
formação do sintoma depende de uma contingência entre aquilo que é falado pelo Outro e o
Para Soler14, dizer que o sintoma não pode mais ser compreendido a partir “da lógica
tese freudiana de que as fantasias inconscientes são precursoras dos sintomas histéricos. O
sintoma vem do real e o inconsciente é redefinido como real, fora de sentido, ligado à alíngua.
inconsciente real, inapreensível, formado pelo significante real, sem sentido e contingente,
que marca o corpo com o saber de alíngua. Qual a relação entre a fantasia fundamental e o
Freud se referiu à fantasia, como aquilo “que substitui o trauma”, e se o trauma para
Freud é o que não é representado, tem, para Lacan a dimensão de real. Então, se a fantasia
14
Id,
ibid.,
p.27.
15
Id,
ibid.,
p.29.
156
substitui o trauma, ela é real e vem ocupar o lugar do impossível de ser representado16. Sendo
o sintoma uma resposta do sujeito frente ao real que é traumático, a fantasia, ao substituir o
trauma, torna-se, juntamente com o sintoma, um recurso do sujeito frente ao real. Entretanto,
o conceito de trauma deve ser tomado em dois momentos distintos do ensino de Lacan. A
Outro, S(Ⱥ), justamente ali onde o sujeito se confrontava com o desejo do Outro. Diante da
Neste sentido, o traumático seria a falta no Outro. A partir do encontro com o desejo do
Outro, com o “Che Vuoi?", o sujeito responde com a fantasia, ali onde ele se experimenta
como objeto. A fantasia como um recurso do sujeito para proteger-se da difícil condição de
segundo tempo de seu ensino, como já foi mencionado, Lacan não separou o significante do
gozo, para ele, significante é gozo e, segundo Gerbase17, o traumático agora aponta para duas
significante antes de se ter acesso ao sentido, gerando mal-entendidos. A alíngua é real porque
Quanto ao trauma do sexo, por não haver na linguagem um significante que nomeie o Outro
gozo, um dos gozos não pode ser escrito no inconsciente, impossibilitando a relação sexual.
Não há relação sexual visto que não é possível estabelecer uma relação biunívoca entre o
16
Gerbase,
J.
(1987).
Fantasia
ou
fantasma.
Falo
1
,
p.
50.
17
GERBASE,
J.
Curso:
Être
humain,
Associação
Científica
Campo
Psicanalítico
de
Salvador,
2010.
157
significante fálico, o que se escreve, e o significante do Outro gozo, o que não se escreve.
trauma do sexo, na medida em que ele faz semblante ao significante do Outro gozo. Quanto
Sendo a fantasia o que substitui o trauma, como a fantasia pode substituir a falta do
significante do Outro gozo, (trauma do sexo) e também o efeito produzido pelo equívoco do
trauma de alíngua, e a fantasia, com seu caráter de frase, colabora com o sintoma,
substituindo o real do trauma por uma ficção. Mas, se no final de uma análise nos deparamos
com o irredutível do sintoma, o que acontece com a fantasia? Uma vez que o sujeito se depara
com sua essência de gozo, ao identificar-se ao sintoma, a fantasia perde sua função, e o que
surge em seu lugar é um significante novo, a ficção da fantasia é substituída por uma criação,
uma invenção do sujeito. Freud se refere à fantasia inconsciente como um ponto de fixação de
pensar que, num “só depois”, a fantasia fundamental seria uma forma de sustentar o sintoma,
o sintoma fundamental, e responder ao trauma de alíngua tanto quanto ela o faz no trauma do
18
Lacan,
J.
(1978).
Seminário,
livro
25:
o
momento
de
concluir.
Inédito.
158
sexo. A fantasia fundamental seria uma frase capaz de dar um sentido aos equívocos
159
O Nome do Sintoma
Gracia Azevedo1
concepção de real que parte da substância individual, composta de matéria e forma. Os
Estoicos viam nos corpos, as únicas realidades, aquela que age e aquela que sofre a ação.
O incorpóreo não toca o corpo. A ideia incorpórea é privada de toda eficácia e de
ser.1Fatos ou acontecimentos foram admitidos como causa pelos estoicos. Todo corpo
se torna causa para outro corpo (quando age sobre ele) de alguma coisa incorpórea. São
Aristóteles a realidade lógica é o conceito. A isto os estoicos chamam de exprimível.
Acontecimento, som, letra, palavra. O atributo de ser significado pela palavra é o
acontecimento no que este pode ser corporificado, trazido à significantização, à cena.
É do conceito de lecton que Lacan parte, para abordar a “significância” do significante.
Cito Lacan em Radiofonia2: “O lecton torna legível um significado... Deixo para lá: isso é o
1
Fórum do Campo Lacaniano – Recife - IF-EPFCL Brasil – Membro da Escola. Nutricionista. graciazevedo@gmail.com
160
que
denominei
ponto
de
basta,
para
ilustrar
o
que
chamarei
de
efeito
Saussure
de
coloca como o representante de um acontecimento primordial no processo de divisão do
sujeito quando, surge, cai o objeto a para um ser de puro gozo. Momento de angústia,
frustração, castração simbólica. É o ingresso para o simbólico onde a partir daí o sujeito
seguirá dividido valendo-‐se do seu significante mestre tentando recuperar o que foi
faz surgir o significante da diferença e o sexual passa a ser a querela do significante. O
sujeito atingido pela linguagem percorre o “cristal linguístico”, assim chamado por
Lacan, em busca de resolver essa diferença que só se resolve pela lógica do ou um, ou
incorpóreo tem a ver com o corpo. É incorporada que a estrutura faz o afeto, a partir de
seus efeitos no ser do que é falado e do que não é falado, dito de algum lugar. O corpo
habitado pela fala vira puro cadáver. O sujeito existirá enquanto falasser, faltante, Um-‐a-‐
161
Menos,
marcado
pelo
significante,
sexuado.
Fazer
sexo
com
as
palavras.
É
assim
que
a
histérica desafia o mestre, desmascarando a sua falta, sua incompletude, por estruturar-‐
se a partir do vazio. Esse sexo surgido, causado exatamente a partir desse nada
impossível de ser falado e colocado na cena. A linguagem traz à cena o que do sujeito
carece de ser enterrado sob a forma de palavras e colocando sua existência no corpo,
para ser imaginariamente incluído na roda dos vivos. O que o conduz à morte.
significante que faz existir um sujeito por ele representado e, portanto seu refém no que
diz respeito ao gozo. Através das formações do inconsciente, através do sintoma.
significante fazendo surgir um falasser. O que do significante representará esse falasser
para outro significante será sempre insuficiente para dar conta do acontecimento. A
mancha onde antes era o traço terá sua designação como letra, resto de gozo, a ser
sempre um pacote carregado pelo significante que traz à cena o objeto que depois de ser
decomposto, decifrado deixa os seus restos que se inscrevem como a pedra no caminho,
o que não cessa de não se escrever. O inconsciente real que se serve de lalangue.
efeitos do sujeito do inconsciente. O que não vai bem para o sujeito surge a partir de seu
discurso endereçado ao Outro. É dessa fala, desse discurso que a psicanálise se serve
para
decifrar
o
sintoma.
O
equívoco
é
com
o
que
se
joga
na
interpretação.
Ao
esgotar
o
162
seu
sentido
é
a
partir
da
lalangue
que
opera
o
ato
psicanalítico.
Lalangue
é
resto,
é
letra
pura, é sem sentido com fixação de gozo. Quando Lacan fala de interpretação está de fato
chega a ele através da letra. A letra obstrui o saber e impede a sua apreensão. São seus
sintoma. Citando Descartes e seu discurso do mestre com o ‘penso logo sou’, ele brinca
psicanálise.
real, simbólico e o imaginário, Lacan parte do neologismo gossou para ilustrar essa
topologia. Onde o real é o impossível, é a pedra no caminho, o que não pode ser
representações apenas alimenta a ciência e tenta dar conta do real, que sempre estará
social, evidenciando o mal-‐estar do sintoma que se serve do significante e seu objeto a,
Freud com seu inconsciente que não entrava em acordo com as exigências da civilização
colocaram a psicanálise como o caminho para dar conta deste sintoma. Mas havia um
resto
pulsional
que
o
sintoma
não
dissipava,
ao
contrário,
carregava
como
se
fosse
163
pombo-‐correio,
mensageiro
do
gozo.
O
sintoma
é
o
próprio
pretexto
do
gozo,
e
o
sujeito
não pode abrir mão dele. No máximo pode dissecá-‐lo e saber que há restos sem
possibilidade de decifração. Depois tentar colocar o gozo a serviço da criação de novos
real. O impossível do real é condição do sujeito e isso não faz negociação. O real se
configura como o início e o fim, última parada. E a psicanálise como sintoma desse
mesmo mal-‐estar.
O real retorna sempre ao mesmo lugar, diz Lacan. É vã toda tentativa de um coito
corpo, é o que há no mundo. Como fazer para que esse objeto se torne semblante,
semblante de falo? Para o homem isso é mais fácil. Ser objeto a para um homem é a saída
Seio, fezes, olhar e voz. Isso fica no lugar do acontecimento para ser falado, buscado,
desmontado até o osso. Ao falar o sujeito vai produzindo seus objetos a partir da sua
verdade. A partir dos quatro discursos que fazem laço social Lacan colocou a
saber como gozo do Outro, e o objeto a como perda surgida desse trajeto do discurso,
se articulam simulando as formas de posição subjetiva, no que faz laço na cultura.
164
Na
busca
do
saber
sobre
o
gozo
do
Outro
o
sujeito
encontra
a
sua
verdade
que
se
constitui pela castração, no discurso do mestre. A verdade chega até onde o significante
alcança como representante desse saber constituído a partir do real. Dessa forma o
sujeito vai utilizando todo o seu acervo significante, que depois ele percebe como um só,
e gasta até chegar aonde ele já sabia que não sabia. O saber não sabido.
Resta a letra, o nome próprio onde o sujeito olha para o campo devastado e parte
para construir a própria história que já tem nome mas poderá produzir outros
caminhos, novas possibilidades. A letra faz litoral entre gozo e saber, é o que Lacan
afirma em Lituraterra4. O furo no saber como acontecimento produz a letra que faz
O nome litura quer dizer: rasura, mancha, borrão, apagamento do que foi feito. A
letra faz terra marcando o litoral. Produzir a rasura é produzir a metade com que o
sujeito subsiste.
Entre centro e ausência, entre saber e gozo há litoral que pode se tornar literal. O
sujeito que fora marcado pelo traço que se apaga, passa então a ser representado pelo
significante. Ao se romper o semblante, o sujeito depara-‐se com seu gozo que evoca o
Singular, próprio, solitário, marca do sujeito que o situa em sua própria história.
O nome ancora o sujeito no Um-‐ a-‐Mais da cultura. Um lugar que o incluirá na sequência
165
da
alteridade
definida
pelo
simbólico.
Um
lugar
de
repetição,
de
equívocos,
de
gozo.
Um
lugar na cena onde o desamparo o faz surgir como objeto do Outro gozo. O
É a partir desse endereçamento, dessa demanda surgida a partir de uma falta, que
discurso de sentido. A repetição do que não pode ser simbolizado do impossível de dizer
coloca o sujeito de cara com o real, com o gozo do inconsciente. O que fazer com esse
sexual, como o sujeito poderia nomear-‐se, distinguir-‐se? Lacan fala do sinthome em seu
seminário de 19755, o quarto nó, como uma resposta do Real frente à incompletude da
relação com o outro sexo, permitindo ao sujeito a criação de um laço social através da
Para o sujeito a relação sexual nunca existiu porque o Um não tem parceiro; o
Um é o lugar do zero: serve para fazer surgir o um a um. O Um é o que tentamos dizer. É
o impossível não entra na falta, ou ausência, ou vazio; é sem objeto. A partir de um lugar
na cadeia significante o sujeito pode ‘se fazer ser’ como afirma Colette Soler6. Sair da
posição narcísica do ‘melhor não ser’ e se ocupar do próprio desejo reescrevendo a sua
Para que isso seja possível é necessário destituir o Outro do lugar que outrora lhe
fazer ser partindo do menos-‐um (que é o ‘recalque originário’ para Freud e não há ‘todos
falta-a-ser passa a trabalhar pela causa do seu desejo a partir de sua singularidade e do
seu saber sobre o impossível do real. O desejo de analista agora surge a partir de uma
escuta que muda de posição. É ficando no lugar de causa do discurso, que o analista pode
Notas:
1.
Bréhier,
Émile
(1908).
A
Teoria
dos
Incorporais
no
Antigo
Estoicismo.
Tradução
de
Alduisio
M.
de
Souza.
Cópia
pessoal,
Recife,2008.
2.
Lacan,
Jacques
(1970).
Outros
Escritos.
Radiofonia,
Jorge
Zahar
Ed.
2003.
3.
Lacan,
Jacques
(1974).
A
Terceira.
Tradução
da
Association
Lacanienne
Internationale,
2008.
4.
Lacan,
Jacques
(1971).
De
Um
Discurso
que
Não
Fosse
Semblante.
Sem.
18.
Jorge
Zahar
Ed.
2009.
5.
Lacan,
Jacques
(1975).
O
Sinthoma.
Sem.
23,
Jorge
Zahar
Ed.
2007.
6.
Soler,
Colette
(1989).
A
Psicanálise
na
Civilização.
Que
final
para
o
analista?
Contra
Capa
Livraria,
1998.
167
A arte é o que há de mais real
Sonia Borges1
“Eu pinto a violência do real”, dizia Bacon. Em seu trabalho com os pincéis, Bacon
não dispensa Apolo, mas, serve a Dionísio. Ele próprio reconhece a sua filiação à tragédia
grega, e ao teatro de Beckett, trágico moderno. Nas entrevistas que concedeu ao crítico de arte
David Sylvester (2007), por mais de vinte anos, Bacon descreve a gênese de suas pinturas,
enfatizando o que podemos considerar como o seu “método”: pintar sensações. “Pintar
sensações” seria, para ele, uma maneira de fazer frente à “violência dos clichês”na
abre dentro de mim as válvulas das sensações que me jogam de novo à vida de uma forma
ainda mais violenta.” (141) Deleuze, em seu belo livro, “ A lógica das sensações em Francis
Bacon”, recorre à arte deste para desenvolver as suas posições filosóficas. A sensação, diz
acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro. Em última análise, diz o filósofo, é o
mesmo corpo que dá e recebe a sensação, que é tanto objeto, quanto sujeito.”(2007:142)
Esta critica à visão intelectualista da arte se presentifica, antes de mais nada, por sua
recusa da pintura com pretensões de ilustração, figuração ou narração: “Gostaria muito, dizia
1
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
-‐
Brasil
168
ele, de fazer o que Valery preconizava: proporcionar, com minha pintura, emoções sem o
Bacon faz a crítica da figuração: apresenta figuras, mas desfiguradas, deformadas, podendo –
se pensar que, sendo uma crítica ao realismo, criam um novo realismo. Como ele mesmo
anuncia, “O que quero fazer é deformar a coisa, descartar a sua aparência, mas, nesta
radicalidade e crueldade de da obra de Bacon, o materialismo radical que suporta o seu ato
criativo. 3 IMAGENS
arrancadas aos pedaços do mundo que vão ornamentar. Massas se concentram, depois se
prolongam, figurando corpos contra toda lógica anatômica. Corpos histéricos, poderíamos
dizer. A carne mole, informe, invade o universo da pintura baconiana. O envelope corporal
contrabalançada pela estrutura apolínea, com ares de geometria, com que amarra as figuras
Neste trabalho busco abordar, pela via da psicanálise, o que chamei de método de
Bacon, “pintar sensações”. Para isto, tomo como referência principa, de Freud, l a “Carta 52”
169
e “Em busca do tempo pedido”, de Proust”, considerando a possibilidade de tomar este
Com Lacan, pode-se pensar nesta escritura como o registro da experiência, ou seja, do real
tal como cai e marca um ser que recebe o seu impacto, mas, do qual não conserva a memória.
Mas, que marcas seriam estas? Impressões assubjetivas, acéfalas, matrizes de uma escrita da
simbolização. São marcas inscritas no corpo, ou melhor, na carne, que se tornará corpo, por
obra e graça desta cunhagem. Lacan as compara às pedras da loteria a que só o sorteio, ou
seja, a que só o jogo dos significantes (Escritos, p. 58). poderá instaurar uma ordem.
Em Proust, esta idéia, conforme Brainstein (2007), pode ser esclarecida nas
proustianas. O “tempo redescoberto”, do último volume de sua obra, pode ser pensado como a
redescoberta, a recuperação do gozo perdido. Gozo ressucitado pelo súbito reeencontro destas
submersa no chá, uma breve frase musical, a rigidez do tato de um guardanapo engomado, são
impressões sensíveis esvaziadas de significação fálica, restando ao artista fazer delas letras,
domesticando o real.
170
Qual o sentido destas experiências sensíveis? Com relação às madeleines, no relato
vindo aquela poderosa alegria? E, de súbito a lembrança apareceu: “Aquele gosto era do
domingos, minha tia Leonie me oferecia quando ia cumprimentá-la em seu quarto” . E, ao lhe
retornar o gosto do pedaço de Madeleine molhado no chá, o momento epifanico, com ele
também surge a velha casa onde moravam, e com ela toda a cidade de Combray. Impossível
A descrição que Bacon nos oferece da gênese de suas telas, também nos remete a
esta ressurreição de marcas cuja vivacidade foi apagada pelos processos secundários de
pensamento. Estas só lhe parecem satisfatórias quando mostram “um tipo de imagem
sensorial que faz parte da própria estrutura do ser e nada tem a ver com uma imagem mental”
(160):
Sei que na minha obra, o melhor me veio por acaso – quando fui tomado por
imagens que não antecipei. Não sei o que é o inconsciente, mas, há
momentos em que algo emerge em nós. É muito pomposo falar de
inconsciente, é melhor dizer acaso. Creio na existência de um caos
profundamente organizado, e na importância do acaso. (Sylvester, op.cit.,
p.81)
[...] a única razão para esta irracionalidade, afirma, é que ela trará muito
mais vigorosamente a força da imagem.”
Como exemplo da força das sensações e do acaso, descreve a gênese de uma de suas pinturas
mais importantes. Ainda que lhe ocorresse pintar um pássaro, em gesto rápido, jogou as tintas
sobre a tela, os borrões tomaram uma forma tal que, de forma súbita, surgiu-lhe o Papa
Inocêncio,imortalizado em tela de Velásquez, mas que na sua surge em nova configuração,
ladeado por imensas e sangrentas costelas bovinas.
Imagem 4: “Pintura 1946”
171
Essa desfiguração de corpos, cabeças, faces, não pode ser vista como representação de
objetos, mas como mostração de “velhas” experiências sensíveis: “Não pinto estados d’alma,
mas, estados do ser”, insistia Bacon, numa clara crítica à psicologia dos afetos. Para falar
disso, o pintor usa uma linguagem que nos remete à ordem do pulsional: “níveis sensitivos”,
Isso da segunda tópica, cujas características nos permitem distingui-lo do inconsciente que já
grafismos, império do gozo do ser, anterior, pois, à organização subjetiva, sendo esta efeito
Mas, assim sendo, para o sujeito habitado pela palavra, o que restaria daquele real
com significação convencional, que é o muro que obstaculiza o gozo bloqueado nos sistemas
de inscrição não decifrados, impedidos de serem subjetivados. “A alingua está morta, diz
Soler, mas, vem da vida. Como pode, então, esta multiplicidade inconsistente, inapreensível,
Isto que parece tão lacaniano, está já evidenciado na “Carta 52”. Em resumo, o
não opera a língua dos lingüistas, mas a alíngua, cuja significação não é de sentido, mas, de
172
gozo. Matéria prima para que nela opere o significante, ou seja, a bateria dos significantes, ou
uma cadeia temporal diacrônica, ou seja, a uma escrita onde o caos do Isso, no qual o gozo
está cifrado, abre-se à decifração pela via dos processos primários que já produzem discurso,
carente de sentido, absurdo, mas, que já se presta a ganhar sentido. O UMBEWUST (UBW),
o inconsciente, é, na Carta 52, definido como uma segunda inscrição em que já não primam
as associações por simultaneidade, mas, “outros nexos causais.” O tratamento pode, então,
fazer com que o retido em inscrições anteriores seja transferido para novos modos de leitura.
O inconsciente se escuta, ainda que constituído por palavras avessas ao pensamento em que
predominam sintaxes lógicas. Paradoxalmente, o gozo do corpo marcado apenas pode ser
nosso ver, poderia ser estendidas ao processo de criação artística. Guardadas as diferenças, na
criação, e talvez de modo especial a artística, não se trataria de se furar o muro da linguagem?
De se furar o muro das convenções, dos clichês sociais, única finalidade da arte, como insistia
Bacon?
Para Braunstein, “armados com a distinção lacaniana ente prazer e gozo, é difícil não
reconhecer em Freud, e desde o começo, que o psiquismo está determinado pelo gozo, pelo
gozo como perdido e como recuperável.” ( 198), sendo possível a sua recuperação, não pela
via da nostalgia, mas a partir de um encontro casual, da tiquê, de momentos epifânicos, como
173
Proust o descreveu. Está aí em jogo a função do real. Lacan nos traz também que o real está
além do automatón, do retorno insistente dos signos que nos conduzem ao princípio do
prazer. O gozo que emerge como ressurreição do próprio ser. E não se trata de felicidade,
mas, da superação/destituição do sujeito pelo real, que supõe a perda de todas as suas balisas:
As epifanias podem ser pensadas como estes momentos de destituição subjetiva, não a
criação, quando os objetos se carregam, para eles, de sentidos ocultos que assumem o caráter
de hieróglifos que pedem para ser decifrados. O sabor da madeleine para Proust, a força dos
corpos para Bacon, o matiz dos girassóis para Van Gogh, experiências gozosas recuperadas
pelos procedimentos artísticos? A criação artística poderia ser definida, parodiando Proust,
gozo perdido, a arte seria, então, para o artista uma escritura de si mesmo, mas, sobre a qual
se poderia afirmar o que Lacan disse do inconsciente: que nem é, nem não é, pois pertence à
ordem do não realizado; é a escritura que cria o sujeito. e ao criá-lo o projeta retroativamente
no tempo, o faz aparecer num passado que nunca existiu. E, mais, cria este passado com
174
Os usos do corpo e a política do sintoma: o caso da transformação
corporal
Andréa
Franco
Milagres1
Por ocasião da IV Jornada de Trabalhos do Fórum-‐BH, defrontei-‐me com algumas
questões a respeito dos termos com os quais fizemos nosso convite. Demarcamos uma
hipótese de trabalho: há uma política do sintoma e no bojo desta, o sujeito faz suas
podemos, tanto em Freud como em Lacan tomá-‐lo em mais de uma vertente, de acordo
primeiramente definir o sintoma como aquilo que nos permite algum acesso à satisfação
proibida -‐ uma solução de compromisso. Neste caso, o sintoma seria uma metáfora. É
uma definição clássica em psicanálise, a tal ponto que se pode falar de uma vulgata do
sintoma: até mesmo o leigo, na banalidade da vida cotidiana, usa o termo sintoma como
aquilo que há de mais íntimo e que o faz sofrer. Todavia, constata o leigo, estranho
mesmo é que não possa abandoná-‐lo, não possa deixar de repeti-‐lo. Não há, portanto,
neurótico que não experimente isso... O que nos permitiria então supor que não só há
satisfação com alguma satisfação possível. Aqui poderíamos dizer que há uma política do
1
Psicanalista,
Membro
do
Fórum-‐BH,
Mestre
em
Psicologia
pela
UFMG,
Professora
da
PUC
Minas,
coordenadora
do
Curso
de
Especialização
em
Clínica
Psicanalítica
nas
Instituições
de
Saúde
da
PUC
Betim.
175
Ocupando-‐se
desta
vertente
é
que
a
psicanálise
talvez
tenha
inaugurado
seu
laço
com
o
mundo. Sua missão era assim restituir ao sintoma seu lugar de verdade, decifrando-‐o
com a arma da interpretação. Tratava-‐se assim de dar um sentido ao sintoma, tal como o
texto homônimo de Freud nos indicou: a verdade esquecida que retorna no sintoma é
tortuosos caminhos. A tentação dos psicanalistas doravante, depois de Freud, seria dar
sentido ao sintoma. O que não se sabia, e para isto foi preciso aguardar Lacan, é que dar
sentido ao sintoma é como alimentar um peixinho voraz: sua boca nunca se fecha;
quanto mais o alimentamos, mais ele prolifera... (Lacan, 1975a). É uma outra vertente
para pensar o sintoma: não mais como substituto, mas como índice daquilo que vem do
real. Diante disso, podemos considerar que a política do sintoma é concernente a uma
tomada de posição, um recurso adotado pelo sujeito para fazer objeção à norma. Nesta
segunda vertente, o sintoma é sempre correlato a um comando, no caso, à ditadura de
um significante mestre.
não apenas nos representam para outros significantes, mas fundamentalmente afetam
nosso corpo: este deve se mostrar sarado, sem dobras, barriga chapada, pele esticada.
Quase todos nos curvamos a este comando: ser gordo ou feio, estar acima do peso,
deixar entrever as marcas do tempo na pele ou nos cabelos soa como uma afronta aos
ideais partilhados. Assim, como diz Soler (1998b p. 259) “nossa realidade fabrica
semblantes a gozar para todos, ainda que isto nunca seja inteiramente alcançado”. Em
176
cada
esquina,
clínicas
e
tratamentos
prometem
apagar
as
grandes
e
as
pequenas
pintado sob o pretexto de vender sandálias nos faz encolher na cadeira quando
folheamos a revista. O corpo perfeito de Gisele torna-‐se mais que um ideal: ele é
persecutório! Na sala de espera do dentista, folheamos a revista Caras com a curiosidade
sôfrega de quem procura encontrar algo que torne a celebridade um pouco mais
imagem que ilustrava o folder de nossa IV Jornada não era do corpo de Gisele: era de
Escolhemos tal imagem, pois assim nos pareceu a política do sintoma: uma
armadura singular inventada por cada sujeito para responder aos ideais ou comandos
da civilização. Se na política do discurso do mestre temos uma proposta de governança
ou orientação coletiva do gozo e a maioria responde, portanto, positivando os ideais, é
preciso lembrar que nem todo gozo encontra nesse discurso um abrigo. Existe um gozo
que não encontra guarida, para o qual não existe um porto-‐seguro. Há gozos que
interrogam a civilização. Tal questão me veio à mente quando assisti, muito intrigada, à
série Tabu América Latina exibida pela National Geographyc, cujo tema era “Corpos
177
diferenciar-‐se
dos
demais.
Dentre
as
técnicas
estão
as
escarificações,
os
implantes
Creio que não podemos fazer uma generalização a ponto de dizer que todos os
que se submetem à transformação corporal teriam as mesmas motivações. Todavia, os
testemunhos de alguns desses sujeitos demonstram, numa versão contemporânea, como
o sintoma faz impedimento a que as coisas andem, e por isto Lacan (1975a, p. 84) pode
dizer que “(...) o sentido do sintoma é o real, o real enquanto se põe em cruz para
impedir que as coisas andem, que andem no sentido de dar conta de si mesmas de
transformação corporal que não apenas modifica o corpo de terceiros, mas o seu
próprio.
Mantém seu estúdio em Bogotá e pretende ficar conhecido como o Dr. Freak2,
pois faz justamente aquilo que os médicos rejeitam fazer: “imagina se você pedir ao
médico para cortar sua língua em dois: ‘vá procurar um psicólogo, é o que ele lhe dirá”...
2
Literalmente
freak
quer
dizer
deformação,
aberração.
Durante
o
século
XIX
e
meados
do
XX
encontramos
na
Europa
e
nos
EUA
até
o
período
entre-‐guerras
uma
multiplicação
dos
freaks
shows
nos
circos,
casas
de
espetáculos
e
museus
de
curiosidades.
Tratava-‐se
de
exibir
as
deformidades
e
bizarrices
do
corpo
humano
como
numa
aula
de
zoologia:
homens-‐tronco,
gêmeos
siameses,
a
mulher
mais
gorda
do
mundo...
O
exemplo
mais
conhecido
encontra-‐se
no
filme
“O
homem
elefante”,
de
David
Linch,
onde
o
protagonista
John
Merrick,
é
exposto
num
pequeno
circo
de
aberrações
para
satisfazer
a
curiosidade
escópica
do
público.
Nada
de
estranho
para
a
época
até
que
um
médico,
Dr.Treves,
imbuído
de
boa-‐vontade
e
nascente
espírito
científico
decide
retirar
Merrick
do
circo,
demonstrando
com
seu
ato
a
estreita
relação
que
será
selada
doravante
entre
a
compaixão
e
a
entrada
no
discurso
médico.
A
cultura
do
voyeurismo
será
então
substituída
pela
observação
178
“Eu
sou
um
transformador
corporal
de
alto
gabarito”,
“Fiz
(este
braço)
para
ser
Emílio
seu legado e é com orgulho que fala da sua obra: “Eu fiz o braço dele há muito tempo.
Gonzalez a respeito dos implantes subcutâneos que havia feito num “paciente”. Satisfeito
com o resultado, seu paciente comenta: “Meu braço representa um braço único. Se você
diferença ao acolher em seu estúdio os que não compartilham das vias prescritas pelo
saber do nosso tempo. O discurso que orienta e civiliza o gozo numa determinada
andar, de apresentar-‐se, até mesmo um modo de sentar-‐se à mesa. Por isto, às vezes, os
Se a política é uma tentativa de fazer funcionar um “para todos” propondo uma
gestão universal dos modos de gozo, uma adaptação à realidade que deve ser
coletivizada -‐ e nisso sem dúvida há uma ditadura -‐ o médico dos freaks se coloca do
lado dos contraditores do gozo, daqueles que poderiam ser chamados de recalcitrantes
científica.
Na
disputa
entre
o
exibidor
e
o
médico
pelo
mesmo
objeto,
o
médico
levará
a
melhor.
A
deformidade
torna-‐se
tema
da
observação
médica
e
objeto
de
amor
moral.
Conferir
texto
de
Jean-‐Jacques
Courtine.
“O
corpo
anormal.
História
e
antropologia
culturais
da
deformidade”.
In:
História
do
corpo:
as
mutações
do
olhar.
O
século
XX.
Petrópolis,
RJ,
Vozes,
2008.p.253-‐340.
179
O
corpo
civilizado
é,
portanto,
programado
pelo
discurso.
Ele
deve
ser
dócil
a
estas
prescrições para entrar nas trocas. Encontramos assim no mundo atual o que Colette
autora observa um fato clínico importante: se antes os sujeitos vinham à análise porque
tinham dificuldade para sustentar sua diferença, e isto os dividia, agora temos também
os sujeitos que chegam para pedir a redução da sua diferença, pois querem ser como os
demais: belos como Gisele, bem sucedidos como o chefe, eloquentes e desenvoltos como
Curioso é que Gonzalez auxilia seus “pacientes” a se distinguir, a se fazer ímpar,
Todavia, Gonzalez não escapa da cilada: quer fundar a diferença, mas mesmo para isto é
preciso que seja reconhecido. Que não seja pela massa, mas pela tribo dos freaks. Isto faz
um laço, isto tem um endereço: quer ser o melhor dentre aqueles que promovem a
diferença. Assim, perguntamos se Gonzalez funda um novo S1: não mais “todos belos ou
todos magros”, mas agora “todos diferentes”. Outra tribo, outra ditadura, outro S1, mas
ainda S1!
Ao que parece, não podemos mais falar de uma política do sintoma, senão
políticas do sintoma: substituto de uma satisfação, índice do real, dissidente da ordem,
180
mas
também
como
aquilo
que
amarra
e
enlaça
à
mesma
ordem
que
o
sujeito
crê
protestar contra.
Vejamos outro caso. Trata-‐se de Caim, que transformou seu corpo com a ajuda de
Gonzalez. Seu corpo é totalmente tatuado, tem quatro expansões nos lóbulos, seis
mais de dez piercings no rosto, mutilou as orelhas para que ficassem em ponta. Seu
objetivo é ficar parecido com o diabo e com o vilão Valdemort. Gonzalez não vacila em
acompanhar o projeto de seu ‘paciente’: “vou onde ele quiser para fazer o trabalho”.
Parece-‐me, todavia, que criador e a criatura tomam aqui rumos diferentes. Seus
projetos com relação ao tratamento do gozo diferem. Enquanto Gonzalez, animado pelo
S1-‐ ser “o médico dos freaks”-‐ se esforça para encontrar um lugar na civilização ainda
que seja pelo avesso, Caim faz uma ruptura mais radical. No referido programa, constato
que Caim quase não fala, persegue seu objetivo silenciosamente. Apenas oferece seu
corpo à transformação, mas também a uma subtração. Quanto mais perto de seu
objetivo, mais a fazer: é um projeto sem fim, quase como um problema de solução
elegante. Para se parecer com o diabo é preciso ficar com menos carne: corta as pontas
das orelhas, a língua, parte do nariz. Mas nunca é o bastante: “Quando me olho no espelho
sinto um pouco de tristeza porque ainda há muitas mudanças a fazer em meu corpo. Mas
sei que é um processo. O importante é que eu me sinta bem com as mudanças que faço.
Desde que eu não faça mal a ninguém posso fazer com meu corpo o que eu quiser”.
181
Diferem
assim
as
soluções
de
cada
um.
Gonzalez
do
seu
lado
faz
força
para
contestar o discurso dominante, mas mal sabe ele que dá uma volta de 360 graus para
voltar ao mesmo lugar. Contesta os ideais, mas funda outro: “todos diferentes”. No fim
das contas denuncia: “somos todos freaks. As mulheres no meu país todas colocam
criatura, é abissal. Gonzalez, quiçá neurótico, interroga o pai e os ideais denunciando seu
fracasso em ordenar o campo do gozo. Ele, todavia, auxilia os que não podem contar com
este recurso. Com isso, faz seu nome e ganha seu pão de cada dia. Ele entra nas trocas, e
Quanto a Caim, livre para fazer o que quiser de seu corpo, ele propõe à
psicanálise algumas perguntas. A mais importante é por qual razão somos sempre
feudatários da imagem, pouco importando em qual estrutura... De Gisele a Caim há um
ponto em comum: nos dois casos o corpo é aquilo que se impõe, que se mostra, provoca
arrepios. A bela e a fera. O corpo é esta coisa que carregamos conosco, como uma mala,
às vezes sem alça. Cada um, a seu modo, demonstra como o corpo faz leito para o Outro,
Bibliografia
LACAN,
J.
La
tercera
(1975a).
In:
________________________.
Intervenciones
y
textos
2.
Buenos
Aires,
Manancial,
2001.
__________.
Conferencia
em
Genebra
sobre
el
sintoma.
(1975b).In:
__________.
Intervenciones
y
textos
2.
Buenos
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Manantial,
2001.
182
SOLER,
C.
Los
ensamblajes
del
cuerpo.
Medelin,
Associación
Foros
del
Campo
Lacaniano
Medellín,
2002.
_________.
O
“Corpo
falante”.
In:
Caderno
de
Stylus
n.
1.
Rio
de
Janeiro,
Internacional
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano-‐Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano,
2010.
__________.
Os
direitos
do
sujeito.
In:
_______________.
A
Psicanálise
na
civilização.
Tradução:
Vera
Ribeiro,
Manoel
Motta.
Rio
de
Janeiro,
Contra
Capa
Livraria,
1998a.
__________.
Incidência
política
do
psicanalista.
In:
________.
A
Psicanálise
na
Civilização.
Tradução:
Vera
Ribeiro,
Manoel
Motta.
Rio
de
Janeiro,
Contra
Capa
Livraria,
1998b.
183
O Real Do Sintoma: Sua Política Na Cura
Em 1975 no Seminário R.S.I., Lacan afirma que todo àquele que procura uma análise
o faz por acreditar que o sintoma diz alguma coisa que demanda ser decifrada. Ele também
apresenta o sintoma como o que há de mais real em cada um, portanto, neste sentido, o
sintoma analítico interroga a não-relação sexual. Surge então, neste mesmo Seminário, outra
afirmação contundente segundo a qual o “Inconsciente é o Real”. O real como aquilo que não
cessa de não se escrever, promove a associação livre, trabalho do analisante, via transferência.
Logo, nosso trabalho pretende abordar as mudanças nas crenças do sujeito que procura uma
O real próprio ao sintoma como aquilo que não cessa de não se escrever convoca
mudanças nas crenças do sujeito. Acreditar que um sintoma diz alguma coisa está associado à
vacilação de outras crenças do sujeito, entre elas na religião e na ciência. Com relação à
religião, Lacan diz que “ela é feita para curar os homens, isto é, para que não percebam o que
não funciona”2, para recalcar o sintoma. Com relação à ciência, sabemos que a busca da
cientificidade termina por foracluir o sujeito por desconsiderá-lo naquilo em que ele se
1
Psicanalista,
Membro
da
Escola,
Doutora
em
Psicopatologia
e
Psicanálise
(Paris
7),
Profa
da
graduação
e
pós-‐
graduação
da
Universidade
Federal
da
Bahia.
E-‐mail-‐
ahfernandes@terra.com.br
2
Lacan,
J.,
O
triunfo
da
religião.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
2005,
p.
72.
184
A psicopatologia explicativa, comunicativa e fenomenológica de Karl Jaspers seria um
estão Jaspers e Lacan que afirma que “o falasser é uma forma de exprimir o inconsciente”3, e
deter-se na interpretação ressaltando o fato dela “não está aberta a todos os sentidos”4 já que
“ela mesma é um não-senso”. Para Lacan, “quando se trata do inconsciente do sujeito” está
saber sem-sujeito. O inconsciente só pode ser abordado na análise onde não é questão de
lembrar-se do que se sabe, mas de um “não me lembro mais disso. Não me reencontro
nisso”7. É nisso que o inconsciente interpreta o analisante e faz dele seu interprete.
Ainda sobre a interpretação, nos anos 70, Lacan diz que ela não é feita para ser
compreendida já que ela deve ser equivoca8. É desta forma que a interpretação age na contra
3
Idem.
4
Lacan,
J.,
O
Seminário
–
Livro
11.
RJ:
Zahar,
p.
236.
5
Idem.
6
Lacan,
J.,
O
triunfo
da
religião.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,2005,
p.
72.
7
Lacan,
J.,
“O
engano
do
sujeito
suposto
saber”
(14/12/1967).
In:
Outros
Escritos.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
337.
8
Lacan,
J.,
“Conférénces
et
entretiens
dans
dês
universitaires
nord-‐américaines”.In:
Scilicet
nº
6/7.
Paris:
Seuil,
1976,
p.
35.
185
corrente do efeito de tapeação próprio à transferência9, apontando para o engano do sujeito
suposto que se explicita na pergunta: “o saber que só se revela no engano do sujeito, qual
analista, o postulado do sujeito suposto saber caberia ser abolido no decorrer de uma análise.
A divergência de suposição aponta para a relação entre saber e crença, no que “três quartos do
Nesta época, ele chamava atenção dos analistas que tentaram tratar da existência do
Lacan diz então que irá “no cerne da prática que fez empalidecer o inconsciente buscar o seu
seguir a política do sintoma no que ele mantém um sentido no real que aponta para o ser de
gozo do sujeito.
9
Idem,
p.
240.
10
Lacan,
J.,
“O
engano
do
sujeito
suposto
saber”
(14/12/1967)
In:
Outros
Escritos.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
337.
11
Lacan,
J.,
“A
psicanálise.
Razão
de
um
fracasso”
(15/12/1967)
In:
Outros
Escritos.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
337.
12
Lacan,
J.,
“Conférénces
et
entretiens
dans
dês
universitaires
nord-‐américaines”.In:
Scilicet
nº
6/7.
Paris:
Seuil,
1976,
p.
12.
Em
especial,
nos
Seminários
da
Transferência
e
Os
Quatro
conceitos
fundamentais
da
psicanálise
e,
também
13
na
Proposição
de
9
de
outubro
de
1967
como
nas
conferências
proferidas
em
Roma,
no
mesmo
ano.
14
Lacan,
J.,
“Conférénces
et
entretiens
dans
dês
universitaires
nord-‐américaines”.In:
Scilicet
nº
6/7.
Paris:
Seuil,
1976,
p.
25.
15
Lacan,
J.,
“O
engano
do
sujeito
suposto
saber”
(14/12/1967)
In:
Outros
Escritos.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
332.
186
É nesta perspectiva que em 1975, Lacan dirá que “O sintoma é real. É a única coisa
verdadeiramente real, que conserva um sentido no real. É por essa razão que a psicanálise
Para tratar da afirmação segundo a qual o sintoma é real, é importante nos determos na
orientação clínica de Lacan sobre intervir simbolicamente no sintoma. Para tanto surge uma
nova acepção do sintoma, o sintoma vindo do real, o sintoma como “acontecimento de corpo,
que corresponde ao saber falado, ao saber falado fixado precocemente”17. O sintoma como
encarnação do real comporta uma incerteza por, desde sempre, permanecer “indeciso entre o
fonema, a palavra, a frase, mesmo todo pensamento”18. Isto porque “a linguagem, de começo,
ela não existe”. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função de alíngua”19.
Desse modo, o sintoma tem um lugar privilegiado entre as formações do inconsciente sendo
descrito como o analista devendo “deixasse guiar pelos termos verbais”20. A expressão
“termos verbais” propomos aproximar do significante fora da cadeia, fora sentido, como um
16
Lacan,
J.,
O
Seminário
–
Livro
14.
L’insu-‐que-‐sait
de
l’
une
bévue
s’aile
a
mourre.
Lição
de
15
de
março
de
1977,
inédito.
17
Soler,
C.,
“De
que
modo
o
real
comanda
a
verdade”
in
Stylus,
nº
19.
Rio
de
Janeiro:
AFCL/EPCL,
2009,
p,
23.
18
Lacan,
J.,
O
Seminário
–
Livro
20.
RJ:
Zahar,
p.
196.
19
Lacan,
J.,
O
Seminário
–
Livro
20.
RJ:
Zahar,
p.
189.
20
Lacan,
J.,
“Conférénces
et
entretiens
dans
des
universitaires
nord-‐américaines”.In:
Scilicet
nº
6/7.
Paris:
Seuil,
1976,
p.
17.
187
todo só, errático, do S1( S1( S1(S1 → //S2))) “que soa em francês essaim21, um enxame
significante, um enxame que zumbe”22 e “que garante a uma unidade de copulação do sujeito
com o saber”23. É importante aqui “conceber que o S2 de alíngua é ele próprio composto de
S1”, e que “o sujeito não virá no nível deste S2”24. É assim que Lacan diz que “os efeitos de
alíngua que já estão lá como saber, vão bem mais longe de tudo que o ser falante é suscetível
gozo”26 e que somente pelo simbólico é possível abordar o sintoma como acontecimento no
corpo. Dito de outro modo, o sintoma como modo pelo qual o sujeito goza na medida em que
o inconsciente o determina, aponta para o fato de que o saber inconsciente “está alojado em
outro lugar, ele está alojado na substância gozante”27 e aponta para uma fixão de gozo própria
fazendo sintoma, entendido como acontecimento no corpo, por trazerem aos traços do gozo
do Outro. Como não se pode gozar do corpo do Outro, dada inexistência da relação sexual é
através do gozo do sentido, que algo do sintoma pode ser tocado pela prática de falar em
análise.
21
No
dicionário
Le
Robert
–
essaim
significa
enxame,
exemplo:
“groupe
d’abeilles
d’insectes
em
vol
ou
posés.
22
Lacan,
J.,
O
Seminário
–
Livro
20.
Mais,
ainda.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
196.
23
Idem.
24
Soler,
C.,
“De
que
modo
o
real
comanda
a
verdade”
in
Stylus,
nº
19.
Rio
de
Janeiro:
AFCL/EPCL,
2009,
p.
19.
25
Lacan,
J.,
O
Seminário
–
Livro
20.
Mais,
ainda.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
191.
26
Lacan,
J.,
O
Seminário
–
Livro
20.
Mais,
ainda.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
36.
27
Soler,
C.,
“De
que
modo
o
real
comanda
a
verdade”
in
Stylus,
nº
19.
Rio
de
Janeiro:
AFCL/EPCL,
2009,
p.
18.
188
Estando trabalhando o saber inconsciente alojado na substância gozante, para Lacan
“o que há de surpreendente no sintoma ... é que se acredita”28. Logo, todo aquele que
demanda uma análise acredita que o sintoma diz alguma coisa e basta apenas decifrá-la. O
analista convocado a responder com o saber faz uma aposta que uma análise se dê, pela
associação livre do analisando. O desejo advertido do analista está suportado na sua própria
experiência de análise que deve tê-lo levado a um ponto de ateísmo que não se contradiz.
O ateísmo é definido por Lacan como “a doença da crença em Deus”29, a crença que
Deus não intervém no mundo. Assim todos seriam religiosos, mesmo os ateus que
acreditariam que Deus não tem nenhuma participação quando estão doentes. No nível do
gozo, o analista levado ao ponto do ateísmo durável, está advertido que o sujeito neurótico é
levado a delegar o gozo ao Outro. Porém, a experiência da análise permite ao analista entrever
que esta crença esta pautada no ateísmo, a doença da crença em Deus. Isto porque mesmo
sendo o gozo o que falta ao Outro, na neurose e o que o torna inconsistente, o neurótico tende
a delegá-lo ao Outro. Logo, o analista cuja à análise o levou a um ponto de ateísmo pode levar
um sujeito a formular a seguinte questão: “este gozo, do qual a falta faz o Outro inconsistente,
é ele meu?”30.
28
Lacan,
J.,
O
Seminário
–
Livro
20.
R.S.I.
Lição
de
21
de
janeiro
de
1975,
p.
24.
Inédito.
29
Lacan,
J.,
“Conférénces
et
entretiens
dans
des
universitaires
nord-‐américaines”.In:
Scilicet
nº
6/7.
Paris:
Seuil,
1976,
p.
32.
30
Lacan,
J.,
“Subversão
do
sujeito
e
dialética
do
desejo
no
inconsciente
freudiano”
(1957)
in:
Escritos.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
819.
189
É necessário um percurso para que uma análise se dê, e ele está articulado àquilo que
faz função de real no saber, ou seja, o impossível, a não-relação sexual. Uma análise começa
com um sujeito supondo um saber ao analista. Ao analista cabe colocar a destituição subjetiva
em pauta desde o início da análise para, assim poder manejar, com a suposição de saber a ele
obscuro que o representa”31. É aí que Lacan vai insistir que “Há Um e nada mais”. O Um que
insiste em se escrever pelo viés da fala, sob transferência, demonstra indiretamente o que não
não há relação dada a coalescência entre S1 e S2. O sintoma como o que de mais particular em
cada um, interroga a não-relação sexual e cria um intervalo entre S1 e S2, onde é possível
situar o sintoma ( ∑ ) que faz existir a relação sexual, faz existir o discurso. A questão então é
como um significante pode ser chamado a fazer sinal, a constituir signo33, sintoma para um
sujeito.
Lacan afirma que “o saber do um, por pouco que posamos dizer disto, vem do
significante Um”34 de alíngua. E ainda que é da alíngua que é possível extrair o que é do
31
Soler,
c.
“Standard
e
não
standard”
in:
Artigos
Clínicos.
Salvador:
Fator,
1991,
p.
28.
32
Soler,
C.,
“De
que
modo
o
real
comanda
a
verdade”
in
Stylus,
nº
19.
Rio
de
Janeiro:
AFCL/EPCL,
2009,
p.
17.
33
J.Lacan,
O
Seminário
–
Livro
20.
Mais,
ainda.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
195.
34
Idem.
190
significante35. Ao Lacan propor o Um encarnado, ele concebe que S2 é composto pelo S1. Do
saber falado tal qual o Um encarnado. O S2 aponta para o que há de contingente no ouvir e
põe em marcha toda a crença do sujeito no sintoma. A ponto de Lacan declarar que “o
significante Um não é significante qualquer. Ele é a ordem significante, no que ela se instaura
isto é alíngua ... que o significante pode ser chamado a fazer sinal, a constituir signo”38, a
fazer enigma, levando ao cúmulo de sentido. O sentido do que o sujeito ignora, o sentido do
que ele não sabe suscita o amor ao saber, ou seja, transferência39. É neste contexto que, por
contingência, ou seja, pela fala do sujeito em análise, algo pode vir a se escrever (S2) e é o que
faz função de real no saber, um saber sem-sujeito, um saber que ultrapassa o sujeito e aponta
para algo que cessa de não se escrever: o Um do gozo, a letra de gozo. Aponta, pois, para o
sintoma como o que há de mais real em cada um e para o inconsciente real que pelo cúmulo
de sentido do Um encarnado que faz signo, enigma e leva o sujeito a acreditar que o sintoma
35
Idem,
p.
194.
36
Idem,
p.
197.
37
Idem,
p.
190.
38
Idem,
p.
195.
39
Gerbase,
J.,
“O
discurso
histérico”,
curso
O
diagnóstico
na
psicanálise
e
na
psiquiatria,
inédito,
2010.
191
Ao tratar da crença no sintoma, em 1975, Lacan marcará uma distinção entre acreditar
no sintoma (“y croire”) como do campo da neurose e acreditar nele (“le croire”). Na psicose,
sabemos, as vozes estão lá, o psicótico acredita nelas, daí porque Lacan formulou que na
psicose o que foi foracluído no simbólico, retorna no real. Porém, tanto na neurose como na
significante rompida que faz com que a irrupção de um significante no real seja
incontestável40, por exemplo: “porca”. De acordo com Bernard David41, o psicótico acredita
na sua alucinação de forma redobrada, ele utiliza a passagem da paciente entrevistada por
Lacan que diz ter escutado “porca” para demonstrar isso. A crença seria redobrada pelo fato
paciente. Este significante quer lhe dizer alguma coisa e, em alguns casos, já diz alguma
coisa, apesar da paciente. Em razão da não-extração do objeto a, está vetado à paciente saber
o que é o seu ser de gozo, o significante equivale a ela enquanto objeto de gozo do Outro.
acreditar no sintoma e acreditar nele. O significante real “porca” (S2), essa irrupção do
inconsciente real, de um saber sem sujeito, frente a ela a paciente não se vê representada pelo
significante alucinado, até aí ela sofre o efeito do cúmulo de sentido que faz signo e demanda
40
Lacan,
J.,
“De
uma
questão
familiar
à
todo
tratamento
possível
da
psicose”
in:
Escritos.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
542.
41
Bernard,
D.
“Y
croire,
les
croire”
in:
Pli,
nº
4.
Revue
de
Psychanalyse.
192
interpretação. Somente com a formalização do delírio que a paciente passa a acreditar nele,
elaboração, pautada na transferência. O significante que faz enigma seria real como o
significante no real próprio à psicose, a diferença é que ele não é alucinado, podendo ser
encarnado, inscrito no corpo, como nos ilustra a histeria. Esse significante é causa de gozo e
objeto de gozo na medida em que se goza dele, porém é um real que pode se converter em
psicose o sujeito possa fazer laço social. Um exemplo seria Joyce ao conciliar seu gozo
autístico, o gozo do Um, ao gozo da letra, se impor ao mundo como artista fazendo-se
promotor de seu nome de gozo. Os seus livros Retrato do artista quando jovem ou Stephen, o
herói, não se trata de um herói ou um artista, mas do herói e do artista que é uma crença da
mesma ordem que a crença de Schreber de ser A mulher de Deus43, apontando que ele
acredita nela.
cadeia significante sob transferência e, “na saída, a descrença que o desliga da cadeia
42
Soler,
C.,
“Les
symptômes
de
transfert”,
curso
inédito
de
1999.
43
Soler,
C.,
O
inconsciente
a
céu
aberto
da
psicose.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
2007,
p.
206.
193
significante”44. Como já dizemos acreditar no sintoma é acreditar que ele diga alguma coisa.
É nisso que o sintoma interroga a não-relação sexual. Acreditar no sintoma seria como lhe
acrescentar reticências, acreditar que ao S1 pode juntar um S2 que faria sintoma retornar do
com o sintoma presume que o sujeito tenha deixado de esperar que a tradução pelas
reticências, deixa-se, pois de acreditar, “a letra do sintoma resolve o vazio do sujeito que
Por fim, Lacan ao afirmar que “o real, tal como nos falamos dele, é completamente
desnudado de sentido”... “porque não é escrito com palavras. E sim com pequenas letras”46
aponta para o que seria a infinitude da análise. Na qual “o sujeito ao acreditar no sintoma,
acredita que o “um” da letra pode retornar ao “dois “ da cadeia”47, e assim alimentar o gozo
do sentido atrelado ao real do sintoma, política cujo manejo o analista é convocado a operar.
44
Idem,
p.
198.
45
Soler,
C.,
O
que
Lacan
dizia
das
mulheres.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
198.
46
Lacan,
J.,
“Conférénces
et
entretiens
dans
des
universitaires
nord-‐américaines”.In:
Scilicet
nº
6/7.
Paris:
Seuil,
1976,
p.
29.
47
Soler,
C.,
O
que
Lacan
dizia
das
mulheres.
Rio
de
Janeiro:
Zahar,
p.
197.
194
Sintoma ou Fenômeno Psicossomático? Decifra-me ou te devoro!
Neste trabalho trazemos reflexões, a partir da clínica, em torno do que pode ser
levado em conta - no caso em que se apresenta uma lesão num órgão – para se dizer se se
campo da linguagem que situaremos nossa questão como uma questão de nome.
introduz na psicanálise pelo sintoma. Nesse sentido, é com o corpo, enquanto submetido à
ordem simbólica - afetado pela linguagem - que é possível esvanecer a diferença, tão cara às
ciências filosóficas, entre mente e corpo. Assim, aponta Garcia-Roza (1936), a dicotomia não
Em “Radiofonia” (1970, p.406), Lacan afirma que o corpo simbólico é aquele sobre o
qual o ser que nele se apóia não sabe que é a linguagem que lhe confere,a tal ponto que ele
não existiria, se não pudesse falar. Assim, é o corpo falado no divã que pertence à
consistência imaginária e simbólica, e separado da carne. Ele, como sintoma, afetado pelo
1
Psicanalista.
Membro
da
EPFCL
–
Brasil/
AFCL
–
Fórum
Natal
195
passo que o organismo é pulsional, coisa bruta e real. Não há encontro com o significante: o
fazendo-a exilar-se. Ser afetado pelo significante dá ao corpo consistência, a mesma que
original, a qual Freud designou como representação coisa, para outra representação. A
representante-representação.
representação coisa o corpo pulsional. Nesse encontro, segundo Freud, uma parte fica no
S1- S2, no que ele representa o sujeito para um outro significante, o qual o outro
estabelece, um quantum de afeto fica solto, e o excesso é sentido como angústia. Isso
196
significa dizer que o encontro entre a representação coisa e a representação palavra não se
efetivou. O afeto franqueado se tornará então não simbolizado, não encontrando uma
linguagem para seu escoamento. Em termos lacanianos, trata-se de um excesso de gozo, isto
é, do real.
é real; e, como tal, ataca o corpo sem mediação simbólica. Seus efeitos se mostram na marca
impressa no corpo, que, no dizer de Lacan, não pode ser lida. No “Seminário 11”, Lacan situa
intervalo significante. Ele diz que a psicossomática é algo que não é um significante, mas que
maneira que não põe em jogo a afânise do sujeito (Lacan, 1964, p.215)
Lacan não designa a psicossomática como estrutura, mas, antes, como efeito de
linguagem, sendo, portanto, um fenômeno, o que nos permite afirmar que um sujeito
(2010, p11), para gozar é preciso um corpo e não um sujeito. O corpo desgarrado do
que revela a confusão apontada por Freud (1915), quando diz que o fato de não se levar em
conta o inconsciente é supor que tudo que é mental é consciente. Nesses dois campos, quem
tem o saber é o especialista. Satisfeito, o paciente sai com uma receita química da consulta do
197
psiquiatra, ou com uma receita comportamental da consulta com o psicólogo e, de quebra, sua
Nesses casos, por exemplo, uma dor de cabeça é sinal de estresse, excesso de
uma doença do nome, a qual pode ser substituída ou deslocada. Assim, como sintoma
psicanalítico, precisa ser contado, falado, para dizer a verdade, sem dela saber, apenas pela
Vanessa, 42 anos, chega à sessão de psicanálise dizendo que sua voz está rouca e
baixa, que está quase sem voz. Conta que ficou assim após uma discussão no trabalho na qual
sua colega lhe gritou e ela respondeu em voz baixa. Vanessa diz também que, no dia seguinte,
soube que sua sobrinha fora embora para a França com um estranho que conhecera há pouco
tempo, e, que, ao saber dessa notícia, ficou sem voz. Vanessa foi ao médico, e ele
diagnosticou que ela estava com calo nas cordas vocais. Sua doença ganhou nome, tratamento
específico e localizado.
tinham o valor de uma análise. Isso significa dizer que o sintoma psicanalítico é aquele
198
Vanessa queixa-se também de ter perdido suas digitais, diagnóstico dado pelo médico.
Ela não sabe dizer o porquê, não consegue construir um saber: não há bateria de significantes
disponível; dele apenas interroga o porquê. Sua questão orbita em torno da causalidade, e não
Lacan nos ensina que, na psicossomática, há um gozo localizado, que retorna ao corpo
e induz a lesão; um gozo não domado pelo significante, o qual consiste em um ataque que
deixa sua marca, uma marca que é da ordem do número, o que aponta para um quantum da
ordem de uma decifração. O gozo deixa seu rastro para não ser lido; a lesão atesta a sepultura
cavada pelo gozo; e o número, o seu epitáfio. O ataque do gozo ao corpo e seu devoramento
Mas, na prática, considerar um como sintoma e o outro como fenômeno a que nos
remete? O que ensinam os fenômenos psicossomáticos, a que eles respondem, ou, ainda, que
relação ao consciente da consciência foi a idéia de que “não há necessidade de saber que se
sabe para gozar um saber”. Ora, Vanessa não sabe, ao dizer que ficou afônica após a
dito. Em seu trabalho ela desloca, faz deslizarem palavras metonimicamente, o que sabe sobre
199
sua rouquidão. Agora, banhada pela linguagem, as cordas vocais lesadas tomam valor de
sentido. Talvez possamos considerar que, diante da lesão orgânica, ela constrói um saber.
O sujeito articula-se na cadeia falada, como diz Lacan (1964, p.198): a característica
do sujeito inconsciente é de estar, sob o significante que desenvolve suas redes, suas cadeias
e sua história. Nesse sentido, o importante é o que de gozo pode ser barrado pela emergência
do saber, o qual só pode ser produzido pelo sujeito dividido, divisão, essa, que permitiu o
exílio do gozo.
Lacan, no “Discurso de Genebra” (1975), concorda com o Sr. Vautier quando este
assinala que quando se tem a impressão de que a palavra gozo recupera um sentido com um
extrai um saber. Há uma nomeação, uma afetação da linguagem, uma doença por efeito do
emblemático dessa lesão; ou seja, perder as digitais significa perder o que, no registro da
identidade civil , constitui a marca da existência singular. Sua lesão ganhou nome, no entanto
não há nome de fato que a nomeie. É palavra vazia, sem nomeação que sustente uma história.
Sem nome, sua lesão devora seu ser de sujeito, produzido pela não afânise, não representação
200
significante, ausência da representação-palavra. Devorada por sua lesão, ela se situa ante a
questão de ter que decifrá-lo, para que possa dele livrar-se e, assim, poder representar-se
metonimicamente.
Referências:
FREUD, Sigmund. O Inconsciente. (1915). Obras Completas. Vol XIV. Rio de Janeiro:
IMAGO, 1980.
GARCIA-ROZA, Luis Alfredo. O Mal Radical em Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1990.
LACAN, Jacques. Conferência de Genebra sobre o sintoma. Mimeo.1975.
______________ O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
(1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______________.Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
SOLER, Colette. O “Corpo Falante”. Caderno de Stylus. Rio de Janeiro: IF/EPFCL, 2010.
201
Considerações topológicas da passagem do sintoma ao sinthoma
Conrado Ramos1
Um analisante passou seus anos de decifração em torno da relação entre três questões:
o que é ser um filho, o que é ser um pai, e como isso se articulava nos seus laços amorosos e
de trabalho. Ele fazia de sua vida um morrer de trabalhar pelo qual repetia o esforço, por um
lado, de ser reconhecido e amado pelo pai cruel e insaciável que teve e, por outro lado, um
meio de fazer diferente de seu pai, tomando por filhos aqueles implicados nos efeitos de seu
trabalho. Morrer de trabalhar era um sintoma que atravessava a sua história significando suas
posições, ora de filho, ora de pai. Durante anos tomou remédios psiquiátricos por estar sempre
uma pilha de nervos. De tanto querer livrar-se desta situação, concluiu que foi por meio dela
que se constituiu e que tentava fazer do morrer de trabalhar uma forma paradoxal de vida.
Começou a referir-se ao trabalho como uma estranha satisfação que o fazia sentir-se pilhado
(de pilha, bateria). Pilhado, significante que se repetiu em outro momento de sua análise,
quando ele se dizia trabalhando sempre para o Outro, que o fazia sentir-se pilhado (isto é,
roubado). No início do tratamento, ele fazia constantes referências à pilha de coisas que tinha
para fazer, modo pelo qual apresentava, angustiado, o peso gigantesco de suas intermináveis
tarefas. Mas eis que um dia veio a seguinte construção: “acho que não tenho como mudar a
minha relação com o trabalho: eu sempre pilho”. E então eu pontuo: “pai e filho, pilho?!”, ao
1
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
–
Brasil.
Membro
do
Fórum
São
Paulo
202
que ele responde: “É isso! Eu sempre pilho: pai e filho, pilho! Não tem jeito! E o que eu tenho
significante pilho, trouxe desdobramentos e fez, em algumas semanas, a análise trazer à tona
parede do corredor de sua casa de infância, cujo olhar sagrado, refletido no espelho de seu
Seguiu-se a isso um percurso de tentativas de dar sentido e esse lugar: uma nova
relação na qual ele se descobriu agindo sempre como pai da namorada; um novo emprego
(“agora vou fazer diferente”) em que quase morreu de trabalhar, colocando-se diante do
patrão numa posição que julgou feminina; reatou laços com o filho do primeiro casamento e
se descobriu filho do próprio filho por ver que esse aprendeu a se virar sem o pai (coisa que
ele mesmo dizia jamais ter conseguido); tornou-se provedor de parte da família e viu-se
explorado no lugar do próprio pai falecido... Enfim, pela tagarelice, identificações foram
Algum tempo depois ele trouxe o seguinte numa sessão, referindo-se à religião como
uma prática de dar sentidos à sua submissão: “sem nunca ter sido religioso, aqui eu sempre fui
religioso, porque eu sustentava minha loucura buscando sempre um sentido para ela. Um
sentido não dava certo, eu buscava outro; esse não dava certo, eu buscava outro. Agora eu
vejo que meu erro não era não encontrar o sentido certo. Meu erro era ser religioso. A minha
loucura não tem sentido. E se não tem sentido, por que eu preciso dela? Se eu não preciso
203
mais ser religioso, não preciso mais também da minha loucura. Vai ver que a minha loucura
era justamente este ‘ser religioso’: minha mania de achar que preciso me sacrificar pelo Pai.”
Aqui veio um silêncio e hesitei quanto ao corte da sessão. Segurei um pouco mais e ele
seguiu: “E por falar em Pai, ‘Fiat lux’... Eu me orientava pela luz do outro. Mas essa luz
sempre foi minha: eu é que colocava a luz no outro. Não tem luz nenhuma lá.” Cortei a
sessão.
Depois dessa sessão, ele redescobre aos poucos o prazer da leitura e, admirador da
arte, diz permitir-se levar adiante o que julga ser seu maior deleite, a experiência estética.
Descobre ainda a satisfação que tem ao preparar suas aulas e, em relação ao dar aulas,
comenta: “dar aulas não precisa ser um jogo de lugares – meus alunos não são meus filhos ou
meu pai –, mas sinto ali uma estranha fruição... Engraçado dizer isto, mas se ali algo frui, é
porque sou visto: tem ali um olhar que não é o olhar do meu pai, mas é um olhar... é só um
olhar.”
Cai o olhar do pai, o olhar que se pretendia verdadeiro e universal. O olhar que fica,
esse que é só um olhar, já não é universal, mas esse olhar, embora não verdadeiro e não
universal, nem por isso é uma mentira se ele tem o real por medida.
Este caso me faz questionar, entre outras coisas, se um sintoma não é aquilo que uma
análise pode levar do morrer de trabalhar para o Outro ao fazer-se ver. O gozo parasita do
morrer de trabalhar pôde, no fazer-se ver, articular-se não-todo à cadeia significante e entrar
no laço sem precisar ser pela via do mais-gozar extraído por meio da fantasia obsessiva de
servidão ao pai: do morrer de trabalhar enquanto sintoma (S1) que tenta, para capturar S2
(tornar a relação sexual possível), fazer a coalescência entre a falta de um significante para o
204
lugar de filho [S(A/)] e o olhar como objeto a, pôde-se chegar ao fazer-se ver como o
incurável do sintoma que se descolou da fantasia (do gozo do sentido) e pode ser gozado não-
todo, isto é, sabendo-se não recobrir o JA/ com o gozo do sentido por meio do JΦ. Isto pode
ser visto no grafo do desejo quando, com a queda da consistência do Outro, o circuito do
grafo faz passar do sintoma [s(A): morrer de trabalhar] para a pulsão [$ <> D: uma estranha
Com o esvaziamento dos sentidos da posição de pilho e com a queda do objeto olhar
onividente (que carrega de sentido o gozo do grande Pai2), entendo ter havido um
fantasia que visa sustentar esse Outro por meio do sacrifício, para uma pura função F(x)
em relação ao objeto a como causa, como o corte que produz a borda e transforma o
sintoma em resposta do real (ou seja: uma pulsão). Entendo aqui o sintoma, como
resposta do real, como aquilo que faz pura função em relação à borda e que Lacan
invariante ‘através’ de um circuito orificial, isto é, tal que a superfície inicial já não entra
em consideração” (p.861). O que responde por esta função de fluxo é a pulsão. Assim, do
furo real no toro (que não é o eixo!), para o qual a superfície já não conta, mas sim a
propriedade borromeana que daí surge, se faz passar do furo falso do sintoma [s(A)]
para a pulsão [$ <> D] como função de sintoma real. Aí está: do sintoma ao sinthoma,
temos
topologicamente
a
passagem
do
eixo
como
furo
falso
da
superfície
sem
furos
do
2
Agradeço
à
Sandra
Berta
por
esta
observação
precisa.
205
toro
à
propriedade
borromeana
que
advém
do
furo
real,
para
o
qual
a
superfície
já
não
conta mais: por isso, sustento que o sinthoma foi posto por Lacan como um 4º nó apenas
No campo do falatório, da tagarelice, o sintoma desse obsessivo não teve parada,
Para que houvesse algo que julguei aproximar-‐se da identificação com o sintoma, foi
preciso que seu gozo encontrasse uma fixação que não fosse da ordem da repetição que
negava o real do furo na medida em que tentava fazer a relação sexual ex-‐sistir por um
gerar superfície e se transformar no signo do amor ao Pai. Para que houvesse uma
identificação com o sintoma foi preciso que seu gozo fosse além da petrificação que
tentou fixar o corpo do Outro como signo do amor no olhar sagrado do Cristo visto no
espelho do quarto [$a]. Para que fosse possível uma identificação com o sintoma foi
preciso que seu gozo encontrasse uma fixação que funcionasse como ponto de basta, o
que pressupõe a dimensão da referência que toca o real da inexistência da relação sexual
(uma Bedeutung) e que, deste modo, por deixar cair o sentido (S2, queda do SsS), acaba
logicamente valendo por si mesma (S1=S1): faço menção aqui ao que se pode extrair da
tautológica formulação de que “tem ali um olhar que não é o olhar do meu pai, mas é um
mais do que o gozo do objeto, ela visa a identidade do ser, não sem ecoar no lado do
outro. É daí que entendo haver identidade no fazer-se ver final, sob o qual não incide a
206
consistência
(a
superfície)
de
um
olhar
universal,
mas
de
um
olhar
que
é
só
um
olhar
Este tocar o real é o que revela a condição de metáfora do sintoma: “[...] não é à
toa que, em uma corda, a metáfora advenha do que faz nó. O que tento é descobrir a que
que nos referimos ao nó. Quero dizer que usamos a linguagem de um modo que vai mais
longe do que o que é efetivamente dito. Sempre reduzimos o alcance da metáfora como
tal. Ou seja, ela acaba reduzida a uma metonímia.” (Seminário 23, p.41). O sintoma
metáfora, porque deixa cair S2 e, então, pode fazer nó: [S1=S1//S2].
É nesse sentido que sugiro pensar topologicamente o sintoma obsessivo do início
do tratamento como uma banda tripla, ou seja, como tagarelice, como metonímia sem
fim, porque dá voltas infinitas com a impotência que carrega para morder o próprio rabo
ou para ter uma referência acerca de que lado da banda se está: nestas voltas, só se
Lacan só vai concretizar topologicamente na última aula do Seminário 25, em 11 de abril
pulsional do furo, a que a análise conduz o sintoma inicial. Somente quando a superfície
207
borromeana
pode
se
escrever:
metáfora
real
da
estrutura.
(Afinal,
por
que
a
metáfora
tem que ser simbólica? Não é a escrita do nó uma metáfora real?)
com uma volta não contada em cada “sentido que não dava certo”, foi para cingir um furo que
se escreveu ao final como um nó, por um reviramento tórico, quando ele deixou cair o estofo
da superfície ao se separar do que chamou de ser religioso. O que é isso que ele chamou de
ser religioso senão sua própria condição tórica vista de um outro lugar? O que restou, aí, não
foi o verdadeiro como consistência, como medida, mas a verdade do real, como orientação
para o inconsciente real. A diferença entre o verdadeiro e a verdade do real é que o primeiro é
geometria do fio: enquanto um nó mínimo, um nó de trevo, ela não tem sentido algum, mas
dá sentido (orientação) quando, ao passar por cima e por baixo de si mesma três vezes e voltar
ao mesmo lugar, separa furos e, com eles, gozos (isto é, faz litoral). Para deixar cair a
superfície do verdadeiro e fiar-se nos furos do real, é preciso trocar de medida: substituir o
verdadeiro do sentido pelo sentido do real. Daí que o verdadeiro, no final, não pode mais
De volta ao caso, mais recentemente, uma sessão foi interrompida após a seguinte
frase: “não sei por que nunca pude reconhecer isso, mas o fato é que eu posso ter brilho”:
Conhecer
quer
dizer
saber
lidar
com
esse
sintoma,
saber
desembaraçá-‐lo,
saber
manipulá-‐lo,
saber
–
isso
tem
alguma
coisa
que
corresponde
ao
que
o
homem
faz
com
sua
imagem
–
é
imaginar
a
maneira
pela
qual
a
gente
se
vira
com
esse
sintoma.
Trata-‐se
aqui,
certamente,
do
narcisismo
secundário;
o
208
narcisismo
radical,
o
narcisismo
que
chamamos
primário
estando,
nessa
ocasião,
excluído.
Saber
se
virar
com
o
seu
sintoma
está
aí
o
fim
da
análise;
é
preciso
reconhecer
que
é
conciso.
(LACAN,
1976-‐77,
p.
8,
aula
de
6
de
novembro
de
1976).
Entendo que este brilho aparece nesta análise marcando o lugar do que Lacan
Posso dizer, em resumo, que o sintoma do início, na forma do morrer de trabalhar, era
um não saber que se gozava de um saber, enquanto o sintoma do fim, o fazer-se ver, é um
saber gozar de um saber que não se sabe. Posso afirmar, assim, que houve uma mudança na
REFERÊNCIAS
LACAN, J. (1960) Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
LACAN,
Jacques.
(1975)
Joyce,
o
sintoma.
In:
Outros
escritos.
Rio
de
Janeiro:
Jorge
Zahar,
2003,
p.560-‐566.
LACAN, J. (1975-‐76). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LACAN,
J.
(1976-‐77).
O
Seminário,
livro
24:
L’insu
que
sait
de
l’une
bévue
s’aile
à
mourre.
Edição
heReSIa
(para
circulação
interna).
Inédito.
LACAN,
J.
(1977-‐78)
O
Seminário
25:
O
momento
de
concluir.
Tradução
de
Jairo
Gerbase.
Inédito.
209
Um Adolescente em Cena
Bela
Malvina
Szajdenfisz1
ultrapassa a capacidade de simbolização, de historicização, de representação. A reativação do
complexo edipiano coloca o adolescente frente a verdadeiras questões sobre sua identidade,
seu corpo, seu lugar, provocando-‐lhe um mal-‐estar que o aproxima da psicose. Quem sou eu?
O que o Outro quer de mim? O que quero pra mim? São questões com que o adolescente se vê
às voltas.
Sob o efeito do olhar do Outro, o adolescente precisa se apropriar de uma imagem que
lhe é estranha, atravessar um segundo tempo quando se opera um deslocamento do campo
pulsional e que obedece a uma lei simbólica constitutiva do sujeito do desejo. Essa travessia
exige uma intensa elaboração do laço social a partir das referências simbólicas transmitidas
travessia considerada por Freud como o trabalho mais difícil para o sujeito.
1
Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela UVA/RJ e mestre em Psicologia da Educação pelo
IESAE- FGV/RJ. Especialista em Psicopedagogia Clínica.pela UERJ.Membro do Fórum do Campo
Lacaniano do Rio de Janeiro, da IF-EPFCL e da AFCL/EPFCL. E-mail:bmal.trp@terra.com.br
210
Ao
se
deparar
com
a
falta
do
Outro,
porque
o
Outro
falta,
o
jovem
precisa
suportar
o
desamparo e sair em busca do que lhe falta, sustentado nas marcas vindas do campo desse
Outro primordial. A inconsistência do Outro vai permitir ao adolescente deparar-‐se com sua
verdade e dar voz a seu desejo, propiciando assim a efetivação do trabalho de separação e a
adolescente às voltas com o processo da separação, travessia que exige uma elaboração
intensa do sujeito frente aos impasses que se colocam diante dele. A ambivalência -‐ em
relação a essas referencias primordiais -‐ de duas dimensões inerentes à vida psíquica -‐ amor
e ódio -‐ é não dialetizada, situação fronteiriça que transborda o psiquismo do sujeito.
Carlos, o adolescente que trago à cena, é um jovem de 19 anos, alegre, comunicativo,
que adora praia, namorar, brincar, ir para a cama dos pais nos finais de semana e enroscar-‐se
neles. A irmã, muito diferente dele, sempre foi séria, muito distante, uma estranha, apesar de
Seus pais, um arquiteto e uma psicóloga, ambos funcionários públicos, dão muito valor
Ainda cursando o Ensino Médio, Carlos, sem qualquer definição profissional, foi
buscar orientação vocacional para saber qual a sua inclinação, o que pouco adiantou. Isso
211
porque
respondia
às
perguntas
de
acordo
com
seu
interesse.
Queria
ingressar
logo
em
uma
A escolha do curso universitário deu-‐se, segundo ele, pelo amor que tinha aos
professores do colégio e também regido pela lei do menor esforço. Não deu certo. Explica-‐se:
“A universidade estava horrível, não suportava mais aqueles professores. Foi como uma
bomba em minha vida. Abandonei tudo. Fiquei perdido. Não sei para onde quero ir! Só sei
que não quero continuar a fazer o que fazia. Não sei nem o que quero. Não sou muito bom em
Carlos, até então filho carinhoso, prestativo, estudioso, obediente, numa tentativa de
separar-‐se das figuras parentais, surpreende-‐as com um ato para além do sujeito, algo da
ordem do real. Envolve-‐se com drogas, rompe com a universidade, com a namorada e deixa
Sua irmã, dois anos mais velha, está concluindo um curso superior, estagia e se
prepara para tentar o mestrado. Carlos fica envergonhado perante a irmã e os amigos já
estagiando, pois ele agora, ter que voltar para cursinho e tentar outra universidade, pública,
naturalmente. Não sabe o que fazer: comunicação social, engenharia ambiental... “Vou fazer
20 anos, quero escolher mais as minhas coisas. Quero ter minha independência. Já pensei em
ter meu próprio negócio (brincando: quem sabe até em plantar maconha?), controlar minhas
coisas, mas minha mãe diz: ‘nem pensar’. Estou me sentindo no vazio.“
Carlos é um sujeito dividido que desvela um real impossível de dizer. Sentindo-‐se no
212
desamparo,
sai
em
busca
de
análise.
Esse
jovem
ocupa
o
lugar
de
quem
sofre
com
a
estrutura.
A que esse sintoma está respondendo? Alberti (1996) refere-‐se ao sintoma como o elo
necessário que se cria entre simbólico, real e imaginário no sujeito da neurose.
Uma das razões que leva o sujeito neurótico a buscar um analista para sua queixa, na
qual o Outro goza, é a falha na solidificação da metáfora paterna. Podemos, no caso, pensar
O pai de Carlos é um sujeito jovem, joga futebol nos finais de semana com os amigos e
depois sai para beber. Não raro se infiltra na turma do filho. O tio materno, único irmão da
mãe, inteligente igual a ele, também fez um curso técnico. Ambos foram jubilados a seu
tempo. Esse tio mora atualmente em outro Estado, onde também é funcionário público, como
seus pais. Ele e a mãe de Carlos tinham um negócio comercial e ele sujou o nome dela,
deixando uma enorme dívida para ela pagar. Até hoje não se falam. A mãe compara-‐se o
tempo todo com o filho, no que diz respeito ao estudo. Percebe divergências e contradições
na fala da mãe, e comenta: “Tudo que faço sempre é pouco para ela!”
Qual a relação do sujeito falante com o inconsciente e o desejo? Esta é a questão formulada
por Lacan na década de 1960, para construir sua teoria dos discursos, discurso como estrutura que
testemunhar o sujeito como efeito de um discurso que, na neurose, faz laço social, a experiência
uma marca, gozo original que se constitui na sua singularidade e que se repete numa busca de
reencontro com esse gozo original perdido. Lacan vai atrás da verdade que se esconde por trás da
marca do corpo, apontando para nossa cegueira frente ao real, um real insuportável que se enuncia
discursos que marcam nossa civilização: governar, educar e analisar. Propõe no texto “De Nossos
Antecedentes” (1966) a retomada do projeto freudiano pelo avesso , uma vez que a prática
psicanalítica desvela pela palavra a produção incessante de sentido pleno de gozo, satisfação
nos anos 1969-1970, quando os estudantes questionavam as instituições e o poder, bem como suas
bases, dentre elas, o saber. Aos discursos denominou “quadrípodes”, termo com o qual alude a essa
peculiar formação de quatro lugares e quatro termos que giram em uma rotação calculada para
No esquema de Lacan, cada discurso tem um agente que frente a um outro caracterizam o
laço social. Sustentado por uma verdade, o agente age sobre alguém para obter um produto do laço
social. No discurso do mestre o agente é o senhor (S1) que age sobre o escravo (S2), fazendo-o
trabalhar. O produto (a) tem um valor ao qual o escravo renuncia em favor do gozo do senhor. Esse
discurso é um saber que não sabe, ou seja, é um discurso que denuncia o senhor transmutando o
saber do escravo no seu próprio saber. O princípio desse discurso é acreditar-se unívoco, ou seja,
214
discurso que admite apenas uma interpretação, ao que Lacan vai contrapor no seminário 17 (p.108)
em relação ao discurso analítico. Para a psicanálise o sujeito não é unívoco, pois não há como
apagar a divisão subjetiva e a indicação do gozo nas relações da linguagem com o corpo.
O discurso do mestre é fundador para o sujeito. O adolescente encontra esse saber, mas
tenta subverter seu poder, às vezes de modo histérico. Ante aos protestos de um sistema ditatorial,
Lacan, ao lançar aos jovens em Vincennes, em 1969, a forma do sujeito se relacionar no mundo,
coloca-os como sujeitos do desejo de ter um mestre, situando-os no discurso da histeria, condição
O discurso analítico é o laço social determinado pela prática de análise. Merece ser elevado
à altura dos laços mais fundamentais, dentre os quais permanece, pois é o único laço social que
trata do sujeito do desejo. (Lacan, 1973). Ao entrar em análise, o sujeito supõe que o analista
detém o saber sobre o seu sintoma e o inclui no sintoma. O discurso do analista é o único que
coloca no lugar do Outro um sujeito que tem como agente a causa do desejo. Quando o saber é
solicitado pelo analista a funcionar no lugar da verdade, histericiza o discurso. O discurso histérico
que conduzirá o sujeito à verdade como saber, ao enigma do gozo, é essencial para determinar a
posição do sujeito. O analista, ao ser incluído no sintoma do analisando, ocupa o lugar de objeto
mais-de-gozar (a) provocando o sujeito barrado ($) a produzir seus próprios significantes (S1) que
Na adolescência o sujeito se abre para evidências de um sistema do qual ninguém se
apropria, um discurso civilizatório que pertence a uma ordem social, denunciando o gozo
como privilégio do senhor. Esta verdade faz cair por terra os pais que os filhos supunham
215
infalíveis.
Subvertem
a
ordem
e
saem
em
busca
de
um
discurso
em
que
possam
se
engajar,
Pensando com Alberti que é tecendo voltas e voltas em torno desse real impossível de
dizer, que os nós vão se consolidando, o recalque vai se medindo e o sujeito vai podendo, enfim,
Com o gozo do Outro suspenso pela presença do analista, Carlos é deslocado do lugar de
objeto de gozo, de onde responde como sintoma da família. Ao deixar cair a fantasia de que o
Outro é completo, Carlos vai poder fazer o giro nos discursos saindo desse lugar de gozo do Outro
Referências
ALBERTI, Sonia. Esse Sujeito Adolescente. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.
FREUD, Sigmund. (1919). Uma Criança é Espancada: Uma Contribuição ao Estudo da Origem das
Perversões Sexuais. In Edição Standard das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.
17.
LACAN, Jacques. (1966). De Nossos Antecedentes. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
______________ (1969-1970) O Seminário, livro 17. O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1992.
______________ (1973). Televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
QUINET,Antonio. (1951) Psicose e Laço Social. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
RASSIAL, Jean-Jacques. O Adolescente e o Psicanalista. Rio de Janeiro: de Freud, 1999.
216
A Relação do Sintoma com as Leis Morais
Introdução
Segundo Freud (1926 [2001]) o sintoma é um sinal e um substituto de uma fantasia que
permaneceu em estado suspenso, sendo conseqüência do processo de recalque. Não podendo
realizar um determinado desejo, o sujeito o substitui por outra coisa que seja mais aceita
diante da moral sexual civilizada diante da qual o sujeito se vê embaraçado.
Sintoma
Ele salienta a importância de não confundirmos o sintoma com a "doença" em si, pois
eliminar os sintomas não significa estar livre da "doença", mas apenas estar livre para a
formação de novos sintomas. O sintoma psíquico é, em essência, um fator prejudicial à vida
dos sujeitos que deles sofrem, pois causa sofrimento, prejudicando de alguma forma as suas
1
Graduanda de psicologia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Endereço eletrônico:
aline.goncalves17@yahoo.com.br
217
vidas na medida em que não lhes permitem livre curso aos investimentos.
A fantasia tem uma relação de extrema importância com o surgimento dos sintomas,
relação esta que se dá de forma bem complexa. O que pode ser observado no Caso Hans,
retomado por Freud em seu texto “Inibição, sintoma e angústia” (1926[2001]), é que Hans
desloca seu impulso hostil pelo pai para o medo de cavalos. Em outras palavras, no contexto
edípico do pequeno Hans, contexto que foi estruturar o desejo no ser falante, a fantasia
edípica não podendo ser concretizada – por causa da proibição social do incesto –, o levou ao
recalcamento do impulso hostil contra o pai, transferindo tal impulso para o medo de cavalos,
uma forma de firmar um compromisso entre a proibição ética do incesto e o desejo inicial.
Razão de Freud também identificar o sintoma como uma formação de compromisso. Freud
(1908[1988])
partir da fantasia inconsciente, que é sempre de desejo, ele necessariamente tem sua
origem na infância, independente de o sujeito estar na idade adulta ou não. O sintoma pode ter
relação direta com experiências traumáticas, que na época em que aconteceram não ganharam
a devida importância e que somente tempos depois emergiram novamente, configurando-se
como trauma. Considera-se como traumático o evento que não pode ser simbolizado à época
em que ocorreu e que, num a posteriori retorna sem uma possível significação por falta de
simbolização. É justamente a fantasia que então procurará dar um destino a esse evento,
218
amarrando-o de alguma forma na rede das significações. Assim, podemos dizer que o sintoma
necessariamente se articula com algo que foi traumático para o sujeito e, por isso, articulado a
uma fantasia. Se todo sintoma se sustenta numa fantasia, então todo sintoma é também
decorrente do fato de que há o não possível de simbolizar. Mas, sabemos, que isso é para todo
ser falante – sempre há algo que não pode ser simbolizado – e, por isso, o sintoma em
psicanálise não é somente o efeito de uma doença mas, sobretudo, um efeito necessário de
sujeito.
Mas retomemos os sintomas que causam sofrimento e que são aqueles sobre os quais
Freud mais se debruçou em sua obra e acompanhemos o desenvolvimento teórico que ele
pode construir em relação a estes, a partir de seu conceito de pulsão – ou seja, o que está na
origem dos investimentos psíquicos que ficam inibidos em função do conflito que cria este
sintoma. Uma pulsão, que nasce no Isso, é ativadora de um desejo que foi considerado
proibido. FREUD (1926[2001]) afirma que tal pulsão não teve sua satisfação direta porque o
que se buscava era o prazer e, em virtude da proibição, o prazer foi substituído por desprazer.
O processo de recalque, que age como uma força contrária ao Isso, funciona como uma
tentativa de fuga da realização dos desejos do Isso. O sintoma como formação de
compromisso, é o resultado de uma forma de acordo entre forças em luta provenientes do Eu
e do Isso. Devido a essa luta de forças, o sintoma ganha resistência uma vez que ele satisfaz
aos dois lados contrários.
A questão da ética
De acordo com Vázquez (2005), a ética é um termo muito antigo estudado desde as
origens da filosofia, desde Sócrates na antigüidade grega. Ainda hoje produzimos sobre a
ética, fato que nos faz perceber que este é um tema de grande relevância ao longo de todos os
tempos, sendo este um tema de grande interesse de múltiplas áreas de estudo, incluindo a
psicanálise.
219
precisa se preocupar com esse bem, por que o que estabelece a lei está diretamente ligada a
estrutura do desejo, que segundo Freud é a lei de proibição do incesto.
Freud (apud LACAN 1959-1960 [1997], p.20-23) interessa-se pela ética de maneira
original, mantendo alguns pré-supostos anteriores, mas principalmente inovando a questão do
que é o bem. Em Aristóteles esse bem é supremo e por isso não deve ser contestado. Naquela
época, o bem maior, ou seja, o que o homem buscava, era a felicidade identificada com um
ideal moral. Freud aproxima-se do pensamento Aristotélico somente no que diz respeito à
busca do homem pela felicidade, porém diferencia-se de tal pensamento na medida que
conceitua a felicidade de uma forma bastante diferente, ou seja, não contém nenhuma
qualidade, é o prazer decorrente do princípio do prazer, ou seja, a baixa das excitações e sua
homeostase. Freud vai afirmar que para a felicidade não há nada preparado nem no
macrocosmo, nem no microcosmo, essa é a grande
Em sua busca pela felicidade, o homem busca Das Ding, algo da experiência de
satisfação que não pode ser simbolizado. O objeto é perdido. Ele nunca poderá ser encontrado
por mais que possamos acreditar estar próximos dele e que poderemos vivenciá-lo
novamente. O princípio do prazer vai, então, governar a busca desse objeto, porém lhe
impondo rodeios que o manterão sempre à distância do seu ideal (LACAN, 1959-
1960[1997]).
A tese de Freud é que a lei moral se afirma contra o prazer, o que pode parecer um
paradoxo, segundo ele. Para validar tal tese, parte de um movimento de oposição entre o
princípio de realidade e o de prazer, mas ao longo de sua obra vai colocar a questão para além
do princípio do prazer2.
Como já foi dito, a ética só pode existir no convívio em sociedade, e Lacan considera
que Freud trouxe avanços com relação ao tema, nos introduzindo a lei primordial, o
2
Ver 'Além do princípio do prazer', FREUD, (1920[1998]).
220
fundamento da moral, que é a lei da interdição do incesto, afirmando que todos os
desenvolvimentos culturais são apenas conseqüências e ramificações dessa lei primordial.
O sintoma emerge como uma forma de satisfação de um desejo que o sujeito colocou
como inaceitável pelas leis morais que ele próprio internalizou, porém tal fato se dá por vias
indiretas, substituindo o desejo inaceitável por outro mais aceito eticamente para ele mesmo, e
por isso o sujeito não reconhece o sintoma como que fazendo parte dele mesmo, mas sim
como algo que surge de fora, incomoda e deve ser retirado. É improvável que os sujeitos
percebam que essa é a forma que o recalque encontra de satisfazer a pulsão, pois a satisfação
vem de algo que os próprios sujeitos repudiam moralmente.
Freud (1906-1908[1988]) entende por moral as normas sociais impostas aos sujeitos
pela sociedade desde a infância, ele afirma ainda que o fator sexual recalcado é a base da
neurose. De modo geral a nossa civilização repousa sobre a supressão de determinados
desejos. Freud traz ainda uma importante observação, afirmando que aquelas pessoas que
pretendem ser muito “bem-vistas” pela moral são mais atingidas pela neurose, enquanto que
poderiam ser mais saudáveis se lhes fosse menos importante a própria reputação.
Em "O mal estar na civilização" (1929[1997]), Freud diz que a civilização nasceu como
forma de controlar a pulsão de agressividade natural ao homem. Porém o desenvolvimento da
civilização lhe impõe restrições exigindo que ninguém fuja a ela, não importando o quanto a
adequação custará ao sujeito. A privação da satisfação de uma pulsão não se dá impunemente,
se essa perda não for economicamente recompensada resultará em uma neurose.
Como já foi dito, a busca do homem é pela felicidade, que nunca é obtida em sua
plenitude, mas sim em alguns momentos de satisfação. Tais momentos podem ser obtidos
através da realização de desejos e até mesmo em ações repudiáveis pela sociedade, porém o
homem civilizado trocou parte de suas possibilidades de felicidade por uma parcela se
segurança que a vida em sociedade lhe oferece (Freud, 1929[1997]). Freud diz que a evolução
da civilização "pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida"
(1929[1997]p.82). De acordo com Freud, concluo que o sintoma surge como efeito necessário
221
para que o homem possa viver em sociedade.
Referências Bibliográficas:
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1998, vol. VIII.
FREUD, Sigmund. Gradiva de Jensen e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1988,
vol. IX.
FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia. Rio de Janeiro: Imago, 2001, vol. XX.
FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997, vol. XXI.
FREUD, Sigmund. Teoria geral das neuroses. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XVI.
222
“Sinto Que Não Tom(a)es” – Sobre a Desimplicação Subjetiva na
Sociedade Contemporânea
inquietou a muitos, considerando que a partir de então o homem não era mais tão dono de si
quanto acreditava ser (LACAN, 1964). Isso, pois o acesso à verdade do sujeito é alcançado
pela escansão significante, considerando que a linguagem estrutura seu inconsciente. Nessa
conjuntura, temos o sintoma como uma das formas de acesso às formações inconscientes, este
Pela via da culpa, o deciframento significante do sintoma pode ser atingido, sendo a
culpabilidade, portanto, um lugar subjetivo que concede coerência às condutas do sujeito. Tal
fato pode ser evidenciado através do mito fundante da sociedade, o assassinato do pai da
horda primitiva. Após a morte do pai os filhos foram tomados pelo sentimento de culpa, tendo
1
Doutor pela Universidad de Comillas – Madrid (1997); profº. titular do PPG-Psicologia da UNIFOR;
coordenador do LABIO; presidente da CLIO – Associação de Psicanálise; pesquisador Pq2 CNPq; secretário
executivo e pesquisador da ANPEPP - GT Psicopatologia e Psicanálise; membro fundador da AUPPF; editor da
Revista Mal-estar e Subjetividade e do Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On-line; autor
dos livros: AIDS A nova desrazão da humanidade (Ed. Escuta, 2000), Que Narciso é esse? (Livro eletrônico
CNPq, 2007- http://www.cnpq.br/cnpq/livro_eletronico/index.htm) e A Soberania da clínica na psicopatologia
do cotidiano - Org. - (Ed. Garamond, 2009). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3235805127730480. E-mail:
henrique@unifor.br
2
Estudante do 10º semestre de graduação em Psicologia da UNIFOR – Universidade de Fortaleza;
membro do LABIO – Laboratório sobre as novas formas de inscrição do objeto; integrante do PAVIC –
Programa Aluno Voluntário de Iniciação Científica. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9708214291342093. E-
mail: annejamillesampaio@hotmail.com. Relatora do trabalho.
223
introjetado a lei e criado laços sociais (FREUD, 1913). Como decorrência, tal sentimento é
renúncias pulsionais exigidas por esta. Derivado da internalização da lei houve a emersão do
supereu, responsável pela realização dos sacrifícios em prol da vida em sociedade. No dado
contexto, o sintoma é, então, fortificado pelo sentimento de culpa, como forma de punição
Tomando como base o exposto, a culpa é tida como resultado de um crime, através do
qual a lei foi estabelecida. De tal circunstância deriva-se, portanto, uma lei que não é
Diante de uma ação violadora da lei, comumente, a confissão é tida como a postura
mais sensata a ser tomada pelo sujeito. No entanto, ao tratar-se do sujeito do inconsciente, a
confissão reclama maiores minúcias. Isso, pois ao confessar sua culpa, o sujeito afasta-se da
responsabilidade pelo seu desejo, este que é de origem inconsciente. (GOLDENBERG, 1994)
(LACAN, 1957/1958)
objeto que possa satisfazer o desejo, fato que insere o sujeito em uma servidão voluntária
(GOLDENBERG, 1994). Nesse contexto, o discurso capitalista advém com grande força,
224
consumo (LACAN, 1972). A condição de servidão voluntária do sujeito, portanto, favorece o
revestimento do capitalismo de uma face tirânica que por meio de um despotismo conduz à
devastação dos sujeitos, estes que estão envoltos por uma fascinação sacrificial desmedida
(GEREZ-AMBERTÍN, 2009).
Os sujeitos contemporâneos, como efeito, estão filiados a um novo pai que os afoga
impera desconsiderando a castração, estando o sujeito atravessado por uma sede indomável
estimulada pela dessimbolização que atravessa os laços sociais. Em acréscimo aos prejuízos
trazidos pela suspensão simbólica há uma diminuição da capacidade de julgar, fato que
produz sujeitos acríticos, formados pelo vazio, abertos a qualquer um que queira preenchê-lo.
Por conseguinte, da vivaz atuação do capitalismo provêm sintomas ausentes de signos, sendo
define-se como livre, agindo conforme sua vontade, buscando formas benéficas para si que
consigam contornar a lei. A predita condição ganha campo de expressão no contexto do modo
gozo excessivo. O discurso capitalista tem como meta, então, a produção de demanda, com o
propósito de gerar vontade de consumo diante dos objetos que fabrica. O sucesso de tais
225
objetivos pode ser comprovado na elevação do consumidor à categoria de adicto dos artefatos
(GOLDENBERG, 2002).
discurso capitalista. Para tal, as demandas criadas pelo mercado estão inserindo os objetos de
consumo na rede de associações significantes, fato que os torna desejáveis. Como resultado,
os laços sociais estão sendo substituídos por relações de dependência dos sujeitos quanto aos
observar que vigora uma autêntica insatisfação dos sujeitos com seus, estando estes a
discurso referente a uma libertação sintomática, por vezes, no entanto, ocultam a satisfação
que o origina (DUNKER, 2002). Nessa conjuntura é de grande valia ressaltar o elemento
máscara que envolve o sintoma, traduzido sob a forma ambígua que se apresenta o desejo,
fato que denuncia a diversidade de insatisfações que perpassam este último (LACAN,
1957/1958)
abandonado, órfão do Outro que o forma, questão que resulta em uma busca bastante plural
226
por maneiras que possam remediar esta falta. No entanto, durante a dada procura, os sujeitos
tornam-se alvos do mercado, sucumbindo à sedução trazida pelas imagens representativas dos
objetos de consumo (DUFOUR, 2005). Tal questão concede corpo à problemática na esfera
dos laços sociais referente ao império do “eu” em detrimento da preocupação com o próximo.
Tampa, temos em mãos um recorte ilustrativo da época presente, a saber, “O Céu! A tampa
negra da grande marmita/ Em que invisível ferve a vasta humanidade” (p. 158). Face à
tentativa de obliterar a marca imposta pela castração, fato que concede malogros para o laço
uma fervilhante grande marmita, fato que representa a intolerância que contempla sua relação
com o próximo. Em acréscimo, temos a redução do céu a uma mera tampa, analogia que nos
“Sinto que não tom(a)es”, como indicação da atuante invisibilidade que atravessa os sintomas
(note o “sintoma” que pode ser localizado na frase) do homem de nossa época, considerando
seu encarceramento em uma lógica de gozo que apaga o desejo, sua condição subjetiva,
Referências Bibliográficas
BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Coleção a obra-prima de cada autor, São Paulo: Martin
Claret, 2007.
227
DUFOUR, D.-R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.
DUNKER, C. I. L. O cálculo neurótico do gozo. São Paulo: Escuta, 2002.
FERREIRA, N. P. A culpa na subjetividade de nossa época. In: Peres, Urânia T.
(Org.). Culpa. São Paulo: Escuta, 2001.
FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Obras completas, ESB, v. XXI, Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
________. Totem e Tabu (1913). Obras completas, ESB, v. XIII, Rio de Janeiro: Imago,
1996.
GEREZ-AMBERTÍN, M. Entre dívidas e culpas: sacrifícios – crítica da razão sacrificial. Rio
de Janeiro: Companhia de Freud, 2009.
GOLDENBERG, R. D. No Círculo Cínico ou Caro Lacan, por que negar a psicanálise aos
canalhas? 1. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
___________________. Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Álgama, 1994.
LACAN, J. O Seminário – Livro 5 – As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
________. O Seminário – Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
(1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
________. Do discurso do psicanalista. Conferência em 12 de maio de 1972 na Universita
degli Studio, Milão, inédita.
________. Televisão (1974). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
228
A Função do Analista e a Política da Psicanálise na Política Pública de
Saúde Mental
Francisca Mariana Abreu Senra1
lado, temos a relação moebiana, - como diz Lacan do dentro e fora em junção e disjunção
simultâneas – que tentamos cernir entre uma e outra. Uma relação que faz atravessar a
outro lado, temos apontamentos sobre a inserção da psicanálise, tanto na clínica quanto na
política pública de saúde mental. De que forma a política da psicanálise pode se fazer
Paralelamente a essa questão nos move a tentativa de responder a uma outra: é possível
Partimos tanto de nossa prática clínica na saúde mental e no consultório, com casos
graves de submissão ao Outro, como o são psicoses e neuroses graves, quanto de nossa
experiência atual na gestão pública da política de saúde mental de nosso município, o Rio de
Janeiro. Tomamos como ponto de referência a difícil tentativa de construção de uma política
1
psicanalista, doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise do Instituto de
Psicologia da UERJ/Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Assessora da Área Técnica de Saúde Mental da
Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro. Instituição: Laço Analítico Escola de
Psicanálise. Email: mariana0307@hotmail.com
229
Comecemos pensando qual é a visada da clínica. Sabe-se, com a leitura que de
Lembrança esta que nos recoloca na trilha das possibilidades de enlaçamento que o
próprio sujeito será capaz de tecer. Essa mesma leitura será mantida no Seminário 17. Se, ao
clinicarmos, seja onde seja, não é ao bem do outro que se deve visar, ao que é?! Freud nos
fala dos três ofícios impossíveis, Regieren, Erziehen, Kurieren, para vir a este último
substituir por Analysieren. Lacan fará uma leitura precisa de Freud nesse ponto, nesse último
Seminário citado, nos esclarecendo que o impossível é o ser do psicanalista (LACAN, 1992b,
p.188-189) , não sua função, donde podemos depreender que Freud refere-se assim, a partir
do que seja impossível, às condições de possibilidade dessa função. Sendo essas condições
chega-se com elas ao dispositivo clínico, que permite ao sujeito apostar na direção de
reconstruir laços nefastos para sua existência e construir outros tantos que lhe garantam uma
existência menos sofrida, mais saudável, através de uma amarração dos registros real-
simbólico-imaginário que lhe assegure um lugar. Lugar este estabelecido sempre através do
laço, que implica a ex-sistência do sinthoma, como diz Lacan no Seminário 23: “Estabelecer
230
do sinthoma, da singularidade, para que a clínica guarde seu lugar ético. Dando um passo em
relação ao governar, isto é, a exercer uma função política de gestão, de coordenação de uma
determinada práxis dentro do campo da saúde mental pública, podemos em linha direta
afirmar que se visa então o mesmo, a oferta de possibilidades de construção de laço para o
sujeito, de uma amarração, desse lugar, para todos, como comumente se espera da política?
S1, que representa “um sujeito como tal”, que sua função é “representá-lo verdadeiramente”,
conforme à realidade”, reitera, com o que lembramos que “a relação analítica está fundada no
amor à verdade, (...), o que quer dizer – no reconhecimentos das realidades”, como disse
poucos anos antes no Seminário 17 (LACAN, 1992b, p.128). Temos, é sabido, uma herança
loucura, que já não o são mais. Encontramo-nos, nesse ponto, com a realidade. Vamos a ela:
há em nosso país um sistema de saúde que abarca, para além do já mencionado equívoco
histórico em relação ao tratamento dos loucos, uma insuficiência generalizada que foge
completamente aos limites do aceitável. Não há vagas para todos, não há... remédio para
todos, não há... tratamento digno para todos, não há... Concluamos que há então uma
realidade que faz do sistema um sistema perverso, na medida em que o que se transmite na
para todos, se deve ser mantida sempre, nunca foracluída, deve no entanto ter um lugar bem
231
preciso: um lugar lógico de direção, de horizonte, de ideal, podemos pensar. Lógico por ter de
realizar-se sempre, não só em cada encaminhamento, mas realizar-se efetivamente como fato
quando as condições o permitem. O que isso implica? Que o para todos seja pautado no para
um, este nunca subsumível no primeiro. É assim que, no caso a caso, construímos uma boa
política para todos. Pensemos então que há dois “para todos”, um contingencial, onde se
guarda o furo, e outro ideal, onde o furo é mascarado. É o que Lacan, no Seminário do
medida em que esse furinho possa, por si só, fornecer uma ajuda” (LACAN, 2007, p. 131),
Outro e portanto ao lugar onde o sujeito pode advir. É “furando” o citado empuxo à esfera, à
totalidade, que podemos criar as condições de possibilidade de advento de uma boa práxis,
federal que intima, como resultado final de uma Ação Civil Pública, União, Estado e
que foi outrora o maior hospício da América Latina e que guarda ainda hoje inenarrável
iatrogenia na internação infindável de centenas de pacientes. Que fazer diante de mais essa
demanda de uma resposta “total”? Essa pergunta não nos retira a afinação com a Justiça, - a
qual tomamos como terceiro da Lei – mas, justamente, devolve à gestão pública a
direção do um a um, na medida dessa mesma dita realidade – não sejamos ingênuos: a
232
política, outro daquele que, frágil, vive à sua mercê, quer algum bem para o sujeito. Lembro-
me nesse ponto do caso de uma paciente internada há décadas no Manicômio citado acima.
Ao iniciarmos o trabalho de atendimento à sua família, especialmente à sua mãe, que não a
levava em casa há 11 anos, trabalho que incluía notícias dadas a ela desse mesmo
atendimento, arriscou um apelo que poderia lhe custar a vida: passou a comer somente
enquanto a mãe, que sempre lhe enchia de comida durante as visitas, estivesse com ela. Foi
internada na Unidade Clínica da mesma instituição e, entre a vida e a morte, sua mãe nos
disse: “vou levar ela para casa, senão fizer isso, ela vai morrer”. O que me faz lembrar uma
bonita passagem do Seminário 8, em que Lacan nos fala dessa ambigüidade da espécie
humana em ir em direção ao gozo que traz a morte e ao mesmo tempo tenta evitá-la em
direção à perpetuação:
quiséssemos retirar da citada instituição tais pacientes a qualquer custo, fora do caso a caso –
exatamente pela castração, ao guiarmo-nos pelo cumprimento de um ideal. Essa paciente nos
recoloca no que inspira a verdade, que, nos ensina a psicanálise, é a morte, não o amor –
morte que traz a separação entre gozo e corpo que então se mortifica pelo significante que dá
instituição sem suportar esse tempo que oscila na corda bamba da clínica, teríamos quiçá
impedido essa reconstrução possível de laço que foi feita. Diz Lacan: “a intrusão na política
233
só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso – e não apenas o analítico – que não
seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade” (ibidem, p.74). Que ao
menos o gozo seja interditado a elidir o lugar de sujeito do outro, e o de objeto ao qual nos
que nos faz pensar que é mesmo dessa relação com o outro que ele padece em seus
transtornos. Pensamos então que a ação política da governança de um campo clínico que se
presente igualmente na função clínica, nas quais não se “visa ou ordena o que é vantajoso a si
mesmo, mas o que é vantajoso aos seus governados”. A que isso nos leva, senão à castração
inerente não somente a toda prática, mas a toda existência? A clínica psicanalítica e a
Referências Bibliográficas
da psicanálise” o ensino realizado na universidade, e que de acordo com Lacan, coloca como
agente o ‘saber’ e tem um viés educativo. Nota-se que no Discurso Universitário – assim
como no discurso do Mestre, o sujeito do inconsciente fica recalcado, não podendo então ser
que se transmite de um por um, seu efeito de re-significação faz com que o analisante não
necessite de outras evidências para comprovar sua eficácia, sua certeza é subjetiva.
formulam e estão concernidas pela questão: que desejo é esse de transmitir e ensinar àquele
que não está em análise? Quais os efeitos de uma psicanálise apenas teórica e qual seria seu
1
Psicanalista.
Especialista
em
Psicanálise
pela
Universidade
de
Marília.
Mestre
em
Filosofia
pela
PUC/PR.
Docente
do
Curso
de
Pós-‐Graduação
em
Psicanálise
Clínica,
UNIPAR/Cascavel.
Docente
e
Orientadora
de
Estágio
na
abordagem
psicanalítica
do
curso
de
Psicologia
da
Pontifícia
Universidade
Católica
–
Toledo/
PR.
Contato:
michaella.laurindo@pucpr.br
2
Psicanalista. Especialista em Psicanálise Clínica e Cultura. Mestre em Educação. Docente e Orientadora de
Estágio na abordagem psicanalítica no Curso de Psicologia na Universidade Paranaense - UNIPAR - Cascavel –
PR. Docente nos Cursos de Graduação na Universidade Paranaense –UNIPAR - Toledo/PR. Contato:
dallarosa@unipar.br.
Agradecimentos à Fundação Araucária, Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI-
PR) e ao Governo do Estado do Paraná, pelo apoio financeiro recebido para viabilizar esta participação.
235
alcance? O objetivo desse escrito é abordar a ética em relação ao laço social universitário e ao
sintomática.
É notório que o laço entre o sujeito e o outro se dá pela via do sintoma, seria a ligação
entendido como um método para satisfazer a libido, o que mantém este laço é o gozo obtido
nessa relação. Ou seja, o docente pode passar a ocupar o lugar daquele que detém o saber ao
ensinar, e o discente passa a ocupar o lugar daquele que serve como objeto, aprende e
identifica-se com aquele que ensina, mas que nada quer saber de si neste processo. Assim, o
possibilidade de saber sobre o A barrado, oferecer-se como o que completa? É nesse sentido
que interrogamos o desejo de ensinar, pois Lacan aponta a inexistência de um Outro absoluto,
consistente.
A partir disso, podemos citar Freud, que analisou os próprios sonhos e adotou essa
verdade subjetiva como base para a transmissão. Tomou a psicanálise em intensão como
causa para a psicanálise em extensão. É possível conjecturar que aquele que se aventura em
busca da prática analítica tem prova em si próprio das manifestações do inconsciente, as sente
236
É preciso neste ponto considerar a questão da transferência que se estabelece com os
sintomática, onde o desejo não conta. Então, muito mais do que o “psicanalista-educador”
ensina, o que importa é o que ele deseja saber e como está concernido no saber psicanalítico
que se propõe transmitir. A relação com os discentes é feita do mesmo “barro” que a relação
recomendação:
O caminho que o analista deve seguir (...) é um caminho para o qual não existe
modelo na vida real. Ele tem de tomar cuidado para não se afastar do amor
transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para a paciente; mas deve, de modo
igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição. Deve manter um firme
domínio do amor transferencial, mas tratá-lo como algo irreal, como uma situação
que se deve atravessar no tratamento e remontar às suas origens inconscientes e que
pode ajudar a trazer tudo que se acha muito profundamente oculto na vida erótica da
paciente para sua consciência e, portanto, para debaixo de seu controle.
la como um processo não natural. Dessa forma, o que impera na prática da transmissão da
psicanálise na universidade é uma rigidez dos ideais, na forma de que ‘todos tem que
aprender’, no estilo da tirania infantil presente na transmissão sintomática, onde parece não
aprendizagem, então, fazer compreender bem a ciência que se estuda é a tarefa do docente
237
universidade ou em qualquer outro espaço de transmissão precisa estar atento ao que Lacan
(...) uma das coisas que mais devemos evitar é compreender muito, compreender
mais do que existe no discurso do sujeito. Interpretar e imaginar que se compreende,
não é de modo nenhum a mesma coisa. É exatamente o contrário. Eu diria que é na
base de uma recusa de compreensão que empurramos a porta da compreensão
analítica.
vida sexual. Quanto a isso ele afirma “a sexualidade é todo o tipo de coisa, os diários, os
vestuários, a forma como nos comportamos, a forma como os meninos e as meninas fazem
Do que trata a psicanálise então? Trata do sujeito, que é um conceito muito mais
amplo, mas que também diz do sexual. Esse ponto trata da ética na transmissão, pois o que
universidade: “O fim do meu ensino, pois bem, seria fazer psicanalistas à altura desta função
238
que se chama “sujeito”, porque se verifica que só a partir deste ponto de vista se enxerga bem
somente assim, cada um poderá saber o que é isso que se define como sujeito. Portanto,
aquele que transmite deve saber que nessa “introdução” o que fazemos é oferecer um
arcabouço teórico que precisa se transformar em uma práxis, pois o conceito de sujeito se
apreende pela análise e não apenas pela teoria. Como diz Lacan no “Congresso Dito de
São muitos os impasses sobre a transmissão. Entretanto, Lacan não titubeia diante
eles, simplesmente diz: “não creio que haja muitos dentre vocês que tenham acompanhado o
que eu ensino (...) suponho pelo menos que as pessoas fingem ler esses Escritos, os quais,
tomados pela outra ponta, podem se permitir se considerados ilegíveis” (2006 p.70-72). Nesse
segundo trecho ele está se dirigindo aos críticos de sua obra, porém, se refere também a
dificuldade de ler o que escreve já que ele não está interessado em ditar as regras de um
determinado fazer, e sim em deixar claro que para o fazer em psicanálise é imprescindível um
savoir-faire, que só se adquire subjetivamente. É pela análise que produz um sujeito. Ou seja,
me iludo, um auditório, por mais qualificado que seja, sonha enquanto estou aqui em vias de
esgrimir comigo mesmo. Cada um pensa nas suas coisas, na namoradinha que vão encontrar
239
daqui a pouco, no carro que soltou uma biela, alguma coisa fora do trilho” (2006, p.88). Está
apontando para a questão do desejo de quem se propõe praticar a psicanálise, e que está
Para encerrar, nos concerne a questão proposta por Lacan (2005, p.26): "o que é
ensinar, quando se trata justamente de ensinar o que há por ensinar não apenas a quem não
Referências:
FORBES, J. A escola de Lacan: A formação do Psicanalista e a transmissão da Psicanálise.
São Paulo: Papirus, 1992.
FREUD, Sigmund (1915[1914]). Observações sobre o amor transferencial (novas
recomendações sobre a técnica da psicanálise I). Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Edição Standart Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. XII.
JACQUES, Lacan. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1996.
_________. Seminário I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
_________. Seminário X. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
_________. Meu Ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
240
estabelecer uma relação junto a seu desejo e ter acesso a uma verdade, que é bastante
particular para cada um, posto que essa mesma verdade se esconde no enigma do sintoma,
cujo bojo carrega uma metáfora, submetida às leis da linguagem. O sintoma é o representante
do sujeito do desejo, contém um gozo em sua fantasia inconsciente, que o sustenta e o define
frente ao sexual, sendo “expressão de uma fantasia sexual inconsciente masculina, por um
lado e feminina, por outro” (CONSENTINO, 1996, p.18), ou seja, o significado bissexual dos
sintomas histéricos.
Lacan nos ensina que o sintoma significa “o retorno como tal da verdade na falha do
saber” (apud PIMENTEL, 2010, p.1) verdade que o sujeito de início nada quer saber, por isso
compreende-se que o sintoma apenas por si é insuficiente à demanda para uma análise, mas
sim quando o mesmo falha e o sujeito se percebe diante de um desamparo e de sua ignorância,
não havendo nada mais a fazer a não ser procurar respostas a esse enigma. Nesse momento, o
1
Membro da EPFCL - Brasil. Membro do Fórum do Campo Lacaniano – Fortaleza.rodneysoares01@gmail.com
241
sintoma é capturado pela transferência e, portanto, o sujeito pode confrontar-se com a sua
verdade, fazendo uma troca do gozo pelo saber, numa articulação entre o saber e verdade, na
suposto saber, de quem espera significações – A castração produz uma perda de gozo. Assim,
“O sintoma representa uma estrutura, é o ponto assombroso que nos indica Freud em
estruturas diferentes” (apud CONDE, 2008, p.64) dessa maneira, por revelar a forma de
satisfação do sujeito, o sintoma pode expor a estrutura de sua subjetividade, a forma pela qual
o sujeito se enlaça.
A técnica da psicanálise, que consiste na associação livre, solicita que o analisante fale
o que lhe vier a mente, suspendendo o recalcamento, produzindo o que Freud chamou de
derivados do recalcado. Dito isso, o sujeito tem a possibilidade de romper a censura e acessar
que se encontra são perguntas capazes de remeter o sujeito a um outro encontro, desta feita
242
com algo inesperado, o real. Sabemos que o horror do ato analítico é dessa ordem e que de
forma lógica, produz efeitos “vem no lugar de um dizer pelo qual muda o sujeito” (LACAN,
J. Ornicar, n 24) Para o analista, é possível trabalhar o sintoma porque não é tudo que é puro
real, mas efeito do simbólico sobre este, refletido no imaginário. Aqui está o ponto em que o
sintoma permite uma intervenção simbólica pelo analista, pois o tratamento do sintoma se
efetiva em outro nível, já que é no âmbito do significante que pode ocorrer qualquer
valor simbólico ele passa a ter uma possibilidade de se modificar, o sujeito fala muitas vezes
de um mesmo assunto, até que chega o momento em que sacrifica uma parte do gozo,
utilizando-se do significante para colocar uma barreira à esse gozo, sempre da ordem do
excesso.
submetido às leis da linguagem, justamente por ser metafórico e com isso, possibilita uma
mensagem. Tal tentativa pode chamar a atenção do sujeito ou mesmo, incomodá-lo a ponto
dele procurar uma análise. A partir desse evento, o sintoma se constitui pois o sujeito ao
243
Em seu seminário I, trilhando os caminhos de Freud, Lacan direciona-nos para a
“forma desviada de satisfação sexual” que indica o sintoma neurótico. O gozo, é sempre o do
sintoma, e é aqui que surge o desejo, que se mostra para fazer algo contra esse gozo, negação
regime do princípio do prazer e para que esse mal estar seja percebido, é necessário que o
sujeito tenha o registro da lei em operação. Para concluir, ressaltamos que é através da
verdade do sujeito que a psicanálise irá operar, pois a possibilidade de acesso a essa verdade
está intimamente referida ao desejo do analista, desejo de saber e onde a escuta viabilizará
uma disseminação daquilo que outrora se constituiu como excesso. Onde existe linguagem,
inexiste gozo e onde há gozo, falta linguagem porquê a linguagem produz perda de gozo. A
psicanálise é, portanto, uma experiência discursiva, na relação entre falantes, cuja melhora é
Referências Bibliográficas
244
_________ Ornicar? n 24.
245
Psicoses Ordinárias e Atos Violentos
Henrique Figuereido Carneiro1
esvaziamento simbólico do ato violento. A violência voltada para o próprio corpo do sujeito
psíquico próprio de uma organização psicótica; mas, diferentemente das psicoses clássicas,
nesse ponto que autores de orientação lacaniana levantam o conceito de psicose ordinária,
pois esta se diferencia em várias questões da dita psicose clássica. Então, temos como
1
Doutor pela Universidad de Comillas – Madrid (1997) e prof. titular do PPG-Psicologia da UNIFOR. Coordenador do
LABIO e presidente da CLIO – Associação de Psicanálise. Pesquisador Pq2 CNPq. Secretário Executivo e Pesquisador da
ANPEPP - GT Psicopatologia e Psicanálise. Membro fundador da AUPPF. Editor da Revista Mal-estar e Subjetividade e do
Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On-line. Autor dos livros: AIDS A nova desrazão da humanidade
(Ed. Escuta, 2000), Que Narciso é esse? (Livro eletrônico CNPq, 2007- http://www.cnpq.br/cnpq/livro_eletronico/index.htm)
e A Soberania da clínica na psicopatologia do cotidiano - Org. - (Ed. Garamond, 2009). (Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3235805127730480) e-mail: henrique@unifor.br
2
Graduando
em Psicologia pela Universidade de Fortaleza, curso iniciado em 2006. Bolsista de Iniciação Científica do
CNPq. Orientando do Prof. Henrique Figueiredo Carneiro. Tema de Pesquisa Violência. Área Estudos Psicanlíticos. Membro
do LABIO - Laboratório sobre as novas formas de Inscrição de Objeto. (Lattes: http://lattes.cnpq.br/9193897293259480 ) e-
mail: ricardopmaia@gmail.com
246
objetivo desse trabalho relacionar o conceito de psicoses ordinárias, caracterizando-o, com as
questões violentas da sociedade contemporânea, vistas como um clamor do sujeito por uma
ancoragem simbólica.
A partir das considerações acerca da vida de Daniel Schreber, Freud (1969) lança
cura. Sendo o delírio como uma das principais tentativas dessa cura ou de estabilização. Até
então, a visão da clínica terapêutica das psicoses estava estagnada na posição do psicótico em
Freud (ibid) toma a paranóia apresentada por Schreber como um modo patológico
de defesa inconsciente. Aquilo encarado como traumático pelo psicótico não é possível de
substituído pelo delírio. A saída para o impasse diante da castração está no delírio na psicose,
direciona o caminho que Lacan seguiu com a noção de que onde antes era localizada a
Lacan (1988), por sua vez, funda o mecanismo da psicose na não inscrição de um
significante primordial e isso gera consequências nas funções simbólicas e suas operações
posteriores. É a foraclusão do Nome-do-Pai, essa não inscrição irá colocar o sujeito numa
247
posição psicótica. Essa significação essencial ausente não permite ao sujeito nomear-se e
quando convocado sobre o seu ser, ocorre o desencadeamento psicótico. Lacan (1998) afirma
que essa condição fundante, quando não inscrita, faz com que o sujeito coincida com a
imagem de si e que o Outro esteja no mesmo nível dos objetos com quais o sujeito se
relaciona.
provocam uma redução do sujeito ao seu organismo e sua imagem, uma aproximação entre os
campos imaginário e simbólico. E aquilo que não se inscreve simbolicamente, retorna como
transferência podem favorecer a uma estabilização daquilo que foi desencadeado na psicose.
Mas, qual a saída para quando depara-se na clínica atual com diagnósticos
confusos e dificuldades para identificar a presença ou não de uma função paterna atuante ou
manejo transferencial nesses casos; Laender (2009) aponta a difícil tarefa que é chegar a um
diagnóstico estrutural; e Miller (1999) realiza o apanhado geral dos casos ditos
248
Com os encontros que ocorreram ao final da década de 90, houve uma grande
troca de experiências e avanços na teoria psicanalítica, principalmente, neste campo dos casos
raros e/ou difíceis. Casos que podem apresentar pontos que tocam uma estrutura neurótica e
um esvaziamento dos laços afetivos. As “neotransferências”, como aponta Rosa (2009), não
estabelecem o mesmo vínculo consistente nas transferências vividas nas psicoses clássicas.
Aqui, deve-se estar atento para as novas maneiras de como o psicótico formaliza seus laços
neoconversões atuam mais numa lógica psicótica e não abrem espaços para intervenções
(ibid).
não estão tão claros nas psicoses ordinárias, pois o sujeito está seguro nos suportes de
identificação imaginária. Há uma aderência, uma colagem ao outro, mas sem a presença dos
distúrbios da linguagem que ocorrem nas psicoses extraordinárias. Nestes casos, há uma
249
presença turva do campo simbólico e que pode desabar com a tamanha carga imaginária que
há no inconsciente.
Campos, Gonçalvez e Amaral (2008) pela sua leitura da obra de Miller apontam
excessos e das omissões; a questão do corpo – as ações que atuam sobre o corpo, tais como a
Devido a essas características que pode-se localizar, muitas vezes, uma violência
voltada para si e para os semelhantes nesses casos. O gozo em excesso ou em demasiada falta
repercute no real do corpo numa tentativa de localização. O sujeito ergue elementos que
“bugigangas” tecnológicas estão aí para uma suplência desse falo que tende a zero (Φº).
Considerações finais
Fica evidente que o analista deve estar atento às posições que o sujeito ocupa nos
laços sociais e daí lidar com os impasses encontrados na clínica. Não deve-se crer num
avanço teórico permite crer que o sujeito sempre vai tentar amarrar os campos a sua maneira.
quando o sujeito se depara com o inominável do real, ele irá usar daquilo que “tem às mãos”
250
para responder. Ou seja, um ato violento não pode ser esgotado numa “passagem ao ato”,
vazio de significado, deve-se ter em mente que o sujeito está a procura de dar um significado
àquilo.
Quando convocado a dar uma resposta sobre seu eu, o sujeito irá responder com
aquilo que tem, seja uma significação fálica ou aquilo que ele utiliza neste sentido. O
significante Φ somente tende a zero, mas nunca se esgota, isto é, o sujeito buscará alguma
Referências
CAMPOS, Sérgio de; GONCALVES, Sara; AMARAL, Tammy. Psicoses ordinárias. Mental,
Barbacena, v. 6, n. 11, dez. 2008 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-
44272008000200005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 16 out. 2010.
FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de
paranóia (dementia paranoides) (1911). Obras psicológicas completas de Sigmund
Freud, vol. XII. Direção de tradução Jayme Salomão, 2ª. Ed., Standard Brasileira. Rio
de Janeiro, Imago, 1969.
LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1959).
Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______. O seminário. Livro 3. As psicoses (1955-1956). Tradução de Aluisio Menezes. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LAENDER, Nadja Ribeiro. Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?. Estud.
psicanal., Belo Horizonte, n. 32, nov. 2009 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
34372009000100015&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 16 out. 2010.
MILLER, Jacques-Alain (Org.). La psicosis ordinária. Buenos Aires: Paidós, 1999.
ROSA, Márcia. A psicose ordinária e os fenômenos de corpo. Rev. latinoam. psicopatol.
fundam., São Paulo, v. 12, n. 1, Mar. 2009 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
47142009000100008&lng=en&nrm=iso>. acessos em 16 out. 2010.
251
Entre a Síndrome e a Mãe: Marcela
Este trabalho visa discutir a criança quando vem ocupar um lugar de objeto
oferecido por aquele que exerce a função materna e de que modo ela responde deste
lugar que se apresentou na clínica como consequência da história da mãe. Além disso,
mesmo passividade. O que foi possível também ao dar um lugar para que a mãe
Lacan (1968), em seu célebre texto “Nota sobre a criança” em que afirma que o
sintoma da criança pode decorrer da subjetividade da mãe, diz:
assumido pelo desejo da mãe, quando não tem mediação, deixa a
'objeto' da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a
1
Membro do Projeto Freudiano – Aracaju/Se - esthermikowski@uol.com.br
252
Isso
posto,
partimos
para
pensar
em
Marcela,
10
anos.
Ela
fora
encaminhada
para
qual é caracterizada por uma paralisia congênita e não progressiva dos nervos cranianos
VI e VII, podendo atingir outros. Tal paralisia produz uma aparência facial pouco
Para Julia, sua mãe, tais queixas e uma suposta limitação eram decorrentes dessa
Síndrome. E ainda pareciam marcar Marcela como um produto da Síndrome e de tudo
que tanto a filha quanto a mãe tinham passado na gestação. Julia engravidou aos 17 anos
costas” (SIC) – forma a qual Julia se referiu à gravidez quando a descobriu, pois era assim
que se sentia tão jovem–, tentou abortar fazendo uso de uma medicação conhecida pelos
seus efeitos abortivos. Não abortou e só comunicou aos pais no sexto mês de gestação.
Ainda nas primeiras entrevistas, Julia contou que quando fazia ultrassonografias e
segundo as mesmas o bebê estava “normal”, sabia que algo não viria “normal”. Ao
253
medicina
que
tal
síndrome
talvez
esteja
ligada
ao
Misoprostrol,
substância
presente
na
Sentindo-‐se culpada por todo mal e sofrimento causado à filha, Julia tentou
disse “criando Marcela numa redoma de vidro”. Acreditava ainda que sua filha seria
sempre sua dependente. Era neste quesito que as supostas limitações apareciam: além
de não avançar no desenvolvimento escolar, Marcela não casaria, não namoraria nem
mesmo engravidaria. Disse ainda: “por um tempo só destinava 'amor de mãe' a Gabriel
(seu outro filho), à Marcela, só cuidado e atenção, até que percebi que estava fazendo o
mesmo que aconteceu comigo e tinha que mudar”. Julia referia-‐se a sua história -‐ aqui
assinalada para anunciar que lugar esta mãe oferecia a filha -‐ também foi fruto de uma
tentativa frustrada de aborto, nunca conheceu o pai, sua mãe lhe deixou num colégio
interno e só lhe visitava ocasionalmente, até que com 5 anos foi morar com a mãe e seu
novo marido a quem reconhecia como pai. Quando seu irmão nasceu, não se sentia
pertencente a esta família e acreditava que só ele era amado pela mãe.
consequência disso o lugar de filha que ela ofereceu à Marcela. Manter-‐se grávida e dar a
luz a uma menina pareciam remeter às marcas do seu lugar de filha cuja relação
imaginária com a maternidade se dava a partir de um “não amor de mãe” e abandono,
uma vez que, segundo ela, o amor de mãe só destinara ao outro filho. Julia não
abandonou de fato Marcela, mas também não a considerou como um sujeito, destinou a
254
ela
apenas
cuidados
básicos
de
saúde
e
sobrevivência.
No
exercício
de
sua
função,
Carvalho (1994, p. 26) uma célula narcísica dentro da qual não há sensação de falta,
como se um e outro estivessem completos. Tal redoma, segundo as autoras, é possível
quando a figura materna empresta seus significantes e se apresenta como inseparável.
Tal célula aqui pensada na própria “redoma de vidro” nomeada por Julia. A forma de
Marcela responder deste lugar que lhe fora oferecido era depender da mãe para tudo,
até mesmo escolher uma roupa ou pentear um cabelo, o que legitimava a fala de Julia:
“tenho que fazer tudo por ela”. Porém, elas não estavam completas nem inseparáveis, e
tal condição pode ter justamente causado o incômodo de Júlia no tocante à maternidade,
pois ainda que não a tratasse tal como, Marcela era um sujeito.
Portanto, Marcela nasce com uma Síndrome que remete à mãe a culpa e esta
justifica assim todas as suas atitudes de manter a filha neste lugar de objeto. Sauret
para ela, de acordo com sua estrutura, 'para testemunhar' a culpa da mãe neurótica,
servir de fetiche para a mãe perversa, encarnar uma recusa primordial da mãe
psicótica”. A Síndrome de Moebius serviu por todo tempo como significante importante
condição orgânica como ela sustentava imaginariamente a culpa da mãe por seus atos.
capaz de construir vínculos sólidos. Inicialmente, não conseguia ir além das referências
255
concretas
do
presente,
contudo,
podia
ser
amparada
à
medida
que
os
outros
a
ajudassem a elaborar idéias que estivessem conectadas aos objetos já conhecidos por
ela. Ou seja, ajudassem-‐na a perceber os objetos para além dos seus aparentes
significados e funções. Desta forma, era possível perceber que Marcela se relacionava
imaginariamente com os objetos ao redor e tinha dificuldade de simbolizá-‐los. Teclado
para Marcela era o do computador, o musical era um piano, não podia ser teclado
também, embora analista indicasse numa sessão que esse também se chamava assim.
pensamentos abstratos mais refinados. Ela ficava extremamente ansiosa, muitas vezes
nervosa, diante de perguntas caracterizadas por ela como difíceis, por exemplo
presentificavam nas sessões, ao mesmo tempo em que pareciam ser a forma que
Marcela encontrava para se expressar e se defender das dificuldades e das situações que
não sabia como lidar. Questionamentos produziam uma angústia que a desorganizavam
e sua forma de demonstrar era com agressividade. Aliás, esta parecia ser carente de
sentido, o que por sua vez foi buscado na análise de Marcela: ajuda-‐la a construir sentido
Sobre a transferência da mãe, como foi dito, esta supunha que aquelas queixas
ditas no início deste trabalho referiam-‐se à Síndrome de Moebius. Tal saber era
direcionado à Instituição Médica como detentor do saber sobre a mesma. Ainda nas
256
primeiras
entrevistas
com
a
analista,
a
médica
afirma
a
esta
mãe
em
uma
consulta
que
tais queixas nada tinham a ver com a Síndrome e que deveriam ser tratados em um
Assim, Julia chega à análise sem saber o que fazer e totalmente perdida quanto
aos cuidados e limites dados à filha. A partir de então, fez de fato um pedido: que
ajudasse a ela a lidar com a filha, pois teria se dado conta de que era ela quem não
conseguia lidar com as dificuldades de Marcela e as atribuía a Síndrome. O momento de
mãe. Julia, então, fora incluída enquanto Outro e agente da função materna. Isso pôde ser
sustentado a partir do desejo da analista e do laço transferencial entre esta e a mãe.
A análise era de Marcela e o trabalho era incluí-la no discurso e no laço social, além
de ajudá-la a dar sentido ao que lhe acontecia. No entanto, foi dado também um lugar para a
que mãe remetesse para si seu próprio discurso, de modo que isso se tornasse um projeto de
construção: ela construísse um saber sobre a filha e pudesse por si encontrar outros meios de
lidar com as dificuldades dela. Aliás, dificuldades das duas, mãe e filha. A primeira em
exercer a função materna diante das dificuldades da segunda. Além disso, de alguma forma,
apostar em Marcela como sujeito à medida que a analista apontava conquistas e mesmo
escolhas da paciente para a mãe. Do mesmo modo como com Marcela, foi preciso também
ajudar a esta mãe a criar sentido no cotidiano e nas dificuldades da filha que apareciam como
257
carentes desse sentido e que ela acabava lhe oferecendo em atos sem sentido2, como amarrar o
sapato que Marcela dizia não saber fazê-lo e Julia o fazia, sem se dar conta se de fato a filha
oferecido por aquela que exerce a função materna, foi preciso uma escuta que privilegiasse
Marcela e sua mãe. A análise se fazia possível para que através da construção de sentido,
Marcela pudesse lidar com as coisas ao seu redor de um outro modo. E sua mãe se
responsabilizar por isso foi fundamental nessa construção da filha e para a relação entre as
duas. É importante salientar que no caso discutido uma síndrome pareceu representar um
significante primordial na constituição psíquica da criança, uma vez que remeteu à mãe sua
história e comprometeu com isso o exercício da função materna. Marcela parecia refletir o
objeto de gozo que ela representava, o qual remetia ao fantasma materno, o que nos lembrar
Sauret (1998, p. 62) ao falar sobre a condução da análise. Esta leva o analisante a descobrir
que ele mesmo é como o gozo, isto é, como objeção ao saber. Porém, estas últimas questões
Por fim, a definição de Figueiredo e Vieira (2002) se faz pertinente neste momento: a
partir do relato do caso temos um texto que já faz o recorte do analista, com as passagens
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGUEIREDO, A. C., VIEIRA, M. A. Psicanálise e ciência: uma questão de método. In W. Beividas (Org.).
2 A repetição do termo sentido, ainda que não coadune com a Língua Portuguesa, está nesta frase para
enfatizar a falta de sentido que permeava atos e palavras deste par mãe-criança.
258
Psicanálise, pesquisa e universidade. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2002.
FONTENELLE, Lucia; ARAUJO, Alexandra Prufer de Q.C.; FONTANA, Rosiane S.. Síndrome de Moebius:
relato de caso. Arq. Neuro-Psiquiatr., São Paulo, v. 59, n. 3B, Set. 2001 .
LACAN, J. Nota sobre a criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
SAURET, Marie-‐Jean. O infantil e a estrutura, Conferências em agosto de 1997, Escola
259
O Homem Condutor: um Caso de Histeria Masculina?
O sintoma, tal como o sonho, é entendido por Jeanneau e Perron (2005) como
uma formação de compromisso por meio da qual o desejo abre um caminho para a satisfação,
mesmo que apenas parcial. Estudar o sintoma histérico é permitir dar-se conta das inúmeras
variam entre os mais corporais, em casos de conversão, e os mais psíquicos, nos relatos de
fobia (Schaeffer, 2005). Lacan (1985) afirma que “nada na anatomia nervosa recobre, seja o
que for, do que é produzido nos sintomas histéricos. É sempre de uma anatomia imaginária
portanto, que o sujeito perceba a existência de um saber e uma causa que lhe dizem respeito, e
para cujo conhecimento o analista vem a ser o suporte. Ocupando um lugar na clínica-escola
estudo de caso foi possível. As entrevistas iniciais sugeriram fortes indícios de que se tratava
de um caso de histeria masculina. Casado, pai de dois filhos, ele se queixava frequentemente
1
Psicóloga, Mestranda em Psicologia pela UFRN, michelleesmeraldo@gmail.com
2
Psicólogo, Mestre em Psicologia, Professor visitante da UEFS/BA, cesarhoenisch@gmail.com
260
de medo de ficar só em casa ou de sofrer violência fora dela. A busca por atendimento
psicológico se deu também pelo relato de dores na cabeça, “uma sensação de estar flutuando”
que “sua personalidade reteve traços sádicos em abundância, os quais se mostram em sua
irritabilidade, em seu amor de atormentar e em sua intolerância inclusive para com as pessoas
que amava”. Assim também se davam as relações entre o paciente e a família. O surgimento
de tais sintomas foi associado ao trabalho de motorista que exerceu, por dois anos, em uma
empresa de ônibus. No caso do pintor Haizmann, Freud (1977) considera que “ele ficara
abatido, era incapaz ou não tinha disposição de trabalhar adequadamente, e estava preocupado
sobre como ganhar a vida; isso equivale a dizer que sofria de depressão melancólica, com
uma inibição em seu trabalho e temores (justificados) quanto ao seu futuro”. As preocupações
Atualmente, uma crise de angústia pode ser rapidamente confundida com uma “síndrome do
pânico”, que, segundo Sterian (2001), aparece como a fase aguda de uma neurose histérica,
cujas origens estão na infância. Então, uma rápida contextualização dessa etapa da vida do
sujeito faz-se imprescindível. Ainda criança, perdeu a mãe e foi abandonado pelo pai, sendo,
com isso, inserido em um entorno de desafeto junto à avó e de trabalho precoce. “Guarda
condutor pode ser evidenciada na questão com o pai e na relação estabelecida com sua
posição feminina; conforme afirma Freud (1977), ainda na história de Haizmann, “com o luto
261
do pintor pelo pai perdido e a intensificação de seu anseio por ele, também sucede nele uma
após a pergunta da analista sobre o que se passava em sua mente. Queixava-se da cabeça –
dormência e esquecimento – e de dores nos joelhos e pernas; alegou não dirigir a palavra ao
outro até que este tome a iniciativa. Na sessão seguinte, o silêncio foi estabelecido e a fala do
sujeito aguardada. Ele fitava o olhar à analista e ria, levantando-se do assento e caminhando
pela sala. Repetiu a cena algumas vezes, aproximou-se da parede e deu golpes com a mão. A
noção de uma ação que se produz sob a pressão de desejos inconscientes e leva a um
paciente”.
sofrimento por conta da empresa, considerada por ele como responsável central pelo
do ônibus, ele percebeu que sua ansiedade era sem fundamento, passando, aos poucos, a
Haizmann, Freud (1977) afirma que “a catástrofe nos negócios com que ele próprio se sente
262
ameaçado, arremessa para cima a neurose, como um subproduto, e isso lhe concede a
vantagem de poder ocultar suas preocupações sobre a vida real por trás de seus sintomas”.
bem-estar. Quando não mais faziam o efeito esperado, procurava trocá-los. Intervenções lhe
foram feitas a fim de que compreendesse que a ingestão de medicamentos era insuficiente,
mudanças em alguns aspectos da vida também eram de suma importância. Sterian (2001)
considera que “fazer uma pessoa pensar em si mesma não apenas como um diagnóstico, um
possibilidades. Para que, a partir daí, ela possa elaborar as limitações ou frustrações que sua
Sente-se faltante – “abandonado” (sic) – por não ter o apoio dos pais, considerados
(1974) analisa que “se o pai foi duro, violento e cruel, o superego assume dele esses atributos
e nas relações entre o ego e ele, a passividade que se imaginava ter sido reprimida é
passivo, de uma maneira feminina”. Devido ao sentimento de raiva, muito evidente no homem
condutor, afetações com coceiras eram frequentes, ele, então, respondia ao estímulo, obtinha
alívio, mas tornava a área ferida. Para Freud (1901), “nos casos mais graves de psiconeuroses,
263
casos, nunca se pode excluir o suicídio como um possível desfecho do conflito psíquico”. Este
último apareceu como conteúdo manifesto em pelo menos duas sessões. O desejo de suicídio
seria uma forma de fuga e não enfrentamento do que lhe angustiava, evidenciando-se o
dos mais estressantes: dormia em média três horas diárias, testemunhava momentos de
assaltos e a cada erro que cometia, ou com o passageiro ou com o ônibus, era cobrado,
podendo, inclusive, ter que ressarcir do salário para cobrir os gastos. Ele acreditava que estava
“doente dos nervos” (sic). Segundo Costa (1989), “a doença dos nervos estava sempre
foram relatados enquanto manifestações do sentir-se ameaçado pelo outro ou pelo entorno. O
homem condutor dava importância a toda ruindade circundante, da grama mal cortada em
espaço público à poeira no móvel da casa. Com isso, não deixava de reclamar. Impunha-se ao
outro sem pestanejar, mantendo-se firme ainda se contrariado. O autor acima citado alega que
esposa tentava acalmá-lo em tais situações e partilhava das dificuldades que o paciente
enfrentava, como por exemplo, a impotência sexual. Embora se saiba que alguns
medicamentos possam causar efeitos colaterais que atinjam a vida sexual, Lucien Israël
(1994, apud Alonso; Fuks, 2004) afirma que “os histéricos são ocasionalmente impotentes,
264
mas permanentemente frígidos: não sentem”. Quanto à frigidez, logo no início do tratamento,
ele relatou que, certa vez, o órgão peniano estava ereto e somente a parceira sentia prazer.
cuidar de si, prejudicando, com isso, o seu quadro clínico. Duas sessões eram feitas
semanalmente. Com o passar do tempo, ele aparecia na instituição apenas uma vez, e, em
muitas semanas, não compareceu. Sempre teve uma justificativa para explicar a falta. Como
afirma Costa (1989), “se o indivíduo crê realmente que a doença dos nervos é uma afecção
pode fazer com esse paciente?” e “como obter a melhora de sintomas tão emergentes?”. A
agressividade inicial dele era clara, temores houve acerca do uso da força física por parte do
sentimento de impotência diante dele se extendeu por muito tempo, o paciente falava
questionava se ficaria bom. Para ele, primeiramente, ela ocupou o lugar de irmã, para depois,
uma vez que passou a vislumbrar alternativas de trabalho e manteve o desejo de concluir a
265
para sua família. O manejo analítico foi cuidadoso, tendo em vista a necessidade de um
suporte que desse conta da intensa angústia de um sujeito cujo corpo é lugar de um excessivo
Referências Bibliográficas:
ALONSO, Silvia Leonor; FUKS, Mario Pablo. Histeria. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
________ (1928). Dostoievski e o parricídio. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XXI.
________ (1923a). Uma neurose demoníaca do século XVII. In Obras Completas (V. 19).
Rio de Janeiro: Imago, 1977.
LACAN, Jacques. O seminário – Livro 3 – as psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed,
1985.
MIJOLLA, Alain de. Dicionário internacional da psicanálise: conceitos, noções, biografias,
obras, eventos, instituições. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2005. 2204 pp.
266
Da Ilusão de Completude ao Encontro Simbólico: a Peregrinação
Amorosa do Sujeito Desejante em “Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres”, de Clarice Lispector
Daniel Migliani Vitorello1
Não é mesmo com bons sentimentos que se faz Literatura: a vida também não. Mas há algo que não é
bom sentimento. É uma delicadeza de vida que inclusive exige a maior coragem para aceitá-la (...). Clarice
Lispector em “Uma Aprendizagem ou o livro dos prazeres”, 1998 [1969], p.26.
“Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”, escrito por Clarice Lispector; trata-se da
narrativa da peregrinação amorosa dos personagens Lóri e Ulysses, que segundo nossa leitura,
A linguagem é a chave que abre as portas e que constitui a dimensão simbólica, onde é
possível a cada ser humano se diferenciar dos animais (na capacidade de postergar a obtenção
do prazer) e mesmo entre seus semelhantes (no modo como lida com os desencontros entre a
Professor do Centro Universitário Anhanguera de Santo André e Mestre em Comunicação e Semiótica
1
267
própria existência, e que encerra em seu âmago um conjunto de significâncias que
Em psicanálise, a linguagem opera sobre o sintoma (...) a criação literária pode ser um
sintoma porque o sintoma por si só é uma invenção (...) e toda criação supõe que o
simbólico suscitou uma falta no real, onde por definição nada pode faltar (...). Assim,
o sintoma cria a singularidade do sujeito, [submetido, por sua vez] à grande lei do
querer-ser, que (...) represa, crava o gozo, ao passo que o inconsciente o desaloja
(Soler, 1998, p.16-7).
existência humana, evidenciando a falta estrutural do sujeito desejante e os meios que ele
utiliza para fazer suplência a esta falta, através de seus sintomas e suas construções
A Psicanálise aproxima-se do Real na leitura que faz dos sintomas que veiculam o
gozo humano, a fim de produzir um saber para melhor situar o sujeito na relação com a sua
falta.
Já a Literatura subverte a realidade, pois lidando de forma criativa com a letra eleva-a
de mera transmissora de significado à significante, abrindo uma litura na terra, ou seja, uma
fenda para o Real, o que mobilizará cada sujeito que entra em contato com ela a construir sua
própria história.
real. Ela é capaz de constituir-se como um objeto, como algo novo que ultrapassa o
significado, e assim, o gozo que produz não é o gozo puro da letra, mas um gozo que,
assemelhando-se ao chiste, produz efeito de significado que irrompe do literal, indo além e
268
confrontando a intenção do sujeito; a Literatura constituiria então um “savoir-faire” da letra,
(SOLER, 1998).
Esse gozo, no entanto, não é pleno; ele não constitui um escudo impenetrável contra o
sofrimento,pelo contrário, pois há um resto do movimento pulsional que resiste a ele, de tal
forma que não se renuncia totalmente ao desejo, mas também não se livra da angústia de
castração, da pulsão de morte, da atuação do supereu. Não se trata de uma conciliação simples
maneira conflituosa; trata-se de uma tentativa de se organizar em torno do vazio que marca o
sujeito.
Lacan postulava que a arte literária inscrevia a verdade do sujeito sem dar-se conta
disso, e que buscar um sentido único para esta verdade constituía um reducionismo;
reportando-se a Freud (que afirmava que na matéria com a qual a Psicanálise lidava, o artista
sempre a precedia) ele recomendou portar-se perante o texto literário como um não-saber: “na
berlinda, é pela verdade deles [do que os textos literários veiculam] que espero” (Lacan, 2003
[1971], p.13).
A arte criativa vai além do sonho, e de outras formações do inconsciente; ela atua
como uma saída sublimatória que realiza uma dessexualização das pulsões sem recorrer aos
a satisfação encontrada pelo artista, através da substituição de um objeto sexual por outro
269
de um prazer puramente formal e que Freud chama de “prêmio da sedução”. Como o
criador dá a impressão de que está se entregando a um simples jogo, que parece
exemplarmente lícito, a testemunha pode esquecer a que ponto esse jogo pode ser
sério, isto é, a que ponto está carregado de afetos (Kaufmann, 1996 [1993], p. 500-
501).
A arte criativa não depende de relações transferenciais que lhe confiram sentido; ela
não convoca um ouvinte, está lá por si mesma, para quem quiser dela se apropriar. Do contato
empréstimo as criações do artista para dar vazão aos seus próprios anseios.
Além disso, o texto literário permite ao sujeito se confrontar com a castração, mas sem
evocar todo o terror que o contato direto com o inominável suscitaria; ele o faz de maneira
suavizada, possibilitando que o sujeito lide com o insuportável, relativize a dor da falta sem
Por isso é que perante a arte, bem como todo o sofrimento que o sujeito expressa, cabe
efeito, ou de cessar a causa da dor; a Psicanálise prima que o sujeito se haja com o seu
aprendizagem...”:
(...) não se podia cortar a dor — senão se sofreria o tempo todo. E ela havia cortado
sem sequer ter outra coisa que em si substituísse a visão das coisas através da dor de
existir, como antes. Sem a dor, ficara sem nada, perdida no seu próprio mundo e no
alheio sem forma de contato (Lispector, 1998 [1969], p.18).
castração, o que só agrava o seu sofrimento; nesse sentido, tanto a Literatura quanto a
270
Psicanálise propõem a reintegração do desejo à existência humana, conduzindo o sujeito a
descobrir dentro de si mesmo formas de metaforizar sua falta constitutiva (KEHL, 2009).
Clarice Lispector e Jacques Lacan, na estreita relação que mantinham com as Artes -
mais intimamente com a Literatura, tentavam costurar em torno do vazio que gera a angústia.
- “Eu tenho à medida que designo – este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas
eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-
prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar
e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A
linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino
volto com as mãos vazias: mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser
dado através do fracasso da minha linguagem. Só quando falha a construção é que
obtenho o que ela conseguia”.3
- “É justamente por esse impossível que a verdade provém do Real (...) digo sempre a
verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível,
materialmente: faltam as palavras”.4
- “Porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar a vida. E sem
mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter
a realidade (...). Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar
à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita”.5
-“Para nós se trata de tomar a linguagem como aquilo que funciona em suplência, por
ausência da única parte do real que não pode vir a se formar em ser”.6
Num primeiro momento tem-se a impressão de que o trecho acima é o recorte de uma
conversa entre dois sujeitos; tratam-se, entretanto, de excertos da obra de Lispector e Lacan,
que ao sugerirem um diálogo, o fazem contigencialmente, pois ainda que estivessem inseridos
num mesmo período histórico, não há evidências de que tenham tido contato com a obra um
do outro. Ele pela clínica, ela pelo texto, tentavam tricotar uma teia de significantes em torno
do vazio deixado por “das Ding”, o objeto do gozo impossível, para sempre perdido.
3 Clarice Lispector, em “A Paixão segundo G.H.”, 1998.
4 Jacques Lacan em “Televisão”, 1974.
5 Clarice Lispector em “Água-viva”, 1973.
6 Jacques Lacan, no seminário XX, “Mais-ainda”, 1982, 66p.
271
Lacan concebe a falta como uma mola que mantém a relação do sujeito desejante com
o mundo; na busca por uma satisfação passada e ultrapassada “o novo objeto é procurado e
encontrado, mas nunca é o mesmo objeto, nem poderia sê-lo, pois é encontrado e apreendido
em outra parte e não no ponto onde é procurado” (Plastino, 2008, p.70); ele é o objeto
perdido, “das Ding”, a Coisa, representado pela Mãe, a partir da onde se tricotará uma teia de
(...) uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve
comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é
o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma
angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida (Lispector, 1998 [1969],
p.12).
estado primordial do gozo absoluto, depois evolui pela via simbólica, que o situa na sua
Lóri é uma professora primária que não se permitia envolver-se afetuosamente com as
pessoas por medo de sofrer, vivendo alheia; voltando-se para si mesma, ela só se deparava
com o vazio:
Mas ah, a falta de sede (...). A humanidade lhe era como morte eterna que no entanto
não tivesse o alívio de enfim morrer (...).Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem
contração. Não havia grito (...).. Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum
suor(...). Nada escorria. A dificuldade era uma coisa parada. E uma jóia diamante (...)
tudo isso é a morte parada, é a Eternidade de trilhões de anos das estrelas e da Terra, é
o cio sem desejo, os cães sem ladrar (Lispector, 1998 [1969], p.10-1).
Ela então conhece Ulisses, professor universitário que casualmente aparece em sua
vida. Lór tenta seduzir Ulisses (lembremos que seu nome remonta a Loreley, figura mítica do
folclore alemão que seduzia os pescadores e os levava para o fundo do mar). Ela “sucumbia a
272
uma completa irresponsabilidade: (...) ser possuída por Ulisses sem ligar-se a ele, como
Lóri na verdade não seduz ninguém – pelo contrário, acha-se seduzida, pois vive à
procura de formas de agradar um homem e assim ver o desejo por ela manifestado.
Ulisses (lembremos que seu nome remonta ao personagem da tragédia grega Odisséia,
que venceu os obstáculos com o uso da inteligência e controle dos instintos) resiste ás
investidas sedutoras de Lóri e acaba mobilizando-a de um modo que nenhum dos cinco
Quando Lóri conhece Ulisses, ela imagina que ele a completa, que ele seja o porta-voz
do sentido de sua existência: “era como se Ulisses tivesse uma resposta para tudo”
“Aquele sábio estranho que no entanto não parecia adivinhar que ela queria amor”
(Lispector, 1998 [1969] p.8), como toda histérica, não corresponde a sua demanda.
conferindo-lhe a plenitude – “Quando esta [esperança] morreu, ao ver que ele não tinha a
menor intenção de ensinar-lhe um modo de viver”, Lóri se reconhece como sujeito desejante
– “já era tarde: estava presa a ele porque queria ser desejada” (Lispector, 1998 [1969] p.18).
Ulisses não corresponde à demanda de Lóri e assim lhe faz lidar com a sua própria
falta. Lóri acaba reconhecendo que “um ser não transpassa o outro como sombras que se
trespassam” (Lispector, 1998 [1969], p.20). De dois não se fazia um; ela seria para sempre
273
faltante. E o reconhecimento dessa falta colocou em causa o seu desejo, impulsionando-a a se
movimentar: “Tudo isso ela já aprendera através de Ulisses. Antes ela evitara sentir. Agora
tinha (...) já (...) leves incursões pela vida” (Lispector, 1998 [1969], p. 15).
Antes de se aproximar de Ulisses, Lóri encarava a morte como algo que colocaria um
termo ao vazio que representava a sua vida; depois que por amor colocou em causa o seu
desejo, ela “pensou por um instante se a morte interferiria no pesado prazer de estar viva.
(...) nem a idéia de morte conseguia perturbar o indelimitado campo escuro onde tudo
palpitava grosso, pesado e feliz. A morte perdera a glória” (Ibidem, p.81). Lóri, que até então
vivera alheia do mundo, passa a estabelecer vínculos afetivos, se entregando com prazer a
atividade de ensinar seus alunos. Antes ela não sentia o “gosto” das coisas, vivia
Lóri entrava, ela própria em agasalho com as crianças (...)falou-lhes que aritmética
vinha de "arithmos" que é ritmo, que número vinha de "nomos" que era lei e norma,
norma do fluxo universal da criança. Era cedo demais para lhes dizer isso, mas gozava
do prazer de falar-lhes, queria que eles soubessem, através das aulas de português, que
o sabor de uma fruta está no contato da fruta com o paladar e não na fruta mesmo.Não
havia aprendizagem de coisa nova: era só a redescoberta. E chovia muito esse inverno.
Então usou a outra mesada do pai e procurou — com que prazer andava pelas lojas
procurando até achar — e procurou e comprou para todos os alunos e alunas de sua
classe, guarda-chuvas vermelhos e meias de lã vermelha.Era assim que ela afogueava
o mundo (Lispector, 1998 [1969], p.53-54).
Lóri estava “caminhando com as próprias pernas”; quando vai ao encontro de Ulisses,
ao contrário do que fazia antes (quando colocava vestidos sensuais e excesso de maquiagem,
pensando em formas de seduzí-lo) “Ela nem precisava pensar no que ia vestir (...) assim
encontrou-a ele e olhou-a com admiração: ela estava extravagante e bela” (Lispector, 1998
[1969], p.54).
274
Ulisses considera que Lóri está pronta e então manifesta o desejo que tanto tempo
guardara em silêncio: “Agora eu quero o que você é, e você quer o que eu sou” (Ibidem,
p.74).
Nunca um ser humano tinha estado mais perto de outro ser humano. E o prazer de
Lóri era o de enfim abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que
estava antes encarniçadamente prendendo-a. E de súbito o sobressalto de alegria:
notava que estava abrindo as mãos e o coração mas que se podia fazer isso sem
perigo! Eu não estou perdendo nada! Estou enfim me dando e o que me acontece
quando eu estou me dando é que recebo, recebo. Cuidado, há o perigo do coração
estar livre? Percebeu, enquanto alisava de leve os cabelos escuros do homem,
percebeu que nesse seu espraiar-se é que estava o prazer ainda perigoso de ser. No
entanto vinha uma segurança estranha também: vinha da certeza súbita de que sempre
teria o que gastar e dar. Não havia pois mais avareza com seu vazio-pleno que era a
sua alma, e gastá-lo em nome de um homem e de uma mulher (...)Depois que Ulisses
fora dela, ser humana parecia-lhe agora a mais acertada forma de ser um animal vivo.
E através do grande amor de Ulisses, ela entendeu enfim a espécie de beleza que
tinha. Era uma beleza que nada e ninguém poderia alcançar para tomar, de tão alta,
grande, funda e escura que era. (Lispector, 1998 [1969] p.77-81).
Há, portanto, um amor para além da identificação, da ilusão de completude que remete
maneira tão completa que sua falta faz do mundo um verdadeiro deserto – este mundo pode
O amor, numa leitura lacaniana, implica na falta, no encontro sempre faltoso; ele visa
atingir a falta que reside no núcleo do objeto, objeto este trabalhado na dialética com o Outro,
objeto que está mais-além de si mesmo, que se inscreve como falta simbólica, pois foi
amantes pelos desertos do imaginário até o encontro do oásis simbólico, onde se tornam
275
capazes de promoverem um encontro faltoso, se reconhecendo como sujeitos desejantes; para
tal encontro é que tanto Literatura quanto Psicanálise convergem com seus campos de
atuação.
Referencial bibliográfico:
KAUFMANN, p. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de freud a Lacan. Rio de
Janeiro:Jorge Zahar, 1996 [1993], 785p.;
KEHL, M.R. A psicanálise e o domínio das paixões. In: NOVAES, A. Os sentidos da paixão.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 537-68p;
LACAN, J. Lituraterra e Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003;
_______. Seminário XX: mais-ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982;
LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres [versão digital]. 5ª ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998 [1969];
______. Água-viva. São Paulo: Círculo do Livro, 1973. 118p;
________. A paixão segundo G.H. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 180p;
MARCOS, C. Do que se pode ler em Clarice Lispector: sublimação e feminino. Disponível
em: www.scielo.com.br. Acesso em: 10 de novembro de 2009;
PLASTINO, G. O discurso da falta em Clarice Lispector: laços de família. 2ª ed. Osasco:
Edifieo, 2008. 164p; SOLER, C. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contracapa,
1998.
276
Sintoma, Sinthome e Final de Análise
passando a designá-lo como aquilo que bordeja o buraco da castração, no qual o sujeito se
sintoma mórbido tem a estrutura de uma metáfora que vem suprir a metáfora do Pai. Já o
compensar a carência do pai. Esta distinção tem conseqüências clínicas importantes para
pensar a direção da cura e o final de análise, pois assinala a travessia da análise como marcada
pelo tempo do encontro com o real, onde um dizer se sustenta a partir do impossível.
Proponho seguir os trilhamentos de Lacan sobre o sintoma para trabalhar a travessia de uma
análise como correlativa à passagem dos sintomas mórbidos ao sinthome, tronco da estrutura
questão do inconsciente estruturado como linguagem, contendo uma mensagem cifrada a qual
pode ser dissolvida graças à interpretação. Lacan dá ao sintoma estatuto de uma formação
1
Psicanalista,
professora
adjunta
do
Instituto
de
Psicologia
da
UFPA
e
coordenadora
do
Grupo
de
Pesquisa
“Psicanálise,
sintoma
e
instituição”.
277
interpretação. Endereçado ao Outro, o sintoma recebia dessa instância significação. Temos
então que o sintoma é um saber que se lê, o que aponta a uma dimensão de sentido, mas que,
enquanto saber, diz de um impossível. Por isso, mal grado a interpretação, um sintoma não se
encontra na origem da repetição sintomática. Assim, ele opôs sintoma e fantasma a partir de
traços distintivos, estabelecendo uma relação do sintoma com o significante e da fantasia com
o objeto. A partir disso, na clínica, encontramos uma motilidade do sintoma, porque está
inscrito na cadeia significante, e uma fixidez da fantasia, porque remete a uma cena. A
fantasia é então o que há de real na experiência de uma análise, pois se trata de um resíduo,
um resto do qual é impossível falar. Ela concerne à estrutura do sujeito, por isso não se
modifica. Já o sintoma tem por função tamponar o fantasma, sendo determinado por ele e por
isso mesmo é por ele que se poderá ler algo da fantasia do sujeito. Por isso, o analista trata o
sintoma sem o liquidar, pois há algo dele que permanece e opera sobre o gozo propiciando a
intervindo sobre a ignorância do sujeito a respeito de sua causa. Neste percurso, construir
equivale ao esvaziamento de gozo do sintoma, surgindo com ele algo que aponte ao desejo.
Com esta noção a direção da cura visava um ultrapassamento do sintoma, para que através de
saída precária, mas a única que pode garantir uma certa ordenação ao sujeito. Tido por Freud
278
como um arranjo entre desejo inconsciente e exigências defensivas, ele jamais será eliminado,
sintoma, uma invenção que enoda os três registros – Real, Simbólico, Imaginário – implica
uma equivalência dos três elos e mantém como suporte a estrutura do sujeito. O nó é feito por
dois círculos apenas sobrepostos, atados por um terceiro, de modo que, quando um é rompido,
os outros dois ficam soltos. Mas o nó borromeano mínimo de três não é suficiente para Lacan
enquanto resposta ao que mantém unido R, S e I. A pergunta pelo que enoda vai em busca de
um organizador, que será um quarto elemento. A resposta aparece sob a forma do que,
segundo Lacan, Freud chamou de realidade psíquica, que engloba o fantasma, isto é, desejo e
gozo, ou o que Lacan teorizou como o Nome-do-Pai. O quaro realiza uma função de
suplemento em relação aos outros três; reúne-os, mas mantém uma exterioridade. Não faz
diferente as três consistências do real, do simbólico e do imaginário. O que faz a ligação entre
as três dimensões distintas é o Nome do Pai. Para que o sujeito se sustente, Lacan diz que há
279
No enodamento da tríade, o Imaginário faz corpo, bordas contornadas pela pulsão e é
significante que faz buraco e inscreve o recalque. O Real é o campo do impossível, é o que
ex-siste ao furo. Assim, enodam-se consistência, buraco e ex-sistência, traçando uma escrita
para além do significante que toca algo do real da estrutura. O nó é uma escrita afetada pelo
do Outro e o gozo fálico. Um enlaçamento pela via da separação entre os gozos. O gozo do
escrita do nó com outra envoltura formal e faz a mostração do Real, que ultrapassa os limites
do significante e enuncia a ex-sistência. O ‘não cessa de não se escrever’, embora não seja
uma definição do Real, é o modo como se apresenta o real da estrutura, esta que se sustenta
vem do Real, ou seja, uma emergência vinda do Real. No sintoma identificamos o que se
inconsciente.
280
A partir da leitura de Joyce (1975-1976) o sintoma não é mais uma mensagem cifrada
a qual pode ser dissolvida graças à interpretação, pois esta nova leitura vai partir de um
sinthome. O sintoma leva à análise quando num determinado momento já não cumpre mais a
sua função na economia do gozo. Apresenta-se, então, uma demanda de análise, a princípio
sujeito suposto saber, e que no final de análise apontará para a produção de um sinthome
enquanto uma escrita particular ligada àquilo que do real não ascende ao significante e funda
o desejo. Mas, a princípio, é para dar conta do sintoma que faz sofrer e que também satisfaz,
que o analisante busca e trabalha em análise. Para o neurótico que procura uma análise, no
lugar do gozo se produz a angústia, pois o sintoma como possibilidade de gozo de algum
junções e suturas fará com que no final do percurso o sujeito se depare com o sinthome, com
th, irredutível da estrutura, que possibilitará o gozo, não- todo naturalmente. A análise seria
formação significante carregada de gozo, único suporte do ser, único ponto a dar consistência
mesmo lugar onde se produz o erro do nó. Sustentado na letra e na escrita do nó borromeano,
o sinthome não será interpretado, nem resolvido, nem atravessado como se propunha em se
tratando de fantasma.
281
Para concluir, com a topologia dos nós e a elaboração topológica da função da
suplência, Lacan traz novos aportes clínicos que permitem dar conta da regulação de gozo e
do final de análise. A partir do seminário 23, podemos dizer que uma análise começa com o
sintoma e termina com o sinthome. Os sintomas mórbidos que estão no início de uma análise
são metáforas que visam manter articulado o desejo do sujeito; e o que chamamos com Lacan
o sinthome, cuja função é ilustrada por Joyce através de sua escrita, seria aquilo que, para
além dos sintomas, constitui o irredutível. Com isso, há uma mudança radical que define a
etapa final do processo psicanalítico em termos de destituição subjetiva. A partir daí tratamos
o sintoma sem o liquidarmos, pois há algo nele que não se dissolve e operamos sobre o gozo
reencontrar o sinthome irredutível, com o qual o sujeito poderá obter o gozo possível. O final
de análise seria então a identificação com o sinthome. Saber se virar com seu sinthome, saber
Referências bibliográficas
______. Conferencia in Ginebra sobre el sintoma (1975). In: Intervenciones y Textos. Buenos
Aires: Manantial, 1988.
______. O Seminário, Livro 23: O Sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
282
“Imagine O Que Eu Não Falaria Se Eu Não Fosse Gago!”: O Que Fala
Essa Gagueira?
âmbito institucional. Este caso, inicialmente mediado por uma clínica-escola, foi então levado
ao referido grupo, o qual tem como objetivo investigar o lugar do sujeito e de seu corpo nos
contexto, observa-se que o sujeito, uma vez manifestando uma doença, geralmente
diagnosticada por uma instituição de saúde como de “causa psicológica”, solicita do analista
uma resposta imediata para o seu sofrimento. Tal situação aconteceu com Antônio, que chega
1
Psicóloga, Membro do Grupo de Pesquisa “Psicanálise, Sujeito e Instituição”, Aluna especial do Programa de Pós
Graduação da UFPA.
2
Psicanalista, Professora Drª. do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFPA e Coordenadora do Grupo de Pesquisa
“Psicanálise, Sujeito e Instituição”.
3
Psicóloga, Mestre em Psicologia, Residente em Oncologia, Membro do Grupo, “Psicanálise, Sujeito e Instituição”.
283
Sendo assim, considerando o fenômeno da gagueira em Antônio, como podemos
concebê-lo a luz da psicanálise? Para discutir esta questão, vale retomar o texto de Freud
(1926/ 1996) intitulado Inibição, Sintoma e Ansiedade, no qual ele nos fala da inibição
como sendo “uma expressão de uma restrição de uma função do ego” (p. 93), como a função
diremos que a gagueira de Antônio seria apenas uma restrição de uma função, a fala. No
entanto, Freud salienta para um mais além desta inibição ao apontar para o fato de que uma
Diante da afirmação, é possível dizer então que Antônio, ao trazer ao analista sua
gagueira como queixa, denuncia seu próprio sintoma da seguinte forma: “Não sou doido, nem
burro, sou gago!”. Ao se dizer gago, endereçando seu sintoma à analista, desejava erradicá-lo:
“A senhora vai ter que dar um jeito nessa minha gagueira!”. Entretanto, sabe-se que a
psicanálise não se dirige a eliminação dos sintomas, mas sim, toma-os como via de acesso ao
desejo, pois só por meio do sintoma, ou melhor, de sua repetição, é que o analista pode
apontar para o sujeito a posição que ele ocupa no campo do Outro, proporcionando uma
incomodava-se por ser gago, contudo, obtinha uma boa dose de satisfação inconsciente com
seu sintoma.
Lacan (1962-63/ 2005), ao formular teorizações acerca da inibição, afirma que nela se
exerce um desejo, desejo este oposto àquele que a função satisfaz naturalmente. Seguindo este
desejo de não dizer aquilo que, para o seu Eu consciente, seria intolerável. Em suas palavras:
“Imagine o que eu não falaria se eu não fosse gago!” Antônio parece apontar um desejo
inconsciente que o sintoma vem disfarçar. Resta desta operação um “não dito”, em que,
Por que não nos servirmos da palavra impedir? É disso mesmo que se trata. Nossos
sujeitos ficam inibidos quando nos falam de sua inibição, e nós mesmos o ficamos
ao falar em congressos científicos, mas no dia-a-dia, eles ficam mesmo é
impedidos. Estar impedido é um sintoma. Ser inibido é um sintoma posto no museu
[...] Impedicare significa ser apanhado na armadilha e é afinal, uma noção
extremamente preciosa. Implica de fato a relação de uma dimensão com algo que
vem interferir nela e que no que nos interessa, impede não a função, termo de
referência, e não o movimento, que fica dificultado, mas justamente o sujeito. [...]
Assim escrevo impedimento na mesma coluna que sintoma (p.19).
“impedir”, Lacan nos fala que o sujeito é impedido, barrado, pelo seu próprio sintoma. Sabe-
se que o sintoma surge do conflito entre a pulsão e a cultura. Ao ser castrado, o sujeito acaba
sendo impedido de obter total satisfação da pulsão, sendo possível apenas uma satisfação
parcial. Para a Psicanálise este “dizer tudo” que certamente comportaria um gozo êxtasiante é
da ordem do impossível, pois ainda que Antônio não fosse gago, ele não poderia falar tudo.
285
Neste sentido, o sintoma assume ao mesmo tempo uma função de solução a “uma luta
defensiva contra um impulso instintual desagradável” (FREUD, 1926/ 1996, p.101), e uma
Com relação ao sujeito que tem a marca da gagueira como algo preponderante em seu
discurso, Tassinaria (2001) sugere que é importante concebê-la como uma máscara e supor
que atrás dela há um sujeito. Ela conceitua esta marca como sendo “uma marca de descontrole
da forma da fala, uma espécie de renitência de uma instância constitutiva desse sujeito em
submeter seu dizer à fluência melódica vigente na língua” (p. 78). Ora, se o sujeito do desejo
construir um saber sobre o mal que lhe causa, se este era impedido de falar?
sobre o seu desejo, na medida em que a inibição da fala de Antônio, por estar encadeada à
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FREUD, S. (1926) Inibição, Sintoma e Ansiedade: In:. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XX
LACAN, Jacques. O Seminário: livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.
TASSINARI; I. M. Do sintoma ao sujeito: contribuições da Psicanálise para o atendimento de
um paciente gago. In: Gagueira e subjetividade: possibilidades de tratamento. Organizadores:
Silvia Friedman e Maria Cláudia Cunha. Porto Alegre: Artmed, 2001.
286
Considerações Sobre a Constituição da Subjetividade na Psicose: Caso
Schreber
que se estrutura a partir da relação mãe, filho e campo simbólico. Segundo Elia (2004), é
através do convívio social que nós, seres humanos, encontramos todo o amparo necessário
para o nosso desenvolvimento e ele dar-se-á através de um adulto próximo, para Freud, ou
pelo Outro, para Lacan. É esse Outro que irá transmitir através da linguagem e inicialmente
para ele mesmo “uma estrutura significante e inconsciente [...] e não poderia ser simplesmente
o conjunto de valores culturais” (ELIA, 2004, p. 40). O bebê, por sua vez, introduz o que
Lacan denominou de significante, suscitando em seu corpo “um ato de resposta que se chama
de sujeito” (ELIA, 2004, p. 41) e é nesse momento em que o sujeito é introduzido no campo
Outro, sua demanda será o de “ser desejado pelo outro” ou “ter o desejo do Outro como seu
desejo”. É a mãe quem cria a demanda na criança e esta pela alienação, pelo temor da perda
1
287
do amor da mãe e pela não constituição ainda da sua subjetividade, insiste em responder-lhe a
solicitação.
dividido em três tempos. No primeiro tempo, a criança encontra-se numa relação dual com a
mãe, supondo ser a falta dela. A partir desse momento, advém o que Lacan denominou
segundo tempo do Édipo, que é marcado pela entrada de um terceiro nomeado de significante
Nome-do-Pai, que vai para além da relação dual: é a lei do pai que intervém, não com sua
representa a lei e simboliza um valor estruturante, capaz de determinar o lugar exato do desejo
da mãe, condição esta para que a lei paterna seja representativa da lei. A passagem pelos três
tempos do Édipo fará com que a criança interiorize a lei, inserindo-se na cultura e na
linguagem. Dessa forma, compreendemos a estrutura psicótica a partir de uma falha ocorrida
na relação primordial.
afirmar que o início da psicose em Schreber se deu após ele ser nomeado ao cargo de
paterna, uma vez que ele é encarregado das leis. É acerca da falta desse nome – Nome-do-Pai
– e de suas conseqüências que pretendemos refletir sobre a função dos pais de Daniel Paul
288
Niederland (1981) aponta que, em relação ao pai, pode-se argumentar que ele foi
o tipo de pai simbiótico cuja presença onipresente, cuja usurpação da função materna e cujos
benevolentes; tanto punitivos quanto sedutores) prestaram-se a sua fusão com a bizarra
Admitimos que o maior pavor de Schreber era o de ter de assumir o lugar do pai.
No entanto, pelas observações feitas ao longo do percurso das pesquisas psicanalíticas acerca
do caso, sabemos que Schreber não podia aceitar um papel masculino ativo em um sentido
mais amplo. Quando Schreber foi solicitado a se tornar um membro do Reichstag, ele adoeceu
pela primeira vez – na época, isso significava opor-se a Bismarck, o “Chanceler de Ferro”,
indiscutível figura de pai. Quando foi chamado a ocupar o cargo de juiz presidente da Corte
Superior, novamente caiu doente, e desta vez para sempre. Impossibilitado de enfrentar o
poderoso pai em uma competição árdua como membro do Reichstag ou de ocupar um lugar
de pai, já que ele seria responsável pelas leis, como Presidente da Corte Suprema, Schreber
O olhar primordial deve estar presente na relação mãe-filho e é através dele que a
criança irá se reconhecer como sujeito, caso contrário, ela se perceberá como um ser
despedaçado, objeto. Houve uma falha nesse olhar que deixou Schreber preso como objeto de
gozo do pai. Moritz Schreber coloca os filhos no lugar de coisas, objetos, no momento em que
os usa para seus experimentos na medicina, assim como na educação dada a eles. O pai de
Schreber utilizava-se de uma educação autoritária e submissa, na qual impunha seus desejos
289
acima dos desejos de seus filhos. “Ocupar esse lugar de objeto desejado tem uma função
importante na fundação de um sujeito. Mas se se ocupa esse lugar de objeto então não se pode
Entende-se que a entrada de Moritz deveria intervir na relação dual que Schreber
estabeleceu primeiramente com a mãe, porém, Moritz não interdita essa relação mãe-filho,
mas sim prolonga essa relação narcísica, não permitindo a entrada do terceiro, isto é, do
significante Nome-do-Pai.
Julien (1999, p. 39) assinala: “Teu quarto é teu quarto e o meu é o meu. Meu gozo não tem
nada a ver contigo; meu gozo se volta para uma mulher, uma mulher da minha geração, causa
do meu desejo”. Podemos afirmar que é exatamente isso que Moritz não faz, ele não permite a
entrada da mãe, Pauline, na relação dele com Schreber, cabendo a ele toda a função de mãe
nesta relação.
290
Para Waelhens (1990, p. 96), “a partir do momento que o significante da castração
é foracluído, a única saída aparente para Schreber consiste em regredir ao nível dessa
Moritz declarava através de seus escritos que a mulher deve ser inexistente, que
não pode se posicionar a não ser pela ordem do marido e deve ser uma mulher apagada.
Moritz era um pai que sabia tudo, orientava tudo, supervisionava tudo. Em relação ao tema
educação, afirmava: “o educador é um homem que tem resposta para tudo” (MANNONI,
1977, p. 28). Em relação à mãe, apontava: “que a mãe se apague, é a voz do pai que
possível encontrar a voz do pai Moritz na mãe Pauline, cabendo sempre a Moritz os cuidados
do filho. A mãe só existiria a partir do discurso do pai, mas, como já vimos, Moritz anulava as
Schreber.
significado precisamente ali onde ele deveria estar e nunca esteve. “Através de nada menos do
que um pai, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas através de Um – Pai”
(WAELHENS, 1990, p. 99). Esse Um - Pai surge no real, no tempo em que alguém venha ser
personagem da figura paterna e se impor ‘na posição terceira’, isto é, no campo de alguma das
relações erotizadas entre o sujeito e seu objeto, ou melhor, entre o ideal e a realidade.
291
Percebemos que Schreber teve um pai em excesso, muito presente, passando-nos
uma compreensão de um pai como figura muito forte, que submetia Schreber a uma educação
submetido, na sua relação com o pai, a uma perversão da demanda de amor. Adestrado,
amado, ao preço de não ser, tendo seu desejo inteiramente governado pelo pai, alimentou seu
delírio e por amor de Deus ficou submetido a uma posição feminina, encontrando sua verdade
através do delírio.
Referências
Relatado em Autobiografia. In: FREUD, S. Obras Completas, vol. 10. São Paulo:
Freud, 1999.
Zahar, 1981.
ROSENBERG. A. M. O Lugar dos Pais na Psicanálise com Crianças. São Paulo: Escuta,
1994.
Graal,1985.
Zahar, 1990.
293
De um Sintoma no Corpo a um Sintoma Analítico: uma Clínica a Partir
dos Fenômenos Psicossomáticos
psicossomático (FPS), considerando sua diferença com relação ao sintoma. Através dos
algumas afecções que o afetam sem comportarem uma causa orgânica comprovada. Tais
como um entrave na direção do tratamento, pois admitem uma modalidade de gozo fixada ao
corpo, como uma escrita não passível de decifração, distinguindo-se do sintoma, o qual, por
enigma. Por esta razão é que Szapiro (2008) nos diz que receber um paciente com
1
Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA),
membro do Grupo de Pesquisa “Psicanálise, sintoma e instituição”, cadastrado no CNPQ e coordenado pela
Profª Drª Roseane Freitas Nicolau. Endereço eletrônico: ifpsi@yahoo.com.br.
2
Psicanalista, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com Formation Doctorale na
École des Hautes Études em Sciences Sociales em Paris (França), professora adjunta do Instituto de Psicologia
da UFPA e coordenadora do grupo de Pesquisa “Psicanálise, sintoma e instituição”, cadastrado no CNPQ.
Endereço eletrônico: rf-nicolau@uol.com.br.
3
Psicóloga, mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA, membro do Grupo
de Pesquisa “Psicanálise, sintoma e instituição”, cadastrado no CNPQ e coordenado pela Profª Drª Roseane
Freitas Nicolau. E-mail: jamilemorais_11@yahoo.com.br.
294
faz necessário sustentar uma fala atrelada a estas afecções, as quais se encontram presas ao
em se articular com a dimensão subjetiva, uma vez que ao buscar uma resposta imediata para
seu sofrimento, localizado em um ponto irrepresentável do seu corpo, impossibilita que uma
representações, ou seja, ao conteúdo recalcado. Para Freud (1926/1996) o sintoma aponta para
retorno desta operação, mas sim como uma espécie de “matéria bruta”, que não foi lapidada,
transformada em sintoma.
Ao se referir ao FPS, no Seminário 11, Lacan (1964/1998) salienta que este não pode
ser considerado um significante, tendo em vista que não há a afânise do sujeito. Para ele, a
deslizamento na cadeia significante. Isto quer dizer que para o sujeito ex-sistir na linguagem,
uma vez que aparece justamente em sua falha, ele deve primeiramente estar afanisado na
cadeia. Lacan nos diz que a eclosão de um FPS acontece devido à holófrase, termo que
295
assim o registro simbólico e qualquer enlace com a esfera subjetiva.
Medicina, usou a expressão falha epistemo-somática para se referir aos FPS, indicando que
estes refletiam uma “ignorância” do sujeito com relação ao saber sobre seu corpo, seu desejo
e sua história. Tal “ignorância”, por sua vez, explica o motivo pelo qual esses pacientes
podemos dizer que ela mostrou seus efeitos em Elisa, paciente atendida no contexto da
pesquisa O Sintoma do Corpo. Elisa, em um primeiro momento, não se implicava com seu
sofrimento, deixando-se levar por uma fala em torno de sua doença: O Lúpus Eritematoso
Sistêmico. Nas palavras de Elisa: “Essa semana foi horrível, quase não consegui dormir
direito, meu coração batia forte, aquelas dores voltaram. Quando isso acontece fico muito
ansiosa, não sei o que fazer. E o pior, há quatro dias acordei cheia de manchas na pele! Não
agüento mais, todo hora é uma coisa, fui na médica e ela disse que pode ser psoríase, minha
Elisa, em sua fala, além de denotar sua falta a saber, ficava presa num dizer vazio,
direcionado a todos os sintomas físicos que tinham lhe ocorrido durante a semana,
procurando, assim como fazia com seu médico, uma espécie de “diagnóstico emocional”, que
supostamente explicaria a causa de sua doença. Sobre isso, Ornellas (2004) pontua que o
paciente, ao procurar um médico para obter uma explicação sobre a sua patologia, espera uma
autenticação para a mesma e, portanto, uma falsa demanda de cura. Identifica que nestas
296
situações está em jogo uma satisfação específica, ou seja, um gozo específico, já que o sujeito
se apresenta fixado no corpo. Diante desta repetição, existiria alguma possibilidade desta
p. 215):
O que nos diz Lacan é que mesmo a psicossomática não sendo um significante, isso
não denota abolir a idéia de que um indivíduo afetado por uma lesão deste tipo não possa se
manifestar como sujeito. De modo diverso, podemos dizer que, momentaneamente, este
Assoun (1997) considera o FPS como uma “fuga” do sujeito de sua neurose. Ao
afirmar que a doença põe a neurose em suspensão, o autor nos coloca que o sujeito, apesar de
por um momento manter-se escondido atrás do real de sua patologia, está lá, esperando uma
capaz de substituir sua neurose por um fenômeno desta ordem, “fugindo” de sua constituição
fantasmática, que permanece suspensa. Pontua que a enfermidade somática surge como se
É possível afirmar que as afecções somáticas também seriam uma forma de aviso
297
dirigido ao sujeito, ao sinalizar (através da lesão) que este deve deixar a neurose emergir. É o
verdadeiro encontro entre as pulsões de vida e de morte, pois enquanto a pulsão de morte
lança o sujeito para a morte, destruindo os órgãos e causando prejuízo ao corpo, a pulsão de
vida, através de uma castração pelo real, convida-o a voltar a sua condição: a de sujeito do
inconsciente. O autor relaciona o FPS com um masoquismo corporal, o qual levaria o corpo a
Sendo assim, o fato de Elisa estar presa numa fala direcionada às suas afecções, em
torno do Lúpus, isso não significa dizer que não devemos apostar na emergência do sujeito do
inconsciente. No entanto, como o analista pode conduzir uma fala colada no corpo em direção
Wartel (1987/1990) nos diz que não há outra saída senão a partir do silêncio do
livre, por meio da posição de causa de desejo do analista, é que entre um dito e outro, entre
representante de um saber psi, a fim de encontrar uma resposta imediata para seu sofrer. Ao se
deparar com a não resposta, referindo-se às suas queixas físicas, deixa escapar o significante
medo, dizendo: “Quando me sinto assim, com muitas dores, me dá um medo...”. Ao solicitar
que falasse desse medo, ela diz: “Tenho medo de ficar sozinha em casa, vai que me dá um
298
troço, não vai ter ninguém pra me acudir... tenho medo que as pessoas esqueçam de mim,
Ao falar disso, lembra de uma cena contada por sua avó, referente ao abandono que
havia sofrido na infância, por sua mãe biológica. Disse que nunca havia contado a ninguém o
medo de ser abandonada e que até aquele instante não entendia o motivo pelo qual seus pais
deixaram que ela fosse criada por outra família, como demonstra em seus relatos: “Tudo bem
que a minha avó me tirou dela por causa da forma irresponsável que ela me criava. Onde já
se viu deixar um bebê sozinho numa casa. A vovó me disse que tinha meses quando aquela
outra [falando de sua mãe biológica] me deixou na casa que a gente morava sozinha, deitada
numa rede. A vovó escutou meus gritos fora da casa, pediu que arrombassem a porta e
quando ela chegou lá eu estava toda cagada, mijada. Ela ficou revoltada com essa situação e
disse pra mamãe que não ia mais ficar lá. Tudo bem que a vovó me tirou dela, mas ela me
deixou e não me criou porque não quis”. Ao se haver com o significante medo (S1), Elisa
pôde redistribuir sua economia gozosa, deixando de falar do corpo parar falar da história de
Vale ressaltar que tudo isso só foi possível porque acreditamos que, em psicanálise, o
trabalho caminha na direção de uma escuta que aponte para um sujeito possuidor de um corpo
erotizado e recoberto pela pulsão e não apenas para um corpo tomado simplesmente no campo
da biologia. Nicolau (2008) ressalta que é preciso escutar o que pode estar para além da
doença, ou seja, aquilo que está em jogo na afecção psicossomática: uma insistência que
aponta para a dimensão de um não querer saber. Trata-se de uma operação, na transferência,
que possibilite um enlace com algo de sua própria história, promovendo uma nova regulação
299
de gozo para o sujeito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSOUN, P. Corps et symptôme - clinique du corps: Tome 1. Paris: Econmica Ed, 1997.
FREUD, S. “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926). In: Edição Standard Brasileira das
Obras Completas – (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. XX.
______. “Psychanalyse et médécine” (1966). In: Petits écrits et conférences – 1945- 1981.
Inédito.
SZAPIRO, L. Elementos para una teoría y clínica lacaniana del fenómeno psicosomático.
Buenos Aires, Grama Ediciones, 2008.
300
A Criança como Sintoma dos Pais em Casos de Disputa de Guarda
principalmente quando a decisão é apenas de uma das partes, podendo gerar ressentimentos.
Quando se tem filhos, a separação pode se tornar ainda mais delicada, principalmente quando
envolve crianças, onde muitos pais quando do desacordo recorrem às varas de família para
cônjuge os pais usam a criança como arma para atingir o outro. Porém os pais não podem
esquecer que sempre que uma das partes ganha, quem perde é a criança, que muitas vezes é
revitimizada por meio do processo de disputa de sua guarda, dos conflitos de seus pais.
Este trabalho é fruto de uma pesquisa de mestrado em psicologia, onde foi realizada
disputa de guarda”.
interesses da criança serão resguardados, colocando estes acima dos impasses de seus pais.
1
Psicóloga, aluna do mestrado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, especialista em
Psicologia Clínica de Base Analítica pelo Centro Universitário Luterano de Manaus – ULBRA.
(karine.psi@gmail.com)
2
Doutora em Ciências Familiares e Sexológicas, pós-doutorada nos EUA e Alemanha. Professora titular
da Universidade de Fortaleza e pesquisadora colaboradora sênior da Universidade de Brasília.
(juliasursis@gmail.com)
301
Interesses estes que dizem respeito também a criança continuar a conviver com o genitor não-
guardião após a dissolução conjugal, de forma em que esta não se sinta culpada por continuar
a amar ambos os pais, não sinta a separação dos pais como um desamparo.
Para isto, foram realizadas entrevistas com juristas e peritos (psicólogos e assistentes
sociais) que atuam em casos de disputa da guarda dos filhos, no Fórum da cidade de
Fortaleza.
Quando das entrevistas, no que competem as conseqüências que o desacordo dos pais
podem causar a criança, foi verificado que os juristas e psicólogos entrevistados enfatizavam
da angústia que as brigas de seus pais estavam causando. Neste trabalho, serão recortadas
algumas falas destes profissionais, para abordar a questão da criança como sintoma de seus
dissolução conjugal, podem fazer a criança ter que tomar partido na peleja causando um
enorme conflito emocional na criança. Nestes casos, o grito de solidão desta criança pode
Neste sentido, a juíza pontua: “Quando elas têm problemas dessa natureza (se
desastre pra criança sabe, porque aquilo afeta a vida inteira da criança né, é na escola, em
casa, ela fica retraída, não é mais a criança, aquela coisa bela, não tem mais aquela
302
Para Lacan (1969) o sintoma da criança responde ao que existe de sintomático na
Outro.
Neste sentido, Mannoni (1967) observa que a criança é parte de um discurso coletivo e
que diante da intrusão dos pais, não resta outra saída senão responder com o sintoma por meio
Para a mesma autora, é a palavra do pai, a palavra da mãe que pesa para a criança.
Assim, enquanto a criança estiver sob o império dessa palavra mortífera será escrava do
desejo de seus pais, onde seus próprios desejos ficarão soterrados. Para o sujeito ter acesso ao
desejo, que o constitui, é necessário então que ele não seja bloqueado pelas palavras parentais.
A psicóloga nesse sentido pontua: “O que está por trás (do processo de disputa de
guarda) é uma separação mal resolvida, por aquela convivência que se perdeu, então é
(1969) lembra que a psicanálise entende o sintoma como um fenômeno subjetivo, que ao
mesmo tempo em que faz sofrer, propicia gozo. Existem assim alternativas: ou sintoma se
apresenta como uma disfunção (recalque), onde a criança se vê depositária daquilo que é
insuportável no pai ou na mãe, ou como lesão de órgãos, que é o sintoma que aparece no
corpo.
303
De acordo com a psicóloga ouvida, em seu trabalho com crianças no contexto da
disputa de guarda esta afirma: “Essa questão do desenvolvimento tanto emocional quanto
físico mesmo, porque tem somatização muitas vezes, que são conseqüências negativas que a
gente percebe, tanto no âmbito escolar como as somatizações, questão biológica né, física e a
A criança assim pode ser alvo da projeção dos problemas de seus pais, das frustrações
destes. Nos casos da disputa de guarda, muitos pais induzem as crianças a mentir, a não ir aos
denegrindo o genitor não guardião. Assim como o genitor não guardião, pode tentar pactuar
Quando a criança é coloca nesta situação, pode se sentir perdida, até mesmo culpada
por amar ambos os pais e desejar tê-los por perto mesmo após a dissolução conjugal. A
criança pode acreditar que foi ela que provocou o sofrimento dos pais, que o desenlace é por
Ainda segundo a mesma autora, reações psicossomáticas podem vir a surgir devido à
angústia que a criança sente em relação à separação dos pais, onde a criança não sabendo
gástricos, refluxo, a criança chega a ter gastrite né, muito problema de pele também.”
uma linguagem, mostrando que há partes no corpo do sujeito que são expressivas sem que
304
este saiba, ou seja, os sintomas constituem uma linguagem a ser decifrada, onde no caso das
Como foi dito, o sintoma surge como um S.O.S, sendo a verdade do casal parental.
Para o autor nunca é demais escutar que lugar o pai da criança ocupa no discurso da
mãe e o lugar da criança no discurso de ambos os pais. Levando esta questão para o contexto
da disputa da guarda de crianças, é necessário que os profissionais que atuam em cada caso,
fiquem atentos para o discurso dos genitores, os motivos alegados para a dissolução conjugal,
Nesta mesma perspectiva, Kupfer (1994) pontua que pais e criança são determinados
pelas leis do simbólico, da linguagem, isso permite que haja uma circulação de doenças por
meio da amarração discursiva. Porém como a autora lembra, ao contrário do adulto, a criança
depende por vários anos de cuidados especiais e isso a faz submeter-se aos desejos de seus
pais.
nos Outros reais que são seus pais, ou seja, os pais escrevem algo de sua própria neurose
costumam fazer sintomas em lugares que se tornam insuportáveis para seus pais, sendo uma
maneira de a criança se fazer ouvir. Neste sentido, a criança pode, por meio do sintoma,
305
Assim, uma das partes ou o casal pode utilizar o processo judicial como manutenção
do vínculo (Zimerman e Colto, 2002) como último recurso ao seu apelo psíquico e em sua
angustia em responder suas questões, pode esquecer que no meio do conflito existe uma
criança que espera de seus pais nada menos que estes exerçam sua função enquanto pais,
Referências Bibliográficas
KUPFER, M. C. Pais: melhor não tê-los? In: O lugar dos pais na psicanálise de crianças.
São Paulo: Escuta, 1994.
LACAN, J. Duas Notas sobre a criança. (1969). In Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
MANNONI, M. A criança, sua doença, e os outros. (1967). São Paulo: Via Lettera, 1999.
306
Psicanálise e Política : o Psicanalista como Sintoma da Cultura
pois ao contrário deste, para quem só há sociedade fundada sobre a função paterna, o mal-
estar sendo visto como efeito do recalque, acreditava que a queda do saber do mestre
transformado pelo saber científico é o que justifica o mal-estar nas sociedades atuais,
caracterizadas pela ciência e pelo capitalismo, em que um dos aspectos do gozo se encontra
no consumo de bens. O início do declínio da figura paterna começou no século XIX, com o
choque de valores trazido pela economia industrial, onde os novos valores que surgiram eram
evolução da democracia, reorganiza o laço social em uma outra lógica, diversa da tradição,
encontra seu fundamento no discurso da ciência . A grande filosofia moral dos dias de hoje, é
que cada ser humano deveria encontrar em seu meio aquilo com o que se satisfazer
psicanalista e sua ação política é uma saída ao trazer à tona o encontro com a castração, que
psicanalista como um sintoma da cultura é o nosso objetivo. Além de ser efeito dessa cultura,
isso se tornou a nova moral. A nova moral é que cada um tem o direito de satisfazer
plenamente seu gozo, sejam quais forem suas modalidades.” (Melman, 2003, p. 60). Dentro
dessa nova moral, fundamentada no saber da ciência, que se transmite em seus enunciados e
psicanalista?
Nesse sentido, Eric Laurent (2007, p.144), assente dizendo: “ O analista mais que um
lugar vazio, é aquele que ajuda a civilização a respeitar a articulação entre normas e
particularidades individuais “. Os analistas não devem apenas escutar; eles precisam saber
transmitir a humanidade do interesse que a particularidade de cada um tem para todos”. Além
da escuta clínica, o psicanalista hoje deve transmitir a particularidade que está em jogo na
nascimento e a evolução da democracia, reorganiza o laço social em uma outra lógica, diversa
308
da tradição, pois visa o desaparecimento da hierarquia, julgada responsável pelas
um que lhe é implícito. Assim nesse mesmo movimento democrático, o saber das ciências
há uma recusa da verdade do discurso. Márcio Peter (2000, p.252) lembra que Lacan
deslizamento calvinista que nos últimos séculos introduz o capitalismo se caracteriza por
“Do discurso do psicanalista”, Lacan assegura: “Toda ordem, todo discurso que se entronca
Lacan formulou uma noção diferente da de Freud, para o mal-estar próprio à cultura.
Para Freud o mal-estar é visto como efeito do recalque, para Lacan é próprio da civilização
caracterizada pela ciência e pelo capitalismo, que um dos aspectos do gozo se encontre no
consumo de bens, advindo daí o mal-estar. Para Márcio Peter (2000, p. 221) é aqui que a
clínica psicanalítica aponta para a emergência de novas formas do sujeito fugir ao mal-estar,
pois dentro da linguagem, intensificada pelo poder da mídia, há sempre novos dispositivos
identificatórios que oferecem ao sujeito novos modelos de evitar a angústia, por intermédio de
ideais prontos para serem oferecidos em massa, para sujeitos universalizados, excluídos em
suas diferenças, em suas singularidades e diferenças.: “É esse o debate no qual o analista está
convocado pela cultura e que acontece não só por ser o analista ele também um sintoma da
309
cultura que interpreta, mas, mais ainda talvez, por ser o analista a única esperança de
que, para cada um de nós, o que conta é somente uma verdade particular, ficção fabricada
para responder ao mal-estar.” , nos esclarece porque, o analista é um sintoma da cultura, pois
seu saber, o analista confronta com a verdade do sujeito do inconsciente: “Por isso o analista é
um sintoma da cultura, porque ao mesmo tempo em que ele é sua mais refinada produção,
representa uma expressão da rebeldia à tirania desta civilização, que, por causa das
características da condição humana, faz o homem procurar a completude que não existe na
Freud em seu percurso nos mostrou e serviu de modelo na atuação social e política do
psicanálise face ao campo social: responsabilidade clínica, primeiro, já que responde por
política, já que toma diretamente partido nessa questão da análise leiga. (Lebrun, 2004,
p.204). Então na própria formação e atuação o psicanalista situa sua posição frente ao campo
social e político. Colette Soler (1998, p. 257), aborda a questão da incidência política do
psicanalista a partir de uma tese de Lacan em ‘Televisão’ (1974), em que ele indica, nada
Lembrando que além disso, Lacan não cessou jamais de afirmar que a psicanálise tem de fato
310
um alcance político e que ganharia esse alcance se os psicanalistas consentissem em não
esquecer por que eles são feitos, e a que os chama o discurso analítico.
proclamou Lacan, pois essa posição não é nada mais do que o que esse anuncia na fórmula
elaborada por Colette Soler (1998, p.262): “o psicanalista...- o psicanalista como produto
transformado de uma análise- não é um proletário”. O psicanalista é aquele que pode fazer
frente a todo discurso derivado do discurso do capitalismo ( aquele que deixa de lado a
castração), porque tem por desejo e vocação de mudar alguma coisa na economia do gozo
pretender emancipar os sujeitos dos impasses da versão capitalista do supereu. Por isso
representa uma saída e uma solução. Ao fim de uma análise, caminha-se para uma redução do
Por fim passemos a palavra a Colette Soler, que resumidamente responde por que a
psicanálise é a solução, a saída para o discurso capitalista: “Se nos perguntamos ‘por que a
psicanálise?’como a uma certa época nos perguntávamos ‘por que os filósofos?’, nós a
reportamos geralmente a um vício radical em uma civilização marcada pela ciência. Esse
vício deve-se ao fato de que a ciência ignora o sujeito. É uma foraclusão. Daí a idéia de que a
psicanálise está aqui a título de antídoto, fazendo valer o que chamei na ocasião de os direitos
do sujeito. Como se a psicanálise fosse em suma, o que falta a ciência”. (1998, p. 283).
fosse em seu sumo, em sua formação, em sua atuação o que falta para fazer frente ao mercado
311
de consumo. E isso é possibilitado através do posicionamento do psicanalista frente ao mundo
que, se não há uma cura para o mal-estar na cultura, o analista sendo ele mesmo um objeto de
mercado situa assim uma ética que vai além do terapêutico e de um consumismo de bens que
Para um mundo organizado pelo desabono da função paterna e pela retirada do pai
real, pela pulverização da imago paterna, o psicanalista, é óbvio, não é capaz de trazer
remédio, se é que se pode e é preciso curar disso, mas sua responsabilidade social é se pôr a
trabalhar ali onde pode. E onde isso é possível é na sua própria formação, atuação e posição
de analista que leva o saber aprendido no consultório para outros lugares sociais, onde pode
proclamar a verdade de que o objeto do desejo, não é esse propagado pela sociedade de
consumo, mas aquele que está para sempre perdido, que sempre desliza e nos escapa, mas que
foi capturado por Lacan, naquela que foi sua grande criação conceitual: o objeto a, causa do
desejo.
Trazer a castração, a enunciação, não quer dizer querer voltar ao passado do pai da
tradição, isso não tem volta. Não quer dizer que não aceitamos as vantagens da ciência, mas
que criticamos seus enunciados e conhecemos como o social utiliza seu funcionamento e que
estamos atentos às tentativas de apagamento das diferenças, e sempre que possível tentaremos
fazer com que o que torna singular e particular cada sujeito possa contribuir para minorar um
pouco o mal-estar próprio e indestrutível das culturas em que época que for, seja do
desamparo ou do desalento.
312
Referências Bibliográficas
LAURENT, Éric. A Sociedade do Sintoma. A psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa,
2007.
LEBRUN, Jean-Pierre. Um Mundo sem Limite – Ensaio para uma clínica do social. Rio de
313
Sintoma e repetição na neurose obsessiva
Este trabalho interroga a função da repetição em sua relação com o sintoma, como
materno responde de forma sintomática retendo seu cocô até as últimas consequências e
diante do apelo desesperado da mãe, grita e se contorce até a exaustão, quando então pede
para tomar banho e sob o chuveiro lhe entrega o objeto de sua demanda. Essa cena repete-se
diariamente e a análise é indicada quando o exame médico localiza uma hérnia de umbigo
iminente.
1
Psicóloga,
membro
do
Fórum
do
campo
Lacaniano
do
Rio
de
janeiro.
314
Lacan formula no Seminário 5, as formações do inconsciente. Sabemos que a demanda
sempre pede a satisfação da necessidade, porém, incide sobre alguma coisa que vai além, na
medida em que se articula no simbólico. Esse campo para além da demanda é condição
necessária para que o sujeito se constitua satisfatoriamente e é nesse campo que se localiza o
significante do desejo (- φ), desejo do Outro que não inclui totalmente o sujeito e que situa o
encenação construída por João. Ao privar o sujeito do objeto oral, a mãe presentifica o além
da demanda, situando-se como castrada, barrada pelo próprio desejo. Privado do seio João
articula sua demanda à demanda do Outro, evidenciando tal como Lacan nos ensina, a função
do cíbalo como objeto agalmático da mãe, o que na neurose obsessiva assume valor
fundamental, uma vez que essa função só pode ser concebida “em sua relação com o falo,
com a ausência dele, com a angústia fálica como tal” (Lacan, 962-1963, p. 328).
com as quais faz um cocô colorido dizendo que é um jacaré. O cocô cuja função na
constituição da subjetividade é nada menos que a função de objeto causa de desejo anal em
sua conjugação com a função do pequeno a (Lacan, 962-1963, p. 322), recebe em análise
diversas significações indicando seu valor do significante que representa o sujeito (S2) frente
315
Sendo assim, reaparece em um jogo cujas peças são sapinhos e João afirma, em
associação livre, que no lago onde os sapinhos moram tem jacaré e que o jacaré come os
sua relação com o Outro. Todo o problema do obsessivo está em dar suporte ao seu desejo,
uma vez que este prefigura a destruição do Outro e localiza-se para além do Outro, o que leva
Lacan a afirmar que o desejo do obsessivo é um “desejo em estado puro” (Lacan, 1957-58, p.
413). Diferente da histérica que “encontra apoio ao seu desejo na identificação com o outro
objeto redutível ao significante falo. Isso é demonstrado por João em um jogo encenado
inúmeras vezes em análise, através do qual faz do seu excremento uma joia preciosa, “uma
joia de cem mil quilates” (sic), causa de batalhas intermináveis com um ladrão que a espreita
No nivel do sintoma verifica-‐se a angustia de castração que segundo Lacan (1964,
p. 65), “é como um fio que perfura todas as etapas de desenvolvimento e cristaliza cada
momento anterior à sua aparição propriamente dita – desmame, disciplina anal, etc.,
numa dialética centrada num mal encontro, que está no nível do sexual”. Neste caso, o
significante, reaparece de modo velado, como o significante sem sentido (S1), e denuncia
a não existência da relação sexual. Por outro lado, a tentativa de incorporar o objeto
anal, remete ao sintoma enquanto suplência à falta de relação sexual e a isso o sujeito
316
está
fixado
a
tal
ponto
que
chega
a
ameaçar
fazer
um
novo
furo,
um
buraco
para
abrigar
o gozo no real do corpo, afinal o que é uma hérnia senão uma rasgadura na carne? No
caso do neurótico, entretanto, o sintoma falha porque o sintoma na sua relação com a
estrutura responde onde o Outro falta e assume um “valor de gozo insuficiente” (Soler,
por outro, constitui-‐se num apelo ao outro, como tentativa de encontrar alívio da tensão,
ou seja, da manutenção da vida, o que não dá sossego, põe o outro a trabalho (entenda-‐
se aqui o outro como toda a sua família, mãe, pai, avô, avó, tios), todos enlouquecidos
A repetição no sintoma é o que afirma o inconsciente, o que revela a existência do
repetição assume todo o seu valor, pois, como diz Lacan o obsessivo é o sujeito da
outro. Vejamos com Lacan o que é um obsessivo: “É, em suma, um ator que desempenha
seu papel e assegura um certo número de atos como se estivesse morto” (Lacan,1956-‐
1957, p. 26). Atos repetitivos, diga-‐se de passagem, técnicas auxiliares e substitutivas do
recalque às quais Freud chamou de anulação e isolamento (Freud, 1926, p. 142). Essas
técnicas tem a função de reforçar o recalque e ao mesmo tempo anular o desejo, ou seja,
317
Outro,
assumindo
o
comando
de
um
jogo
onde
ele
é
o
diretor,
o
ator
e
a
plateia,
desse caráter denegatório, como bem demonstra João em várias passagens de sua
análise.
Para Freud o uso dessas técnicas pelo obsessivo, deve-‐se a uma certa dificuldade
na função do recalque, visto que, ao contrario da histeria onde a formação de sintomas
deslocamento, como podemos ver no jogo dos sapinhos onde o significante cocô,
desloca-‐se para jacaré e em seguida para a mãe que come os sapinhos.
obsessivo: Ele e a analista tomam sopa – no mesmo prato. João vai até a janela, observa
momento aproxima-‐se um menino, e ele então acrescenta: “É menina. Agora tem uma
menina e um menino. Quando eles crescerem eles vão virar homen(xxxx) e mulhere(xxxx).
Eu não quero virar homem! Vamos acabar com essa conversa e vamos continuar tomando
a nossa sopa. Só que agora você vai tomar a tua sopa no teu prato e eu vou tomar a minha
no meu”. (sic).
Note-‐se o emprego do “x” no lugar do “s” e acima de tudo a ênfase dada ao “x”
com a intensificação da pronúncia. Isso nos remete ao sexual como enigma diante do
qual o sujeito tem que dar conta de sua posição. Chamado a entrar na partilha dos sexos
318
João
inicialmente
denega,
isola,
porque
a
diferença
sexual
é
sempre
fonte
de
angústia
para o sujeito. Então com a frase: “vamos acabar com essa conversa” João usa o
continua o jogo no qual, de agora em diante, meninas e meninos tomam sopa em pratos
separados.
É importante considerar que se a repetição se funda no retorno do gozo, há nessa
objeto a, porque o gozo ao se repetir se apresenta sob a forma de perda, onde Lacan
aponta a função do traço unário no qual se origina tudo o que interessa aos psicanalistas
como saber (Lacan, 1969-‐70, p. 44). Saber que esse traço repete como diferença, saber
marcado por um significante sem sentido. A repetição remete ao encontro com a falta
apontando um saber sobre o qual o sujeito não sabe, o inconsciente por assim dizer.
Desse modo, pela repetição em análise João encontra a possibilidade de diluir seu
gozo e sustentar sua condição de ser falante por meio da palavra. Seu cocô encontra diversas
na medida em que produz diferença, embora entre um significante e outro se estabeleça certa
O desejo é o que vai permitir que o sujeito se separe do Outro e o situe como
campo, como um lugar de presença e ausência e sobre isso João nos ensina em outros
dois momentos de sua análise: no primeiro desenha uma pessoa andando, um menino
319
que
tem
dez
anos,
se
chama
João
e
faz
longas
viagens
no
jogo
da
vida,
onde
sempre
encontra um baú cheio de ouro do qual não poderá gozar, porque como diz ele “ninguém
nunca vai saber o que pode acontecer se se chegar lá!”.
aqui tá muito chato, vamos fazer outra coisa, vamos jogar xatrez, o bom e o velho xatrez!”.
Como sujeito de desejo João introduz o terceiro elemento na sua relação com o Outro, o
falo certamente, na medida em que o falo é o significante da falta. Como sujeito de desejo
João sabe que não pode gozar do corpo do Outro, porque em seu corpo incide a lei que o
determina e o confronta com a castração. Resta-‐lhe apenas brincar, jogar, fazer piada
com esse baú em cujo ventre descansa o (a)uro, metonímia do impossível, ao qual
poderá apenas tocar pelas bordas, através das palavras, reduzindo-‐o a meros
significantes.
REFERÊNCIAS:
321
O sintoma na arte ou a arte como sintoma?
Sérgio
Scotti1
história do relacionamento de Ethan Powell, interpretado por Anthony Hopkins e Théo
Caulder, interpretado por Cuba Gooding Jr., um ambicioso psiquiatra cuja missão é
atender e avaliar o antropólogo Ethan, internado na ala psiquiátrica de uma prisão dos
Estados Unidos, para onde foi enviado após ter atacado, ferido e morto soldados que o
procuravam na selva africana, na qual desenvolvia pesquisas com gorilas, local em que
aeroporto americano, onde ele, num ataque de fúria, agride os guardas locais,
Tendo sido encaminhado imediatamente à prisão, Ethan passa a ser atendido por
Théo que busca tirá-‐lo de um mutismo auto-‐imposto, os dois sempre observados pelos
guardas e pelo psiquiatra interno da prisão que o mantinha sob forte medicação. Théo
consegue não só reduzir a medicação, como tirar Ethan de seu mutismo através do
1
Psicanalista,
professor
associado
da
graduação
e
pós-‐graduação
do
Departamento
de
Psicologia
da
UFSC,
coordenador
do
Núcleo
de
Estudos
em
Psicanálise,
+
1
do
cartel
de
formação
do
Fórum
de
Florianópolis,
sergioscotti53@gmail.com
322
recurso
a
uma
engenhosa
estratégia:
o
psiquiatra
resolve
fazer
uma
visita
à
filha
do
antropólogo e junto a ela recolhe algumas fotos da casa, da selva e do acampamento de
Ethan na África, além de fotos dos gorilas e da própria filha de Ethan, Lyn.
Ao exibir a última foto, de sua filha, a Ethan e perguntar-‐lhe o que ele diria a ela,
Théo consegue que o “homem macaco”, como era chamado na prisão, dissesse: “Good
bye”. A partir daí começa um diálogo e relacionamento entre os dois que trará para Théo
o reconhecimento de seu supervisor e a possibilidade de ascensão na carreira, além do
Mas este relacionamento trará muitos problemas também, principalmente para Ethan
que é constantemente acossado pelo chefe dos guardas da prisão o qual havia
simpatia dos presos. Contando ainda com a ajuda de Théo, o sistema de distribuição de
cartas de baralho entre os presos no qual o ás dava direito ao banho de sol e era
surrupiado sempre pelo mesmo preso, até ser enfrentado por Ethan, é substituído por
um sistema de sorteio em que todos têm direito ao benefício.
Além disso, o relacionamento entre Ethan e Théo desenvolve-‐se de tal forma que
Ethan também conta a Théo que a partir de sua aproximação e aceitação pelo
líder
do
grupo
de
gorilas
que
observava
quando
estava
na
selva,
se
tornou
um
entre
eles
323
e
passou
a
viver
com
os
mesmos
no
meio
da
floresta
africana.
Tal
experiência
contada
a
Théo, deu ao antropólogo uma visão da história do homem que, em seu início, seria
da natureza somente o necessário para sua sobrevivência. Mas, com o tempo, surgiram
próprio Ethan havia sido um “captor” quando aprisionou um gorila para o zoológico de
sua cidade.
Numa cena impactante em que Théo tenta impor sua autoridade sobre Ethan,
este o imobiliza e faz aquele perceber que não estava perdendo nem seu controle nem
sua liberdade, mas sim, suas ilusões. Noutra cena em que, mais uma vez, Théo tenta
protegido pelo olhar vigilante do gorila líder do bando ao qual se juntara, de repente se
vê no meio de um ataque a tiros dos soldados que o procuravam na selva. O bando de
gorilas é dizimado pelos soldados apesar da tentativa de Ethan em protegê-‐los, na qual
este mata pelo menos dois soldados que, no fim, matam todo o bando e colocam Ethan,
na prisão, por um ano, até ele ser resgatado pelo governo americano.
O trabalho de Théo com Ethan resulta no encontro deste com sua filha no qual ele
devolve a ela, um retrato dela quando criança, que o mesmo sempre levava consigo,
demonstrando assim que nunca a esquecera, apesar de suas longas ausências que eram
324
Contudo,
apesar
dos
progressos
conseguidos
por
Théo,
uma
rebelião
dos
presos
começou porque o chefe dos guardas agredira Ethan que não quisera entrar em sua cela
da qual haviam apagado inteiramente a história da humanidade, desenhada por ele nas
paredes da mesma. Ethan, tentando proteger um dos presos, tal como fizera com os
gorilas, ataca o chefe dos guardas, mas é dominado pelos outros guardas e volta ao seu
mutismo.
Théo desconsolado procura Ethan na prisão e confessa a este que ele o fizera ver
o quanto procurava agradar a todos em função de sua ambição que agora lhe parecia
totalmente sem sentido diante de seu fracasso. No entanto, o que Théo não sabia, é que
Ethan, munido da caneta de Théo, escondida por ele dos guardas durante a visita ao
zoológico, consegue abrir uma das grades da prisão e, com a ajuda dos outros
prisioneiros que desviam a atenção dos guardas, escapa e volta à selva. O filme termina
com Théo deixando-‐se molhar, com os braços erguidos, pela chuva que cai, cena que
que mostra sem o pretender. A primeira questão que nos surge é: por que um homem
culto embrenha-‐se na selva por tanto tempo, para viver entre gorilas, o que já é bastante
inverossímil, sustentando por uma concepção mais inverossímil ainda da relação entre
325
contatos
com
Théo
que
procurava
reaproximá-‐lo
de
sua
filha,
Ethan
mostrava-‐se
Por outro lado, foi por causa da foto dela que dissera suas primeiras palavras:
“Good bye”. Como também, foi o olhar espantado da filha a única coisa que o fez parar
durante seu ataque de fúria no aeroporto. As duas coisas se mostram articuladas quando
pensamos que uma foi causa da outra. O verdadeiro motivo da ida e isolamento de Ethan
na selva africana foi sua filha, na verdade, o desejo incestuoso de Ethan por ela. Um
desejo tão intenso e poderoso que só poderia ser aplacado pela distância continental.
Num dos diálogos de Lyn com Théo, esta lhe conta que uma vez havia visitado seu pai
em seu acampamento de Ruanda, e que ele havia ficado muito contente por revê-‐la e,
O desejo incestuoso de Ethan por sua filha, nos remete ao complexo de Édipo do
lado do pai, algo não muito comum na literatura psicanalítica, mas também, de maneira
muito interessante, às possíveis relações entre o mito de Sófocles e o mito freudiano da
recalcado tanto quanto a confirmação de nossa interpretação edipiana através do mito
macaco”. Quando este finalmente consegue ser aceito pelo bando, após cuidadosas
aproximações do líder, em que o antropólogo demonstra sua total submissão a ele, surge
o
interesse
de
Ethan
por
uma
gorilazinha
fêmea
com
a
qual
ele
passa
a
brincar
326
constantemente
sob
o
olhar
vigilante
do
macho
líder.
Ser
cuidado
pelo
olhar
do
gorila
que o aceitava e tolerava, era uma experiência incrível para Ethan que se sentia assim
Contudo, a ambivalência em relação ao pai/gorila não deixará de se manifestar,
por mais que Ethan tivesse se integrado ao bando de gorilas e rejeitasse o convívio com
os humanos.
Quando Ethan não voltou mais ao seu acampamento porque passou a viver com
perigo. Os soldados que o procuravam na selva estavam, na verdade, procurando “salvá-‐
lo” dos gorilas. E certamente Ethan saberia disso, tanto que em conversas com Théo,
contava a este que em suas andanças pela selva com os gorilas, percebia sinais da
caminho alguns de seus objetos, como o seu facão e binóculos que logo foram achados
pelos soldados. Ou seja, pode-‐se dizer que ele colaborou assim para que fosse
prisão e voltar para a selva, esta, na verdade, torna-‐se sua real prisão para onde retorna
por não conseguir suportar seu desejo incestuoso mais uma vez.
327
Aqui
nos
reencontramos
com
o
adágio
de
Freud
de
que
a
obra
de
arte
equivale
a
autor da história que comentamos, pois se trata aqui de dramas universais que qualquer
sujeito humano conhece em seu inconsciente. E é do inconsciente do autor desta história
motivos dos personagens envolvidos em sua trama, tanto quanto a fantasia que a
sustenta e que o autor nos apresenta através de sua ars poetica, como dizia Freud
(1908/1973), o que nos seduz e permite que compartilhemos com ele dos mesmos
forma, com a expressão, em uma obra artística, de um mito que era de Freud e que
talvez não explique a origem da cultura humana, como também pretendia o mito de
Ethan, mas nos dê alguma luz sobre como se estrutura a psiquê do homem.
fundamentais para história da própria Psicanálise, eles parecem se recobrir nesta outra
Freud que aparece como seu sintoma, tanto no mito da horda primitiva quanto em
“Moisés e a religião monoteísta” (Freud, 1939/1973). Se esse for caso, vemos que nem
Referências
bibliográficas:
328
FREUD,
S.
(1908).
El
poeta
y
los
sueños
diurnos.
Em:
Obras
Completas
de
Sigmund
Freud,
__________. (1913).Totem y tabu. Em: Obras Completas de Sigmund Freud, Madrid:
__________. (1939). Moises y la religión monoteísta: tres ensayos. Em: Obras Completas de
Sigmund Freud, Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. v. 3, p. 3241–3324.
329
ESPAÇO
ESCOLA
330
Cartel: espaço de saber articulado à política da psicanálise
Tereza Oliveira1
assegurar a continuidade da psicanálise para além de sua pessoa e que esse novo modo de
saber se estendesse além de sua morte. Assim, a preocupação constante de Freud era
Freud via a necessidade de análise pessoal de seus adeptos até mesmo para que através da
sua experiência pudesse dar provas da teoria desenvolvida por ele. O que se deu foi o
devia-‐se consultar o analista um número x por semana com sessões de duração fixa, durante
um período, encontrar um supervisor para garantir a condução ética do caso. O estudo da
Dentro da IPA, opõe-‐se Lacan aos desvios teóricos que ela praticava e a ilusão de uma
formação
analítica
completa
nos
moldes
de
uma
licenciatura
universitária.
Para
Lacan,
essa
1
Tereza Oliveira – Psicóloga/psicanalista, Mestrado em Psicanálise Saúde e Sociedade, Universidade Veiga de Almeida, Rio de
Janeiro, participante de Fornações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. Membro do Fórum do Campo Lacaniano do
Rio de Janeiro e de Petrópolis, Membro da AFCL/EPFCL- Brasil, Membro da EPFCL. E-mail: tmropsi@gmail.com
331
ritualização
da
prática
e
da
formação
do
analista
não
garantiria
o
laço
que
sustenta
a
representação.
dotando o movimento francês de uma política da psicanálise articulada com uma teoria da
formação.
Lacan articula a Escola Freudiana de Paris que nasce com o Ato de fundação em 21 de
junho de 1964. Apresenta em ata pela primeira vez o dispositivo do cartel, proposta
inovadora, como parte da forma de organização da Escola, julgando que essa fosse a
cartel na Escola. Assim, o trabalho a que se refere à causa analítica, articula-‐se à política da
psicanálise e não à uma política de representação. O cartel só tem sentido numa instituição
2
Sociedade
fundada
por
Lagache
e
Lacan.
Marcou
a
ruptura
com
a
IPA
3
Lacan
inicia
os
seus
seminários
retornando
aos
escritos
clínicos
de
Freud,
como
o
do
“Homem
dos
Lobos”
e
o
do
“Homem
dos
Ratos”
e
com
os
“Escritos
Técnicos
de
Freud”.
Trata-‐se
de
um
retorno
ao
vigor
do
ensino
de
Freud,
retorno
esse,
aos
fundamentos
que
constituem
uma
comunidade
de
Escola
orientada
para
o
real
do
clínica
.
332
sui
generis,
chamada
Escola
para
a
psicanálise
e
Quinet
(1994,
p.
XVI-‐XVII),
ao
comentar
sobre essa instituição sui generis proposta por Lacan nos diz que a Escola veio para,
cumprir um trabalho que traz a práxis original instituída por Freud, ou seja, a
psicanálise. A Escola Freudiana de Paris, diz Lacan (1964, p. 17), na Ata de Fundação, “em
campo que Freud abriu, restaura a lâmina constante de sua verdade”.5 Assim,
4
Quinet,
A.
Prefácio,
in
O
Cartel-‐
conceito
e
funcionamento
na
escola
de
Lacan,
(org.
Stella
Gimenez)
Aparecida
São
Paulo:
Editora
Campus:
1994.
5
Transcrição
das
discussões
das
jornadas
sobre
cartéis
(abril/1975)
publicada
em
Lettres
de
l’École
Freudienne
o
o
de
Paris
n 18
–
1976
in
Letra
Freudiana
Escola,
psicanálise
e
Transmissão,
Ano
I,
n
0,
Documentos
para
Escola
–
Circulação
interna
6
Ibid,
333
O
Mais-‐Um
ao
lado
da
responsabilidade
tem
um
compromisso
com
a
estrutura
da Escola.
Não existe um saber pronto, mas um saber novo a se produzir como produto do
trabalho, tal como acontece na clínica psicanalítica. A escolha do Mais-‐Um, passa pela
suposição de saber, mas ele deve sair desse papel mediante seu próprio desejo para que
imaginário sobre o simbólico, gerando uma inibição do saber. O Mais-‐Um tem a função
de cortar a consistência imaginária, assinalando seu caráter de saber não todo. O Mais-‐
Um se sustenta pelo corte oferecido pelo Nome-‐do-‐Pai. Os laços libidinais que unem o
tarefa, não é uma tarefa sem custos, pois há o custo da perda das idealizações, acerca do
saber, de ser um. Como nos diz Pedrosa (2002, p. 20): “Decidir na posição daquele que
pode faltar é decidir sobre o destino das ambições no sujeito, e poder dar lugar ao
trabalho, como a outra valia, se o que rende do luto é o trabalho”.7
7
Pedrosa,
M.
A.
L,
Estilete,
Cartel,
transmissão
e
garantia
–
a
outra
valia
in
Boletim
da
Associação
dos
Fóruns
0
do
Campo
Lacaniano
Brasil,
n 4,
,
Belo
Horizonte,
Minas
Gerais.:
2004,
334
Se
de
um
lado
favorece
o
vínculo
pelo
trabalho,
de
outro,
após
concluída
a
tarefa, sua lógica, inclui a dissolução que está presente desde o início, como podemos ver
na Ata de Fundação:”Após um certo tempo de funcionamento, se proporá aos elementos
Cartéis”, destinada a refletir sobre a experiência desses “pequenos grupos” e suscitar um
discussão no qual Lacan alencou um debate acalorado sobre o Mais-‐Um. Lacan dizia,
que o Mais-‐Um, deve ser qualquer um, uma pessoa, não a ausência,
“pensem,
será
um
suporte
possível
dessa
‘mais
uma
pessoa’
da
qual
indiquei
não
a
ausência,
mas
justamente
a
presença,
pois
não
há
um
traço
de
sinal
por
ausência,
no
meu
mais-‐uma
no
texto
(...)
esse
mais-‐
uma
sempre
se
realiza,
sempre
há
alguém
no
grupo,
mesmo
que
seja
por
um
momento....”9
É
interessante
notar
que
aqui
Lacan
sugere
a
idéia
do
Mais-‐Uma,
desligando-‐a
O que marca esse debate, é que o lugar do Mais-‐Um é um lugar vazio, situando-‐
se em oposição a todo caciquismo imaginário. Nessa Jornada, Lacan articula esse ‘Mais-‐
Uma’ sob a forma do nó borromeano, nos dizendo que x+1 é o que define o nó
borromeano
ou
nós
trançados
é
“a
partir
de
reiterar
esse
1
–
que
no
nó
borromeano
é
8 o
Op.
cit.
P.17,
Letra
Freudiana
Escola,
psicanálise
e
Transmissão,
Ano
I,
n
0,
Documentos
para
Escola
–
Circulação
interna.
9
Ibid,
p.69-‐/70.
335
qualquer
um
–
que
se
obtém
a
individualização
completa,
ou
seja,
do
que
sobra
–
a
saber
(1974/1975, p. 74), na aula de 15 de abril de 1975, Lacan nos diz que:
“Mas
foi
bem
por
isso
que
me
vi,
no
fim
dessas
jornadas,
tendo
que
responder
a
algo
a
que
ninguém
é
claro,
prestara
atenção
na
Escola,
ou
seja,
no
que
constitui
o
que
a
gente
chama
de
cartel.
Um
cartel,
por
que?”11
uma, segundo ele, estará aí mesmo que sejam três, isso faz quatro, donde a expressão do
mesmos.
Esse Mais-‐Um sempre se realiza, mesmo que seja por um momento. O Mais-‐Um
não é o da adição e nem diz respeito ao somatório do cartel, não é um número, é o que
faz elo nessa figura topológica. Aqui, Lacan começa a reverter radicalmente o sentido da
figura do Mais-‐Um tal como era sugerida na Ata de Fundação da Escola, encarregada da
10 o
Letra
Freudiana
Escola,
psicanálise
e
Transmissão,
Ano
I,
n
0,
Documentos
para
Escola
–
Circulação
interna.
11
Lacan,
J.
.RSI..
O
seminário.-‐
12
A
esse
respeito,
ver
Maria
Anita
Carneiro
Ribeiro,
A
função
borromeana
da
função
do
mais-‐um
no
cartel,,
Em
torno
do
Cartel
a
experiência
na
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano,
Associação
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano,
Belo
Horizonte,
Minas
Gerais:
2004.
336
lugar
ao
da
Mais-‐Um
a
qualquer
um,
ou
seja,
um
‘lugar
vazio’
que
pode
ser
ocupado
por
‘qualquer um’.
apostando no dispositivo do cartel. Restaura o órgão de base (cartel), mas pelo viés do
nó borromeano, acrescentando que o Mais-‐Um pode ser qualquer um, mas deve ser
sua elaboração.” (p.45) 14,e não só de selecionar, discutir e dar saída ao trabalho de cada
como o fazia na Ata de Fundação da Escola e em 1980, precisa que esse produto seja
cartelizantes. Esse produto, esse texto não é endereçado a um Outro ideal, mas a
Coloca que para prevenir “o efeito de cola [de colle] deve-‐se realizar a permutação no
senão o de uma periódica exposição dos resultados, assim como das crises de trabalho.”
13
O
texto
original
da
Carta
de
Dissolução
jamais
foi
divulgado,
segundo
Elisabeth
Roudinesco.
14 o
Letra
Freudiana
Escola,
psicanálise
e
Transmissão,
Ano
I,
n
0,
Documentos
para
Escola
–
Circulação
interna,.
337
(p.51)15
Assim,
o
cartel
no
final
desse
tempo
ele
se
dissolve,
o
que
permite
evitar
a
inércia constatável nos grupos de trabalho que se eternizam e fazem obstáculo ao novo
saber para o sujeito. Nesse instante de concluir, o Mais-‐Um marca o corte, desfazendo o
nó borromeano. Aí o Mais-‐Um não vai fazer mais laço, este se desfaz e cada cartelizante
Lacan fazia uma aposta na transmissão pelo matema. O cartel tem uma
estrutura matêmica, da qual a mais simples apreensão é 4 + 1. A mesma palavra, cartel,
tem uma referência matêmica, além de vir do latim cardo, que significa gonzo16,
dobradiça. A palavra cartel provém de quatro, que faz referência ao nó borromeano. O
cartel é dobradiça, porta de entrada na Escola. Para concluir, cito Delgado (2002, p.23):
“Posso
imaginar
que
com
a
provocação
do
cartel,
Lacan
estaria
nos
dizendo:
Saiam
de
suas
poltronas
e
produzam
um
escrito
sobre
o
que
formularam
de
suas
análise
e
sua
clínica
e
tragam
a
céu
aberto
para
que
um
interlocutor
qualquer
possa
levar
a
empreitada
mais
adiante.
Se
ainda
não
há
uma
conclusão,
exponham
ao
menos
suas
crises
de
trabalho.
Com
certeza
isso
terá
um
efeito
sobre
seu
ato”17.
BIBLIOGRAFIA
15
Ibid
16
Dobradiça
de
porta
ou
janela.
17
Carvalho,
M.
C.
D.
Estilete,
Cartel
uma
provocação?
Estilete
Boletim
da
Associação
dos
Fóruns
do
Campo
0
Lacaniano
–
Brasil,
n
8,
Salvador.
Bahia:
maio
de
2004.
338
CARNEIRO.
M.
A.
R.
Em
torno
do
Cartel
a
experiência
na
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano,
Associação
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano,
Belo
Horizonte,
Minas
Gerais:
2004.
LACAN,
J.
.RSI.
O
seminário.-‐
Letra
Freudiana
Escola,
psicanálise
e
Transmissão,
Ano
I,
no
0,
Documentos
para
Escola
–
Circulação
interna.
PEDROSA,
M.
A.
L,
Cartel,
transmissão
e
garantia
–
a
outra
valia
in
Estilete,
Boletim
da
Associação
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
Brasil,
n0
4,
,
Belo
Horizonte,
Minas
Gerais.:
2004,
LETRA
FREUDIANA
ESCOLA,
PSICANÁLISE
E
TRANSMISSÃO,
Ano
I,
no
0,
Documentos
para
Escola
–
Circulação
interna,.
QUINET,
A.
Prefácio,
O
Cartel-‐
conceito
e
funcionamento
na
escola
de
Lacan,
(org.
GIMENEZ,
Stella,
Aparecida
São
Paulo:
Editora
Campus:
1994.
339
O Passe: a razão de um fracasso
Essa
idéia
de
artifício
me
parece
preciosa
porque
aponta
justamente
para
uma
ação
que
produz
um
corte
na
infinitização
da
série
significante
que
vela
o
real.
A
construção
de
uma
obra
artificial
exige
uma
posição
de
desejo
decidida
e
não
se
sustenta
sem
a
presença
do
ato.
Emprestar
a
materialidade
da
letra
ao
testemunho
não
é,
portanto,
algo
espontâneo.
Há,
entretanto,
algo
que
a
letra/carta
carrega
–
como
diz
Lacan
em
Lituraterra
–
que
a
faz
sempre
chegar
a
seu
destino.
“A
borda
do
furo
no
saber,
não
é
isso
que
a
letra
desenha?
”
Deixo
essa
pista
apenas
indicada,
para
ser
desenvolvida
em
outra
oportunidade.
(PRATES,
2008,
p.
37)
1
AME,
Membro
da
Escola
de
Psicanálise
dos
Fóruns
do
Campo
Lacaniano
–
Brasil,
Membro
do
Fórum
São
Paulo.
340
afirmação
de
Lacan,
extraída
de
“Televisão”:
“Felizes
os
casos
de
passe
fictício
para
formação
inacabada:
deixam
esperança”.
Ora,
porque
Lacan
evoca
a
esperança
nos
passes
fictícios
para
formação
inacabada?
Ora,
de
fato,
se
analisarmos
o
dispositivo
de
perto,
chegaremos
à
conclusão
de
que,
o
que
não
faltam,
são
oportunidades
para
que
algo
falhe
e
assim,
produza
o
fracasso.
Vamos
elencar
apenas
algumas
delas,
em
relação
às
quais
não
se
pode
dizer
que
sejam
contingentes
mas,
antes,
fazem
parte
da
própria
estrutura
do
dispositivo:
1) A
nomeação
dos
AMEs
–
título
outorgado
aos
analistas
“que
deram
suas
provas”
na
Escola,
e
que
têm,
assim,
o
direito
e
a
responsabilidade
de
designar
os
passadores
–
é
feita
pela
Comissão
de
Garantia
da
Escola
–
que,
atualmente,
é
internacional.
Essa
Comissão,
evidentemente,
pode
se
341
enganar,
ainda
que
parcialmente,
nessas
nomeações,
já
que
elas
não
se
dão
exclusivamente
por
critérios
objetivos.
2) Os
AMEs,
por
sua
vez,
têm
a
responsabilidade
de
designar,
dentre
seus
analisantes,
aqueles
que
estejam
no
momento
do
passe
clínico
e
que
estejam
aptos
a
participar
do
dispositivo
na
Escola.
Também
eles,
ainda
que
psicanalistas
experientes
e
orientados
pela
ética
da
psicanálise,
podem
se
equivocar
quanto
ao
cálculo
clínico
desse
momento.
3) Os
passadores
designados
por
seus
analistas
podem
não
estar
de
acordo
com
a
avaliação
de
que
estejam
aptos
a
exercer
essa
função.
E,
mesmo
que
consintam
em
exercê-‐la
podem,
por
várias
razões
mais
ou
menos
objetivas
ou
subjetivas,
não
estar
à
altura
do
dispositivo.
Além
do
mais,
sabemos
que
uma
neutralidade
positivista,
nesse
caso,
não
apenas
é
impossível,
como
certamente
indesejável.
4) O
próprio
passante
pode
estar
equivocado
quanto
ao
advento
de
seu
momento
de
passe,
seja
no
que
diz
respeito
ao
final
da
análise,
seja
no
que
tange
à
emergência
do
desejo
do
analista.
5) O
cartel
do
passe,
oriundo
também
da
Comissão
de
Garantia
também
pode
se
enganar,
sobretudo,
como
discutiremos
mais
adiante,
no
que
se
refere
às
não
nomeações.
E
isso,
como
veremos,
por
uma
razão
estritamente
lógica.
Esse
elenco
de
“pontos
fracos”
do
dispositivo
do
passe
é
propositadamente
superficial,
destacando
seus
elementos
imaginários,
embora,
como
eu
sublinhei,
sejam
inerentes
à
própria
estrutura
do
dispositivo
e
não
a
eventuais
desvirtuamentos.
Deve-‐se
somar
a
ele,
portanto,
os
eventos
conjunturais
que
podem
colocar
em
risco
a
seriedade
do
passe,
seja
por
desvios
éticos,
morais,
ou
por
outros
problemas
de
funcionamento.
Por
exemplo,
uma
comunidade
que
não
esteja
à
altura
das
exigências
clínicas
do
dispositivo.
342
Ora,
esse
levantamento,
ainda
que
precário,
mapeia
quase
a
totalidade
dos
argumentos
frequentemente
utilizados
por
aqueles
que
se
colocam
contra
o
passe,
ainda
que,
em
alguns
casos,
se
procure
carregar
mais
na
tinta,
ocupando
o
passe
o
lugar
de
vilão
protagonista
do
melodrama
em
que
às
vezes
se
transforma
a
história
do
movimento
psicanalítico.
Mas,
o
que
seria,
então,
o
sucesso
do
passe?
Talvez
se
possa
dizer
que
a
lista
de
didatas
da
IPA
–
que
Lacan
chamou
de
Suficiências
–
seja
uma
história
de
psicanalistas
bem
sucedidos
em
suas
carreiras.
O
final
de
análise
proposto
como
identificação
ao
analista
pode
realmente
ser
uma
história
de
sucesso.
343
A
incidência
do
discurso
analítico
com
seus
cortes
permitiu
evidenciar
no
percurso
da
última
análise
a
posição
do
sujeito
e
o
que
havia
sido
a
análise
anterior
desde
o
primeiro
encontro:
um
sucesso.
“Quanto
sucesso!”,
frase
ouvida
na
primeira
sessão
da
análise
após
relatar
com
empolgação
o
lugar
onde
havia
conseguido
chega
após
anos
e
anos
de
tratamentos
psicológicos.
A
penúltima
análise
de
‘orientação
lacaniana’
tinha
renovado
as
esperanças
de
conseguir,
através
da
sagração
do
eu,
tapear
o
real
sem-‐
sentido,
traumático.
A
eficácia
desse
tratamento
permitiu
ao
analista
dar
a
análise
por
concluída,
seguido
de
um
convite
para
dividir
o
consultório
e
atividades
psicanalíticas,
o
que
permitiu
ao
analisante
procurar
um
outro
analista.
Reafirmar
a
posição
fantasmática
do
sujeito
no
lugar
da
‘escolhida’
teve
como
uma
das
conseqüências
a
acentuação
dos
sintomas:
o
de
não
poder
valorizar
nada
e
o
de
não
poder
falar
nada.
(FRANCO,
2009,
p.
)
Vemos
aqui
destacada
com
precisão
a
problemática
de
uma
análise
que
se
pretenda
terminada
pela
via
do
sucesso.
Numa
época
em
que
o
discurso
hegemônico
é
o
Discurso
do
Mestre
moderno,
mais
conhecido
como
Discurso
do
Capitalista,
no
qual
os
sujeitos
são
divididos
entre
winners
and
loosers,
a
crítica
à
ideologia
regida
pelo
imperativo
“Ao
sucesso!”
–
como
dizia
uma
antiga
propaganda
de
cigarro
–
não
apenas
é
necessária,
como
essencial
para
a
vigência
do
Discurso
Analítico
no
mundo.
O
sucesso,
nesse
sentido
específico,
como
nos
mostra
Silvia
Franco,
só
pode
levar
ao
pior.
Ora,
por
outro
lado,
é
fundamental
destacar
que
a
crítica
ao
ideal
de
sucesso
não
pode,
de
modo
algum,
levar
a
psicanálise
a
se
posicionar
do
lado
de
uma
apologia
aos
que
“fracassam
ao
triunfar”
–
ou
menos
ainda,
dos
que
“triunfam
a
fracassar”.
Freud
foi
sensível
a
essa
dificuldade
do
neurótico
em
lidar
com
a
consistência
imaginária
que
um
triunfo
pode
ter.
Vocês
se
lembram
do
texto
“Os
que
fracassam
ao
triunfar”
(1916),
no
qual
Freud
analisa
diversos
casos
de
sujeitos
que
“amarelaram”
na
hora
“H”.
Justo
quando
está
prestes
a
realizar
um
desejo
há
muito
acalantado
e
esperado,
o
sujeito
recua
a
ocupar
aquele
lugar.
Há
vários
344
aspectos
muito
interessantes
levantados
por
Freud
nesse
texto,
mas
o
que
eu
gostaria
de
destacar
aqui,
é
a
sua
conclusão:
o
neurótico
tem
dificuldade
de
ir
além
do
pai.
Prefere
a
culpa
submissa
que
mantém
o
pai
em
seu
devido
lugar,
a
ter
que
pagar
o
preço
por
sustentar
seu
próprio
desejo.
Aliás,
como
adverte
Bernard
Nomine
na
“Introdução
à
Jornada
de
Toulouse
sobre
o
passe”,
publicada
na
Revista
Wunsch
n.
9,
não
se
deveria
solicitar
ao
passante
que
se
ofereça
à
experiência
do
passe,
como
a
um
sacrifício
em
nome
do
Outro
da
Escola
de
Psicanálise,
mas,
antes,
que
ele
possa
oferecer-‐se
essa
experiência.
É
claro
que
isso
não
quer
dizer,
tampouco,
que
o
passe
possa
ser
reduzido
a
uma
experiência
pessoal,
fora
do
âmbito
da
Escola,
já
que,
como
o
próprio
Nomine
ressalta:
“o
passe
é
uma
experiência,
qualquer
que
seja
o
lugar
que
se
ocupe
no
dispositivo:
passante,
membro
de
um
cartel
do
passe,
passador”
–
e
eu
acrescentaria
até
mesmo
ser
membro
do
secretariado
do
passe,
lugar
que
tenho
ocupado
nos
últimos
dois
anos
e
que
é
a
borda
do
dispositivo.
345
(...).
Buscar
o
que
não
se
pode
encontrar,
isso
programa
a
decepção,
o
sentimento
de
fracasso
e,
às
vezes,
o
mutismo
aflito.”
III. Do que não se pode falar, melhor se calar?
Vejam
que
Lacan
nos
convoca
a
tratar
da
dimensão
do
engano
–
meprise
–,
que
também
pode
ser
traduzido
por
equivoco,
tapeação
ou
confusão.
Vejam
o
que
diz
Lacan:
346
equivale
a
dizer
que
não
basta
ele
fracassar
para
ter
sucesso,
que
o
fiasco
(ratage),
por
si
só,
não
inaugura
a
dimensão
do
engano
que
está
aqui
em
questão.
(LACAN,
1967/2001,
p.
340)
E ele acrescenta:
Por
isso
é
que
há
toda
uma
parte
de
meu
ensino
que
não
é
ato
analítico,
mas
tese
sobre
as
condições
que
redobram
o
engano
próprio
do
ato
com
o
fracasso
em
sua
recaída.
Não
ter
podido
alterar
essas
condições
situa
meu
esforço
na
suspensão
desse
fracasso.
(...)
Será
em
Roma
que,
em
memória
de
uma
guinada
de
meu
empreendimento,
fornecereis
amanhã
a
medida
desse
fracasso
e
suas
razões.
(LACAN,
op.
Cit.
p.
340)
Ora,
de
fato,
no
dia
seguinte,
Lacan
dirá,
em
Roma,
que
o
mistério
a
respeito
do
ato
que
franqueia
a
passagem
de
analisante
a
analista
–
e
que
ele
vinha
tratando
em
seu
Seminário
sobre
o
Ato
e
na
“Proposição”
–
continua
a
se
adensar.
Ele
se
queixa:
“E
qualquer
tentativa
de
introduzir
nele
uma
coerência
e,
em
especial
para
mim,
de
formular
a
mesma
pergunta
com
que
interrogo
o
próprio
ato,
determina,
até
mesmo
em
alguns
que
julguei
decididos
a
me
seguir,
uma
resistência
bastante
estranha”.
(LACAN,
1967/2001b,
p.
347).
E
conclui:
“Não
tenho
razão
de
me
surpreender
pelo
fracasso
de
meus
esforços
para
desatar
a
estagnação
do
pensamento
psicanalítico”.
(LACAN,
op.
Cit.
p.
349).
Como
vocês
notaram,
considero
que
essas
duas
conferências
devem
ser
trabalhadas
como
se
fosse
uma
só.
E
delas
se
deve
extrair
uma
lógica.
Eu
leio
a
“razão”
do
título
da
segunda
conferência
no
sentido
matemático:
a
escrita
de
uma
proporção,
ou
como
diz
Lacan,
a
“medida”
do
fracasso.
O
interessante
é
que
ele
nos
convoca
a
medir
esse
fracasso.
Diante
da
falha
estrutural,
do
impossível
de
dizer,
ele
propõe
o
passe.
Não
se
trata
de
um
momento
depressivo
de
Lacan,
ou
de
um
recuo
tático.
Ali
onde
o
neurótico
se
depara
com
o
fracasso,
e
o
psicanalista
com
a
“sombra
espessa”,
Lacan
persevera,
convocando
seus
alunos
a
extraírem
do
fracasso
sua
razão.
347
Tratemos
de
adentrar,
portanto,
como
nos
convoca
Lacan,
no
campo
da
lógica,
para
acompanharmos
com
qual
fracasso
estamos
lidando
no
passe.
Vejam
que,
nesse
ponto
Lacan
está
desafiando
o
positivismo
lógico
e
tomando
Wittegenstein
pelo
avesso.
No
Tractatus,
Wittegenstein
propõe
que
tudo
o
que
pode
ser
pensado
também
pode
ser
dito.
Os
limites
da
linguagem
são,
portanto,
os
limites
do
pensamento,
de
modo
que
uma
completa
filosofia
do
que
pode
ser
dito
será
uma
teoria
completa
do
que
Kant
denominara
o
entendimento.
Todos
os
problemas
metafísicos
decorrem
da
tentativa
de
dizer
o
que
não
pode
ser
dito.
Ou,
em
outras
palavras,
como
afirma
Gabriel
Lombardi
em
seu
livro
“Clínica
y
lógica
de
la
autorreferencia”,
a
conclusão
do
Tractatus
é:
“do
que
não
se
pode
falar,
melhor
se
calar”.(p.
80)
A
proposta
de
Lacan,
me
parece,
vai
no
sentido
oposto.
Seu
horror
diante
da
possibilidade
da
psicanálise
cair
no
inefável,
faz
com
que
ele
desafie
o
impossível.
Não,
evidentemente,
no
sentido
de
negá-‐lo,
mas
sim
na
tentativa
–
pela
via
do
artifício
–
de
transmitir
seus
limites.
Essa
é
questão
que
se
impõe
àqueles
interessados
em
abordar
seriamente
a
“clínica
do
passe”.
Sabemos
que
Lacan,
em
vários
momentos
se
seu
ensino,
flertou
com
a
idéia
de
que
seria
possível
provar
o
real.
Suas
incursões
pela
lógica,
a
esperança
na
formalização
e
o
projeto
de
matemização
da
psicanálise
certamente
tem
a
ver
com
isso.
Estaria,
então,
essa
empreitada,
também
fadada
ao
fracasso?
348
Antes
de
nos
precipitarmos
a
responder,
podemos
dizer
que
o
encanto
de
Lacan
com
Gödel
tem
a
ver
exatamente
com
essa
problemática.
Talvez
possamos
sustentar,
com
Gabriel
Lombardi,
que
Gödel
eleva
a
lógica
à
condição
de
“Ciência
do
Real”.
Porque?
A
partir
de
seu
teorema
sobre
as
proposições
indecidíveis
–
ou
Teorema
da
incompletude
–
Gödel
conseguiu
demonstrar,
em
1931,
que
a
consistência
de
um
determinado
sistema
formal
não
pode
ser
provada
no
interior
desse
mesmo
sistema.
Newton
da
Costa
(1985)
cita,
para
exemplificar,
a
frase
de
André
Weill:
“Deus
existe
porque
a
matemática
é
consistente,
mas
o
diabo
também,
porque
não
podemos
demonstrar
esse
fato”.
(p.
102)
As
proposições
indecidíveis,
portanto,
são
aqueles
em
relação
às
quais
não
se
pode
afirmar
nem
que
sejam
verdadeiras,
nem
que
sejam
falsas.
Segundo
Ricardo
Kubrusly,
do
Departamento
de
Matemática
da
UFRJ:
E ele acrescenta:
349
Gödel
mostra
com
seus
teoremas
que
a
aparição
de
paradoxos
na
matemática
é
inevitável.
Para
manter
a
consistência
desejada
temos
de
expulsá-‐los
do
sistema,
não
com
a
autoridade
policial,
mas
com
a
humildade
intelectual
de
reconhecer
as
próprias
limitações
de
um
sistema
que
não
saberá
julgar
se
verdadeiro
ou
falso,
as
afirmações
veiculadas
nos
paradoxos.
Estes
se
tornarão
indecidíveis
e
serão
responsáveis
pela
consistência
do
sistema
matemático.
O
preço
de
consistência
é
a
existência
de
indecidíveis.
Gödel
opera,
assim,
uma
separação
radical
entre
Verdade
e
Demonstrabilidade.
Nas
palavras
de
Gabriel
Lombardi:
350
V.
Isso
só
prova
que
eu
fracassei
Apesar
da
aposta
de
Lacan
na
possibilidade
de
formalização,
não
me
parece
que
ele
aposte
em
colocar
toda
a
psicanálise
do
lado
da
“Ciência
do
Real”.
Se
assim
fosse,
estaríamos,
no
passe,
apenas
na
via
da
demonstração
do
final
da
análise
e
do
desejo
do
analista.
Mas,
atenção:
Isso
não
significa,
entretanto,
que
a
via
da
demonstração
esteja
excluída
do
passe,
ou
que
a
ele
não
se
aplique
a
noção
de
indecidível.
1
–
Podemos
afirmar
que
a
nomeação
de
um
AE
garante
a
verificação
da
presença
do
desejo
do
analista
no
passante
A,
pelo
cartel
do
passe.
Não
vou
entrar,
nesse
momento,
no
debate
a
respeito
do
estatuto
dessa
garantia
–
se
ela
é
mais
da
ordem
da
probabilidade
indutiva
–
ou
seja,
se
está
do
lado
da
evidência,
ou
da
probabilidade
epsitêmica
–
ou
seja,
baseada
no
conhecimento.
Mas
deixo
indicado
que
esse
é
um
trabalho
interessante
a
ser
feito,
a
partir
da
introdução
da
idéia
de
“evidência-‐esvaziamento”
no
Seminário
23.
351
Vou
escrever
assim:
No passe:
Vejamos
como
Lacan
trata
dessa
questão
no
Seminário
23.
Lacan
estava
muito
empenhado
em
conseguir
fazer
um
nó
borromeano
com
quatro
nós
de
três.
Depois
de
dois
meses
“quebrando
a
cabeça”,
ele
diz:
Para
lhes
dizer
o
que
penso
disso,
creio
que
esse
nó
ex-‐siste.
Quero
dizer
que
não
é
aí
que
toparemos
com
um
real.
Portanto,
não
me
desespero
para
encontrá-‐lo,
mas
é
um
fato
que
não
posso
lhes
mostrar
nada
dele.
Assim,
a
relação
entre
352
mostrar
e
demonstrar
está
nitidamente
separada.
Uma
vez
que
isso
fosse
demonstrado,
seria
fácil
mostrá-‐lo
para
vocês.
(LACAN,
op.
Cit.
p.
43)
E,
efetivamente,
como
Lacan
anuncia
na
aula
seguinte,
naquela
mesma
noite
Soury
e
Thomé
apareceram
na
casa
de
dele
com
o
famigerado
nó.
Não
me
parece
que
seja
essa
a
proposta
de
Lacan.
Mas,
por
outro
lado,
também
não
estamos
do
lado
da
pura
demonstração
do
impossível.
A
articulação
muito
peculiar
que
a
psicanálise
propõe,
com
o
dispositivo
do
passe,
entre
demonstração
e
mostração,
me
parece
possível
graças
ao
fato
de
que,
ao
contrário
da
lógica,
a
psicanálise
não
pode
forcluir
de
todo
a
Verdade,
ainda
que
mentirosa,
ou,
como
ele
afirma
no
Prefácio
da
edição
inglesa
do
Seminário
11
em
1976:
353
que
o
passe
só
pode
ser
considerado
um
fracasso
se
for
tomado
por
aquilo
que
ele
não
é:
um
dispositivo
consistente.
Quem
entra
no
passe
em
busca
da
nomeação
como
uma
confirmação
vinda
do
Outro,
tem
uma
chance
muito
grande
de
se
decepcionar.
A
espera
da
nomeação
em
qualquer
passante
é
patente,
mas
não
pela
via
da
chancela,
e
sim
pela
própria
convicção
íntima
que
implica
a
decisão
causada
pelo
desejo
de
testemunhar.
Sendo
assim,
eu
diria
que
Lacan,
assim
como
Guimarães
Rosa,
propõe
um
dispositivo
que
é
“não-‐todo”
e,
assim
sendo,
é
também
Nonada.
Nonada
é
não-‐
nada,
negação
do
“todo
nada”.
Um
tiquinho
de
nada
que
nos
permita
testemunhar
sobre
essa
aventura
singular
que
é
uma
análise,
sua
extraordinária
eficácia
a
suas
conseqüências
inéditas.
Termino,
então,
respondendo
a
André
Weil,
com
a
fala
de
Riobaldo,
ao
terminar
seu
depoimento,
no
final
de
Grande
sertão:
Amável
senhor
354
me
ouviu,
minha
idéia
confirmou:
que
o
Diabo
não
existe.
Pois
não?
O
senhor
é
um
homem
soberano,
circunspecto.
O
diabo
não
há!
É
o
que
eu
digo,
se
for...Existe
é
homem
humano.
Travessia.
355