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O processo colaborativo no Teatro da Vertigem

O p rroo c e s s o c o l a b o r a t i v o n o TTee a t rroo d a VVee r t i g e m

A ntonio Araújo

A
discussão que pretendo realizar sobre as todas as peças do Teatro da Vertigem, e só mais
conformações e os limites do processo cola- tarde será denominada processo colaborativo.
borativo toma como base o processo de Tal dinâmica, se fôssemos defini-la sucin-
criação de O Paraíso Perdido, primeiro es- tamente, constitui-se numa metodologia de cri-
petáculo do Teatro da Vertigem, estreado ação em que todos os integrantes, a partir de
na Igreja Santa Ifigênia em novembro de 1992. suas funções artísticas específicas, têm igual es-
Após um longo período de investigação empre- paço propositivo, trabalhando sem hierarquias
endido pelo grupo, tanto em relação à mecâni- – ou com hierarquias móveis, a depender do
ca clássica quanto às mitologias da criação e da momento do processo – e produzindo uma obra
queda, foi-se tornando necessária e inadiável a cuja autoria é compartilhada por todos.
estruturação e a composição de um roteiro a No que ela se diferenciaria, pois, da cria-
partir de todo o material levantado até então. ção coletiva das décadas de sessenta e setenta?
Apesar da pesquisa formal (física) e Se pensarmos num modelo geral dessa prática
temática (paraíso) ter tido a participação de to- – o que nem sempre é apropriado e verdadeiro,
dos os integrantes em seu desdobramento, seja na medida em que houve diferentes tipos de
por meio de críticas a procedimentos metodo- criação coletiva, várias delas com traços muito
lógicos, seja por sugestão de propostas e corre- peculiares – existia nela um desejo de diluição
ção de rumos, seria nesse momento que o pro- das funções artísticas ou, no mínimo, de sua re-
cesso de construção da obra cênica dar-se-ia em lativização. Ou seja, havia um acúmulo de atri-
toda a sua plenitude. Dramaturgo, atores e di- butos ou uma transitoriedade mais fluida entre
retor, num embate corpo-a-corpo dentro da sala eles. Portanto, no limite, não tínhamos mais um
de ensaio, tentariam, finalmente, criar juntos único dramaturgo, mas uma dramaturgia cole-
um espetáculo. Essa maneira de trabalhar – ain- tiva, nem apenas um encenador, mas uma en-
da que realizada de maneira pouco consciente cenação coletiva, e nem mesmo um figurinista
pelo grupo em O Paraíso Perdido – perpassará ou cenógrafo ou iluminador, mas uma criação

Antonio Araújo é diretor do Teatro da Vertigem, professor do Departamento de Artes Cênicas da


ECA-USP e doutorando do PPG em Artes Cênicas da ECA-USP. Este artigo contém excertos da dis-
sertação de mestrado de Antônio Araújo, A gênese da Vertigem – o processo de criação de ‘O Paraíso
Perdido’. São Paulo, USP, 2002.

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de cenário, luz e figurinos realizada conjunta- Quantas companhias não se dissolveram, trau-
mente por todos os integrantes do grupo. maticamente, pelas crescentes rusgas e in-
Se, enquanto projeto utópico, a criação compatibilidades entre seus colaboradores, de-
coletiva era extremamente inspiradora e arroja- vido ao desgastante exercício de um pretenso
da, a sua prática revelava uma série de contradi- “coletivismo”?
ções. Talvez a mais grave fosse a de que nem to- Não pretendo com isso desmerecer ou
dos os participantes possuíam habilidades, descartar a experiência da criação coletiva.
interesse ou desejo de assumir vários papéis den- Obras importantes foram criadas dentro desse
tro da criação. Esta polivalência de funções aca- modelo e é legítimo que cada artista busque a
bava acontecendo apenas no plano do discurso maneira de trabalhar com a qual mais se identi-
– teoricamente ousado e estimulador – mas era fique. No caso do Teatro da Vertigem nós nos
pouco concretizada na prática. Assim, determi- orientaríamos em outro sentido, que parecia tra-
nados indivíduos dentro de um grupo assumi- duzir melhor as características e os interesses dos
am, veladamente ou com pouca consciência do integrantes do grupo. É claro que, em essência,
fato, as áreas de criação em que se sentiam mais estávamos afiliados a alguns dos princípios fun-
à vontade, fosse por alguma habilidade especí- damentais da criação coletiva, mas iríamos
fica, fosse pelo prazer advindo daí. Contudo, praticá-los de forma um pouco diferenciada.
isso não era assumido coletivamente e nem mes- Pretendíamos garantir e estimular a par-
mo visto com bons olhos. ticipação de cada uma das pessoas do grupo, não
Muitas vezes, também, essa perspectiva apenas na criação material da obra, mas igual-
do “todo mundo faz tudo” escondia certos tra- mente na reflexão crítica sobre as escolhas estéti-
ços de manipulação. Por exemplo, determina- cas e os posicionamentos ideológicos. Não bas-
do dramaturgo ou diretor pregava tal discurso tava, portanto, sermos apenas artistas-executores
coletivizante visando camuflar um desejo de ou artistas-propositores de material cênico bru-
autoridade e, dessa forma, evitava confrontos e to. Deveríamos assumir também o papel de ar-
conflitos com os outros integrantes do grupo. tistas-pensadores, tanto dos caminhos metodo-
Negar o poder pode ser uma forma de reafirmá- lógicos quanto do sentido geral do espetáculo.
lo ou de exercê-lo, ainda que sub-repticiamente. Em termos convencionais, o dramaturgo
Ditaduras ou tiranias podem também se instau- e o encenador são “aqueles que pensam”, en-
rar de maneira difusa, escamoteadas por um dis- quanto os atores são “aqueles que fazem”. O
curso de participação e liberdade. conceito da obra parece, nesse caso, ser um atri-
A vertente oposta a essa é a de uma de- buto da dramaturgia ou da direção, cabendo aos
mocracia artística exagerada, em que cada aspec- atores, quando muito, articularem uma visão
to é debatido ad nauseam, sem haver alguém geral de suas personagens. Este “ator-linha de
que encaminhe ou proponha uma síntese final montagem”, que poucas vezes ou nunca se rela-
sobre determinado quesito polêmico. Em geral, ciona com o discurso artístico global, escravo
nesses casos, a contribuição de todos tem neces- da “parte” e alienado do “todo”, parecia não fa-
sariamente que ser incorporada ao resultado fi- zer parte do nosso coletivo de trabalho nem de
nal, muitas vezes levando a obras flácidas e adi- nossos possíveis interesses de parceria.
posas, e colocando em risco a clareza e a precisão Pois, se dramaturgo e diretor necessitam
do discurso cênico projetado. sempre transitar do fragmento ao todo e do
Em casos assim, se os integrantes não todo ao fragmento, por que seria diferente com
tiverem maturidade o suficiente para dar sus- os atores? Esse modelo de um ator que mergu-
tentação a tal dinâmica de grupo, as brigas e as lha cegamente em uma personagem, alheando-
rupturas são inevitáveis, e muitos espetáculos se ou pouco se interessando pelo discurso geral
acabam nem vindo à cena por essa razão. da peça, nos parecia obsoleto e limitador. O

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mesmo podendo ser dito em relação aos outros o material que é produzido diariamente em im-
colaboradores artísticos, ou seja, cenógrafo, provisações e exercícios. O texto, aqui, não é um
iluminador, figurinista e diretor musical. Todos elemento apriorístico, mas um objeto em con-
eles, apesar de comprometidos com determina- tínuo fluxo de transformação. Daí a denomi-
do aspecto da criação, precisariam integrar-se nação de dramaturgia em processo. Da mesma
numa discussão de caráter mais generalizante. maneira que atores e diretor necessitam dos en-
Em outras palavras, um ator não cria apenas um saios para desenvolverem e construírem as suas
personagem, um iluminador não cria somente obras, também o dramaturgo precisará deles em
o seu projeto de luz, um sonoplasta não cria igual medida.
unicamente a trilha do espetáculo, mas todos, Tal perspectiva pressupõe não apenas
individual e conjuntamente, criam a obra cêni- constantes reescrituras ou diferentes versões e
ca total que será levada a público. tratamentos do texto, mas também um espaço
Ainda a esse respeito, outro aspecto im- de improvisação dramatúrgica. O rompimento
portante refere-se à própria dramaturgia. Mui- com a idéia do texto fixado ou imutável, que
tos dramaturgos escrevem seu texto isolados em cristaliza as propostas advindas dos ensaios, se
suas torres de marfim, e o colocam à disposição faz necessário. É claro que mais tarde, dentro
de um diretor ou companhia que deseje montá- do processo, tal síntese ou concretização acon-
lo. Raramente acompanham os ensaios e, quan- tecerá naturalmente, mas o importante aqui é a
do muito, abrem-se à possibilidade de cortes ou garantia de um espaço de experimentação dra-
modificações sugeridas pelos atores ou pela di- matúrgica. Exatamente como os atores, o dra-
reção. Presentes apenas nos ensaios gerais ou es- maturgo poderá exercitar esboços de cena, frag-
tréia, podem, finalmente, ver seus textos “de mentos de textos, frases soltas cujo único
pé”, não sendo incomum uma insatisfação compromisso é o da possibilidade do escritor
quanto ao resultado final, que várias vezes pro- improvisar e investigar livremente. Portanto,
duz um discurso cênico que pouco tem a ver esse material será tão fugaz e provisório quanto
com o discurso textual. os exercícios cênicos propostos pelos intérpre-
Ao contrário, acreditamos num drama- tes. Poderá ser inteiramente descartado ou, se
turgo presente no corpo-a-corpo da sala de en- for o caso, aproveitado dele algum elemento
saio, discutindo não apenas o arcabouço estru- sugestivo. Evidentemente tal dinâmica exige um
tural ou a escolha das palavras, mas também a novo tipo ou uma nova postura do dramaturgo
estruturação cênica daquele material. Nesse sen- dentro do fazer teatral. Por exemplo, ele tem de
tido, pensamos na dramaturgia como uma es- ser tão desprendido quanto atores e diretor que,
crita da cena e não como uma escrita literária, no segredo da sala de ensaio, são capazes de pro-
aproximando-a da precariedade e da efemerida- por cenas inconsistentes, frágeis, de péssima
de da linguagem teatral, apesar do suporte do qualidade, mas fundamentais ao desenvolvi-
papel no qual ela se inscreve. O que significa mento da obra.
romper com a sua recorrente aura de eternida- Da mesma forma, precisamos de atores e
de para que ela evapore no suor da cena, no hic diretor que não vejam qualquer proposta de tex-
et nunc do fenômeno teatral. Ao invés de um to materializada numa página impressa de pa-
escritor de gabinete, exilado da ação e do corpo pel como um texto final ou já como um esboço
do ator, queremos um dramaturgo da sala de de estrutura, mas, simplesmente, como uma
ensaio, parceiro vivo e presente dos intérpretes improvisação textual. É muito comum, antes de
e do diretor. se ir à cena e experimentar, criticarmos ou pre-
Tanto quanto aos outros colaboradores julgarmos os esboços ou algum tipo de jorro
caberá a ele trazer propostas concretas – verbais, verbal advindos do dramaturgo. É fundamental
gestuais ou cênicas – mas também dialogar com que o núcleo dos intérpretes e a direção reve-

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jam seus conceitos e parâmetros, para que tam- tilhamento não acontece apenas entre outros
bém eles possam abrir-se a um novo tipo de re- colaboradores e o dramaturgo, mas é de todos
lação com a dramaturgia. com todos, simultaneamente: o ator traz ele-
Se como diretor sou capaz de, ao obser- mentos para o cenógrafo que, por sua vez, pro-
var a improvisação de um ator, selecionar algum põe sugestões para o iluminador, e este para o
mínimo elemento que seja ou perceber os ru- diretor, numa contaminação freqüente. Portan-
mos que não devem ser seguidos, poderia me to, cumpre falar de uma encenação em proces-
relacionar com um exercício textual de forma so, de uma cenografia em processo, de uma
igualmente aberta. Encarar uma proposta de sonoplastia em processo e assim por diante, com
texto não como definitiva, mas sim como fonte todos esses desenvolvimentos juntos compon-
de sugestões, de pistas para caminhos possíveis do o que chamamos de processo colaborativo.
ou, ao contrário, de estradas que não levarão a Mas no que então ele se distinguiria da
lugar algum. O meu trabalho poderia funcio- criação coletiva? A principal diferença se encon-
nar – e o dos atores também – como uma espé- tra na manutenção das funções artísticas. Se a
cie de “antena” ou “radar” de pontos teatralmen- criação coletiva pretendia uma diluição ou até
te potentes, presentes naquele material. uma erradicação desses papéis, no processo co-
Além disso, o enfrentamento das dificul- laborativo a sua existência passa a ser garantida.
dades inerentes a um texto não deve ser reduzi- Dentro dele, existiria, sim, um dramaturgo, um
do a uma recusa ou depreciação deste último. diretor, um iluminador, etc. (ou, no limite, uma
Um fragmento dramatúrgico que, numa pri- equipe de dramaturgia, de encenação, de luz,
meira leitura, pode soar canhestro ou mal escri- etc.), que sintetizariam as diversas sugestões para
to, à medida que o vamos “mastigando” e nos uma determinada área, propondo-lhe um con-
apropriando dele, pode revelar surpresas ou pos- ceito estruturador. Além disso, diante de algum
sibilidades não imaginadas. impasse insolúvel, teriam direito à palavra final
O processo colaborativo, portanto, prevê concernente àquele aspecto da criação.
não apenas um novo dramaturgo, com um es- Portanto, diferente de um tipo de teatro
tatuto de precariedade e provisoriedade igual ao mais convencional, em que os limites desses pa-
dos outros criadores da cena, mas também um péis são rígidos, e as interferências criativas de
novo ator e um novo diretor, capazes de perce- um colaborador com outro em geral são vistas
ber o texto em toda a sua efemeridade, de ver o como um sinal de desrespeito ou invasão, no
dramaturgo como um parceiro da cena em processo colaborativo tais demarcações terri-
construção, pari passu com a criação dos intér- toriais passam a ser mais tênues, frágeis, impre-
pretes e do espetáculo. A palavra, os diálogos, cisas, com um artista “invadindo” a área do ou-
as rubricas ou os roteiros de ação deixam de ser tro artista, modificando-a, confrontando-a,
“inimigos” da cena – tal como poderia parecer sugerindo soluções e interpolações. Nesse sen-
num “teatro do encenador” ou num “teatro da tido, uma “promiscuidade” criativa não só é
imagem” – para se tornarem elementos úteis e bem-vinda a essa prática, como é, o tempo in-
tensionadores do processo criativo. teiro, estimulada.
É importante salientar que dramaturgia Contudo, o processo colaborativo garan-
em processo não é sinônimo de processo colabo- te a existência de alguém (ou de uma equipe)
rativo, na medida em que este apresenta um ca- especialista ou interessado em determinado as-
ráter mais geral do que aquela, já que não é pecto da criação, que se responsabilizará pela
somente a dramaturgia o que está sendo desen- coordenação das diferentes propostas, procuran-
volvido conjuntamente, numa abordagem de do sínteses artísticas, articulando seu discurso
tentativa e erro, mas todos os outros elementos cênico ou concepção, e descartando elementos
que compõem a cena. A perspectiva do compar- que não julgar convenientes ou orgânicos à

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construção da obra naquele momento. E, ao da direção numa primeira etapa dos ensaios, em
mesmo tempo, isto não aliena esse responsável relação aos outros colaboradores.
ou coordenador artístico “setorial” do restante Posto isso, gostaria de apontar as etapas
da criação. Também ele (ou sua equipe) trará constituintes de um processo colaborativo, pelo
sugestões e contribuições para as outras áreas e, menos da maneira como nós o praticamos.
principalmente, discutirá o(s) sentido(s) da obra Poderíamos destacar três grandes momentos,
como um todo. Portanto, aquele coletivo de ar- a saber:
tistas é, no ponto de chegada, o autor daquilo
que é mostrado ao público, não só pela “amar- 1. Etapa de livre exploração e investigação: em
ração” artística dentro de sua especificidade, mas que as questões centrais do projeto são estuda-
porque contribuiu, discutiu e se apropriou do das, improvisadas e experimentadas, com o ob-
discurso cênico total daquele espetáculo. jetivo de mapear o campo da pesquisa, levando
Interessa-me, particularmente, esse ten- à identificação de parâmetros e possibilidades.
sionamento dialético entre a criação particular Aqui é onde se dá, fundamentalmente, o levan-
e a total, no qual todos estão submergidos. Sem tamento do material cênico;
abandonar o estatuto artístico autônomo de um
determinado aspecto da criação, a habilidade 2. Etapa de estruturação dramatúrgica: em que
específica, o talento individualizado ou, mesmo, ocorre a seleção do que foi levantado, visando à
o gosto por certa área criativa, o processo cola- criação de partituras de ação, esboços de cena e,
borativo não reduz o criador a mero especialista em seguida, à roteirização propriamente dita.
ou técnico de função. Pois, acima de sua habili- Essa etapa pressupõe o estabelecimento de, pelo
dade particular, está o artista do Teatro, criando menos, uma primeira versão do texto;
uma obra cênica por inteiro, e comprometido
com ela e com o seu discurso como um todo. 3. Etapa de estruturação do espetáculo e de
Na prática do Teatro da Vertigem, esse aprofundamento interpretativo: em que a escrita
processo colaborativo se iniciou numa perspec- da cena passa a ocupar o centro das preocupa-
tiva tripartida, trazendo para o centro da cria- ções, tanto no que diz respeito às marcações, ao
ção, atores, dramaturgo e diretor. Esse triângu- espaço cênico, ao tratamento visual e sonoro,
lo nuclear dava início aos trabalhos e, a partir quanto ao aprimoramento do trabalho do ator.
de sua contribuição, os outros colaboradores O aspecto dramatúrgico continua a ser desen-
iam chegando e se apropriando do processo. volvido aqui, enquanto lapidação e acabamen-
Não que eles estivessem alienados daquilo que to, porém como um foco secundário.
vinha sendo feito, mas sua presença, numa pri-
meira fase dos ensaios, ocorria esporadicamen- Talvez, antes de finalizarmos, possamos
te, e mais na qualidade de observadores do que ainda discorrer sobre alguns dos problemas ou
de propositores. Porém, à medida que o pro- contradições do processo colaborativo. Por
cesso avançava, sua participação ganhava cada exemplo, como nesse tipo de processo todos são
vez mais assiduidade e, então, eles passavam a autores e, portanto, propositores de material
integrar a criação em pé de igualdade com os teatral, há a produção de uma enorme quanti-
artistas daquele tripé inicial. dade de cenas. Via de regra, tais cenas passam a
Não estou, com isso, defendendo esse ser muito preciosas para quem as produziu. Es-
modelo. Acredito ser viável a presença e a con- pecialmente se pensarmos que esse material vem
tribuição artística de todos os criadores desde o de experiências pessoais ou da história de vida
primeiro dia de ensaio. Mas, ao falar da Trilogia de cada ator. Por isso, o valor sentimental agre-
Bíblica, é impossível não perceber o espaço pre- gado a cada proposição se intensifica, e é raro
ponderante da dramaturgia, da interpretação e nos depararmos com uma postura de despren-

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dimento quando se discute ou se seleciona ce- Em razão disso, passa-se a ter pouco
nas do conjunto produzido. Daí a necessidade tempo para um aprofundamento do trabalho
de uma negociação firme, muitas vezes confli- interpretativo e da encenação. A maior parte dos
tuosa e exaustiva, especialmente por parte do ensaios é consumida em questões ou problemas
dramaturgo. dramatúrgicos, reservando-se pouco – ou ne-
Por se tratar de prática bastante delicada, nhum tempo, em casos mais graves – para a
envolta numa série de componentes afetivos e apropriação e o burilamento do material le-
emocionais, não é incomum essa seleção ser vantado. O risco de ficar experimentando o ro-
menos criteriosa ou sintética do que deveria. teiro indefinidamente, de não fixar prazos e li-
Às vezes, a fim de evitar dissabores – presentes e mites estreitos para que outras necessidades
futuros – ou, mesmo, com o intuito deliberado possam ser atendidas, é enorme numa dinâmi-
de agradar a um ou outro componente do gru- ca como essa.
po, acaba-se incorrendo em excessos, elegendo- Concordo que dramaturgia, encenação e
se mais material cênico do que necessário. E é a interpretação vão amadurecendo conjunta e si-
própria obra final que sofre com isso, obrigada multaneamente, e que é artificial separar esses
a incorporar elementos pouco orgânicos ou campos de forma estanque. Também é clara a
alheios a ela, por critérios extra-artísticos. impossibilidade de terminarmos integralmente
Nesse sentido é que, além de um drama- uma dessas áreas para começarmos outra, na
turgo com mão firme – que não tema os even- medida em que elas se retro-alimentam e se
tuais conflitos e confrontos decorrentes da interconectam todo o tempo. Contudo, é pos-
exclusão de cenas –, o processo colaborativo so- sível, sim, garantir um espaço mais equânime
licita, por outro lado, generosidade e despren- para o desenvolvimento de setores específicos da
dimento a todos os criadores que se aventuram criação ou, pelo menos, assegurar que eles se-
nesse tipo de prática. Como diretor, também já jam minimamente atendidos e cuidados ainda
me vi concedendo ou abrindo mão de um mai- antes da abertura ao público. Mesmo que, para
or rigor na seleção de material a fim de manter isso, tenhamos que alongar a duração total do
um bom clima de trabalho. Mas há que se lutar projeto ou, até, eventualmente, adiar sua estréia.
contra isso, por mais traumático e desagradável Faríamos ainda, ao longo do processo de
que seja. O Paraíso Perdido, outros aprendizados em rela-
Outro perigo que parece rondar o proces- ção ao processo colaborativo. Por exemplo, o
so colaborativo diz respeito ao tempo despen- excesso de discussão pode ser uma tônica den-
dido na investigação e na exploração temática tro de uma prática coletiva como essa, e, por-
de uma dramaturgia em processo. Como não tanto, precisa ser evitado. Além disso, teori-
existe uma estrutura prévia ou inicial sobre a zações e confrontos argumentativos não devem,
qual desenvolver a peça, é necessário um longo de maneira alguma, substituir a experimentação
período de improvisações e experimentação para prática e concreta. É fundamental deixar que o
ir-se esboçando o arcabouço de ações e o texto resultado cênico seja o principal balizador dos
propriamente dito. Contudo, esse desafio, esti- caminhos e das opções artísticas. Daí ser neces-
mulante à criação, pode se tornar um entrave sário ouvir e responder ao que a cena pede, mais
caso não haja um gerenciamento do tempo para do que a conjecturas mentais.
cada etapa de construção da obra. Improvisa- Outro elemento importante, para todos
ções intermináveis e reestruturações freqüentes os participantes de um processo desse tipo, é a
do roteiro fazem com que atores e diretor sejam disponibilidade e a generosidade em relação às
exageradamente solicitados enquanto dramatur- propostas e às sugestões trazidas. Devemos lu-
gos, mais do que em suas funções específicas. tar contra os prejulgamentos de qualquer espé-

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cie e experimentar, defender e abraçar a idéia nidamente, como também não cristalizar
do outro como se ela fosse nossa. Sabemos que formalizações cênicas cedo demais? Tais pergun-
é uma tarefa árdua, mas, ainda assim, factível. tas, surgidas no bojo do processo de O Paraíso
Poderia levantar algumas outras questões, Perdido, necessitariam ainda de vários anos para
especialmente ligadas à direção, dentro dessa serem amadurecidas.
perspectiva grupal: como fazer para que a parti- As tensões dentro do processo colabora-
cipação de todos seja mais eficiente e equilibra- tivo são inúmeras, e necessitávamos praticá-lo e
da? Como não inibir o fluxo de proposições, experimentá-lo outras vezes para que pudésse-
estimulando todo e qualquer material a ter voz, mos compreender um pouco melhor os seus
quer sejam clichês, estereótipos, formalizações mecanismos. Por isso, se o Paraíso pode ser vis-
ingênuas ou de mau-gosto, quer sejam idéias to, metaforicamente, como Infância, O Paraíso
conceitualmente arrojadas ou transgressivas? Perdido significa, nessa perspectiva, a nossa in-
Como criar uma zona de confiança e cumplici- fância teatral. E saímos dele – ou dele fomos
dade para o “exercício do risco”? E, ainda, se expulsos – ávidos de mais conhecimento, e tam-
aprendemos que é nocivo o improvisar indefi- bém mais conscientes de nossas limitações.

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