FLORIANÓPOLIS
2013
CLEBER RODRIGO BRAGA DE OLIVEIRA
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Teatro da Universidade do Estado
de Santa Catarina, como
requisito para obtenção de grau
de Mestre em Teatro, área de
concentração Teorias e Práticas
Teatrais, na Linha de Pesquisa
Teatro, Sociedade e Criação
Cênica.
FLORIANÓPOLIS
2013
CLEBER RODRIGO BRAGA DE OLIVEIRA
Banca Examinadora
Orientador: ____________________________________________________
Dr. André Luiz Antunes Netto Carreira
UDESC
Membro: ______________________________________________________
Dra. Luciana Paula Castilho Barone
UNESPAR
Membro: ______________________________________________________
Dr. Milton de Andrade Leal Junior
UDESC
Florianópolis, 05/03/2013.
A Rafael Siqueira de Guimarães, que me ajudou a
entender o sentido da palavra companheiro.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, André Carreira, pelo respeito e colaboração com meu processo de
investigação;
À Universidade do Estado de Santa Catarina, especialmente à Secretaria do Programa
de Pós-Graduação - Mestrado e Doutorado em Teatro e seus funcionários, pelo respeito e
apoio constantes ao meu processo de formação;
À Capes, pela bolsa de estudo concedida para a pesquisa;
Ao Ministério da Cultura, pelo apoio na pesquisa sobre coletivos artísticos espanhóis;
Ao professor Gabriel Cabello Padial, do Departamento de História del Arte da
Universidad de Granada, pela generosa acolhida e colaboração com a pesquisa;
Aos Professores Fernando Antonio Pinheiro Villar de Queiroz, Milton de Andrade
Leal Junior, Stephan Arnulf Baumgärtel e Luciana Paula Castilho Barone, por sua importante
colaboração em meu processo de investigação;
A todos os professores do PPGT da UDESC com os quais eu tive contato;
Aos meus colegas do PPGT, pelo companheirismo e afeto;
Aos companheiros do Elenco de Ouro, pela amizade e parceria, que me sensibilizaram
para as questões descritas nesta dissertação;
À Mariane Feil, pelas generosas acolhidas;
A todos os artistas e grupos entrevistados neste processo;
À minha família;
A todos que contribuíram, direta ou indiretamente, com a realização deste trabalho.
"He dicho Escuela del Sur; porque en realidad,
nuestro norte es el Sur. No debe haber norte, para
nosotros, sino por oposición a nuestro Sur. Por
eso ahora ponemos el mapa al revés, y entonces
ya tenemos justa idea de nuestra posición, y no
como quieren en el resto del mundo”
(Joaquín Torres García)
RESUMO
O objetivo desta dissertação é refletir sobre algumas práticas artísticas de intervenção urbana,
considerando como tal as ações realizadas na cidade, fora dos espaços destinados a mostras
artísticas e espetáculos, por artistas ou coletivos artísticos. Para tanto, vale-se de um método
cartográfico que, mais do que mapear uma produção preexistente, propõe-se à composição de
uma rede de conexões entre elementos tais como as falas coletadas em entrevistas, referências
teóricas associadas ao tema em questão e a prática artística do autor da pesquisa. Foram
entrevistados grupos e artistas das cidades Curitiba, Porto Alegre, Buenos Aires, Montevidéo,
Sevilha e Granada. Pude verificar que as intervenções urbanas possuem uma tradição ligada
às vanguardas artísticas do século XX, no que tange ao desejo de borrar as fronteiras entre
arte e vida. Contudo, vem se configurando enquanto projetos micropolíticos de singularização
do espaço, devido a sua contaminação por mudanças culturais surgidas, sobretudo, após 1960.
Numa reação ao processo de organização das cidades pós-modernas - e sua submissão aos
detentores do capital econômico -, bem como à força de um mercado de arte internacional,
estas intervenções apresentam uma dimensão política em seus projetos poéticos, ainda que tal
conteúdo possa não estar expresso de forma temática.
OLIVEIRA, Cleber Rodrigo Braga de. One Mapping of Artistic Urban Interventions:
south of Spain and South America. 2013. 159 f. Dissertação (Mestrado em Teatro - Área:
Teorias e Práticas Teatrais) - Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-
graduação em Teatro, Florianópolis, 2013.
This dissertation aims to reflect on some artistic practices of urban intervention. The analysed
practices are the ones performed within the city by artists or artistic groups, although outside
the usual assigned spaces for performances and plays. To accomplish the task, it uses a map-
making method that far than only mapping a preexistent production, also intends to compose
a connection net among elements such as statements collected in interviews, theorical
reference and the empirical artistic experience of the author. Groups and artists from cities
such as Curitiba, Porto Alegre, Buenos Aires, Montevideo, Sevilla and Granada have been
interviewed for this research. It could be confirmed that these urban interventions have been
often connected to the 20th century artistic vanguards, when it comes to the desire of blurring
the boundaries between art and life. Furthermore, they have been establishing themselves as
micropolitical projects that singularize the referred spaces. This happens specially because of
the 1960´s cultural changes contamination. In a reaction to the organization process of the
post modern cities and it´s subordination to the economic capital holders, as well as their
submission to the strenght of the internacional art market, these interventions present a
political dimension in their poetical projects, although this content may not be expressed in a
thematic manner.
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................... 10
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 84
REFERÊNCIAS............................................................................................................. 88
ANEXO A.................................................................................................................... 93
1 INTRODUÇÃO
iluminação, figurinos, livros, entre outros. Além de se justificar pela falta de dinheiro, a
relação entre arte e delinquência, presente sobretudo no primeiro ano de atividade do grupo,
era alimentada, entre outras influências, pelo imaginário da poesia de Allen Ginsberg em sua
relação com a contracultura norte-americana dos anos 60 e com a geração beat1. Tal relação
está expressa no título da primeira montagem do grupo, Pássaros comedores de cérebro
patrulham teu coração enganador, frase tirada do livro Cartas do Yage, que traz a
correspondência trocada entre os poetas Allen Ginsberg e William Burroughs no período em
que ambos viajaram pela América do Sul.
Sintonizados com o projeto subversivo da poética beat - para o qual a vida é tida como
objeto artístico processual, o que sugere uma ficcionalização da mesma - os membros do
Elenco de Ouro se arriscavam a cometer pequenos crimes com o objetivo de experienciar os
limites da sua criação, numa recusa total ao sistema burocrático da produção teatral vigente,
caracterizado por uma política de editais subsidiados pelo Estado. Deste modo, criavam uma
resistência a estas esferas de poder, encarnando a figura romântica do artista que não se curva
às regras da sociedade. Levando a cabo a máxima de Hakin Bey (2003, p.7) sobre o
Terrorismo Poético2 - a ideia de arte como crime, e de crime como arte - o Elenco de Ouro se
aproximou, nesta primeira fase, ainda que intuitivamente, da noção de ativismo.
Para Mesquita (2008), o ativismo pode ser entendido como uma ação que propõe
alterações políticas e sociais, caracterizada por uma articulação coletiva, solidária. Esta ação
também é passível de se configurar como obra artística. Nesta primeira etapa de sua
existência, ainda que de forma indireta e não consciente, apontávamos para a possibilidade de
uma ação estética que questionava, de forma não meramente temática ou discursiva, o status
do artista, da obra de arte e seu modo de produção.
O termo geração beat é usado para designar um grupo de artistas norte-americanos que atuou
principalmente entre as décadas de 1950 e 1960. Composto principalmente por escritores, tais como Allen
Ginsberg, William S. Burroughs e Jack Kerouac, a poética beat possui forte influência dos movimentos
contraculturais do mesmo período, do uso de alucinógenos, do ideal de uma vida desregrada. Contudo, conforme
afirma Barja (2008), este ideal foi mais do que uma utopia, constituindo-se numa forma de ação efetiva.
2
Mais à frente me deterei mais detalhadamente sobre a noção de terrorismo poético.
12
O desejo de trabalhar nestes espaços completos dos quais nos fala Schechner - que
congregam as áreas onde está o público, bem como as áreas onde atuam os intérpretes -
impulsionou o grupo a também buscar ambientes maiores, fora de sua sede, relacionados à
vida da cidade. Em Pássaros comedores de cérebro patrulham teu coração enganador, por
exemplo, um dos atores surgia vestido de pássaro pela janela da sala na qual transcorria uma
das cenas. Por conta disso tinha que esperar do lado de fora da janela, no parapeito, até o
momento de sua entrada. Como consequência, a cada noite de apresentação, um grupo de
3
A partir deste momento será utilizada a sigla E.O. para designar o grupo Elenco de Ouro.
13
transeuntes se juntava em frente ao prédio onde o espetáculo era apresentado, surpreso pela
imagem de um homem vestido de pássaro do lado de fora do quarto andar do edifício. Creio
que esta tenha sido a primeira vez que eu tenha me dado conta da possibilidade real de
intervenção no fluxo da cidade.
Gradativamente, no trabalho subsequente intitulado O circo erótico, passei a propor ao
grupo experimentações ocasionais para além do prédio que ocupávamos, como parte do
processo de criação. Mas foi somente após sua terceira montagem que o E.O. se lançou de
fato em uma ação na rua, justamente em um período de hiato na sua produção, que durou do
ano de 2004 ao ano de 2007.
Após apresentarmos Pássaros comedores de cérebro patrulham o circo erótico dentro
do Festival de Teatro de Curitiba, espetáculo que fundia as duas primeiras montagens e
encerrava a trilogia do grupo, a maior parte dos artistas decidiu suspender o processo de
criação junto ao E.O. Com três anos de trajetória até aquele momento e sem nenhum
subsídio financeiro - que começávamos a aprender a solicitar junto às esferas estatais de apoio
à cultura - era quase um consenso a inviabilidade da manutenção do grupo. A postura
marginal e heroica de outrora dava lugar a um desejo de segurança e equilíbrio que acabou
por desfazer o grupo. Ocorre que, numa coincidência quase irônica, assim que o coletivo se
desfez, recebi a notícia de que havíamos sido contemplados em um edital da Fundação
Cultural de Curitiba para realizar uma pequena temporada do nosso último espetáculo fora da
capital.
Consciente da impossibilidade de levar adiante minhas investigações artísticas em
Curitiba - com a liberdade que tinha de experimentação junto ao E.O. e o interesse cada vez
maior pela questão espacial - me aproximei do grupo Tá Na Rua, da cidade do Rio de Janeiro,
em 2004. Esta aproximação se deu por intermédio de uma amiga - Natali Malena Trunkle -
que havia sido colaboradora junto ao E.O. e que intuía uma relação possível entre nós. Assim,
participando de oficinas e trabalhando como ator sob orientação do diretor Amir Haddad,
pude participar do processo de ensaios e apresentações do espetáculo Dar não dói, o que dói é
resistir por diversas cidades brasileiras e em Paris, dentro das comemorações do ano do Brasil
na França em 2005, quando me desliguei do Tá Na Rua.
Amir Haddad é um artista que entende a prática teatral em íntima relação com o
conceito de cidadania. Sem distinguir as figuras de artista e de cidadão, propõe espetáculos-
festa em espaços públicos que frequentemente convocam a plateia a agir ativamente na cena,
14
numa atitude que pretende congregar diversão com reflexão crítica e que remete ao
surgimento do teatro enquanto manifestação popular. O grupo Tá Na Rua vem
desenvolvendo, ao longo de três décadas, uma pesquisa focada na possibilidade de um teatro
de rua brasileiro. Sobre esta trajetória, afirma que:
A saída para a rua nos levou às origens do teatro, do que pensávamos e sentíamos ter
existido antes da captação da linguagem teatral pela burguesia, no início dos tempos
modernos - período em que se instalou a hegemonia da Razão, rompendo (mais
nitidamente, ao menos) o equilíbrio corpo/mente e em que a fala passou a ter mais
força. Caminhamos, assim, em direção ao resgate de uma história do teatro que não
é contada nos manuais: a do teatro popular; em direção do popular que existe em
cada um de nós. (HADDAD, 2001, p.155).
E complementa:
Quando começamos a ir para a rua, praticamente não havia teatro de rua no Brasil.
Nosso referencial eram os camelôs e os artistas de rua; eram aqueles camelôs que
vendiam mágicas, vendiam remédios para calo e mil outras bugigangas. Nós os
observávamos enquanto faziam teatro para vender suas mercadorias: como
seguravam a roda, como “esquentavam” o espaço de atuação, como brincavam com
o público - um público que eles, em momento nenhum, ignoravam, pois sabiam que
ele só permaneceria para assistir às suas demonstrações se soubessem conquistá-lo.
(HADDAD, 2001, p155-156).
diversos grupos e artistas que desde o ano de 2007 organiza encontros, mostras, debates,
fóruns virtuais sobre o teatro de rua brasileiro6.
Deste modo, passei a aplicar a expressão intervenção urbana no intuito de marcar uma
diferença entre o tipo de ações realizadas no espaço público pelo E.O. e outras formas de
teatro também realizadas em espaços públicos.
Ao mesmo tempo em que buscava compreender as especificidades do trabalho que
vinha desenvolvendo junto ao E. O., passei a observar a emergência de criações de coletivos
teatrais que se lançavam ao espaço público sem defender uma conexão com a tradição do
teatro de rua brasileiro. Este é o caso da Cia. Silenciosa, de Curitiba, assim como da Cia.
Rústica, de Porto Alegre. Dois grupos que trazem em seu discurso o uso do termo intervenção
urbana, ainda que realizem trabalhos muito diferentes entre si. Assim como o E.O., esses
grupos experimentavam um processo performativo, conforme descrito por Féral (2009), que
me suscitavam perguntas do tipo: O que é uma intervenção urbana? Há na intervenção urbana
alguma relação com as práticas conhecidas de teatro de rua? Qual o nível de ficção de uma
intervenção urbana? Sua prática possui, necessariamente, uma natureza política? Os artistas
que se utilizam deste termo o fazem para marcar alguma diferença em relação a outras
práticas artísticas?
Motivado por tais questões busquei referências sobre noções de intervenção urbana.
Pude constatar que, no âmbito da arquitetura, esta expressão tem sido utilizada para designar
ações em espaços públicos, cujo objetivo, via de regra, é a revitalização ou reorganização
arquitetônica, oportunizando uma nova ocupação de caráter social e cultural. No campo das
artes, esta mesma expressão remonta a uma prática de criação que tem no espaço não
institucionalizado um ambiente propício e, por vezes, uma razão de ser. Além disso, a
pluralidade é uma das suas especificidades, já que este tipo de obra comumente se encontra
entre territórios, tais como arquitetura, política, cultura (PEIXOTO, 2002). Ao considerar que
o uso do termo intervenção urbana se aplicava a diferentes perspectivas, que coletivos
artísticos que se lançavam ao espaço público se valem desta expressão para definir o seu
fazer, reconheci no tema um objeto de estudo relevante. Isso me motivou a ingressar no
programa de Mestrado em Teatro da UDESC e a eleger como objeto de estudo algo tão ligado
à minha criação artística.
6
Mais à frente me detenho mais especificamente sobre a relação entre algumas noções de intervenção urbana e
de teatro de rua, considerando possíveis semelhanças e diferenças entre elas.
17
Optei nesta pesquisa por buscar artistas e/ou coletivos que aplicassem o termo
intervenção urbana ao discurso sobre seu próprio trabalho. Independente de tal aplicação ser
passível de críticas ou não, de ser coerente ou não com as práticas realizadas, esta decisão
levou em conta o sentido que cada criador dava para este termo, a necessidade da sua
aplicação para qualificar, definir ou ainda marcar uma diferença em um determinado fazer
artístico. Considerando a intersecção entre campos de conhecimento como uma característica
da noção de intervenção urbana, conforme apontado por Peixoto (2002), não me restringi à
pesquisa de coletivos teatrais. Aceitei a pluralidade de suportes (artes visuais, arquitetura,
teatro) nesta busca por encontrar propositores de intervenções urbanas artísticas.
Partindo de minha própria trajetória artística - mais especificamente de minha
necessidade de recorrer ao termo intervenção urbana como forma de marcar uma diferença
entre as experiências realizadas pelo E.O. em suas ações no espaço público e o entendimento
mais comum sobre as práticas de teatro de rua no Brasil - proponho nesta dissertação uma
reflexão sobre a necessidade do uso do termo I.U. 7 por diferentes artistas ou coletivos
artísticos no que tange aos seus respectivos trabalhos, dando ênfase aos seus entendimentos
sobre este mesmo termo.
Contudo, diferente de uma motivação narcísica, meramente autorreferencial, o que me
moveu na direção de uma produção acadêmica ancorada na prática artística - tanto na minha
quanto na de outros criadores - foi a compreensão de que existem outros saberes, informais,
que em muito podem contribuir para a pesquisa acadêmica, pois validam conhecimentos
provenientes de diferentes esferas, têm neles contribuintes para uma outra postura crítica de
instituições de ensino superior - sobretudo na conjuntura atual, que é a de supervalorização de
aspectos quantitativos da pesquisa, voltada para a excelência da produção científica, cujo
objetivo final é a publicação em periódicos de reconhecimento, mas que muitas vezes não
estão sintonizadas com questões relevantes para a sociedade. Refiro-me aqui à importância da
interdisciplinaridade, ao reconhecimento da prática artística enquanto produção de
conhecimento, a relevância do desejo - tanto do pesquisador quanto do objeto de pesquisa -
para um processo de investigação. Parto então deste entendimento de que o conhecimento
pode ser uma construção que promova a interface entre a figura do pesquisador e de seu
objeto de estudo, sem a pretensa imparcialidade dos métodos de pesquisa mais tradicionais. A
este respeito, afirma Santos:
7
A partir de agora, o termo intervenção urbana será grafado desta maneira.
18
Ao relativizar esta perspectiva moderna de ciência, optei por fazer-me também objeto
de estudo. Decidi me configurar como pesquisador e objeto de pesquisa, intercalando
performances, enquanto comportamento restaurado que “remete aos inúmeros ‘eus’ que cada
um alberga dentro de si” (MOSTAÇO, 2009, p.19). Contudo, ainda não vislumbrava uma
forma de trabalho capaz de conjugar o conhecimento empírico com o rigor metodológico de
um trabalho acadêmico, necessário para a confecção de uma dissertação. Reconhecia a
necessidade de desenvolver uma pesquisa que não excluísse a “criatividade do pesquisador” -
como compreendido por Minayo, para quem elementos como teoria, método e técnica são tão
relevantes quanto a capacidade criadora e a experiência do pesquisador, que “podem
relativizar o instrumental técnico e superá-lo pela arte” (MINAYO, 2007, p.45). Em
consonância com a autora, admitia a importância da relação entre pesquisador e sujeito
pesquisado, já que suas visões de mundo influenciam todo o processo de investigação, desde a
escolha do objeto até os resultados obtidos. Mas, se por um lado ponderava que “cada método
é uma linguagem, e a realidade responde na língua em que foi perguntada” (SANTOS, 2006,
p.48), por outro, não sabia ainda em que língua perguntar. Esta incerteza me levou a buscar
uma base teórica para minha escolha.
19
influenciar por forças externas. Deleuze fala de uma outra noção, só possível a partir da
criação de novos conceitos que não recaiam em padrões dominantes de representação,
desapegados da significação e abertos às circunstâncias. Diferentes de metáforas, que
remetem a significados prévios, conceitos tais como rizoma, devir, dobra, linhas molares,
linhas moleculares e linhas de fuga 8, propõem uma performatividade fluída, correspondente a
uma subjetividade destituída de essência. Um processo contínuo de construção, no qual o que
se entende por sujeito é o espaço de montagem, é uma dobra do exterior. Sem desenhar
limites de um “eu” recluso, o conceito de dobra remete a uma noção de superfície
descontínua, um “voltar-se para dentro” da exterioridade. Tal proposição possui uma
implicação política, já que o processo de dobrar, desdobrar, redobrar, implica na criação de
possibilidades de existência que combatem modelos impostos de individualidade e de
produção de conhecimento essencialistas (DOMÈNECH, TIRADO e GOMES, 2001).
Em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Deleuze e Guattari (1995) associam o tipo
de produção de conhecimento mais tradicional, no qual o livro se apresenta como reprodução
mimética da realidade, ao sistema arborescente de raiz. Nesta perspectiva, há uma unidade
(caule) que liga todas as especificidades e proporciona o surgimento de uma lógica binária,
segundo a qual todas as coisas são organizadas sob uma noção de centro, de pivô, de essência,
de onde se originam as raízes secundárias. Este modo de fazer conhecimento hierarquiza
potências e propicia dicotomias do tipo sujeito/objeto, arte/vida, conhecimento
empírico/conhecimento acadêmico, corpo/alma. Diferente disso, o sistema de rizoma
proporciona um grau de incompletude que impele a estrutura a estar em constante
reelaboração. Caracteriza-se por ramificações infinitas que não buscam um centro, já que
qualquer ponto do rizoma pode ser ligado a outro - o que propicia conexões variadas e
imprevisíveis.
É a própria configuração da multiplicidade, sem o uno organizador, e que pode ser
rompida em qualquer lugar sem deixar de existir, assim como pode retomar seu fluxo a partir
de qualquer ponto – como as formigas que não podem ser exterminadas porque reconstroem
seus fluxos em um rizoma animal. Não existem pontos em um rizoma. Somente linhas que se
cruzam em redes de conexões e que, por vezes, são rompidas numa linha de fuga (DELEUZE
& GUATTARI, 1995).
8
Estes conceitos serão retomados no decorrer da dissertação.
21
Se um rizoma atua como um mapa, não seria adequado estudá-lo numa perspectiva de
decalque, mas de cartografia. O método cartográfico surge então como uma alternativa em
estudos da subjetividade, pois considera sua complexidade. Mais do que um modelo de como
fazer um estudo qualquer, a cartografia é um modo de compreensão sobre a pesquisa, a
relação entre campo e pesquisador. A este respeito nos fala Romagnoli:
Entendemos que a cartografia pode ser compreendida como método, como outra
possibilidade de conhecer, não como sinônimo de disciplina intelectual, de defesa da
racionalidade ou de rigor sistemático para se dizer o que é ou não ciência, como
propaga o paradigma moderno. Cabe salientar que, não raro, a ideia de método é
atrelada à de metodologia que, por sua vez, trata do formalismo e das prescrições
para se alcançar a cientificidade, explicitando os procedimentos que já estariam
consolidados dentro da ciência. Dessa maneira, a metodologia corresponde aos
instrumentos para se fazer ciência, centrando-se no “como” fazer ciência, traduzindo
o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade. Também
não é essa a proposta.
[...] a cartografia é um método, pois não parte de um modelo pré-estabelecido, mas
indaga o objeto de estudo a partir de uma fundamentação própria, afirmando uma
diferença, em uma tentativa de reencontrar o conhecimento diante da complexidade.
(ROMAGNOLI, 2009, p.169).
respeito a campos de estudo vivos e mutáveis. Não desenhar mapas fixos, não estar preso
apenas ao registro e análise de dados, mas estar atento aos encontros.
Se um risco do método cartográfico é sua aplicação como fórmula pronta, como
modelo a ser seguido - o que configura uma contradição, já que assim atua como reprodução e
não criação, recaindo em um paradigma moderno de fazer ciência -, outro risco é a produção
de pesquisas sem fundamentação, frágeis conceitualmente, incapazes de conectar os saberes
mapeados. Para além da manutenção da invenção é necessário o rigor no uso de conceitos,
associando-os à processualidade da pesquisa, como entradas para possíveis conexões, como
potências criadoras que cruzam com a experiência no corpo do trabalho. Os conceitos formam
parte das forças que agem sobre a subjetividade, seja do pesquisador ou do objeto de estudo.
Esta subjetividade é constituída por linhas diversas - que atuam concomitantemente - sendo
que algumas se constituem como linhas duras, aquelas classificatórias, que trazem divisões
binárias como as de sexo, e as linhas flexíveis, que permitem que a subjetividade seja afetada
por elementos externos a ela, o que propicia um agenciamento capaz de construir novas
linhas de fuga, que por sua vez podem proporcionar o surgimento de algo novo, de novos
territórios existenciais (ROGMANOLI, 2009).
Esta relevância do funcionamento da subjetividade no processo de pesquisa se justifica
pela compreensão de que, na contemporaneidade, ela é responsável pela configuração de
nossos modos de sentir, de ver, de interagir com aquilo que nos afeta, de produzir
conhecimento. Está diretamente relacionada à percepção. Suely Rolnik - pensadora brasileira
que vem refletindo sobre os modos de subjetivação atuais - afirma que “A produção de
subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção” (GUATTARI & ROLNIK,
1986, p.28). Para a autora, o modo de produção capitalístico9 não funciona apenas no registro
de valores de troca monetária, mas através de um modo de controle ou, indo além, da
produção de subjetivação. Agindo de forma complementar, o capital se ocupa da subordinação
econômica enquanto a cultura se ocupa da subordinação subjetiva, sendo que esta ultrapassa
os limites da publicidade usada para incentivar o consumo e toca outras dimensões da vida.
Esta compreensão parece estar em sintonia com o pensamento de Jameson (2002),
para quem é possível considerar aquilo que nos habituamos a chamar de pós-moderno como
algo inseparável da hipótese de uma alteração evidente da função social da cultura no
9
Guattari usa este termo para designar não apenas as sociedades capitalistas propriamente ditas, mas também
todas as outras que se põem em relação de dependência ou contradependência a este sistema econômico,
valendo-se dos mesmos modos de produção subjetiva. (GUATTARI & ROLNIK, 1986).
23
Neste sentido, torna-se indiferente falar em cultura popular ou cultura erudita, já que
ambas estão subordinadas a uma cultura capitalística. Portanto, qualquer projeto de mudança
social, de revolução a nível macrossocial, deve considerar estas questões. Uma alternativa a
este processo de subjetivação em massa e seus padrões preestabelecidos é a construção de
uma sensibilidade mais criativa, singular, que conduza a uma subjetividade em consonância
com o desejo. Para tanto, todos aqueles cuja profissão consista em se interessar pela produção
de discursos, como os que ocupam posições de ensino no campo das ciências sociais ou
psicológicas, entre outras, devem ser questionados sobre seus modelos de produção de
conhecimento, nos quais questões como objetividade científica e neutralidade na análise
devem ser contestadas.
Considerando minha posição enquanto pesquisador, somada à minha experiência como
artista, vali-me da análise das narrativas dos entrevistados, relacionando-as em minha própria
24
10
A transcrição das entrevistas realizadas com os coletivos espanhóis FAAQ e Vulgarisarte, bem como com
Henrique Saidel, do Coletivo Cia. Silenciosa e com Luiz Bertazzo e Sueli Araujo, da Cia. Senhas, estão
presentes como Anexos, ao final desta dissertação. As outras entrevistas citadas, infelizmente, não foram
transcritas porque o áudio deste material foi danificado. Destas entrevistas, foram utilizadas apenas as memórias
e as anotações realizadas nos encontros.
26
É na relação com esta base anárquica que Villar (2009) associa as práticas de
performance art ao trabalho desenvolvido pelo grupo catalão. La Fura tem em sua trajetória
obras que mesclam diversas técnicas e linguagens artísticas, embora a teatralidade seja uma
constante em suas ações. A teatralidade, considerando o entendimento de Féral (2002), é um
processo que extrapola os limites da cena, da arte teatral, e faz com que o observador seja
capaz de imprimir um grau de ficção àquilo que observa.
Curioso pelo que encontraria, me dirigi à Plaza Independencia, onde me deparei com
uma multidão que aguardava ansiosa o início da apresentação. O clima era de expectativa.
Conforme havia sido divulgado pelos meios de comunicação, La Fura chegou a Montevidéu
com uma equipe reduzida de trabalho que, por sua vez, selecionou artistas e técnicos
uruguaios para participarem da montagem que veríamos a seguir.
Antes do início da apresentação, as projeções de imagens nos prédios que circundam a
praça e as falas amplificadas por potentes equipamentos sonoros que davam as boas vindas ao
público criavam um clima de mega evento para a massa, que a princípio atritaram com
minhas referências - para não dizer preconceitos - sobre o tipo de trabalho realizado pelo
grupo.
Quando La Fura começou seu trabalho, senti uma forte coerência entre o clima
elaborado pela produção do evento e o trabalho apresentado. Com bailarinos dançando tango
na fachada da sede do governo federal, projeções de vídeos que remetiam à história do país,
uma trilha sonora suave e de apelo emocional, além de uma voz gravada proferindo um texto
quase ufanista, o que eu presenciava era um trabalho feito sob encomenda, cujo objetivo era
agradar a audiência. E isso o espetáculo conseguiu fazer com maestria.
28
A apresentação terminou com uma boneca gigante dançando candombe - ritmo típico
uruguaio, equivalente, em relação à importância cultural, ao samba para o Brasil. O público
foi ao delírio e eu saí da apresentação com uma sensação confusa: se por um lado vinha
usando o termo I.U. para assinalar uma diferença entre trabalhos mais experimentais e outros
mais convencionais realizados no espaço público, o que havia presenciado era um tipo de
apresentação que, mesmo se valendo de diversas técnicas (tais como acrobacia, pirofagia
entre outras) e linguagens (vídeo, dança, teatro) e não se configurando com teatro de rua,
apresentava um grande nível de previsibilidade. Para não falar da ironia implícita no ato do
governo uruguaio contratar uma companhia de artistas espanhóis como grande atração de um
festejo que celebra a independência política do Uruguai em relação ao domínio da Espanha.
Avaliar o mérito do trabalho de um grupo com uma larga trajetória como La Fura
tendo como base apenas uma apresentação, e ainda por cima em um contexto tão específico,
não seria nada adequado. O que me chamou a atenção foi o quanto minha compreensão sobre
o ato de intervir na cidade possuía, até aquele momento, uma conotação romântica e
subversiva.
Este fato me lembrou das táticas publicitárias que vêm se apropriando de expressões
artísticas menos convencionais como modo de gerar experiências que agreguem valor a seus
produtos. Neste contexto, a promoção de flash mobs por empresas multinacionais, como a
Coca-Cola11, são um bom exemplo de como uma iniciativa aparentemente espontânea pode
ser cooptada para fins comerciais.
Os flash mobs se caracterizam por ações-relâmpago promovidas através de redes
sociais cujo objetivo é não ter objetivo. Ou, em outras palavras, propor alguma ação lúdica e
coletiva e, na sequência de sua realização, dispersar. Esta prática caracteriza uma nova forma
de interação disseminada pelo mundo a partir da evolução da internet e pode mesmo chegar a
se configurar “como uma nova forma de arte que surge da mediação entre o corpo e as novas
tecnologias ou, ainda, como uma ação coletiva capaz de estimular novas práticas criativas”
(SCHIECK, 2005, p.10).
Contudo, ao ser empregada a serviço da divulgação de um produto, a potência criativa
de uma experiência como esta se transforma em algo previsível, assemelhando-se às
11
A marca de refrigerantes Coca-Cola vem realizando uma série de flash mobs por diversos países com o
objetivo de divulgar sua marca de modo menos convencional. Um exemplo deste tipo de ação publicitária pode
ser visto em: http://www.youtube.com/watch?v=poPcsRi1lmQ.
29
Esta diluição entre a vida cotidiana e o espetáculo também pode ser reconhecida em
projetos de revitalização urbana. No campo do urbanismo e arquitetura a expressão I.U.
remete a um conjunto de práticas cujo objetivo é a revitalização ou restauração funcional de
áreas específicas do tecido urbano, valendo-se da reabilitação arquitetônica, no intuito de
proporcionar uma apropriação social e cultural (CHOU & ANDRADE, 2012).
Peixoto (2002) reconhece, no Brasil, a partir dos anos 1980, o surgimento de projetos
de I.U. que propõem a requalificação do espaço público. Valendo-se especialmente da criação
de centros culturais, estes projetos surgiram com o objetivo de promover uma melhoria no
tipo de ocupação de determinadas regiões, geralmente vitimadas pela violência, tráfico de
drogas, entre outros problemas típicos de grandes cidades. Contudo, este tipo de intervenção -
que tinha na arte e na cultura ferramentas capazes de restabelecer a sanidade da vida
comunitária - rapidamente foi incorporada pela especulação imobiliária, ávida por lucrar com
a supervalorização de regiões anteriormente desvalorizadas:
Figura 1 - Despavimentá 1
Figura 2 - Despavimentá 2
Há algo nesta metáfora da planta que cresce nas rachaduras... Que se poderia
transferir para a ... Ao que pode significar a obra de arte. É talvez, uma reivindicação
da obra artística em si mesma. É uma reação à ideia de galeria, dos curadores de
arte. Em certo ponto, esta metáfora pode ser uma reação neste sentido. Escapa a
qualquer permissão. Escapa a toda a toda oficialidade. Então, assinalar o que existe
na rua lhe dá também esta qualidade de reação e de não ter que ser oficialmente uma
obra e sim uma sinalização, simplesmente. Em certa medida é uma reação à
superficialidade que existe hoje na arte conceitual. Várias obras que estão assim
como arte e não se questiona. Então a rua é um espaço onde todos podem passar, não
precisam de nenhum curador para existir. Só necessita que alguém decida que isso
32
Ivana fala de sua criação como um questionamento sobre o lugar da obra de arte - que
neste caso não se trata de um museu, mas de ruas da cidade - assim como do próprio objeto
artístico, já que apenas sinaliza plantas pré-existentes, que sequer plantou ali. Sua autoria
consiste na sinalização da relação possível entre natureza e espaço construído pelo humano.
Propõe ao espectador uma outra percepção sobre o cotidiano, uma nova sensibilidade sobre o
que já se conhece.
Além disso, estas obras não podem ser deslocadas sem perder seu sentido, pois estão
em relação estreita com a urbanidade onde as plantas assinaladas brotaram. Assumem uma
dimensão específica em relação ao local ao serem emolduradas como quadros - e não apenas
no sentido físico, de estarem fixadas em determinada paisagem, mas na relação que evocam
entre arte e espaço. Deste modo, aproximam-se da noção de site specific, termo usado para
definir diversas práticas artísticas, surgidas a partir dos anos 1960, que utilizam como material
características específicas do lugar onde são realizadas (TRAQUINO, 2010).
Conforme apontado por Kwon (2008), a arte site specific, em suas primeiras
manifestações, tinha uma relação com a materialidade do local que configurava uma crítica à
tendência de se entender o espaço do museu ou da galeria de arte como sendo neutro, uma
tábula rasa. Peixoto (2002) reconhece uma crise de espaços expositivos a partir da década de
1960 em grande parte por conta do minimalismo 12, que rejeitou a base da escultura tradicional
e questionou a ausência de relação com o lugar. Nas palavras do autor:
12
Para Batchelor (1999), ainda que muitos criadores tidos como minimalistas renegassem tal classificação é
evidente que, entre os anos de 1963 e 1965, surgem na cidade de Nova York um número relevante de artistas
independentes que passam a exibir obras tridimensionais, focadas em uma materialidade desumanizada, que
propiciava o reconhecimento de algo que se assemelhava a um movimento artístico.
33
Foi a expansão para o sítio ao redor que permitiu que artistas não apenas se
adequassem ao lugar, mas imprimissem uma crítica à questão urbana, intervindo na cidade.
Superando a noção tradicional de site-specific, no que tange à abordagem dos espaços urbanos
enquanto ambientes estéticos, é possível constatar o surgimento de obras capazes de criar
relações entre urbanidade e cultura, considerando a dimensão institucional, econômica e
política dos espaços (PEIXOTO, 2002).
Assim, criações como Tilted Arc, de Richard Serra, de 1987, constituem mais do que
uma adequação da obra de arte ao espaço urbano. Ao instalar uma grande placa de ferro na
Federal Plaza em Nova York, Serra gerou protestos de transeuntes que argumentavam que a
obra dificultava o tráfego pela região. Ao mesmo tempo, o artista argumentava que, por ter
sido elaborada para aquele lugar, removê-la simplesmente e instalá-la em outra parte da
cidade equivaleria à sua destruição. A obra acabou sendo retirada. Mas se inscreveu na
história como exemplo de arte pública que agregava a cidade em suas dimensões relacionais
(culturais, subjetivas, etc.) e não apenas físicas.
bairro onde ela vive, Ciudad Vieja, cuja identidade não consegui revelar. A própria Ivana me
levou a conhecer suas intervenções, que consistem na substituição de pequenos pavimentos
antigos deste bairro centenário por peças de cerâmica colorida. Também nesta intervenção é
possível reconhecer um ocultamento da figura do autor, que propõe uma nova atenção para
algo conhecido.
Intervenção realizada por artista desconhecido no calçamento do bairro Ciudad Vieja, em Montevidéu.
Fonte: Fotos minhas.
35
Intervenção realizada por artista desconhecido no calçamento do bairro Ciudad Vieja, em Montevidéu.
Fonte: Fotos minhas.
Se no período moderno a cidade foi pensada na sua dimensão de função, hoje ela se
inscreve numa dimensão de existência, em que as artes visuais têm participação
ativa nesta nova condição. A arte que existe nos espaços públicos não se constitui
como produto (não lida com as questões de compra ou venda), mas como objeto de
consumo, contudo, de algo já consumido, uma vez que já faz parte do organismo da
cidade. A indiscernibilidade entre a obra de arte pública e o espaço urbano (sua
dissolução no espaço), revela a própria estrutura espacial contemporânea, em que
não existe a distinção entre os espaços interno e externo, individual e coletivo,
privado e público. A arte nos espaços públicos é, simultaneamente, meio de reflexão
e lugar. (CARTAXO, 2009, p.15).
Nesta perspectiva, estes dois artistas uruguaios contribuem com a construção da cidade
ao tecerem relações entre urbanidade e arte, borrando as fronteiras entre áreas do
conhecimento, bem como entre os espaços públicos e aqueles destinados às instituições
artísticas.
36
Independente da área à qual se aplique, a expressão I.U. se relaciona com duas noções
fundamentais: a de intervenção, ou seja, de ações que interferem em algo preexistente,
redefinindo funcionalidades, formas de uso, de ocupação e instaurando transformações ou
reações no plano físico, intelectual e sensorial; e a de urbanidade, que diz respeito à cidade, à
sociedade urbana, tida comumente como um contraponto à noção de sociedade rural (ITAÚ
CULTURAL, 2012).
Para Farías (2002), a palavra cidade possui uma variedade ampla de interpretações
possíveis. Na atualidade, é tida comumente como um contraponto à noção de campo, ao
modelo de vida rural; pode também ser compreendida como área onde uma instituição possua
sua base territorial, o espaço onde o poder é exercido por esta instituição, uma área delimitada
para levar a cabo funções políticas, administrativas e econômicas. A cidade ainda corresponde
a um conjunto de pessoas - em suas interrelações com o espaço - e a um sistema simbólico,
que confere uma imagem, uma identidade a determinado agrupamento humano. A produção
de identidade por este sistema simbólico, por sua vez, é o que pode conferir um sentido de
lugar para determinada população. Assim, torna-se necessário fazer esta distinção entre dois
termos básicos: espaço e lugar. Para o geógrafo chinês Yi-Fu Tuan, “o que começa como
espaço indiferenciado se transforma em lugar à medida que o conhecemos melhor e o
dotamos de valor” (TUAN, 1983, p.6). As definições de espaço e lugar, assim, se dão na
relação de um com o outro. Se o espaço se abre como amplitude possível, o lugar surge como
algo estável e seguro. Portanto, a cidade pode ser - além de um espaço dado - um lugar
específico.
Ancoro-me em Lefebvre (1999) para associar a noção de urbanidade à de sociedades
pós-industriais. Este autor aponta para o risco de haver uma generalização no emprego da
expressão sociedade urbana, que acaba por abarcar diferentes tipos de sociedades em
distintos momentos históricos. Reserva seu uso para definir sociedades pós-industriais que,
em sua hipótese, caminham para um processo de urbanização completa. Estas absorvem a
produção agrícola - que em outros momentos representou o setor principal da economia - e a
transformam em mais um setor da produção industrial. Assim, o predomínio da cidade se
impôs ao modo de vida camponês, constituindo um tecido urbano que extrapola o formato
37
das estruturas edificadas. Tecido presente, por exemplo, nos supermercados e rodovias
existentes em pleno campo.
Em tais sociedades, pequenas e médias cidades se tornaram extensões das metrópoles,
que cresceram a ponto de ser difícil mensurar seu tamanho. Esta mudança de eixo resultou na
produção de um pensamento que não se identifica com a natureza. O que emergiu desta
mudança foi um logocentrismo, um racionalismo (a exemplo do legado de Descartes 13) que
tem a ideia de cidade como centro.
Harvey (2011) reconhece como produto deste logocentrismo - que tinha no
desenvolvimento tecnológico um aliado para a libertação da humanidade de seus grilhões, tais
como a escassez de alimentos e o dogmatismo religioso - os planos arquitetônicos de larga
escala, de alcance metropolitano. Sintonizada com o pensamento iluminista 14, a urbanidade
moderna surge como um desejo por elaborar soluções racionais para a sociedade, propondo a
normatização da vida.
A transformação da paisagem urbana na modernidade também situou a cidade no
centro do imaginário dos artistas da vanguarda europeia do início do século XX. O
desenvolvimento das vanguardas artísticas (tais como o Surrealismo ou o Dadaísmo) está
intimamente relacionado ao surgimento das metrópoles. Esta relação se evidencia nas
referências ao ritmo e à velocidade, que, por sua vez, animaram a maquinaria deste novo
cenário de controvérsias sociais. A criação de tais artistas por muitas vezes alcançou o espaço
público em busca de um contato mais direto com a realidade. Ao transpor os limites
arquitetônicos dos museus, teatros, escolas e outros espaços delimitados, este tipo de
produção estética buscou reconstruir a relação arte-vida, tão desgastada pelos sistemas de
institucionalização de arte, assim como esteve relacionada a um projeto utópico que apontava
para o ideal de um novo ser humano (ALONSO, 2000). A esse respeito corrobora Santaella:
O espírito das vanguardas, seu dínamo, era utópico por natureza. As vanguardas
eram alimentadas pela impetuosidade indômita e heroica do desejo de transformar o
mundo, marcá-lo com a insígnia do poder da arte. Por trás do desfile incessante de
"ismos", aninhava-se a busca por um mais além, busca impulsionada pela aposta no
projeto da modernidade que queria se ver cumprida. O caráter explícito dessa busca
13
“Descartes destacava a Razão humana como suprema autoridade em questão de conhecimento, capaz de
distinguir a verdade metafísica segura e de obter a segura compreensão científica do mundo material”.
(TARNAS, 2005, p.302).
14
“A utopia iluminista é a de uma ética fundada na razão, voltada para a felicidade, capaz de julgar e criticar o
existente, e tendo como telos uma comunidade argumentativa sem fronteiras, em que a igualdade não signifique
nivelamento e em que a universalidade não leve a dissolução do particular”. (ROUANET, 1992, p.162).
38
fica evidente na atração dos futuristas pela máquina e pelos ritmos de vida por ela
determinados. Também nas tentativas do construtivismo russo de convergir a arte na
vida através de novas formas imaginativas e na busca de um design rigoroso na
Bauhaus para tornar a vivência cotidiana mais convidativa. (SANTAELLA, 2009,
p.136).
avançado. Segundo tal lógica, não é viável lidar com o caos e a fragmentação de forma
racional. Assim, torna-se inadequada qualquer representação unificada de mundo.
Abandonando toda noção de continuidade histórica, o pós-modernismo apresenta fragmentos
distintos do passado e os reordena enquanto aspectos do presente, dando descrédito à
profundidade e ênfase à dimensão efêmera da vida. Mais especificamente em relação ao
campo da arquitetura e do projeto urbano, o autor identifica como cultivo do pensamento pós-
moderno:
Arquitetura e arte se aproximam cada vez mais à medida que o projeto moderno de
produção de um espaço urbano planejado, de aspecto funcional, declina. É neste contexto que
artistas contemporâneos irão propor criações que já não cabem no espaço fechado das
instituições (museus, teatros, galerias, etc.), comprometidos que estão com a reflexão sobre o
papel da arte em relação à vida nas cidades. A arte, ao se lançar na cidade, extrapola o campo
estético para tocar a vida. Assume uma postura interdisciplinar ao cruzar com outras áreas de
conhecimento e intercala a dimensão poética com a política. É na perspectiva desta
interrelação que se desenvolve o próximo capítulo.
42
A palavra poeta provém do grego e significa “aquele que faz”. Pignatari (2004)
defende a noção de trabalho poético como algo associado diretamente à produção de
linguagem. Para ele, o poeta não trabalha apenas com temas, antes disso está “sempre criando
e recriando linguagem. Vale dizer: está sempre criando o mundo” (PIGNATARI, 2004, p.11).
Esta noção de produção poética possui similaridade com a compreensão de Deleuze (1997)
sobre a escrita, para quem esta não apenas se vale de elementos estabelecidos (como a
linguagem) para impor uma forma de expressão. No entendimento do autor, a escrita se
configura como devir, processual e inacabado, no projeto inconcluso de construção de si. O
devir se afasta da forma e adentra o campo da indistinção. Diferente de um gesto mimético, a
literatura:
Este impessoal faz parte de um projeto poético que busca “inventar um povo que falta”
(DELEUZE, 1997, p.14). Não um povo invocado para estabelecer-se como dominador, mas
outro, revolucionário, bastardo, resistente às formas de dominação. Entendo o processo de
intervenções artísticas na cidade como uma escrita poética que, mais do que contradizer o
discurso dominante, marca a existência de singularidades na paisagem, cria possibilidades de
ser e de estar no espaço público e atinge uma dimensão política.
Creio que esta dimensão política necessita de uma reflexão mais pormenorizada,
sobretudo pelo risco do uso do termo, cujo desgaste e presença constante em nosso
vocabulário pode gerar confusão. Opto por desassociar a potência política de determinadas
criações artísticas da tematização ou representação de assuntos e conflitos sociais. Para Babias
43
(2009), por repetidas vezes, movimentos vêm tentando mudar as relações sociais de forma
radical ancorados na noção de luta de classes. Contudo, no século XX, a perda de fé nos
regimes socialistas ajudou a enfraquecer a noção de trabalhador enquanto sujeito
revolucionário. Para o autor, os sindicatos que representam esta classe social decidiram há
muito cooperar com o sistema capitalista. Ao mesmo tempo, movimentos sociais que
representam minorias (mulheres, negros, gays, entre outros) parecem ter contribuído muito
para o fortalecimento de direitos políticos da população.
Guattari e Rolnik (2008) falam dessas minorias enquanto forças que escapam ao
modelo político dominante. São potências que, quando não cooptadas pelo sistema capitalista,
abrem espaço para a existência de devires diversos. Diferente de impor um discurso de
unidade e hegemonia, não promovem uma luta por identidade, mas pela fluência. Não dizem
respeito a projetos macropolíticos, não se propõem a mudar a sociedade enquanto unidade
constituída, mas a contribuir com a construção de novas subjetividades, alternativas à
padronização do sistema. Neste contexto, a produção artística também pode ser compreendida
como uma forma de ação política da pós-modernidade, que reforça a produção de processos
de singularização, numa recusa de modelos padronizados de formação de subjetividade em
detrimento a uma outra sensibilidade mais singular, pois:
batalha no campo cultural e não mais político-partidário. Este é o caminho adotado pelas
intervenções artísticas que promovem uma politização do cotidiano.
Bauman (2003) fala dos centros urbanos atuais enquanto ambientes nos quais a
impessoalidade, a fugacidade dos encontros, a competição profissional, a velocidade da
disseminação de informações - que já não dependem do corpo presente do seu transmissor
para se efetivar devido aos avanços tecnológicos, especialmente no que tange à questão da
informática - nos destituíram da experiência de comunidade. Em seu entendimento, tal
experiência acompanhou a humanidade desde os seus primórdios e é responsável pela
sensação reconfortante de aceitação por um grupo específico. Podemos falhar, mas temos na
nostálgica noção de comunidade um alento, a certeza de que não estamos sós e de que
podemos ser compreendidos.
Essa compreensão, contudo, não se dá de forma racional. É como um acordo
silencioso entre as pessoas que se propõem a compartilhar o ônus e os benefícios deste
convívio íntimo. Contudo, para que a comunidade se efetive, torna-se inevitável uma tensão
entre a liberdade de escolha de seus membros e a segurança da partilha apenas entre aquelas
pessoas que pertencem a este grupo. Em outras palavras, a comunidade depende da distinção
clara entre os que fazem parte dela e os estrangeiros.
O autor mostra como, a partir da revolução industrial, houve uma separação entre o
ambiente familiar, do lar, e o local de trabalho, mais impessoal, frio e competitivo. Desde
então o sistema capitalista propõe a substituição do entendimento natural da comunidade -
enquanto acordo silencioso entre seus membros - por uma rotina artificialmente imposta,
forjando um espírito dissimulado de comunidade dentro de estruturas rígidas de poder. Neste
cenário, a identidade individual surge com força, pois este sistema ressalta a ideia de que
qualquer um pode ser alguém de sucesso, desde que seja eficiente. Mas, mesmo neste caso,
podem existir situações em que os indivíduos estabeleçam relações e configurem
comunidades temporárias.
Ações artísticas no espaço urbano, principalmente aquelas que não estabelecem
formas mais tradicionais de relação com a audiência e estimulam a interação entre público e
artistas, têm a capacidade de promover pequenas comunidades temporárias na cidade.
Carreira (2009a) fala sobre práticas teatrais de ocupação do espaço público enquanto forças
lúdicas capazes de estimular os cidadãos a exercer papéis inesperados, a experimentarem
novas possibilidades de relacionamento entre si e com o restante dos habitantes. Isto não
45
funciona apenas como intromissão, mas como sugestão para comportamentos que extrapolam
a lógica estreita de ocupação da cidade:
Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder,
é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é o conflito para
determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que
participam ou não delas, etc. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os
tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela
determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos
objetos, do privado e do público, das competências e das incompetências, que define
uma comunidade política. (RANCIÈRE, 2010b, p.46).
Esta fala nos dá uma noção de política da arte que se afasta do modelo de trabalho
artístico enquanto ferramenta para disseminação de mensagem de cunho político. Conforme
aponta Lehman (2003), em sua análise sobre o teatro que denominou por pós-dramático - por
fugir da estrutura do drama tradicional -, a dimensão política não diz respeito à temática, ao
assunto eleito para ser refletido pela obra de forma reacional. Antes disso, diz respeito ao
impacto que provoca na percepção geral da população, habituada a padrões de construção
estética um tanto previsíveis, sobretudo pelo condicionamento a que foi submetida pela
cultura de massa e outras estruturas de poder vigente.
46
No período em que estive na Espanha, entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012, por
conta de um intercâmbio com a Universidad de Granada, entrei em contato com grupos que,
cada um a seu modo, estabeleceram uma curiosa relação entre arte e micropolítica. Refiro-me
à FAAQ, da cidade de Granada, Vulgarisarte e Intervenciones em Jueves, de Sevilha.
O nome FAAQ remete à FAQ (um acrônimo da expressão inglesa Frequently Asked
Questions, que significa perguntas mais frequentes), acrescido de um “a”, que remete ao
projeto Aulabierta, no qual os integrantes de FAAQ se conheceram. Em seu site15, é
apresentada a seguinte descrição:
Formada pelo artista Pablo P. Becerra e pelos arquitetos María García e José Daniel
Campos, FAAQ possui raízes em Aulabierta - um projeto que surgiu na Faculdade de Belas
Artes, no ano de 2004, pela iniciativa de alguns estudantes de arquitetura e outras áreas que
planejaram um espaço físico para trocar experiências e estudar processos de criação coletiva.
Insatisfeitos com o modelo pedagógico proposto pela Universidad de Granada, no qual
a instituição criava planos de estudos que eram aplicados por professores aos alunos, estes
estudantes decidiram propor uma nova possibilidade. Invertendo a lógica vigente, propuseram
um modelo no qual os próprios estudantes, com a ajuda de colaboradores, desenvolveram
planos de estudos sobre temas pelos quais tinham interesse, mas que não eram contemplados
no plano de ensino da universidade.
Em pouco tempo o grupo consegue autorização para reciclar o material de um edifício
semi-industrial e abandonado que seria demolido pela própria universidade. Articula-se para
conseguir a liberação de um terreno, também pertencente à universidade, para construir o
espaço de encontro. Convida um arquiteto chamado Santiago Cirugeda, que trabalha com o
15
http://FAAQ.info/
47
Figura 6 – Aulabierta 1
Figura 7 – Aulabierta 2
O que passa com este projeto é que, por final, você acaba habitando um contexto...
concreto... ao final de muito tempo trabalhando assim se estabelece uma relação que
não se trata só de fazer uma intervenção e sair... senão uma relação mais dilatada no
tempo, mais cuidada [...] É um pouco trabalhar com o tecido cultural do bairro, sem
subestimar o que fazem. Levando a sério, como cultura. (MARÍA GARCÍA).
16
Mais informações sobre o projeto Open-Remolque estão disponíveis em http://openremolque.net/
50
Figura 8 - Open-Remolque
Convite distribuído para a comunidade do Bairro Norte, em Granada, com algumas explicações sobre o projeto.
Fonte: http://Aulabierta.info/
O que é dramático no militantismo é o fato de ele ter uma função religiosa, uma
função de eternidade. As pessoas se engajam numa estrutura de organização
pensando que estão se investindo de uma espécie de maná, de potência religiosa, de
numem. Reificam-se exatamente como em qualquer igreja que promete a salvação
através dos simples fato de se aderir ao seu ritual. É essa ideia que permeia todas as
organizações do mundo. Mas as coisas mudam a partir do momento em que fica
claro que são contratos precários, provisórios, passíveis de revisão, e que a História,
de qualquer maneira, os fará desaparecer, retomará os problemas em outros termos e
51
Nos pareceu um conceito que se contrapõe com o elitismo da arte, não? O que
fizemos foi usar este conceito para desmistificar a arte. (ALEJANDRO PENA).
cartazes com a imagem da Mona Lisa, pintura de Leonardo da Vinci, numa adaptação que faz
com que a mesma se pareça com o símbolo utilizado para sinalizar o perigo pela existência de
veneno. Além disso, a imagem feminina retratada pelo pintor renascentista surge aqui usando
um nariz de palhaço. Trajando uniformes que remetem à figura de pintores de parede da
construção civil, os interventores colam cartazes pela cidade divulgando seus serviços com os
respectivos preços, enquanto uma voz, amplificada por um megafone, anuncia que o artista
moderno chegou àquele bairro.
Panfleto distribuído pelos artistas durante a intervenção El artista moderno há llegado a su barrio.
Fonte: http://Vulgarisarte-Vulgarisarte.blogspot.com.br/
Ao ouvir Alejandro falar sobre a noção de vulgaridade, foi inevitável fazer relação
com o conceito de minoração que Deleuze (2010) apresenta ao analisar a obra do encenador
Carmelo Benne. Para o autor, diferente de uma lógica maiorativa - cuja proposição é a de que
“de um pensamento se faz uma doutrina, de um modo de viver se faz uma cultura, de um
acontecimento se faz História” (DELEUZE, 2010, p.36) - o artista italiano apresenta uma
possibilidade de minoração, de liberar especificidades contra generalizações. Reconheço no
trabalho do Vulgarisarte este desejo por minorizar o status do artista enquanto detentor de um
saber muito valorizado no mercado de arte. O que El artista moderno há llegado a su barrio
faz é, inversamente, questionar esta lógica estabelecida, de maneira lúdica.
Durante a entrevista com Alejandro soube da existência de outro coletivo chamado
Intervenciones en Jueves, que me deixou muito instigado. Composto por alguns membros em
comum com o Vulgarisarte, o Intervenciones desenvolveu um interessante trabalho junto a
um território da cidade de Sevilha, mais especificamente uma praça onde existe uma antiga
feira de objetos usados.
54
18
Mais informações podem ser obtidas em http://intervencionesenjueves.blogspot.com.br/
55
Intervenção musical no mercado de objetos usados, dentro do projeto Intervenciones em Jueves, em Sevilha.
Fonte: http://www.flickr.com/photos/yervajo/4447431015/
O que me chama a atenção nos trabalhos destes dois coletivos, sobretudo em Open-
Remolque e nas ações no mercado de Sevilha, é a sua capacidade de congregar a população do
entorno onde ocorrem para participar destas intervenções. Desencadeia-se, assim, uma
56
potência política por meio de proposições poéticas (e lúdicas) no tecido urbano - efetivada no
agenciamento dos interesses diversos dos indivíduos que compõem a trama de relações
existentes em cada trabalho - sem que haja uma tematização de assuntos políticos, de forma
militante ou explícita.
Nació como respuesta a un momento político determinado. Surge por una necesidad
inconsciente de forjar una identidad generacional y como reacción ante esta cultura
invadida por las reglas del neoliberalismo tan fuertemente acentuado durante la
década de los ’90. (GUZMAN & ZUKERFEL, 2007, p.1).
o coletivo se consolidou quando, no ano 1998, seus integrantes decidiram ocupar uma casa
abandonada para instalar sua sede. Por um acaso absoluto, esta mesma casa foi propriedade
do artista Juan Andralis, que na década de 1950 fez parte do grupo surrealista liderado por
André Breton, em Paris, tendo recebido deste a missão de voltar à capital argentina para
montar uma editora que traduzisse e publicasse textos surrealistas.
Na casa antiga os membros do coletivo encontraram muito material traduzido para o
espanhol, bem como puderam entrar em contato com a obra do próprio Juan Andralis, o que
lhes influenciou profundamente. Sobretudo quanto ao interesse na relação arte-vida e suas
implicações, tanto sociais e políticas quanto oníricas e lúdicas. Montaram um laboratório de
arte, uma sala de teatro e uma biblioteca neste espaço que ocuparam durante dez anos.
Outro fator marcante na trajetória deste coletivo reside no fato de terem trabalhado
com o movimento H.I.J.O.S. (Hijos y Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el
Silencio) - que reúne filhos de desaparecidos e exilados durante a ditadura argentina - em sua
luta pela defesa dos direitos humanos. O Coletivo Etcétera atuou junto ao movimento
H.I.J.O.S. de 1998 a 2000 na organização de escraches, nome utilizado na Argentina para
qualificar um tipo de manifestação pública que visa denunciar militares que cometeram
assassinatos ou torturas durante a ditadura militar do país e que não foram condenados por
seus crimes.
A parceria entre o Etcétera e o H.I.J.O.S. começou em 1998 e teve duração de dois
anos. No primeiro ano de parceria, pelo menos seis escraches foram realizados. Neles,
membros do coletivo artístico se fantasiavam de militares e satirizavam a figura dos
envolvidos em crimes contra os direitos humanos. Também confeccionavam máscaras e
organizavam sua distribuição entre os manifestantes, com o objetivo de proteger sua
identidade contra a repressão policial. Além disso, distraíam a atenção da polícia durante a
ação.
Federico esclarece que estes escraches tinham por objetivo promover a exposição
da figura destes militares, para que a vizinhança soubesse de suas ações e ajudasse a não
permitir que seus crimes caíssem no esquecimento. Com o tempo, os escraches deixaram de
ser usados apenas neste contexto e passaram a ser aplicados também em denúncias de
corrupção política, por exemplo.
Se, por um lado, o Etcétera contribuía com a elaboração de performances teatrais
junto ao H.I.J.O.S., este, por sua vez, fornecia material para o desenvolvimento de seu
58
processo artístico. Assim, atuando em diferentes linguagens (literatura, teatro, artes visuais,
etc.), o coletivo manteve esta característica de relacionar questões sociais à sua produção
estética. Por conta disso, seu trabalho foi muito associado à noção de artivismo, nomenclatura
adotada para classificar ações artísticas de cunho político, militante.
Segundo Mazetti (2008), a luta social contra forças opressoras sempre se valeu de
recursos simbólicos, estéticos e culturais. Contudo, em relação às manifestações
contemporâneas, no que tange a protestos anticapitalistas - caso da emblemática manifestação
contra o encontro da Organização Mundial do Comércio, em Seattle, no ano de 1999 - o autor
assinala a necessidade de não serem repetidas estratégias já sedimentadas de protesto por
coletivos da atualidade. Deste modo, “as modalidades comunicativas, colaborativas e
expressivas tornam-se, em si mesmas, práticas de resistência, capazes de estabelecer novos
arranjos subjetivos, novos modos de ser e estar no mundo”. (MAZETTI, 2008, p.106).
Manifestações artísticas surgem, neste contexto, como práticas ativistas de resistência.
Contudo, relacionar tais práticas a uma linguagem específica pode ser problemático. É muito
grande a diversidade de suportes, linguagens, formas de expressão, o que dificulta tal
generalização. Sobre este tipo de manifestação no Brasil, é possível considerar que:
Loreto renega o termo artivismo, porque acredita que o que o Etcétera faz é arte e o
problema é que parte dos artistas simplesmente se alienou de questões sociais para
experienciar questões estéticas como se estas fossem isoladas da vida política. Considerando
isso, não só artistas são convocados para participar das ações de I.U. promovidas pelo
coletivo.
59
Figura 13 – Mierdazo
19
Há um vídeo com registros desta intervenção disponível em: http://www.youtube.com/watchv=
8P652aVnmH8&playnext=1&list=PL6903A41D939F5510&feature=results_video
60
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se
apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido
diretamente tornou-se uma representação. (DEBORD, 1972, p.8).
Não faça TP para outros artistas, faça-o para pessoas que não perceberão (pelo
menos por alguns momentos) que o que acabaste de fazer é arte. Evite categorias
artísticas reconhecidas, evite a política, não fique por perto para discutir, não seja
sentimental; seja impiedoso, corra riscos, vandalize apenas o que precisa ser
desfigurado, faça algo que as crianças lembrarão pelo resto da vida - mas só seja
espontâneo quando a Musa do TP tenha te possuído. Fantasia-te. Deixa um nome
falso. Seja lendário. O melhor Terrorismo Poético é contra a lei, mas não seja pego.
Arte como crime; crime como arte. (BEY, 2003, p.7).
A poética que constitui esta proposta pode se configurar como desobediência civil,
mas isso não reduz seu compromisso político de alterar drasticamente as relações no tempo e
no espaço da cidade, configurando um processo de singularização que é o que caracteriza as
micropolíticas pós-modernas. Ao jogar com os elementos que remetem às práticas terroristas
(armas de papelão, roupas, acessórios) sem se valer de violência física, os Erroristas geram
um confronto de dimensão simbólica e subjetiva, causam confusão e desestabilizam a
aparente normalidade do lugar.
Outra ação marcante dos Erroristas foi La Bicentenar Errorista...200 años de error,
uma anticomemoração do bicentenário da independência da Argentina. Satirizando a onda de
comemorações de nações latino-americanas que festejaram há alguns anos os dois séculos de
libertação do domínio espanhol, La Bicentenar Errorista consistiu numa série de
manifestações pelas ruas de Buenos Aires entre os dias 23, 24 e 25 de maio de 2010. Vestidos
de colonizadores espanhóis, índios, reis, entre outras figuras icônicas, a ação evidenciava o
quanto persiste uma cultura colonialista em épocas de capitalismo avançado.
63
Para Mazetti (2006), o foco de grande parte das I.U. é o processo comunicativo,
criando um ruído entre o emissor e o receptor, que muitas vezes absorve passivamente um
bombardeio de informações advindas de mecanismos midiáticos, como os telejornais ou os
anúncios publicitários:
tradicional, de conscientização das massas. São gestos poéticos cuja dimensão política reside
mais no seu caráter lúdico do que numa proposta pedagógica.
Muitas de suas I.U. configuram uma performatividade que permeia a representação.
Ao se vestirem como terroristas, reis, mendigos - ainda que sem configurar um espetáculo -
estariam os membros do coletivo flertando com práticas teatrais, nas quais a representação é
uma constante? Quando interagem artisticamente junto a alguma mobilização social, estariam
atuando como colaboradores de práticas estéticas ou cidadãs? Caballero (2010) nos fala de
práticas cidadãs enquanto ações que comportam dimensões teatrais e políticas,
simultaneamente. Para a autora:
A autora ainda comenta que Elisabeth Finter (2003) corroborou com seus achados ao
observar os panelaços argentinos, pois estes “falam-nos a partir de ‘um outro lugar’, que ‘não
é o das artes nem tampouco da realidade pura’” (CABALLERO, 2010, p.145). Tamanha
hibridação assinala a teatralidade para além do campo artístico e aponta a cultura como
terreno fértil para embates outrora restritos às lutas de classes e às esferas político-partidárias,
macropolíticas.
Identifico nos trabalhos realizados pelos coletivos FAAQ, Vulgarisarte, Intervenciones
en Jueves e Etcétera esta capacidade de mesclar arte e política. Através da poetização do
espaço público (performances, instalações, representações, práticas lúdicas) e da politização
não necessariamente temática da experiência estética (participação ativa de uma determinada
comunidade, minoração do status da obra de arte e do artista, projetos estéticos que não
deixam claro o limite entre a realidade e a ficção), estes coletivos transbordam os limites da
noção de arte enquanto experiência meramente contemplativa e teatralizam o real.
Sobre esta relação possível entre as práticas de I.U. e a teatralidade é que se
desenvolve o próximo capítulo.
65
Fiquei interessado em participar desta oficina por sua proposta de interação entre os
conceitos de performatividade e teatro, associados à noção de I.U. Contudo, a dimensão do
teatral aqui descrita ressalta uma diferença em relação ao modelo de espetáculo. Esta
possibilidade de expansão da noção de teatralidade tem sido refletida por pesquisadores como
Caballero (2010), para quem, mais do que questionarmo-nos sobre a natureza de algo
especificamente teatral, devemos considerar as transformações evidentes sofridas pelo teatro.
Ao considerar tais transformações, teríamos necessariamente que nos debruçar sobre a
questão da representação como elemento participativo de diversas linguagens artísticas e da
própria vida. A representação não como antônimo da realidade, nem como ponte entre
verdade e substituição, mas como dispositivo capaz de comportar a presença. Presença esta
20
Mais informações sobre a Cia. Rústica estão disponíveis em: http://Ciarustica.com/
66
não apenas na dimensão física, mas enquanto “o ser posto aí” (CABALLERO, 2010, p.139).
Neste sentido:
que determina si una situación tiene teatralidad o no. Esta perspectiva está
determinada por convenciones sociales, no únicamente por el teatro, sino también
por la cultura en general.[...] Se muestra entonces que la teatralidad es un común
denominador para el teatro y para la cultura, determinado por la percepción del
sujeto. (FÉRAL, 2003, p.35).
Não há prática invasiva que funcione se os vetores da cidade não puderem atuar
como forças decisivas na gestão do acontecimento cênico. O espetáculo invasivo
será plástico para aceitar os ajustes dramatúrgicos que resultam do diálogo com o
imprevisível da cidade. O ator será uma ferramenta central desse processo porque
media não apenas a atenção do espectador, mas também a estrutura a própria
condição de espectação operando na intensificação da teatralidade do urbano até o
estabelecimento daquilo que seria especificamente teatral. O ator da rua intervém
nas dobras do cotidiano buscando a manifestação do plano ficcional que vai além do
projeto do espetáculo. (CARREIRA, 2009b, p.09).
Ainda que Desvios Urbanos tenha o mérito de estabelecer relações imprevisíveis com
a cidade, o fato das ações coletivas já terem sido realizadas anteriormente pelo núcleo de
artistas do grupo, a exigência de que tais ações fossem preservadas e reproduzidas pelos
alunos da oficina sem alguma reflexão mais profunda sobre sua necessidade, seu
funcionamento, me remeteu a práticas teatrais mais ortodoxas quanto à relação hierárquica
entre diretor, atores e texto.
69
Faz sentido que uma ação que se proponha a interferir na silhueta urbana se mantenha
fechada para interferências internas, dentro da equipe de criação? Tamanha rigidez não estaria
sendo ignorada neste projeto de repensar os procedimentos cênicos na rua, conforme
anunciado pela oficina? Qual o papel do ator, do performer, daquele que empresta seu corpo,
sua subjetividade para participar de um processo que se pretende colaborativo?
Ainda que seja passível de críticas no que diz respeito ao método de trabalho, Desvios
Urbanos me pareceu ser capaz de instigar os transeuntes a imprimirem sua leitura sobre o que
presenciavam. Esta experiência me fez lembrar de Gambiarra, trabalho do E.O. que teve sua
primeira apresentação no festival Explosion de Arte Callejero, na cidade de Santiago (Chile),
em 2008 e recebeu o Prêmio Artes Cênicas na Rua 2009 (Funarte/MINC), por conta do qual
realizou 10 apresentações no mês de julho de 2010, na cidade de Curitiba.
Quando apresentada no Chile, Gambiarra constituiu-se como teatro de rua no sentido
mais convencional. Em um local específico era mantida uma roda dentro da qual trabalhavam
os atores, guiados por uma dramaturgia textual, o que exigia a amplificação das suas vozes.
Enfim, o lugar do espectador, dos atores, a área de atuação, eram definidos com clareza.
Arrisco afirmar que se mais fácil, nesta primeira etapa do trabalho, localizar o “tema” do
espetáculo.
A palavra que dá título à obra possui, como significado mais comum no Brasil, a
noção de improvisação (BOUFLEUR, 2006), ainda que hajam definições como a de uma
lâmpada instalada na extremidade de um comprido cabo elétrico para poder ser utilizada
numa área relativamente grande (FERREIRA, 2009). Ambas as definições consideram na
estrutura da gambiarra a ideia de adaptação. Apropriando-se deste conceito e o articulando à
noção de antropofagia enquanto traço cultural - refiro-me aqui ao legado do modernismo
brasileiro ao refletir sobre nossa falta de tradição somada ao interesse pelo outro - o
espetáculo de rua apresentado no Chile criava pontes entre a noção de gambiarra e a cultura
brasileira.
Éramos movidos, neste momento, pelo desejo de discutir nossa imagem como país
numa obra artística realizada na rua. E a rua, aqui, era uma escolha que visava, sobretudo,
ampliar essa discussão; atingir uma população que, por muitas vezes, não chega a entrar em
uma sala de teatro. Contudo, a questão formal, para além de motivações ideológicas, passou a
ter maior peso na medida em que fomos conscientizando-nos do quanto as escolhas estéticas
do grupo pareciam estar defasadas em relação às suas motivações, já que estas tinham relação
70
com a percepção do espetáculo. Um problema próximo do que é descrito por Carreira (2001)
em sua referência ao discurso dos grupos de teatro de rua na América Latina:
A partir do final dos anos 70, o desequilíbrio entre a missão social e política e a
reelaboração de linguagens teatrais condenou muito desses grupos à perda de
referencial artístico e à defasagem com a época. É interessante observar que esses
grupos, em sua maioria, não propunham uma ampliação e transformação dos
sentidos dos espaços urbanos, senão uma adaptação do discurso teatral às condições
sociais e físicas da rua, preocupados quase exclusivamente com o nível temático dos
espetáculos. Consideravam o espaço da rua apenas no nível dos objetivos políticos
como lugar de encontro com o público. (CARREIRA, 2001, p.44).
Há um videoclip que registra esta última versão da obra disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=
21
QLebkgQIWF4
71
invadiam um espaço cuja arquitetura não foi construída para receber ações artísticas e, como
reação, por diversas vezes, o público também invadiu a performance e interagiu de diversas
formas: dançando, gritando, manipulando os materiais, etc.
Convidar a cada dia diferentes artistas para interferirem na ação, sendo estes não
pertencentes ao E.O. e que trabalham com linguagens diversificadas, também foi uma
mudança muito significativa neste processo. Isso tornou imprevisível o resultado (que já
possuía uma dimensão de imprevisibilidade, devido às diferenças espaciais entre um local e
outro da ação e ao público flutuante com o qual lidava). Os convidados apenas encontraram o
grupo no dia da ação e foram instigados a interferirem no trabalho dos atuantes que, por sua
vez, buscavam assimilar aquela interferência e devolvê-la em reação criativa. Isso fez com
que nenhum dia de ação fosse igual ao outro.
Figura 17 – Gambiarra 1
Figura 18 – Gambiarra
2
Intervenção Gambiarra, realizada em 2010, em Curitiba.
Fonte: foto de Emanuel Peixer.
Figura 19 – Gambiarra 3
O que resultou dessas alterações no projeto inicial de Gambiarra foi uma maior
fluidez, tanto por parte dos transeuntes que interferiram mais na ação quanto por parte dos
atuantes, que assumiram uma postura mais estratégica em relação ao espaço. Se antes o
trabalho era entendido pelo grupo como uma prática de teatro de rua, aos poucos ele foi sendo
denominado de I.U., como forma de marcar estas diferenças entre uma prática e outra.
Contudo, reconheço hoje, na distância crítica advinda com o tempo, que as duas formas de
agir possuem muitas coisas em comum.
Ainda que possuam claras distinções em relação às suas estruturas, tanto a I.U. quanto
o teatro de rua acabam tendo pontos comuns na maneira como se relacionam com os mesmos
elementos: a cidade e o citadino. Conforme a ideia apresentada no primeiro e no segundo
capítulo desta dissertação, podemos considerar a hipótese de que a I.U., enquanto modalidade
artística, possui uma origem ligada à tradição vanguardista do início do século passado com o
acréscimo de ter abandonado, grosso modo, grandes projetos utópicos em detrimento de
micropolíticas de singularização. Em relação à expressão teatral, a ocupação do espaço
público remonta a uma tradição possível, proveniente de um período anterior ao confinamento
da cena à arquitetura das salas de espetáculo. Se nos propusermos a uma análise da história do
teatro ocidental, conforme afirmam Cruciani e Falletti (1999), será possível notar o quão
restrito é o período regido pelo edifício teatral. Segundo os autores:
Teatro faz-se nos mercados, nas feiras, nos espaços de congregação da comunidade;
faz-se nas igrejas, nos lugares de culto, nos adros das igrejas; nas praças, nas ruas,
nos quintais, nos jardins públicos; etc. Aos locais de representação substitui-se (e
nunca totalmente) o específico espaço do teatro somente em algumas seções
(cronológicas e culturais) da história das civilizações. Existiu um “gênero” de
espetáculo, como a entrada triunfal, que fazia da cidade teatro; existiram, desde
sempre e em todo lugar, os espetáculos ligados à multidão dos mercados.
(CRUCIANI & FALLETTI, 1999, p.19).
Como aponta Saidel (2009), ao agir no espaço público, desprotegido dos sistemas
institucionais e arquitetônicos da arte, lugares definidos, na perspectiva de Augé, e se lançar
em ambientes não identitários, não-lugares mediados por símbolos supermodernos, o artista
está mais do que alterando o ambiente onde a obra se realiza, mas sim propiciando o
desencadeamento de uma série de relações imprevisíveis, arriscadas, que dificilmente
ocorreriam dentro do espaço convencionado para exibições artísticas, já que este tipo de lugar
comumente oferece um padrão de relação que localiza claramente a posição do artista, da arte
e do espectador.
Motivada por esta percepção, a Cia. Silenciosa22, da cidade de Curitiba - da qual
Henrique Saidel foi um dos fundadores e que durante dez anos apresentou espetáculos e
performances na cidade - realizou algumas ações no espaço público. Henrique esclareceu, na
entrevista que me concedeu em outubro de 2012, que o grupo não existe mais e que, durante
seu funcionamento, foi ele o responsável pela maior parte das proposições de ações no espaço
público dentro do grupo, sendo este tipo de intervenção algo de seu interesse.
22
Mais informações sobre o grupo estão disponíveis em: http://www.companhiasilenciosa.blogspot.com.br/
75
Foi curioso notar, durante nossa conversa, como se deu o interesse em realizar
trabalhos fora de espaços fechados. Formado em direção teatral pela Faculdade de Artes do
Paraná, este interesse aflorou quando, na época de sua graduação, teve contato com um
caderno de teatro que continha uma espécie de modelo de como realizar um espetáculo de
teatro de rua. Repleto de referências à formação e manutenção de uma roda, ao uso de perna
de pau e outras práticas circenses, à necessidade de uma dramaturgia que se repetisse para que
os transeuntes que porventura tivessem perdido um pedaço da apresentação se localizassem
na sua trama – esta espécie de manual reiterava a imagem que Henrique já tinha de práticas de
teatro de rua e que lhe pareciam enfadonhas. Em suas palavras:
Resolvi fazer uma peça de rua, ao contrário. Só pra ver se dava certo fazer uma que
não tivesse esses elementos que sempre eu via e que achava a coisa mais chata do
mundo. E aí também na época teve uma Bienal, eu acho... não sei se foi a Bienal de
São Paulo... alguma que teve em São Paulo... um projeto... isso 2003... era de artes
visuais mas tinha uma coisa com a rua, com o espaços públicos. Aí tinham umas
obras que eram na estação de trem... uns vagões de trem empilhados, umas coisas de
intervenções plásticas na rua. Aquilo me impressionou bastante. Eu pensei, ah, se dá
pra ver nas artes visuais dá pra fazer coisas interessantes no teatro também. Na
verdade este diálogo com as artes visuais sempre teve nos nossos trabalhos. [...]
Comecei a pesquisar mais sobre estes textos de como fazer teatro de rua e tentando
fazer um roteiro que fosse ao contrário disso. Aí surgiu a primeira peça de 2003 que
era Aqui você verá lebres e outros animais mortos manipulados por atores
escondidos. (HENRIQUE SAIDEL).
Figura 20 - Aqui você verá lebres e outros animais mortos manipulados por atores escondidos
Tendo feito curso técnico de desenho industrial, Henrinque credita a esta formação
parte do interesse que sempre possuiu pela intersecção entre teatro e artes visuais. Relaciona
seu desgosto para com formas mais tradicionais de teatro de rua ao fato de lhe parecerem algo
muito repetitivo no que tange aos elementos da cena, ao ritmo, ao imaginário, etc., ainda que
muitos destes trabalhos sejam feitos por artistas e coletivos de lugares e tempos distintos.
Considerando esta redundância no uso de elementos do espetáculo, optou por usar o
termo I.U. para marcar uma diferença entre tais práticas e as ações que promoveu junto à Cia.
Silenciosa. Em suas palavras:
Então a gente acaba chamando mais disso, porque aí você bota lá teatro de rua, aí
você tem que dar conta de toda uma tradição - que é uma tradição importante, não
estou dizendo “putz, isso não deveria existir, é uma porcaria” - então, teatro de rua
acaba tendo uma filiação muito marcada. Eu não sei se me interesso em dar conta
disso. Aí acabou que intervenção urbana ficou um pouco mais livre. Agora também
já tá meio... Batidão, não é? Essa expressão. Mas é porque é mais uma ideia de
infiltração, de interferir em algum fluxo das pessoas. [...] Então acabo não chamando
77
de teatro de rua pra escapar um pouco dessa, dessa filiação. Porque eu realmente
não quero dar conta disso. Não me interessa dar conta disso. [...] Eu gosto de pensar
em I.U. como algo que não é necessariamente fechado com começo, meio e fim,
cronológico... são coisas que pipocam... elas dialogam... elas dependem mais
intrinsecamente do tecido urbano da cidade que o espetáculo que vai ali e se
coloca... então... interferir em algo que já está colocado ali, que não é ignorado de
forma alguma. Pelo contrário. (HENRIQUE SAIDEL).
Se, por um lado, a noção corrente de práticas de teatro de rua brasileiro tem a ver com
a ideia de resistência, de revolução, de risco e até de marginalidade, por outro é possível que
tenha se conformado em algo maior, um jeito de se praticar, uma normalidade reivindicada
78
por seus defensores. Contudo, isso não impede que outras forças entrem em confronto no
sentido de minorar tais noções, de promover novos devires. E parece relevante que tanto eu
quanto Henrique tenhamos a noção de teatro de rua como referência. Não a ignoramos,
simplesmente. Tampouco a reivindicamos. Antes disso, problematizamos esta influência em
práticas artísticas alternativas.
Considero a possibilidade de que a noção vigente de teatro de rua no Brasil remeta a
uma relação possível entre militância política e manutenção de tradições populares:
Isso ocorreu porque os grupos que se lançaram a fazer teatro de rua a partir de 1984
construíram seus projetos e discursos com base em um processo de mitificação, que
se articulou através de um pensamento dominante no teatro brasileiro que
considerava que o teatro de rua é uma modalidade teatral fundamentalmente
militante, que pertence ao campo de ação política da cultura popular, e se constituiu
como instrumento privilegiado na reconstrução democrática do país. (CARREIRA,
2000, p.1).
23
Para maiores informações, o endereço na Internet da Cia. Senhas é: http://www.Ciasenhas.art.br/
24
Mais informações sobre o projeto podem ser obtidas em: http://homempiano.blogspot.com.br/
79
“Homem Piano - uma instalação para a memória” é o mais novo trabalho da Cia.
Senhas de Teatro. Neste espetáculo-instalação, ator e público compartilham o
espaço-tempo do aqui e agora, e tecem juntos a memória de um homem, cuja
história se constrói a partir de esquecimentos e memórias coletivas. A pesquisa foi
iniCiada em 2008 no projeto “Narrativas Urbanas – interferências e contaminações”
através do edital de Pesquisa em Linguagem Teatral promovido pela Fundação
Cultural de Curitiba. Este projeto previa a investigação de fatos reais com
repercussão na mídia, selecionados pelos atores. A ideia era problematizar
informações midiáticas e conflitos humanos. No projeto inicial o ator Luiz Bertazzo
pesquisa possibilidades de levar à cena a angústia de um Homem que perde a
memória, vive a ausência de identidade e começa a se comunicar com o mundo
através do piano. (CIA. SENHAS, 2012b, s/p.).
A gente ia fazer o espetáculo aqui. A gente definiu que seria aqui. Só que a gente
precisou ir pra rua pra fazer aqui. Só que pra rua, a gente teve que pensar o ambiente
rua, pra criar algo que dialogasse com aquele espaço... Eu lembro algumas vezes a
gente falando “a gente já fez o espetáculo, a gente não tem mais o que fazer. Este é
nosso trabalho. Está feito”. Porque a gente passou muito tempo elaborando aquela
performance, definindo todos os detalhes. E quando terminou a gente falou “tá
feito, o que mais a gente pode fazer? É esse o trabalho.” Só que não era, a gente ia
fazer este aqui. Daí a gente retoma o trabalho de lá pra cá. E daí é um outro processo
muito bacana, porque o que a gente faz é uma tradução. Porque, pra nós,
praticamente todos os elementos que estão na rua, estão aqui. Só que eles foram
traduzidos, eles foram redimensionados no espaço [...] Quando termina a gente olha
pra trás e fala “a gente tem dois trabalhos, um que veio daqui e foi pra rua e um da
rua que fez este daqui existir”. (SUELI ARAÚJO).
Sueli argumenta que o grupo passa pela I.U., pela performance, para chegar ao teatro.
Para ela, o foco sempre é o teatro. Neste contexto, cruzar com outras linguagens artísticas -
80
como é o caso do uso de uma instalação, característica das artes visuais - é um processo que
visa instrumentalizar os artistas para o seu fazer teatral. Ela usa o termo performance para o
que fizeram na rua no intuito de marcar uma diferença entre os procedimentos adotados na rua
- participação ativa e direta dos transeuntes, ausência de personagem - e a realização teatral
resultante deste processo.
I.U. realizada pela Cia. Senhas no processo de montagem do espetáculo Homem Piano, em Curitiba, em 2012.
Fonte: http://movimentodeteatrodegrupo.blogspot.com.br/
Contudo, não deixa de admitir que uma teatralidade se instaure nos dois casos - se
efetivando no processo de intersecção entre as dimensões de realidade e ficção, de recepção
dos sujeitos afetados pela intervenção e pelos sujeitos-público do espetáculo. A I.U., então, é
um laboratório sobre a potencialidade do encontro afetivo, que também acontece na sala
fechada. Isso não impede que as diferenças entre as dinâmicas interfiram no tipo de relação,
que varia não apenas para o público, mas pode surpreender o artista habituado a um formato
específico. Neste sentido, Luiz afirma que:
Uma das grandes questões do Homem Piano [...] É o que a gente devolve pro
público, não é? No espetáculo, ainda existe um espetáculo, não é? Uma peça que
traz questões, que tem toda uma experiência estética e tudo mais, que daí... eu acho
que até se complementa mais. Na rua a gente ficava “mas com que o público sai?”
Porque eu saio com muita coisa, não é? [...] Qual é a troca que a gente propõe na
81
rua... Que até hoje eu apenas ainda não tenho isso muito claro. A gente tem um
adesivo que a pessoa leva por participar, que é um doador de memórias... que é um
brinde pra pessoa, mas... o quão forte é esta troca? Necessita de algo mesmo, ou só a
ação? Ou só ter alguém ali disposto a te ouvir já é uma troca? (LUIZ BERTAZZO).
Talvez esta necessidade de devolver algo para o público - Luiz fala em um brinde, na
experiência estética, no levantamento de questões propostas por um espetáculo - desconsidere,
em parte, uma troca efetivada pela própria teatralidade da ação, que é inerente ao desejo dos
artistas. A capacidade desta ação de mobilizar memórias alheias valeria menos do que um
bom texto, uma boa direção, uma boa atuação do ator para público?
Ou, indo além, a lacuna presente na I.U. realizada pela Cia. Senhas não provém de um
nível de abertura característico de práticas teatrais mais performativas, o que amplia o leque
de leituras possíveis da obra bem como das formas de interação com o público?
Féral (2008) utiliza o termo teatro performativo para qualificar práticas
contemporâneas de teatro que abarcam as noções de performance art e de performance
enquanto instrumento teórico de análise do fenômeno teatral. Diretamente associado ao
conceito de teatro pós-dramático (LEHMAN, 2007), o termo teatro performativo lhe parece
uma definição mais precisa, uma vez que as outras nomenclaturas se apresentam
demasiadamente amplas e não são tão pontuais sobre o que caracteriza este tipo de prática.
Ancorada nos estudos performativos de Richard Schechner, ela nos fala do
entendimento da expressão performer em relação a três operações: ser/estar enquanto
emprego de forças do atuante, da sua subjetividade e fisicalidade, ao invés da permanência de
uma personagem; fazer enquanto “o valor da ação em si mesma, mais que seu valor de
representação, no sentido mimético do termo” (FÉRAL, 2008, p.201); e por último, mostrar o
que faz, o mecanismo segundo o qual é revelado o processo de construção do que se vê.
Esta performatividade amplifica o risco por parte do performer e da obra, que podem
ou não atingir seus objetivos. Ao intercalar signos instáveis, jogar com instâncias de realidade
e ficção, a performance “força o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar
de uma referência à outra, de um sistema de representação a outro...” (FÉRAL, 2008, p.203).
Essas características interagem no teatro performativo, no qual:
Defendo esta perspectiva a partir dos grupos e artistas de teatro entrevistados e não me
atreveria a generalizar esta compreensão. Contudo, não seria exagerado supor que o uso do
termo I.U. seja frequentemente aplicado por grupos sintonizados com práticas de teatro
performativo para qualificar seus trabalhos realizados no espaço público. Além disso, a
teatralidade parece ser um elemento inerente às práticas de teatro de rua ou de I.U.
84
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
sobrepor modelos sobre suas narrativas. Antes disso, busquei relações possíveis entre suas
falas e a literatura, numa perspectiva rizomática.
Entendo as práticas de I.U, em toda sua multiplicidade (dança, teatro, escultura,
performance, etc.), como gesto poético. Uma interferência na paisagem, cuja rebeldia
inerente, advinda de sua ousadia em propor novos devires para a cidade, assume uma
dimensão política, ainda que não se comprometa com um projeto de militância.
Ao proporem novas percepções - esboçarem outras subjetividades que contradizem a
individualidade exacerbada pelo sistema capitalista e instituírem comunidades temporárias na
partilha pelo lúdico - estas intervenções singularizam a paisagem, marcam diferenças contra o
poder instituído, a normalidade, a regra, a indústria cultural de massa e outras forças maiores.
São teatralidades que extrapolam a linguagem teatral, mesmo no caso de ações
ativistas. Ao sobreporem realidade e ficção, estimulam a recepção por parte dos sujeitos que
desconstroem, decodificam e reconstroem aquilo que veem. Mas o terreno também é lodoso e
aquilo que em um momento representa uma força de resistência, no momento seguinte pode
ser cooptado e passar a produzir subjetividades em consonância com o sistema capitalista.
Os processos de singularização aos quais me referi durante esta dissertação nada têm a
ver com a cafetinagem descrita por Rolnik (2006) quando fala sobre a apropriação da força
criativa dos artistas pelo mercado. Pois, se por um lado a fluidez e a diferença são assimiladas
como virtudes, por outro essa assimilação visa à produção de subjetividades consonantes com
os valores do capitalismo cognitivo – cuja lógica reside na manutenção do consumo insuflado
por modelos de individualidade exacerbada e bem sucedida.
Por conta disso, mesmo consciente da potência lúdica de intervenções artísticas em
sua capacidade de transgredir as normas de funcionamento da cidade, considero relevante a
reflexão sobre o tipo de intervenção realizada. Estará ela provocando a cidade em seu
funcionamento ou reiterando as forças vigentes através da espetacularização?
Outro ponto relevante desta investigação foi o reconhecimento que tive do uso do
termo I.U., quando realizado por coletivos teatrais, para demarcar uma diferença em relação
às práticas de teatro de rua no Brasil. Ao ouvir a descrição dos trabalhos que Henrique Saidel,
Sueli Araújo, Luiz Bertazzo e Patrícia Fagundes intitularam I.U. e confrontá-las com as
práticas artísticas que venho realizando e denominando da mesma forma, não pude deixar de
considerar que tais práticas se assemelham ao que Féral (2008) chamou de teatro
performativo.
87
Por conta disso, parece-me provável que tal aplicação busque marcar uma diferença
entre práticas teatrais mais performativas realizadas no espaço público de outras mais
tradicionais, já que o termo I.U. é amplo e comporta uma infinidade de linguagens e gêneros.
Nem de longe suponho ter esgotado o assunto. Pelo contrário, enquanto pesquisador-
artista sinto que algo está apenas começando, que o interesse pela relação entre arte e cidade,
pelos processos de subjetivação - entre outras questões apontadas neste trabalho - me levará
na direção de aprofundar meu estudo, de desdobrá-lo, como um rizoma.
88
REFERÊNCIAS
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BATCHELOR, D. Minimalismo. Trad.: Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naif, 1999.
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Paulo: Abril Cultural, 1980, p.57-74 (Coleção Os Pensadores).
BEY, H. Terrorismo poético. In: ______. Caos: terrorismo poético e outros crimes
exemplares. Trad.: Patrícia Decia; Décio Resende. São Paulo: Conrad, 2003.
CARLSON, M.A. Performance: uma introdução crítica. Trad.: Thais Flores Nogueira Diniz
e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
CARREIRA, A.L.A.N. Teatro de rua como apropriação da silhueta urbana: hibridismo e jogo
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89
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<http://www.ceart.udesc.br/Revista_Arte_Online/Volumes/artandre.htm>. Último acesso em:
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93
ANEXO A
Maria: Bom, começamos a trabalhar juntos neste projeto que é “Aula Abierta”. Que é um
projeto que surgiu na Faculdade de Belas Artes, no ano de 2004, com um grupo de estudantes
que se organizaram pela necessidade de criar um espaço de criação coletiva, que não havia.
Algo entre a cafeteria e a biblioteca, para aprender de uma forma coletiva e conjunta e tal.
Então se projeta a construção de um espaço fisicamente, literalmente, na parte de trás do
recinto da Faculdade de Belas Artes. É convidado um arquiteto que se chama Santiago
Cirugeda, que trabalha temas de autoconstrução. Então com ele se realiza o primeiro grande
projeto de Aulabierta que é a construção da sede. Então, vai sendo feito por etapas, e todas as
etapas de construção são como processos formativos, são cursos de formação. Então, um é
revestimento, outro de montagem, de estrutura, sim? Toda a construção do edifício é como um
processo pedagógico e de autoformação, digamos. O projeto a partir do qual nos formamos
um pouco como grupo, já FAAQ, é este Aulagarden. Então Aulagarden é como o mesmo
processo por etapas, de construção, mas de um jardim ao redor de Aula (Abierta). Então, da
mesma forma, você trabalha mediante oficinas, convida colaboradores externos, neste caso
um paisagista. Bom, são feitos seminários, oficinas, falas, oficinas de plantação, de construção
de dispositivos de mobiliário ao redor do jardim e tal. Bom, e outras atividades que também
eram feitas de Aulabierta como curso de produção cultural, de gestão cultural, que são temas
que a Faculdade de Belas Artes não absorve, não pode assumir. Então, bom, era um pouco
como o tema da autoformação, de “faça você mesmo”, este tipo de processo. Esta é como uma
cartografia da participação em Aulagarden, que também foi como um jardim de colaborações.
Nós dizemos que trabalhamos em processos colaborativos porque ao final é como uma
espécie de desenvolvimento de colaborações, muita gente colabora, cada um com suas
disciplinas, seus saberes, há negociações, um plano comum. Então, depois de Aulabierta e
Aulagarden, queríamos seguir experimentando com a mesma metodologia de criação de
autonomia. Mas, se no caso de Aulabierta eram relacionadas ao conhecimento e à formação,
no caso de FAAQ é aplicada ao trabalho.
Cleber: O que é FAAQ?
Maria: FAAQ... Na verdade não significa nada concreto (risos). “F-A-A-Q”, mas... bom... ”F-
A-A-Q” são como as siglas que aparecem na página da internet, que é “frenquently asked
questions” e para nós soa bem... Perguntas frequentes, que nós fazemos, que nos movem e
Etcétera. E pusemos um “A” duplo no meio que é de Aulabierta, que foi como, digamos, o
ponto de encontro. Mas bom, também pode ser outra coisa. Outro dia nos ocorreu outro nome
94
também, que é… Arquitetos... Não sei o quê... Ah, dá no mesmo (risos). Possui muitos
sentidos. Bom, a partir daí seguimos fazendo projetos colaborativos e tal, de intervenções, de
cartografias, de vídeos, seja do que for. Mas, já fora do contexto universitário de Granada. De
qualquer forma, seguimos mantendo relação com a Universidade de Granada porque os
projetos que realizamos, ainda hoje, são partes... São projetos de investigação docentes.
Seguimos mantendo relações com professores. Digamos que atrás dessas relações
estabelecemos também outros projetos. Porque Granada tem também muita presença da
Universidade. Como Florianópolis, imagino... Não? Grande parte da população, grande parte
da gente que está em Granada por uns anos é por conta da Universidade que, estruturalmente,
forma parte da cidade. Então, de alguma maneira, saímos da Universidade, mas seguimos
tendo relação, também, com ela. Bem, não sei se te conto um pouco da página da web, os
projetos que temos...?
Cleber: Sim, sim.
Maria: A página é “FAAQ.info”. Temos o projeto Aulagarden, que é de intervenção em
espaço público, que neste caso foi a criação de um jardim na Faculdade de Belas Artes, onde
começamos a trabalhar como grupo. Há outro projeto também... Colaboramos muito com uma
cooperativa de educação artística de Barcelona que chama La Fundició. Eles fazem também
projetos colaborativos, trabalham também o tema de cultura de base e... Bem, a raiz é a
questão da educação. Mas, ao redor deste tema fazem os projetos. Então criamos juntos um
projeto que se chama Open-Roullote, que era de desenhar e construir um dispositivo móvel
com a comunidade de um bairro e que este dispositivo fosse, digamos, respondendo ou dando
suporte para atividades para o espaço público dos diferentes coletivos do bairro. Que servisse,
por um lado, como um papel para as atividades que se realizavam no espaço público e por
outro lado pudesse servir como suporte ou como desculpa para avalizar outras atividades. Um
dispositivo também para potencializar a criatividade cidadã em sua relação com o espaço
público.
Então, Open-Roullote se desenvolveu em Ripollet, que é uma localidade também perto
de Barcelona e... bem... nós começamos com eles a fazer o projeto, colaboramos com oficinas.
O trabalho mais de base eles realizam. E... o que passa com este projeto é que, por final, você
acaba habitando um contexto... concreto... ao final de muito tempo trabalhando assim se
estabelece uma relação que não se trata só de fazer uma intervenção e sair... senão uma
relação mais dilatada no tempo, mais cuidada. Bom, é essa raiz de Open-Roullet. (Roullotte¿)
Envolve também o tema da cultura do bairro e fazem muitas coisas como, por exemplo, uma
oficina de costura com senhoras, trabalham com um colégio do bairro. Com esse colégio
fazem derivas, cartografias. E, bom, tem feito distintas ações, como oficinas. Então, foi
convidada uma artista que faz serigrafia e eles fizeram como uma oficina de sacolas no
95
mercado do bairro para que as pessoas trocassem sua sacola de plástico por uma de tecido.
Saíram com máquina de costura na rua... É um pouco trabalhar com o tecido cultural do
bairro, sem subestimar o que fazem. Levando a sério, como cultura. (8 min).
Então, desde este projeto de Open-Roullote, em Barcelona, o que nós fizemos foi
implementá-lo em Granada, na zona norte - que é como um bairro bastante popular que há na
parte norte de Granada. É um distrito muito grande, tem muitos bairros: La Paz, Casaria de
Montijo, etc. Bom, então entramos em contato com coletivos do bairro e com pessoas
concretas e começamos a trabalhar. E o que fizemos foi, ao invés de usar um trailer, usamos
um reboque. Então o projeto aqui se chama open remolque, pois são como primos irmãos,
não? O de Barcelona e o de Granada. Aqui é open remolque e… é isso. Fizemos… bom, o
processo de ajuste… digamos que é isto. Era como um (inaudível) fechado. E, bom,
trabalhamos com gente aí do bairro, que trabalhava com mecânica. Fizemos com que se
abrisse para que funcionasse como um cenário. Sobre o teto, colocamos luzes...
Cleber: É como uma apresentação?
Maria: Isso, é como uma... uma colaboração que foi feita com o grupo de Teatro do Oprimido,
que trabalha no bairro.
Cleber: Ah, sim!
Maria: Então é isso, no ano passado trabalhamos com muita gente, a ideia era também
trabalhar com a universidade, colocar em contato estudantes da universidade com coletivos do
bairro. Então, depois desse processo de... fizemos uma apresentação assim, uma “paella” no
bairro e tudo o mais. E, depois, a ideia era fazer intervenções, fazer uma série de ações, nas
quais colaborassem os estudantes universitários e os coletivos do bairro. Então, a partir daí,
teve uma, por exemplo, que era colaborar com o... com este grupo do Teatro do Oprimido da
“Cidade Desperta”, que trabalha em um instituto com adolescentes em Casería de Montijo,
em um bairro daí. E então, o que os estudantes de arquitetura que colaboravam fizeram foi
desenhar e construir os dispositivos que eram associados ao que eles precisavam para fazer o
teatro. Então, construíram alguns (inaudível). De papelão, foi feito o tema do cenário e tal. E
fizeram uma obra, uma obra de teatro que eles desenharam, os meninos. Era sobre um tipo de
situação próxima à vida deles, um adolescente que (inaudível) sua mãe e isso e aquilo, fizeram
em um teatro fórum, onde as pessoas participam. Então, fizeram na praça do bairro, digamos,
aqui em Casería. E, bom, isso é muito engraçado porque foram desenhados os dispositivos
que eram... Como tinha o tema de gênero na obra, eles colocaram cor-de-rosa e azul e é isso.
E então foi feita a apresentação aqui na praça de Casería. Eles montaram um (inaudível) ali e
fizeram o teatro. Depois, por exemplo, outra ação que foi feita foi... bom, trabalhamos
também com a Plataforma Ciudadana Zona Norte na difusão de um festival reivindicativo
96
que eles faziam. Um festival de flamenco reivindicativo. Então, davam voltas por ali com o
sistema de som e com as letras. Os estudantes de arquitetura também fizeram.
Cleber: O que é flamenco... Como se diz? Reivindicativo?
Maria: Reivindicativo. É, bom, foi um festival, no qual convidaram um, dois cantores de
flamenco e… bom, tinha o flamenco e depois os grupos do bairro saíam para fazer as suas
reivindicações. Esse bairro é bastante popular, tem muitos problemas de desemprego, de
pobreza e outros. Então, existem, por exemplo, associações de desempregados, que estão
muito ativas neste momento. E, bom, era isso, saíam… (inaudível). Para conhecer, digamos,
essas associações, o trabalho que elas fazem com as pessoas do bairro. Então, era um pouco...
Cleber: Eles saíam pelas ruas fazendo, dizendo coisas?
Maria: Não, isso foi em um auditório, o que foi feito com o remolque foi a difusão.
Cleber: Ah... Sim, sim, sim.
Maria: Por exemplo, a partir desse dia até o dia tal...
Cleber: Sim, sim, sim.
Maria: ...Juan Pinilla vem cantar não sei o que não sei o que lá. Foi como a difusão.
Cleber: Esta, esta estrutura? A foto... foi feita com a participação das pessoas da comunidade?
Maria: Sim.
Cleber: E depois ela fica ali ou não?
Maria: Sim, de fato, está agora mesmo na... em um local de aposentados que a associação
tem, eles foram ali. Ou seja, nós colaboramos com eles e eles nos cederam o espaço para
fazermos todas as oficinas e... agora está aí. E eles também usaram a estrutura para montar,
bem, uma cruz de maio, que montavam na paróquia na festa das cruzes de Granada ou a
utilizaram para fazer as coisas deles.
Pablo: Sim, a ideia é um pouco que o reboque não é como um... um projeto. Na zona norte
tem muita, tem muito dinamismo, muitas atividades, muitas pessoas. Para que se
implementasse uma ferramenta que pudessem usar dentro dos coletivos. A priori, a gente não
tinha um objetivo claro além de dar uma certa infraestrutura a esta atividade, que na verdade
já não estava funcionando.
Maria: Bom. As duas coisas, também como ideias novas no sentido de potencializar a
criatividade.
Cleber: E o processo das pessoas também se juntarem para fazer algo?
Maria: Sim.
Pablo: Claro!
Maria: Sim, de outras maneiras. Bom, também é complicado porque... tem muita... as pessoas
têm muitos problemas também. Então, na hora de colaborarmos juntos e tudo isso, bom, tem
as suas complicações, porque também não é um processo assim (inaudível) e a participação
97
também não é constante. Ou seja, na verdade, nós também não idealizamos os processos
participativos, mas quando funciona... quando tem algo que funciona, fica bom...
Pablo: Sim.
Maria: Mas também, nós não temos que contar com que tudo seja maravilhoso e que as
pessoas participem o tempo todo. Também não é assim. Mas, sim, muitas pessoas
participaram. Ou seja, a colaboração e tudo o que eles fizeram... por exemplo, tem dois irmãos
no bairro. “Os irmãos amador”, que fazem filmes. E eles fazem... bom, eles têm uma versão
rodada de Starsky y Hutch em um polígono. Tem… você conhece esse filme dos dois
policiais norte-americanos? Starsky y Hutch?
Cleber: Ah, sim!
Maria: Então, eles têm uma versão rodada desse filme.
Cleber: Ah, sim?
Maria: Que foi rodada com... bom, com as pessoas do bairro, seus primos, não sei quem... é
um filme muito bom e são duas versões dos filmes que eles gostam, sabe? De ação, policial e
tal, mas que refletem também a realidade do bairro. Então, é maravilhoso, além de que
acontece tecnicamente e criativamente. Então, o que nós fizemos com eles foi uma espécie de
casting. Porque o que eles diziam era que eles queriam fazer uma espécie de... de Hollywood
no bairro. Então, fizemos uma espécie de programa-piloto do que poderia ser Hollywood,
fizemos um casting no espaço público e os estudantes de educação e arquitetura participaram
também, com as pessoas do bairro. Então, com eles... foi exatamente com eles que
colaboramos muito com o preparo, e depois, com os filmes. Outra coisa que fizemos também
foi essa ação em Montijo com a associação de desempregados. É... fizemos uma ação, uma
espécie de performance reivindicativa que eles montaram junto com os estudantes, que era...
bom, ou seja, agora de Montijo, porque o bairro onde eles estão é Casería de Montijo. Então,
o presidente da associação, que é o Santiago, fez um poema muito legal, no qual ele lia
(inaudível)... a linguagem, poesia romana, alegórica, o trabalho e... bom, dos desempregados e
etc. Então, ele recitava a poesia nesse cenário do reboque. Fizeram uns pedestais com os
estudantes e os estudantes eram representados como figuras de desempregados e tinha o tema
do trabalho, etc. Eles se apresentaram na Faculdade de Educação e diante da Delegação de
empregos da Junta de Andaluzia, que também fica no bairro, no distrito. Então, temos vídeos
na nossa... na página da internet você pode ver os vídeos, as fotos, tudo está super
documentado. E o que mais? Bom, acho que é isso. Esses são os tipos de atividades que nós
desenvolvemos. Bom, vamos continuar trabalhando com isso, com os coletivos do bairro.
(Inaudível) e o que mais? Bom, é isso. Tem as oficinas de mobiliário urbano que nós fazemos
e... etc. Outra linha de projeto que nós desenvolvemos é um trabalho com o imaginário da
cidade de Granada. Então, dentro dessa linha do imaginário nós fizemos várias coisas, uma
98
delas foi uma oficina com um artista, Claudio Zulián, que é um artista catalão e... trabalhamos
com o tema do imaginário de Granada no geral. No ano passado, trabalhamos com um
professor da faculdade de Belas Artes e fizemos o projeto A Granada Sonhada, no qual
fizemos uma oficina de criação condicionada com os estudantes. Fizemos um seminário e
umas visitas a Alhambra e a partir das atividades que eles desenvolveram nos seminários, eles
tinham de fazer algumas descrições com... pautadas nas fichas que nós demos para eles. Eles
tinham de fazer uma espécie de descrições da realidade e com isso eles criavam alguns
vídeos. Fizemos um vídeo.
Cleber: Quem? Quem fez o vídeo?
Maria: Os estudantes.
Cleber: Ah, eles mesmos!
Maria: Sim! Eles mesmos trabalhavam. Também de um... peças de um minuto, nas quais...
através de umas transformações, das descrições da realidade, do seminário, das atividades, se
transformaram em um... bom, em umas peças bem surrealistas, que trabalhavam um pouco
com a questão do imaginário. E, usando um pouco essa fórmula na... fizemos uma
conferência, convidamos as pessoas. Neste caso, um antropólogo que tem um livro sobre a
questão da junta islâmica. Ou seja, trabalhamos um pouco a questão do imaginário de
Granada, que é algo específico, com o passado islâmico que ela tem. A ruptura que houve com
os reis católicos quando os árabes foram expulsos.
Cleber: Isso foi feito de fato por todos os que tinham contato com a universidade e
propuseram, e eles propuseram... livros plúmbeos: Hum.
Cleber: O que você me mostrou foram os trabalhos que vocês idealizaram como um start e
depois... Eles se desdobram nas mãos das pessoas?
Maria: Hum, mas a gente sempre acompanha todo o processo. É como uma espécie de
produção dos projetos, mas... nos interessa muito o processo mediante o qual as coisas são
feitas e então aqui estamos muito ligados com isso. Nós também nos vemos como curadores
do processo. É mais ou menos como a questão do curador, mas de um para o outro. Estamos
associados a estes processos não só como o evento, mas também participando em um pouco
de tudo, em todo o processo de criação.
Cleber: Eh... Qual é a distinção de um evento para o que vocês fazem?
Maria: Qual...?
Cleber: O que é diferente no evento do que o que vocês fazem, do trabalho da FAAQ para
vocês?
Maria: Não entendi muito bem a pergunta, mas...
Cleber: É diferente de um evento, não?
99
Maria: Ah, bom, para (inaudível) algo temporal, a questão da, digamos... fazer algo temporal e
quando falamos do processo para a gente é mais tempo.
Cleber: Mais tempo...?
Maria: Claro, por exemplo, o projeto do teatro que estamos fazendo neste momento. Digamos
que seja uma produção de uma obra de teatro com este grupo. Fazemos a produção e logo a
jogamos sem participar do processo de criação da obra.
Cleber: É só uma apresentação?
Maria: Claro, e é isso. É como uma... na verdade, é como uma coprodução, uma criação
conjunta, porque entendemos que na verdade é um processo de aprendizagem. Então, no
processo de aprendizagem cada um contribui com o seu saber, mas existe uma negociação e
nós passamos por esse processo todos juntos. Cuidamos para que o processo continue. Nós
buscamos, dinamizamos, buscamos uma manutenção, mas participamos de alguma forma do
processo criativo.
Cleber: Hum... hum.
Maria: Não sei se eu me explico.
Cleber: Sim, sim.
Maria: É uma diferença temporal. Então, entendemos o contexto como algo que temos de
cuidar por um longo tempo. O tempo pode durar 3 meses, 6 meses, 1 ano ou 3 anos. Ou seja,
pra gente, por exemplo, a questão da... trabalhamos com contextos, digamos. A questão do
imaginário da cidade de Granada acabou sendo um contexto em que nós convivemos e
trabalhamos. Ficamos 4 ou 5 anos, de uma forma ou de outra, trabalhando com o imaginário
de Granada. Então, é um tema... com o qual você convive, não? Você trabalha...
Cleber: Sim, entendo. A ideia que eu faço, porque eu não sou arquiteto, é que intervenção
urbana na arquitetura tem a ver com uma intervenção mais física, não? Então, eu penso em
algo que tenha a ver com a estrutura física, mas quando você me fala de imaginário são
estruturas não físicas, são mais conceituais ou sensíveis...
Maria: Claro!
Cleber: E como é ir de um contexto ao outro sem cruzar esta...?
Maria: Claro, nós... bom, para mim, por exemplo, que sou arquiteta, existe um caminho mais
direto, mas dentro da arquitetura entendemos que trabalhamos com o território, que é o meio
físico. Ou seja, material e dos habitantes e das relações que se dão entre os meios físicos e os
habitantes. Então, essas relações, às vezes, são materiais e, às vezes, são subjetivas, sociais,
etc. Pense que nós trabalhamos um pouco... seguindo a Félix Guattari e as três ecologias:
meios ambientais, sociais e subjetivos. Meios ambientais no sentido de ambiente, da
materialidade, do que existe, do que também fazemos... as intervenções. Os sociais, porque o
projeto também tem uma dimensão social muito importante, de agregar valor, trabalhar com o
100
cidade. A partir daí, eu busquei uma série de... (inaudível) a questão do trabalho e do
desenvolvimento da cidade. A partir de então digamos que a cidade é capaz de se desenvolver
e a maneira pela qual ela o fez foi sempre muito devagar. Em Andaluzia, no geral, as formas
de desenvolvimento são muito lentas, não? Por exemplo, os bairros novos que estão fazendo
não funcionam de todo bem, não? Convertem-se em guetos. As áreas, por exemplo, de
investigação como no campo da saúde, que foram criadas há pouco também não funcionam
como... espaço de investigação (inaudível). Existem algumas ideias pré-concebidas do que
tem que ser a inovação, o desenvolvimento, o progresso, mas na hora de implementar as
medidas em Granada acaba não dando certo. Então, digamos que queremos importar todo o
desenvolvimento, sem realmente questionar o que é que pode ser desenvolvimento para a
cidade. Agora mesmo, em Granada, há uns 30% ou 40% de desemprego. As pessoas não
podem ficar aqui porque não tem trabalho, não tem trabalho. E porque questionam também a
criação da cidade, com parâmetros como os de Barcelona, criação de marca, de imagem. Ou
seja, não se pode, porque na zona norte... ou seja, no centro, o passado de Granada é
fantástico, o turismo, etc. Mas, a zona norte, por exemplo, tem uns problemas enormes. E isso
não é tratado. Então, é como resolver um pouco as relações entre o presente e o passado, e o
presente e o futuro na cidade. Não é como Alhambra, que funciona muito bem e tudo. Mas
que relação os habitantes de Granada têm com Alhambra? Qual é a relação que eles têm com
os outros bairros? É um pouco complicado...
Cleber: Essa noção de, não sei, sociabilidade, é muito importante. Social, mesmo uma
preocupação social no trabalho. O que vocês fazem é arte? Você acha que é arte?
Maria: Depende do que você entende por arte. Ou seja, para mim a arte tem muito mais a ver
com a vida. Então a vida tem a ver com a arte. Então, sentimos uma concepção, uma
reconfiguração criativa do entorno que te rodeia, do seu pensamento, da sua ação. A arte está
muito relacionada com a vida. O que fazemos são práticas artísticas porque dão valor a uma
forma de fazer com coisas que, bom, se reformula, se cria, mas também está muito ligada com
as ações que temos na vida. Ou seja, por isso nos aproximamos muito dos processos de
trabalhar com as pessoas assim de mãos juntas.
Cleber: E vocês têm contato direto com outros coletivos ou artistas? Vejo muitas
manifestações pelas ruas, de protesto. Algo sobre... Como eu posso dizer? Violência... Ou
desemprego. E eu vejo que as pessoas se expressam, sobretudo, pelas paredes. Escrevem,
sim? E tem artistas também que vão...
Maria: Não sei. Eu também não acredito que isto... na verdade está um pouco misturado.
Granada, na verdade, é uma cidade muito ligada ao contexto universitário. Então...
Cleber: Tem a ver com isso?
102
Maria: Não é muita gente, muitos artistas, digamos, dos que temos, por exemplo, na faculdade
de Belas Artes, que quando terminam a universidade ficam em Granada. Então, sim, o que eu
acredito é que existe uma relação dos estudantes de Belas Artes com todos os protestos que
estão acontecendo, isso do 15 de maio e etc. Não sei se existe algum coletivo específico,
pessoas, artistas que estejam intervindo de uma maneira mais específica, digamos, a partir da
arte, como cidadãos, digamos, como... existem cartazes que estão produzindo um imaginário
nesse momento. Estão sendo produzidos de uma forma cidadã. Eu não sei como encaixar os
artistas aí ou não. Não sei se eu me explico. Com a separação entre arte e vida.
Cleber: E por que sair do ambiente institucional? Ainda que pelo o que você me falou, vocês
têm relações institucionais? Mas as ações, as criações que vocês fazem são por fora. Por que
esta direção, esta opção?
Maria: Bom, também não é que seja algo à parte, deliberadamente, mas sim... ou seja, a
instituição tem ou as instituições têm um problema pra assimilar certos trabalhos e certos
tipos de intervenção. As instituições não podem assimilar todo o mundo, nem todas as ações.
De fato, com o projeto Aula Abierta, teve conflito no fim. No final, a sala estava construída de
maneira mais ou menos ilegal e o decano da universidade, os encarregados do governo da
universidade, digamos, entraram em conflito com a sala. Ou seja, eles não nos deixavam usá-
la, digamos. Então, eu acredito que existem coisas que você pode fazer na instituição, mas a
instituição sempre tem os seus limites. Eu acredito que no projeto Aula Abierta e com
algumas outras coisas também nós vimos os limites que as instituições também têm. Tem
coisas que se pode fazer, que se pode a gente faz. O que eu quero dizer é por que temos agora
as manifestações do 15 de maio? As instituições estão baseadas em estruturas de poder
corruptas. E... qualquer instituição. Ou seja, a universidade, a prefeitura, todas. Então, claro. A
gente não estava trabalhando com gente sincera, honesta, que esteja trabalhando pelos
objetivos da instituição. Agora mesmo têm algumas estruturas que estão paralisadas. Então
tem os seus limites, não? Tem coisas que não são apresentadas. No trabalho crítico radical,
por exemplo, que talvez seja o que nós fazemos em alguns projetos. Isso a instituição não
pode absorver de todo. Porque não é que seja um rechaço total à instituição, trabalhamos com
a instituição, muitos dos projetos que fazemos são em colaboração com as instituições, mas
tem os seus limites na hora de... e, de fato, eu acredito que o papel da instituição também não
é fazer tudo. Ou seja, eu acredito que o papel da instituição é apoiar o que está acontecendo
fora das instituições. E, nesse sentido, eu acho que (inaudível) certa liberdade e que apoiem
os processos como eles estão ocorrendo. Eu acredito que muitas vezes isso é o que não sabem
ver porque o que não se pode controlar é muito difícil de apoiar economicamente, digamos.
Se você apoia um projeto economicamente, você quer ver o resultado. É muito difícil ter um
apoio econômico para um projeto, que pode ter e pode não ter um resultado. E essa incerteza
103
você encontra no mundo real, com o trabalho, com as pessoas, quando você vai fazer as coisas
ou quando... os movimentos, não. Mesmo o movimento de 15 de maio, eu apoio se ele for
levar a algo senão eu não apoio. E isso é o que as instituições não podem, a princípio,
assumirem. Se não controlam o processo, não controlam o resultado. A gestão da incerteza é...
Isso é o importante. Uma coisa pode ir bem ou pode ir mal, o interessante é o processo. Se
soubermos valorizar isso as ações que criamos vão ser claramente mais ricas. E mais, isso na
verdade, a investigação para mim é o processo, digamos, você consegue entender? O
desenvolvimento das coisas, não impor com um desenvolvimento, a priori, para chegar a
alguns objetivos.
Cleber: Você acha que a arte pode cumprir uma função social e política, então?
Maria: Sim, sim, sim. É como sob esses parâmetros de… de mãos com a vida, a arquitetura é
igual. Pode ser arte, pode ser arquitetura, pode ser qualquer disciplina. Qualquer disciplina,
evidentemente, se expomos os problemas reais de ética, de sustentabilidade, de subsistência,
sociais, meio ambientais, se expõem os problemas de maneira real. Se você continua em uma
bolha, isolado do que são os problemas reais e as riquezas reais da vida, então não. E eu
acredito que, muitas vezes, o que acontece com essas coisas é que se faz de uma maneira
superficial, como uma espécie de marca ou de criação de arte social ou arquitetura
sustentável, muitas vezes são como etiquetas que não explicam esses processos de maneira
real, porque é muito controverso conceber de verdade essas relações. É ficção.
Cleber: Bom, interessante. Eu vou olhar melhor o site. E você acha que em outras cidades, na
Andaluzia, existe uma similaridade com Granada no sentido da urbanidade, da estruturação da
cidade?
Maria: Sim. Ou seja, na verdade cada cidade tem a sua especificidade. Mas na Andaluzia tem
algumas cidades nas quais o passado está muito presente e esse passado árabe e todo o tema
colonial. Então, em Córdoba, em Sevilha, está muito presente. Málaga, por exemplo, é um
pouco diferente. Málaga é a cidade de Andaluzia na qual a indústria se implementou um
pouco mais, digamos. E é uma cidade portuária, tem outro caráter. Assim, um pouco diferente.
Bom, posso passar as pessoas que nós conhecemos e temos contato...
Cleber: Ah, seria ótimo!
Maria: Olhe essa, por exemplo. Veja, essa é uma revista dos nossos amigos de Barcelona, do
projeto Open Rullot. Não ficou tudo muito bem, mas vamos fazer algo parecido em Open
Remolque. Neste ano ou no ano que vem. O nosso projeto A Granada Sonhada, que é o que
fizemos o ano passado com os estudantes, temos aqui também o vídeo.
Cleber: Ah, sim.
Maria: Eh... aqui. Tem todos os vídeos, então...
Cleber: Eu achei muito bom o trabalho do projeto.
104
Maria: Esta é do ano, bom, desde o ano de 2008. Ah, tem umas pessoas trabalhando em
Sevilha, no que se chama BNU. É uma produtora cultural que trabalha também para a
instituição da Universidade Internacional de Andaluzia, dentro de uma área que seria mais do
pensamento, como relacionar o tema da arte com o pensamento crítico e trabalhar um pouco
nesse corte do poético e do político, artístico, social, algo assim. Então eles convidaram uma
série de coletivos de Andaluzia a pensar um pouco sobre o tema dos modelos culturais. Esse
aqui tem todo o grupo de pessoas com as quais trabalhamos nesse projeto. Então, por
exemplo, deixa eu ver onde estão os coletivos... deixa eu ver. Por exemplo, em Málaga tem A
Casa Invisível, não sei se alguém lhe falou sobre A Casa Invisível?
Cleber: Não.
Maria: A Casa invisível, ...o movimento que nos interessa um pouco mais em Málaga. E é um
centro social e cultural de gestão cidadã, que foi ocupado em 2007. E que agora tem um
acordo de sessão com a prefeitura. Então é um caldeirão, sabe? De coletivos, de pessoas, eles
fazem oficinas, tem um monte de gente trabalhando aí. Se você quiser ir pra Málaga e falar
com alguém eu posso te passar o contato.
Cleber: Ah, sim. Claro!
Maria: Sem problemas! Digamos que a partir daí não sei quem vai fazer mais intervenções no
espaço público, mas aqui o projeto completo da casa é uma intervenção no espaço. Assim
como no centro de Málaga. E trabalham os temas de... de tudo, políticos, de movimentos, do
feminismo, da música. Têm cooperativas de técnicos e músicos, uma livraria, etc. Bom, aqui
você tem isso. Em Córdoba estão criando As invisíveis de Córdoba, que é também um grupo
de gente. Em Córdoba tem muita gente, assim como em Granada, que se dedica ao teatro. Eu
não sei se eles continuam ativos, mas faz alguns anos que eles montaram uma comissão para
apresentar problemas como o do trabalho, das pessoas que estavam no campo criativo, não?
No audiovisual, no teatro, etc. E para expor os seus problemas laborais. Eu também posso te
passar o contato das pessoas de Córdoba. Bom... um festival de poesia. Fazem muitas coisas.
Cleber: Esse é...?
Maria: Isso foi o que fizemos na faculdade de Belas Artes, que foi depois da construção do
prédio. É o espaço que fica atrás da faculdade de Belas Artes. A faculdade de Belas Artes é um
antigo manicômio, um antigo hospital psiquiátrico. Então, tem o prédio e (inaudível) em um
lugar, digamos, e como na parte de trás da cafeteria, tem um terreno assim como um
(inaudível), como um sem nada e (inaudível) pré-fabricadas que foram colocadas também na
universidade.
Cleber: E vocês fizeram a construção aqui também?
Maria: Sim.
Cleber: O que é isso?
105
Maria: Eh... bom, você quer dizer o que tem de materiais ou...?
Cleber: Não, não, não, a coisa...
Maria: Ah, é como uma... Bom, como um espaço aqui em cima e que tem um segundo andar.
Então aqui nós fazíamos as projeções, reuniões, era também um depósito de materiais para
fazer tudo o de fora e etc.
Cleber: E hoje o que resta desse espaço?
Maria: Hoje o espaço está fechado por problemas que eles tinham com a universidade e o
jardim está afastado... e... olha, essa gente, por exemplo, também é muito interessante. Se
chamam Intervenções nas quintas-feiras, e é um coletivo de artistas que fazem intervenções
nas quintas-feiras no mercado de Sevilha. Em Sevilha tem um mercado muito famoso que está
sobrevivendo há vários anos, centenas de anos. Então, é muito curioso porque vai ser como
uma (inaudível) do popular. Então eles fazem ali. Não todas as quintas, mas de vez em
quando. E...
Cleber: Que tipo de intervenções eles fazem?
Maria: Que tipo de intervenções eles fazem? Intervenções nas quintas que não são muito
diferentes. Este ano se chama... Los Jueves, Milagro.
Pablo: Los Jueves, Milagro é um filme espanhol do franquismo, que também é interessante.
Maria: Esses são muito interessantes também em relação ao trabalho que você faz, na
verdade. Porque é como uma intervenção mais pontual, mas em um contexto que confere
algum sentido bem interessante a ela. Depois, a passagem... ou seja, cartazes, camisetas,
mensagens, audiovisual. Esse é um coletivo também de arquitetas de Granada que trabalham
com temas da cartografia e etc. E agora estão trabalhando com as tecnologias. Bom, esse é um
artista também pontual, Berto, que também trabalha em Sevilha, faz um pouco de tudo, tem
relações com coletivos e etc. Você também pode dar uma olhada. Esse aqui é outro artista
visual, que também trabalha o tema de Sevilha relacionado ao turismo e... este também é
outro cara de Sevilha, um artista individual. Essas pessoas são do Puma, que aparecem aqui.
Eles estão em A Letra Maior, que é um lugar onde se juntou um pouco de tudo, sabe? Ou seja,
o mundo da arte, da arquitetura, da culinária (inaudível) eles se juntavam para criar um espaço
de produção.
Cleber: De onde eles são?
Maria: De Sevilha. Sevilha. Bom, este também é um de Sevilha e é um coletivo que se dedica
mais aos temas audiovisuais, eles fazem um festival, produzem. E é isso. Até hoje aqui na
cartografia tem um pouco o tema da produção cultural. Aqui tem menções a coletivos que nós
também temos como referência. Então, tem outros coletivos de Sevilha em nível estatal e
internacional, que fazem cartografia. E aqui estão os de Barcelona. Bom, esse é pra você dar
uma olhada.
106
ANEXO B
você me traz um quadro que você fez há dois meses. Ou seja, você corta a minha liberdade,
não? Eu tenho de intervir em um espaço que é assim (inaudível) especialmente de manhã. E
você corta um caminho e eu gosto porque talvez você me encaminhe para um caminho que eu
nunca tinha tomado antes. Porque se eu faço coisas com vídeos, como eu vou fazer de manhã,
não? Como eu posso projetá-los de manhã em um mercado ao ar livre? Tenho de buscar
alguma forma se eu quero fazer um vídeo, que esse vídeo intervenha no espaço, sabe? Por
exemplo, nós projetamos um vídeo com um artista de som colocando em cima de um
carrinho, um triciclo com o qual o antiquário leva as suas coisas na quinta-feira. Eles nos
cederam aí (inaudível) um triciclo, nós projetamos lá dentro e tal. E fizemos a intervenção.
Usando o carro para transportar mercadoria como um espaço positivo ali no meio. Pois, pelo
menos, buscamos algo para que isso intervenha aqui no... Por que senão o que fazemos com o
vídeo? Nós o projetamos em uma parede e não dá pra ver. Então, fomos depurando todas
essas coisas até que no final fomos muito além. Ou seja, começou a ter uma reviravolta nas
intervenções, tiveram intervenções de uma interatividade entre o espaço, a arte, o comércio e
foi muito grande, sabe? Por exemplo, na segunda edição o que eu fiz foi colocar carpete no
mercado inteiro. Então, como era um lugar onde (inaudível)... Pessoas com carros que foram
construídos ali, sabe? A gente se batia de tanta gente... Ou seja, converteram o lugar em um
centro comercial com o carpete, um lugar que era realmente um centro comercial, mas não
preto, escuro. E então, essa foi a intervenção, mas foi uma intervenção só espacial. Nós
interviemos no espaço e o que aconteceu foi que de repente o público começou a ir nas
quintas-feiras. Ali sobre o carpete (inaudível), sabe? Como se fosse um museu. Converteram
em um museu só para ir pelo carpete, porque muda o caminho, o carpete foi feito para isso.
Você tem de parar sobre o carpete, não se cansa tanto, nós o colocamos aí e de repente ele se
converteu em outra coisa. Tanto para os vendedores quanto para o público e para nós mesmos,
para o nosso ego também, claro.
Cleber: Vocês divulgam quando tem...?
Alejandro: Como?
Cleber: Vocês escolhem um dia para fazer a intervenção, mas também fazem a divulgação
para as pessoas que vão ou...?
Alejandro: Sim, sim. Fazemos, fazemos. Sim, fazemos para... mas fazemos pela internet.
Desenho, web, não sei mais o quê. E a gente dizia “se pretendemos sair no jornal - e de fato
saímos em jornais, em alguns livros, aparecemos na televisão, eles fizeram reportagem da
109
televisão espanhola, não sei o quê - se o nosso objetivo é esse vamos converter isso em uma
(inaudível), sabe?” E depois, eu te digo uma coisa. Eu gosto de falar de intervenções contigo
porque você está estudando isso, mas com um jornalista do Diário de Sevilha, que não sabe de
nada, que vai preencher a página, eu não falo para que eles trabalhem, para que eles ganhem
dinheiro, eu não. Falo com você se você tem interesse, se não... Eu não tenho nenhum
interesse em... então, nós nos livramos do obstáculo da imprensa, do design, nos livramos
disso e investimos todo o dinheiro na intervenção.
Cleber: E vocês contam com a ajuda institucional para fazer?
Alejandro: Sim, sim, contamos. Cada ano foi diferente, da Junta de Andaluzia... a base de
ajuda para projetos artísticos no valor de três mil, quatro mil euros. E em outros anos
conseguimos diretamente com as instituições. Ou melhor, indiretamente das instituições
através de outros (inaudível) bem como a universidade, que é uma instituição. A Universidade
Internacional de Andaluzia nos deu, nos apoiou no ano passado, a prefeitura também, na
questão do espaço e das escadas, etc. Depois, em um festival de Artes Cênicas que tem aqui
em Sevilha, que se chama El Fest, nos apoiaram também, nos colocaram na sua programação
e nos deram verba como se fosse no seu festival. Esses foram os que conseguimos
ultimamente e (inaudível) o dinheiro que estava com a instituição, os funcionários. Ou seja, eu
peço dinheiro para a instituição, não diretamente, mas para alguém que tenha um projeto na
instituição, no qual o meu projeto possa se enquadrar. Tinha o projeto da FAAQ em Andaluzia,
com a gente e vários outros coletivos. E dentro desse projeto eles podiam fazer um
levantamento de três mil euros para cada coletivo. Para uma atividade, para a gente era
maravilhoso, pegamos e investimos nisso e pronto. Mas agora está acontecendo uma coisa
muito complicada aqui na Espanha, nós estamos pagando aos artistas plásticos e outros
porque aqui só pagamos os do teatro, são os atores que recebem bastante. Eu vejo os meus
amigos pintores, escultores pagando o transporte da sua obra para ser exposta em uma vila,
para que a vila ganhe uma atividade cultural. Porque o organizador cultural é pago pela
prefeitura e o único que não recebe é o artista. Ao contrário, ele paga para transportá-lo. E nós
estamos tentando contra-atacar isso. Ou seja, dizemos “você vem pra cá e nós vamos colocar
uns vídeos aqui. E de quanto nós dispomos para isso? Quinhentos euros, trezentos,
quatrocentos euros. E os trabalhos tiveram um caráter e todo mundo gastou quase todo o
dinheiro que nós demos para fazê-lo. Mas claro, com um carinho e com um... sabe? Mas o
que eu dizia era que vamos a pagar a impressão, temos de pagar a garota que vai fazer a
110
impressão, o web designer... mas o artista não. Ou pagam, ou pagam tudo ou pagam pouco, só
para os artistas, não? E a gente, inclusive eu e a Célia, que também somos artistas, este ano
saímos da programação para não interferir nesse pagamento que nós temos, porque nós já
participamos como artistas na produção. Ou seja, por gerar o projeto e a produção do projeto,
e... se faz de maneira artística, não se faz de maneira econômica nem de gestão. É artística.
Nós criamos a obra e tudo o mais (inaudível)... então, não sei se podemos seguir esse caminho
de não pedir dinheiro e que eles não nos deem. Passaram anos que não pedimos, mas eles não
nos ofereceram. Já não sabemos se no ano seguinte alguém vai oferecer.
Cleber: E para vocês, o que é intervenção urbana? Você considera que a intervenção nas
quintas é uma intervenção urbana?
Alejandro: A intervenção nas quintas é uma jornada de intervenções.
Cleber: Sim.
Alejandro: Intervenção urbana nesse espaço.
Cleber: Sim.
Alejandro: Então, para mim a intervenção é um ramo da arte, que pode ser construído por
uma performance, um espetáculo de teatro, por algo, por qualquer coisa que sempre
intervenha na urbanidade. Para mim isso é intervir senão não... o que acontece é que eu vejo
que muitas pessoas confundem, não é um subgênero, mas as pessoas confundem intervenção
com performance. Não, a intervenção pode ser uma pintura com pode ser uma pintura com
spray, ou pode ser um... qualquer outra ideia, não? Ou seja, existem centenas de formas. Uma
performance muito bonita, muito bacana do Francisco Torres, que é um artista daqui, ator
também, amigo meu, que ele está fazendo agora com um espetáculo de vinis, discos de vinis.
Então, esse ano nós temos cem euros para cada artista, para a produção. Você pega cem euros
e pronto, faz o que quiser, gasta com... nada, uma miséria. Éramos em 35, então dava 3.500.
Assim, simplesmente. E então, o que ele fez foi trazer um set de DJ com dois pratos e uma
mesa em um carrinho. Um carro com rodas, não? E aí ia comprando discos pelos postos, ia
até um posto e dizia “Vocês têm discos, não? Quanto é?” Então ia de um posto a outro
comprando, ia tocando aí no mercado. E agora as pessoas, os vendedores mesmo estão
tocando discos da sua própria discoteca. Foi uma maravilha, porque de repente eram vinte
(inaudível), foi o da música que estava ali guardada. Essa música nunca toca bem, se vende aí,
mas nunca toca aí. Sairá das caixas para ficar aí e... bom, como diz o rei espanhol, “nos
enchem de orgulho e satisfação”. Ou seja, traz muito caráter ao evento.
111
comerciantes me perguntou este ano. Depois de dez minutos veio outro homem e me disse
“Oi, eu sou o presidente da associação de comerciantes!”.
Cleber: Outro?
Alejandro: Isso quer dizer que nós nem somos capazes de saber quem é o presidente da
associação de comerciantes porque tem dois que o dizem ser. Então, para nós entrarmos nesse
jogo é muito difícil. Nós atuamos com eles sem contar diretamente com eles, mas contamos
que eles estejam vendendo. Com isso eles não podem se ofender, nós não podemos tirar o seu
espaço, não podemos atrapalhá-los quando o cliente se aproxima. Por que o que acontece?
Muitas vezes convidamos um artista e eles dizem: “Quero ficar naquele posto com...”. É um
posto que você coloca, mas tira de um vendedor.
Cleber: Claro!
Alejandro: Porque lá tem 127 autorizações para 127 postos. Eu posso pegar, pagar a cota e vir
antes. Pago a cota, falo com alguém e posso pegar, mas estou tirando um posto de um
vendedor. Isso nós não podemos fazer. Isso era o que eu te dizia antes, eu facilito o caminho
pra você. Se você quer fazer aqui, então venha e faça, não? Nós somos livres. Eu posso vir um
dia aqui e fazer uma intervenção sozinho, por conta própria, porque me deu vontade, sabe?
Você quer pegar um posto? Então pague o posto e faça. Então, existe uma relação, uma
relação de... mas nós nunca tivemos nenhum problema. Nunca, nunca. Sempre terminamos
com as pessoas vindo aqui e tal. Essas linhas no chão, por exemplo, são o que marca cada
posto. Isso não existia antes. Fizeram há um ano mais ou menos.
Cleber: Faz pouco tempo.
Alejandro: Faz pouco tempo que a prefeitura obrigou a associação a delimitar os postos para
ter um controle de quem vende aqui.
Cleber: Hum.
Alejandro: Então, cada vendedor paga três euros por dia, que é um preço irrisório, mas
permite o controle de quem vem aqui.
Cleber: Hum... hum.
Alejandro: São duas leituras: uma, para organizar - que é a leitura oficial - para organizar o
mercado. Outra, não querem que venham os romenos, os negros, não querem que exista um
mercado de coisas roubadas... Então existem duas leituras ou uma leitura com faces bem
opostas.
Cleber: Hum... hum.
114
Alejandro: Porque as pessoas pobres que vêm aqui são realmente as mais receosas na hora de
compartilhar o seu espaço. Ou seja, em um mercado universal ou global. Se eu abro aqui uma
loja de eletrônica e você abre outra ao lado, essa rua vai ser especializada em eletrônica. As
pessoas vão procurar por isso e nós podemos ganhar muito mais. Aqui, se eu coloco um posto
ao lado não, porque entre eles têm uma... isso de que você vai tirar o meu pão. Ou seja, isso
tem sido muito difícil. A comunicação é muito difícil entre eles, não? De manhã tem brigas...
tem 200 postos e 180 que já estão pagos pelo ano inteiro. Então você ocupa o posto 179 e ele
é seu, mas tem 20 postos que estão livres...
Cleber: Ah...
Alejandro: Para o primeiro que venha. Então tem 20 postos, mas os primeiros que vêm são
sempre 45. E agora alguém tem de repartir para eles. E tem uns 25 que ficam de fora porque a
polícia os tira.
Cleber: Hum...
Alejandro: Sabe? Então é sempre uma coisa... um lugar muito peculiar.
Cleber: Hum.
Alejandro: Muito peculiar.
Cleber: E como são as pessoas que vêm aqui comprar as coisas? O que acha? A relação que
elas têm com as intervenções...
Alejandro: O público?
Cleber: Sim.
Alejandro: Olha, existem dois, três tipos de pessoas. Um que só recebe as intervenções, que é
mais popular. Por exemplo, quase todos os anos nós temos um guia, um ator que nós
colocamos como guia da exposição, sabe? Na zona de intervenção para levar as pessoas para
ver vídeos no bar, para ir à casa da avozinha e ele era humorista e as pessoas o recebiam
muito bem, mas tem horas que as pessoas são incapazes de entender, são incapazes, então não
vão apreciar. Quem aprecia essas obras são o público que vem para ver, porque aí eles estão
realmente interessados pela arte. Este ano mesmo pedimos a uma vizinha de uma dessas casas
que nos cedesse o espaço.
Cleber: Ah!
Alejandro: Então, fizemos dois concertos na sacada e nós tínhamos também um locutor de
rádio, que é um dramaturgo daqui que se chama Fernando Mancilla e tínhamos isso preparado
para a manhã toda. Ele ficou toda a manhã aí com um microfone, ele lia o jornal, falava do
115
tempo, colocava algumas músicas, etc. Fez uma seleção muito bacana de textos e músicas.
Fez isso a manhã inteira como se fosse uma rádio, sabe? Então, o que nós fizemos aqui desde
2006 foi que nós compramos alguns alto-falantes desses que parecem uma sirene de colégio e
colocamos por todo o mercado. Colocamos oito, então o som é como o de uma mesquita
árabe. Tem um som antigo. E então tudo o que era trabalho sonoro... E nós fizemos uma coisa
muito bonita que foi entregarmos um questionário a cada dono de posto e perguntarmos se
eles queriam anunciar pelo megafone. Então eles preencheram, tinha um posto que tinha
xícaras de café quebradas, então eles falavam “o posto de xícaras de café quebradas é do
Javier” e o slogan era: “Se você quer tomar um bom café, venha comprar com o Javier”.
Então era isso que o locutor dizia por ali. E então ele dizia “sou eu, sou eu” e isso, no final,
gera um ambiente super divertido. E foi a mesma coisa com as camisetas, no início ninguém
queria preencher a folha, mas foi só eles escutarem o slogan que eles quiseram aparecer na
rádio, não? E, como nós colocamos esses alto-falantes bem pequenos que tem um som bem
baixo e que, ao mesmo tempo, não atrapalham as vendas. Porque se colocamos um alto-
falante grande se escuta muito bem, mas não se pode vender porque só ouvimos isso, não?
Cleber: E me fala um pouco sobre o coletivo Vulgarisarte?
Alejandro: Vulgarisarte? No Vulgarisarte somos oito, nove, somos nove, somos todos artistas
e o que fazemos é promover coisas relacionadas ao conceito do vulgar.
Cleber: Sim.
Alejandro: Então, em relação ao vulgar pode ser o formato da obra, a temática... . Por
exemplo, o que seria um trabalho vulgar de um artista plástico, convidamos o Manuel...
Manuel... não me lembro do sobrenome dele. Nós convidamos ele para expor no Vulgarisarte,
fizemos uma exposição em um salão de dança que tinha, cheio de escombros e socialmente
difícil de se manter. E, Manuel, por exemplo, que é um artista plástico, pegou um dos seus
quadros e encomendou a uma senhora uma reprodução de sua obra em ponto cruz. Então
apareceu uma obra sua, mas em ponto cruz, fez uma tela igual à sua, mas em ponto cruz,
costurado. Então, o formato foi vulgarizado para poder ser exposto, trabalhamos nesse
sentido.
Cleber: Vocês são um coletivo de artistas?
Alejandro: Sim.
Cleber: E há quanto tempo vocês estão ativos?
Alejandro: Bom, o primeiro projeto acho que foi em 2003, por aí.
116
Cleber: E vocês começaram com a ideia do vulgar como uma direção para o coletivo?
Alejandro: Sim, sim.
Alejandro: E por que o vulgar?
Alejandro: Porque para nós é um conceito que se contrapõe ao elitismo da arte, não? E, ao
mesmo tempo, o que nós fizemos foi pegar esse conceito e colocá-lo em pauta para
demistificar um pouco a arte. Nós sempre trabalhamos com isso e além do mais é super
divertido. Claro, como em todas as coisas que as pessoas fazem, no primeiro ano todo mundo
trouxe algo de pornografia, um cristo excitado, sabe? Tudo isso, não? E no ano seguinte, foi
tudo revolucionado, todo mundo entendeu que o vulgar não é colocar pornografia em uma tela
de uma sala, mas que pode ser muitas outras coisas. Eu, por exemplo, interpretei isso de outra
forma e fiz uma performance que era um conserto de flamenco através de um interfone, foi
em uma casa, todo o público ficava embaixo e o cantor lá em cima com o interfone. Então,
nós vulgarizamos. Pegamos um canto que podia ser escutado muito bem diretamente, mas é
como se fossemos à casa do cantor para escutá-lo por ali, por um lugar bastante comum de
comunicação entre vizinhos. Então, nós utilizamos o vulgar em forma de concerto, não? Que
podia ter sido em palco e tudo isso. Vulgarizamos o formato e foram feitas obras muito boas,
mas agora eu não me lembro. Mas como coletivo além de fazer eventos, nos quais
convidamos outros artistas, fazemos obras só nossas também. Temos uma obra que se chama
El artista há llegado a su barrio, que era vista de uma perua. Então a performance consiste
somente nisso, em vulgarizar a arte como se fosse possível comprá-la por encomenda. E que o
artista vai até a sua casa e pinta um mural imitando... estamos parados porque não
conseguimos dinheiro para o último projeto que entregamos e agora estamos um pouco
parados.
Cleber: Mas pode ser uma ação como uma performance ou uma intervenção no espaço
público ou fechado também?
Alejandro: Pode ser qualquer coisa. É livre.
Cleber: Sim.
Alejandro: Depende do que nós propusermos este ano. Ou seja, se temos um espaço fechado
para fazê-lo, vamos utilizar esse espaço, e se quisermos fazer na rua, vamos fazer na rua. A
última coisa que nós estávamos tentando fazer era fazer em um prostíbulo, tentamos também
em uma fábrica, em lugares que realmente já têm interesse por si só nos conceitos que nós
vamos trabalhar.
117
Alejandro: Para você o que vocês fazem com os coletivos e o que fazem com o teatro são
coisas diferentes?
Alejandro: Sim, completamente diferentes. Eu, no teatro, por exemplo, trabalho para outras
pessoas, para companhias que não são minhas. Então, tem o diretor, o produtor... aqui, no
entanto, nós fazemos o que queremos. E com esse objetivo de que isso não repercuta
economicamente de uma maneira grande. Não temos nenhum fim econômico. Então, é muito
mais livre em relação a tudo.
Cleber: A linguagem também não é próxima?
Alejandro: Sim, são muito diferentes para mim pelo menos.
Cleber: E existe um ponto de intervenção entre o teatro e as intervenções?
Alejandro: Até agora não, poderia ter.
Cleber: Você se sente mais livre fazendo intervenções do que teatro?
Alejandro: Hum. Olha, as intervenções são tão livres que eu fico um pouco perdido.
Cleber: Sim.
Alejandro: Eu fico perdido. No teatro você tem um diretor, um companheiro e tal... nas
intervenções que eu trabalho é a intervenção e eu sozinho, normalmente. Mas, no teatro se
trabalha mais em grupo, de outra forma e também o teatro como eu trabalho, que é estar em
uma companhia e eu trabalho a linguagem da companhia, o que o diretor propõe.
Cleber: Mas você não tem vontade de fazer alguma proposta no teatro?
Alejandro: Sim. Por exemplo, propusemos a obra dos paraquedistas, que foi uma proposta
nossa, própria, tudo, o texto, a produção é nossa, contratamos um diretor amigo nosso,
contratamos. Ele é de Madrid, esteve aqui dois meses. Mas, a proposta é nossa. Então, aí nos
sentimos livres, mas o que tem o teatro de difícil é que você precisa de muitos recursos,
precisa de um espaço, precisa de dinheiro para não sei o quê... não é imprescindível, mas é
quase imprescindível.
Cleber: Você acha que a produção de teatro é mais institucionalizada que a produção...?
Alejandro: É que para você sair da instituição é mais complicado. Isso é o que eu vejo, não?
Os circuitos do teatro, para você poder pagar o que foi gasto com a produção, são mais
difíceis de entrar. No teatro nós somos dois paraquedistas, dois músicos indiretos e dois
técnicos, um que fica com as cordas, e outro que é o técnico de som e iluminação. Então, tem
as pessoas, a perua, preciso de movimento para fazer uma coisa pequena. Para fazer uma
intervenção eu não preciso de nada além do meu trabalho. E não preciso de não sei quantos
119
euros. Porque estamos trabalhando na intervenção, eu pelo menos trabalho de uma maneira
mais conceitual. Ou seja, o conceito tem muito mais poder que no teatro, que tem outros tipos
de recursos como são a interpretação, o espaço cênico, a direção. E a intervenção é muito
mais livre porque eu posso trabalhá-la de qualquer forma. Eu também acho que se esse tipo de
trabalho fosse utilizado para fazer teatro também nos serviria, mas claro que para mim é mais
custoso encontrar.
Cleber: Vocês fazem intervenções como esta do artista moderno, que é como uma... me corrija
se eu falar bobagem. É quase como uma sátira da posição do artista como uma pessoa nobre?
Alejandro: Sim.
Cleber: E a noção de vulgaridade também tem a ver como essa brincadeira?
Alejandro: Sim.
Cleber: Ao mesmo tempo você me disse que agora vocês não estão fazendo porque não têm
um projeto aprovado. Então, de alguma maneira, existe uma relação com a instituição que
impõe algumas noções maiores do que é a arte, do que é uma artista. Como é essa relação?
Alejandro: Nós não trabalhamos com as instituições para realizar um projeto deles, mas lhes
pedimos dinheiro para realizar os nossos próprios projetos. Temos essa liberdade.
Cleber: Sim. Hum... hum.
Alejandro: O que acontece é que se não recebemos o dinheiro para fazer esse projeto, nós
inventamos outro que não precise... olha, como exemplo, nós recebemos dinheiro, no primeiro
ano, para as intervenções de quinta-feira e, no segundo ano, eles não nos deram. Nós fizemos
com 100 euros.
Cleber: Sem nada.
Alejandro: Nos deixaram uma garagem aí. Colocamos alguns microfones e todos os artistas
de som que vinham até a mesa com os microfones e tal. E aí eles faziam as suas peças e se
escutava aí. Não precisamos de produção, convidamos os artistas que nós tínhamos. Não era
nada mais que isso, cada um fez uma peça. E muitos artistas vieram participar, porque eles
também queriam participar. Se temos um projeto que tem dinheiro ou se temos um projeto
que não tem dinheiro nós também fazemos. Então, a questão da instituição é que eu procuro a
instituição quando eu preciso. Tem coisas que eu preciso de dinheiro e eu não posso pagar.
Então, nós pedimos porque consideramos que o dinheiro é para todos os projetos, não só o da
Semana Santa, mas também os artísticos. Então, eu não tenho nenhum tipo de reticências ao
pedir dinheiro, porque preciso de dinheiro. Ou porque eu peço dinheiro sou um traidor, ou
120
porque eu o consigo, não? Eles que me deem o dinheiro porque eu estou propondo algo
cultural que eles não fazem.
Cleber: Existe uma política pública para a cultura aqui na região?
Alejandro: Supostamente, sim. A minha ideia é que existe uma política pública de cultura,
mas acontece que a política pública de cultura que se trabalha aqui é a aquela que faz arte com
referências ao que o governo está trabalhando agora. Ou seja, tem muita arte sobre a
imigração, sobre as mulheres, sobre a pobreza e não sei mais o quê, mas sempre com a
direção do Estado. Aqui nós temos uma luta política agora, que é a da memória histórica,
relacionada aos mortos na guerra civil, ao bando republicano, ao bando nacional, que quer
desenterrar quem eles fuzilaram. E é necessária alguma anistia dentro da democracia para
poder desenterrar os mortos. E então, o Centro Andaluz de Teatro, por exemplo, gastou um
milhão e setecentos mil euros, que é 75% do investimento para o teatro em toda a Andaluzia.
O Centro Andaluz de Teatro gastou para fazer uma peça que fala sobre a memória histórica. A
arte... eu estou cada vez mais contra o fato que a arte tenha de lutar. E ainda menos se luta a
partir da instituição, que o que ela faz é destruir, não? Então essa temática cultural é bastante
pobre e triste, porque agora o 25% que sobra é para a arte um pouco mais livre. A
porcentagem é muito baixa.
Cleber: Mas como é a relação com os artistas? Existem editais? Por exemplo, eu venho de
uma cidade onde... no Brasil, de forma geral, o governo abre...
Alejandro: Abre um concurso para subvencionar.
Alejandro: Sim, as pessoas enviam projetos, então eles escolhem o que possa servir.
Alejandro: Sim, aqui é igual. A primeira intervenção nas quintas-feiras, a primeira não,
segunda, terceira, foram subvencionadas assim. Apresentamos o projeto para um programa
que havia para projetos de artes plásticas e cênicas e tal. Então, apresentamos o projeto, eles
nos deram a subvenção e nós tivemos de justificar os gastos com o dinheiro. Cada ano tinha
uma ajuda, um ano da prefeitura, o outro da Junta de Andaluzia, uma ajuda do governo
central. Então, existem vários tipos de ajuda para as companhias, apresentamos o projeto, eles
subvencionam, mas tem alguns requisitos como fazer trinta funções de teatro para receber os
últimos 25%. Mas sim, esses programas existem, o que acontece é que eles falham porque
tem programas que foram feitos há 25 anos e continuam vigentes, como é possível? O
mercado mudou a forma de trabalho. Então, eu acredito que não isso não seja nada
121
excepcional, isso acontece em quase todos os lugares, no mundo todo. Os programas para a
produção artística existem, mas não são bem trabalhados.
Cleber: Sim.
Alejandro: Aqui em Andaluzia existe um caso terrível do teatro, em que foi feito o programa
de ajuda para a subvenção do teatro, foi feito dessa forma, para as companhias da nova
geração que apresentavam um projeto e tinham um tipo de subvenção de até 20.000 euros. E
com esses 20.000 euros eles tinham de fazer no mínimo 20 funções. Agora, para companhias
que estavam aí há algum tempo, oito, nove anos, eles davam outro tipo de subvenção que era
de até 50.000 euros. E eles apresentavam e recebiam a ajuda, do mesmo jeito. E então, tinha
outro programa que era de ajuda bianual, ou seja, de dois anos seguidos, de 120.000 euros
para grandes companhias. Qual era o objeto dessa fórmula? Essa ajuda, por exemplo, você já
pode optar por uma ajuda bianual. E agora quando recebe essa ajuda de 120.000 euros, essa
empresa tem de voar sozinha, essa é a ideia. Eles te ajudam a fazer para que logo você possa
voar sozinho, mas eles estão fazendo para as companhias pequenas, médias e para as
companhias grandes eles mantiveram a ajuda durante dez anos, 120.000 euros a cada dois
anos. Então, as companhias que estão começando, as pequenas, nunca podem receber isso,
porque ficou com as companhias grandes. Esse dinheiro fica com as companhias grandes para
poder... ninguém pode optar a uma subvenção bianual grande, então só as companhias grandes
antigas podem se manter. ...As taxas são altas, e os papéis da empresa, sempre faltam dois
papéis. Eu estou em Sevilha, vou até o escritório e entrego os papéis. Se estou em Almeria a
600 km eu não venho entregar os papéis, eles não chegam nunca, o correio não funciona.
Então, no fim, tudo fica centralizado aqui em Sevilha. E para as pessoas que estão fora isso é
uma droga.
Cleber: Sim.
Alejandro: A Junta de Andaluzia gastou 1.700.000 euros nesse espetáculo novo e onde ele
estreia? Em Sevilha. E aqui eles ficam um mês atuando e depois vão para Granada num fim
de semana, e para Málaga, no outro fim de semana, e acabam os 1.700.000 euros. Então as
outras cidades não podem aproveitar esse dinheiro. E isso não é justo. E por que acontece
isso? Porque a Junta de Andaluzia fica em Sevilha.
Cleber: E além de tudo todos pagam impostos.
Alejandro: Todos pagam impostos. E, além disso, o que eles estão fazendo é claro que as
companhias de Málaga fazem quando vêm aqui, de Córdoba vêm aqui. As pessoas têm de
122
imigrar para poder exercer o seu trabalho quando elas têm o direito. E, além disso, é muito
mais enriquecedor que um trabalho tenha um caráter almeriense... os índios que fazem algo
ritual, os afrodescentes, e isso é enriquecer, subir o nível cultural.
Cleber: Vocês viajam com os trabalhos?
Alejandro: Com o teatro?
Cleber: Sim.
Alejandro: De início tudo está organizado para que um espetáculo estreie e logo entre em
excursão, mas as políticas culturais são bobas. Aqui tem políticas culturais para apoiar. O que
o teatro daqui faz é que Sevilha me contrata, Córdoba me contrata...
Cleber: Ah, sim.
Alejandro: Só contratamos para apoiar as companhias daqui e isso não é apoiá-las. O nível
cultural não está subindo porque não vimos nada do exterior. Não vemos nada de fora, nem
mesmo da Catalunha, nem de Madrid. Só contratamos as pessoas daqui. E na Catalunha
acontece a mesma coisa, eles estão fartos de ver sempre os mesmos atores ali. Eles dizem que
é para apoiar as empresas daqui, mas eu sou contra, não, vamos fazer um intercâmbio. Vai
custar exatamente o mesmo às administrações e nós vamos poder enriquecer a nossa
linguagem tanto para os trabalhadores, para as companhias que vão a outros lugares oferecer o
nosso espetáculo e as nossas ideias, quanto para a cidade para a qual nós vamos. Há dois anos
nós fizemos um espetáculo no Teatro Central, que é um dos melhores teatros, não? Nível
europeu e blá-blá-blá. E eu pergunto que interesse existe para os sevilhanos nos ver no Teatro
Central se logo depois de dois meses nós vamos estar em uma sala pequena aqui mesmo em
Sevilha? E trazer gente aí, cobrando dez euros?
123
ANEXO C
Entrevista realizada com Sueli Araujo e Luiz Bertazzo, membros da Cia. Senhas, na Cidade
de Curitiba, Paraná, em 17/09/2012.
Cleber: Acho que podemos começar falando um pouco do grupo, brevemente. Como o grupo
chegou no espaço público? Como se deu esse processo? Que chegada foi essa?
Sueli: Acho que, particularmente nesse trabalho, que é o “Homem Piano”, vale a pena só
localizar de onde que ele vem. Ele vem desse edital de pesquisa que houve aqui em Curitiba.
E, na pesquisa que queríamos desenvolver, a primeira coisa era procurar reportagens que
tinham sido veiculadas pela mídia e trabalhar estas reportagens. Então cada ator escolhe uma.
O Bertazzo escolheu a dele que era desse rapaz que perde a memória e que é encontrado
molhado sem identificação nenhuma e passa um tempo num hospital até que, em um
determinado momento, pede um piano e sabe tocar. Mas a mídia especula pra caramba quem é
ele, e uma série de coisas... esse lugar de limbo dessa personagem, foi um lugar que o
Bertazzo foi trabalhar. E foi isso que nós trabalhamos durante o projeto do “Narrativas
Urbanas” - que era o nome do projeto. E a partir dessas narrativas urbanas cada um fica com
uma célula de uma investigação pessoal e o Bertazzo tem interesse em desenvolver esse
projeto e daí a gente começa a trabalhar no Homem Piano. E daí entender o que seria...
Luiz: Primeiro foi com a mostra da FAP...
Sueli: Primeiro foi com a amostra da FAP, o Bertazzo apresentou uma...
Luiz: Uma possibilidade de cenas, e alguns elementos que já vieram...
Sueli: Desde a pesquisa, voltavam...
Luiz: Mas a rua mesmo só foi aparecer com o projeto do Myriam Muniz para o Homem
Piano, até então não...
Sueli: Começamos a fazer o “Homem Piano” aqui, a desenvolver o projeto, e então sentimos
necessidade de ir para a rua, para montar algo que nos desse uma ideia. Tínhamos uma
pergunta: o que você gosta de lembrar ou quer esquecer? “Mas a gente aqui vai esgotar isso,
não é? Precisamos ouvir as pessoas. De que maneira isso reverbera? Isso tem potência? Faz
algum sentido essa pergunta?” Só que para irmos às ruas tivemos que montar algo, que para
nós é mais uma performance. Então nós precisávamos criar um equipamento que pudesse
dialogar com a rua e permitir a participação, um convite à participação. Porque, na verdade, o
124
que nós queríamos era ouvir das pessoas, de uma forma mais discreta possível, que elas
pudessem nos dizer um pouco delas, para a gente entender se o que estávamos fazendo fazia
algum sentido. Se as nossas perguntas, em relação à memória, eram só nossas e se tinha
reverberação para fora de nós. O que eu acho que talvez seja o mais interessante é esse
percurso, quer dizer, o percurso do projeto de investigação das mídias que o Bertazzo
conseguiu fazer e essas apresentações, essas experimentações, elas já eram abertas, no meio
do público, quando apresentamos, elas sempre foram assim, e o outro movimento que foi: e aí
como é que faremos para levar isso aqui para a rua? Sendo que a rua é outro espaço, é outro
ambiente, tem uma série de elementos. E tem uma imagem que eu sempre colocava, que era
como abrir um oásis no meio da rua, que era essa um pouco a nossa imagem. Então, a partir
dessa imagem, a partir dos trabalhos, a partir dos elementos já usados em cena, nós criamos
uma instalação no meio da rua, e que nessa instalação o Bertazzo não via a pessoa e a pessoa
vinha.
Luiz: Discutimos um pouco sobre essa exposição, do artista e do transeunte. Até que ponto a
gente se colocava e clamava por essas questões serem respondidas, ou se a gente colocava um
ponto de interrogação, para que as pessoas se manifestassem, não é? Ao invés de ir para elas,
elas vinham para a gente. Porque a instalação, O Homem Sem Memória, que é esta instalação,
ela tem essa... Como um oásis também eu penso em um ponto de interrogação, um ponto de
interrogação no meio da rua. Ali as pessoas vão, também pela curiosidade, primeiro pegamos
pela curiosidade, pois tem uma placa que diz: “o homem sem memórias aceita memórias
alheias”. E com uma estrutura perceptível para qualquer um, de que é um microfone e um
headfone, um fone de ouvido em mim e um microfone aberto. Então isso é uma estrutura
claramente exposta, de que o fio de um sai para o fio de outro, então todo mundo sabe que
essa é a ligação.
Sueli: Toda a estrutura é exposta, é chegar ali e o Bertazzo fica sozinho.
Luiz: Eu fico sozinho e de costas, para não ver e não expor a pessoa.
Sueli: O que era legal, é que nós tínhamos um tempo definido para ficar ali naquela
exposição, só que o Bertazzo ficava sozinho, então o que acontecia em volta era do público. O
que talvez seja, da companhia, a maior pesquisa nesse momento: como organizar o público? E
eles se organizavam entre si, tinha gente que explicava como que era para fazer, explicava ao
outro: “você pega o fone de ouvido e põe e fala isso, pega esse papel, leva esse adesivo - que
diz sou doador de memórias...”. Então, isso que acontecia para trás do Bertazzo... Ele era só o
125
agente, o agente que recebia aquelas informações, sem saber de onde elas vinham, só que o
que movimentava aquelas pessoas atrás era muito legal e nós estávamos ouvindo - o que se
tem para doar de memória? E fazer desse movimento de pessoas que passavam, liam,
botavam o fone de ouvido, iam dar uma volta e então voltavam e falavam. Grupo, molecada,
malucos, todos. Os malucos são os que mais falam.
Luiz: Fizemos o mínimo de que precisávamos, acredito que umas sete apresentações. E a
gente foi percebendo que o lugar onde mais elas aconteciam, onde a participação era maior,
eram os lugares onde mais as pessoas estavam expostas, no sentido de... teve uma
apresentação que a gente fez na praça Santos Andrade, num lugar aconchegante, embaixo de
uma sombra. Ali eu ficava uma hora e vinte minutos parado - era o tempo de duração da
performance - e naquele dia foram pouquíssimas as participações. E quando a gente
apresentava na frente da catedral, era o lugar onde mais as pessoas apareciam. Vinham
grupos, parece que na multidão as pessoas ficam menos expostas.
Sueli: E ao mesmo tempo tinha uma coisa que era legal que era... algumas pessoas queriam
ser vistas. Teve uma moça que deu um bombom, outras que falavam e passavam em frente
dando tchau.
Luiz: Mostrando que eram elas.
Sueli: E daí nós tínhamos uma performance.
Luiz: Teve um maluco que reconheci, o francês, o primeiro que participou e ficou horas e
horas falando e que todos que estavam... o pessoal da companhia, que estava assistindo meio
de longe, estava achando que ele estava pregando algo para mim, achando que ele era um
pregador, e na verdade ele estava falando coisas fortíssimas de literatura e tudo o mais. E daí
um outro dia que eu estava na performance, um cara parou na minha frente e me olhou, e eu
falei: “ah, é você! Tenho certeza” (risos). E depois me falaram que era ele. E então as pessoas
criam uma relação de outros dias... foi criando-se relações, até de pessoas que vieram
assistir... teve gente que veio assistir e que estava com o depoimento dele gravado ali.
Sueli: Nós gravávamos os depoimentos.
Luiz: E usamos no espetáculo depois. Aquela estrutura da rua veio para o espetáculo, porque
até então quando a gente fez a performance a gente tinha a intenção de recolher depoimentos
mesmo, para ajudar na dramaturgia.
Sueli: É... para a gente entender o que estava pegando.
126
Luiz: Onde afeta... a gente estava no meio do processo na época, não tinha finalizado ainda
esse lugar e esse lugar veio por conta disso.
Sueli: Isso que eu acho mais bacana, porque a gente ia fazer o espetáculo aqui. A gente definiu
que seria aqui. Só que a gente precisou ir para a rua para fazer aqui. Só que, para rua, a gente
teve que pensar o ambiente rua, para criar algo que dialogasse com aquele espaço... Eu
lembro de algumas vezes a gente falando “a gente já fez esse espetáculo, a gente não tem
mais o que fazer. Este é o nosso trabalho. Está feito.” Porque a gente passou muito tempo
elaborando aquela performance, definindo todos os detalhes. E quando terminou, a gente
falou “está feito, o que mais a gente pode fazer? Era esse o nosso trabalho”. Só que não era. A
gente ia fazer este aqui. Daí a gente retoma o trabalho de lá, para cá. E daí é um outro
processo muito bacana, porque o que a gente faz é uma tradução. Porque, para nós,
praticamente todos os elementos que estão na rua, estão aqui. Só que eles foram traduzidos,
eles foram redimensionados no espaço, foram criadas outras estratégias, mas são as mesmas
na verdade. São análogas àquelas que a gente usou na rua, só que foram transformadas por
conta desse espaço. Quando termina, a gente olha pra trás e fala: “a gente tem dois trabalhos,
um que veio daqui e foi para a rua e o da rua que fez esse daqui existir.” Isso que eu acho que
foi o mais bacana nesse trajeto do “Homem Piano”.
Bertazzo: É, porque o grau de envolvimento das pessoas na rua e das pessoas que passam por
toda a trajetória do personagem no espetáculo é o mesmo.
Sueli: É o mesmo, só que ele foi redimensionado... outras camadas. A gente ficou
resolvendo... por exemplo, essa colinha, que tinha lá, que tem as instruções, como a gente
trabalha as instruções? Que estavam lá e deu trampo pra caramba pra gente organizar o que
seriam as instruções, lá. Quando chegou aqui eu falei: “E agora, as instruções? Onde a gente
vai pôr? Como serão agora as estações desse percurso? Ou, como... A sala branca, que espaço
é esse e o que tem a ver com aquele espaço lá?”
Cleber: Tinham instruções para os transeuntes?
Sueli: Sim! Tinha instruções.
Luiz: Sim. Tem uma bandejinha no microfone com envelopes e cada envelope tem uma
instrução que remete a isso da lembrança, mas com outros dizeres.
Sueli: Que na verdade é um dispositivo.
Luiz: Nem todo mundo se armava desse artifício, muita gente chegava lá e já entendia a
estrutura, e já chegava para falar do que gostaria. Porque tem a placa-mãe, que é mais ou
127
menos o meu duplo, porque eu estou ali de preto e tem uma placa preta também. Então, é
meio um duplo daquela figura. Mas as instruções também suscitavam questões a mais... quer
dizer, não a mais, era para quem precisasse.
Cleber: Era um estímulo?
Sueli: Era um estímulo! Tinha gente que pegava e tinha gente que não pegava, lá dentro
tinham as etiquetinhas que você podia aderir e estava escrito: sou doador de memórias.
Luiz: Uma das grandes questões do Homem Piano que até hoje, tanto na rua, quanto no
espetáculo, indoor, é o que a gente devolve pro público, não é? No espetáculo ainda existe
um espetáculo, não é? Uma peça que traz questões, tem toda uma experiência estética e tudo
mais, que daí... Eu acho que até se complementa mais. Na rua a gente ficava: “mas com o que
o público sai?”. Porque eu saio com muita coisa, não é?
Sueli: Qual é a troca que a gente propõe?
Luiz: Qual é a troca que a gente propõe na rua? Que até hoje eu apenas não tenho isso muito
claro. A gente tem um adesivo que a pessoa leva, por participar, que é o do doador de
memórias... que é um brinde para a pessoa, mas... o quão forte é essa troca? Necessita mesmo
de algo, mesmo? Ou só a ação? Ou só ter alguém ali disposto a te ouvir já era é uma troca?
Porque eu ouvia de muita gente: O que você faz com as memórias?
Sueli: O Bertazzo não podia contar para nós, então era dele, e no começo ele ficou meio
estranho, ficou meio mal, porque tinham questões éticas. O Bertazzo dizia “eu recebo muito,
muito, as pessoas falam coisas muito íntimas, muito importantes. O que eu dou em troca para
elas?”. Essa era uma questão, que foi o meu trabalho o tempo todo. A outra era essa, não dá
para falar. O que você ouve morre com você,.. depois foi gravado, mas foi editado e quem fez
isso foi o Ary. E as que ele ouve aqui também são dele, com o tempo o Bertazzo foi se
resolvendo com relação a isso para tirar todas as pessoas que estavam dentro dele.
Luiz: Fui esquecendo...
Sueli: E como a própria experiência. Mas essas também foram duas questões, e como diz o
Bertazzo, que ainda se mantêm...
Luiz: Esse trabalho agora, pensando assim, retomando, até o Rumos Itaú... Porque depois
fizemos um outro processo ainda, do Rumos Itaú e tal, no ano passado...
Sueli: Que é outro desdobramento.
Luiz: É outro desdobramento, mas também com uma célula muito parecida... Porque tudo
começou do Narrativas Urbanas, que foi um encontro entre a Cia. Senhas e os Argonautas.
128
E, no Rumos, a gente refez essa parceria com os Argonautas e lá nós temos uma outra
estrutura... É parecido no sentido de que a gente cria um outro pequeno oásis também, dois
pequenos oásis, não é? Porque lá, além de mim, vai ter uma outra parceira dos Argonautas.
Sueli: Uma pessoa fica com uma estrutura muito parecida com a do Homem Piano de um lado
da rua, fazemos duas estruturas.
Luiz: Muda a cor, vai para o vermelho. Antes era preto e branco.
Sueli: E daí, as pessoas... eu gosto um monte dessa intervenção, ainda hoje. A gente coloca
aqui e aqui, dos dois lados... tem um grupo de pessoas, que somos nós, quer dizer... lá no
Rumos, ficou o Bertazzo de um lado da rua e a Luciane do outro lado. Daí a gente tem uma
dinâmica aqui, de atravessar a rua, na Paulista, e quem dá o sinal um pouco para as nossas
ações é o semáforo, está ligado a isso... e daí... quem recebe ali, escreve, põe no envelope,
aquela memória que recebeu, faz uma síntese, escreve num envelope, levanta a mão, a gente
que está na rua passa, pega e entrega para uma outra pessoa. Em um ônibus que passa, ou para
uma pessoa que está atravessando a rua.
Luiz: Entrega essa memória para uma outra.
Sueli: Que é o princípio do narrador, na verdade. Porque você passa uma narrativa que veio de
outro e compartilha. Ela é tua, alguém tem um presente para te dar. A gente via aquele
envelopinho indo embora, com as memórias do outro. Já é o terceiro desdobramento do
mesmo projeto, que começa com o Narrativas.
Cleber: Você comentou que o Homem Piano entendeu que aquilo que começou como um
estímulo para o projeto acabou se desdobrando em dois.
Sueli: Exatamente!
Cleber: E vocês acham que nessa experiência na rua... vocês sentem que acabaram esbarrando
em outras linguagens que não o teatro ou o repertório de teatro que vocês tinham?
Sueli: Por exemplo, para mim, no Rumos em particular, a narrativa é um elemento que a gente
lida o tempo todo. E o narrador. Eu estava escrevendo também estas coisas para o Rumos,
porque a gente vai agora. E, para mim, no Rumos em particular, que é esse desdobramento,
nós colocamos a narrativa em ação. Então a nossa ideia sempre é o teatro, só que o teatro tem
muitos desdobramentos, não é? Então... mas é sempre, a gente prepara aquele corpo que vai
para a rua, nós aquecemos, fazemos todos os procedimentos para estar diante, fazemos a
mesma coisa aqui e a mesma coisa lá no Rumos, então... esses elementos, para nós, a relação
com o estar diante do outro, é um elemento do teatro. E desse a gente não abre mão.
129
Luiz: É bem louco mesmo, porque tinha uma composição de personagem, naquele... no do
Rumos até... era muita gente, era uma parceria que tinha muitas questões a serem trabalhadas,
porque eram dois grupos, com focos diferentes. Então, ficaram ainda meio primitivas algumas
questões. Mas, quando a gente fazia aqui, por exemplo, tinha uma composição de personagem
ali na rua... porque tinha um estado físico em que eu tinha que estar - porque eu ficava parado
uma hora e vinte, então isso me gerava algumas questões - mas eu saquei, com algumas
apresentações, que tinha uma coisa do olhar, que eu tinha um olhar, às vezes, impositivo
demais na rua. Que as pessoas passavam e era quase uma defesa minha, ali, de que estava
impondo de que sou um artista e estou aqui, e quando eu colocava esse olhar impositivo eu
sentia que a participação era muito pouca. E quando eu colocava esse olhar mais suplicativo
ou...
Sueli: Trabalhamos com os elementos do teatro, eles são sutis, mas eles... E essa coisa do
olhar, para nós, foi... não dá, não é isso, a gente não vai conseguir...
Luiz: E esse olhar, foi a partir daí que veio a composição de personagem do Homem Piano
para o espetáculo.
Sueli: Havia uma hierarquia, não é? A gente falava “olha, está colocando o corpo em cena,
mas está colocando o eu - eu estou em cena - como que a gente se mistura um pouquinho
mais? A sua própria fragilidade faz parte do estar aqui, sozinho.” Então os elementos do teatro
estão sempre presentes, são com eles que a gente dialoga para qualquer coisa, são os
elementos do teatro que fazem a gente tomar as decisões, não existem outros. Então, a gente
passa pela intervenção, a gente passou pela performance, ou pela reutilização do espaço, mas
fincados no teatro.
Cleber: Como vocês entendem intervenção urbana?
Sueli: Pois é, eu acho que o Homem Sem Memória, este que a gente fez na rua, ele estava...
havia uma interferência no espaço urbano, um oásis que a gente estabelecia, ou seja, a gente
interferia na paisagem. Acho que na medida em que você interfere na paisagem, no fluxo
contínuo e você quebra aquilo durante algum tempo. No Rumos também era isso. Aqui,
quando a gente fazia, também. A gente vinha do nada e estabelecia, durante um tempo, o que
tínhamos que estabelecer... a Greice foi assaltada em uma dessas intervenções que fizemos na
rua. A gente ficava um tempo lá e o cara chegou e pediu “eu quero grana, estou com não sei o
que aqui...”
Luiz: Porque lidamos muito com a discrição.
130
Sueli: É, a gente não pode aparecer. Não pode e tem que aparecer.
Luiz: Mas é um encontro individual mesmo, mesmo o Homem Piano que tem o Homem Sem
Memória. O Homem Sem Memória é a performance, o Homem Piano é o espetáculo. Mesmo
o Homem Sem Memória que é amparado por algumas questões high-tech, tecnológicas, que se
colocam, mesmo assim é sempre um diálogo do indivíduo mesmo, o indivíduo da rua, não do
coletivo da rua. Então sempre era um encontro entre dois, somente duas pessoas podiam
participar da performance.
Sueli: Não lembro, mas tinha uma frase. Tinha uma frase que era direto na pessoa...
Luiz: Você pode me ajudar, você pode levar isso para outro lugar? Dê para quem você gosta.
Sueli: Sim, dê para quem você gosta. É a memória de um outro alguém, leve isso para alguém
que você gosta. Era uma coisa assim, que a gente parava uma pessoa.
Luiz: Eram sempre encontros... Saltando sempre o indivíduo mesmo, era sempre um
indivíduo.
Sueli: É, porque por mais que a gente fosse todos, ali...
Luiz: Porque no Rumos ainda tinha uma estrutura, ainda tinha uma necessidade do evento, do
Rumos Itaú. Que isso até, para nós, nos atrapalhou um pouco. Mas, quando não tem essa
necessidade, a companhia vai... vislumbro isso mais ou menos no nosso trabalho, na nossa
relação com a rua porque... até o Homem Piano tem um pouco disso, de vir da rua, vir do
indivíduo, vir do cumprimentar cada um, para então vir para o espetáculo. Para então se
formar o coletivo, mas é sempre numa busca pelo encontro com um.
Cleber: Mas mesmo o Homem Piano juntava pessoas?
Sueli: Sim. Mas uma só falava. Era sempre esse encontro aqui: (sussurra). O que ocorria eram
as dinâmicas, se estabeleciam várias dinâmicas de pessoas que não falavam jamais, mas
ensinavam as outras, ou esperavam todos saírem para conseguir falar, eram as dinâmicas que
se estabeleciam ali. Ficávamos muito tempo só olhando, não aparecíamos, então essas
dinâmicas que movimentavam o espaço como um todo, isso era muito interessante.
Luiz: Mas sempre era o desejo do indivíduo. Porque se o indivíduo desejava explicar, era
porque partia dele. Nunca era uma...
Sueli: É, criávamos a circunstância.
Luiz: A instrução era mais para a gente do que para a própria pessoa, as instruções da
performance. Digo, era mais para a gente se colocar do que necessariamente para a pessoa se
131
pôr, porque então a pessoa iria se comportar como ela quisesse, ela não seguia
necessariamente as regras.
Sueli: Não. Colocávamos as regras porque achávamos que havia a necessidade de encaminhar
a estrutura do espectador, ou do passante, mas elas faziam o que ela queriam, entendeu? É
disso que o Bertazzo está falando, as regras eram para nós.
Luiz: Porque tinha gente que queria falar diretamente comigo.
Sueli: Tinha gente que ficava chamando: olha para trás!
Luiz: “Você está me ouvindo? Mexe o dedinho se você está me ouvindo”. E eu mexia o
dedinho.
Sueli: Então, essa brincadeira era do contato, de fazer contato. E lá no Rumos também tinha
isso porque, por mais que fosse... no Rumos, não em São Paulo, mas as experiências que a
gente teve aqui, também, a gente entrava na rua discretamente. E as coisas tinham que se pôr
lentamente e também um a um até formar o coletivo. Quem estava no meio não via direito o
que estava acontecendo, porque já estava ali no meio. Mas quem estava de fora, o segundo
espectador, esse sacava tudo! “Olha o outro ali, olha o outro e outro”. E também o princípio
dos envelopes, a troca de envelopes, que a gente faz, os princípios eram basicamente os
mesmos, postos em estruturas diferentes.
Cleber: Vocês são um grupo que já esteve na rua com espetáculo mesmo, não é?
Sueli: Com A farsa, por exemplo?
Cleber: Isso. Era um espetáculo que vocês entendem como teatro de rua?
Sueli: Eu acho que sim, mas A farsa tem uma história tão louca. A farsa não foi uma escolha,
foi uma necessidade, o figurino foi feito pelo Eduardo com setenta reais, que era o dinheiro
que tínhamos para fazer tudo! Precisávamos fazer um espetáculo porque se não fizéssemos
não iríamos sobreviver, tínhamos acabado de fazer o trabalho e era o segundo e tínhamos que
fazer qualquer coisa para sobreviver. Aí iria ter a possibilidade de viajar com o trabalho, o quê
que a gente iria fazer? Quanto que a gente tem? Eu tenho setenta reais e esse era o nosso
dinheiro. Então não foi muito uma escolha da companhia, ele foi quase um desvio. Mas o
desejo de ir para a rua, sim. Esse era, não sabíamos muito bem ainda o que queríamos fazer.
Só que A farsa já apresentamos em teatro, já apresentamos em vários lugares.
Luiz: No Memorial. Não era um levantamento de questões.
Sueli: Era mais um desejo de fazer alguma coisa na rua, com aqueles setenta reais que a gente
tinha.
132
Luiz: E ela cabia para a rua por conta da própria dinâmica dela.
Sueli: É, a gente fez em todos os lugares. A farsa rodou um monte de lugares. Sem dúvida
que... não sei dizer se era necessariamente teatro de rua... sim, fazíamos na rua também.
Então, com o tempo, fomos nos soltando mais, fomos colocando mais elementos, ela era
altamente mutável. Botamos instrumentos, entrou Patrícia, entrou Ary, entrou eu, aí
estávamos fazendo uma esculhambação, entendeu? Mas ela não tinha essa maturidade, de
pensar sobre algo, fazer, conceitualmente, nada disso. A farsa é uma grande brincadeira,
deliciosa, mas era uma grande brincadeira que a gente fez na rua.
Luiz: É, o desejo da rua veio por outros motivos, por outras questões. Que é o desejo da Cia.
mesmo, do encontro com o público, mas um encontro diferenciado com o público. Sempre os
espetáculos que fazemos na Cia. são eventos coletivos. Sempre. O Homem Piano é o que mais
quebra essa situação, pois existe uma proximidade da fábula, existe uma proximidade da
estrutura do espetáculo que os indivíduos conseguem se encontrar mais - o ator e o público.
Mesmo o Rameirinhas e agora o Circo Negro. O Delicadas veio de um lugar antes, mas
depois dessa reapresentação já foi catapultado para esse lugar também, porque sempre é uma
escolha do olhar que cruza com o público, que cruza com o indivíduo, que reconhece o
indivíduo. Então acho que nossa necessidade de ir para rua também é de..
Sueli: É de encontrar o público...
Luiz: De encontrar o público, mas também de encontrar esse indivíduo mesmo, de olhar essa
massa de gente, e dessa massa de gente...
Sueli: Fazer os encontros.
Luiz: Fazer os encontros. Proporcionar essas questões, proporcionar os encontros. Porque
você está ali como um ser... como um ser artista, artistificado que suscita questões para o
outro, porque o outro não necessariamente está nessas questões. E você também, nessas
questões não necessariamente, precisa se encontrar. Ali a rua vira um lugar para dialogar com
o indivíduo, com o transeunte.
Sueli: Acho que é isso, o desejo foi de encontrar com o público que não fosse no espaço
fechado. Outros tipos de encontros, que a gente pudesse conduzir de alguma a maneira esses
encontros. O desejo de ir para rua é isso. O desejo de ir para a rua é porque a gente ensaia
com uma galera da rua não se comunicando com a gente dali.
Cleber: Hum...
Sueli: É tudo aberto, não é? A gente vive um pouco isso.
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fazer tantas, e vamos mapear os lugares possíveis”. Até chegar nisso que o Bertazzo tava
falando de definição mais de espaços históricos.
Cleber: O que eu tô entendendo é… como se fosse um processo de elaboração da poética do
grupo, não é?
Sueli: Exatamente.
Cleber: Vocês acham que dá para dizer que tem uma dimensão política nessa opção? Será?
Sueli: De rua?
Cleber: É. De experimentar - pontualmente ou não - esse teatro, que ainda é teatro, mas em
um espaço fora do...
Sueli: Acho que é político na medida em que você coloca tua cidade como teu cenário. Abre o
teatro, explode tudo. Explodiu em volta. Aí você diz que em qualquer lugar pode ser feito.
Qualquer lugar tem potência para se criar aquilo que a gente entende como teatro. É claro que
não há bilheteria – acabou com essa possibilidade -, não há hierarquia - nos trabalhos eles não
sabem quem está dirigindo, quem está atuando, essas fronteiras se desfazem completamente.
O espaço onde as pessoas caminham diariamente torna-se um ambiente diferenciado, em
função da tua presença, vários fatores ali são mexidos e mexem com o fluxo da cidade, altera
aquilo que seria padrão. Nesse sentido, você estabelece politicamente a arte.
Luiz: Tem uma coisa... Não sei, não tenho isso tão claro para mim. Mas, dentro da Cia., a
gente tem o discurso da afetividade. A gente é muito afetivo. Sempre. Lidamos com a...
Sueli: Com a delicadeza.
Luiz: Com essa delicadeza. Eu vejo assim: o espaço da rua – posso estar errado - pelo menos
no Brasil, ele é um espaço de confronto. E mesmo no teatro, sempre vem como uma energia,
como uma agressividade... Não necessariamente uma agressividade, mas é um lugar de uma
energia muito forte. E lidamos com as questões na rua do mesmo jeito que lidamos com as
questões no palco. Na rua é um corpo diferenciado, por estar em um ambiente diferente do
palco, mas o princípio do nosso corpo na rua é o mesmo princípio do nosso corpo no teatro -
que é um corpo que se estabelece, que é um corpo presentificado, que é um corpo que cria
relações...
Sueli: Que dialoga...
Luiz: Que dialoga com o corpo do outro. Não um corpo que se impõe, mas um corpo que
recebe, se põe, se joga, se escuta. Nesse sentido, acho que nosso encontro com o público da
rua é um encontro afetivo. Acho que talvez a nossa grande arma seja essa mesmo. Quando a
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gente vai para a rua – principalmente nesse Homem Sem Memória, no Itaú, eu senti que era
encontro de afetos mesmo, que é um lugar onde você consegue mesmo parar a pessoa e...
Sueli: Olhe para mim! Não é?
Luiz: E olhar, “deixa eu te olhar, vamos nos encontrar porque estamos precisando disso
também.” E a gente realmente precisa disso. Se for para pensar no mundo, o mundo está
precisando de uma reforma grande.
Sueli: No Rumos, tanto no Homem Piano, no Homem Sem Memórias, mas no Rumos também,
essa era uma pegada. Então o que a gente faz?
Luiz: Teve esse movimento do espaço público lá porque, como era uma proposta de dois
grupos, a nossa proposta era na rua, a proposta do Argonautas era na Casa das Rosas, na
Avenida Paulista. E mesmo ali também tinha uma performance que acho que era eu e você
que a gente era responsável - cada um em um elevador, a gente subia e descia de elevador
conversando. Uma pessoa entrava no elevador a gente fazia umas perguntas.
Sueli: Era assim “você...”
Luiz: “Você já traiu alguém?”.
Sueli: “Você já roubou? Você rouba?”.
Luiz: Sempre tinha um dentro do elevador.
Sueli: E a pessoa falava, fazia uma fila enorme.
Luiz: Eu acho que é pelo afeto. O que é um ato político de confronto também. Porque o afeto
também é um confronto. Se você for pegar as pessoas que estão enlouquecidas sem nenhum
afeto, você coloca para questionar isso.
Cleber: Você disse que para você é como estar no teatro... para você, como ator, é como estar
no teatro só que na rua...
Luiz: É.
Cleber: Mas ao mesmo tempo...
Luiz: A rua também tem outras exigências.
Cleber: É. Isso que eu queria perguntar para vocês. Como é esse papel do ator, e da diretora,
no caso, considerando que existem outras interferências que talvez mexam um pouco com a
solidez desses papéis. Querendo ou não, como ator, você tem hierarquicamente uma outra
posição em relação à audiência. Não é? Ou não?
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Luiz: Sim. Tem essa questão hierárquica mesmo, que na rua se dissolve um pouco apesar da
gente estar em um lugar... a gente é proponente desse encontro. Não é uma hierarquia. Mas
parte do nosso desejo.
Sueli: É você que está propondo. Não pode escapar.
Luiz: Acho que a diferença maior é que a rua tem essas outras exigências, porque é um
cansaço diferente, o corpo está atento porque existe uma tridimensionalidade que, às vezes, no
teatro, você não precisa lidar... a gente lida muito porque os nossos espetáculos...
Sueli: Tem os imprevistos...
Luiz: Tem os imprevistos. Agente também lida com imprevistos em nossos espetáculos, mas
eles também são mais...
Sueli: Controlados.
Luiz: São mais institucionalizados, talvez. Só que a grande diferença nos nossos espetáculos é
que temos uma fábula. Temos uma narrativa, uma construção de personagem. Só que os
elementos de atuação, para isso, são sinônimos, na rua e no teatro. Os artifícios, as nossas
armas, são as mesmas. O olhar, o corpo presentificado...
Sueli: A possibilidade de atravessamento.
Luiz: A dinâmica da tridimensionalidade. São os parceiros de parede, são os parceiros físicos,
parceiros subjetivos. Esses lugares a gente acessa nas duas instâncias.
Sueli: Você leva como um repertório. Vamos com um repertório primeiro, para chegar lá.
Luiz: Mas na rua não temos a fábula, porque a rua já é nossa fábula. O encontro, o semáforo é
nossa fábula. Quando a gente fez o Rumos Itaú a faixa de pedestre era nossa travessia. Ali era
uma travessia. Colocávamos como a trajetória do personagem, do artista. Acaba tendo esses
elementos.
Sueli: Eles são sempre traduzidos.
Luiz: São sempre traduzidos.
Sueli: A rua exige isso, “o que tem aqui? tem semáforo, tem faixa?”. A gente desenhava, “tem
a esquina, tem a outra esquina, esse é o nosso palco, aqui que a agente age”. Há uma tentativa
de tradução para uma linguagem que você conhece, que você consegue dialogar - a gente
consegue dialogar, não inventa um outro vocabulário.
Cleber: Você acha que é uma apropriação?
Sueli: Com certeza! Você se apropria, e lida com as características próprias do lugar, só que
traduzindo para o teu vocabulário, não importando o vocabulário de outras linguagens. Para
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nós não faz sentido. É nosso vocabulário só que ele precisa ser reelaborado, traduzido, passar
pelas transformações que ele tem que passar. Eles cercam nas nossas referências.
Luiz: O que é gostoso da rua é que nem sempre o imaginário do teatro está presente nas
pessoas que encontramos.
Sueli: O que é diferente.
Luiz: O que é diferente. Porque no teatro isso já está claro, as pessoas foram lá assistir uma
peça. Ali na rua não tem isso. O Rumos Itaú, especificamente, partiu de um encontro que a
gente fez... duas pessoas iam na praça na frente do Estação, outras iam ali no Guadalupe, e
com algumas questões que é... como é que é...? que é a última que morre - não era a
esperança, a gente falava outra coisa.
Sueli: A esperança...
Luiz: A lembrança...
Sueli: A gente fazia um trocadilho.
Luiz: A gente fazia um trocadilho. Ia lá e perguntava isso para... Ia lá e pegava uma pessoa,
fazia a escolha de uma pessoa - porque ficava um tempo ali, até escolher – chegava nessa
pessoa e lançava essa questão. O teatro para a gente...
Sueli: Para nós a gente tava fazendo teatro.
Luiz: Porque eu me coloco como artista, mas não está presente no imaginário do encontro.
Isso muda toda a relação. Por mais que eu esteja num olhar artistificado para aquele
encontro...
Sueli: Por mais que eu tenha me preparado muito para aquele encontro.
Luiz: Por mais que eu tenha me preparado, ali você se desarma.
Cleber: E interfere, como nesse último trabalho, no que vocês fazem? Fica alguma coisa...
Sueli: Do Rumos?
Cleber: É. ...desse outro lugar, desse outro teatro feito na rua?
Sueli: Acho que principalmente isso que o Bertazzo falou: a potência do encontro. Talvez seja
isso que a gente mais cavocou. Desde as coisas mais simples, desde encontrar, chegar em uma
pessoa aqui, ficar encostado na parede, como é que eu faço para chegar em você e você
confiar em mim? Só isso. Eu preciso que você confie em mim. Então, desde isso assim, como
não deixar que o nosso preconceito evite que a gente se aproxime de um e não do outro. É...
Luiz: A expectativa.
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Sueli: É. A expectativa do encontro. Você vai ter que confiar em mim. E eu vou ter que ser
confiável a você pra que a gente possa fazer esse encontro, para que você possa falar algo
para mim e eu possa ouvir a ponto de você acreditar que eu realmente estou te ouvindo. É
muito simples, é muito sutil. Mas o que vem, e passa pelo Rumos, passa pelo Homem Piano, é
como criar as circunstâncias do encontro. Acreditando que, no encontro, os seres ficam
despidos. E pode ser que ali haja uma faísca de verdade, daquele encontro - não formalizado,
não socialmente perfeito, não uma série de coisas. Mas, aquelas que as pessoas possam
encontrar. E a gente se expõe.
Luiz: Talvez isso encontre o que a gente coloca nessa praça... que sentar em um banco de
praça e pegar uma pessoa que não está na relação do teatro, que... esse encontro não se coloca
nesse lugar, às vezes é claro que existem muitas questões do próprio fazer artístico, não é?
Porque, às vezes, tem coisas que acontecem por conta da rua, por conta da praça, por conta
daquela pessoa, mas às vezes eu sinto que existem alguns olhares e que, às vezes, não é para
todo mundo. A gente está em um espetáculo da Cia., e encontra um olhar ali que é muito
honesto, e você se coloca numa honestidade naquele encontro, só que as outras pessoas
podem compartilhar dessa honestidade, do encontro.
Sueli: Ela compartilha daquele encontro que foi verdadeiro.
Luiz: Que foi o encontro que eu fiz com aquela pessoa, e com aquela pessoa é esse encontro,
e é diferente do que com as outras. Mas as outras vão criar relação com isso também, porque
estão olhando para esse encontro. E daí parece que nesse encontro a gente se desarma um
monte para chegar naquele banco de praça. Parece que o teatro até atrapalha um pouco, ao
mesmo tempo que não atrapalha, porque é onde a gente consegue fazer esses encontros. E
quando acontece é lindo, mas é difícil. Por exemplo, o Circo Negro, que é o espetáculo que
estamos agora... Quando estávamos no Rameirinhas, chegamos num lugar depois de muitas
apresentações, na segunda temporada, chegamos nesse lugar desse encontro. Só que esse
encontro é dentro de um tema, que é um sexo, é a libido, e esse encontro tem a ver com esse
tema. Agora, no Circo a gente ainda nem vislumbrou qual o tema do encontro. Por mais que a
gente tenha esse olhar, por mais que a gente tenha essa vontade, ainda demora muito, porque
não é institucionalizado, a gente não consegue sempre. O próximo espetáculo será um outro
tema, um outro tipo de encontro, um outro tipo de olhar, acaba sempre sendo diferente, mas, a
rua também é isso.
Sueli: E na rua tem esse encontro que é mais urgente.
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Luiz: É urgente. É.
Sueli: Mais exigente, mais arriscado. É uma besteira enorme quando você pensa “eu tenho
que atravessar essa rua, e falar com aquele senhor que está sentado ali na praça”.
Luiz: Não dá tempo de...
Sueli: Só que eu não posso ir com as minhas referências formatadas. Eu não posso chegar lá
de ator. Não posso chegar lá com olhares de jazz formatados, porque você vai fazer assim
para a pessoa. Você vai “ai, sai de perto de mim”, ou ela vai agir com você também dentro de
uns padrões que ela conhece. Então como você chega...
Luiz: Sem expô-la.
Sueli: ...Sem expô-la, e se expondo muito? Eu não vou te expor, mas eu vou me expor. Se isso
é o que eu preciso para que a gente faça esse encontro, então a gente vai fazer.
Luiz: E claro que tem uma relação quando você fala da cidade, que é o nosso cenário, que
para mim é o que há de mais político no trabalho da Cia., é fazermos tudo isso aqui em
Curitiba. Não uma questão de julgamento, de valores...
Sueli: É que a gente é super mal recebido.
Luiz: E a comunidade de São Paulo. Porque em São Paulo a gente realmente tem uma
vibração diferente, que também tem seus pontos positivos e tem seus pontos negativos. São
Paulo pulsa. Os trabalhos da Cia. em Curitiba, acho que o diferencial... Talvez volte àquela
questão da rua nos coloca, a cidade nos põe, tudo é circunstancial nesse sentido. Talvez a
gente precise desse olhar, precise desse encontro, porque realmente Curitiba não nos
proporcione essa possibilidade. Curitiba não nos proporciona possibilidade de encontro na
rua. É muito difícil acontecer isso aqui em Curitiba. Agora que estão surgindo projetos para
que isso aconteça. Talvez o encontro não seja uma...
Sueli: Talvez seja mesmo a nossa necessidade de dialogar de alguma maneira.
Luiz: Porque talvez o teatro em São Paulo, ou no Rio, eu não sei por que eu não trabalho lá, é
diferente eu assistir e trabalhar... Talvez lá o encontro já exista, o teatro já é um encontro. Em
Curitiba não, o teatro realmente não é um encontro ainda, a gente proporciona essa
possibilidade porque necessitamos disso também, e sentimos uma necessidade do público
curitibano em relação a isso. É uma questão política mesmo.
Cleber: Eu gostaria de agradecer, porque para mim é muito bom ver como são diferentes as
compreensões, mas como tem algo que liga esses grupos - que é esse desejo de encontro.
Ainda que os discursos variem muito.
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ANEXO D
Entrevista realizada com Henrique Saidel, do Coletivo Cia. Silenciosa, na cidade de Curitiba,
Paraná, em 22/10/2012.
Eu resolvi fazer uma peça de rua, ao contrário, só para ver se era possível fazer uma que não
tivesse esses elementos que sempre eu via e achava a coisa mais chata do mundo.
Também na época teve uma bienal, acho. Não sei se era uma bienal de São Paulo, ou alguma
coisa que teve em São Paulo, de projeto - isso em 2003 - que tinha umas intervenções. Eram de
artes visuais, mas tinha uma coisa com a rua, com espaços públicos. E tinha umas obras que eram
em trens, - vagões de trens empilhados, umas coisas de intervenção plástica na rua. Aquilo me
impressionou bastante. E eu pensei que se dá para fazer nas artes visuais, dá para fazer coisas
interessantes no teatro também. Na realidade esse diálogo com artes visuais sempre esteve nos
nossos trabalhos. Eu comecei estudando desenho industrial no segundo grau. E eu comecei
primeiro a fazer arte visual na UFPR, depois fui fazer artes cênicas na FAP. Então, deve ter sido
alguma coisa que me agradou. Comecei a pesquisar mais sobre esses textos de “como fazer teatro
de rua”, tentando fazer um roteiro que fosse o contrário disso, e surgiu a primeira peça de 2003,
com um nome comprido que é Aqui você verá lebres e outros animais mortos manipulados por
atores escondidos, também fazendo referência ao trabalho do Beuys, que eu estava estudando na
época.
Cleber: Você me diz trabalho como o quê? Como era esse trabalho?
Henrique – Resumidamente era assim: nos apropriávamos dos chafarizes da cidade. Sempre uma
coisa meio absurda com o chafariz, na água jorrando, que não serve meio pra nada.
A gente fazia em três chafarizes do centro: na frente da C&A, no Cavalo Babão, e no...
Cleber: Na Osório?
Henrique: Isso. Na Osório. Cada dia em um, e foi no Festival de Teatro. Durava seis horas.
Começava a peça com um cortejo, tinha - no elenco de cinco pessoas - o Cauê que andava de
perna de pau, não sei quem lá, que tocava um bumbo. Começava o “cortejinho” bem típico de
peça de rua, cantando o “Abre Alas”. Fazia o “cortejinho” de uma quadra, mais ou menos, até
chegar no chafariz. Aí parava no chafariz. Cada um tinha uma plaquinha no pescoço do título.
Um ao lado do outro, formavam o título Aqui você verá lebres e outros animais mortos
manipulados por atores escondidos, e cantavam uma musiquinha com o título musicado. Depois
disso vinha uma menina, que tinha perna de pau - não, era o Cauê - e começava a fazer uma
contação de história. “Era um dia...”. Porque, também, contação de história eu acho uma coisa
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muito chata - eu começava com tudo que eu achava de mais chato. Aí o público já estava em
volta, já era feita a rodinha, aquela história. E quando ela começava a contar a história, vinha o
Cleber Silvestre, não sei se você o conheceu...
Cleber: Não, não, não...
Henrique: Ele fez Bangulho com a gente uma época, mas depois ele sumiu, perdi o contato. Na
ação dele, ele está vestido de terno e gravata, uma pastinha executiva, bem à paisana, e ele
andava pela Rua XV. E a ação dele era só essa. Ao invés dele contornar o chafariz, ele não
desviava, ele atravessava como se não tivesse um chafariz ali. Ele atravessava a cena, e
atravessava o chafariz. Quando ele atravessava a cena, as pessoas ficavam indignadas,
“atrapalhou a peça” e tal. E quando ele quebrava a cena e atravessava o chafariz, parava a
contação de história e começava de fato a ação, que tinha dois eixos de atuação. Um dos atores
fazia intervenções plásticas dentro do chafariz - entrava na água e fazia coisas dentro do chafariz,
mais visuais do que..., e alguns outros faziam umas paródias desses artistas de rua - estátua viva,
violeiro -, ficavam em volta do chafariz. Esses que ficavam em volta do chafariz usavam roupa
de banho, e os que ficavam dentro do chafariz usavam roupa de inverno - casacão - e isso
continuava por seis horas. Começava meio-dia e ia até às seis da tarde. Em alguns momentos eu
também estava em cena. Eu estava com uma camiseta turística de Curitiba. Tinha um triângulo, e
eu aleatoriamente tocava o triângulo. Esse sinal era combinado. No primeiro sinal, todo mundo
parava o que estava fazendo e dançava Macarena - fazia a coreografia do Macarena todo mundo
junto, duas, três vezes e voltava ao que estava fazendo. Cada um na sua, bem isolado. Eram
várias pessoas, bem isoladas, fazendo as coisas. E no segundo sinal todo mundo tinha que olhar
para cima, para um prédio e gritar “Pula! Pula!”. E era isso. Isso continuava ininterruptamente
durante seis horas. Quando dava seis horas eu dava um sinalzinho e eles iam sumindo aos
poucos. Não tinha um final tão espetaculoso quanto o começo, só uma diluição.
Esse foi o primeiro trabalho. Foi quando a gente conheceu o Erro também, eles assistiram
também e “nossa!”, a gente assistiu a peça deles e a gente “nossa!”. A gente se conheceu e se
gostou.
Depois dessa, no ano seguinte, fizemos o Agora Você Ouvirá - que era por telefone. Não
divulgávamos o lugar onde seria, divulgávamos dois números de telefone para a pessoa ligar, só
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que esses telefones eram dois orelhões da Rua XV separados. A pessoa ligava de não sei onde, e
tocava o orelhão. Do lado do orelhão tinha um sofá com três atrizes. Era uma de cada vez. Tocava
uma vez, a que estava na ponta levantava e falava a peça - de quinze minutos - para quem estava
do outro lado da linha, desligava e voltava. Tocava novamente o telefone e a seguinte levantava.
Isso acontecia em dois telefones simultâneos, eram dois elencos, com as mesmas histórias - três
histórias que se duplicavam nos dois espaços, só que com atrizes diferentes. Tinha essa dimensão
de onde essa peça acontece, se é ali da rua, mas, quem só via da rua não ouvia nada, só via três
gurias sentadas em um sofá, e quem ouvia não via, se acontece na casa de quem ligou, ou pelo
celular, pelo telefone. A ideia era trabalhar com esses suportes da cena - onde a cena acontece?
Então as pessoas começaram a ser safadinhas, elas ligavam pelo celular do lado da atriz. Paravam
do lado da atriz e ligavam. Para ver e ouvir ao mesmo tempo.
Cleber: Mas elas sabiam disso?
Henrique: É, e começamos a sacar. Elas não interagiam com a plateia fora do telefone, só pelo
telefone. Se alguém fosse lá falar com elas, elas não falavam nada.
Tinha uma faixa escrito “disque teatro, ligue para tal número”.
Cleber: Tinha?
Henrique: Tinha. Uma faixa dessas pintadas a mão, em cima do telefone. As pessoas podiam ver
ali o que estava acontecendo, só que tinham que telefonar para ouvir. E umas pessoas mais
espertinhas paravam do lado do orelhão para ouvir ela falar, em vez de ligar. Aí que começou
todas essas relações.
Tem essas duas, e tem um trabalho de antes dessa Cia. Silenciosa que eu acho legal. Que se
chama: A Maior Peça Mais Panfletária do Mundo, de 2001. Não existia a Cia. Silenciosa ainda.
Não sei de onde exatamente que surgiu a ideia, mas, fizemos uns panfletos. Acho que até...
Enfim, não lembro. Criamos dezoito modelos de panfletinhos, desses bem fuleirinhos de papel
colorido, sabe? Tipo dessas videntes. São de um papelzinho fininho. Tinha uma moldurinha e
uma pombinha do lado, e uma frase enigmática no meio. Tinham dezoito frases diferentes, que a
gente mandou imprimir, sei lá, dezoito mil panfletos. Bastante assim. Eram umas frases, sei lá,
“pega no meu e diz que é teu”, outra, sei lá, “acabe com ela antes que ela acabe com você”, umas
frases assim meio, “quem matou Jane Davilla?” (risos). E a gente saia nas ruas distribuindo isso,
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como se tivesse sido pago para fazer isso. Ninguém vinha perguntar, não falavam nada. Saíamos
espalhando mais pelo centro e também fizemos na Avenida das Torres, deixávamos no
estacionamento. Foi durante o Festival de 2001, ficamos uns dias distribuindo isso. E aos poucos
começamos a reparar - éramos uma equipe de trinta pessoas, mais ou menos, que tínhamos
montado para distribuir - que tinha outras pessoas distribuindo, pessoas que não eram da equipe.
As pessoas começaram a repassar os panfletinhos. E ouvimos umas coisas muito absurdas das
pessoas tentando entender o que era aquilo. Vários de nós receberam ameaças, como eu que
distribui para um carinha “pega no meu e diz que é teu” e o cara quis me bater (risos).
Lembro que estava uma mãe com o filhinho, e ela veio me perguntar “mas o que quer dizer isso
“acabe com ela antes que ela acabe com você'?” aí o piazinho: “Errr Mãe, é a dengue” (risos)
Falando da dengue (risos).
Outra pessoa que eu também ouvi meio de relance disse “ah entendi, isso aqui é uma peça de
teatro e ela se passa dentro da nossa cabeça”.
Cleber: Olha!
Henrique: Eu: “nossa!”...
Cleber: Quem sou eu para contradizer, não é?
Henrique: Enfim, teve esse trabalho... que mais que teve?
Cleber: Teve os Los Juegos, não é?
Henrique: Isso! Los Juegos que foi a última mais efetiva. A gente fez uma chamada
Maracangália's Play, mas não deu certo. Foi um dos fracassos. Ainda quero fazer, quero ver se
dá certo, porque a ideia do Maracangália's Play era sair pela cidade percorrendo os trajetos
carregando coisas muito pesadas, ou “tramboliosas” assim, que entalassem na calçada, ou ir
empurrando, arrastando, mais simples, só que a produção não conseguiu, e não aconteceu.
Mudamos para fazer os trajetos marcando por onde está passando, não rolou muito legal.
Cleber: Mas você disse que o interesse começou - me corrija se eu estiver errado - de se dar conta
de um modelo de teatro de rua.
Henrique: Isso, eu comecei assim mesmo. Eu me empolguei descrevendo as coisas. Começou
assim, mas depois eu abandonei isso - essa ideia de ficar tão reativo.
Cleber: O que te incomodava nesse modelo?
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Henrique: Primeiro de ser sempre igual. De ver peças de vários lugares, de várias pessoas - que
não tinham nada a ver uma com a outra -, e com os mesmos elementos, até mesmo o ritmo
musical. Mas o que tem, não é? Por que sempre em rodinha? Por que sempre contando uma
historinha? Por que sempre desse jeito? Essa unanimidade sempre me incomodava, mas isso não
só na rua, em espaços convencionais também, essas coisas sempre me incomodaram, se eu vejo
muita gente fazendo daquele jeito, dá vontade de fazer diferente só para quebrar com aquilo.
Cleber: Você não entende o que essas ações da Cia. Silenciosa como um teatro de rua...
Henrique: É...
Cleber: Como você entende isso que vocês fizeram? Eram intervenções urbanas?
Henrique: Então. Acabamos chamando mais disso, porque se você bota lá teatro de rua, você tem
que dar conta de toda uma tradição, que é uma tradição, é importante. Não estou dizendo “puts,
isso daí não devia existir que é uma porcaria” mas... então, o teatro de rua acaba tendo uma
filiação muito marcada, que eu não sei se me interesso em dar conta disso. Acabou que
intervenção urbana ficou um pouco mais livre. Agora também já está meio batida essa expressão,
é porque já é mais para uma ideia de infiltração, de interferir em algum fluxo das pessoas,
destacar. É mais um pensamento plástico, do que um pensamento cênico, essas ações. Apesar de
ser com um corpo, com atores, é mais performático. É um pensamento mais plástico do que
cênico, de interferir visualmente na cidade.
Cleber: Elas têm uma teatralidade.
Henrique: Têm. Total. Até porque a minha formação é teatral. Não tem como escapar disso. Só
que não chamamos de teatro de rua, para escapar um pouco dessa filiação, porque eu realmente
não quero dar conta disso, não me interessa dar conta disso, nem que seja para desconstruir. Não
sei se eu quero empreender todos os trabalhos. Não é como o (inaudível) que tem um foco bem
claro de ações só na rua. O nosso foco nunca foi esse. Fazia na rua como fazia dentro do italiano -
no palco italiano -, como fazia dentro de uma boate, de uma casa noturna. Aí se falar de teatro de
rua tem que dar conta de outras coisas.
Cleber: E o que você entende por intervenção urbana?
Henrique: Los Juegos Provechosos a gente também chamava de intervenção urbana, mas acho
que ele está mais próximo de um espetáculo mesmo de teatro - teatro de rua talvez -, tem mais
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essa ideia de um personagem, não é exatamente um personagem, mas uns tipos, que têm uma
roteirização mais fechada. Eu gosto de pensar em intervenção urbana como um negócio que não
está fechado com começo, meio, e fim, cronológico, são coisas mais, que pipocam ali. Elas
dependem mais intrinsecamente do tecido da cidade, do que o espetáculo que vai ali e se coloca.
Então, intervenção é interferir em algo que já está colocado ali, que não é ignorado de forma
alguma, pelo contrário. A intervenção tem uma ideia de site specific - é para aquele lugar, aquele
tipo de lugar, interferir nas lógicas e nas cotidianidades daquele lugar. Ou para reforçar e
exacerbar algum aspecto, ou para quebrar, para impedir.
Cleber: Vocês pensavam no lugar antes?
Henrique: Geralmente, sim. Geralmente parte do lugar, daí pensa em como agir naquele lugar. O
“Aqui Você Verá...” que eu pensei primeiro, teve essa ideia “eu quero fazer uma peça que rompa
com essas coisas”. Chafariz já era um espaço da cidade que interessava bastante. Então vamos
fazer alguma coisa no chafariz. O que dá pra fazer no chafariz? Então vamos pensar nesse tipo de
coisa. O “Agora Você Ouvirá” surgiu: telefone. Tem orelhão. Esse espaço vem primeiro, aí o que
dá pra fazer no telefone? Como a gente pode mexer com isso? O Los Juegos Provechosos já teve
outros disparadores. Primeiro que fazia tempo que eu queria fazer uma peça - algum trabalho - de
cunho mais erótico na rua, que fosse na rua, que fosse de noite, que tivesse uma cara um pouco
mais underground, a palavra é péssima mas, uma coisa mais obscura, e aí eu criei um roteiro que
não precisasse de um lugar específico, mas que era um roteiro gráfico. Eram três cenas, a
primeira cena tinha que ser num ambiente mais... ou numa marquise, ou num hall, como era uma
cena brega no começo, num “lugar mais seguro”, algo mais controlável, um hall, uma calçadinha,
uma marquise. A segunda cena tinha ser na rua mesmo, com algum carro chegando – eu queria
que chegasse um carro -, algo que implicasse um pouquinho mais de risco, de trânsito, de
atropelamento, sei lá, e o terceiro... começava aqui baixinho, aí ia para uma rua, e o terceiro tinha
que ser num lugar alto. Num lugar alto que tivesse uma cena que as pessoas tivessem que olhar
para cima. Tinha esse desenho. A partir desse desenho, a gente achou onde fazer, onde encaixar
essa linha gráfica, e que cenas encaixar nesse roteiro. É esquisito chamar isso de roteiro. Um
roteiro gráfico.
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A peça panfletária, não tinha exatamente um espaço, era uma ação desses panfleteiros. Era uma
ação sobre essa ação dos panfleteiros que estão na rua, mas não era um “espaço específico”.
Cleber: Vocês divulgavam as intervenções?
Henrique: Geralmente sim. Essa dos panfletos não, porque a ideia era ser secreta, misteriosa. Mas
as outras sim, porque o “Aqui Você Verá...” era no Festival, “Agora Você Ouvirá” também era no
Festival – no Fringe, o Los Juegos foi na mostra Cena Breve. A gente nunca interessou negar essa
espetacularidade, nunca foi um problema as pessoas irem para o espaço só para ver aquilo, só
para ver.
Cleber: Mas apesar disso outras pessoas cruzavam o seu trabalho.
Henrique: Com certeza.
Cleber: E a recepção? Como você sente? Considerando que vocês também nunca deixaram de
fazer trabalhos em lugares mais...
Henrique: Fechado...
Cleber: É.
Henrique: Olha, nossas recepções sempre foram problemáticas. Sempre foi uma questão das
pessoas “ai, não tô entendendo nada, o que isso quer dizer?”. Essas são perguntas, sempre
falavam isso para gente: “Ai o que quer dizer sua peça? O que quer dizer? O que significa? Não
entendi nada”. Acho que essas frases eu ouvi tanto na vida, que eu vi agora algumas vezes nesses
debates da Cena Breve, que eu “ai de novo não! Tudo de novo” (risos). É que todas essas ações
tinham um “quêzinho” de provocação. Sempre tinha uma alfinetadinha ali. Então as reações
muitas vezes eram meio inflamadas. Sempre foi uma coisa que a gente gostou de trabalhar nesse
registro. Não a provocação violenta, mas misto de provocação com uma palavra que a gente
sempre gostou de usar que é sedução. E sedução até na literal mesmo, essa sedução amorosa,
sexual, isso também. A gente começou não sexual, e foi sexualizando cada vez mais, até aí para
burlescas, Los Juegos, essa sedução sexual. Mesmo quando é uma sedução, é uma sedução meio
que provoca, que dá uma alfinetada. Nem questão de crítica social, não é nesse sentido tão direto,
tão primeiro. É o tipo de provocar com uma estranheza, uma quebra de lógica, uma quebra de
fluxo, uma interrupção de entendimento. Eu pelo menos sempre gostei... eu gosto quando as
pessoas dizem que não entenderam, e daí ficam muito intrigadas, ficam lá matutando, quebrando
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a cabeça, e não vão embora, e ficam lá. Acho que aí tem um lugar potente. A recepção nunca é
muito tranquila. Mesmo quando causa frisson. Em Los Juegos a Marina levou uma mordida na
bunda. O cara foi lá e mordeu a bunda dela. Botavam dinheiro nelas. Então, as reações são
inflamadas no bom sentido, mas também tinha reação inflamada de indignação. Claro, não com
todos. Não quer dizer que todo mundo se inflame com as coisas, mas no geral é o que chega na
gente, porque quando a reação é mais morna nem chega muito na gente.
Na época do “Aqui Você Verá...” saiu uma criticazinha na Gazeta, que era o cara tentando
analisar o que era cada personagem, o que cada um fazia dentro do chafariz, se perguntando onde
estavam as lebres mortas. “Cadê as lebres mortas do título?”. Os atores não estavam escondidos,
estavam lá, cheio - quinze atores. “Como assim, os atores não estavam escondidos?” “Cadê as
lebres mortas?” Aí, o cara mesmo chegou a uma conclusão que eu achei magnífica. Ele concluiu
que aqueles atores eram as lebres mortas, e que os atores realmente estavam escondidos, que
ninguém estava vendo. Sempre tem isso “o que isso quer dizer?”, claro, isso cansa um pouco,
ficar batendo só nisso. Eu não sei também dimensionar se isso acontece com a maioria das
pessoas - esse tipo de reação, de recepção. A gente sempre se preocupou em fazer algo que ao
mesmo tempo, estou me repetindo um pouco, mas que tivesse esses elementos de interrupção, de
quebra, de interdição de entendimento, de provocação, de incômodo, e mesclar isso com
elementos de sedução. Uma coisa mais maliciosa, sei lá, já põe uma comida no meio, e já rola
uma coisa mais desprendida, mais gostosa, sei lá.
Cleber: É próximo da performance, não é?
Henrique: É... Eu não sei dizer se é performance. Algumas pessoas sempre dizem que é, “isso não
é teatro, é performance” aí vem um teórico, alguém que estuda performance e diz “não, isso daí
não é performance, isso é teatro”, sempre tem essa discussão, eu não consegui responder, mas
tem elementos performáticos muito fortes. Sempre tem um pezinho ali na ficcionalização.
Sempre tem um pezinho ali. Nem que seja um arremedo, um soprinho de um personagem, um
elementinho, um chapeuzinho de um personagem, não é nem uma construção inteira, é um
fragmento de um personagem que já meio que desloca desse campo da performance mesmo, mais
ligada às artes visuais, música, literatura. Cara, tem esse pezinho no teatro. Nunca teve uma
construção teatral muito evidente - uma dramaturgia, uma construção de personagem. Era muitas
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vezes mais uma exacerbação de características pessoais do que “eu estou fazendo aqui tal coisa”.
O “Agora Você Ouvirá”, do telefone, esse tinha “personajão” - personagem mesmo. Um dos
textos que a Ana Cristine dava era uma adaptação dos Sete Gatinhos, do Nelson. Ela era Aurora,
ela estava vestida com o figurino de Aurora - que é a mais velha entre as irmãs -, e ela contava a
história da peça - dos sete gatinhos. Tinha até uma sonoplastia. Na época não tinha ipods, não é?
Então, tinha um discman, ligado com duas caixinhas de computador ali dentro do orelhão. Ela
atendia ao telefone e começava a falar, e no meio da fala eu dava o play. Eu operava uma
sonoplastia que tinha, de suspense. Então, tinha personajão.
No “Agora Você Ouvirá”, a Ciliane fazia uma adaptação de um livro chamado Quem Nasceu
Para Cintilante Nunca Chega a Francesinha - que é uma personagem fazendo a unha e contando
histórias da vida dela que se relaciona com o ato de fazer as mentes. Ela estava de roupão com
aquelas máscaras faciais, fazendo a unha. Ela atendia ao telefone e realmente batia papo,
interagia com alguém lá do outro lado. Minha mãe adorava essa parte, ela ligava torcendo para
cair com a Ciliane. Elas ficavam conversando sobre fazer unha (risos).
A outra que a Gi fazia, a Léo fazia, era uma entrevista - talk show - de uma atendente de tele-
sexo. Ela se chamava Marta, e a entrevistadora também se chamava Marta. A voz da
entrevistadora a gente tinha gravado com a voz da Gi - ela fazia a voz da entrevistadora gravada,
e respondia ao vivo como entrevistada.
Cleber: E a pessoa ouvia isso?
Henrique: E a pessoa ouvia a pergunta ali na caixinha de som e ela falando ao vivo respondendo
a pergunta. Era a voz da mesma pessoa com mesmo nome, só que eram dois personagens, e era
uma atendente de tele-sexo, e era uma conversa sobre isso de fazer sexo por telefone. Acho que
essa é a que mais tem personagem mesmo, as outras são fragmentos, uns traços de personagem.
Acaba dialogando mais com performance, até pela questão dessa construção visual, dessa
interferência visual no espaço. Acho que dialoga com isso. Pessoalmente, eu gosto mais de
dialogar com uma tradição da performance, do que com uma tradição do teatro de rua. Eu fico
mais confortável quando dizem “isso não é teatro, isso é performance”, do que quando falam
“isso é teatro de rua”.
Cleber: Quando você fala em tradição em teatro de rua... você se citou a perna de pau...
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chafariz e desde então aquilo se tornou forte para ela, rolou ali uma alteração, a pessoa foi
transformada, sempre gostamos de pensar nesse sentido - de uma alteração de mundo, de
percepção, do que a pessoa vê, do que a pessoa sente, de dar uma desenferrujada no aparato
sensório-cognitivo da pessoa. O simples fato de mostrar que pode ser diferente, nem dizer assim
“olha, desse jeito é melhor”, porque não é exatamente um jeito, só dar uma chacoalhada no
habitual a gente já considerava, e eu ainda considero como uma ação política. Se a pessoa
começa a ver diferente algumas coisas, ela pode ver diferente outras coisas também - a si mesmo,
à sua atuação no mundo. Claro, isso são desdobramentos que não estão presentes nas obras
explicitamente, mas são possibilidades, desdobramentos possíveis. Eu acho que é uma mudança
de imaginário, transformar o imaginário da pessoa, transformar sem saber como vai ficar depois,
não é assim “deixe de pensar assim, e pense de outro jeito”, não, é só “pense assim, mas também
pense de outro jeito”, “veja assim, mas também veja de outro jeito”, mais nesse sentido, sabe?
Isso não acontece só com o espectador, acontece com a gente mesmo.
Cleber: E também não só no espaço público.
Henrique: É. Não só. Na realidade isso sempre foi muito conectado, eu nunca pensei. Os
raciocínios são muito parecidos - raciocínios de construção poética. De dentro do espaço -
espaços fechados, espaços abertos... porque no espaço fechado a gente também se relaciona com
aquele espaço, quando a gente vai apresentar no teatro italiano, a gente não foi apresentar lá
porque é neutro, um palco neutro, não, porque era um palco italiano e estamos falando sobre
palco italiano, sobre esse palco, sobre essa cortina, sobre essa bambolina, sobre essa cadeira
estofada, é sobre isso que a gente está falando também. Na realidade quando apresentamos
trabalho em espaço fechado, talvez seja o contrário, não quer dizer que o trabalho na rua seja
igual ao de dentro dos espaços fechados. Talvez o trabalho de espaços fechados seja igual ao
trabalho do espaço aberto. Porque no espaço aberto você nunca acha que ele está neutro, e no
espaço fechado a gente tem a tendência de achar que é um espaço neutro. A gente nunca achou
isso. Vai apresentar num espaço dois, a gente sabe que é uma casa X, que tem o dono X, que tem
tais dinâmicas, que tem o estacionamento X, com uma cadelinha X... Então não é de graça, na rua
também não. Em espaço aberto também não. Me perdi um pouco no que você perguntou.
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Cleber: Não... Faz sentido. E se a primeira performance/atuação partiu motivada por uma
estranheza em relação ao padrão do teatro de rua... e as que se seguiram? Por que fazer isso assim
e não no teatro?
Henrique: Tem várias questões, as mais subjetivas, as mais conceituais – as mais intuitivas, as
mais conceituais. Intuitivamente porque eu gosto de ficar na rua, eu gosto de ficar em espaços
abertos, de andar, não gosto muito de ficar em casa, fechado. Eu gosto de circular, caminhar. Eu
prefiro ir num bar, em um café estudar, do que estudar no meu quarto. Gosto de sair para fazer as
coisas. É uma tendência pessoal sair e estar em lugar aberto com gente passando. Eu acho que a
partir do “Aqui Você Verá...” uma coisa foi se relacionando com a outra, em decorrência da outra.
Alguma coisa que acontecia no ensaio de uma peça dava um “click” para fazer um próximo
espetáculo. Essa do telefone surgiu no ensaio de Iracema - que era montagem de final de curso da
Gi, e da Léo – que era uma peça de palco, só que fizemos um ensaio na rua - na praça Santos
Andrade – e era um ensaio bem aberto, era só para ficar descendo e subindo a escadaria
ralentando, só pra ver o que ia acontecer, sem maiores pretensões. Uma hora estava uma das
atrizes passando do lado de um dos orelhões, e eu estava do lado do outro orelhão do outro lado
da praça, e ao longo da cena - eu ainda não estava no elenco na época - íamos dando umas
instruções para eles fazerem, “agora faça tal coisa”, ia lá no ouvido e falava baixinho. Em
determinada hora que atriz estava passando do lado do telefone e eu estava no outro eu pensei
“vou ligar para ela e vou passar a instrução no telefone para ela, vou ver se ela atende”, ela não
atendeu o telefone, eu vi o número lá, liguei e ela não atendeu. Morreu ali, mas aquilo ficou
“hummm... dar instrução por telefone”, fiquei matutando, e olhe, aí tem coisa. Já não tinha mais
essas questões “vou romper com uma tradição de rua”, já não importava mais isso.
Cleber: E o ensaio já estava na rua.
Henrique: É, já estava na rua. As coisas vão se contaminando, as coisas vão se cruzando, um
elementozinho que em um trabalho não é nada, mas ele dispara o outro trabalho inteiro. Como foi
nesse caso. Naquele ensaio não serviu de nada, mas isso gerou todo um trabalho feito só em cima
de telefone.
O Los Juegos Provechosos veio de uma ideia que já estávamos pensando, já estava se erotizando
mais, eu já estava começando a pensar que tinha que ter alguma coisa, e rolou um pouquinho de
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pensar que geralmente as peças são de dia, vontade de fazer uma peça de noite, rolou um
pouquinho disso, “vamos fazer alguma coisa erótica na rua, já que Curitiba é essa coisa que nada
acontece de fora, se você abre um bar na esquina e tem galera na calçada, a polícia vem e fecha,
caceteia e tudo”, como é isso de fazer algo provocativo mesmo, um pouco mais explícito, fazer
na rua mesmo, de noitão? A gente apresentava na Boca Maldita à meia-noite. Tinha essa ideia que
veio de outros trabalhos de palco, que já tinha aparecido essa questão do erotismo mais forte,
então começamos a pensar isso em todas as ações que fazíamos.
Cleber: Vocês tinham autorização para fazer isso?
Henrique: Nunca pedi.
Cleber: Para nenhuma delas?
Henrique: A gente nunca pediu. “No Aqui Você Verá...” eu pedi para o Festival arranjar. Não sei
se eles arranjaram, a polícia veio impedir, aí eu falei “não, mas é do festival, e gente está
autorizado”, e ficou por isso. No telefone a gente não pediu autorização pra ninguém, só botou o
sofá lá e ficou, mas também era festival, então se tivesse acontecido algum problema eu usaria
esse álibi, mas não precisou. No chafariz acho que nem tinha autorização, o Festival acho que
nem tinha pedido. No Los Juegos tínhamos autorização dos prédios, porque na cena final a Léo
desce de rapel. No Cena Breve era na caixa, ela desceu da Capela Santa Maria. Eu entrei em
contato com a Fundação Cultural, com a coordenação da Capela, para eles autorizarem, até para
ela entrar, passar por dentro do prédio, para descer pela fachada. E também quando a gente fez no
Festival, fizemos na Boca Maldita, e era do edifício Tijucas, a gente foi falar com o síndico.
Uma coisa importante de pensar em intervenção urbana é que não é direcional. Não sou só eu e
os artistas envolvidos que interferimos na cidade, mas a cidade também interfere na gente. Acho
que é uma mútua intervenção. Quando entramos no chafariz, não é só o chafariz que se modifica,
é a gente que também se modifica ao entrar nisso, ao entrar em uma água suja, tem até uma
modificação fisiológica, mais verificável. Nesse caso, por exemplo do chafariz, tem os riscos
inerentes de entrar em uma água suja, mas também o fato de entrar em um lugar que não é para
entrar, e a gente sempre quis entrar quando era criança. Foi uma comoção no elenco isso.
Também de algumas coisas que aconteceram, sei lá, quando vem um carinha que está passando
na rua e morde a bunda da atriz, a relação dela mesma com o espaço também se alterou. É uma
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intervenção não só no espaço, mas também o espaço interfere no artista, não é tão unidirecional,
“nós artistas estamos de fora, e de fora a gente interfere”, não, a gente já está.
Eu lembro que na época do “Aqui Você Verá”, dessas primeiras de rua, perguntavam “por que ir
para rua?”, na época eu falava “mas gente, eu não estou indo para rua, eu já estou na rua, eu já
estou nessa cidade, eu não estou indo para a cidade, me deslocando para essa cidade, eu já estou
nessa cidade, só estou fazendo alguma coisa onde eu já estou”. É simultânea essa interferência. A
cidade interfere na gente como pessoas, a gente interfere na cidade como artista, e essa cidade
reinterfere no artista. Acho que esse é um aspecto bem importante de pensar, o artista não é
invulnerável, pelo contrário.
Cleber: Você falou que hoje em dia é mais frequente o uso desse termo “intervenção urbana”.
Henrique: Pelo menos eu vejo quantitativamente.
Cleber: E para os grupos, coletivos de teatro.
Henrique: É.
Cleber: E como você...
Henrique: Nos festivaizinhos, até na Funarte, você vai por categoria, tem o quadradinho
“intervenção urbana”.
Cleber: E você tem visto esses trabalhos, acompanhado de alguma maneira?
Henrique: Olha, muito pouco.
Cleber: E do que você tem visto, que impressão tem ficado para você de trabalhos que se dizem
intervenções urbanas?
Henrique: A minha maior referência acaba sendo até por gosto, e laços, acaba sendo o Erro. Até o
ano passado fizemos o projeto do Rumos Cultural juntos, então eu acabo acompanhando mais o
trabalho deles. Gosto muito.
Até fico meio pensativo, não tenho visto muita coisa, sabe? Deixa eu pensar. Estou curioso
porque tem um grupo lá no Rio de Janeiro, que acho que não faz muito tempo que existe, se
chama “Teatro de Operações”. Eu estou curioso para ver, acho que semana que vem eles vão
apresentar lá na UniRio. Eles são da UniRio. Acho que tem uma menina de Antropologia, um piá
que entrou no mestrado em Cênicas, e que eles fazem tipo umas manifestações, umas coisas mais
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de ativismo mesmo, só que mesclado com peça. Então, estou curioso para conhecer o trabalho
deles.
Mas eu não tenho visto muito. Pelo menos não estou lembrando agora. Até se eu lembrar depois,
eu te mando e-mail, “ah, lembrei o que vi mês passado” (risos).
Cleber: Tem mais alguma coisa que você ache relevante dizer em relação...?
Henrique: Deixa eu pensar... ultimamente tenho vontade - aquilo que eu falei de estar
questionando essa dimensão política no trabalho - de ser mais incisivo nessa questão política,
deixar um pouco mais evidente, mas ainda não sei como.
Cleber: Evidente?
Henrique: É.
Cleber: Não tematizada?
Henrique: Não tematizada, mais de ação mesmo. Isso é uma coisa legal, que você disse de não
tematizar. No geral, do nosso trabalho da Silenciosa, e no meu também, dentro e fora da
Silenciosa, geralmente a gente não só tematiza a coisa, não fala sobre essa coisa, a gente acaba
sendo a coisa. A gente foi falar sobre o pessoal do Teatro de Revista, ou sei lá, vedete e tal, a
gente meio que se transformou nisso - aí já pinta o cabelo de loiro, já sai de espartilho de noite,
faz um escândalo em uma inauguração de não sei o quê.
Tem essa dimensão de não só tematizar - isso tanto dentro do espetáculo, quanto fora dele -, se
estamos falando sobre algo, mas também de ser esse algo. É o risco porque em Burlescas isso é
evidente, a gente está criticando algo, mas estamos sendo esse algo. É um risco que a gente
assume, de ser isso que estamos...
Ontem a gente estava discutindo no Cena Breve a questão do clichê. Acho que tem bastante a ver
com o seu trabalho também.
Cleber: Por que? (risos)
Henrique: Surgiu assim: será que é de propósito usar o clichê? Como que é essa coisa do clichê?
A gente sempre foi a favor do clichê, e nunca fugiu dele, até pelo contrário, sempre fomos ao
encontro do clichê. Assumir o clichê, ser o clichê, e inflar ele tanto até o ponto que ele
explodisse, rasgar o clichê por dentro. Foi uma questão que surgiu do nosso trabalho com o Erro,
nessa questão com o espetáculo, porque eles têm bem forte essa crítica ao espetáculo, via
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deboche. Eles têm um trabalho que não quer ser espetacular, embora seja, eu acho que é muito,
eu falo isso para eles, eles não gostam. Eles tentam, se esforçam em não ser espetaculares. Usam
roupas neutras, e não sei que lá, e às vezes somem no meio da coisa. É uma tentativa de não ser.
A gente nunca teve esse interesse, pelo contrário, temos todas as críticas a esse espetáculo
pernicioso, teatro lucrativo, meio... eu ia falar capitalista, mas é meio “bandeirão”, enfim é isso,
só que a gente nunca, nunca, nunca negou o espetáculo, sempre fizemos um grande espetáculo,
até que isso aparecesse em todas as suas rachaduras, todas as suas imperfeições, acho que pelo
menos uma das coisas que eu gosto no teu trabalho é por aí também, assumir esse clichê, brincar
com ele, dançar com ele, ver o que sai desse... espremer ele, sei lá, gozar com ele, e
eventualmente acabar com ele.
Cleber: Mas não em direção ao contradiscurso.
Henrique: É...
Cleber: Não oferece um contradiscurso. Por isso talvez crie um espaço onde as pessoas fiquem
“ai, mas é uma opção?”, a gente não diz claramente.
Henrique: Porque é um trabalho irônico.
Cleber: É!
Henrique: E a ironia tem essas dificuldades, essas ambiguidades.
Cleber: Adoro o que o Mário Quintana disse, que a ironia não funciona com todos porque “a
burrice é invencível” (risos).
Henrique: Minha dissertação foi sobre ironia. Acho isso do clichê uma coisa bacana, isso
incomoda as pessoas, é engraçado, acham que o trabalho não é sério, acham que você está
fazendo só piada.
Cleber: É descuidado.
Henrique: É, que é mal feito.
Cleber: Que não tem acabamento, que blá-blá-blá.
Henrique: Isso tem de monte. Dá uma preguiça quando você ouve isso pela centésima vez.
Cleber: Eu também sinto essa coisa chata...
Henrique: Só isso? Mais nada? É que não sei, fico meio confuso, e eu acabo esquecendo de um
monte de coisa, então a gente pode continuar conversando também, sempre.
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