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ROBERT WEGNER
Renato Kehl foi um dos principais divulgadores das idéias eugênicas no país
entre os fins dos anos 1910 e a década de 1930. Nasceu em 1889 no interior de São
Paulo, na cidade de Limeira. Seguindo a carreira do pai, graduou-se em Farmácia, pela
antiga Faculdade de Farmácia de São Paulo, em 1909 (MELO, 1954; Dados...). No ano
seguinte, mudou-se para a Capital Federal com o objetivo de estudar medicina na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde entrou em contato com as idéias e as
discussões que nas primeiras décadas do século XX moldavam o pensamento social e
científico brasileiros.
A partir do final dos anos 1910 Renato Kehl assumiu a propaganda eugênica
como a sua missão política e intelectual. No período entre guerras publicou mais de
duas dezenas de livros diretamente relacionados à eugenia e a questão racial, além de
inúmeros artigos e entrevistas na imprensa e em revistas especializadas, tanto no Brasil
quanto no exterior. Foi também editor de revistas e periódicos nacionais, entre eles o
Boletim de Eugenia, que circulou entre 1929 a 1933. Em 1918, com a colaboração do
Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Saúde
e das Ciências.
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médico Arnaldo Vieira de Carvalho e de mais de uma centena de intelectuais paulistas,
fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo e, em 1931, a Comissão Central Brasileira
de Eugenia, instituições que tiveram um papel central na promoção das idéias eugênicas
no país.
1
Para um estudo sobre a eugenia no Brasil e seu caráter predominantemente neolamarckista e associado
ao sanitarismo ver STEPAN, Nancy (2005). “A hora da eugenia”: raça, gênero e nação na América
Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
2
Esta discussão sobre Renato Kehl e a radicalização de sua eugenia está ancorada em SOUZA, Vanderlei
Sebastião de. (2006). A política biológica como projeto: a “eugenia negativa” e a construção da
nacionalidade na trajetória de Renato Kehl (1917-1932). Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em
História das Ciências, Casa de Oswaldo Cruz. Há uma certa coincidência temporal entre este
movimento de radicalização de Renato Kehl e a reorientação da Liga Brasileira de Higiene Mental
detectada por Jurandir Freire Costa em História da Psiquiatria no Brasil. Observa o autor: “De 1923 a
1925, a LBHM seguiu a orientação que Riedel lhe havia imprimido, ou seja, a de procurar aperfeiçoar
a assistência aos doentes. A partir de 1926, no entanto, os psiquiatras começaram a elaborar projetos
que ultrapassavam as aspirações iniciais da instituição e que visavam a prevenção, a eugenia e a
educação dos indivíduos” (COSTA, 2007:46). Esta correspondência, bem como a própria participação
de Kehl na Liga, merece um estudo mais apurado.
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que a regeneração nacional só ocorreria a partir do momento em que o governo não
abrisse mão de uma radical política biológica, que envolvesse a esterilização dos
degenerados e o incentivo à procriação dos mais aptos.
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“profeta da sinceridade”. Como veremos, este não foi o primeiro artigo do eugenista
sobre o pensador alemão. Em nenhum momento deste artigo de 1936 Kehl faz
referências explícitas a afinidades entre idéias de Nietzsche e a eugenia. Não somos
instados a acreditar que o filósofo tenha sido um precursor do melhoramento biológico
do homem. Contudo, quando em um de seus últimos parágrafos, passa a obsevar que,
“filosofando, tendo em vista a moral com base na cultura da energia vital e na vontade
de poder, Nietzsche simboliza o profeta da sinceridade, personalidade impar de nobreza
espiritual, a anunciar o advento do homem renovado”, e – antes de encerrar a frase –
acrescenta, “do homem eugênico” (KEHL, 1936). Assim, por meio de uma estratégia
argumentativa que poderíamos chamar de “deslizamento”, Kehl apenas justapõe, lado a
lado, os termos “homem renovado”, que seria representado tanto pela obra quanto pela
vida de Nietzsche, a “homem eugênico”, que Kehl almejava para o Brasil por meio de
medidas como esterilização dos degenerados e incentivo à reprodução dos mais aptos. À
primeira vista pode soar surpreendente esta vinculação quase automática e naturalizada
entre a eugenia e Nietzsche. Esta surpresa, contudo, pode ser abrandada se voltarmos ao
contexto alemão.
5. O Nazismo e Nietzsche
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deveria servir as suas necessidades políticas e sua vontade de poder (Cf ASCHHEIM,
1992: 242).
Com este vínculo entre povo, vida e lei, Kassler deduz que “Nietzsche foi o
primeiro pensador a perceber a centralidade da raça e da higiene racial e
conscientemente aplicou seus imperativos à vida social” (ASCHHEIM, 1992: 243).
Perguntava-se o autor: “Nietzsche não era contrário à procriação dos degenerados?”
Seguindo seu raciocínio, Kassler exaltava a promulgação das leis do Estado nazista
concernentes à higiene racial e suas medidas de proteção contra taras e doenças
hereditárias estabelecidas a partir de 1933.3 Chega mesmo a considerar que estas leis
nada mais eram do que a implementação da visão de Nietzsche. Uma ordem social
calcada em Nietzsche implicava em um programa eugênico para criar o tipo superior
(Cf ASCHHEIM, 1992: 244).
3
No mesmo ano em que era publicado na Alemanha, o livro de Kassler foi criticado por Geroge Seward,
professor da Universidade de Columbia, em uma resenha publicada em The Journal of Philosophy
(SEWARD, 1941).
4
Sobre as aproximações e diferenciações realizadas entre as idéias de Nietzsche e a eugenia na Inglaterra
ver STONE, 2002.
5
Sobre a loucura de Nietzsche ver PORTER, 1991, especialmente capítulo 7.
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para este tema no contexto de discussão das leis eugênicas. Como resumiu, não sem
ironia, o historiador alemão Werner Catel, a insanidade de Nietzsche poderia tê-lo feito
uma das vítimas das leis defendidas, muitas vezes, em seu nome (Cf ASCHHEIM,
1992: 243-244).
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No mesmo número do periódico, quatro páginas após a transcrição da lei, há
a “inauguração” de uma nova seção da revista, intitulada “Os supra-normais e a
psiquiatria”. Não parece fortuito que o artigo de estréia tenha sido de autoria de Renato
Kehl, com o título “A Doença de Nietzsche”. Embora admita que não haja dados
suficientes para um diagnóstico conclusivo sobre as causas da sua loucura, o médico
parece considerar que é possível responder a questão de fato relevante, relacionada ao
fato de saber se Nietzsche havia nascido com a doença e se a havia herdado.
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8. Hereditariedade e esterilização
9. Doença e genialidade
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medicamentos, ondas de rádio resultam de homens que, antes do reconhecimento, eram
“vilipendiados com o epiteto de louco”. Daí a associação: “Aí da humanidade se não
existissem os loucos; quero dizer os gênios!” (COSTA REGO, 1934).
ASCHHEIM, Steven (1992). The Nietzsche Legacy in Germany (1890-1990). Berkeley, Los
Angeles, London: University of Califórnia Press.
COSTA REGO, Pedro (1934). “Matar”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, sexta-feira, 5 de
janeiro de 1934, p.2.
COSTA, Jurandir Freire (2007). História da Psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. 5.ed.
revista. Rio de Janeiro: Garamond.
Dados biográficos do Dr. Renato Ferraz Kehl. Revista Terapêutica. Rio de Janeiro, nº 4, 1959
(recorte avulso - Fundo Pessoal Renato Kehl, DAD-COC).
6
Na realidade, estamos começando a tocar em um tema caro para a própria história da psiquiatria: a
relação entre loucura e genialidade. Ver DUARTE, Luiz Fernando Dias. Da vida nervosa nas classes
trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Brasília: CNPq, 1986, p.116.
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DUARTE, Luiz Fernando Dias (1986). Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Brasília: CNPq.
KEHL, Renato (1929). A Eugenia no Brasil: esboço histórico e bibliográfico. In: Actas e
Trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Rio de Janeiro, Volume I.
_____. (1935). Lições de Eugenia. 2 ed. Rio de Janeiro. Editora Livraria Francisco Alves.
MELO, Luis Correia (1954). Dicionário de autores paulistas. São Paulo: Editora Gráfica
Irmãos Andrioli.
PORTER, Roy (1991). Uma História Social da Loucura. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor.
SEWARD, George C. (1941) “Book Review”. The Journal of Philosophy. Vol.38, No.17,
Aug.1941, pp.470-474.
STEPAN, Nancy (2005). “A hora da eugenia”: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz.
STONE, Dan (2002). Breeding Superman: Nietzsche, Race and Eugenics in Edwardian and
Interwar Britain. Liverpool: Liverpool University Press.
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