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Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa COM pessoas com

deficiência visual

Organizadoras
Marcia Moraes e Virgínia Kastrup

Copyright 2010 by NAU Editora


Esta obra foi digitalizada a fim de tornar acessível o seu
conteúdo a pessoas com deficiência visual. Por força da lei de
direitos de autor, este arquivo não pode ser distribuído para
outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.

Editoras: Angela Moss e Simone Rodrigues

Revisão de texto: Érika Ferreira

Projeto gráfico e editoração: Gabriela Saldanha Werneck

Foto e Capa: Laura Pozzana e Simone Rodrigues

Fotografia de peça da coleção didática do projeto:


“A Célula ao alcance da mão” (Museu de Ciências Morfológicas -
IBC/UFMG)

Conselho Editorial:
Alessandro Bandeira Duarte
Cristina Monteiro de Castro Pereira
Francisco Portugal
Maria Cristina Louro Berbara
Pedro Hussak
Vladimir Menezes Vieira

CIP-BRASIL. – CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
___________________________________________________________
E96
Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com
deficiência visual /
Marcia Moraes, Virgínia Kastrup, organizadoras. - Rio de Janeiro :
Nau, 2010.
288 p.
Acompanhado de CD em bolso
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-85936-84-6
1. Deficientes visuais - Psicologia. 2. Distúrbios da visão. 3.
Sentidos e sensações.
4. Arte - Psicologia. 5. Integração social. I. Moraes, Marcia. II.
Kastrup, Virgínia. III.
Título: Arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual.
10-4154. CDD: 152.14
CDU: 159.931
19.08.10 31.08.10 021158
_________________________________________________________________

NAU Editora
Página 1
Rua Nova Jerusalém, 320
CEP: 21042-235 - Bonsucesso, RJ
Tel: (21) 3546-2838
contato@naueditora.com.br
www.naueditora.com.br 1ª edição - 2010 - 1000 exemplares

SUMÁRIO

Prefácio
Elcie Masini
pag.4

Introdução
Marcia Moraes e Virgínia Kastrup
pag.7

SEÇÃO 1- CONSTRUINDO UM MÉTODO E UM PROBLEMA DE PESQUISA


PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual
Marcia Moraes
pag.15

Atualizando virtualidades: construindo a articulação entre arte e


deficiência visual
Virgínia Kastrup
pag.32

SEÇÃO 2 - MOVIMENTOS DO CORPO E DA CLÍNICA

Oficina de Movimento e Expressão com deficientes visuais: uma


aprendizagem coletiva
Laura Pozzana
pag.47

Composições do não ver: contando histórias


Camila Araújo Alves, Carolina Cardoso Manso, Josselem Conti de
Souza Oliveira, Julia Guimarães Neves, Liz Eliodoraz, Luciana de
Oliveira Pires Franco, Thadeu Gonçalves, Vandré Vittorino, Marcia
Moraes
pag.61

Tateando, fabricando, explorando, implementando, parangoleando um


dispositivo clínico
Alexandra C. Tsallis, Bernardo Antônio. A. P. de Souza, Elisa
Junger, Jessica David, Leonardo Reis Moreira, Renata Machado,
Rodrigo Pires Madeira, Virgínia Menezes, Willy H. Rulff
pag.74

A bengala como um instrumento lúdico na orientação e mobilidade do


deficiente visual
Vera Regina Pereira Ferraz e Lucia Maria Filgueiras
pag.87
Página 2
SEÇÃO 3 - ACESSIBILIDADE EM MUSEUS

Acesso à Arte e Cultura para pessoas com deficiência visual:


direito e desejo
Viviane Panelli Sarraf
pag.97

Acesso tátil: uma introdução à questão da acessibilidade estética


para o público deficiente visual nos museus
Filipe Herkenhoff Carijó, Juliana de Moura Quaresma Magalhães,
Maria Clara de Almeida
pag.110

SEÇÃO 4 - LITERATURA E CEGUEIRA

Do mítico ao mágico, da alegoria ao realismo: a literatura e suas


metáforas sobre a cegueira
Joana Belarmino
pag.125

Literatura para quê?


Maria Helena Falcão Vasconcellos
pag.134

Literatura, devir-consciente e algumas considerações acerca do


conto Em terra de cego de H. G. Wells
Maria do Carmo Cabral
pag.141

SEÇÃO 5 - POLÍTICA E CIDADANIA

Deficiência e política: vidas subjugadas, narrativas insurgentes


Bruno Sena Martins
pag.150

Cidade Acessível: igualdade de direitos e particularidades da


pessoa com deficiência visual
Jéssica David, Ximene Martins Antunes, Veronica Torres Gurgel
pag.166

SOBRE OS AUTORES
pag.177

Página 3
PREFÁCIO

Esta obra organizada por Márcia Moraes e Virgínia Kastrup


oferece ao leitor um cenário que o torna protagonista de um mundo
de inventividade, na trama de uma trajetória de sensibilidade e
humanismo, ao desvelar modos diversos de percepção e de
expressividade. Inventividade que põe em foco a questão da
verdade, e não mais a da certeza, conforme esclarece a afirmação
de Ricouer:

"Há uma certeza imediata da consciência e esta certeza é


inexpugnável. Mas se esta certeza é invencível enquanto certeza, é
duvidosa enquanto verdade. Sabemos agora que a vida intencional,
tomada em toda sua espessura, pode ter outros sentidos que este
sentido imediato. A mais longínqua, a mais geral e a mais abstrata
possibilidade do inconsciente, precisamos confessar, está inscrita
nesta distância inicial entre a certeza e o saber verdadeiro da
consciência."1

A ênfase na compreensão da verdade, no desvelar da


autenticidade de cada sujeito, sem mistificação, sem
encobrimentos, está imbricada na proposta deste livro. Mostra-se
na busca de recuperar o sentido da experiência2, assinalando as
implicações ideológicas dos embasamentos filosóficos que definem
as interpretações científicas e as do senso comum, ou as de
qualquer outro tipo de encobrimento do que ocorre na complexidade
das situações de um mundo vivido. Evidencia-se no entendimento da
cognição e da produção da subjetividade como uma via longa que
requer um mútuo vir e ir entre o sujeito e o mundo e o desvelar da
verdade ao longo de um caminhar em direção a um constante devir.
O texto comove pelo entusiasmo e descobertas dos autores em
suas dialéticas reflexões, nas muitas dimensões que abordam sobre
experiências e pesquisas com pessoas com deficiências visuais, nos
domínios da psicologia, das artes plásticas e literárias e das
práticas corporais. As descrições sobre as oficinas de expressão e
experimentação corporal e de literatura, entremeadas de discussões
teóricas, propiciam em sua diversidade o enriquecimento de nuances
e sensibilidades nos mútuos convívios com a alteridade; ilustram o
dizer de Hölderlin – o poeta da filosofia existencial –, a voz
poética de Heidegger:

"Rico em méritos, é no entanto poeticamente


que o homem habita esta terra."

A narrativa sobre os Exercícios de ver e não ver: arte e


pesquisa com pessoas com deficiência visual, seus objetivos no
cenário em que se desenovela a proposta de ampliar o universo
psicológico, artístico e social das pessoas com deficiência
visual, é rica em méritos e poeticamente enternece.
No aprofundamento da pesquisa engajada – situada e
alicerçada no solo das vivências – os autores vão delineando
dispositivos de intervenção de uma prática performativa que se faz
com o outro, em parceria, na construção do conhecimento ao
aprofundar especificidades do próprio perceber. Assinalam, nos
textos que compõem o livro, especialmente, os diversos modos do
Página 4
ver e do não ver e a afirmação da potência inventiva das variações
dos modos de existir sem ver.
O inesgotável desejo de compreender dos autores transparece
em suas caminhadas entre diferentes perspectivas teóricas,
mesclando filósofos, artistas, psicólogos e educadores.
Diferencia-os progressivamente na especificidade de suas ideias,
em contraposições dentre as quais cabe citar: a abordagem da
enação de Varela em oposição à concepção de deficiência visual
como falta ou déficit, articulada em torno da noção de norma; o
modelo da autoprodução do sistema cognitivo e do coengendramento
do sistema e do domínio cognitivo pela ação em oposição ao modelo
da representação cognitiva, que vem sofrendo fortes
questionamentos; os estudos sobre produção de subjetividade de
Varela, juntamente com a contribuição de Deleuze e Guattari nos
estudos sobre produção de subjetividade positiva e
transdisciplinar da deficiência visual, em oposição ao enfoque nos
fatores psicodinâmicos dos comprometimentos comuns da
personalidade da pessoa, relacionados à deficiência visual.
Reconcilia-os integrativamente ao assinalar complementaridades
entre autores e enfoques dentre os quais cabe citar: a articulação
entre os Disability Studies e os estudos de ciência, tecnologia e
sociedade (CTS) vistos como ferramentas que permitem
desnaturalizar o tema da deficiência e, ao mesmo tempo, subverter
a concepção de deficiência como déficit; as semelhanças entre o
devir dos Disability Studies, como aponta Latour, para uma prática
que articula atores bastante heterogêneos e os estudos CTS quando
propõem investigação das práticas locais e heterogêneas.
Os autores, em sua trajetória e obra, mostram que, como
ocorre com aqueles que enxergam, os diferentes momentos
perceptivos não se fazem pela integração fragmentada de seus
elementos. A percepção e a manifestação expressiva e artística dos
objetos emergem no âmbito da história individual e coletiva e na
maneira própria de quem as inventou. A percepção é considerada sob
outra perspectiva, não mais de um processo psicofisiológico, mas
sim da relação da pessoa com o objeto percebido, no contexto de
sua cultura – em sua experiência perceptiva.
Os psicólogos, arte-educadores e os participantes com
deficiências visuais desnudam para o leitor, em suas trajetórias,
que a apreensão e a expressividade estética não podem dissociar-se
do mundo em que o inventor habita. Não se restringem ao caráter
belo, mas envolvem aspectos sociais e culturais mais justos em
encontro contínuo e reflexivo com pessoas e objetos, no dia a dia
– força silenciosa do conhecimento que participa e convida a
participar do mundo circundante.
Os pesquisadores não se detêm em apontar possibilidades e
limites entre Psicologia e Arte, ilustram complementaridades
dessas áreas ao resgatar o essencial do que se propuseram
investigar: a constituição do universo do conhecimento e da
expressividade artística de pessoas com deficiências visuais, no
respeito e consideração aos caminhos de suas percepções. Com
desvelo, descrevem diferentes momentos e situações dessa
experiência, sem divagar e nem perder a diretriz da investigação,
consistentes com a diversidade de seu embasamento teórico. No
campo das ciências sociais, retomam Law – referência fundamental
reconhecida em ciências sociais – para definir o caráter
performativo das práticas, enfatizando mais uma vez a consistência
da trajetória que resultou nesta obra: que o papel das ciências
Página 5
sociais é subverter qualquer concepção unívoca de realidade,
afirmando um mundo múltiplo e heterogêneo.
Neste livro, o leitor percorre uma trajetória, a de duas
psicólogas e seus autores colaboradores, em uma experiência
situada em Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com
pessoas com deficiência visual, e compartilha atos de
inventividade: de condições que propiciaram a pessoas com
deficiência visual a expressão de seu perceber, senso estético,
sua vitalidade e sua autonomia. Como protagonista do cenário de
inventividade que a obra oferece, o leitor amplia suas
perspectivas sobre a percepção e expressividade no domínio da arte
a fronteiras desconhecidas, que resgatam mistérios da
individualidade e da subjetividade e permitem vislumbrar que um
universo ainda muito vasto está para ser descoberto sobre o
potencial humano.

São Paulo, inverno de 2010.


Elcie Masini

notas:
1 RICOEUR, P. Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1977, p. 89.
2 Experiência concernindo àquele saber silencioso, o
Lebeswelt (o mundo da vida) husserliano, o antepredicativo, o não
ainda tematizado – raiz de toda atividade racional.

Página 6
Introdução

Marcia Moraes e Virgínia Kastrup

O volume que está em suas mãos é apresentado tanto em versão


impressa quanto em versão digital, esta última presente no CD
encartado no final desta obra. A versão digital é legível pelos
programas de computador, que transformam em áudio os documentos
apresentados em formato de texto. Dessa forma, em consonância com
a política e a filosofia de nossas práticas de pesquisa e
intervenção, entregamos a você, leitor, uma obra acessível,
legível por pessoas com diferentes condições visuais.
Os textos que compõem esta coletânea fazem proliferar
diversos modos do ver e do não ver. O que pulsa nos trabalhos que
estão neste livro é a afirmação da potência inventiva das
variações dos modos de existir sem ver. O que move as pesquisas
realizadas pelos autores que se reúnem nesta coletânea é afirmar a
possibilidade de intervir no cenário da deficiência visual para
subverter qualquer concepção essencialista de deficiência,
propondo dispositivos de intervenção que redistribuam eficiência e
deficiência de modo mais simétrico. Intervenções que ativem as
pessoas com deficiência visual, que as tome como experts, como
parceiras na construção do conhecimento. Trata-se de afirmar a
pesquisa como uma prática performativa que se faz com o outro e
não sobre o outro. A expressão “pesquisar com”, sintetizada na
grafia PesquisarCOM, tem a dimensão de um verbo mais do que de um
substantivo. Indica que para sabermos como é viver sem ver e o que
é cegar é preciso acompanhar este processo em ação, se fazendo na
prática cotidiana daquelas pessoas que o vivenciam. O pesquisar
com o outro implica uma concepção de pesquisa que é engajada,
situada.
Nos textos que compõem esta coletânea, bem como nas
conexões que este livro fará com outros livros e com outras
práticas, é possível tecer outras versões de deficiência. Fazer
existir a variação é uma questão política, uma questão de política
ontológica. Que mundo queremos para nós e para os outros? Que
realidades queremos produzir? Fazer existir a diferença, a
multiplicidade, neste momento, usando os recursos da
pesquisa-intervenção e a escrita de textos científicos, é um modo
de resistir à normalização, aos processos que fazem existir a
deficiência apenas como falta.
O livro busca articular três campos distintos: a
psicologia, a arte e a deficiência visual. Ele constitui um dos
resultados do Projeto de Pesquisa Práticas Artísticas e Construção
da Cidadania com Pessoas com Deficiência Visual,3 que reuniu
pesquisadores, professores e alunos de graduação e pós-graduação
do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal
Fluminense e do Instituto Benjamin Constant. O objetivo do projeto
é experimentar e, ao mesmo tempo, investigar a articulação de
diferentes domínios da arte – artes plásticas, literatura,
práticas corporais – com o campo da deficiência visual. Uma parte
do projeto foi desenvolvida por meio de dispositivos de
pesquisa-intervenção, como foi o caso das oficinas de expressão e
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experimentação corporal. Outra parte foi realizada por meio de
discussões teóricas entremeadas com oficinas, como ocorreu na
Jornada de Estudos sobre Literatura e Cegueira, que ocorreu em
outubro de 2008. A Jornada teve três eixos: 1) a presença da
deficiência visual em romances, contos, crônicas e poesias que
veiculam diferentes representações da cegueira; 2) o papel dos
textos literários na produção e transformação das relações entre
cegos e videntes; 3) os efeitos da literatura na vida da pessoa
cega. Além de promover mesas redondas com professores e
pesquisadores cegos e videntes – Joana Belarmino (UFPB), Maria
Helena Falcão Vasconcellos (UFJF), Maria do Carmo Cabral
(NUCC-UFRJ) e Maria da Glória de Souza Almeida (IBC) –, foram
realizadas oficinas de leitura para adultos e crianças, também
reunindo cegos e videntes4. Uma terceira parte do projeto, que
teve como tema a acessibilidade em museus, foi realizada por meio
de uma investigação teórica articulada a visitas a museus cariocas
e paulistas, realizadas pela equipe de pesquisadores e pessoas
deficientes visuais. Estes últimos foram parceiros efetivos em
todos os momentos da pesquisa, colaborando tanto na discussão dos
problemas quanto na elaboração dos resultados da pesquisa. Viviane
Sarraf, da Fundação Dorina Nowill e Museus Acessíveis, também foi
uma importante interlocutora neste domínio. A equipe clínica do
projeto trabalhou com o método da pesquisa-intervenção. Enfim, o
projeto promoveu a investigação de experiências estéticas e
analisou os efeitos de práticas artísticas, indicando a
indissociabilidade das duas faces da arte: o fazer e a fruição,
que participam igualmente da invenção e reinvenção existencial.
Um dos pontos que marca a originalidade das pesquisas é
pautar o entendimento da cognição e da produção da subjetividade
das pessoas com deficiência visual em autores que indicam um
caminho fecundo e, sobretudo, positivo. É o caso da abordagem da
enação de Francisco Varela. Pelo caminho indicado por Varela,
recusamos uma série de proposições negativas sobre a deficiência
visual, como aquela que afirma que os cegos enfrentam grandes
dificuldades, pois “80% das informações acerca do mundo externo
nos chegam através da visão”. A partir desta afirmação,
supostamente fundada em estudos científicos de última geração, os
cegos conheceriam em torno de 20% do mundo real. Varela concorre
para a análise crítica dessas colocações, apontando que elas estão
longe do consenso e da evidência científica. Ao contrário,
caracterizam uma certa abordagem da cognição – a abordagem
cognitivista – que é pautada na teoria da informação e, em última
análise, no modelo da representação, que vem sofrendo fortes
questionamentos nas últimas décadas. As críticas de Varela ao
cognitivismo computacional são contundentes e trazem, no lugar do
modelo da representação, o modelo da autoprodução do sistema
cognitivo e do coengendramento do sistema e do domínio cognitivo
pela ação. O trabalho de Varela, juntamente com a contribuição de
Deleuze e Guattari nos estudos sobre produção de subjetividade,
concorrem para uma concepção positiva e transdisciplinar da
deficiência visual. Uma outra referência teórica importante do
projeto de pesquisa situa-se na articulação entre os Disability
Studies e os estudos de ciência, tecnologia e sociedade (CTS),
este último domínio marcado pelas contribuições de Bruno Latour,
Vinciane Despret, John Law e Annemarie Mol, entre outros autores.
Os Disability Studies compõem uma interessante área da
pesquisas e intervenções nas pesquisas sobre deficiência. Trata-se
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de um movimento social e acadêmico que teve início principalmente
nos países de língua inglesa e que propôs uma ampla revisão da
noção de deficiência, definindo-a não mais como algo que se
localiza no corpo individual, mas como efeito de uma sociedade
opressora e produtora de exclusão. O chamado modelo social da
deficiência, proposto nos trabalhos de M. Oliver e de outros
autores, é um marco importante na reconfiguração do campo porque
propõe que a deficiência seja entendida socialmente, e não mais
biologicamente. Trata-se de um passo importante na
desnaturalização da deficiência e, é importante sublinhar, tal
desnaturalização abre espaço para a politização da tema, para a
reinscrição dos debates sobre deficiência no cenário dos direitos
e não mais da caridade ou da assistência. As pessoas com
deficiência assumem o protagonismo neste movimento ao afirmarem o
lema do “nada sobre nós sem nós”.
Nas pesquisas que compõem este livro, tal revisão da questão
da deficiência se faz notar principalmente na articulação entre o
modelo social da deficiência e a linha de pesquisas abertas pelos
chamados estudos de ciência, tecnologia e sociedade, ou estudos
CTS. Se, de um lado, é possível traçar uma distinção entre o
sentido do termo social nos campos dos Disability Studies e nos
estudos CTS, de outro lado, parece-nos possível dizer que a
guinada social que os Disability Studies propõem é um passo de
capital relevância para que seja dada mais uma volta, depois do
social, como propõe Latour, uma mudança de direção no sentido da
prática, entendida como multiplicidade que articula atores
bastante heterogêneos, humanos e não humanos. Mais do que buscar
uma identidade social da deficiência, os estudos CTS propõem
investigação das práticas nas quais a deficiência é feita,
realizada. Práticas locais e heterogêneas, que produzem, dia após
dia, realizações muito distintas do que é a eficiência e a
deficiência. No campo das ciências sociais, Law tem sido uma
referência fundamental para definir o caráter performativo das
práticas, indicando que o papel das ciências sociais é subverter
qualquer concepção unívoca de realidade, afirmando um mundo
múltiplo e heterogêneo.
Os Disability Studies e os estudos CTS são duas linhas de
investigação do tema da deficiência que marcam as pesquisas que
compõem esta coletânea; são ferramentas que nos permitem
desnaturalizar o tema da deficiência e, ao mesmo tempo, subverter
a concepção de deficiência como déficit. Este duplo movimento é
efetuado por uma concepção de pesquisa, PesquisarCOM, que toma
como norte o caráter performativo, pragmático, dos dispositivos de
pesquisa. Isto é, a pesquisa é uma prática produtora de realidades
e não desveladora de uma realidade já dada. O outro com o qual
pesquisamos não é o alvo passivo de nossas intervenções. O outro a
quem nos dirigimos é ativo no processo de pesquisa, já que é com
ele que as questões a serem investigadas são formuladas.
Trazendo à cena os resultados das pesquisas desenvolvidas, o
livro busca contribuir para a inclusão da pessoa com deficiência
visual na vida cultural da cidade, sobretudo no que diz respeito à
fundamentação cognitiva para o desenvolvimento de tecnologias
sociais mais avançadas e eficientes. Seu diferencial é
metodológico, na medida em que tais pesquisas foram realizadas, em
todas as suas etapas, com pessoas com deficiência visual. Como
principais beneficiários dessas tecnologias e protagonistas da
discussão, mostrou-se imprescindível sua participação ativa na
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construção do conhecimento. Isso foi efetivamente realizado, e o
sucesso do projeto deveu-se, em grande parte, à instalação de uma
Estação de Trabalho Inclusiva no Instituto Benjamin Constant, com
equipamentos, computadores, softwares e outros itens que
permitiram o trabalho conjunto de pessoas videntes e com
deficiência visual.
Todos os textos que compõem essa coletânea foram
apresentados por pesquisadores, professores e alunos em eventos
científicos, nacionais e internacionais. Tais encontros foram
ocasiões de submeter à comunidade científica tanto a metodologia
PesquisarCOM como os resultados efetivos das pesquisas
empreendidas pelo grupo. Todos os temas estudados são vinculados à
linha de pesquisa Cognição e Subjetividade do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ e à linha Subjetividade,
Política e Exclusão Social do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFF.
O livro foi organizado em cinco sessões. Na primeira sessão
– Construindo um método e um problema de pesquisa – procuramos
apresentar a indissociabilidade de duas questões do livro: a
metodologia e a colocação do problema. Partindo do que alguns
autores definem como uma guinada para a prática nos estudos sobre
as ciências, Marcia Moraes discute os modos pelos quais a cegueira
é feita (enacted) em algumas práticas voltadas para pessoas com
deficiência visual. O texto problematiza uma certa concepção de
cegueira: aquela que se define como falta ou déficit e que é
articulada em torno da noção de norma. Apostando no caráter
performativo das práticas, a autora afirma a potência inventiva
dos modos de existir sem ver. Inserindo a pesquisa como uma
importante prática no campo da deficiência visual, o texto propõe
que os dispositivos de pesquisa sejam redesenhados, a fim
de distribuir de modo mais simétrico deficiência e eficiência.
Isto é, pesquisar não implica retratar uma realidade já dada, mas
sim construir um mundo, fazer existir realidades. É neste sentido
que a autora pergunta: em que mundo queremos viver? Propõe o
PesquisarCom como uma maneira de intervir no campo da deficiência
visual, tomando o outro como sujeito ativo, expert, que propõe
questões e que, por esta via, faz proliferar múltiplos modos do
não ver. O PesquisarCom subverte ao mesmo tempo concepções
clássicas de pesquisa e de deficiência. Na vertente da pesquisa,
importa sublinhar que o outro não é interpelado como objeto, como
sujeito passivo, mas como expert, como alguém COM quem o
conhecimento é produzido. Na vertente da deficiência, trata-se de
ir além de qualquer concepção essencialista de deficiência,
afirmando a multiplicidade como substantivo. O capítulo de
Virgínia Kastrup, Atualizando virtualidades: construindo a
articulação entre arte e deficiência visual, discute a potência da
arte e seu papel nos processos de produção de subjetividades a
partir de uma pesquisa realizada na oficina de cerâmica do
Instituto Benjamin Constant. Procurando elucidar tal mecanismo de
produção, analisa também a questão da acessibilidade das pessoas
com deficiência visual aos museus e o papel do mediador no acesso
à experiência estética.
A segunda sessão – Movimentos do corpo e da clínica – é
composta de três capítulos. O capítulo de Laura Pozzana, Oficina
de Movimento e Expressão com Deficientes Visuais, é o relato de
uma oficina de movimento e expressão com deficientes visuais
realizada no Centro de Convivência do IBC. O texto descreve como a
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prática corporal inspirada no Sistema Rio Aberto ganhou nuances a
partir de uma aprendizagem coletiva. Depois de dois anos, com o
tempo e os acontecimentos, revela a ampliação das conexões de cada
participante consigo, com os outros, com a prática e com o mundo.
O texto Composições do não ver – Contando histórias, de Camila
Araújo Alves, Carolina Cardoso Manso, Josselem Conti de Souza
Oliveira, Julia Guimarães Neves, Liz Eliodoraz, Luciana de
Oliveira Pires Franco, Thadeu Gonçalves, Vandré Vitorino e Marcia
Moraes, é construído a partir de uma narrativa, a história de
Candeia e da cegueira que o atingiu já na vida adulta. Através
desta narrativa, os autores discutem as relações entre corpo e
deficiência, tendo como referência o dispositivo de pesquisa
"Oficina de Experimentação Corporal", realizado com pessoas cegas
e com baixa visão do Instituto Benjamin Constant. A Oficina é
apresentada como uma arena performativa que faz proliferar os
modos de existir do ver e do não ver. Corpo e deficiência são
articulados longe do referencial biomédico, segundo o qual a
deficiência é algo que se localiza no corpo individual, fruto de
uma doença ou lesão. Seguindo a definição de corpo proposta por
autores como Bruno Latour e Michel Serres, os autores apostam que
ter um corpo é ser afetado e efetuado pelo mundo. Assim, Candeia
reinventa a cegueira na medida em que vai sendo afetado e movido
por mais elementos. De uma articulação da cegueira com a
imobilidade, Candeia vai experimentando outros modos do cegar. Na
Oficina de Experimentação Corporal, as pesquisadoras intervêm no
sentido de ampliar o campo das afetações, oferecendo oportunidades
de experimentação do corpo que modificam o modo como Candeia lida
com a cegueira. O capítulo de Alexandra C. Tsallis, Bernardo
Antônio. A. P. de Souza, Elisa Junger, Jessica David, Leonardo
Reis Moreira, Renata Machado, Rodrigo Pires Madeira, Virgínia
Menezes e Willy H. Rulff busca acompanhar o desenrolar de
processos de subjetivação que surgiram durante os encontros de
um dispositivo clínico de grupo com pessoas cegas no Instituto
Benjamin Constant. Esse dispositivo colocou em ação proposições da
prática clínica que levaram em conta as singularidades do ver e
não ver ali presentes. No contexto de uma pesquisa-intervenção, a
equipe foi conduzida à experiência de
depaysement/desterritorialização (Despret, 2001), que resultou na
aposta da produção de outros modos de organização sensorial do
fazer clínico. O texto A bengala como um instrumento lúdico na
orientação e mobilidade do deficiente visual, de Vera Regina
Pereira Ferraz e Lucia Maria Filgueiras, aborda uma experiência de
utilização da pré-bengala com crianças classes de educação
infantil e ensino fundamental no Instituto Benjamin Constant nas
aulas de Orientação e Mobilidade (O.M.). O estudo indica um
benefício considerável quando a introdução é realizada de forma
lúdica e integrada à vida cotidiana da criança.
A terceira sessão – Acessibilidade em museus – inclui dois
textos que abordam o problema da acessibilidade de pessoas com
deficiência visual a museus. O capítulo Acesso à Arte e Cultura
para Pessoas com Deficiência Visual: Direito e Desejo, escrito por
Viviane Panelli Sarraf, discute o direito das pessoas com
deficiência visual ao acesso às manifestações artísticas e
culturais, bem como o seu desejo de conquistar esse acesso.
Mostra-se, a partir de entrevistas feitas pela autora com
deficientes visuais, que esse público possui forte desejo de
participar das manifestações culturais que ainda lhes são
Página 11
inacessíveis, e que as iniciativas inclusivas já existentes, ainda
que pouco comuns e longe de serem ideais, podem produzir
experiências culturais e artísticas extremamente positivas. O
capítulo apresenta, ainda, tanto a história da legislação e das
lutas por esse direito quanto seu estado atual. O capítulo Acesso
tátil: uma introdução à questão da acessibilidade estética para o
público deficiente visual nos museus, de Filipe Herkenhoff Carijó,
Juliana de Moura Quaresma Magalhães e Maria Clara de Almeida,
fornece uma introdução crítica à questão da acessibilidade
estética para o público deficiente visual no âmbito dos museus de
arte. O capítulo apresenta a complexidade do problema e aponta
caminhos para uma inclusão efetiva, realizando uma análise das
principais estratégias e políticas de inclusão, tais como a
disponibilização de originais e réplicas para o toque. Toma em
consideração o funcionamento do tato, desnaturaliza a concepção do
toque como danificador e insiste sobre a necessidade de se levar
em conta a dimensão expressiva da experiência com a
arte, destacando problemas e méritos em estratégias já existentes,
bem como possibilidades de desenvolvimento futuro.
A quarta sessão – Literatura e Cegueira – traz três textos
que foram apresentados na I Jornada de Estudos sobre Literatura e
Cegueira. O primeiro é da autoria de Joana Belarmino e é
intitulado Do Mítico ao Mágico, da Alegoria ao Realismo: A
Literatura e suas Metáforas sobre a Cegueira. Através de uma
escrita que transita entre a linguagem literária e coloquial, o
artigo aprecia a cegueira como metáfora na literatura,
particularmente nas obras de André Gide, José Saramago e Ernesto
Sábato. O pano de fundo da narrativa é a ideia filosófica que
Gaston Bachelard apresenta em “A Chama de uma Vela”. Penumbra e
iluminação, claro e escuro – é nessa trama metafórica onde se vai
buscar uma compreensão para esses construtos literários que, se
são em si mesmos obra de criação literária, alimentam-se sobretudo
da cultura humana naquilo que ela possui de mítico, mágico,
alegórico e racional. Partindo da pergunta-título – Literatura
para quê? –, o capítulo de Maria Helena Falcão Vasconcellos pensa
a palavra poética como poderosa aliada na aprendizagem-experiência
de um fecundo modo de existência que opere uma receptividade ativa
às forças do vivo de que estão prenhes os fatos em que nos
movemos. O texto traz fragmentos de textos literários, se detendo
em dois contos de Mia Couto: O cego Estrelinho e Águas do tempo.
Neles os personagens vivem a experimentação de uma nova percepção
do mundo, um processo de aprendizado de um estilo outro de
existir, que não o mais habitual. O terceiro texto Literatura,
devir-consciente e algumas considerações acerca do conto “Em terra
de cego” de H. G. Wells, de Maria do Carmo Cabral, aborda a
leitura literária e seus efeitos sobre o leitor. Partindo do
conceito de práticas de leitura de Roger Chartier, a autora propõe
o conceito de leitura de acolhimento ou à espreita. Articula esta
ideia com o conceito de devir-consciente de Depraz, Varela e
Vermersch (2003), apontando a potência de experiências desse tipo.
Por fim, apresenta e comenta o conto Em terra de cego, do escritor
inglês Herbert George Wells, que fala das aventuras e desventuras
de um vidente numa terra de cegos, fazendo pensar o leitor.
A quinta sessão é dedicada ao tema Política e Cidadania. No
capítulo Deficiência e política: Vidas subjugadas, narrativas
insurgentes, Bruno Sena Martins argumenta que a realidade
vivencial das pessoas com deficiência persiste sendo marcada por
Página 12
fortes condições de marginalização social e exclusão econômica.
Tal perpetuação acontece a despeito das sucessivas transformações
legislativas e das políticas sociais que foram sendo introduzidas
nas últimas décadas. Conforme sugere o texto, a superação deste
quadro passa por um radical questionamento dos termos pelos quais
a deficiência é pensada e por uma transformação das dinâmicas
democráticas acostumadas a negligenciar as vozes das pessoas com
deficiência. Vozes que, ao encontro de um modelo social da
deficiência, transportam instigantes propostas de transformação
social. O capítulo Cidade Acessível: igualdade de direitos e
particularidades da pessoa com deficiência visual, de Jéssica
David, Ximene Martins Antunes e Veronica Torres Gurgel, investiga
três situações cotidianas – pegar um ônibus, atravessar uma rua e
desviar de orelhões – que ilustram as dificuldades com que um
deficiente visual se depara ao circular por uma cidade organizada
com base em parâmetros visuais. Discute também a necessidade dos
deficientes visuais participarem mais ativamente na formulação de
leis e políticas públicas que devem ser elaboradas em função das
particularidades cognitivas das pessoas com deficiência visual.
Mais que constituir uma mera coletânea de textos sobre
deficiência visual, o livro inaugura uma nova abordagem na
psicologia brasileira e abre um novo campo de problemas teóricos,
metodológicos e políticos na pesquisa em deficiência visual que
começam agora a ser enfrentados. Nesse campo novo, a questão da
falta e da negatividade cede lugar a um conhecimento positivo
sobre a maneira de viver e conhecer da pessoa com deficiência
visual. Os textos aqui reunidos tratam da articulação entre arte e
cegueira, abordando diferentes temas e domínios da arte – oficinas
de expressão e experimentação corporal, artes plásticas,
acessibilidade a museus e literatura – que interessam a
pesquisadores, professores, profissionais e alunos tanto da área
de artes quanto da de deficiência visual. Não temos a pretensão de
oferecer respostas definitivas para a complexa articulação entre a
deficiência visual e a arte. No entanto, acreditamos ter aberto um
caminho fecundo, onde a experimentação combina com a pesquisa,
enfrentando o desafio de compreender a potência de tal
agenciamento e de analisar seus efeitos. Nesta medida, estamos
certos de ter ampliado tanto o campo da deficiência visual quanto
o da psicologia, bem como de estar formando jovens pesquisadores
no campo da psicologia. Os projetos continuam em andamento e temas
novos desafiam nossa curiosidade, como é o caso da audiodescrição
de filmes. Novos grupos de pesquisa são formados, levando a frente
e consolidando a metodologia PesquisarCOM. Eles estão disponíveis
na página www.uff.br/artesedeficienciavisual que, como não poderia
deixar de ser, possui condições de acessibilidade e constitui um
espaço de divulgação de textos teóricos e informações úteis para
pesquisadores, profissionais, estudantes e demais interessados na
área de deficiência visual, sejam eles videntes ou cegos.

Agradecemos à FAPERJ - Fundação de Amparo à Pesquisa do


Estado do Rio de Janeiro, que apoiou financeiramente o projeto
Práticas artísticas e construção da cidadania com pessoas com
deficiência visual; ao CNPq, pelas bolsas concedidas aos
pesquisadores e aos alunos; à CAPES, pelas duas bolsas de
Pós-Doutorado, na Inglaterra (Lancaster University) e na França
(Conservatoire National des Arts et Métiers), onde parte da
pesquisa foi desenvolvida, à Pró-reitoria de Extensão da
Página 13
Universidade Federal Fluminense, pelas bolsas de extensão
concedidas aos alunos, ao Instituto Benjamin Constant (IBC), que
concedeu o espaço para a montagem da Estação de Trabalho Inclusiva
onde o projeto foi desenvolvido. No IBC encontramos o apoio
necessário à realização de nossas pesquisas, o que só foi possível
graças ao empenho e dedicação de: Érica Deslandes Magno Oliveira
(Direção Geral), Maria da Glória de Souza Almeida (Chefia de
Gabinete),  Elcy Maria Andrade Mendes, (Assessoria da Direção
Geral),  Márcia Lopes de Moraes Nabais (Direção do Departamento de
Estudos e Pesquisas Médicas e de Reabilitação), Adávia Fernanda
Correa Dias da Silva (Supervisora da Divisao de Reabilitação e
Preparação para o Trabalho e Encaminhamento Profissional – DRT),
Girlaine Maria Ferreira Florindo e Cristiane Vales Maciel (Chefes
da DRT). Os trabalhos que realizamos contaram ainda com a acolhida
de vários outros profissionais do IBC, aos quais registramos
nossos sinceros agradecimentos: Leonardo Rajagabaglia, Ana Fátima
Berquó Carneiro Ferreira, Marcelo Miranda Petini , José Francisco
de Souza, Maria Rita Campello Rodrigues , Clara Fonseca, Gisele de
Jesus Cipriano Rodrigues e Monique Brito Barbosa. Por fim, esta
obra não existiria se não tivéssemos contado com as pessoas com
deficiência visual que participaram das pesquisas, compartilhando
os problemas e soluções que marcaram todo esse processo de
produção coletiva do conhecimento. Nosso agradecimento especial a
Adriana Costa Pinheiro, Alcei Chrisóstomo Garcia, Alexandre Carlos
Barel, Alfredo Roberto de Souza, Antonio Mousinho Sobrinho, Artur
Luiz Santos Silva, Carlos Roberto Godoy de Mello Junior, Catharina
de Azevedo da Cunha, Deivison Luiz Dias, Deivison Menezes,
Denivaldo da Silva, Edson de Souza Pia, Edvan Borges, Elizete
Maria Pereira, Eronides Pereira de Lucena, Frederico João Meiler,
Geovania dos Santos Francisco, Gilberto Paulo de Araújo, Gonçalo
Rodrigues Melo, Irene dos Santos, Ismael dos Santos, Jaci
Sant'Ana, Joel Carlos de Oliveira, Jorge Luiz Gomes da Silva, José
Carlos Rosa Lira, José Emilson dos Santos, Julia Maria Casimiro
Alves, Luis Ramos, Luiz Antônio de Moraes, Manoel Jezler, Marcelo
Batista , Maria Amélia Barbosa, Maria Beatriz Gonçalves Souza,
Maria das Graças Mesquita Guimarães, Maria de Lourdes Santos,
Maria Fátima Oliveira Pacheco, Maria Inês Ribeiro, Maria Luzia do
Livramento, Mariana Cochrane Carvalho dos Santos, Marina Merida
Magalhães, Marlene Amorin Oliveira, Marlene Carneiro, Marlene
Lauriano, Mery Danan, Mirian Lima Bizarria, Nelci Lidorio, Ney
Gomes de Oliveira, Nilda da Silva, Nilton Soares da Costa, Nilza
Marinho dos Santos Raimundo Caitano Paiva, Raphael Rodrigues dos
Santos, Regina Maria Ribas, Rulino Miguel , Sérgio Abdala, Sônia
Costa Pinheiro, Sueli Machado Botelho, Thiago Vieira, Virgínia
Fortunato Antunes, Virgínia Menezes, Wagner Jesus Bassú, Waldir
Domingues Lopes, Wilson Dias da Silva.

notas:
3 Projeto financiado pela FAPERJ através do Edital N.º
12/2008: Programa de Apoio à Construção da Cidadania da Pessoa com
Deficiência.
4 Vidente é o termo utilizado para designar aqueles que não
enxergam. Tal terminologia é adotada em todos os capítulos que
compõem esta coletânea.

Página 14
Seção 1- Construindo um método e um problema de pesquisa

PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual

Marcia Moraes

A bailarina e o mal entendido promissor

O filósofo Gilles Deleuze (1988) afirmava que os homens


raramente exercitam o pensamento e, quando o fazem, é mais sob um
choque, um golpe, do que no elã de um gosto. Pois bem, leitor, te
digo: se tenho pensado algo, é assim, no golpe, no atrito, no
embate com o mundo, com os outros, com o campo de pesquisa. É no
estranhamento do encontro com o outro que um pensamento pode
advir. O pensamento não se reduz à recognição, ao reconhecimento
de si mesmo ou de alguma forma dada e definida de antemão, mas, ao
invés disso, o pensar envolve outras aventuras, encontros
inusitados com o mundo. De minha parte, considero que a vida seria
muitíssimo tediosa se o tempo todo estivéssemos às voltas com o já
sabido, a encontrar no mundo apenas aquilo que nos é familiar,
aquilo que, de algum modo, já estava em nosso pensamento.
Faço minhas as palavras do filósofo quando diz que “há no
mundo alguma coisa que força a pensar. Este algo é o objeto de um
encontro fundamental e não de uma recognição. O que pode ser
encontrado pode ser Sócrates, o templo ou o demônio” (Deleuze,
1988, p. 231). No caso que ora te apresento, o encontro foi com a
deficiência visual, ou antes, com a multiplicidade de modos de
existir da deficiência visual. Por isso, leitor, convido-te a
percorrer estas linhas para que acompanhes os problemas que as
agitam, para que faças as suas interpelações, para que sublinhes
os limites, contrassensos e disparates que este texto porventura
faça existir.
No percurso da pesquisa de campo na área da deficiência
visual5, fui, desde o início, tomada pelo problema de como
intervir num certo cenário levando em conta o referencial do
outro6. Explico-me: em um momento inicial da pesquisa, quando
fazia observações participantes num grupo de jovens e crianças
cegas e com baixa visão, vinculado a uma Oficina de Teatro,
deparei-me com um tipo de intervenção que, centrada no referencial
do vidente, fazia fracassar uma jovem menina cega congênita, que
representaria o personagem de uma bailarina numa peça teatral,
naquele momento ainda em fase de ensaios. A menina não tinha os
mesmos referenciais que os videntes acerca de uma bailarina e de
nada adiantavam as intervenções meramente verbais e
visuocêntricas7 que lhe apontavam as ações de seu personagem:
girar, levantar os braços, agir com leveza. Ela fazia os
movimentos na medida em que ouvia o que lhe era dito, mas logo
vinham outras observações: “o braço não deve ser levantado assim,
cuide de encolher a barriga, não, não é assim que a bailarina
gira, preste atenção nos pés, bailarina anda na ponta dos pés...”.
Página 15
Ou seja, a bailarina assentada no referencial vidente não era
incorporada pela jovem. E, para ela, importava que a sua bailarina
fosse bonita para quem enxerga, afinal, na plateia do teatro
haveria pessoas cegas, com baixa visão e videntes. E era ela mesma
quem dizia: “ah, eu não quero pagar mico não, minha mãe vai me
assistir e eu quero estar bem bonita no palco!!” Isso me parecia
bastante pertinente, a menina não queria fazer a bailarina de
qualquer jeito, ela queria que a bailarina fizesse sentido para
ela e para os videntes. Note, leitor, para ela e os videntes –
este “e” faz toda diferença. Do que se trata?
Bom, se seguirmos pela língua portuguesa, trata-se de uma
conjunção aditiva, o “e” indica uma relação de soma, de inclusão.
Não vou me estender pelos meandros desta nossa língua tão difícil
– nem tenho competência para isso! – mas, o que interessa é que a
bailarina que a menina queria encenar devia articular, reunir
cegos e videntes. Era, portanto, uma bailarina que estava num
espaço entre cegos e videntes. Logo, com este singelo “e” a menina
afirmava que a bailarina assentada apenas nos referenciais dos
videntes não incluía os cegos – não permitia, portanto, que o “e”
entrasse em ação. O que parecia estar ocorrendo, ao contrário, era
a lógica do “ou”, isto é, enquanto a bailarina lhe era apresentada
exclusivamente pelo referencial do vidente, a menina falhava, era
ineficiente, deficiente: ou fazia a bailarina tal como um vidente
a faria, ou fracassava. O “ou” é uma conjunção de exclusão,
conjunção alternativa, que separa, segrega.
Por que retomo este episódio8? Porque foi a partir de
encontros como este que comecei a me perguntar pela possibilidade
de uma psicologia cujas intervenções estivessem no espaço do “e”,
isto é, interessava-me interferir naquele cenário, mas construindo
uma relação aditiva, que se produzisse a partir da interseção,
levando em conta o referencial do outro, tomando como positiva a
pista que a menina dava: uma intervenção que pudesse se fazer no
espaço entre cegos e videntes, e não dos videntes para os cegos.
Foi a partir desta, e de outras situações, que comecei a
buscar, como Moser (2000), um outro ponto de partida, a partir do
qual fosse possível interferir nas definições do que é o normal e
do que é o humano, do que é eficiente e deficiente. Sim, leitor,
não era nada óbvio, nem tampouco “natural”, menos ainda “uma
questão de fato indiscutível”, que aquela menina não era eficiente
para encarnar uma bailarina. Na relação entre aquela menina e a
personagem da bailarina, o que lhe era exigido encenar, havia uma
distância, um lapso, um mal entendido: a bailarina que ela
encenava aparecia aos outros, aos videntes e àqueles que tinham
baixa visão, como um equívoco. Mas tal equívoco, longe de ser algo
essencial, natural, autoevidente, era alguma coisa ordenada
naquele cenário, naquela articulação singular que reunia cegos,
videntes, pessoas com baixa visão, um personagem em vias de ser
encarnado, o palco, o roteiro da peça, a plateia. Era neste
arranjo heterogêneo de coisas e pessoas que a menina fracassava.
Ali, naquele arranjo, a menina era deficiente. O mal entendido que
este arranjo articulava fazia-se notar já quando a menina,
interpelada a fazer “direito” a bailarina, dizia não entender o
que era este “fazer direito”. Neste ponto, uma pista se abria. O
mal entendido em questão estava em consonância com aquilo que
Despret (1999) denomina mal entendido promissor. Para a autora, o
mal entendido promissor é aquele

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"...que produz novas versões disto que o outro pode fazer existir.
O mal entendido promissor, em outros termos, é uma proposição que,
da maneira pela qual ela se propõe, cria a ocasião para uma nova
versão possível do acontecimento." (Despret, 1999, p. 328-330)

O fato de que a menina “não entendesse o que era fazer


direito a bailarina” não é, pois, sem importância. Tratava-se de
um acontecimento relevante na medida em que abria a possibilidade
para que a menina fosse interpelada não como um sujeito dócil,
passivo às intervenções. Como Despret (2009) sinaliza, pesquisar
com o outro implica tomá-lo não como “alvo” de nossas
intervenções. Não se trata de tomar o outro como um ser
respondente, um sujeito qualquer que responde às intervenções do
pesquisador. Ao contrário, o mal entendido promissor anuncia novas
versões do que o outro pode fazer, isto é, ele anuncia que o outro
que interrogamos é um expert, ele pode fazer existir outras
coisas, no caso, outros modos de ordenar a deficiência visual em
articulação com a bailarina, com o palco, com plateia. O mal
entendido é promissor justamente porque abre outras vias de
realização para um fenômeno; abre, enfim, uma bifurcação, ali onde
parecia haver uma certa ordenação estável de coisas. O que se
abre, portanto, é uma instabilidade, a possibilidade de uma
deriva, de uma variação. Era o que estava em questão no episódio.
A menina, de algum modo, resistia às intervenções, interrogava:
“como assim, a bailarina é leve?”, “o que é esta leveza?”, “ponta
do pé? como é andar na ponta dos pés?” Estas eram algumas das
muitas questões que ela levantava e que colocavam em xeque aquele
modo de intervir, do vidente para o cego. Ou seja, o que estava em
ação naquele cenário era uma redistribuição de expertise, já que o
saber sobre a bailarina não estava apenas do lado daquele que
propunha as intervenções, mas também do lado daquela a quem tais
intervenções eram dirigidas. A menina, ao ser interpelada pelo
outro, interpela este outro de volta. Indica, com isso, quais são
as questões que lhe devem ser formuladas para que ela possa de
fato performar uma bailarina. Interessante notar que, se tomamos o
mal entendido promissor como uma positividade do dispositivo de
intervenção, o que ele produz é uma redistribuição das capacidades
de agir: no lugar da distribuição assimétrica, que separa o
pesquisador do pesquisado, entra em cena uma outra distribuição da
capacidade de agir, isto é, aquele que é interpelado torna-se
ativo no sentido de participar ativamente do dispositivo de
intervenção. Assim, o mal entendido promissor, longe de ser um
parasita no dispositivo de intervenção, é aquilo mesmo que o move,
é aquilo que nos coloca diante do fato de que a experiência de
interrogar o outro envolve um processo de transformação que não se
passa apenas para o interrogado, senão também para aquele que
interroga.
O episódio da bailarina permite retomar algumas questões
presentes no debate acerca dos modos de intervir que nós,
pesquisadores, adotamos. De um lado, uma intervenção que se faz
sobre o outro. Neste tipo de dispositivo, mantemos com o outro uma
relação no registro da docilidade, da passividade, do controle, da
“ortopedia” (Despret, 2004a, 2004b, 2009). Neste dispositivo, como
disse, a capacidade de agir está do lado do pesquisador, já que é
ele, em última instância, quem sabe quais são os fins daquela
intervenção. De outro lado, um dispositivo de intervenção que se
faz com o outro na medida em que é construído em articulação com
Página 17
aquilo que interessa ao outro. O que importa sublinhar, no
entanto, é que, em ambos os casos, a relação
pesquisador/pesquisado implica um processo de transformação. O que
diferencia um modo ou outro de lidar com esta transformação é o
que ele inclui e faz valer como positivo, como realidade; e o que
ele exclui como parasita, como erro a corrigir. No primeiro caso,
a jovem deve se conformar a um modelo de bailarina que guia e
norteia as intervenções, e o que nisso não se encaixa deve ser
descartado. No segundo caso, a menina é ativa, ela constrói junto
com o outro a bailarina, ela dá pistas daquilo que pode vir a ser
uma bailarina que seja construída no espaço do “e”, no espaço que
está entre cegos e videntes.
A história da bailarina – e outras tantas – exigia que,
como pesquisadora, eu buscasse táticas e arranjos teórico-práticos
que problematizassem certas distribuições de eficiência e
deficiência. O que quero dizer com “distribuições de eficiência e
deficiência”? Quero dizer, leitor, que eficiência e deficiência
não são duas realidades dadas em si mesmas, já delimitadas de
antemão. Ser deficiente não é algo que uma pessoa é em si mesma.
Mas algo que ela se torna, quando articulada em certas práticas.
Logo, do ponto de vista que adoto neste texto, carece de sentido
falar de deficiência longe das práticas nas quais ela é produzida
e articulada. No episódio da bailarina, o que ocorria era que,
naquele tipo de prática, ela era feita deficiente, não-eficiente
para encarnar aquele personagem que lhe era designado. Poderia ser
diferente? Sim, poderia. Como reencenar esta distribuição da
eficiência e da deficiência? Como interferir para subverter o que
conta como eficiência, como normalidade? Onde, e de que modo, a
deficiência é produzida, colocada em ação? Estas são as questões
que orientam a escrita deste artigo.
Penso que, a esta altura, tu, leitor, estarás a perguntar:
“que diabos você quer dizer com 'distribuição da eficiência e da
deficiência'? Uma pessoa deficiente é uma pessoa deficiente, não?
E distribuição: o que é isso? Conheço distribuição de doces em dia
de Cosme e Damião, com carros pelas ruas, crianças correndo,
alegres, dentes à mostra, mãozinhas cheinhas de balas e outras
gulodices; distribuição de renda, coisa complicada em nosso país,
apesar de nosso atual líder andar por aí a dizer 'que nunca antes
neste país...'; distribuição de senhas, chatice em tudo o que é
banco; mas distribuição de eficiência e deficiência... o que tudo
isso significa, afinal?”
Querido leitor, quantas perguntas! Noto que exiges que eu
caminhe passo a passo, cobras explicações cuidadosas, cautelosas.
Concordo contigo: a viagem deve ser mais lenta a fim de termos
tempo para construirmos juntos algo a ser por nós partilhado.

Do realismo euro-americano à guinada prática: a política


ontológica
A fim de dar conta das questões que levantei no item
anterior, faz-se necessário avançar um pouco mais nas reflexões
acerca dos modos de intervir e pesquisar. Law (2003, 2004) aponta
que os métodos de pesquisa em ciências – tanto humanas quanto
naturais – têm sido fortemente marcados por um certo realismo, que
o autor denomina de “realismo euro-americano”. Trata-se, com esta
expressão, de sublinhar alguns princípios gerais que orientam e
embasam certos modos de pesquisar. Seguramente, Law (2003)
Página 18
pretende indicar modos de pesquisar e de lidar com o tema do
conhecimento que se afastam de tal realismo. No entanto, quando
aponta para as suposições que neste último subjazem, o autor
sublinha também os pressupostos que se fazem notar tanto em nossa
vida cotidiana quanto em muitos métodos, projetos e relatos de
pesquisa. Se o autor delimita algumas pressuposições desse
realismo, é para colocar em questão o que conta ou não como
realidade. E é justamente este ponto que me interessa na
argumentação de Law (2003, 2004), porque, note leitor, o que este
autor sublinha é que o que conta ou não como realidade é variável,
não está dado de antemão. Trata-se, em suma, de um enfoque que
aposta numa concepção de realidade que é construída em certas
práticas. Assim, ao descrever as pressuposições do realismo
euro-americano, Law (2003) vai sinalizar que tais pressuposições
constroem “uma certa” realidade, mas não “a” realidade.
De um modo geral, o realismo euro-americano tem como eixo
principal a concepção de que há uma realidade lá fora,
independente de nós e de nossas ações. A esta suposição geral
acrescentam-se outras como decorrência:
a) a realidade lá fora é anterior a nós, isto é, o real sempre
precede qualquer tentativa de conhecê-lo;
b) o real é preciso, delimitado e definido;
c) a realidade lá fora é uma só, única. Uma só realidade, passível
de ser conhecida de muitas perspectivas. Estas diferentes
perspectivas são, isso é importante, diferentes modos de conhecer
algo que é único. O mundo lá fora permanece o mesmo, a despeito de
ser conhecido de muitos modos.

Assim, para o realismo euro-americano há a possibilidade


de que o real seja conhecido, plenamente conhecido, por um sujeito
do conhecimento asséptico, capaz de abordar o real sem nele se
misturar, garantindo, ao contrário, que o resultado do seu
conhecimento seja preciso, delimitado, definido, independente e
anterior a qualquer intervenção. Law (2003, 2004) afirma que os
métodos de pesquisa em ciências sociais estão, em geral,
comprometidos, senão com todo o pacote do realismo euro-americano,
pelo menos com partes dele.
Pois é justamente neste ponto que Law (2003, 2004)
pretende fazer diferença e é por isso que o trabalho do autor me
interessa. A questão que ele levanta é: o que fazemos quando em
nossas práticas de pesquisa lidamos com realidades que são
múltiplas, hetorogêneas, fugidias, complexas? Como lidamos –
metodologicamente – com o que é fugidio, híbrido, isto é, com
aquilo que não se encaixa no realismo euro-americano9?
O que está em jogo? A questão levantada por Law (2003)
aponta para o fato de que, quando o conhecimento está centrado nos
limites do realismo euro-americano, aquilo que no campo de
pesquisa aparece como fugidio é alterizado, é tornado outro por
relação ao que se espera do objeto: que ele seja claro, definido,
independente. Ora, dito de outro modo, é o pacote do realismo
euro-americano que faz partes da realidade aparecerem como
confusas. Mas há nisso algo mais – e de suma importância. É que
isso que aparece como confuso é permanentemente excluído do campo
de pesquisa, seja porque é atribuído a uma falha no conhecer –
isto é, há algo que é híbrido, mas que não é conhecido por uma
falha técnica, porque o método não o alcança –, seja porque o que
é híbrido está no lugar do erro a ser controlado, domesticado com
Página 19
o refinamento do método. Assim, Law (2003) salienta que, quando
assumimos o pacote do realismo euro-americano, estamos implicados
numa política que sistematicamente exclui aquilo que escapa aos
seus quadros de referência.
Tais discussões sobre método estão intimamente ligadas a
formas muito distintas de lidar com as questões da presença,
ausência e alterização. Presença diz respeito ao que comparece em
nossos relatos de pesquisa. Ausência é aquilo que, mesmo não
estando de fato presente, é um pano de fundo, uma copresença. E
alteridade, ou alterização, é o que é tornado outro, excluído,
deixado de fora. O manejo da presença, da ausência e da
alterização faz toda a diferença. O que deixamos de fora dos
nossos relatos? Por que o fazemos? O que incluímos? Por que
incluímos em nossos textos estes e não aqueles outros relatos?
Para Law (2004), tais perguntas são capitais nos debates sobre
método.
Mas, nesse ponto, uma advertência se faz necessária: isto
não é uma reclamação, uma queixa. Aquilo que conhecemos é
relacionado com, dependente de e produzido com o que não
conhecemos. Falar em método de pesquisa é, para Law (2003, 2004),
implicar-se numa articulação de presença, ausência e alterização.
O problema está quando se pretende que tudo pode se tornar
presente e conhecido. Porque, neste caso, supõe-se, de um lado, a
possibilidade de um sujeito do conhecimento, que pode tudo ver,
tudo saber, tudo conhecer. E, de outro lado, uma realidade que um
dia será totalmente conhecida. Estas duas suposições correlatas
estão embutidas no pacote do realismo euro-americano, que Law
(2003, 2004) quer subverter.
Disso, o autor retira algumas conclusões:
a) no realismo euro-americano, o processo de articular presença,
ausência, alterização é sempre reprimido, numa política de
sistemática exclusão.
b) se o conhecer lida com uma realidade que existe lá fora, dada
de antemão, então o caráter produtivo de nossas práticas também
desaparece. Isto é, no realismo euro-americano o conhecer é um
processo desinteressado, que em nada contribui para a construção
da realidade. Mas, se atentamos para o método como um processo que
articula presença, ausência e alterização, diz Law (2003), há
nisso uma performatividade, uma produtividade. Nossas práticas são
performativas.
c) logo, como consequência do que foi dito nos itens anteriores,
podemos perguntar se as realidades são construídas, são feitas;
então, que realidades estão sendo feitas em nossas práticas de
pesquisa? Fique atento, leitor, porque esta é uma questão
eminentemente política.
Este é um ponto de virada importantíssimo que marca os
trabalhos de Law (1997, 1999, 2003, 2004), Moser (2000), Mol
(2002, 1999), entre outros autores. As práticas são performativas,
isto é, fazem existir realidades que não estavam dadas antes e que
não existem em nenhum outro lugar senão nestas e por estas
práticas. Aqui há uma guinada, uma virada sinalizada por outros
autores como uma virada para a prática10. O que está em jogo é
colocar as práticas em primeiro plano, entendendo que

"...a prática designa as ciências “se fazendo”, ela engloba o


ajuste de instrumentos, a escritura de artigos, as relações de
cada praticante com os colegas, mas também com tudo isto e todos
Página 20
aqueles que contam ou poderiam contar em sua paisagem. Nada está
pronto. Tudo está por negociar, por ajustar, alinhar e o termo
prática designa a maneira pela qual tais negociações, ajustes,
alinhamentos constringem e especificam as atividades individuais
sem por isso determiná-las." (Stengers, 2006, p. 62-3)

Ora, o que Stengers sinaliza é que nada está pronto, a


realidade é construída, é performada nas e pelas práticas. Há uma
subversão do realismo euro-americano. Não há uma realidade lá
fora, dada. O que conta ou não como realidade é produzido, feito.
Ou antes, o que está sendo afirmado é que o próprio realismo
euro-americano é construído, performado em certas práticas de
pesquisa e outras práticas cotidianas que o fazem existir dia após
dia, momento após momento. O termo em inglês para indicar este
caráter performativo das práticas é enact, termo que aponta para
dois sentidos distintos: como encenar, representar um papel; e
como fazer existir, promulgar, fazer no sentido de quando dizemos,
por exemplo, que “o congresso nacional promulgou (fez existir) uma
nova lei”11. Nas palavras de Mol: “É possível dizer que nas
práticas os objetos são feitos [enacted] (...) isto sugere também
que em ato, e apenas aqui e acolá, alguma coisa é – sendo feita
[being enacted]” (Mol, 2002, p. 32-33). Então, quando Law (2003,
2004), Mol (2002) e outros autores sublinham o caráter
performativo das práticas é para marcar que a realidade é feita,
não está dada. E, mais do que isso, o que tais autores colocam em
cena com esta subversão do realismo euro-americano é que há uma
dimensão política em tal subversão. Se dissermos que a realidade é
construída, imediatamente outra questão se faz pertinente: que
realidade? Há aí uma implicação recíproca entre o real e o
político: uma política ontológica.
Política ontológica é uma expressão utilizada por Mol
(1999) e por Law (2003). Nas palavras de Mol:

"...a combinação dos termos ontologia e política sugere-nos que as


condições de possibilidade não são dadas à partida. Que a
realidade não precede as práticas banais nas quais interagimos com
ela, antes sendo modelada por estas práticas. O termo política,
portanto, permite sublinhar este modo ativo, este processo de
modelação, bem como o seu caráter aberto e contestado." (Mol,
1999, p. 2)
A realidade é, portanto, feita, construída em práticas
situadas histórica, cultural e materialmente. Assim, sublinha Mol,
melhor seria falar em ontologias, no plural, para marcar que as
realidades são múltiplas. Não são plurais, são múltiplas. Não é
que existam muitas formas de lidar e de falar sobre a realidade –
porque, neste caso, haveria, como dissemos acima, uma única
realidade, perspectivada diferentemente. Falar de multiplicidade
implica, para Mol, um outro conjunto de metáforas. É preciso falar
em intervenção e fazer existir (enact). Estas duas metáforas
permitem falar de uma realidade que é feita, e não observada de
longe. Permitem, ainda, falar de intervenção, interferência
naquilo que Law indicou quando mencionou o manejo da presença, da
ausência e da alterização. Se interferimos no mundo em que vivemos
é para subverter o que conta como presença e o que é alterizado,
tornado Outro. A intervenção nos coloca diante do fato de que
nossas práticas não são neutras, elas são vetores que produzem
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realidades.

Da cegueira como déficit à multiplicidade das cegueiras

O que tudo isso tem a ver com as pesquisas que realizo no


campo da deficiência visual? Bom, leitor, como se diz na linguagem
popular, tem tudo a ver. Nas primeiras linhas deste texto, eu
interrogava a possibilidade de subverter um certo ordenamento que
faz existir a deficiência como falta, como fracasso, como
ineficiência. Onde esta realidade da deficiência como fracasso é
produzida? Em que arranjos materiais ela é feita? No caso da
bailarina, vimos que uma intervenção dirigida dos videntes para os
cegos produzia a deficiência como ineficiência ou, com outras
palavras, as singularidades, os interesses da menina no fazer a
bailarina eram alterizados, deixados de lado, corrigidos.
Tal concepção de deficiência como déficit é feita em
diversas outras práticas cotidianas, em relatos de pesquisa, em
publicações sobre deficiência visual. A fim de seguirmos algumas
destas práticas, destaco o livro de Carroll (1968), intitulado
Cegueira. Analisando o sumário, vemos que o autor define a
cegueira através de 20 perdas, agrupadas em 6 blocos: perdas
básicas em relação à segurança, perdas nas habilidades básicas,
perdas na comunicação, perdas na apreciação, perdas relacionadas à
ocupação e à situação financeira, perdas que implicam a
personalidade como um todo. A segunda parte do livro é dedicada a
indicar os modos de reabilitar e restaurar as perdas vividas pelos
cegos. E, sobre esta reabilitação da pessoa que adquiriu a
cegueira, o autor afirma que “a esperança de funcionamento normal
como ser humano deve substituir a esperança de visão normal e a
pessoa que ficou cega deverá ser auxiliada a recuperar as
habilidades primárias” (Carroll, 1968, p. 84). O que me interessa
destacar com a citação deste texto é que nele é colocada em ação
uma concepção de cegueira que retoma alguns pontos do pacote do
realismo euro-americano. Porque nele a cegueira:
a) tem contornos bem definidos, delimitados através de 20 perdas;
b) está atrelada a uma estratégia de intervenção pautada em
princípios de reabilitação e restauração, tomando como norte o
“funcionamento normal como ser humano” (Caroll, 1968, p. 84).
Que realidade é produzida aí? Uma realidade da cegueira
como algo dado, marcado pela perda de uma função sensorial e que
convoca a uma prática restauradora, orientada por uma ambição de
reconduzir a pessoa cega a uma normalidade perdida. Ora, leitor,
parece-me que este discurso nos conduz a um tipo de prática de
intervenção no cenário da deficiência visual que retoma aquela
assimetria de que lhe falava no início do texto. Isto é, aquele
que intervém para restaurar as perdas que marcam a cegueira está
no lugar de quem detém o saber sobre o outro, sobre a pessoa com
deficiência visual. Numa intervenção assim ordenada, acaba-se por
produzir uma distribuição assimétrica de eficiência e deficiência,
isto é, aquele que intervém o faz em nome da eficiência a ser
alcançada; aquele que é “alvo” da intervenção aparece como alguém
a quem falta eficiência.
Moser (2000) indica que as práticas de reabilitação das
pessoas com deficiência são, muitas vezes, orientadas por um
princípio de normalização, por uma ambição de restituir às pessoas
com deficiência a normalidade perdida. Orientadas por este
parâmetro ideal de normalidade, as práticas de reabilitação,
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inseridas no discurso da inclusão, não cessam de produzir,
paradoxalmente, exclusão, marginalização e subalternização das
pessoas com deficiência. “Medidas contra esta norma, as pessoas
com deficiência serão sempre constituídas como Outro, como
deficiente e dependente; elas nunca serão eficientes para
qualificar-se como pessoas eficientes e competentes” (Moser, 2000,
p. 201).
Não se trata, com isso, de dizer que a reabilitação é
nociva ou que toda reabilitação deve ser descartada. Trata-se,
sim, de indicar que, em certas práticas orientadas pela ambição de
fazer a pessoa com deficiência retornar à norma12, aí, nestas
práticas, a deficiência é alterizada, é produzida como Outro – no
sentido também sublinhado por Law (2003) – frente a uma
normalidade a ser alcançada. Nestas práticas, a deficiência é,
portanto, feita, ordenada como ineficiência, como falta, déficit.
Resgato uma frase que está no início deste texto e que diz que a
deficiência não é algo que uma pessoa é, nela mesma, mas algo em
que ela se torna. Se colocarmos as práticas em primeiro plano, é
possível seguir os múltiplos arranjos que fazem existir as
cegueiras. Entendendo, leitor, que tal afirmação é ontológica,
isto é, as cegueiras não existem em nenhum outro lugar senão em
tais práticas, as cegueiras são feitas, dia após dia, hora após
hora, em cada arranjo, em cada ordenamento que reúne coisas,
pessoas, bengalas, tecnologias assistivas, políticas públicas.
Insisto que não se trata de dizer que as cegueiras são plurais,
porque dizer que são plurais é considerar ainda uma realidade
feita de pequenas unidades separadas, discretas. O que é afirmado,
ao contrário, é a multiplicidade das cegueiras. Por que
multiplicidade? Porque tais modos de ordenar, de articular as
cegueiras, se conectam, ora sobrepondo-se um ao outro, ora
entrando em tensão, ora se coordenando e se conjugando.
Para esclarecer o que quero dizer, sigo as conexões do
texto de Carroll (1968) e noto que ele é base para outro texto, o
Programa de Capacitação de Recursos do Ensino Fundamental:
deficiência visual, documento publicado pelo Ministério da
Educação/Secretaria de Educação Especial (MEC/SEE, Brasil, 2001),
este último referência necessária no campo da educação e da
reabilitação da pessoa com deficiência visual no Brasil. Ora, o
texto de Carroll (1968) não é “apenas um texto”. É uma
materialidade que produz efeitos, conecta-se, articula-se com
outros textos, com outras práticas, produz, enfim, uma certa
realidade da cegueira . Isto é, se seguimos as conexões do texto
citado, vemos que ele é articulado a outras práticas, a outros
cenários e que, por esta via, ele, de algum modo, concorre para
estender a concepção de cegueira como déficit. A cegueira
performada no texto de Caroll (1968) não vem sozinha: ela traz
consigo modos e modulações de outros objetos e práticas. É
justamente aí que se coloca a questão: há uma multiplicidade
marcada por pontos de conexões, por articulações que alargam,
ampliam uma certa concepção de cegueira . Sem dúvida, tais
deslocamentos – traduções, como Latour (2001) os denomina –
implicam derivas, traições, desvios. As conexões do texto de
Carroll (1968) com o documento citado acima, publicado em 2001
pelo MEC/SEE, implicam desvios. Sublinhamos dois importantes
deslocamentos que se fazem notar nas articulações entre estes dois
textos. O primeiro diz respeito à própria concepção de cegueira.
No trabalho de Carroll (1968), a concepção de cegueira
Página 23
está diretamente atrelada a um discurso biomédico que a
circunscreve ao corpo biológico e à falta da visão. Tudo o mais
que caracteriza a cegueira é, em última instância, causado por
esta marca corporal, ou seja, é um corpo “defeituoso” que produz
todos os efeitos que o texto mapeia: perda da autoestima, perda da
mobilidade, etc. Já no trabalho produzido pelo MEC/SEE, a esta
concepção biomédica de cegueira é acrescida outra, social, que se
faz notar em certas passagens do texto, como por exemplo quando se
afirma, a respeito das atividades de Educação Física com pessoas
com deficiência visual, que:

"...podemos querer enquadrar as pessoas em padrões de movimento,


mas esse objetivo, uma vez alcançado, reduzirá o papel da Educação
Física frente ao projeto pedagógico que busca a formação do homem,
sua autenticidade, originalidade, independência, flexibilidade e
maneira particular de ser e estar no mundo (...) cabe dar conta do
homem integral." (Brasil, 2001, p. 160)

E mais adiante:

"...as atividades propostas não devem ser desenvolvidas como


treinamento ou mera instrução. Devem contemplar o nível de
desenvolvimento, a liberdade de ação autoiniciada, privilegiando o
movimento criativo. Dessa forma, elas favorecerão as descobertas e
as oportunidades de integração social." (Brasil, 2001, p. 164)

Assim, ainda que tomando como base o texto de Carroll


(1968), o documento de 2001 produz um importante deslocamento da
concepção de cegueira, fazendo-a existir numa versão
biopsicossocial. É precisamente por isso que, num segundo
deslocamento em relação ao texto de Carroll, este documento inclui
as narrativas das pessoas com deficiência visual, o que aponta
para um modo de ordenar a questão da deficiência visual levando em
conta a participação e a reflexividade das pessoas que não
enxergam. Neste ponto, parece-me que este texto abre a
possibilidade de que a eficiência e a deficiência sejam
diferentemente ordenadas e distribuídas, já que há mais atores em
cena: o contexto social, as ações autoiniciadas, a criatividade,
as narrativas das pessoas cegas e com baixa visão são atores
importantes neste novo ordenamento da deficiência visual. E, mais
uma vez, insisto, leitor, que este documento de 2001 é um texto de
base para as práticas de reabilitação com pessoas com deficiência
visual. Então, nesse texto, a deficiência já não é mais
circunscrita ao corpo individual, mas é ampliada, envolve outros
agentes, outros atores.
No volume que está em suas mãos, você, leitor, encontrará
diversos textos que fazem proliferar outras cegueiras, longe da
concepção que a reduz a um déficit ou falta. O que pulsa nos
trabalhos que estão neste livro é a afirmação da multiplicidade
das cegueiras, a potência inventiva das variações dos modos de
existir sem ver. O que move as pesquisas realizadas pelos autores
que se reúnem nesta coletânea é afirmar a possibilidade de
intervir no cenário da deficiência visual para subverter o pacote
do realismo euro-americano, propondo dispositivos de intervenção
que redistribuam eficiência e deficiência de modo mais simétrico.
Intervenções que nos ativem a todos, que tome as pessoas cegas
como experts, como parceiras na construção do conhecimento.
Página 24
Trata-se de afirmar a pesquisa como uma prática performativa que
se faz com o outro e não sobre o outro. A expressão
“PesquisarCOM”13 tem a dimensão de um verbo mais do que de um
substantivo. Indica que, para sabermos o que é cegar, é preciso
acompanharmos este processo em ação, se fazendo, na prática
cotidiana daquelas pessoas que o vivenciam. O pesquisar com o
outro implica uma concepção de pesquisa que é engajada, situada.
Pesquisar é engajar-se no jogo da política ontológica. Que
realidades produzimos com nossas pesquisas?
Seguir os modos de ordenar a deficiência visual,
acompanhar as versões de deficiência que são feitas (enacted)
cotidianamente, seguir as pistas que tais versões abrem, trilhar
pelas bifurcações, pelas variações, eis alguns dos pontos que
norteiam o pesquisar com o outro e não sobre o outro. Interpelar o
outro não como sujeito dócil, como um sujeito qualquer, mas antes,
como um expert, como alguém que pode conosco formular as questões
que interessam no campo da deficiência visual. Criar dispositivos
de intervenção que ativem os outros, que nos engaje a todos num
processo de transformação. Engajar-se na política ontológica é
também tomar uma posição epistemológica, porque se trata de
afirmar um conhecer situado, performativo, não neutro. Como
subverter a concepção de deficiência como falta? Pelo que dissemos
aqui, o que está em jogo não é o inconformismo. A subversão e a
resistência se fazem nas práticas: justamente ali onde são
tecidas, encenadas as múltiplas concepções de deficiência. Se a
realidade não está dada, se não há uma realidade da cegueira,
única, dada, “lá fora”, onde e como poderia ser diferente? Os
textos reunidos neste volume procuram tecer outras versões de
deficiência – e ainda, nas conexões que farão com outros livros,
com outras práticas. Fazer existir a variação é uma questão
política, uma questão de política ontológica. Em que mundo
queremos viver? Que realidades queremos produzir? Fazer existir a
diferença, a multiplicidade, neste momento usando computador,
internet, papéis, textos, é um modo de resistir à normalização,
aos processos que fazem existir a deficiência como falta.

Política ontológica e deficiência visual: por um outro mundo comum

No campo da política ontológica da deficiência, em


particular da deficiência visual, não podemos deixar de reconhecer
o importante papel que os Estudos sobre Deficiência – Disability
Studies (Oliver, 1996) – desempenharam a partir dos anos 70 do
século XX14. Trata-se de um movimento social, político e
intelectual que ocorreu primeiramente nos países de língua inglesa
e que consistiu numa insurgência das pessoas com deficiência
contra qualquer concepção individualizante e biologizante da
deficiência. A concepção de deficiência proposta por este
movimento é a de um modelo social, isto é, a deficiência longe de
ser uma falta ou uma falha corporal, é o efeito de uma opressão
social, de uma sociedade excludente. O que se vê, no século XX, é
uma passagem de uma sintaxe biomédica para outra, de viés
político-emancipatório: a deficiência passa a ser tematizada no
campo dos direitos humanos.
Esse deslocamento de uma concepção de deficiência para
outra se faz notar na articulação entre as publicações da
Organização Mundial de Saúde (OMS) a respeito do tema e o
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movimento dos Estudos sobre Deficiência. A OMS publicou, nos anos
80 do século XX, um documento intitulado International
Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps (ICIDH),
que foi revisto com a publicação, em 2001, de outro texto sobre o
assunto, o International Classification of Functioning, Disability
and Health (ICF)15. Que mudanças existem entre um documento e
outro? E que relevância isso tem para o que discutimos neste
texto?
O ICIDH, de 1980, estabelece uma relação de causalidade
entre as perdas ou anormalidades corporais (impairments), as
restrições de habilidades provocadas pelas lesões (disabilities) e
as desvantagens sociais que daí resultam (handicaps). Assim,
leitor, para resumir, conforme este documento, a deficiência seria
entendida no seguinte esquema:
– anormalidades corporais (impairment)
– restrições de habilidades (disability)
– desvantagem social (handicap).
Ora, o que está dito no esquema acima é que um corpo com
lesões tem restrições de habilidades que levam a desvantagens
sociais. Mas observe, leitor: o que move essa cadeia causal é o
corpo com lesão. Neste enfoque, portanto, a deficiência está
situada no corpo, marcado pela lesão ou pela anormalidade. Este é
o ponto de origem da deficiência, o que causa em última instância
as desabilidades e as desvantagens sociais. Os Estudos sobre
Deficiência (Oliver, 1996) se insurgem precisamente contra esta
concepção de deficiência e contra a lógica causal que ela coloca
em ação: na perspectiva de tais estudos, as desvantagens sociais
não são causadas pelas lesões corporais, mas antes por uma
opressão social dirigida às pessoas com deficiência. É importante
sinalizar que tais documentos da OMS visam construir uma linguagem
universal no que toca ao tema em questão, permitindo, por exemplo,
a comparação entre dados de diferentes países, criando um solo
comum para a concessão de benefícios, para a organização de
serviços de saúde e cuidado. Assim, a revisão da concepção de
deficiência presente no ICF é fundamental porque desnaturaliza e
politiza a questão. Sem dúvida, como indicam Diniz, Medeiros e
Squinca (2007), o ICF é um dos efeitos da força política dos
Estudos sobre Deficiência: com a revisão do documento da OMS,
passou-se de uma classificação que tinha por base os corpos com
lesões para uma concepção onde o que está em jogo é a relação
entre o indivíduo e a sociedade. Assim, a deficiência deixa de
estar atrelada a uma tragédia individual que se inscreve no corpo
para ser um efeito das relações entre o individuo e o seu ambiente
social. No enfoque do modelo social, o ICIDH despolitizava a
deficiência porque a reduzia, no final das contas, ao corpo, ao
biológico. As desvantagens sociais tinham, no documento de 1980,
um papel secundário. Assim, no documento de 2001, a revisão de
termos ganha relevância política porque o que está em jogo é
refazer as condições a partir das quais a deficiência é feita, é
produzida como realidade. Não mais uma realidade estritamente
biológica, mas, antes de tudo, uma realidade complexa, em que o
biológico e o social interagem. Diniz, Medeiros e Squinca (2007)
salientam que, no novo vocabulário proposto, deficiência16
(disability) passa a ser um conceito guarda-chuva, porque reúne as
lesões corporais, as limitações de atividades e as restrições na
participação. Mas o ponto fundamental é que deficiência
(disabiltiy) passa a estar atrelada a uma experiência sociológica,
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política, de opressão. Note, então, querido leitor, que temos aí
uma mudança de rumo, uma virada: a deficiência é efeito, é o
resultado de uma sociedade que exclui e oprime. Está claro para
você, leitor, que essa controvérsia, que envolve também a escolha
de termos, não é arbitrária, não é, de modo algum, algo a ser
desconsiderado? Na escolha dos termos há um jogo político
fortíssimo, articulado a um embate sobre o que contará ou não como
realidade: política ontológica.
Assim, na língua inglesa a expressão “disabled people”
ganha força política porque reforça a ideia de “pessoas tornadas
deficientes” por condições sociais opressoras. Este modelo social
coloca em ação outros atores, inserindo no debate político a voz
da pessoa com deficiência. Interessante notar que Oliver (1996)
aponta que o modelo biomédico, individualizante da deficiência,
está inserido numa certa lógica de cuidado e de assistência que
toma a pessoa com deficiência como objeto passivo, alvo de
intervenções cujas autorias tendem a fugir-lhes. Assim, Oliver
(1996) destaca que, em muitas das práticas de cuidado vigentes
ainda no século XX, as pessoas com deficiência tomam o lugar do
doente/paciente. É neste sentido que ele afirma que a própria
noção de reabilitação está, muitas vezes, imbuída de valores
individualizantes e biologizantes, fazendo-se notar nas práticas
de psicólogos, médicos, assistentes sociais e outros agentes de
cuidado que tomam o outro como alvos de suas intervenções.
Desse modo, Oliver (1996) e outros autores no campo dos
Estudos sobre Deficiência, entram no jogo da política ontológica
para definir uma outra realidade da deficiência, de modo a
produzir diferentemente as distribuições de eficiência e
deficiência. Não se trata mais de demandar benefícios
assistencialistas, mas de lutar por plenos direitos, por igualdade
de oportunidades de trabalho e educação. Na esteira deste
movimento, produziram-se outras realidades para a deficiência.
No entanto, ainda que considerando a extrema relevância
política do modelo social da deficiência, o que me parece um
desafio ainda aberto é lidarmos com este tema não mais buscando
apenas uma identidade, seja ela natural, biológica ou social.
Porque, se é certo que os Estudos sobre Deficiência deslocam a
questão da deficiência para outro cenário, também é certo que este
movimento ainda se pauta numa concepção de deficiência cujo norte
é uma identidade social: a sociedade é que é excludente. A
pergunta que levantei neste texto consistiu justamente em
interrogar o campo dos estudos e das práticas relacionados à
deficiência, em particular à deficiência visual, longe de qualquer
princípio identitário, longe de qualquer essencialismo.
A guinada para a prática, de que falei anteriormente, nos
coloca diante do desafio metodológico e político de lidar com a
deficiência como multiplicidade, de seguir seus ordenamentos em
ação, ali e acolá, e de fazer existirem outras definições de homem
e de norma, definições mais amplas, mais heterogêneas, mais
híbridas. Se, neste momento em que me aproximo da conclusão deste
artigo, retomo a pergunta que levantei no início – que realidade
fazemos existir com nossas práticas? –, é para afirmar que o que
pulsa nas pesquisas que realizo e naquelas que estão neste livro
não é a ambição de encontrar uma definição última de deficiência
visual, não é o desejo de demarcar o “universo” da deficiência
visual. Mas antes, o que fervilha entre estas linhas é a afirmação
de um multiverso, isto é, um mundo livre das unificações
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prematuras (Latour, 2002b), mundo comum porque múltiplo e
heterogêneo. A composição deste mundo comum nos engaja na difícil
tarefa de produzi-lo, a cada dia, em nossas práticas de pesquisa,
nos momentos em que decidimos o que conta ou não como “dado” de
pesquisa, no momento em que nos engajamos na prática de relatar
aquilo que nós pesquisamos. Pesquisar é, neste sentido, engajar-se
numa política ontológica que, em última instância, produz o mundo
em que vivemos.
Por isso, leitor, o convite que te faço é ambicioso:
convido-te a ler os textos que se seguem, ciente de que eles foram
tecidos, amarrados, conectados por um coletivo que se colocou como
desafio refazer as condições de pesquisar no campo da deficiência,
entendendo que o que está em jogo não é tanto observar o objeto de
estudo, mas performá-lo, fazê-lo existir.

notas:
5 Refiro-me ao Projeto de Pesquisa e Extensão Perceber sem
Ver, por mim coordenado, cujo início ocorreu no ano de 2003 e que
continua em andamento até os dias de hoje. O projeto é financiado
pela Faperj e pelo Cnpq.
6 Na literatura brasileira sobre deficiência visual, destaco
Masini (1994) e Belarmino (2004) que apontam para este mesmo
problema, lançando mão de discussões bastante pertinentes nesta
área. Remeto o leitor também aos textos de Kastrup; Pozzana;
Tsallis et al., incluídos nesta coletânea.
7 Sobre o visuocentrismo, como um modo de agir e conhecer
centrado no sentido da visão, veja Belarmino, 2004.
8 Para mais detalhes sobre este caso, ver Moraes (2008,
2007).
9 Neste ponto, é importante considerar que as argumentações
de Law não seriam possíveis sem a contribuição de autores como
Latour (1987, 1994, 1997, 2001, 2002a, 2002b, 2002c) e Foucault
(1984, 2000), os quais, cada um a seu modo, problematizam e
colocam em xeque isso que se definiu como realismo euro-americano.

10 Stengers comenta sobre a guinada prática: “Após a virada


linguística fala-se hoje na América da virada prática (...)
trata-se destacadamente de deixar de lado a relação polêmica
organizada em torno das vinhetas epistemológicas confrontando os
fatos prontos e as teorias” (Stengers, 2006, p. 61).
11 Ver: http://dictionary.reference.com/browse/enact
12 Martins (2006) retoma Foucault (1984) para traçar a
história destas práticas de reabilitação em suas articulações com
a hegemonia da normalidade que, desde o século XVIII, marca as
apreensões sócio-culturais da cegueira como deficiência visual.
Neste sentido, o autor afirma que a partir do século XVIII
“identifica-se o nascimento de um investimento na cegueira marcado
claramente pelos discursos e práticas da medicina, vocacionado a
negligenciar as condições sociais mais amplas da vivência da
cegueira e a privilegiar os discursos de profissionais em
detrimento da reflexividade das pessoas cegas. Estamos perante uma
lógica médica que funda um investimento de saberes sobre a
cegueira que, na impossibilidade da cura, propõe a reabilitação e,
na impossibilidade da adesão à norma, propõe a possível supressão
do desvio, com a perene subalternidade que daí advém”. (Martins,
2006, p. 85)
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13 Cf também Moraes, 2008; Alvarez e Passos, 2009; Pozzana e
Kastrup, 2009.
14 Cf. o artigo de Bruno Sena Martins inserido nesta
coletânea.
15 Para a argumentação que se segue foi fundamental a leitura
de Diniz, Medeiros e Squinca (2007) e de Farias e Buchalla (2005).
16 A tradução destes termos para o português é controvertida.
Farias e Buchalla (2005) apresentam uma definição de termos
distinta daquela proposta por Diniz, Medeiros e Squinca (2007).
Estes últimos autores criticam a tradução do ICF para o português,
coordenada por Buchalla, na opção que se fez por traduzir
disability por incapacidade. Para Diniz, Medeiros e Squinca
(2007), o uso termo disability não foi casual, foi uma provocação
à tradição biomédica que, durante séculos, circunscrevia a
deficiência como desvio por relação à norma. Para estes autores,
havia um objetivo político por traz da escolha do termo disability
para compor o ICF: a questão era desestabilizar a hegemonia
biomédica. Neste sentido, discordando de Farias e Buchall (2005),
Diniz, Medeiros e Squinca (2007) propõem a tradução de disability
por deficiência. Em nossos trabalhos, optamos também por esta
tradução.

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Página 31
Atualizando virtualidades: construindo a articulação entre arte e
deficiência visual17

Virgínia Kastrup

Entender a cognição das pessoas cegas em sua positividade,


ou seja, analisar suas singularidades para além da visão negativa
da deficiência, é um problema ao mesmo tempo teórico e político.
Como aponta Zina Weigand (2008), a representação negativa do cego
é muito antiga. Desde a Idade Média, as fábulas e o teatro profano
trazem a figura do cego bufão, desajeitado e grosseiro, bem como
do cego mendigo, geralmente acompanhado de um guia. Também é muito
comum a figura do falso cego, que explora a caridade das pessoas.
Tais personagens podem inspirar o riso, o terror, a repugnância ou
a compaixão. Muitas vezes a ausência de visão simboliza o
obscurecimento da inteligência e mesmo uma cegueira moral. De modo
geral, a cegueira vem associada a uma condição degradante, à
pobreza, a viver pedindo nas ruas e na porta das igrejas. Outras
vezes, o cego é apresentado como uma pessoa dotada de uma vidência
especial e de uma capacidade mística. Há incontáveis aplicações
metafóricas do termo cegueira no domínio do conhecimento e no
domínio moral, significando confusão do juízo, privação da
reflexão, do discernimento e da razão. Neste contexto, a pintura
de Brugel A parábola dos cegos, que data do século XVI, é um caso
exemplar. O quadro traz uma fileira de homens cegos, dotados de um
olhar vazio e de um andar vacilante e inseguro. Vão amparados uns
nos outro. Cegos conduzindo cegos, a impressão é que todos vão
tombar num precipício. A parábola dos cegos é a parábola de uma
conduta insensata, sob a égide do cegamento do espírito. A obra
faz referência à heresia e ao distanciamento da fé religiosa, mas
até hoje constitui uma imagem forte, que provoca arrepios e
horror. Embora seja possível perceber mudanças na representação da
cegueira na atualidade, ainda prevalece uma visão negativa, com
ênfase na deficiência.
Acreditamos que a arte e a experiência estética podem ser
fortes aliadas para a mudança desse cenário. A experiência
estética não se define pelo objeto ao qual ela corresponde – uma
obra de arte, por exemplo – nem pelo traço especial da beleza.
Também não é aquela meramente divertida ou que gera
entretenimento. A experiência estética é caracterizada por uma
certa qualidade da sensação e está mais próxima do estranhamento e
da problematização do que da mera experiência de reconhecimento.
Ela afeta, surpreende, mobiliza, espanta, faz pensar e provoca uma
suspensão na nossa maneira habitual de perceber e viver. Ela
coloca a cognição – habitualmente voltada para a vida prática, a
recognição e a solução de problemas – num estado especial,
transpondo seus limites ordinários. Pode produzir tanto interesse
e aproximação quanto afastamento e repulsa. No primeiro caso,
ficamos absortos e ocorre a fruição da experiência estética; no
segundo, nos distanciamos, buscando segurança naquilo que é
conhecido e trivial, evitando o movimento de saída de si.
A maioria dos artistas e filósofos, como é o caso de Bergson
(2006a; 2006b), Merleau-Ponty (1984), Dewey (1980) e Deleuze (s/d;
Deleuze e Guattari, 1993) concordam que a experiência estética não
ocorre apenas frente a obras de arte, mas irrompe no seio na vida,
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sempre que ela deixa de ser uma banalidade. No entanto, a arte
produz, de modo especial, experiências estéticas. A arte faz ver,
amplia a percepção. De todo modo, não devemos colocar a arte num
campo de transcendência, nem a experiência com a arte num âmbito
restrito a seres supostamente especiais – aqueles que possuem
cultura, no caso dos apreciadores, ou genialidade, no caso dos
artistas. A apreciação de uma obra de arte depende menos de ter
cultura do que de uma percepção sensível. Por sua vez, as oficinas
de práticas artísticas nos campos da saúde mental, dos trabalhos
comunitários e das deficiências têm dado provas do quanto os
processos de criação podem produzir resultados surpreendentes.
A arte pode abrir caminhos e perspectivas inusitadas para
pessoas com deficiência visual, tanto cegas quanto com baixa
visão. Isto vale tanto para as que já nasceram cegas quanto para
aquelas que vieram a perder a visão precoce ou tardiamente. No
caso de pessoas com deficiência visual adquirida, ter a vida
atravessada pela perda da visão, de forma súbita ou insidiosa, é
na maioria das vezes uma experiência radical que pode produzir, em
certos casos, efeitos devastadores, que podem se prolongar por
meses e até anos. Como relata um homem que entrevistamos: “Quando
me aconteceu esse problema da visão, foi de uma hora pra outra.
Não foi assim, de ter um pouquinho e levar um susto amanhã, não.
Foi na hora. Aí eu fiquei mais traumatizado com isso. (...) Aí eu
não vi mais. (...) Então eu fiquei muito tempo lá, fiquei uns
quatro anos jogado no sofá. O sofá chegou a ficar com um buraco
onde eu estava sentado”18. A experiência da perda da visão pode
assumir a extensão de uma experiência de perda generalizada, ou
seja, o sentimento de que tudo foi perdido: a alegria, o trabalho,
mas também a dignidade e a autonomia, enfim, o lugar no mundo.
Mais do que perda da identidade, experimenta-se, muitas vezes, a
perda do mundo a seu redor, pois a interrupção de rotinas leva
consigo uma rede de relações e, enfim, grande parte das conexões
com o mundo. As pessoas sentem-se solitárias e atingem um grau de
extrema vulnerabilidade. Com as referências anuladas, tudo parece
liquidado (Kastrup, 2008).
Como aponta L. Vygotsk (1997), as pessoas que nascem cegas
não sofrem diretamente a experiência da perda, mas, habitando um
mundo cujos códigos sociais e demais parâmetros utilizados na vida
diária são na maioria das vezes visuais, não tardam a ter a
experiência da deficiência. A plenitude de sua vida e a amplitude
de seu território existencial depende bastante dos cuidados e da
estimulação que recebem, bem como das oportunidades que lhes são
oferecidas. Se elas são insuficientes ou ausentes, corre-se o
risco de um desenvolvimento comprometido e de uma vida às vezes
extremamente limitada (Hatwell, 2003).
Como entender a potência da arte em lançar a pessoa para
além de seus atuais limites? Como trazer à cena outras
atualizações da subjetividade da pessoa cega ou com baixa visão,
que vão além da deficiência? Como fazer perceber que a pessoa que
não dispõe da visão não cabe na crosta identitária do deficiente,
mas compreende outras virtualidades? Nosso objetivo é colocar
esses problemas, que nem sempre fazem parte dos estudos no campo
da deficiência visual e não são, de modo algum, triviais. É, em
seguida, buscar solucioná-los por meio de uma discussão teórica
que passa pela filosofia de Bergson, pelos estudos da produção da
subjetividade de Deleuze e Guattari e pela psicologia da arte e da
deficiência visual, sempre tomando como base a abordagem da
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cognição inventiva (Kastrup, 2007a).

O virtual e o atual

Para entender o papel da arte na ampliação da percepção,


tanto de cegos quanto de videntes, lançamos mão do conceito de
virtual proposto pelo filósofo Henri Bergson. O conceito de
virtual visa dar conta de um real que se define como duração, em
oposição à concepção de um real pré-formado, todo feito desde
sempre. O conceito de duração aponta o caráter temporal do real –
incluídos aí a subjetividade e o mundo – sublinhando sua dimensão
criadora. Bergson formula uma ontologia criacionista, onde o
virtual é uma espécie de todo aberto, que se atualiza de
diferentes maneiras, configurando diferentes formas. Isto
significa que as formas existentes no presente só podem ser
entendidas se nos colocarmos, de saída, no virtual (Bergson, 1990,
p.111). Pensando através do par virtual-atual, Bergson dá
elementos conceituais para um entendimento da invenção e
reinvenção das formas que não se confundem com a realização de
possíveis.
Se pensarmos com o par possível-real, consideramos a
invenção e reinvenção de formas – objetivas e subjetivas – como um
processo de realização. Procurando distinguir a atualização de
virtualidades da realização de possibilidades, Gilles Deleuze
esclarece que "o processo de realização é submetido a duas regras
essenciais, aquela da semelhança e aquela da limitação" (Deleuze,
1991, p. 100). Tudo aquilo que existe no presente seria a
realização de uma das possibilidades pré-existentes num conjunto
fechado e dado de antemão. Não haveria verdadeira criação, mas
apenas limitação e seleção a partir de uma totalidade marcada por
limites que não podem ser ultrapassados.
Ao contrário, a atualização tem por regras a diferença, ou a
divergência, e a criação. Podemos dizer que a atualização de
virtualidades é um processo de diferenciação, cujo resultado não
estava dado de antemão. Nesta direção, podemos pensar atualizações
efetivamente novas, que não estavam contidas num conjunto de
possíveis pré-existentes. Quando se trabalha com o par
virtual-atual, deve-se pensar também o movimento inverso – a
virtualização – que vai do atual ao virtual. Falamos em
virtualização quando as formas constituídas se desmancham e
involuem na direção ao todo aberto de onde emergiram. Ao serem lá
relançadas e banhadas novamente na virtualidade, abrem-se a novas
transformações, continuando seu processo de criação e modificando
também as próprias condições de invenção de novas formas.
Conforme veremos, a experiência estética coloca a
subjetividade num processo de virtualização, acionando processos
de criação e de diferenciação. Nesta medida, tal experiência
promove a virtualização ou a problematização da subjetividade. No
caso das oficinas de práticas artísticas, a potência da arte não
se esgota no domínio técnico sobre uma certa matéria: argila,
música, o próprio corpo, etc. Por outro lado, na apreciação
estética, a finalidade não é o acúmulo de saber e de cultura. Em
ambos os casos, a formação profissional é uma possibilidade, mas
não é o objetivo maior da experiência com a arte. O mais
importante é que, acessando virtualidades, novas atualizações da
subjetividade podem ter lugar.
É comum que a falta da visão produza um efeito de
Página 34
totalização da subjetividade. A pessoa cega é percebida, sobretudo
pelos videntes, apenas pelo limite de sua deficiência. No entanto,
há duas maneiras de lidar com o limite. A primeira é considerar o
limite como algo que não pode ser transposto. A segunda é tomar o
limite tendo em vista sua transposição. Seguindo a segunda
direção, os estudos sobre produção de subjetividade de Deleuze
(1990) e Guattari (1987; Guattari e Rolnik, 1986) convidam a um
entendimento de pessoas cegas e com baixa visão para além dos
limites de sua deficiência e da crosta identitária que constitui a
camada mais externa e endurecida de sua subjetividade. Convidam
também ao desenvolvimento de dispositivos e estratégias, no campo
das práticas artísticas e da apreciação estética, que possam
efetivamente acionar processos de reinvenção de si e do mundo,
incluindo num mesmo coletivo, comum e heterogêneo, cegos e
videntes.

A produção de subjetividades coletivas: a arte como estratégia de


alterização

Nos últimos anos, o conceito de subjetividade tem sido


objeto de uma série usos equivocados. Muitas vezes ele é
confundido com a noção de sujeito – a qual ele visa tirar de cena
–, com a noção de psiquismo – que porta uma referência psicológica
e internalista que ele não possui – e mesmo com a noção de
indivíduo – que não apenas lhe é distinta, mas mesmo antagônica.
Em seu sentido mais preciso, o conceito de subjetividade, tal como
foi formulado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, é indissociável
da ideia de produção (Deleuze, 1992; Guattari e Rolnik, 1986;
Guattari, 1993). A subjetividade é produzida por vetores múltiplos
e heterogêneos: políticos, culturais, econômicos, ecológicos,
fisiológicos e tecnológicos, dentre outros. A novidade do conceito
de subjetividade é conferir à subjetividade um caráter de produção
e uma dimensão coletiva (Guattari, 1992; Escóssia, 2004; Kastrup,
2007a).
Muitas vezes imagina-se que dar conta da dimensão coletiva
da subjetividade é reconhecer sua constituição a partir de fatores
sociais: modelos instituídos de conduta, padrões de ação
legitimados, regras e representações sociais. De acordo com tal
perspectiva, as interações sociais modelam os indivíduos e
conferem às subjetividades características de semelhança e
identidade. Este modo de pensar caracteriza o construtivismo
social. De acordo com tal perspectiva, a subjetividade é feita de
uma espécie de estofo social, onde os laços sociais constituem o
único ingrediente na fabricação dos fatos subjetivos. Considera-se
que normas, leis jurídicas, a economia, a mídia e o mercado
proveem uma grade de construção da subjetividade. Segundo Bruno
Latour (2002), o construtivismo social tem a vantagem de superar o
naturalismo, ou seja, o realismo fundado nas leis da natureza, mas
conduz a uma falácia, pois, conferindo aos laços sociais o
estatuto de coisas, dá lugar a uma espécie de realismo social.
Latour argumenta que é o processo de sua produção que é social, e
não a matéria de que são feitos os fatos. Sublinha, então, que é
preciso distribuir melhor os papéis desempenhados pelos diversos
atores que participam desse processo, incluindo aí pessoas e
coisas.
Para Guattari (1992), a produção de subjetividades coletivas
não depende apenas de relações sociais. A mera existência de
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relações sociais nada garante. Se tais relações são fundadas na
identidade, ou seja, apenas em laços familiares, em ideias comuns
ou em regras compartilhadas, as outras pessoas não chegam a
constituir elementos de alteridade. O outro não é, na verdade, um
outro, mas uma outra versão do si-mesmo. Na obra de Deleuze e
Guattari, o conceito de subjetividade coletiva é entendido em dois
níveis: o aquém e o além do indivíduo. Cito palavras de Guattari:
“o termo coletivo deve ser entendido aqui no sentido de uma
multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao
socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades
pré-verbais, derivando de uma lógica dos afectos mais do que de
uma lógica de conjuntos bem circunscritos” (Guattari, 1992, p.
20). O nível aquém do indivíduo corresponde ao plano das forças,
linhas e vetores heterogêneos – políticos, econômicos,
fisiológicos, artísticos, tecnológicos, linguísticos, ecológicos,
etc. – que participam da produção da subjetividade. O nível além
do indivíduo é o nível social, aí compreendidos os grupos, as
comunidades e as instituições. O conceito de subjetividade
coletiva deve ser entendido a partir de relações de alteridade, as
quais não se limitam a relações com pessoas, mas incluem relações
com coisas e a própria relação consigo. Quanto a este último
ponto, é preciso sublinhar que a alteridade não é algo que se
encontra exclusivamente no exterior, ou seja, não se define
espacialmente, por uma lógica binária interior-exterior. Ela é,
antes, um plano que perpassa o interior e o exterior, atravessando
a subjetividade e o mundo.
A noção de alteridade encontra suas raízes na fenomenologia
de Husserl, para quem ela é a estrutura fundamental da
consciência. Segundo Natalie Depraz (1994), a alteridade é algo
que não se dá diretamente à percepção e à consciência, mas podemos
acedê-la através de uma relação consigo em que a atenção incide
sobre algo cuja percepção direta é difícil, problemática. Mesmo
assim, pode haver, através da apercepção, um devir-consciente da
alteridade que nos habita de modo inconsciente. François
Zourabichvili (2004, p. 18-19) aponta um limite da fenomenologia
pelo fato dela pensar a alteridade apenas em seu aparecer na
consciência, em seu movimento de gênese, não destacando que a
alteridade possui a potência da diferenciação da subjetividade, de
devir-outro, que aponta mais diretamente para sua inclinação
plural e coletiva.
Nem sempre acessamos a alteridade que existe em nós. Às
vezes é difícil para nós, videntes, perceber que não somos uma
identidade perfeita, que não somos iguais a nós mesmos, que a
cisão, a contradição, a ambiguidade e a incompletude nos habitam.
No entanto, somos efetivamente cindidos, contraditórios, ambíguos,
incompletos e imperfeitos. Às vezes também é difícil perceber que
a alteridade que nos habita não é a nossa fraqueza, mas a nossa
força, já que é por essa diferença interna que somos capazes de
transpor nossos limites e experimentar a fecundidade de processos
de transformação que nos lançam para além de nós mesmos. Por isso,
a experiência dessa alteridade em nós mesmos, dessa diferença
interna, é condição para a abertura à diferença do outro.
A subjetividade é coletiva pelas relações de alteridade que
estabelece consigo mesmo e com o mundo. Nesta medida, o caráter
coletivo da subjetividade não se limita a um problema teórico. A
subjetividade é mais ou menos coletiva, dependendo do modo como
ela se configura em formas concretas. Guattari afirma: “em certos
Página 36
contextos sociais e semiológicos a subjetividade se individua: uma
pessoa, tida como responsável por si mesma, se posiciona em meio a
relações de alteridade regidas por usos familiares, costumes
locais, leis jurídicas. Em outras condições, a subjetividade se
faz coletiva, o que não significa que ela se torne por isso
exclusivamente social” (Guattari, 1992, p. 19-20). Podemos dizer,
então, que as subjetividades podem se orientar no sentido do
individuo ou no sentido do coletivo. A subjetividade
individualizada se define por uma identidade e se afasta do plano
virtual de onde emergiu. Preponderam relações de tipo homogêneo e
que dão lugar a experiências de recognição. Já a subjetividade
coletiva mantém ativas suas conexões com o plano virtual e busca
relações de tipo heterogêneo. A relação com a alteridade e o
encontro de diferenças produz uma tensão que é criadora. É
importante sublinhar que, por mais que uma subjetividade seja
individualizada, ela pode reconectar-se com o plano virtual. As
experiências artísticas de alterização são recursos de que
lançamos mão para viabilizar a passagem da subjetividade
individualizada para a subjetividade orientada para o coletivo.
É importante insistir que a subjetividade pode tornar-se
coletiva tanto através de relação com pessoas quanto com coisas,
ambas passando por uma relação consigo mesmo e com o plano de
alteridade onde o coletivo se faz presente em nós. Não é
suficiente relacionar-se com outras pessoas sem perceber sua
diferença. É preciso constituir o outro como outro. Por outro
lado, não ver a diferença como inferioridade depende da capacidade
de encontrar em si sua própria alteridade, ou seja, algo que está
presente como um outro em mim.
Do ponto de vista dos estudos da produção da subjetividade,
a alterização é um movimento de saída de si, ou seja, do domínio
das vivências subjetivas, da história pessoal, das preocupações
egóicas e do julgamento, enfim, da posição de recognição. Nesta
medida, o movimento de alterização constitui o encontro com uma
outra dimensão da subjetividade, que constitui seu plano coletivo
de produção. O encontro com a alteridade que nos habita é, muitas
vezes, acionado por uma experiência de estranhamento e
problematização, tal como acontece na experiência estética.
Trata-se aí de uma experiência limite, onde a polaridade
sujeito-objeto se desmancha momentaneamente. Mas tal
desmanchamento não relega tais experiências a um estatuto de mera
desconstrução, pois, mesmo considerando que elas desconstroem, em
certa medida, a subjetividade constituída, são produtoras de novos
arranjos e, enfim, de uma outra política de relação consigo e com
o mundo. Nesta direção, tomarei tanto as oficinas de práticas
artísticas quanto a apreciação estética em seu papel de
atualização de virtualidades da subjetividade.

Sobre as oficinas de práticas artísticas

As oficinas de práticas artísticas têm sido amplamente


utilizadas como dispositivos de produção de subjetividade em
campos os mais diversos. Dentre eles, podemos destacar seu lugar
na chamada reabilitação de pessoas com deficiência visual. Sua
função, muitas vezes, é apresentada como sendo a de ocupação do
tempo e de saída da ociosidade; outras vezes, é a capacitação
profissional que ganha destaque. Embora essas funções não sejam
estranhas ao dispositivo oficina, não tocam o ponto essencial. Em
Página 37
nosso entendimento, o que caracteriza, em primeiro lugar, a
oficina é que ela é um espaço de aprendizagem inventiva. A
aprendizagem inventiva (Kastrup, 2007a) não se resume a um
processo de solução de problemas, mas inclui a invenção de
problemas, ou seja, a experiência de problematização. Também não
equivale a um processo de adaptação a um mundo pré-existente, mas
consiste na invenção de si e do o próprio mundo. Em segundo lugar,
as oficinas são espaços de fazer junto. Trabalha-se em grupo num
processo de criação coletiva. Em terceiro lugar, o processo de
aprendizagem inventiva se faz através do uso da arte, que envolve
o trabalho com materiais flexíveis, que, por sua vez, se prestam à
transformação e à criação. Os participantes da oficina estabelecem
com tais materiais agenciamentos, que são relações de dupla
captura (Deleuze e Parnet, 1998), se transformando ao mesmo tempo
em que transformam tais materiais.
Numa pesquisa sobre o funcionamento da atenção durante
processos de criação em portadores de deficiência visual
adquirida, numa oficina de cerâmica do Instituto Benjamin
Constant, no Rio de Janeiro, tivemos ocasião de verificar que,
além da atenção à argila, há uma dimensão da atenção que surge
como atenção a si (Kastrup, 2008). Este “lado de dentro da
experiência” surge como suporte explicativo para o fato do
trabalho na oficina produzir também efeitos notáveis de produção
de subjetividade ao mesmo tempo em que ocorre a produção das peças
de cerâmica. Neste caso, o processo de criação é, ao mesmo tempo,
um processo de autocriação. A oficina de cerâmica funciona
desenvolvendo estratégias de alterização que produzem
subjetividades coletivas na medida em que o barro, em sua dimensão
de alteridade, aciona no aprendiz experiências de estranhamento e
problematização que ocorrem no plano pré-egóico. A prática da
cerâmica aciona afetos impessoais, que não se confundem com
sentimentos e emoções subjetivas (Deleuze e Guattari, 1993). O
encontro com o barro é também ocasião para o encontro consigo
mesmo, com as forças de alteridade que habitam o próprio aprendiz
de ceramista. No processo de trabalho regular utilizam-se rotinas
cujo objetivo é criar um campo estável de sedimentação e
acolhimento de experiências afetivas inesperadas, que fogem ao
controle do eu. A regularidade dos encontros tem como efeito a
criação de uma familiaridade com tais experiências e o aprendizado
do acolhimento da alteridade em si e nos outros. É nesta medida
que as oficinas de arte são estratégias muito potentes de produção
de subjetividade.
Clara Fonseca (2005; 2006), que coordena a oficina, afirma
que dá aulas, mas não ensina nada. Não há nada a ser ensinado,
pois “está tudo já com eles”. É neste sentido que afirmamos que a
prática com a cerâmica virtualiza a subjetividade, produzindo, num
movimento de vaivém, novas atualizações. Pelo lado de dentro da
experiência, entra-se em contato com a alteridade do campo de
forças moventes que habita a subjetividade, para além das formas
aparentemente fechadas da identidade do eu. No caso dos cegos, a
experiência da deficiência, produzida num mundo cujo paradigma é
marcadamente visuocêntrico, é deslocada, dando momentaneamente
lugar a uma experiência da potência e da invenção. No caso de
pessoas que perderam a visão, o trabalho na oficina de cerâmica
coloca em marcha um longo e laborioso trabalho de reinvenção de si
e do mundo, cujos limites devem ser, dia após dia, ultrapassados.
Quando a perda da visão abre a possibilidade de desenvolvimento de
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processos de criação, esta perda pode acabar por acionar processos
de reinvenção, atualizando outras virtualidades da
subjetividade19. Virtualização e atualização são dois movimentos
inversos e, ao mesmo tempo, complementares, que se articulam numa
espécie de vaivém.
Além de possibilitar o encontro com a matéria maleável do
barro, o encontro com pessoas que mantêm diferentes relações com a
cegueira e com as professoras ceramistas, a oficina é um espaço de
aprendizagem inventiva na medida em que propicia o encontro com a
virtualidade de si, produzindo a experiência concreta de invenção
de si e do mundo.

"Na atenção a si, numa espécie de autopercepção, o sujeito


não toma a si como objeto. Não se duplica em observador e
observado, mas experimenta uma atenção direta, que o conceito de
awareness serve para nomear. Depraz, Varela e Vermersch (2003)
falam em awareness e utilizam a expressão becoming aware para
nomear esta experiência de encontro com a dimensão de virtualidade
de si. A expressão não possui uma tradução exata para o português,
aproximando-se de 'dar-se conta' ou de um ato de ciência, tal como
comparece na expressão 'tomar ciência' de alguma coisa. O termo
awareness guarda um sentido dinâmico, referindo-se a algo que
atinge a atenção de modo direto e súbito, possuindo, além do
sentido de registro, o de sua manutenção (Kastrup, 2006). Através
do trabalho com a cerâmica, pessoas que vivem a experiência da
perda da visão podem encontrar, em si mesmas, ou melhor, na
virtualidade de si mesmas, recursos para reinvenção de sua
história." (Kastrup, 2008, p. 193)

Sobre a acessibilidade a obras de arte: o papel do mediador

Uma outra entrada da arte na vida das pessoas cegas se dá


por meio do acesso a museus, exposições e centros culturais. Temos
ressaltado a necessidade de distinguir acessibilidade física e
acessibilidade cultural, bem como entre acesso à informação sobre
arte e acesso à experiência estética (Almeida, Carijó e Kastrup,
2010)20. É imprescindível o acesso à experiência estética, mas
ainda há muito que se avançar em relação a este ponto. Há grande
necessidade de expandir e qualificar, no Brasil, as políticas
públicas, bem como as estratégias e dispositivos inclusivos para
pessoas com deficiência visual. No cenário internacional, autores
como Fiona Candlin (2003; 2004) têm ressaltado a necessidade de
desenvolver projetos e políticas públicas que efetivamente
contemplem a capacidade e a especificidade cognitiva dos
deficientes visuais. Por exemplo, a mera adaptação de uma pintura
à percepção tátil (através da equivalência entre cores e texturas)
pode não ter qualquer sentido para uma pessoa cega congênita.
Disponibilizar meia dúzia de esculturas ao toque numa sala
separada também é uma política inclusiva muito limitada.
Informações em braille sobre as obras e os artistas podem ser
muito úteis. Disponibilizar essas informações é uma estratégia
bem-vinda e mesmo necessária, mas não chega a propiciar a
experiência com a obra de arte. Temos necessidade de políticas
mais amplas e avançadas. Talvez sejamos obrigados a reconhecer que
algumas obras criadas para serem vistas não se prestam
efetivamente à percepção tátil direta. Por outro lado, a arte
contemporânea, interativa e multissensorial, pode abrir um leque
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interessante de possibilidades. São questões que se colocam, que
precisam ser discutidas e fazer parte da nossa agenda21. Para
isto, é preciso ter claro que os deficientes visuais serão os
usuários de tais serviços, o que faz deles os principais
avaliadores dos projetos de acessibilidade. Nesta medida, a
construção de qualquer programa dessa natureza deve contar com
cegos em sua equipe. Todavia, é importante ressaltar que, para que
sua participação seja realmente efetiva, eles devem não apenas
participar da avaliação dos resultados, depois do projeto pronto e
já implementado, mas de todas as etapas de sua elaboração.
Para que a ida a um museu possa dar lugar a experiências
estéticas, temos que criar condições propícias para a apreciação
das obras. A percepção estética é aberta e receptiva e, de modo
geral, requer mais tempo do que a mera experiência de recognição.
A experiência de recognição corresponde a uma resposta rápida e
automática: isto é um pássaro, isto é uma cabeça. A experiência
estética, ao contrário, implica numa suspensão. Ela consiste em se
deixar impregnar pelo objeto percebido e em mergulhar nele com
atenção, evitando a interrupção precipitada. Como acontece com
qualquer pessoa, a visita de uma pessoa cega a um museu pode ser
bastante enriquecida por um mediador qualificado. Habitualmente, a
mediação é entendida como uma ponte entre a arte e o público,
entre a obra e o percebedor, tomados como duas realidades
pré-existentes. No entanto, Mirian Celeste Martins (2005) sublinha
a necessidade de ir além de tal definição, propondo, no lugar da
metáfora da ponte, o entendimento do trabalho de mediação como um
“estar entre muitos”. De fato, há múltiplos vetores que compõem o
cenário da mediação: a obra – original ou reprodução, com seus
efeitos diversos; o artista – com seu processo de criação, sua
história, seu contexto específico e o movimento ao qual está
ligado; o público – com seu repertório pessoal e cultural; o
curador; o museólogo; a mídia; as singularidades e repertórios dos
próprios mediadores; tudo isto sem falar das circunstâncias e do
momento em que aquela mediação acontece. Acrescenta, ainda, que
todo público, em função de seu repertório, possui sempre
necessidades especiais (Martins, 2005a, p. 7).
A mediação pode acontecer em circunstâncias muito diversas.
Pode haver preparação prévia, quando a visita é previamente
programada. Neste caso, pode haver leitura de textos sobre o
artista, o movimento ao qual está ligado, pesquisa na internet,
orientada ou não, e diversas outras estratégias. O objetivo da
preparação é criar uma atitude de curiosidade, disponibilidade e
abertura para a apreciação da obra de arte. A mediação também pode
se prolongar após a visita, com discussão e troca de impressões e
de experiências. Para Martins, o objetivo da mediação é abrir
brechas para o acesso à obra, devendo ser implementada de modo
sensível, cuidadoso e fundamentado. As informações são
importantes, mas não substituem o encontro do corpo com a obra, ou
seja, a experiência direta. Enfim, a mediação é um convite a
embarcar numa viagem estética, através de questões provocadoras,
jogos perceptivos e troca de impressões, interpretações e
proposições. O que se tem em vista é a qualidade da experiência
estética e dos encontros que ocorrem no espaço dos museus,
exposições e centros culturais. Martins acrescenta: “É por isto
que uma atitude investigativa é vital. É com nosso olhar sensível
e pensante, com a pele antenada, com o corpo receptivo, que nos
deixamos capturar para o diálogo com o que o museu nos presenteia”
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(Martins, 2005b, p. 14). Sublinha, por fim, que os mediadores
jamais devem fornecer chaves únicas de leitura, ainda que baseados
num livro ou manual de história da arte, nos advertindo do perigo
de colocar na voz do mediador uma interpretação que seria a única
correta. Sua conclusão é que, em última análise, mediar é “criar
espaços de recriação da obra” (idem, p. 18). Superando a metáfora
da ponte, a mediação é concebida como uma intricada rede
envolvendo uma diversidade de atores, cuja amplitude e
complexidade varia e deve ser inventada caso a caso. No caso da
mediação voltada para pessoas com deficiência visual, não há
regras pré-definidas. No entanto, é possível enumerar algumas
pistas para sua implementação, que dizem diretamente respeito à
formação do mediador.
Em primeiro lugar, é fundamental que o mediador esteja
advertido de que não existe “o cego”, mas que o campo da
deficiência visual inclui pessoas muito distintas. Há uma primeira
grande distinção entre cegos e portadores de baixa visão, que
possuem funcionamentos cognitivos distintos e, por isto, vão
exigir estratégias mediadoras diferenciadas. Existem também
profundas diferenças entre a cegueira congênita e a cegueira
adquirida e, no segundo caso, entre cegos precoces e tardios. Quem
nunca viu não possui a percepção da perspectiva e da sobreposição
de diferentes planos. Por exemplo, quando vemos uma paisagem, os
objetos distantes aparecem com um tamanho menor do que aqueles
mais próximos. No entanto, do ponto de vista da percepção visual,
a constância de tamanho é mantida. O mesmo vale para a forma e o
brilho. Para um cego congênito, cuja plataforma perceptiva é
eminentemente tátil, isto não acontece. Já a pessoa que ficou cega
mantém e utiliza sua memória visual, com uma nitidez e uma
eficiência que depende do momento em que a visão foi perdida.
Todas essas diferenças, que dizem respeito a um funcionamento
cognitivo peculiar, são significativas e têm consequências para a
percepção e a atenção mobilizada na experiência estética.
Também não devemos nos esquecer de que há pessoas cegas que
sequer foram alfabetizadas, enquanto outras têm formação superior
e mesmo diploma de pós-graduação em diferentes áreas do
conhecimento. Como qualquer outra pessoa, algumas têm interesse
por arte e outras, nem tanto. Algumas conhecem muito bem
literatura, outras gostam de ir a museus, a concertos e de
assistir filmes. Outras sequer tiveram a oportunidade de entrar em
contato com certas manifestações artísticas. Há também aquelas que
efetivamente não se interessam por este domínio como, aliás,
muitos videntes. Pensando que nossos desejos, interesses e todo
tipo de conexão com o mundo depende de um processo de produção, é
certo que a implementação de processos culturais inclusivos deve
ter em conta o problema da formação do público. O que se deve ter
no horizonte é o aumento do público com deficiência visual nos
museus, exposições e centros culturais.
É necessário também conhecer algumas das características do
funcionamento cognitivo do tato. Distinto da visão, que é um
sentido gestáltico e de apreensão imediata da forma, o tato é um
sentido que se dá por fragmentos sucessivos. Para a apreensão da
forma, a percepção háptica, que é o tato exploratório, envolve as
mãos e os braços, o que requer uma atenção sustentada e a
mobilização da memória de trabalho. Por este motivo, a percepção
tátil possui, em geral, uma velocidade mais lenta, que contrasta
com a instantaneidade da visão. Por sua vez, o tato é
Página 41
especialmente sensível a materiais, texturas, peso e temperatura,
o que pode e deve ser explorado no contato com as obras de arte22.

É preciso estar advertido de que os deficientes visuais têm


a atenção bastante voltada para os demais sentidos, sobretudo para
o tato. Cegos adquiridos, sobretudo os tardios, têm que aprender a
redirecionar a atenção que habitualmente é investida na visão
(Carijó, Almeida e Kastrup, 2008). Se uma pessoa se encontra neste
momento, sua apreciação tátil de uma obra de arte pode demandar um
tempo maior de exploração, que não deve ser apressado ou
interrompido.
Um outro item a ser observado é que jamais devemos privar um
cego da experiência estética, antecipando com palavras aquilo que
ele pode perceber diretamente. De modo geral, em qualquer
atividade de mediação, não devemos tentar substituir a experiência
por palavras. A descrição verbal e os comentários devem ser
encarados como um suplemento da experiência direta, nunca
substitutos dela. Cabe ainda sublinhar que se deve evitar qualquer
tipo de simplificação ou infantilização da mediação pelo fato das
pessoas serem deficientes visuais.
Por fim, devemos evitar o risco do visuocentrismo. Devemos
estar cientes que cegos e videntes têm diferentes maneiras de
perceber e estar no mundo, sem que a maneira vidente seja a mais
espontânea, natural ou correta. O cego não possui uma percepção
inferior, mas distinta da nossa.

Praticando a hospitalidade

Podemos dizer que as oficinas de práticas artísticas e a


arte acessível para deficientes visuais são práticas de
hospitalidade, no sentido definido por René Schérer (2000). As
práticas de hospitalidade são práticas de encontro e acolhimento
de diferença, de alteridade. A economia das práticas de
hospitalidade não é a do interesse e da contrapartida, mas sim das
trocas, dos agenciamentos, e também da oferta e do dom. Não se
busca admitir o outro em sua alteridade por tolerância ou
concessão. Trata-se de oferecer práticas de hospitalidade, o que
implica em reciprocidade. Quando nós, videntes, criamos,
juntamente com as pessoas cegas, um território de experimentação
estética, oferecemo-nos também a tais práticas. Fazemos junto,
fazemos com. Trata-se aí de uma reciprocidade fundamental, que a
ambiguidade da palavra hôte em francês expressa bem. Pois ela
designa tanto o hospedeiro, o que recebe, quanto o hóspede, o que
é recebido. O hospedeiro se inclina frente ao hóspede e se honra
em recebê-lo. Oferecer a hospitalidade, receber o outro em sua
alteridade, acolhê-lo, é também se oferecer às práticas de
hospitalidade, experimentando uma distância em relação a si mesmo,
uma distância íntima, que desloca a posição individualista que nos
faz ver o mundo e os outros a partir de nós mesmos. Tais práticas
e tais encontros são capazes de produzir nos videntes um processo
de produção de subjetividade mais aberta para a alteridade e mais
voltada para o coletivo. Pode produzir uma mudança de perspectiva,
de atitude, uma espécie de conversão a um ponto de vista da
alteridade. Trata-se de mudar o olhar sobre os outros e sobre nós
mesmos. Como afirmamos acima, a hospitalidade com o outro envolve
a hospitalidade consigo mesmo, o acolhimento da própria diferença
interna, que nos habita e constitui.
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Andando pela cidade, o cego nos chama a atenção e nos faz
pensar. Podemos evitar olhar para ele, tornando-nos voluntária e
momentaneamente cegos para aquela realidade que nos lembra de
nossa vulnerabilidade e de como estamos sujeitos, em nossa
existência, aos acasos e à imprevisibilidade. Podemos também
observá-lo e perceber que, por trás de sua aparente deficiência e
fragilidade, existe uma figura de resistência, que constrói sua
vida enfrentando dia a dia um sem número de obstáculos físicos e
sociais. Quando vemos pessoas cegas trabalhando e criando em
oficinas de práticas artísticas, sempre nos surpreendemos. Numa
entrevista, Clara Fonseca (2006) conta que, na ocasião em que
criou a oficina de cerâmica no Instituto Benjamin Constant,
costumava pensar e mesmo advertia as demais professoras ceramistas
a evitarem o uso de expressões como “olha aqui” ou “veja como se
faz”. Mais tarde, afirmou, quando percebemos que eles viam, não
nos preocupamos mais com este tipo de coisa. Os cegos têm sua
própria maneira de perceber e tais expressões fazem parte de seu
vocabulário cotidiano.
Certo dia, observando o trabalho na oficina, presenciamos
uma cena curiosa. Uma peça que havia sido iniciada na aula
anterior por um dos participantes havia desaparecido. A professora
notou que a peça não estava na prateleira onde o rapaz costumava
habitualmente guardar seus trabalhos. Perguntou onde ele havia
deixado da última vez, mas ele não estava certo de tê-la guardado
no local de costume. A professora não conseguiu encontrá-la.
Outras pessoas se mobilizaram, mas ninguém conseguiu achar. Até
que o rapaz se levantou da cadeira e resolveu empreender sua
própria busca. Depois de apalpar diversas peças espalhadas pelas
muitas prateleiras da oficina, retornou todo sorridente com a peça
na mão e disse: “Eu conheço o meu trabalho” (P10). Rimos juntos da
situação inusitada, que embaralhou momentaneamente os limites
entre o ver e o não ver, entre a deficiência e a eficiência. Para
nós, pesquisadores videntes, situações como esta dão lugar a
experiências estéticas, no sentido em que provocam a suspensão de
juízos anteriores e de um suposto saber sobre a cegueira,
evidenciando também o quanto aprendemos convivendo, observando e
escutando as pessoas cegas.
Observar uma pessoa cega num museu pode ser, para os
videntes, uma experiência estética, no sentido de que também
coloca em questão o que significa ver e não ver. Tomando um
exemplo mais comum, é difícil ficarmos indiferentes ao vermos uma
pessoa cega apreciando uma escultura através do tato. Percebendo
sua concentração e o sorriso revelador de uma descoberta
inusitada, podemos nos dar conta, às vezes pela primeira vez, de
que há uma apreciação estética para além da visão. Podemos pensar
também nos limites da própria visão e no papel da arte para sua
ampliação. Num texto em que comenta a obra de Lygia Clark, e que
tem o título curioso de “Olhar cego”, Hubert Godard (2006) afirma
que a força da arte encontra-se menos na invenção de objetos novos
do que na produção de mudanças na posição do olhar. Tais mudanças
vão justamente na direção do olhar cego, que permite a apreensão
direta de um campo de forças, desmanchando momentaneamente a
separação sujeito-objeto. Não estando mediado e limitado pela
história pessoal do percebedor, o olhar cego – que não é exclusivo
da visão, mas constitui uma dimensão de todos os sentidos –
possibilita um mergulho na experiência, permitindo captar
diretamente as forças presentes na obra de arte e atuando, por
Página 43
esta razão, na produção da subjetividade. Nesta medida, podemos
concluir que as práticas artísticas e a experiência estética podem
ampliar a percepção de cegos e videntes, atualizando virtualidades
inusitadas e concorrendo para a produção de subjetividades mais
abertas para a alteridade e mais voltadas para o coletivo.

notas:
17 As ideias aqui apresentadas foram desenvolvidas no
contexto projeto Práticas artísticas e construção da cidadania com
pessoas deficientes visuais, realizado numa parceria entre o
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), o Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Instituto Benjamin
Constant (IBC). Agradecemos à FAPERJ e ao CNPq pelo apoio.
18 Entrevista concedida por um dos participantes (P6) do
projeto Atenção e invenção na produção coletiva de imagens. Apoio
CNPq (2005-2011).
19 Outras oficinas desta natureza ocorrem no contexto do
projeto de pesquisa Práticas artísticas e construção da cidadania
com pessoas deficientes visuais. Cf. o texto de Laura Pozzana, bem
como o de Camila Araújo Alves, Carolina Manso, Josselem Conti,
Julia Neves, Liz Eliodoraz, Luciana Franco, Thadeu Gonçalves,
Vandré Vitorino e Marcia Moraes, ambos nesta coletânea.
20 Cf. também o texto de Filipe Herkenhoff Carijó, Juliana
de Moura Quaresma Magalhães e Maria Clara de Almeida, nesta
coletânea.
21 Cf. o texto de Viviane Sarraf, nesta coletânea. A
pesquisadora também oferece um excelente mapeamento da situação
dos museus de arte e ciência no Brasil em
www.museuacessivel.incubadora.fapesp.br.
22 Para saber mais sobre as características do tato cf.
Hatwell, I, Streri, A. & Gentaz, E. (Orgs) (2000) Toucher pour
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Página 46
Seção 2 - Movimentos do corpo e da clínica

Oficina de Movimento e Expressão com deficientes visuais: uma


aprendizagem coletiva

Laura Pozzana

Este texto apresenta o relato da experiência de uma oficina


de movimento e expressão que se realiza no Centro de Convivência23
do Instituto Benjamin Constant (IBC) desde abril de 2007. Trata-se
de uma aula inspirada nas práticas do Sistema Rio Aberto, escola
de origem argentina, que trabalha no sentido de despertar a
presença de cada um e abrir espaços para a expressividade dos
afetos. Através da prática corporal, busca-se criar condições de
convergência entre aquilo que se sente e se pensa e aquilo que se
faz, ou seja, entre a experiência e a ação, entre experiência e
movimento. O que está no horizonte é uma ampliação das conexões de
cada um consigo mesmo e com o mundo.
Tenho formação em Psicologia, onde a questão do corpo sempre
direcionou meus estudos, e também uma formação como instrutora do
Sistema Rio Aberto, em que a experimentação corporal é instrumento
de aprendizagem24.
O Rio Aberto é uma escola de desenvolvimento humano fundada
em 1966 pela psicóloga Maria Adela Palcos. Desde então, faz
práticas de acompanhamento e transformação de si, que atuam no
sentido de despertar o homem para sua própria história e para a
vida coletiva. Parte-se da consideração que a vida é movimento.
Tradicionalmente, somos marcados pela forte cisão entre corpo e
mente, corpo e mundo, indivíduo e sociedade. Há um dualismo
produzido através dos hábitos que contraímos. Porém, a vida não é,
por princípio, cindida.

"Como em nossa cultura a reflexão está divorciada da vida


corporal, o problema mente-corpo transformou-se em tema central da
reflexão abstrata. O dualismo cartesiano não é uma solução e sim a
formulação deste problema. Supõe-se que a reflexão é estritamente
toda mental, e assim surge o problema de como está ligada com a
vida corporal." (Varela, 1992, p. 55)

Tanto para a Psicologia como para o Rio Aberto e para as


práticas que lidam com o homem, deficiente visual ou não, é com o
corpo vivo, o mundo que o engendra e é por ele engendrado, que
importa trabalhar. A afirmação de Francisco Varela ajuda a dizer
que, ao consideramos o corpo em nossas práticas, buscamos
exatamente darmo-nos conta da continuidade entre o fazer e o
criar, o conhecer e o agir. Se há uma separação entre mente e
corpo, indivíduo e coletividade, sujeito e objeto, ela se dá para
nós, humanos, e como efeitos de certos modos de vida.
O homem, no seu viver cotidiano, se movimenta e age de forma
mecanicizada, automática e condicionada, em geral sem a
experiência dos acontecimentos que o atravessam mental, emocional
e fisicamente. Assim, o homem se identifica dentro de um limitado
número de características e qualidades, restando pouco espaço para
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expressões genuínas e inventivas. Trabalhar com o movimento e a
expressão dos afetos em curso é uma aposta na ampliação do
território existencial de cada um na medida em que perceber, agir
e criar se dão juntos, em planos que se tocam.
Francisco Varela retorna a Mencius, um dos primeiros
confucionistas do século IV a.C., e ressalta que o desenvolvimento
de uma pessoa virtuosa parte da premissa de que a natureza humana
é capaz de florescimento e que as pessoas podem cultivar esse
crescimento. Tal afirmação traz uma noção de desenvolvimento
bastante simples: “las capacidades básicas están dadas y cuando se
las nutre adecuadamente generan las cualidades deseadas” (Varela,
1996, p. 30-31). Consideramos a noção de desenvolvimento presente
no trabalho do Rio Aberto como um cultivo, assim como nas aulas de
movimento do IBC. Assim, presta-se atenção ao desenvolvimento
humano de forma que os aprendizados sobre o mundo e sobre nós
mesmos caminham juntos, lado a lado. Aprendemos através dos
livros, das relações que temos com os outros e aprendemos sobre
nós mesmos, sobre nossos pés, nossos gestos, através de como
percebemos, sentimos e pensamos. Essa aprendizagem tem um estofo
comum, é matéria do mundo.
O Rio Aberto tem um enfoque que não estritamente o
terapêutico. Ao invés de colocar o terapêutico em primeiro plano,
propõe o desenvolvimento. Ao invés de pretender tratar de uma
doença, coloca em primeiro plano o problema do crescimento.
Considera que o ser humano está em contínua transformação. Mas,
como, através dos hábitos e da educação, tendemos à mecanicidade e
ao adormecimento, precisamos de práticas que nos acordem no
processo ao mesmo tempo individual e coletivo (Pozzana, 2008).
Tudo que faz parte da vida cotidiana pode ser um instrumento para
o aprendizado e o desenvolvimento do homem. Não é preciso
retirar-se do mundo para buscar um caminho de realização e
plenitude. Para o trabalho de desenvolvimento, precisamos estar
lado a lado, no lugar onde efetivamente estamos.
Com a proximidade entre o Instituto de Psicologia da UFRJ e
o IBC, um dia pensei que um trabalho que vinculasse minhas duas
formações, propondo uma atividade corporal regular, pudesse ser
uma boa prática de produção de subjetividade com deficientes
visuais25. Digo isto não só para os participantes (deficientes
visuais), como também para mim, para o IBC, para a Psicologia e
para o aprimoramento de práticas efetivas que colaborem na
construção de um mundo comum que reúna as diferenças (Latour,
2003). A oficina partiu da intuição de que uma prática de
movimento e expressão que trabalhe com uma atenção voltada para
aquilo que se faz pudesse ser forte aliada para os deficientes
visuais, pois poderia ser um campo de experimentação e de
construção de relações a partir da corporeidade de cada um.
Assim, procurei o IBC e ofereci-me, a princípio, como
voluntária. Em 2008, esta atividade passou a integrar o projeto de
pesquisa Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas
Deficientes Visuais26. O grupo foi formado por 20 pessoas ligadas
ao Centro de Convivência do IBC – deficientes visuais (cegos e
também pessoas com baixa visão), que têm entre 45 e 70 anos de
idade. No primeiro ano as práticas aconteceram uma vez por mês com
uma hora de duração. No segundo ano, estas atividades começaram a
acontecer de 15 em 15 dias e, de maio em diante, os encontros
passaram a acontecer toda sexta-feira, de 11h às 12h. Cerca de 7 a
10 pessoas frequentam estas aulas desde o princípio; algumas
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saíram e outras entraram durante o período.
O objetivo principal deste texto é compartilhar algumas
observações realizadas, assim como problematizações que nasceram
destes dois anos de aula, para seguirmos atuando e refletindo na
produção de conhecimento e de cidadania. Começo narrando uma
apresentação de uma aula inspirada no Sistema Rio Aberto. Em
seguida, analiso o percurso do trabalho e de seus efeitos nos
participantes, no dispositivo e também em mim (instrutora das
atividades). Como metodologia de escrita, ao longo da discussão,
realizo um atravessamento, trazendo alguns trechos das aulas
retirados de um diário de campo – parte do método da cartografia
que me acompanha em trabalho de pesquisa e intervenção.
A cartografia27 é um método de investigação utilizado em
pesquisas de campo voltadas para o estudo da subjetividade. Para
abarcar a complexidade e a processualidade que acompanha cada
prática, colocando problemas, buscando o coletivo de forças em
cada situação, a cartografia se apresenta como rica ferramenta de
produção de conhecimento. Mais do que procedimentos metodológicos
delimitados, a cartografia é um modo de conceber a pesquisa e o
encontro do pesquisador com seu campo. Ela é produzida a partir
das percepções, sensações e afetos vividos pelo pesquisador nesse
encontro que não é neutro nem isento de interferências.
20 de abril de 2007 foi o primeiro dia de aula. Primeiros
contatos, encontros, sustos e surpresas. A vida segue seu rumo.
Cheguei meia hora antes para ver a sala. Logo depois, chegou
Fernando Casariego, meu companheiro de formação no Rio Aberto, que
esteve comigo neste trabalho por alguns meses (sem grandes
contratos, por interesse em participar). Fomos ao encontro das
pessoas que seriam os participantes da aula. Eles estavam na sala
145, onde acontecem diversas atividades.
Lá havia um grupo de cegos, todos sentados numa salinha,
conversando, sorrindo e ouvindo o bolero que tocava na vitrola.
Notei como havia prazer naquela escuta musical coletiva. Fomos
apresentados em voz alta. Parada na porta de entrada, senti
estranhamento, como se eu tivesse muito distante deles, quase
longe dali. Como me apresentar?
Aos poucos, fomos nos encaminhando para a sala onde faríamos
a atividade. Eles andavam em fila, uns tocando nos outros; alguns
conversando, outros calados. De cara, pareciam dispostos para o
que viria. Observo que os cegos vão se orientando a cada
movimento, rindo e brincando uns com os outros. Eu e Fernando
ficamos mais de fora, curiosos com aquele modo (aninhado) de andar
juntos. Eles se tocavam, uns de bengala, outros sem, uns
concentrados e outros entusiasmados. No meio do caminho, um deles
me diz: “Vou fazer xixi e depois vou lá”. Suspensão. Pergunto-me
se ele não se perderá, mas confio que a coisa segue comumente
assim. Afinal, penso, eu estava chegando na “casa” deles. A
sensação de estar perdida se dava em mim.
Algum tempo depois, estávamos na sala localizada no segundo
andar da educação física. Pedi que eles apoiassem suas bolsas no
canto e, se possível, tirassem os sapatos. Isso causou certo
tumulto, pois muitos deles têm receio de largar a bolsa e a
bengala, mas com calma isto foi bem resolvido. Observei que essa
chegada não é nada trivial. Alguns não queriam largar suas coisas,
dizendo que não saberiam resgatá-las. Alguns queriam fazer a aula
com a bengala dobrada no bolso. Fui acompanhando e ajudando como
podia.
Página 49
Chamei-os para o centro da sala, dando a mão para um, para
outro, até formarmos uma bela roda. Todos juntos éramos
aproximadamente 20 componentes. Apresentei-me e apresentei o
Fernando como meu ajudante, que também falou com eles. Depois,
falei sobre o trabalho do Rio Aberto como uma possibilidade de
experimentarmos o movimento, nos mover diferentemente e nos
relacionarmos com aquilo que ia acontecendo. Disse que não tinha
experiência em trabalhar com deficientes visuais e que aprenderia
com eles.
Alongamo-nos juntos, fizemos movimentos articulares e
circulares. Notei logo em alguns dos participantes um
enrijecimento das pernas, do tronco e do pescoço. Também senti
dificuldade em deixar claro verbalmente o que eu fazia
corporalmente e fui mais devagar. Alguns perguntavam: “Está certo?
É assim?!” Isto me tensionava e me contava sobre como eles estavam
recebendo as indicações. Depois, com a música, nos encontramos e
compartilhamos expressões alegres, suscitadas pelo som de Carlos
Malta e Pife Muderno. Palmas ao final da música, como expressão de
um prazer trocado (compartilhado).
O tempo desta primeira aula passou sem ser percebido.
Indiquei, numa pausa com silêncio, que cada um observasse e
registrasse suas impressões. Parecia que pouco tinha acontecido,
mas eu estava em contato com muitas sensações e não sabia ainda
nomear tudo aquilo. Seguimos em aprendizado, pensei.
Na segunda aula, logo ao entrar na sala, uma senhora pediu
para falar comigo. Ela veio me dizer que eu tinha esquecido de
apresentar a sala para eles. Assim, comecei a atividade aprendendo
com os acontecimentos e descrevendo para o grupo o que me parecia
importante. Com o Fernando se locomovendo e emitindo sons pelos
diferentes cantos, buscamos apresentar o tamanho do espaço.

A Roda na ampliação do corpo

Nas aulas de movimento e expressão, a roda é um método de


trabalho. A distribuição dos participantes numa configuração
circular delimita um espaço existencial aberto ao tempo e facilita
os atravessamentos de forças coletivas. A roda, enquanto encontro
de pessoas voltadas para um centro vazio, é uma facilitadora nesse
processo. Nela, o instrutor propõe movimentos e acompanha os
presentes através de uma sintonia com aquilo que vai acontecendo
no encontro de corpos.
A roda proporciona também a possibilidade de girar, gerar,
intensificar e distribuir as energias ali presentes em excesso ou
estagnação. A roda facilita o aspecto circular da experimentação,
movendo todos juntos para a direita ou para a esquerda, em
movimento de translação, como fazem os planetas em volta do sol,
ou cada um em torno do seu próprio eixo, em movimento de rotação.
O movimento pode dar-se também para frente e para trás, quando
todos se aproximam ou se afastam do centro. Este aspecto circular
pode se dar também no plano perceptivo, quando abre-se o mundo
sensível no encontro dos corpos, quando cada um toca e é tocado,
emite um som e é escutado. Cabe ressaltar ainda que a mobilidade
em roda convoca diferentes maneiras de pisar e de articular. Na
dinâmica da roda, cada um é convocado à mobilidade a partir da
percepção presente, e não de regras dadas a priori. De modo geral,
a roda colabora para a criação de corpos mais dinâmicos, sensíveis
e conectados com a atmosfera que o circunda.
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O instrutor, que é quem conduz a atividade, lida com aquilo
que propõe de forma corporificada, não tenta convencer ninguém de
nada. Essa condução deve chegar aos participantes como um convite.
Trata-se mais de contagiar do que de explicar, mais de fazer mover
do que de fazer entender. Muitas vezes faz-se o uso de imagens e
de descrições de posturas corporais para convocar experiências
próprias, como é o caso quando o instrutor indica para deixarmos a
cabeça pender sobre o peito, fazendo com que “o queixo toque o
coração”. Nesta mesma postura, pode-se dizer também que “a nuca se
abre e floresce para o alto”. O instrutor, a partir de suas
sensações e disposições, pode ir descrevendo pontos intensivos por
onde transita (chamando a atenção para algumas composições). Por
exemplo: “sentimos as extremidades de nosso corpo irradiando como
estrelas de cinco pontas” para se referir à abertura (à
permeabilidade) das mãos, dos pés e da cabeça para o mundo (e para
si); ou “coluna alinhada, pés firmemente apoiados no chão, joelhos
relaxados a ponto de permitirem uma pulsação com a terra,
diafragma liberado para a livre circulação do ar, rosto sereno,
garganta e alto da cabeça respirados”. O instrutor ressalta, após
um certo despertar corporal, que somos “canais, espaços
comunicantes entre céu e terra”. O instrutor experimenta um corpo
nesse espaço “entre céu e terra”, compartilha sua experiência e
contagia a partir desse lugar. Aqueles que assim se dispõem
experimentam algo comum e se comovem ao sentir uma experiência.
Trata-se de uma indicação a ser experimentada por cada um e não de
um ponto de chegada ou uma verdade a ser adotada por todos
(Pozzana, 2008).
Joana Belarmino, professora da Universidade Federal da
Paraíba e cega de nascença, participou como convidada do Colóquio
Ver e não Ver, onde falou numa mesa intitulada “O que percebemos
quando não vemos?28”. De suas palavras, extraio um trecho que
conta sobre os efeitos na subjetividade destas indicações
imagéticas, mais que tudo poéticas, encontradas (no caso da sua
fala) na literatura.

Gosto dessas concepções vagas, isentas de cientificidade, porque


elas me ajudam a repercutir essa questão dentro de mim mesma, no
meu nicho particular onde sou pessoa cega e de onde parto para
perceber o mundo. Gosto dessas concepções, porque elas me conduzem
ao lugar da emoção, da afetividade, da poética e da estética, da
memória e das recordações. (Belarmino, 2007)

Do mesmo modo, as palavras usadas nas aulas na condução do


movimento corporal, feita por um instrutor, buscam contribuir na
criação de condições para que experiências encarnadas, emocionais,
se deem em cada um.
Na prática criada pelo Rio Aberto, com o intuito de abrir
espaços arejados, almeja-se muitas vezes o deslocamento e o
esvaziamento de si, trabalhando no sentido da suspensão da ação,
dos pensamentos e das posturas habituais. Busca-se viabilizar a
presentificação dos participantes, liberando, com a expiração do
ar e com o desmanchamento das formas, o corpo para os sentidos.
Fazendo surgir a experiência do corpo, abrindo espaço para a
consciência própria do corpo29, colocamo-nos atentos àquilo que
ocorre ao corpo em conexão com o mundo. As aulas, de modo geral,
acordam presenças, contribuindo para ativar os processos de
subjetividade em curso. Ao proporcionar uma experimentação
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corporal, possibilita-se uma ampliação das conexões corporais que
nos constituem.

Conduzir? Imitar? Como?

A imitação é um aspecto central do método do Rio Aberto, que


serviu como inspiração para as aulas no IBC. O modo como
geralmente o instrutor conduz o movimento na roda é através da
imitação. Assim, os participantes são convidados a se moverem com
o instrutor por outras vias que não as habituais. Quando um
instrutor faz movimentos, dançados ou não, com expressividade ou
com uma simples atenção ao que faz, leva os participantes a
experimentar com ele. O instrutor parte dos corpos presentes, da
atmosfera criada, incluindo aí gestos, rumores, posturas,
expressões e afetos. Os participantes começam a repetir os
movimentos da maneira mais fiel possível. Esta repetição busca
principalmente convocar a presença de cada um, trabalhar a
atenção, trazendo-a para aquilo que se faz.
A proposta é que, com a repetição do movimento, vão se
abrindo frestas por onde novos movimentos emergem, trazendo
variações, inspirações, novidades. De início, a repetição se
assemelha ao ato de copiar, macaquear, fazer igual ao outro. Aos
poucos, na medida em que os participantes vão se habitando ao
movimento, o contágio entre os corpos ganha força, os indivíduos
vão deixando de controlar aquilo que fazem, podendo confiar o
corpo à sabedoria de conduzir-se (afetar e deixar-se afetar).
Dizemos, com isso, que a consciência corporal ganha espaço na
consciência intencional e o corpo se conecta mais com o seu
entorno. Os corpos se movem pensantes e emocionados. Os
participantes imitam o movimento que reverbera e não a forma
destituída de vida. A imitação vai ganhando corpo através daquilo
que é irradiado.
Trata-se de uma imitação suis generis, pois a repetição não
é feita de forma mecânica. Considerando que o gesto feito pelo
instrutor é composto por inúmeros fatores (ideias, pensamentos,
sons, imagens, desejos), a rigor não podemos distinguir de onde
parte o movimento, quem está imitando quem. O fato de repetir e
estar naquilo que se repete engendra contemporaneamente novos
movimentos, afetos, sensações. Como bem trabalhou Gabriel Tarde
(1976), trata-se de uma imitação inventiva, que conecta as
presenças num movimento comum, que se propaga e se cria.
Ao conceituar imitação, Tarde diz que ela seria “toda
gravação inter-espiritual, por assim dizer, seja querida ou não,
passiva ou ativa (1976, p. 6) e também “uma ação à distância de
cérebro para cérebro” (1976, p. 230). A imitação é o movimento
pelo qual algo se repete e se propaga. Imitamos sem saber que
estamos imitando e, muitas vezes, à distância, por reverberação.
Imitar alguém é reverberar com a vida no outro. Deste modo, na
roda durante a oficina de movimento e expressão, a imitação
proporciona uma reverberação onde uma vida é compartilhada e uma
atmosfera é criada. Tarde afirma que a imitação ocorre
principalmente do interior para o exterior do homem (1976, p.
230). Ao imitarmos alguém, imitamos, sobretudo, aquilo que os move
e não suas aparências externas. Há uma ressonância de crenças e
desejos: irradiação (Pozzana, 2008, p. 76).
Ao conduzir a oficina de movimento e expressão que acontece
no IBC, uma questão concreta se colocou: como conduzir uma
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atividade utilizando o método da imitação em uma roda onde a
maioria dos participantes não vê? Como instrutora, fui
deparando-me na prática com este problema. Logo constatei que era
preciso indicar com a fala o que eu estivesse fazendo
corporalmente. No caso, pensei que, para ocorrer a imitação, uma
mediação seria necessária. Eu devia falar o que estava fazendo
para que eles pudessem fazer comigo. Assim, fazíamos juntos.
Muitas vezes, eu precisava ir ao encontro deles e fazer com eles,
no contato dos corpos. Um modo de fazer ia sendo inventado. A
necessidade de trabalhar com o toque se impôs e a importância da
palavra encarnada foi se explicitando com o tempo.
Creio que até aqui apresentei um chão (uma base) para que o
leitor possa agora acompanhar de perto as práticas que estavam em
jogo e quais os efeitos delas nos participantes, assim como em mim
e na dinâmica da aula.

Articulações com acontecimentos em aula

Para que o leitor não se apresse em perguntar sobre a


condição visual de cada um dos participantes, é preciso dizer que
demoramos a saber de alguns e não sabemos muito ainda. Perguntar
como? E o que fazer com as respostas? Será que podemos
experimentar, antes de perguntar, para buscar uma sintonia através
do contato e não da informação? Questões e agitações nos
acompanham. No início do quarto mês de aula, disse que queria
saber mais deles. Perguntei como era a condição visual de cada um
e se alguém não via nada. Todos tinham forte comprometimento. Uma
mulher afirmou ter uma visão tubular, um senhor disse que
diferenciava luz e escuridão, outro falou ver vultos não
definidos, outro disse que só via nas laterais, alguns tinham
resíduo visual e baixa visão. Não me lembro de ninguém ter dito
ser completamente cego. Curioso, pois até ali nunca os vi fazendo
um movimento direcionado pela visão. Achei boa essa abertura
através da conversa.
Como não podia trabalhar a partir da imitação stricto sensu
– geralmente usada por mim e em qualquer aula do Rio Aberto com
pessoas que veem – fui me perguntando como indicar movimentos com
o corpo e no espaço. A descrição minuciosa dos movimentos e das
articulações corporais foi uma saída. Mas não bastava. Pois, ao
dizer para que colocassem os pés paralelos, observei que muitos
que não podiam ver não tinham a experiência disso (outros, sim).
Precisavam de um toque. Quando a indicação era para levantar do
chão a perna direita e girar o pé de forma circular, notei
movimentos diferentes: um dobrava o joelho da perna que havia
levantado e girava só o pé, outro girava o pé sem dobrar a perna,
um terceiro rodava tudo junto, um outro ainda levantava muito a
perna e havia também quem pouco a levantava. Poderia seguir
fazendo combinações entre partes do corpo implicadas no movimento,
articulações e ritmos convocados, pois o simples ato de levantar
uma perna fazia com que alguns suspendessem os ombros, por
exemplo. Movimentos realizados automaticamente, por hábitos
contraídos e também como reflexo de tensões ou preocupações
geradas pela novidade trazida para a roda e ainda não
corporificadas.
Na posição de quem vê parecia não haver sintonia entre os
diferentes movimentos e a indicação dada. Muitas articulações
estavam em jogo e em direções diferentes. Articulação, aqui,
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tomada em sentido ampliado, inclusive entre aquilo que um fala e o
outro escuta, como alguém se apoia e se utiliza do chão,
articulações com o outro e mesmo com a respiração. Precisei
sustentar este suposto desencontro para afinar o contato e a fala
que toca. Assim como precisei deixar de lado muitas vezes certo
desejo de controle e organização. Este aspecto apareceu com
frequência nesse aprendizado coletivo.
Ainda em relação aos momentos em que havia uma distância
entre a indicação dada por mim (instrutora) e os participantes,
como já foi pontuado, era recorrente que alguns perguntassem se
estavam fazendo certo ou não. Como é o caso de uma mulher, que
parecia bem ressentida com a sua condição de deficiente visual e,
por muitas vezes, interrompia a atividade para reclamar, falar que
era cega, que precisava de atenção especial e que não estava
entendendo nada. Fui esclarecendo para todos que não havia
movimento certo ou errado e que eles buscassem experimentar, com
seus próprios corpos e modos de mover, como estas indicações
podiam lhe parecer. Ao mesmo tempo, eu me perguntava como
compartilhar melhor estas indicações. Como tocar também com a
palavra? Percebia em alguns pouca paciência (nesta mulher em
particular) para escutar e fazer novas combinações com o corpo.
Após três aulas, esta mulher já estava mais acolhedora consigo e
podia, sem reclamar, experimentar as indicações recebidas,
conduzir-se pelo espaço e perceber-se nos acontecimentos em curso.
No final da quarta aula, em um momento de observação de si, lanço
no ar a pergunta: algo que fizemos hoje chamou mais atenção? Como
estou neste momento? Pausa. Tal mulher, parecendo outra, com uma
fala emocionada, diz para o grupo que precisa trabalhar seu
preconceito consigo mesma. Não posso afirmar que caminhos a
levaram a esta percepção, mas, em contato com ela, posso dizer que
alguma experiência a tocou e a fez olhar para si na sua relação
com os outros (assim como consigo). Aconteceu uma constatação de
sua condição visual, uma intensificação de certo estado,
acompanhado de raiva e tristeza, mas também algo prazeroso
circulou por ela, que a fez sentir-se viva e desejar aceitar-se.
Uma dificuldade encontrada foi no uso da música. Geralmente,
a música serve como apoio ou fundo para o movimento quando o
instrutor se move e é imitado pelos participantes
contemporaneamente em roda. Nessas aulas, no entanto, era
complicado indicar coisas com a fala e, ao mesmo tempo, ouvir a
música, de modo que, na maioria das vezes, eu indicava e depois
colocava a música para experimentarmos com ela.
Na música nos encontrávamos, principalmente nos momentos
onde, com ou sem indicação, todos se moviam mais livremente,
levados por ritmos e melodias. Sem sair muito de seus lugares, os
participantes emitiam sons, cantavam quando conheciam a letra,
dançavam em pares quando se esbarravam e às vezes ousavam
experimentar movimentos novos, como levantar os braços e abaixar o
tronco. Estes momentos livres com música traziam alegria. Pude
percebê-los experimentando os efeitos das ondas sonoras, do
movimento corporal e novas nuances em si, com emoção e inspiração.
Uma pessoa, durante a atividade, relatou não dançar assim há muito
tempo. Naquele dia, o prazer do movimento estava no ar e
atravessou o espaço coletivamente.
Observo também que não indicar muito o movimento os deixava
meio paralisados, pois ficavam esperando a referência dos outros e
do espaço. Talvez por isso dançar junto em roda era adequado e
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tranquilizador, revelando-se um bom método. Como esta configuração
trazia calor e dinamismo, muitos se deixavam levar pelo outro e
ousavam experimentar movimentos novos e ampliados. De mãos dadas,
sentíamos mais liberdade para nos mover, fator no mínimo
paradoxal.
No curso desse aprendizado coletivo, um dia aconteceu do
aparelho de som quebrar. Eu costumava pegar o som na sala da
coordenação do Centro de Convivência, próxima à entrada do IBC.
Vez por outra, pedia para alguém me ajudar na instalação das
caixas de som e na ligação da aparelhagem à eletricidade. Por
acaso, neste dia ninguém havia me ajudado. Comecei a atividade com
alongamento, atenção à respiração e aquecimento das articulações.
Depois, indiquei que eles se movessem livremente no sentido de
acordar partes do corpo que pudessem estar com preguiça ou pouco
ar. Enquanto isso, fui ligar o som e... nada. Sem ver direito,
enfiei o fio do som na tomada de 220 volts. Tentei mais uma vez e
nada. Voltei para a roda e disse que naquele dia iríamos compor e
dançar com nossos sons, pois o aparelho não estava querendo
funcionar. Rimos e, daí, partimos, fazendo cara de A, cara de E,
de I, de O e de U. Depois, movendo o rosto, a boca e a língua e
fazendo sons estranhos. Cada um fazia um som e, ao mesmo tempo,
era levado pelo som dos outros, acontecendo uma imitação e uma
variação coletiva. Depois, começamos a acentuar mais o ritmo,
batendo os pés no chão e fazendo som de tambor. Foi curioso como
alguém nessa hora falou alto que estávamos sendo como os índios,
éramos uma tribo. Dali, sugeri que eles fossem pelo espaço
articulando o som com os movimentos corporais. Alguns entraram na
proposta com bastante intensidade e outros faziam de forma mais
recolhida, quase imperceptível. Mas todos estavam entregues aos
sons que atravessavam a sala.
Alguns minutos depois, falei: Stop! Estátua! Com calma,
disse para eles ficarem numa postura de estátua e acentuassem numa
forma corporal o que sentiam naquele momento. Exagerando. Sentindo
por dentro que forma era aquela, que partes do corpo estavam em
jogo, o que essa estátua estava expressando. Depois, seguimos com
movimento, sons e ritmos feitos por eles. Indiquei que eles
fizessem uma outra estátua, que fosse diferente da primeira. Mais
que tudo, para trabalhar com a criação deles. Na sequência, pedi
que se juntarem em trios. Indiquei que eles contassem um pouco no
trio como eram as estátuas que cada um fez; depois, que as três
estátuas se juntassem, formando uma composição, e dessem um nome
para a obra. Eram 6 trios e todos pareciam concentrados na
experimentação. Algumas das denominações foram: Árvore Podada,
Deficiência (um não via, o outro não ouvia e o terceiro não
falava), Mulheres, Montanha, Encontro e Chuva.
Ao final, eles falaram ter gostado daquele dia. Um senhor
pediu para encerrar e, bem alto, foi acentuando: fá, fé, fí, fó,
fui!!!!! Todos bateram palmas. Foi interessante a riqueza do
material existencial, imagético, concreto. Foi um pouco tenso o
som falhar na hora e eu me dar conta de que falhei também. Será?
Afinal, duas tomadas com voltagens diferentes, uma ao lado da
outra, com pouca diferenciação, podia dar no que deu (para
deficientes visuais ou não). Acaso, lição ou destino?
Outro ponto, para mim, digno de observação, foi eu ter tido
dificuldade para gravar os nomes dos participantes durante um bom
tempo. Talvez por estar preocupada com o desenrolar da aula. Senti
que meu olhar (exacerbado) atrapalhava um contato concreto entre
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eu e eles. Com o tempo, fui inventando maneiras de
presentificá-los na roda comigo. Na chegada, muitas vezes,
fechávamos uma roda, eu conduzia um momento de pausa de
movimentações e ações externas – escuta das sensações – e cada um
dizia seu nome, invocando a presença. Ressaltei que cada um
falasse seu nome de modo forte, como se estivesse chamando por si,
projetando a voz no espaço, sentindo o corpo no nome. Enquanto
alguém chamava seu nome, contando de si a partir de uma tonalidade
e de um lugar concreto, os outros escutavam e depois buscavam
repetir assim como haviam escutado. Tratava-se de uma imitação do
outro por ondas sonoras. Ao repetirmos o modo como cada um chamava
seu nome, podíamos compartilhar alguns afetos comuns presentes na
fala de cada um dizendo seu nome. Tratava-se de uma abertura para
perceber o outro na voz, nas letras acentuadas, nos ritmos e no
tom. E, ao ter seu nome repetido pelos outros, sentia-se um
reverberar de si nos outros, uma chamado potencializado pela roda.
Esta proposta foi incorporada e, certa vez, partiu deles o pedido:
“Vamos falar os nomes daquele jeito?!”
Depois das férias de final de ano, recomecei as atividades
em março. Fui recebida com muito carinho pelos participantes.
Fiquei surpresa ao perceber como eles se lembravam de mim e de meu
nome. Esta surpresa dizia respeito à minha dúvida em relação à
conexão que existia entre mim e os participantes. Nessa chegada,
com relaxamento e alegria, observei que eu também me lembrava de
muito deles, de seus modos de falar, movimentos particulares e até
mesmo de seus nomes. Foi uma espécie de susto, um despertar.

Considerações sobre aprendizagens

Movermo-nos juntos em roda é uma forma de intensificar as


forças presentes e gerar comunhão. É experimentar cumplicidade no
presente. Geralmente, isso se dá também com a possibilidade de nos
vermos uns aos outros. Na nossa sociedade, é através da visão que
muitas vezes julgamos, controlamos e impomos limites à
experiência. Se o instrutor conduz sem reprimir, criticar ou
julgar, contagiando os outros para aquilo que faz, ele acaba por
dar permissão para que cada um se mova diferentemente, com
expressividade. Assim, há um movimento coletivo em produção, que
permeia e ultrapassa limites e formas instituídas, abrindo para
novas possibilidades. Com os deficientes visuais o que se faz
coletivamente acontece em um plano onde o aspecto visual pode
estar presente, mas não é um vetor central. Com o toque e com o
tom da voz, compartilhamos o gosto, a atenção, a candura, a
irritação e afetos vários. Há comunhão.
É curioso notar como ao final das aulas muitos participantes
agradecem – a mim, a Deus e aos outros – pelo encontro. Falam do
prazer de se mover, da dança, da alegria sentida. Alguns comentam
o gosto pela música, pela brincadeira, pelo fato de ser tocado e
receber uma massagem do companheiro. Duas vezes comentaram comigo
que percebem como a aula produz neles mudanças: sentem-se cansados
antes da aula e saem de lá bem dispostos. Lembro de uma senhora
bem idosa dizer que “aquilo era melhor do que remédio”. E outra
senhora, que além do problema visual também tem uma deficiência
auditiva e um rosto meio tortinho, diz sempre que faço bem a ela.
Penso que isto se dá pelo fato de estar sendo tocada e movida com
afetos concretos e tangíveis, com um tempo dedicado à percepção da
sensibilidade produzida. Como sinal de que gostam da oficina,
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podemos ressaltar o fato dos participantes trazerem seus
familiares para me conhecer. Fato que provavelmente acontece em
outras aulas do IBC e que conta de uma construção coletiva de um
compartilhamento dos aspectos positivos de nossas experiências.
Após o dia que trabalhamos sem som, fui percebendo cada vez
mais a importância que a palavra encarnada tem na experiência dos
deficientes visuais. Emitir pequenos sons e se mover pelo espaço,
como prática de aula, são ações que nascem juntas e criam
consistência e precisão no gesto e na expressão. Assim como os
nomes ditos em voz alta e imitados pelos outros, que nos permitiam
um contato com os presentes, eram também um chamado para si. Foi o
caso das palavras criadas na tradução de um movimento que eu
estava propondo, isto é, de um movimento que eu já estava fazendo
com eles, mas que, para ser compartilhado, precisava de uma outra
maneira de tocá-los e convidá-los. Posso afirmar, após um tempo de
prática, que esta fala não era apenas uma mediação para a imitação
do movimento. A fala nascia do movimento e fazia corpo com a
reverberação dos corpos presentes.
Considero que este tempo foi cheio de aprendizagens para os
participantes e para mim, instrutora de movimento. Foram momentos
dedicados ao prazer de estar em movimento e de produzir conexões.
Conexões consigo, com as próprias sensações, com limitações e
necessidades; conexões com o outro, na experiência de dar-se conta
da importância, da distância e da aproximação nas relações. E
conexão com a terra, com os pés, com o ar, com a música e com o
espaço físico.
Ao final, costumamos dar as mãos e fazer uma pausa para
perceber como estamos e por onde transitamos naquele dia. Neste
momento, é comum alguém fazer espontaneamente uma oração ou um
agradecimento coletivo, explicitando a entrega das presenças, o
encontro afetivo e o alimento recebido. Arriscaria dizer que se
trata de uma comunhão de sensações e uma confiança na roda, que é
força para o surgimento de uma autoconfiança. A partir de minha
formação no Rio Aberto, entendo que este aspecto espiritual que
brota na roda pode ser entendido como conexão vital com aquilo que
de mais concreto acontece nas nossas células e nos espaços que nos
circundam. Nesse sentindo, a prática corporal acorda o corpo e a
alma, o material e o espiritual, o racional e o emocional, o
celular e o cósmico30. Sem separação, pois se trata do viver com
todas as suas nuances. Na perspectiva do Rio Aberto, o trabalho
com a espiritualidade parte da necessidade de nos conectarmos mais
diretamente com aquilo que está acontecendo, situando-nos entre a
inteligência da mente, da razão, e a inteligência das células, do
sensível. “Conectar-se com as células é um convite”, diz Maria
Adela durante uma aula: “Nossas células se espiritualizam e nossos
espíritos se materializam”. É importante sublinharmos que aquilo
que chamamos espírito é corpo, deve ser entendido como matéria
sutil, ou, ainda, corpo sutil. Em Uma ética para o novo milênio,
Dalai Lama pensa a espiritualidade como responsabilidade
universal:

"Antes de mais nada [a espiritualidade] é um apelo por uma


reorientação radical que nos distancie da preocupação com nossa
própria pessoa. É um apelo para nos voltarmos para a ampla
comunidade de seres com os quais estamos ligados, para a adoção de
uma conduta que reconheça os interesses dos outros paralelamente
aos nossos." (2000, p. 34)
Página 57
"O objetivo da prática espiritual e, consequentemente, da prática
ética é transformar e aperfeiçoar o kun long [a disposição]."
(2000, p. 44)

Com a prática, podemos ampliar nossa capacidade perceptiva,


ganhar consciência e abertura para nos movermos em conexão com o
cosmos. Portanto, ao afirmar um trabalho que inclui a
espiritualidade, não estamos defendendo um princípio religioso
específico, com preceitos a serem seguidos. Não se trata de uma
doutrina na qual se deve acreditar. Ao contrário, trata-se, mais
uma vez, de experimentar, de criar conexões com aquilo que nos
move e nos rodeia.
Para concluir, considero relevante compartilhar que até o
momento de escrever este texto, ou seja, na posição de instrutora
ou professora (como eles me chamam), pensava estar conduzindo esta
aula de movimento e expressão, mesmo tendo clareza da necessidade
de aprender muito para trabalhar com deficientes visuais. Porém,
depois deste trabalho de escrita e reflexão, observo que fui
conduzida pelos participantes e por seus modos de perceber e agir.
No limite, fomos todos conduzidos pelos acontecimentos, por algo
que nos atravessava, algo que ultrapassa a condição de deficiente
visual ou vidente, algo aquém e além de nós, de nossa capacidade
de controle e mesmo de completa compreensão. Trabalhamos juntos
acordando poros (espaços) para que a vida siga gestando-se viva
(criando-se). E isto nos parece uma boa estratégia na criação de
um mundo comum.
Ao final da primeira aula fiquei com a impressão de não
tinha acontecido muita coisa, talvez nada espetacular. Mas eu
sentia estar em contato com uma experiência nova, que não sabia
ainda nomear. Seguimos. Hoje, consigo considerar esta impressão
como algo positivo, um solo sensível de onde brotam palavras
intensas, relações concretas e uma vida se fazendo. De modo geral,
o Rio Aberto é uma prática que possibilita desenvolvermos uma
percepção mais sutil e o conhecimento do presente, das relações e
dos afetos que nos compõem. Tateando com os cegos, em movimento,
sigo aprendendo e propondo maneiras de perceber e acompanhar
aquilo que emerge na experiência viva e coletiva.

notas:
23 O Centro de Convivência se define por ser um espaço de
troca e sociabilidade para os deficientes visuais que já passaram
por um processo de reabilitação.
24 Um encontro entre a Psicologia e o Rio Aberto está
presente textualmente em minha dissertação de mestrado, publicada
como livro. Conf. POZZANA L. O Corpo em Conexão: Sistema Rio
Aberto, Niterói: EdUFF, 2008.
25 Para discutir a relação entre corpo e deficiência visual,
cf. o capítulo de Moraes e outros, inserido nesta coletânea.
26 Pesquisa financiada pela FAPERJ. 
27 Conferir: Pistas do Método da Cartografia:
pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Passos, Kastrup
e Escóssia (orgs.), Editora Sulinas, 2009.
28 O texto preparado para a mesa “O que percebemos quando
não vemos?”, assim como a gravação da fala de Joana Belarmino no
Colóquio Ver e não Ver, encontra-se disponível no site
http://www.psicologia.ufrj.br/verenaover/
Página 58
29 Este tema da consciência própria do corpo é bem
trabalhado por José Gil (2004) com a noção de corpo-consciência em
contraposição a noção cartesiana do corpo exterior à consciência
do sujeito. Conf. também o terceiro capítulo de O Corpo em
Conexão: Sistema Rio Aberto (POZZANA L., EdUFF, 2008).
30 Acordar, no caso, se refere ao despertar e ao estar de
acordo.

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Composições do não ver: Contando histórias


Página 60
Camila Araújo Alves, Carolina Cardoso Manso, Josselem Conti de
Souza Oliveira, Julia Guimarães Neves, Liz Eliodoraz, Luciana de
Oliveira Pires Franco, Thadeu Gonçalves, Vandré Vitorino, Marcia
Moraes

1) Prefácio – Palavras em movimento

O som do motor ao girar das chaves anuncia uma nova corrida:


pé no acelerador, mão na marcha, carro na pista. Nosso motorista é
Candeia31, que passa as horas do dia atrás do volante, levando
todo tipo de gente pelas ruas da cidade. Todos na praça o
conhecem, famoso por suas piadas e sambas de final de semana. Seu
corpo, já de idade, não é mais tão fiel à cadência da música, mas
ainda arrisca bordejos pelo salão. Lembra de quando serviu ao
exército, época em que marchava, pulava e rastejava. “Bons tempos
aqueles”32, lembrava Candeia. Hoje, sente as dores que insistem em
acompanhar o avançar da idade, deixando apenas às boas lembranças
a destreza do corpo juvenil.
Quilômetros rodados, sobe rua, desce ladeira, cuidado com a
lombada, sinal fechado, hora de parar. Um passageiro faz sinal.
Pelo caminho, Candeia conversa para passar o tempo. Há quem diga
que um dia ele acabará se perdendo por causa das longas histórias.
Grande engano! O balançar do ônibus faz seu corpo se engajar no
movimento das ruas, indicando que a curva mais acentuada é a da
padaria do Seu João e que a lombada fica à beira da grande
avenida. Já não se sabe se o carro movimenta o corpo ou se o corpo
movimenta o carro.
A narrativa que apresentamos neste artigo é fruto do Projeto
de Pesquisa e Extensão Perceber sem Ver33, cujo objetivo é seguir
as pistas dos arranjos singulares atravessados pelo ficar cego.
Abordamos a cegueira não como um conceito extraído da medicina ou
referenciado à noção de déficit ou incapacidade. Procuramos
acompanhá-la na história de cada sujeito, nos diferentes modos de
ordenamento34, muitas vezes fluidos, outras vezes enrijecidos, que
aparecem quando seguimos as narrativas de quem passa por essa
experiência. Esse formato de apresentação do trabalho procurou
também aí sua inspiração: a produção de conhecimento na pesquisa
se faz a partir de um processo local, situado, que consiste em
seguir as narrativas daqueles que perderam a visão (Law e Mol,
1995, Law, 1999). Neste enfoque, afirmamos que, nas práticas
cotidianas singulares, as concepções de cegueira são feitas,
refeitas, reordenadas (Martins, 2006a). Isso não significa ignorar
o fato da ausência ou diminuição da função visual, mas sim
entender que as práticas cotidianas fazem existir diversas
concepções de cegueira, o que nos permite seguir as invenções e
criações do estar cego, longe de qualquer viés essencialista,
fatalista.
Percebemos, ao longo dos anos de pesquisa, que a deficiência
visual não é homogênea, nem em seus graus, nem na forma como é
vivenciada. Acompanhamos histórias em que a cegueira esteve
firmemente atrelada a uma ideia incapacitante, outras em que
representou a possibilidade de vida e ainda as que passaram de uma
condição para a outra. Começamos então a percorrer as múltiplas
falas produzidas sobre a cegueira, e uma delas estará atravessando
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o presente trabalho. Importante lembrar que a narrativa tem o foco
em um personagem, mas que a composição da escrita, das
intervenções, das mudanças de lugar e das reverberações dependem e
são sempre parte de uma rede que não tem centro nem oferece lugar
privilegiado a nenhum de seus atores. Quando usamos a noção de
rede, referimo-nos a uma composição formada por séries de
elementos animados e inanimados, conectados e agenciados. Ela se
define pelas conexões que estabelece. As entidades que a compõem,
sejam naturais ou sociais, podem, a qualquer momento, redefinir
sua identidade e suas mútuas relações, trazendo novos elementos e
organizações (Latour, 1994; Moraes, 2004). Nosso trabalho discorre
sobre as muitas conexões que marcam o processo do cegar tal como
narrado através de Candeia.
Também importa aqui dedicar uma breve apresentação àquele
que inaugura esse artigo. Candeia tem setenta e cinco anos, dos
quais trinta e seis passou percorrendo as ruas da cidade do Rio de
Janeiro como motorista de ônibus. Há cerca de três anos perdeu a
visão completamente e, há pouco mais de um, participa do trabalho
que realizamos no Instituto Benjamin Constant (IBC)35. Neste
período, estivemos acompanhando sua história e as composições que
pôde criar a partir dos encontros conosco, com os outros
participantes e com as intervenções do trabalho. Faremos um
recorte, traduzido nas narrativas, onde iremos percorrer algumas
pistas que ele trazia sobre a formulação de novos arranjos em sua
vida.
O ato de compor indica formar algo a partir de outros
elementos, criar, arranjar. Não podemos deixar de falar sobre a
importância do corpo nesse processo. Ele é a via primeira de
contato com o mundo, qualquer que seja a qualidade desse vínculo.
Somos também compostos por essa materialidade que talvez tenha
ficado esquecida ou considerada menor pela afirmação cartesiana.
Na tradição fundada a partir do pensamento cartesiano, o corpo
ocupa o lugar de um puro mecanismo, isento de intenções e desejos
(Chauí, 1998). Para qualquer que seja nossa intervenção no mundo,
dependemos de aparatos materiais, seja o próprio corpo, seja o
outro, sejam instrumentos diversos. A materialidade não é tomada
aqui no sentido de um objeto passivo e completamente estranho; ela
importa na medida em que é relacional (Law e Mol, 1995). São os
atores humanos e não humanos compondo a rede.
A história de Candeia não seria diferente. O ônibus foi um
dos aparatos que tanta vivacidade trazia a seu cotidiano. Por
tanto tempo esteve acomodado na poltrona do motorista que ambos já
compunham uma mesma força na condução do veículo. Como nos disse
Serres (2004), o corpo se constrói no e a partir do encontro – o
encontro com o carro, com as ruas, com as pessoas. É no espaço do
entre que acontece um encontro, não sendo possível definir o que é
um e o que é outro. Nesta perspectiva, o corpo é compreendido como
efeito, e não como essência ou substância. Assim, o corpo e o meio
estabelecem uma relação de co-variação. O corpo36 se transforma na
medida em que é afetado pelo mundo e, reciprocamente, afeta e
transforma seu entorno (Latour, 1999).

2) Sofá – estagnação do verbo

Após o longo dia de trabalho, a noite cai e traz consigo a


hora do samba de roda. Embalado pelo som de pandeiros e tamborins,
Candeia ocupa todo o salão rodopiando sua companheira Amélia.
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Quando tocou a última nota de Ainda é cedo, de Cartola, uma
escuridão tomou conta do salão. “Foi no último gole da cerveja.
Tomei o último gole e tudo ficou escuro, depois voltou. Mal sabia
que aquele era o início da minha cegueira”. Com o passar do tempo,
a luz não voltou, mas o samba continuou. Candeia deixou de dançar.
Seu corpo parou. O que era apenas um repouso do cansaço do
dia vira agora um modo de vida, um modo que se confunde com a
imobilidade do sofá. Candeia não quer se levantar de lá, tem medo,
está triste. Para ele, a surpreendente cegueira começa a se tornar
sinônimo de imobilidade: se não pode dirigir, também não pode se
mover. A cegueira é recebida na sala de casa, enraizando seu corpo
no sofá e imprimindo-lhe suas marcas. A falta de movimento faz com
que suas pernas, já envelhecidas e cansadas, fiquem sem força e
equilíbrio. Um círculo vicioso se instala: quanto menos Candeia se
movimenta, menor é sua capacidade de se mover. Não quer mais
levantar, tem dificuldades de achar o caminho do banheiro e da
cozinha, tem vontade de esbravejar, de reclamar, de acusar. Mas
com quem? Quem seria o culpado de sua cegueira? “Candeia não sai
do sofá, fica o dia inteiro lá parado, não levanta para nada, me
pede tudo, até um copo de água!”, reclama sua esposa Amélia."

Através de nossas investigações, compreendemos que a ligação


entre cegueira e deficiência é uma produção histórica engendrada
por discursos e práticas (Martins, 2006a, Belarmino, 2004).
Atualmente, a concepção da deficiência como um desvio ou um
déficit incapacitante se atualiza em muitos momentos da vida
cotidiana e se configura como uma grande barreira na vida daqueles
que se tornam cegos e de seus familiares. O território construído
em torno da cegueira foi sendo produzido como se o fato de se
tornar cego fosse, por si só, incapacitante. Candeia, ao se
deparar com a recente cegueira, remonta em seu corpo a ligação
entre cegueira e deficiência tão difundida historicamente.
Fundamentado em uma leitura foucaultiana acerca da loucura,
Martins (2006a, 2006b, 2006c) afirma que, na modernidade
iluminista, as configurações de saber acerca da cegueira estão
calcadas na concepção de deficiência visual, isto é, na concepção
de que a ausência de uma função sensorial é um desvio, uma
patologia em relação a uma norma corporal. Assim, o autor salienta
que a marginalização da cegueira na modernidade vai ser investida
por uma certa forma de poder que se funda “nos efeitos positivos
que engendra, na sua capacidade de emanar saberes e fazer
proliferar discursos, produzindo realidade” (Martins, 2006a, p.
79). São os discursos da biomedicina que se apropriam da cegueira
fazendo existir uma concepção de cegueira como desvio, tragédia e
infortúnio frente a uma normalidade corporal almejada. Tal
concepção de cegueira marca o pensamento ocidental moderno e,
segundo Martins (2006a, 2006b), torna-se hegemônica. Nesta
concepção, a prática e o discurso médicos sobrecodificam a
cegueira, obliterando as reflexividades e normatividades das
pessoas com deficiência visual.
Desafiando esta concepção hegemônica de cegueira, o século
XX vê surgir uma série de movimentos sociais de pessoas com
deficiências que lutam para afirmar que a deficiência é um efeito
de condições sociais excludentes. Em outras palavras, na
perspectiva de tais movimentos sociais, a ausência de uma função
sensorial como a visão não é, em si, patológica ou anormal; a
deficiência é um sentimento que decorre de condições sociais
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incapacitantes porque inacessíveis. Em inglês, as palavras
impairment e disability37 demarcam esta distinção. Impairment
indica a ausência de parte ou totalidade de um membro, ou a
existência de um membro, órgão ou mecanismo corporal defeituoso.
Já disability indica desvantagem ou restrição da atividade causada
por uma organização social excludente, não acessível. Disability é
um efeito da opressão social (Martins, 2006a).
Os anos pós-guerra são marcados por esta outra concepção de
deficiência. A questão que se faz pertinente é a de reabilitar,
inserir socialmente as pessoas com deficiência. O que está em jogo
neste cenário é que a noção de deficiência passa a estar
articulada não a uma falta corporal, biológica, mas a um processo
de exclusão social que deve ser revertido. Tal movimento coloca em
cena outros atores e a deficiência passa a ser tematizada como uma
questão de direitos humanos, de acesso à informação, ao trabalho,
à educação plena.
Merece destaque que, quando apresentamos tais concepções de
deficiência, não pretendemos sublinhar uma evolução de uma
concepção a outra, mas sim indicar que a noção de deficiência é
construída em certos arranjos político-sociais. E mais, importa
salientar que estas concepções de deficiência e de cegueira,
convivem, se entrelaçam, se articulam, sem que uma supere a outra.
O que se pode notar neste cenário é que as concepções de
cegueira articulam-se entre aquelas biologizantes, e que portanto
naturalizam e despolitizam a questão da deficiência, e aquelas que
investem na concepção de cegueira e de deficiência como efeito de
um contexto social opressor e marginalizante.

3) Sumário – cada coisa em seu lugar

Em sua casa, a rotina se modifica. Amélia já não tem tempo


para trabalhar ou se cuidar – agora, é os olhos do marido. "Eu me
sinto uma pessoa inútil, porque praticamente em casa não tem como
fazer nada. O que um cego vai fazer? Nada!", Candeia diz. A casa e
a esposa ficam a serviço das ordens e necessidades de Candeia. Com
o passar do tempo, Candeia vai descobrindo a necessidade de manter
tudo em seu lugar. Amélia sempre gostou da casa a seu modo e, a
cada arrumação, uma nova discussão se arma. Candeia explica que os
objetos deveriam ficar sempre no mesmo lugar: se havia deixado o
chinelo embaixo da cama, era ali que ele deveria estar.
Amélia assim o fez. A casa não poderia ser mexida,
refletindo o corpo imóvel de Candeia, que não ia mais as manhãs à
padaria comprar o pão e o jornal, nem tinha mais contato com os
seus amigos da praça. O sofá tornou-se o assento de seu ônibus e a
televisão, o seu veículo de acesso ao mundo. Seus movimentos se
restringiam apenas ao alcançar das mãos. "Meu cotidiano em casa é:
ver televisão, almoçar, jantar, às vezes aparece um amigo para
conversar." Seus pés, antes ágeis nos pedais, hoje andam em falso,
tateando o chão com cuidado e medo por não saber onde dará o
próximo passo. "Quando eu ando pela minha casa vou arrastando o pé
para ver se não tem nada no caminho, se não fizer isso posso me
machucar ou machucar o meu gato, que volta e meia leva um pisão no
rabo."

Como dito anteriormente, uma vez que a cegueira foi


apropriada pelo idioma da biomedicina, ela passou a ser articulada
como déficit, falta, desvio por relação a uma norma corporal
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almejada.
Este tipo de entendimento acerca da deficiência visual marca
muitas das experiências das pessoas com deficiência visual. No
entanto, Martins (2006a) salienta que as experiências vividas
pelas pessoas acometidas pela cegueira apontam para múltiplos
modos de existir sem ver, longe da concepção de deficiência como
déficit. Tal registro diz respeito às invenções e possibilidades
criadas e vividas por essas pessoas.
Assim, como dissemos no item anterior, as concepções de
cegueira oscilam entre aquelas que são biologizantes e que fazem
da falta da visão um desvio, uma falha; e aquelas que definem a
deficiência como fruto de um contexto social opressor e
excludente.
Nosso trabalho de pesquisa situa-se entre tais concepções.
Isso porque, ainda que considerando a relevância dos movimentos
sociais no campo da deficiência, parece-nos que estes movimentos
buscam definir a deficiência por uma identidade não mais natural,
mas, antes, social. Assim, seguindo Law (1999) afirmamos que,
tanto numa quanto noutra perspectiva, o que está em jogo é a
construção de uma concepção identitária da deficiência, seja ela
social ou natural. Martins (2006a) elabora a mesma análise quando
afirma que tanto em um cenário quanto no outro as reflexividades,
as narrativas das pessoas com deficiência estão ausentes,
esquecidas, relegadas ao segundo plano. É por este motivo que tal
autor convoca as ciências humanas e sociais a retomarem este tema
investindo nas narrativas das pessoas com deficiência visual,
porque é através destas narrativas que são desafiadas as
concepções hegemônicas de cegueira. Isto é, para o autor, importa
seguir os processos de transformação que uma pessoa passa quando
acometida pela cegueira. Estes processos indicam uma construção
que se faz no corpo, encarnada, vivida, encenada no cotidiano,
palco onde são reinventadas as concepções de cegueira longe
daquelas de déficit, falta; mas também longe da homogenização que
demarca a deficiência como um efeito do contexto social.

4) Encontrando novos personagens – outros diálogos


A notícia de sua cegueira percorreu a cidade. Rapidamente
chegou aos lugares que costumava frequentar – no ponto final do
ônibus, na roda de samba, faziam falta suas piadas e seus passos
no salão. Passou a receber telefonemas e visitas que duravam
horas. Numa dessas, um amigo, também motorista, contou que outro
dia levou um passageiro cego a uma instituição que atendia quem
tinha perdido a visão. Curioso, fez várias perguntas ao
passageiro, que lhe deixou seu contato caso quisesse saber algo
mais.
Candeia não deu ouvidos. O que faria neste lugar, já que não
voltaria a enxergar? Amélia e seu amigo insistiram tanto que ele
aceitou ir. Passados os exames, Candeia se matriculou na
reabilitação38 do IBC. Lá, passou a participar de diversas aulas –
artesanato, sensibilização do tato, Braille, Orientação e
mobilidade. Um novo mundo de possibilidades começa a se desvelar
para Candeia. Seu corpo, antes articulado com o sofá de sua casa e
sua esposa, agora passa a ensaiar novas conexões.

Já apresentamos algumas palavras sobre o modo como abordamos


o corpo neste trabalho e agora iremos aprofundar um pouco mais a
Página 65
questão. Entendemos o corpo como resultante de uma produção, como
fruto da conexão de diversas redes múltiplas e heterogêneas. Isso
quer dizer que o tomamos como um efeito, e não como algo
pré-estabelecido. Segundo Latour (1999), o corpo não é um objeto
isolado; por isso, ter um corpo é aprender a ser afetado,
efetuado, deslocado. Para este autor, ter um corpo é ser
constantemente posto em movimento por meio de conexões com
elementos os mais díspares e heterogêneos. Desta forma, o corpo
não está dado e, portanto, não possuímos um corpo, no sentido de
um objeto isolado que se confunde com o corpo anatômico; o que
está em jogo é que, na medida em que somos afetados pelo mundo,
nós adquirimos um corpo. Para Latour (1999), adquirir um corpo é
um empreendimento progressivo que produz, ao mesmo tempo, o mundo
sensorial e o mundo sensível. Em outras palavras, o autor
compreende o corpo como uma superfície cognitiva, que se produz a
partir dos encontros com o mundo: quanto mais conexões este corpo
fizer, mais real ele será e mais realidade produzirá. Portanto,
entendemos, neste trabalho, que é a partir do corpo que habitamos
um mundo e que criamos este mesmo mundo, ou seja, que produzimos
modos de vida.
O corpo assume variações enquanto modos de existência, ele
produz a diferença. O corpo é, então, definido a partir da
capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo e de transformar-se
neste processo. Conforme Latour (1999) dizemos que o corpo é:

"...uma interface que se torna mais e mais descritível quando


aprende a ser afetada por mais elementos. O corpo é então não uma
residência provisória de algo superior – uma alma imortal, o
universal ou o pensamento – mas o que deixa uma trajetória
dinâmica pela qual nós aprendemos a registrar e a nos tornar
sensíveis para aquilo de que o mundo é feito. Tal é a grande
virtude desta definição: não há sentido em definir o corpo
diretamente, mas apenas tornando o corpo sensível ao que estes
outros elementos são. Ao focar o corpo, estamos imediatamente – ou
melhor, mediatamente – dirigidos para aquilo que sensibilizou o
corpo." (Latour, 1999, p. 1)
Seguindo as pistas de Latour, Serres diz que o sentido
“primeiro”, que nos permite nos reconhecer como um corpo, é o
tato, tomando-o no sentido de interface, de contato, ou seja,
aquilo que nos liga ao mundo. Antes que possamos ver ou ouvir,
sentimos o contato, o qual nos ajuda a perceber nosso contorno
corporal ao mesmo tempo em que nos lança ao mundo, que nos serve
de meio para nos relacionarmos com as coisas. Em consonância com
Latour, Serres indica que todos os nossos sentidos são posteriores
ao tato. Ele nos diz: “O tato parece predominar, reunir o sentido
comum, soma dos cinco sentidos” (Serres, 2001, p. 11).
Em sua obra, Serres (2001) utiliza a metáfora da tapeçaria
tanto para refletir sobre os sentidos e o corpo quanto para falar
do modo como apresentamos nossas reflexões sobre o assunto. A
tapeçaria se apresenta como textura, como forma de apresentação
dos sentidos ao tato. Ao tocarmos a tapeçaria, nossa pele é
conectada a ela de uma maneira própria. O corpo que consegue
sentir a suavidade da textura já é um corpo produzido pela
tapeçaria. Dito de outro modo, o toque da tapeçaria modifica o
corpo que a toca, produz nele a suavidade. Este, por sua vez,
modifica o modo como a tapeçaria é percebida. Os sentidos não se
Página 66
distinguem do que sentem. No mar de sensações, apresentado nas
tapeçarias, encontramos sempre a textura dos tapetes, o
entrelaçamento de seus fios e os nós de suas conexões.

"Generalizando esta hipótese, diríamos que o tecido, o têxtil, o


estofo dão excelentes modelos de conhecimento, excelentes objetos
quase abstratos, primeiras variedades: o mundo é um amontoado de
panos." (Serres, 2001, p. 79).

Assim, parece-nos possível afirmar que, para Serres (2001,


1993) e para Latour (1994, 1999), a cognição não é o atributo de
um sujeito dado, mas sim o efeito das afetações entre corpo e
mundo. Conhecemos a partir de nossos engajamentos práticos, de
nossos contatos com o mundo. Para Serres (2001, 2004), ainda,
fazer um corpo é deixar-se tatuar pelo mundo, é constituir-se a
partir de suas mediações e afecções. O corpo se constitui como
relação, como conexão. Assim, nossos contatos com o mundo são
estabelecidos a partir de uma superfície tênue: nossa pele. São
estes contatos que fabricam o corpo e, ao mesmo tempo, a cognição.

"Atônito, o público não sabe mais se deve calar-se ou rir. De fato


a roupa do rei anuncia o inverso do que ele pretende. Composição
descombinada, feita de pedaços, de trapos de todos os tamanhos,
mil formas e cores variadas, de idades diversas, de proveniências
diferentes, mal alinhavados, justapostos sem harmonia, sem nenhuma
atenção a combinações, remendados segundo as circunstâncias, à
medida das necessidades, dos acidentes e das contingências, será
que mostra uma espécie de mapa-mundi, o mapa das viagens do
artista, como uma mala constelada de marcas? O lá fora, então,
nunca é como aqui. Nenhuma peça se parece com qualquer outra,
nenhuma província poderia jamais ser comparada com qualquer outra,
e todas as culturas diferem." (Serres, 1993 p. 2)

Desse modo, através da narrativa que colhemos com Candeia,


vamos seguindo os modos pelos quais seu corpo afeta e é afetado
pelo mundo a sua volta: corpo-samba, corpo-sofá, corpo-Braille,
corpo-experimentações... Múltiplos ordenamentos da cegueira,
múltiplas formas de afetar e ser afetado, Candeia reinventa a
cegueira em seu cotidiano: da imobilidade do sofá às novas
articulações com elementos díspares e heterogêneos.

5) Primeiro capítulo – inaugurando linhas no diário da oficina

Candeia encontrou dificuldades em certas atividades. Não se


interessou pelas aulas de Braille, se sentia velho para aprender
algo que acreditava não lhe ter grande serventia. As aulas de
orientação e mobilidade se configuravam como um grande desafio,
pois esbarravam em uma das suas maiores dificuldades em relação à
sua recente cegueira, já que, para ele, a falta de visão se
articulava com a impossibilidade de se mover. Um colega insistia,
dizia que, se ele não se exercitasse, aquela aula de nada
adiantaria “Candeia precisa de um trabalho prévio, deste jeito não
é possível aprender a se locomover com a bengala, ele mal tem
equilíbrio para andar sem a bengala, imagina com? Não tem
força nas pernas e o pior, não se levanta do sofá de sua casa para
nada, se ele continuar assim não dá, já falei para ele... ele
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precisa se mexer, senão, quando ele quiser se mexer, não vai dar
mais!!!”
Do samba de roda, Candeia agora estava em uma roda de gente
na Oficina de Experimentação Corporal. Entramos em contato com
Candeia logo no início das Oficinas de Experimentação Corporal no
setor de reabilitação, em março de 2008. Neste momento, mais
atores começam a participar da rede que compõe a sua vida e sua
cegueira, pois se incluíam agora, o IBC, o sair de casa, o ônibus
que teria que tomar, as pessoas que passou a conhecer, as oficinas
que começou a frequentar, entre outros. A ligação entre seu corpo
e o sofá de sua casa, neste momento, começa a se enfraquecer.
Como neste período Candeia estava com muita dificuldade de
andar, grande falta de equilíbrio e dores por todo corpo, foi
indicado para participar da Oficina de Experimentação Corporal. Na
primeira Oficina, percebemos sua enorme dificuldade de se
locomover; além disso, precisava de ajuda para se sentar e
levantar do chão e não conseguia sentar em roda sem que tivesse a
parede para lhe apoiar as costas. Em nossa primeira conversa,
Candeia nos fala: “O que eu procuro no IBC é andar melhor, minhas
pernas estão fracas e desequilibro muito, mal consigo andar dentro
de casa.” Com esta fala, percebemos que, de alguma forma, algo
diferente da conexão entre cegueira e imobilidade se processava em
sua vida: Candeia queria andar.

Em nossa pesquisa, criamos algumas estratégias para a


colheita39 das narrativas pessoais das pessoas cegas. Além de
entrevistas semiestruturadas com os reabilitandos e seus
acompanhantes, inauguramos, há três anos, as Oficinas de
Experimentação Corporal, espaço criado para acompanhar os modos
pelos quais as pessoas vivenciam a falta de visão e reordenam suas
experiências corporais. Oferecidas duas vezes por semana a dois
grupos de pessoas cegas e com baixa visão, participantes do
programa de reabilitação oferecido pelo IBC, estas oficinas têm a
finalidade de promover, de modo lúdico, experimentações corporais
e sensoriais com pessoas que perderam a visão recentemente ou
estão em vias de perdê-la. Tais experimentações têm o objetivo de
promover, de algum modo, experiências que coloquem em questão os
padrões corporais estabelecidos ou que, de alguma forma,
possibilitem a criação de novos territórios corporais que incluam
a falta de visão.
Nas Oficinas, nosso objetivo é criar dispositivos de
intervenção que mobilizem e modifiquem o corpo, fazendo-o diferir,
derivar, ampliando, dessa forma, as possibilidades de conhecimento
de si, do outro e do espaço. Não abordamos, como dissemos em outro
item, o corpo como objeto natural e mecânico, mas antes como algo
que é construído, feito a partir das conexões e dos encontros com
o mundo. Quando falamos em construção, apontamos para o processo
através do qual o corpo é feito, processo que envolve um
engajamento prático, efetivo com o mundo, e que mobiliza elementos
heterogêneos.
Assim, nas Oficinas de Experimentação Corporal, lidamos com
corpos que foram acometidos com a perda de um sentido, corpos que
se modificaram e que passam por um processo de variação, de
transformação, que consiste em aprender, ou antes, reaprender a
ser afetado, movido e efetuado pelo mundo. Estas variações do
corpo são, para nós, ocasião de invenção de novos caminhos para o
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perceber. Desse processo resulta uma experiência perceptiva
inteiramente original e singular.
Em nosso trabalho de campo, registramos os dados através de
notas tomadas em diários de campo. Estes diários são
digitalizados, lidos e discutidos por toda a equipe da pesquisa.
Nele encontramos registros de tais processos de variação e de
transformação que envolvem o tornar-se cego. São registros
diversos que, se de um lado apontam para o sentimento de perda que
o ser acometido pela cegueira envolve, de outro, indicam a
invenção de novos modos de estar no mundo. Candeia e os outros
participantes da Oficina inauguram linhas no diário de campo com
as possibilidades de reinventar a cegueira.

6) Neologismos – invenções da escrita

Nas Oficinas seguintes decidimos começar por um trabalho com


os pés, já que estes são um dos responsáveis pelo equilíbrio e
pelo andar. Não só Candeia falava dos desequilíbrios dos passos,
mas também outros participantes apontavam para a mesma questão.
Quando lhes pedimos que massageassem os próprios pés, Candeia nos
disse: “Faz duas semanas que eu não toco o meu pé”. As Oficinas
foram seguindo e Candeia estava diferente, ficava à vontade,
conversava com todos, percebia e experimentava seu corpo.
Em um dos encontros, trabalhamos com vários tipos de
elásticos. Pedimos para que eles experimentassem em seus corpos a
propriedade do esticar do elástico. Candeia nos disse: “Gostei do
trabalho com o elástico, ele movimentou muito nossos corpos”.
Parecia que algo diferente estava se processando em sua vida,
estava com gosto por se movimentar. Em outra Oficina, chegou
contando que no dia anterior havia saído com seu neto para
caminhar. Candeia parecia estar fazendo novas redes e
reconstruindo um corpo. Certa vez nos disse: “Quando a gente fica
cego, a gente vira criança novamente, tem que aprender tudo de
novo. Quando a gente vê, a gente sabe uma teoria; quando ficamos
cegos, é preciso aprender outra teoria”. Percebíamos que novas
“teorias” estavam em pleno processo de fabricação, teorias criadas
a partir de um processo intenso de produção, onde Candeia podia
experimentar suas possibilidades, fazer novas conexões e
rearranjos das redes que teciam a sua vida. Com o passar do tempo,
percebíamos Candeia mais seguro e com vontade de descobrir as
potencialidades de seu corpo.
Em uma outra ocasião, realizamos um trabalho com os apoios
(partes do corpo que lhe sustentam e que tocam o chão). Fizemos
vários tipos de experimentações, que incluíam a percepção dos
apoios necessários para levantar e descer ao chão, para caminhar;
experimentamos vários caminhos possíveis para fazer esse
movimento. Neste mesmo dia, Candeia constatou: “Tenho o joelho
fraco de tanto jogar futebol. Para eu subir do chão, preciso
apoiar minhas mãos – elas sim me dão firmeza para levantar”.
Candeia estava criando novas possibilidades de movimento, novas
possibilidades para si, novas possibilidades para seu corpo.

Por meio de atividades que envolvem a experimentação de


materiais, consciência corporal, noções de espaço, dança,
equilíbrio, atenção, contato, dramatizações e sensibilização, o
grupo participante da Oficina é levado a experimentar e se deparar
com seus corpos e com a possibilidade de recriá-los, de reinventar
Página 69
a si mesmos, assim como as suas experiências acerca da cegueira,
possibilitando, desta forma, a criação de outras conexões a partir
destas experimentações. Podemos definir nossa Oficina como um
espaço performativo no qual a cegueira é colocada em cena de
múltiplos e heterogêneos modos. Neste processo, a própria cegueira
também tem a oportunidade de ser recriada, afirmando, deste modo,
seu caráter de produção. Além disso, as experimentações também
estão voltadas para recolher e captar as invenções e estratégias
já criadas pelos participantes para lidar com sua cegueira, e
então abrimos um espaço para que estas invenções sejam tematizadas
e partilhadas. Neste momento, nossa pesquisa se afina com Spink
(2003), quando ele nos fala do conceito de co-construção na
pesquisa. Para o autor, o pesquisador e pesquisado passam por um
processo de transformação recíproca, de tal modo que as questões
da pesquisa são negociadas com o grupo, são ali modificadas,
transformadas.
Nosso objetivo é seguir os modos pelos quais a cegueira
existe, os modos pelos quais ela vai se constituindo através de
arranjos bastante heterogêneos que articulam humanos a não
humanos, materialidades a socialidades (Law & Mol, 1995). São
estes elementos que fazem existir as cegueiras.
Candeia, certa vez, nos chamou a atenção: “Olha como eu
estou descendo a escada. Agora desço sozinho”. O descer a escada
sozinho se amplifica e contagia outros espaços fora da Oficina de
Experimentação Corporal, como quando ele nos conta que levou o
neto para passear na pracinha ou quando dançou com a esposa em uma
festa. São movimentos simples e singulares que mostram a
desestabilização de um discurso único de cegueira. Nosso objetivo
está em acompanhar esse processo, ampliando a rede de conexões que
interferem nas ações cotidianas de viver sem a visão, de andar com
ou sem a bengala, de criar estratégias as mais diversas para
atravessar a rua, de articular-se a dispositivos os mais variados,
relógios, regletes, sons, odores, softwares, temperaturas e tantos
outros.
O que chama atenção nas narrativas das pessoas com
deficiência visual, colhidas durante as Oficinas e em entrevistas,
é o fato de que elas apontam para múltiplos modos de ser da
cegueira, e o que move esta pesquisa é a afirmação da potência
inventiva de tal multiplicidade.

7) Contação de histórias – descobrindo outro jeito de contar

No final do ano de 2008, quando fazíamos um balanço das


atividades daquele ano e nos despedíamos para as férias de
janeiro, Candeia fala: “Se paramos de nos movimentar, começamos a
enferrujar (...) Hoje em dia estou fazendo mais coisas, me sinto
mais leve, tô com vontade até de jogar futebol.” E prosseguiu: “Eu
trabalhava com o público. Não tenho visão, mas tenho orientação.
Pelo andar do ônibus, pelas curvas que ele faz, sei onde estou. É
um fenômeno. A nossa mente é que nos carrega. Não fiquei rico na
minha situação financeira, mas fiquei na minha saúde. Tenho minha
mulher, meus filhos, então estou bem. Fiquei muito surpreso com um
amigo que me ajudou”. Com estas falas, Candeia nos dizia acerca de
como vinha reconstruindo as conexões entre seu corpo, a recente
cegueira e a mobilidade. Apontava-nos outras possibilidades de
conexão da sua vida com, por exemplo, a saúde, com a sua
capacidade de orientação e as novas descobertas acerca de seu
Página 70
corpo e de como poderia se locomover. Sua cegueira, agora, passara
a ter outras conexões que não só com a imobilidade e o sofá de sua
casa.

É interessante sublinhar que, para Candeia, a orientação


espacial, antes totalmente pautada na visão, passa a estar
atrelada a outras formas de organização dos sentidos e da
experiência corporal. Destacamos ainda que a sua fala aponta para
a mente como um fenômeno encarnado, atrelado ao andar do ônibus,
às curvas. Dito com outras palavras, para ele, ser guiado pela
mente significa ser afetado pelo mundo – as curvas, o andar do
ônibus, uma vez conectados às experiências corporais, engendram
modos até então inéditos de conhecer o caminho percorrido. Podemos
aqui também mencionar as materialidades das quais todos nós
dependemos; corpo como suporte primeiro dessa materialidade; corpo
como via fundamental de intervenção e afetação do e no mundo.
Quando iniciamos as Oficinas de Experimentação Corporal no
setor de reabilitação do IBC, encontramos modos diversos de
experimentar os corpos acometidos pela cegueira. Em muitas destas
experiências, era possível seguir as marcas de uma concepção de
cegueira como falta e incapacidade. As atividades oferecidas na
Oficina de Experimentação Corporal envolveram uma experimentação
do próprio corpo, dos seus limites, das suas potências. Propusemos
atividades lúdicas que articulavam sons diversos, texturas e
outros materiais heterogêneos. Levamos a cabo aquilo que Serres
propõe quando afirma que “o corpo em movimento federa os sentidos
e os unifica nele” (Serres, 2004, p. 16).
As experimentações corporais permitem que estas pessoas
experimentem de outro modo os seus corpos e o mundo a sua volta,
da mesma forma que faz, nas palavras de Serres, o montanhês:
escalando uma rocha, contempla e acaricia com suas fortes mãos
todo o universo que se encontra ao seu alcance. É no contato com a
montanha, com suas sinuosidades, seus enigmas, que o mundo se faz
presente a ele. Trata-se de uma experiência encarnada, articulada
ao tato, ao contato, mais do que a uma visão de sobrevoo.
Apostamos na potência deste tipo de experiência quando propomos às
pessoas com deficiência visual recém adquirida que experimentem
ludicamente os seus sentidos.
Como já dito acima, as narrativas dessas pessoas assumem a
potência de desafiar o discurso hegemônico da cegueira porque
abrem caminhos para muitas outras formas de existir sem a visão.
Martins (2006a) sublinha que, desde o século XVIII, a cegueira é,
de um lado, identificada à ideia de tragédia e, de outro lado, a
uma capacidade superior de visão, como se o cego pudesse ver sem
os olhos, ver para além das aparências. Nestes dois extremos estão
o “ceguinho, coitadinho” ou o cego que enxerga além, que detém um
saber maior. De uma forma ou de outra, o que está em questão é um
lugar hierarquizado e, por isso, excludente.
O que nos interessa, então, não é falar sobre a deficiência
visual, mas produzir conhecimento com aqueles que passam pela
experiência de perder a visão, engajando-nos numa prática que se
dá com o outro e não sobre o outro (Moraes, 2007, 2006). Quando
falamos da deficiência visual, buscamos um referencial singular,
que admite tantas outras formas de existir da cegueira.

notas:
31 Os nomes utilizados neste trabalho são fictícios a fim de
Página 71
preservar o anonimato das pessoas que foram acompanhadas neste
processo de pesquisa.
32 Todas as falas colocadas entre aspas neste artigo são
referentes a notas dos diários de campo de 2008, Projeto Perceber
sem Ver, a partir das Oficinas de Experimentação Corporal, da qual
falaremos mais adiante.
33 Agradecemos à Faperj, ao Cnpq e à Pró-Reitoria de
Extensão da Universidade Federal Fluminense pelo apoio recebido
para a realização desta pesquisa/extensão.
34 Modos de ordenamento é um conceito proposto por Law
(1994, p. 95) para indicar o processo social como um verbo, mais
do que como um substantivo. Isto é, o social é um processo
contínuo, precário, marcado por sua heterogeneidade e
multiplicidade. Este conceito implica a aposta de um deslocamento
de uma concepção de social como algo dado, estabilizado para a
afirmação de um contínuo processo precário de fabricação e
construção de ordenamentos.
35 Centro de referência nacional no campo da deficiência
visual, situado na cidade do Rio de Janeiro. Para conhecer mais
sobre o IBC, consulte o site http://www.ibc.gov.br/
36 Para uma concepção de corpo que segue esta mesma direção,
cf. o capítulo de Laura Pozzana, inserido nesta coletânea.
37 Não encontramos, em português, palavras que possam
traduzir claramente estes dois termos. Por isso, optamos por
mantê-los em inglês.
38 Este setor atende pessoas que adquiriram a cegueira na
idade adulta e que buscam (re)aprender modos de viver sem a visão,
seja através do uso da bengala, da leitura e da escrita através do
sistema Braille, e atividades da vida diária, seja através de uma
série de oficinas de artes.
39 Utilizamos a expressão “colheita de narrativas” em lugar
do tradicional “coleta de dados” para fazer menção ao modo como
lidamos com as informações do campo. O termo colheita parece-nos
mais adequado à metodologia que utilizamos porque a conotação do
termo envolve um processo de semear, de preparar o solo antes de
recolher dele os frutos. É precisamente este o viés que utilizamos
em nossa metodologia, isto é, as narrativas que colhemos são
frutos de um modo de pesquisar que envolve o outro, um pesquisar
que se faz a partir de um engajamento prático com o outro, num
processo de transformação recíproca. Neste sentido, como o leitor
verá mais adiante, as intervenções que propomos são partilhadas e
negociadas com o grupo de pessoas com deficiência visual.
Salientamos que este modo de entender as relações com o campo de
pesquisa está presente em Spink 2003; Law e Mol, 1995.

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em relevo como mecanismo semiótico da cultura. Tese de doutorado.
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica. Pontifícia
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Página 73
Tateando, Fabricando, Explorando, Implementando, Parangoleando um
dispositivo clínico

Alexandra C. Tsallis, Bernardo Antônio. A. P. de Souza, Elisa


Junger, Jessica David, Leonardo Reis Moreira, Renata Machado,
Rodrigo Pires Madeira, Virgínia Menezes, Willy H. Rulff

O movimento foi uma das inspirações de Hélio Oiticica na


criação dos seus parangolés: as cores, detalhes, camadas,
texturas, formas e materiais destas obras de arte – ou antiarte,
como preferia Oiticica – só fazem sentido quando esvoaçantes por
aí. Uma vez que saia da inércia, um parangolé nunca mais será o
mesmo, bem como aquele que se mexe juntamente com ele. É sempre
uma co-criação a cada momento. A obra inventa o artista ao mesmo
tempo em que o artista cria a obra. Em movimento: é como se
encontra o Dispositivo Clínico, a possibilidade de reinventar-se a
cada instante e recriar-se a partir de encontros nos instiga. Na
verdade, melhor seria dizermos que ele se realiza enquanto duplo
movimento: um, de ir a campo com nossas questões e outro, de
deixar-vir o campo com suas próprias questões. Para expressar esse
parangolé, apostamos na polifonia. Assim, quando um singelo “eu”
aparecer no decorrer do texto, na verdade o que temos é um
emaranhado de “nós” que se coadunam40. O nosso foi ganhando, no
decorrer do trabalho, assim como na escrita do próprio texto, um
contorno que extrapola os autores: ele se distribui entre todos
aqueles que se dispuserem ao movimento.

Tateando o campo

Lembro do nosso primeiro encontro no Instituto Benjamin


Constant e as primeiras impressões que tive de cada participante.
Um deles era Toddy41, um senhor de 64 anos que, com a ajuda de sua
bengala, dirigiu-se ao fundo da sala. Sentou-se afastado dos
demais participantes e familiares, guardou a bengala e, com os
braços cruzados, esperou silenciosamente o início do encontro.
Minha primeira impressão de que ele era uma pessoa reservada foi,
em parte, confirmada durante sua apresentação. Toddy, sempre
inquieto e gesticulando muito, logo nos disse que não pode ser
frágil, pois o mundo é competitivo e ele não quer se vitimizar por
ser cego.

(...) No decorrer dos encontros, continuava difícil acessar


um lado mais íntimo de Toddy, sua fortaleza, montada em torno de
seus comentários polêmicos e discursos de superação, parecia
impenetrável. Vira e mexe ele diz: “Eu tenho um colete. Venho para
cá de colete.” Essa frase soa como uma aposta: ao mesmo tempo que
pede para ficar longe, convida para estar perto.
(...) Após poucos meses de grupo, este atendimento parecia
mais intenso do que em outros dias para Toddy, ele falava e
gesticulava muito. Estávamos sentados em roda e eu estava em
frente a ele, sentada ao lado de Leda, a pessoa com a qual ele
discutia. Ela tentava falar, mas ele não deixava. Aquela
intensidade tinha assumido tal forma que ninguém conseguia
intervir junto a Toddy, ele já não escutava. O assunto em pauta
era sobre um chat de pessoas cegas, que funcionava através de um
Página 74
telefone. A pessoa ao meu lado dizia que não queria participar e
ele insistia de forma veemente: “Você não precisa se preocupar. Se
eu tô dizendo que é seguro [referindo-se ao chat], você pode
acreditar.” Ele seguia nessa linha, só que seu tom era cada vez
mais alto, falava cada vez mais rápido. Ela, por sua vez, escutava
e tentava em vão falar e explicar-se. Fui ficando tensa com aquela
discussão e me cobrava, como facilitadora, retomar um processo de
escuta mais efetivo para aquele encontro.

Quais os pré-requisitos que temos quando nos propomos a


trabalhar clinicamente? Certamente essa pergunta pode receber
diferentes respostas dependendo do lugar do qual nos dispomos a
responder enquanto psicólogos clínicos. É possível imaginar que
nos referimos aqui às diferenças entre abordagens teóricas da
Psicologia. No entanto, deixemos de lado essa possibilidade de
resposta e recoloquemos a pergunta em outros termos: antes mesmo
das diferentes abordagens teóricas, quais são nossos
pré-requisitos sensoriais? De que maneira nossos sentidos se
organizam e podem se cristalizar em um determinado fazer clínico?
A partir da implementação de um Dispositivo Clínico (DC) com
pessoas42 que em algum momento de suas vidas ficaram cegas,
tivemos a oportunidade de revisitar a clínica psicológica.
Começamos a nos interrogar sobre quais os efeitos que se produzem
na clínica quando nossa organização sensorial privilegia certos
sentidos em detrimento de outros, ou seja, o que fabricamos quando
trabalhamos a partir de um determinado arranjo sensorial? Sem
dúvida, é possível fabricar muitos mal-entendidos. No compartilhar
dessa experiência com aqueles que não veem, pudemos problematizar
a herança sensorial silenciosa com a qual trabalhamos na clínica.
O campo foi o território onde sentimos na carne os efeitos dessa
herança, bem como o quão promissores podem ser esses
mal-entendidos.
O Dispositivo Clínico é um projeto de pesquisarCOM43 que
implementou um grupo de atendimento terapêutico para receber
pessoas com deficiência visual do setor de reabilitação do
Instituto Benjamin Constant. Propusemos o DC não como uma clínica
PARA os cegos; pelo contrário, apostamos no processo que se
constituiu fundamentalmente COM os cegos. Afinal, "É pelo seu lado
de dentro que a experiência vai cavando e modulando a
subjetividade." (Kastrup, 2008b). Nesse sentido, foi de dentro do
DC que o COM se tornou uma experiência concreta e tangível.
O dispositivo foi composto por uma equipe para atender a
dois grupos de oito pessoas, reabilitandos cegos ou com baixa
visão, triadas pelo próprio IBC. Ele contou com quatro psicólogas,
que formaram duplas para ocupar o lugar de facilitadores do
processo. Além delas, participaram quatro estagiários em cada
grupo, alunos de graduação de Psicologia, dois deles podendo
intervir junto ao grupo e outros dois elaborando diários de campo,
cujo objetivo era produzir material reflexivo sobre encontros.
Os atendimentos clínicos aconteceram uma vez por semana com
cada grupo, com tempo marcado e duração aproximada de duas horas.
O período foi estabelecido ao início do trabalho e teve a duração
de dez meses. Nesse prazo, mais do que a resolução de questões,
objetivou-se fomentar um processo de reflexão de si que pudesse se
articular ao encontro sem depender dele. Sendo assim, o objetivo
central do dispositivo foi abrir um espaço de troca e escuta para
as questões que atravessavam aquelas pessoas, entendendo-as em sua
Página 75
singular diferença.
Para explicitar o próprio nome escolhido, qual seja,
Dispositivo Clínico, vale trabalhar cada um dos termos em
separado. Foucault (1979) define o termo dispositivo como “um
conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em
suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses
elementos.” (p. 244). Tomando como base essa noção, Deleuze (1990)
pergunta “O que é um dispositivo?” e inicia sua resposta
afirmando:

"Em primeiro lugar, é uma espécie de novelo ou meada, um conjunto


multilinear. É composto por linhas de natureza diferente e essas
linhas do dispositivo não abarcam nem delimitam sistemas
homogêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a
linguagem), mas seguem direções diferentes, formam processos
sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se
afastam uma das outras. (...) Dessa maneira, as três grandes
instâncias que Foucault distingue sucessivamente (Saber, Poder e
Subjetividade) não possuem, de modo definitivo, contornos
definitivos; são antes cadeias de variáveis relacionadas entre si.
(...) Desemaranhar as linhas de um dispositivo é, em cada caso,
traçar um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o
que Foucault chama de 'trabalho em terreno'." (p. 1)

Seguindo nessa direção, Gomart e Hennion (1999) ressaltam


que "o poder gerador dos dispositivos depende da sua capacidade
para criar e fazer uso de novas capacidades nas pessoas que passam
por eles” (p. 220). A essa última proposição, acrescentaríamos que
os dispositivos podem gerar novas capacidades também em não
humanos, a partir dos próprios efeitos engendrados nas suas
articulações com humanos. Não raro, durante nossos encontros,
pudemos presenciar bengalas, celulares, portas, bem como outros
não humanos, ganharem novas conexões (Kastrup e Tsallis, 2010).
O termo clínico é pensado em sua articulação com a noção de
dispositivo e congrega a ideia de conceber aqueles encontros
enquanto um campo experiencial. Nesse sentido, a potência de vida
de cada um foi o espaço, por excelência, da produção de uma
singularidade. Em contrapartida, a heterogeneidade deu suporte
para a constituição do grupo, assim como para a ampliação dos
territórios reflexivos de nosso próprio modo de conceber a clínica
em ação. “O que caracteriza um dispositivo é sua capacidade de
irrupção naquilo que se encontra bloqueado para a criação, é seu
teor de liberdade em se desfazer dos códigos, que dão a tudo o
mesmo sentido. O dispositivo tensiona, movimenta, desloca para
outro lugar, provoca outros agenciamentos. Ele é feito de conexões
e, ao mesmo tempo, produz outras” (Kastrup e Barros, 2009, p. 90).

Dessa forma, tornou-se necessário ancorarmo-nos à ideia de


uma clínica ampliada4. Esta se diferencia de uma clínica
científica e cartesiana ao tomar o sujeito em sua temporalidade e
historicidade, pautada em um tempo não linear, mas de
coexistência, possibilitando, assim, a abertura a multiplicidades
e devires. Em outras palavras, "clínica aqui passa a ser entendida
Página 76
como tecnologia da subjetividade inventando sempre novas formas de
reordenar a existência" (Paulon, 2004, p. 269). Não tivemos por
objetivo, então, revelar uma verdade que pudesse estar por trás do
sujeito, mas promover novos modos de ser e estar no mundo que
propiciassem uma reconfiguração de territórios existenciais. Isso
possibilita compreender o grupo terapêutico não como um mero
aglomerado de indivíduos isolados, mas como a resultante de um
processo contínuo de construção. Como consequência dessa opção,
recusamo-nos a estabelecer as bases de trabalho sobre a noção de
uma identidade do cego, ou seja, não entendemos o grupo como um
lugar em que papéis já estivessem pré-definidos em função da
deficiência visual.
Vale destacar que não partimos da ideia de que exista uma
psicologia da cegueira previamente estabelecida ou mesmo de uma
ambição em criar essa tal especialidade em Psicologia. Pelo
contrário, entendemos que assumir qualquer uma das posições
extremas – de que não existe diferença alguma ou de que são
pessoas totalmente diferentes – permanece distante da experiência
concreta da deficiência visual. Ver e não ver produzem,
igualmente, efeitos e singularidades que devem ser acompanhados e
investigados. Em outras palavras, a cegueira produz múltiplos
mundos que não se esgotam no negativo de um mundo vidente. A
deficiência visual é entendida não como uma questão meramente
biológica, mas que se forja entre vetores coletivos pelos quais
transitam indagações que congregam, desde os aspectos pragmáticos
até os existenciais, envolvidos na experiência de não ver
(Kastrup, 2007b). Neste sentido, a cegueira não precisa ser
entendida tendo como ponto de partida um patamar identitário.
Especificamente no DC, isso significou estar ancorado na
singularidade que emergiu daquele e naquele encontro. Isso fez com
que a deficiência visual (DV) fosse um, e não o único, vetor de
atravessamento desse dispositivo, que era compartilhado por todos
que estavam sendo atendidos. Foi acompanhando este vetor em comum
em sua articulação com diversos outros vetores, como, por exemplo,
os de gênero e os culturais, que pudemos chegar a perguntar sobre
nós mesmos, sobre nossas intervenções enquanto psicólogos.
Fabricando uma beirada

Em um movimento de afetação e experimentação, a presente


proposta assumiu como eixo central a plena fabricação de
estratégias clínicas. Do ponto de vista local, procuramos, através
de gestos, escutas, palavras, olhares e silêncios, acompanhar os
enredos de cada participante, percebendo-os em sua singularidade.
Buscamos, a partir de cada encontro, fomentar a potência de cada
história, assim como ampliar os modos de habitar territórios
existenciais diversos, compondo em grupo a nossa potência de
criação. Sob esta perspectiva, buscamos construir o que Guattari
(2005) denomina de um “grupo sujeito”, ou seja, um grupo capaz de
pensar sua própria posição, de abrir-se para o outro e para os
processos criadores. Um grupo que tenha por base um coeficiente
ampliado de abertura ou transversalidade, o que significa a
disponibilidade para operar com vetores distintos daqueles já
conhecidos, repetitivos e habituais.

Eu acreditava que aquele impasse entre Toddy e Leda era


resultante da falta de escuta, assim optei por dizer: “Bom, Toddy,
Página 77
vamos tentar escutar a posição do outro. É importante que possamos
nos escutar”. Infelizmente, trata-se de mais uma fala não ouvida.
Em um determinado ponto, percebo que estou na beirada da cadeira
na qual estava sentada.

Tínhamos no DC uma série de questões que nos colocavam


frente à nossa capacidade de lidar com a alteridade, com a
diferença que é produzida no encontro com o outro. Uma diferença
que não se dá apenas do lado de fora ou no “entre” da relação, mas
é também uma diferença que nos habita, nos confronta e convoca
para que busquemos novos espaços de reflexão. É nesse encontro com
a alteridade que se pode ampliar o pouco conhecimento
significativo acerca da subjetividade das pessoas com deficiência
visual.
“Mesmo entre os psicólogos ainda existe desconhecimento das
peculiaridades e diferenças entre cegueira congênita e adquirida,
cegueira total e baixa visão, perda súbita e gradual da visão, bem
como entre o cego que recebeu cuidados, estimulação e educação
apropriados, e aqueles que não dispuseram de tais oportunidades”
(Kastrup, 2007b). Na cegueira congênita, o mundo dos videntes não
representa um parâmetro cognitivo, uma vez que essas pessoas
jamais experienciaram o mundo a partir desse sentido. Portanto, a
vivência do não ver passa a ser construída pelos dados fornecidos
por um outro. Já na cegueira adquirida, permanecem dados
cognitivos relativos à visão. Dessa forma, a experiência do não
ver encontra-se marcada pela experiência da perda. Na mesma linha,
é importante considerar as pessoas com baixa visão, denominação
que se refere àqueles com ainda resquícios de percepção visual
(Carijo, Almeida e Kastrup, 2008b).

A beirada da cadeira estava ali, presente em minhas pernas,


enquanto eu olhava Toddy fixamente. Aqueles sinais em meu corpo
eram o indicativo de que a situação precisava tomar outra direção,
pelo menos para mim, sim. Subitamente, me pergunto: que estou
fazendo aqui desse jeito, nada disso está presente para ele? Quem
está sentindo a beirada sou eu, quem o olha sou eu e ele não sabe
nada disso que se passa comigo. “O que eu estou fazendo aqui?”
Essa pergunta me levanta da cadeira ao mesmo tempo em que pergunto
ao Toddy: “Posso sentar aí do seu lado?” Ele assente, mas ainda
está imerso em sua própria fala. Mudei de lugar. Ali, sentada ao
lado dele, via um novo cenário, sentia-me mais calma. Em minhas
pernas não havia mais a beirada, podia preencher o assento da
cadeira.

Dessa maneira, o DC nos lança sobre o incerto campo da


invenção, no próprio sentido etimológico da palavra, em um campo
que nos faz lidar com os restos arqueológicos (Kastrup, 2004). O
desafio é aprender a lidar com tal imprevisibilidade, não apenas
no sentido de tolerá-la, mas de conseguir tirar partido dela,
incluindo-a no processo de invenção (Kastrup, 2008b, p. 9).
Nesse sentido, as formulações teórico-metodológicas, tanto
da Teoria Ator-Rede (ANT), proposta por Latour (2006, 2005a,
2005b, 2002a), Despret (2001), quanto do método cartográfico
(Deleuze e Guattari, 1995; Moraes, 2008; Alvarez e Passos, 2009 e
Pozzana e Kastrup, 2009) criam subsídios para que possamos
partilhar de um modo de pesquisa que denominamos PesquisarCOM.
Cada um dos autores, a seu modo, preconiza que a produção de
Página 78
conhecimento e o trabalho de campo não devem ser tratados como
instâncias estanques. Pelo contrário, precisam se articular,
formando um todo que seja capaz de doar vitalidade, tanto aos
processos de pesquisa quanto àqueles vividos no campo. Em
particular, a questão metodológica neste trabalho representa um
importante tópico, já que, tanto nas proposições da ANT quanto nas
da cartografia, ela ocupa um lugar central na produção do
conhecimento sobre o campo. Frente a isso, faremos aqui um breve
exercício de articulação rumo à investigação ou, no sentido
etimológico da palavra, caminhar pelos vestígios.
As pistas de trabalho do cartógrafo destacadas por Kastrup
(2008b e 2007a) serão amalgamadas com aquelas propostas pela ANT.
A primeira delas destaca a importância de perceber que o que se
está cartografando é um processo, um movimento; portanto, qualquer
tentativa de fechamento será sempre provisória.

"A proposta de Deleuze e Guattari não é de um método histórico ou


longitudinal, e sim de um método geográfico e transversal. A opção
é pela geografia, onde a processualidade ocorre a partir de uma
configuração de vetores, forças ou linhas que atuam
simultaneamente. As configurações subjetivas não apenas resultam
de um processo histórico, mas portam em si mesmas processualidade
e guardam a potência do movimento." (Kastrup, 2009, p. 5)

Eu continuava com a necessidade de que Toddy pudesse ouvir


outras posições, pudesse escutar a fala das outras pessoas. Ter
trocado de lugar parecia resolver a necessidade de movimento
apenas parcialmente, eu continuava a desejar a escuta efetiva.
Mas, com aquela pequena troca de lugar, já não eram meus olhos que
me contavam desse desejo. Meus sentidos estavam se deslocando:
agora meus ouvidos o escutavam com maior incômodo devido à
proximidade das cadeiras.

A cartografia sempre tenta capturar um coletivo de forças em


ação, portanto, de forças que atuam em um território existencial.
Desse modo, faz-se essencial que ela possa desenhar o campo
problemático habitado pela subjetividade. Contudo, a tarefa é, a
partir desses dados do campo, conseguir produzir conhecimento. É
nesse âmbito que a ANT pode ser útil em seu modo de compreender o
próprio texto em Ciências Humanas. Será nele que se realizarão os
experimentos rumo à produção de conhecimento acerca daquilo que
está sendo estudado, o que faz com que o texto corresponda ao
laboratório.

"Porque este texto, dependendo do modo como está escrito, irá ou


não capturar o ator-rede que você deseja estudar. O texto, em
nossa disciplina, não é uma história, não é uma bela história, ele
é o equivalente funcional de um laboratório. Ele é um local para
tentativas, experimentos e simulações. Dependendo do que acontece
nele, existe ou não um ator e uma rede sendo traçada." (Latour,
2002b, p. 3)

É possível dizer que a ANT, bem como a cartografia, se


comportam mais como um modo de abordagem dos fenômenos do que
propriamente teorias explicativas (Latour, 1999; Deleuze e
Guattari, 1995). Nesse sentido, os actantes44 devem ser
acompanhados por meio de suas trajetórias, bem como pelos efeitos
Página 79
que são produzidos a partir de suas articulações. Eles não habitam
o mundo para cumprir uma dada teoria, isto é, não são elementos a
serviço de uma estrutura. Pelo contrário, eles fazem a diferença,
eles são insubstituíveis no cenário.

Agora eu ouvia Toddy pertinho, ele estava presente para mim


em outro sentido. Pois bem, falei novamente, só que agora ao seu
lado, não mais a sua frente, não mais de longe, mas de perto:
“Toddy, vamos escutar o que o outro tem a te dizer?!” Nada. Ele
continuava a falar sem trégua, continuava sem escutar. Comecei a
sentir vontade de ficar novamente na beirada da cadeira. Aquilo
produzia, sobre mim, um efeito estranho: tornava presente minha
necessidade de movimento. Entre videntes, a iminência desse gesto
costuma ser lida de forma imediata e produz rapidamente uma
sequência de efeitos, “ela quer falar”, “quer sair da situação”,
entre outros. Ali, era absolutamente ineficaz.

Esse trabalho foi marcado por uma proposta metodológica que


visa fundamentar o conhecimento aliado às narrativas de todos os
envolvidos na pesquisa, em consonância com o que diversos autores
têm afirmado na atualidade (Varela, s.d; Varela, Thompson e Rosch,
2003; Latour, 2001, 1999; Mol e Law, 2000, 2003). Sob essa
perspectiva, o conhecimento é entendido como um processo de
co-construção, de transformação recíproca entre pesquisador e
pesquisado. Desse modo, não se trata, portanto, de uma pesquisa
feita sobre cegos ou para cegos, mas COM eles, transformando-os em
coautores do conhecimento.
Isso significa defender que as estratégias de ação se
configuram mais relevantes para os sujeitos pesquisados não quando
se originam exclusivamente desse lugar de autoridade que o
pesquisador ocupa, mas à medida que são construídas conjuntamente,
partindo dos impasses e das questões que afetam e surgem do
próprio grupo. Trata-se de uma metodologia que rompe com
distinções a priori entre sujeito e objeto, cego e vidente,
pesquisador e pesquisado. Desloca-se o pesquisador do lugar
central de onde emanaria todo o conhecimento, uma vez que trabalha
com a constante construção e negociação dessas distinções. Assim,
à medida que se propõe a acompanhar os modos pelos quais os
sujeitos narram e vivem a deficiência visual, esse trabalho buscou
fazer proliferar as singularidades, os diversos e heterogêneos
modos de existir com deficiência visual, positivando os múltiplos
modos de ver e de não ver.

Explorando territórios

Tendo como base a proposta teórico-metodológica descrita


acima, nos encontramos diante de uma clínica que precisa dar conta
da tarefa de repensar os diversos encontros possíveis entre o ver
e o não ver. Para reconstruir essa trajetória clínica, o modo como
Despret (2001) concebe o contraste e sua potência de criar estados
de dépaysement/desterritorialização45 foi um importante aliado
para tornar tangíveis nossas próprias organizações sensoriais
durante o DC.

Mais uma vez, lá estava a beirada da cadeira. Começo a me


perguntar: “Já estou ao lado dele e novamente sinto a beirada da
Página 80
cadeira, o que é isso, o que ela quer?” Faço mais um movimento:
seguro a mão dele e repito: “Toddy, vamos escutar o que o outro
tem a te dizer?!” Ele faz menção de registrar o que digo, mas não
o suficiente pra aquietar sua fala. Lá estava eu, Toddy, a beirada
da cadeira, a mão de Toddy, minha mão e nada de escuta. Muito bem,
sigo e seguro sua outra mão. Entre os sicilianos se diz que uma
pessoa pára de falar se lhe segurarem as mãos. Será? Consigo uma
nova brecha na fala dele, eu a aproveito e repito: “Toddy, vamos
escutar o que o outro tem a te dizer?!” Nesse momento, estava
próxima a ele, minha fala era tangível, literalmente tangível.

A noção de contraste não deve ser lida como um conceito


distante da concretude do mundo. Pelo contrário, ela uma tem como
aspecto central a possibilidade de relativizar e rever o caráter
de evidência das concepções que são elaboradas em uma determinada
cultura e/ou experiência. Assim, o movimento dos etno-psicólogos
(Nathan, 2001) de interrogar os “outros”, em terras distantes,
sobre o conhecimento produzido em suas culturas reflete a busca
por coisas novas e desconhecidas, mesmo que sejam difíceis de
serem traduzidas. Vale ressaltar que esse novo e não familiar pode
se referir não somente ao que se estuda em outras culturas, mas
também pode dizer respeito a tudo aquilo que, no momento do
trabalho de campo, surge como disruptivo e gerador de impasses
durante a pesquisa.
Dessa forma, o fazer ciência, a partir do contraste, pode
ser guiado sobre a via da reflexão, fazendo com que a prática
científica mostre um interessante caráter de hesitação diante de
suas certezas. Nesse sentido, a lição do contraste é aquela que
nos sugere que devemos questionar aquilo que nos é evidente,
aquilo que para nós é familiar e fazer o movimento, que não é sem
esforço, de ir ao encontro do “outro”, que possui outros
imperativos distintos dos nossos. Essa postura nos conduz à
experiência do dépaysement/desterritorialização. Esse movimento
não tem como finalidade tomar o “outro”, os outros modos de
existir no mundo, como referência a ser seguida em detrimento dos
parâmetros e concepções que são os nossos. O que se deseja mesmo é
tomar essa outra referência como algo que nos remete a nós mesmos,
que nos permite estranhar aquilo que, para nós, já se encontrava
estabilizado, definido, que parece incontestável. Em outras
palavras, estranhar aquilo que tem o caráter de evidência para
que, nesse encontro com o “outro”, possamos nos perder para nos
reencontrar de uma nova maneira, em uma outra condição.

Embora eu e Toddy estivéssemos de mãos dadas, ele retoma a


fala. É verdade que a intensidade já é outra; com isso, eu
aproveito e repito a mesma frase, mas não o mesmo gesto. “Toddy,
vamos escutar o que o outro tem a te dizer?!” Já estávamos com as
duas mãos dadas e o que fiz foi apoiar aquele enlace sobre o peito
de Toddy. Ele e eu repousamos as mãos: “Sim, posso ouvir. Diga.”
Naquele momento, ouvimos os dois, com as mãos dadas e repousadas
sobre o peito dele. Leda pode falar: “Calma, Toddy, eu entendo
tudo isso. Só não quero participar do chat. Obrigada pela sua
ajuda, sei que o senhor quer meu bem.” A escuta não estava nos
ouvidos, ela era, naquele momento, tátil. Ele não parecia
inclinado a continuar falando, sua fala e meu corpo já não estavam
na beirada, podíamos escutar.

Página 81
Nesses termos, a noção de dépaysement/desterritorialização
está intimamente vinculada ao procedimento do contraste. Assim, no
encontro com o que não nos é familiar, é preciso cultivar a
hesitação, parar um pouco diante desse outro mundo. Buscar não
interrogá-lo segundo nossos próprios termos e sim segundo os
imperativos que estão presentes ali. Nas palavras de Despret
(2009), “qual é a pergunta que devo lhe fazer para aprender algo
interessante sobre você?”. Como resultado dessa proposição, temos
um conhecimento que se produz em abertura e disponibilidade em
relação ao “outro”. Em poucas palavras, o hesitar se enraíza em um
território que o nutre de possibilidades.

Parangoleando um Dispositivo Clínico

Ao apostar em uma concepção da cegueira enquanto abertura


para outras dimensões perceptivas e cognitivas de estar no mundo,
foi possível buscar estratégias terapêuticas condizentes para
nossos encontros. No DC, isso se manifestou na premência de criar
recursos que dessem conta da experiência singular de cada um, de
modo que todos nós deixássemos de lado a tentativa de superação da
alteridade para acolher o que havia de potente ali. O desafio
estabelecido foi tentar não compreender a cegueira a partir da
visão, mas acompanhar e fazer emergir outras configurações para se
estar no mundo, reinventando a condição de não ver, bem como a
própria visão no manejo terapêutico.

Esse enlace foi, sem dúvida, marcante. Permitiu-me mudar de


posição, pemitiu-me escutar com as mãos. É comum que se diga que
os olhos de um cego são as mãos, mas creio que os ouvidos de Toddy
são mãos dadas sobre o peito. Ele estava diferente ao final
daquela sessão. O abraço de tchau durou mais tempo, ele me
balançava de um lado para o outro suavemente e dizia obrigado.
Nunca conseguimos saber exatamente o que se passa com o outro.
Ainda assim, a suavidade com a qual me balançava contava de uma
suavidade nele. A veemência tinha encontrado novas possibilidades
de energizar Toddy.
Na situação vivida, o recurso exclusivamente verbal, que
utilizamos de início, mostrou-se insuficiente para o manejo
clínico daquele encontro. Isso nos levou a interrogar sobre uma
possível negligência acerca da organização sensorial que estava
presente no campo e através da qual operávamos de maneira
naturalizada. À alteridade centrada a princípio entre o ver e o
não ver somou-se a insuficiência do recurso verbal. O impasse
protagonizado pela sensação de beirada da cadeira funcionou aqui
como uma metáfora dessa experiência de movimento dos sentidos.
É fundamental destacarmos que a sensorialidade em movimento
foi algo que atravessou a todos, equipe e participantes. Embora,
na situação com Toddy, os diários de campo enfatizem os efeitos na
equipe, essa reinvenção atravessou a todos no DC. Criou-se,
portanto, a possibilidade de recorrer aos outros sentidos, que não
só a visão e a fala, como estratégias de construção da clínica no
interior do DC, ou seja, todos nós entramos em um processo de
reorganização sensorial. O que não era ouvido poderia ser tocado.
O que não era visto poderia ser sentido. As expressões faciais,
posturas e gestos, poderiam ser reinventadas também por um
movimento de sentidos de todos aqueles que ali estavam.
Página 82
Não seria justo dizermos que esses efeitos se deram a partir
do episódio com Toddy. Na verdade, ele funcionou, em nossas
discussões, como um catalisador, nos fez perceber os novos
sentidos clínicos que estávamos experienciando. Durante o encontro
final deste grupo, o movimento já não acontecia na beirada,
tampouco tinha como ponto de partida um psicólogo; ele
simplesmente acontecia. A experiência não tinha um ponto de origem
específico, mas era facilmente reconhecível por todos que estavam
presentes.

Eu estava nervosa, não era um nervosismo afobado, mas um


nervosismo emocionado. Era nosso último encontro. Aquele grupo ia
acabar, ou melhor, ia parar de acontecer naquele formato. Ele
agora ganharia o mundo, ia começar a acontecer de outros jeitos.
Estávamos praticamente todos ali presentes, de verdade presentes.
Alguém pergunta para Daniel: “o que você tem hoje?” Ele responde:
“Eu não estou escutando mais. Agora não sei como vou ficar.” Eu
entendi. Ele estava se referindo ao aparelho de audição que vinha
parando de ajudá-lo a ouvir. Ele já tinha perdido a visão e agora
a audição. Fiquei com uma sensação de ilha opressiva, não sabia o
que fazer. Toddy diz, nós vamos passear, vamos estar perto. Dali,
começam a combinar um encontro no shopping. Aquela saída me
parecia boa, os encontros do DC estavam ganhando o mundo. O
“perto” daquela frase era bastante concreto. Tudo parecia mais
ameno, mas Daniel começa a chorar e eu volto a ter a sensação de
ilha. Acho que era a metáfora que conseguia me falar daquela
angústia. O silêncio da sala era audível. Sem mais nem menos, não
sei quem começou o movimento, sei que fomos aproximando as
cadeiras, fomos dando as mãos. As lágrimas já estavam por toda a
parte. Todos nós chorávamos. Não era um choro tenso, era um choro
compartilhado, ele serenava aquela despedida. O choro acompanhava
aquela ilha, tocava suas margens. Toda ilha tem seu oceano, o
nosso era aquele.

Nós passamos a nos reinventar, deslocando-nos,


aproximando-nos, experimentando o toque como possibilidade. Esse
dado foi marcante, possivelmente por termos trabalhado com pessoas
com cegueira adquirida e não congênita. A referência aos recursos
visuais são muito fortes nessas situações. Mesmo quando conversam
com outros cegos, gesticulam para explicar rapidamente algo e não
é raro escutar perguntas do tipo: Como assim? Você mostrou o que?
Aqui aonde? No DC, fomos sendo convidados a experimentar uma
reorganização dos nossos sentidos. Seguir pelos vestígios da
gesticulação e pegar nas mãos da pessoa que fazia a pergunta,
movimentá-las de forma a reproduzir o gestual que havia sido
feito. Ao sentir, através dos movimentos do seu próprio corpo, os
diálogos se sensorializavam de modo múltiplo e inesperado.

Eu creio que a mudança literal de lugar trouxe mais presença


aos nossos encontros. A proximidade física foi o sinal necessário
para que Toddy conseguisse escutar o que os outros tinham a dizer.
A partir daí, ele pôde mudar de posição. Ele permitiu a
proximidade e o toque, abriu uma porta em sua fortaleza que deixou
o grupo em movimento. Aos poucos, Toddy pôde mostrar seu lado
sensível. O colete que usava tinha botões que podiam ficar abertos
ou fechados.

Página 83
Quem sabe possamos começar a conceber a ideia de uma clínica
cuja sensorialidade seja dinâmica? Em outras palavras, um processo
terapêutico onde os sentidos sejam organizados e reorganizados
inventivamente? A clínica com a cegueira não faz do tato um mero
apêndice, mas sim um aliado que aponta para um modo de existir
potente na criação de vínculos. Nesse sentido, o mal entendido
produzido na experiência com Toddy se fez promissor quando vivemos
nosso último encontro. Assim, podemos nos apropriar de nossas
heranças sensoriais sem precisar deixá-las invisíveis. Em síntese,
nossa experiência no DC nos fez revisitar a clínica em sentidos
que vão além da singularidade deste trabalho e, para não encerrar,
deixemos o parangolé vivo: qual o nosso fazer clínico quando
colocamos a sensorialidade em movimento? As respostas serão sempre
locais, não há modelos, apenas mundos possíveis.

notas:
40 O jogo de pronomes se refere às transcrições dos diversos
trechos dos diários de campo produzidos no transcorrer do
Dispositivo Clínico. Assim sendo, mantivemos a primeira pessoa do
singular, embora tenham sido vários esses “eus” no campo. Já no
decorrer do presente texto, usaremos a primeira pessoa do plural.
Padronizar o texto dessa forma tem um motivo específico: desejamos
que a diferenciação entre a transcrição do diário e a discussão do
texto não aconteça somente através do recurso visual da troca de
fonte de letra.
41 Toddy é uma referência a um achocolatado em pó. Nos
últimos encontros, pedimos que cada participante escolhesse um
nome que o representasse para figurar no material da pesquisa.
Toddy escolheu seu nome por ser “algo ligado a energia”, que ele
viu em um comercial e gostou. Um de nós, membros da equipe de
atendimento, comentou naquele momento que era a “energia que dá
gosto”, fazendo uma confusão com a propaganda de outro
achocolatado, o Nescau. Nas propagandas do Toddy, ele é referido
como “seu companheiro de aventuras” ou “o sabor da verdade”. Todas
estas referências ganham movimento singular quando pensamos nos
trechos do diário de campo que compõe este artigo.
42 Os participantes eram todos adultos, com idades variando
de 18 a 64 anos.
43 Este termo tem como objetivo salientar as dimensões
interativa e processual do fazer pesquisa. Nesta perspectiva, não
só o pesquisador é quem propõe as questões de pesquisa, mas também
aqueles que participam dela. A pesquisa se dá no ato de interagir
com o meio que está sendo estudado. Assim, vale dizer que o termo
é também um verbo, um “PesquisarCOM”. Cf o texto de Márcia Moraes,
nesta coletânea.
4 Essa noção de clínica ampliada surge na década de 60 a
partir de Guattari, onde a clínica é atravessada pelos
agenciamentos coletivos de produção de subjetividade, implicando
transformações no seu processamento (Costa, F. T.; Moehlecke, V. e
Fonseca, T. M. G., 2004).
44 Termo utilizado por Latour (2001), a partir de uma
interlocução com a semiótica, para explicitar a simetria existente
entre atores humanos e não humanos.
45 Como não há uma correspondência exata para o termo
dépaysement em português, optamos por utilizar em conjunto com a
palavra desterritorialização, por apresentar uma aproximação de
sentido com o termo original.
Página 84
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Página 86
A bengala como um instrumento lúdico na orientação e mobilidade do
deficiente visual

Vera Regina Pereira Ferraz e Lucia Maria Filgueiras

Este texto discute uma experiência realizada com crianças


deficientes visuais utilizando a pré-bengala em aulas de
Orientação e Mobilidade (O.M.) no Instituto Benjamin Constant46.
Trata-se de uma experiência inovadora, pois não há consenso entre
professores de deficientes visuais sobre a adoção da bengala nas
classes de educação infantil e ensino fundamental. Alguns
professores alegam que, utilizada por crianças, a bengala ou
similar pode causar acidentes ou danos a pessoas ou ao próprio
ambiente. As opiniões são, muitas vezes, preconceituosas, sem
levar em consideração os benefícios que podem ser obtidos por meio
de um processo de aprendizagem conduzido de modo cuidadoso. O
assunto é controvertido e são poucas as instituições que atendem
crianças cegas que adotam o ensino da bengala. Acreditando que os
benefícios do uso da pré-bengala justificam sua introdução,
realizamos uma experimentação com uma pré-bengala, utilizada de
modo lúdico, com crianças de classes de alfabetização, com o
intuito de verificar seus efeitos no aprendizado das técnicas
básicas de O.M. e na vida cotidiana dessas crianças.
Diversos autores indicam uma introdução precoce da bengala.
Felipe (2004) afirma:

"Quanto mais cedo melhor. As vivências pré-bengala devem ser


trabalhadas tão logo a criança adquira marcha independente sem
apoio. A partir do momento que ela consegue segurar e manter a
bengala à frente do corpo, introduzem-se manipulações semelhantes
as técnicas diagonal, varredura e deslize". (Felipe, 2004, p. 45)
No nosso caso, optamos por um trabalho lúdico utilizando um
patinho, brinquedo similar a uma bengala, fazendo com que, desse
modo, as crianças pudessem assimilar as diversas técnicas do
caminhar independente.

Orientação e mobilidade

A Orientação e Mobilidade é uma disciplina que tem como


objetivo principal ensinar pessoas deficientes visuais a se
locomoverem com segurança. Juntamente com Atividades de Vida
Diária47, constitui o diferencial da grade curricular desse grupo
de crianças. Para uma pessoa cega, a capacidade de se locomover no
espaço, ou seja, sua mobilidade, é considerada pela maioria dos
autores como a maior de todas as dificuldades. Fraiberg e Freedman
(1964) e Hatwell (2003) referem-se à movimentação no espaço como
um dos maiores problemas a serem superados pelo indivíduo cego.
Por este motivo, a inclusão da O.M. como disciplina curricular
torna-se indispensável para as crianças deficientes visuais.
Quanto antes a pessoa cega ou de baixa visão tiver acesso a este
conhecimento, mais cedo alcançará autonomia no seu caminhar e,
Página 87
consequentemente, segurança ao se locomover. Neste sentido é que
propomos a adoção da pré-bengala, bengala para crianças, já que
esta permite a detecção de obstáculos, inclinações do solo,
depressões e outras características do espaço.
Segundo Mariño e Figueiredo (1988), a O.M. pode ser definida
como a capacidade de deslocamento intencional de uma parte a outra
a partir de estímulos internos e externos. Esta capacidade implica
e depende do conhecimento do meio (orientação), do domínio de
habilidades motoras (mobilidade) e do desejo de se mover. A
orientação mobiliza a percepção tátil, auditiva e olfativa para
conhecimento da posição dos objetos do meio circundante. Por meio
da percepção não visual, ela vai construir seu mapa mental.

O uso do brinquedo como pré-bengala

O uso da bengala por crianças pode ser introduzido de forma


lúdica durante as aulas de O.M., criando a oportunidade delas se
locomoverem de forma mais livre e independente, expandindo seu
ambiente de vida. Ao utilizarmos um brinquedo, conferimos às aulas
de O.M. um aspecto menos rígido, amenizando seu caráter
disciplinar. Além da aquisição do conhecimento sobre o espaço e a
correção da postura, as aulas são momentos de brincadeira, algo
tão importante para todas as crianças, tanto as que enxergam como
aquelas que nada veem. Por isso, o ato de brincar e a opção pelo
lúdico são o fio condutor nas aulas de O.M. para crianças,
constituindo o ponto fundamental de nossa metodologia.
Para Vygotsky (1989), o desenvolvimento da criança não pode
ser pensado sem que se considere a questão da ação e é neste
contexto que se situa o conceito de brincar. O brincar é uma
importante forma de comunicação e é por meio dela que a criança
pode experimentar seus desejos e seu cotidiano de forma simbólica.

"No início da idade pré-escolar, quando surgem os desejos que não


podem ser imediatamente satisfeitos ou esquecidos e permanece
ainda a característica do estágio procedente de uma tendência para
a satisfação imediata desses desejos, o comportamento da criança
muda. Para resolver essa tensão, a criança em idade pré-escolar
envolve-se num mundo ilusório e imaginário, onde todos os desejos
não realizáveis tornam-se reais, e esse mundo ilusório é o que
chamamos de brinquedos." (Vygotsky, 1991, p. 106)
De acordo com Vygotsky (1984), no início do desenvolvimento
do brincar, a atividade da criança pequena depende diretamente de
objetos concretos e das ações que eles permitem. Mas, aos poucos
os objetos perdem sua força determinante e a criança começa a agir
independente daquilo que se vê. Quando um gesto ou uma palavra
transforma um objeto em outro ou uma ação em outra, produz novos
sentidos. Quando Vygotsky discute o papel do brinquedo, refere-se
especificamente à brincadeira de “faz de conta”, como brincar de
casinha, de escolinha ou brincar de andar a cavalo usando um cabo
de vassoura. A brincadeira de “faz de conta” é uma situação em que
a criança é levada a agir num mundo imaginário. No caso de brincar
de dirigir um ônibus, a situação é definida pelo significado
estabelecido pela brincadeira – os bancos do ônibus, o motorista,
os passageiros – e não pelos elementos concretamente presentes –
as cadeiras da casa, por exemplo.
Ao brincar de carrinho com uma peça de madeira de um jogo de
Página 88
construção, a criança se relaciona com o significado em questão (o
carrinho) e não com a peça do jogo que tem nas mãos. Esta serve
como uma representação de uma realidade ausente e ajuda a criança
a começar a separar o significado dos objetos concretos. Isto
contribui para ela se libere dos limites e da determinação das
situações. O brinquedo provê, assim, uma situação de transição
entre a ação da criança com os objetos concretos e suas ações com
os significados produzidos. Sendo assim, as ações com o brinquedo
se dão a partir dos significados construídos para os objetos,
contribuindo claramente para o desenvolvimento da criança
(Oliveira, 1974). Deste modo, é esperado que a escola, e
principalmente a educação infantil (pré-escola), promova situações
lúdicas, onde o brinquedo seja utilizado com uma função
pedagógica, reconhecendo seu papel na aprendizagem. Pensando nesta
direção, o brincar com a pré-bengala adquire seu sentido no
aprendizado do caminhar com segurança, autonomia e liberdade,
expandindo o ambiente de vida da criança com deficiência visual.
Na visão sócio-histórica de Vygotsky, a brincadeira e o jogo
são atividades típicas da infância, nas quais a criança recria a
realidade usando sistemas simbólicos. São atividades sociais e
inseridas em um contexto. O brincar é também uma atividade humana
criadora, na qual imaginação, fantasia e realidade se combinam na
produção de novas possibilidades de interpretação, de expressão e
de ação das crianças, assim como de novas formas de construir
relações sociais com outros sujeitos, crianças e adultos. No
processo da educação infantil, o papel do professor é de suma
importância, pois é ele quem cria os espaços de aprendizagem,
disponibiliza materiais, participa das brincadeiras, ou seja, faz
a mediação da construção do conhecimento. Por meio de brincadeiras
de “faz de conta", ele pode avaliar certas dificuldades e também
propor estratégias de superação das mesmas.
No caso do ensino de O.M. para a criança deficiente visual,
o deslocamento espacial, que às vezes é carregado de ansiedade,
através da brincadeira pode assumir um caráter lúdico e prazeroso.
Ao empurrarem carrinhos, seja de boneca ou de outro tipo, poderão
perceber que aquela brincadeira supre uma de suas necessidades, ou
seja, elas podem caminhar protegidas, evitando colisões. O
carrinho vai à frente de seu corpo, antecipando obstáculos ou
desníveis do solo, entre outras surpresas do caminho.
O brinquedo é importante para qualquer criança em
desenvolvimento, seja ela dotada ou não de visão. A criança que
dispõe de visão busca espontaneamente os objetos e é atraída por
eles. A criança que não enxerga necessita de uma estimulação
especial para se movimentar e conhecer o seu entorno. Ela precisa
ser estimulada por outras fontes sensoriais, principalmente táteis
e sonoras, para se movimentar e explorar o mundo a sua volta.
Bruno (1993a), em seu livro O desenvolvimento integral do portador
de deficiência visual, da intervenção precoce à integração
escolar, ressalta como brincar amplia o mundo da criança com
deficiência visual.

"O brincar se dá quando a criança, ao interagir com o meio,


sente-se produtora de ação, o que lhe dá prazer. Isto ocorre bem
cedo, quando a criança adquire os primeiros esquemas de ação para
interagir, surgindo assim os esquemas lúdicos ou imitativos. A
imitação nasce com a repetição ativa ao imitar e repetir aquilo
que desperta o interesse e lhe dá prazer." (p. 46-47)
Página 89
Como para qualquer criança, para a criança deficiente visual
brincar é uma importante atividade. A brincadeira evita que ela se
isole e podemos ajudá-la a brincar e a descobrir como são os
objetos, como eles funcionam, como estão dispostos no espaço e
qual a relação entre eles, estimulando suas percepções táteis
auditivas, olfativas e gustativas. Todo o seu corpo deve estar em
ação. Movimentações corporais são extremamente importantes,
principalmente aquelas que estimulam a criança a descobrir o seu
corpo e o ambiente a sua volta. Por exemplo, com brincadeiras
atrativas e prazerosas como empurrar cadeiras, carrinhos de
bonecas e outros, proporcionamos ao mesmo tempo divertimento e uma
forma lúdica de realizar atividades de O.M. Desta forma,
contribuímos para o desenvolvimento, estimulando-a também a
descobrir o mundo por meio do brinquedo.

A orientação e a mobilidade na deficiência visual

Martin e Bueno (2003b) definem a orientação como um processo


cognitivo que permite instaurar e adequar a posição que a pessoa
ocupa no espaço por meio de informação sensorial. A mobilidade, no
sentido amplo, é a habilidade de deslocar-se de um lugar para
outro. Para que a mobilidade seja bem ajustada, ela deverá ser
realizada de maneira segura, independente e eficaz. Ambos os
conceitos estão interligados, pois um não pode ser entendido sem o
outro.
No livro Psychologie Cognitive de La Cécite Precoce, Hatwell
(2003) destaca que a ausência da visão tem influência sobre o
desenvolvimento postural e motor da pessoa cega. A visão responde
em grande medida pela estabilização corporal e pelo equilíbrio,
bem como atua na iniciação e controle dos movimentos. A cegueira
afeta a postura porque esta é organizada a partir das percepções
proprioceptivas e vestibulares e da visão. Na falta da visão, o
deficiente visual depende da informação do próprio corpo e do
sistema vestibular para manter a postura e o equilíbrio. Além
disto, a pessoa cega encontra dificuldade para caminhar e manter
seu equilíbrio durante o movimento, sobretudo pela falta da
pré-visão. Seu caminhar requer uma intensa atividade cognitiva,
pois, além de se preocupar com a sua mobilidade, é preciso estar
atento ao caminho, ou seja, à sua orientação espacial.
De acordo com Hatwell (1993), a cabeça abaixada é uma das
características da postura da pessoa cega. Outra possibilidade é
olhar para o alto. Ambas as posturas da cabeça são causadas pela
ausência da mirada e pelo não alinhamento na altura dos olhos.
Para localizar um som, os cegos tendem a virar a orelha direita
para essa fonte sonora. Durante um diálogo, é comum que uma pessoa
cega posicione a cabeça lateralmente em relação à pessoa com quem
está conversando. Quando este posicionamento é adotado durante a
locomoção, a cabeça e o corpo ficam em planos diferentes, o que
afeta a postura global e a manutenção de uma trajetória retilínea.
A criança com deficiência visual pode ter seu desenvolvimento
afetado por tais particularidades geradas pela falta de visão, mas
estas podem ser atenuadas através de estimulação adequada. O
treino nas técnicas de O.M. visa um melhor desenvolvimento
postural, que trará por certo efeitos positivos para sua
orientação e deslocamento espacial.
A principal dificuldade ocasionada pela cegueira é a
Página 90
ausência de pré-visão, ou seja, a capacidade de antecipar a
presença de objetos no espaço. A pessoa cega presta atenção às
informações sensoriais atuais e recorre também a conhecimentos
anteriores disponíveis em sua memória. Por exemplo, fazendo
regularmente um determinado caminho, a pessoa sabe quais
obstáculos, desníveis no solo e outras características do trajeto
serão encontrados e, com este conhecimento, ela poderá se desviar
quando necessário. Sendo assim, a ausência da pré-visão pode ser
fonte de uma forte ansiedade, pois os riscos de colidir com um
obstáculo e de perder seu caminho são, muitas vezes,
consideráveis. No entanto, deve-se lembrar que as diferenças
individuais são muito significativas, podendo atenuar ou acentuar
determinadas características.
As condições perceptivas e cognitivas da locomoção autônoma
em grandes espaços devem responder a vários critérios: a
segurança, a eficácia que permite atingir a meta proposta, o
conforto que torna o deslocamento agradável, a harmonia dos
movimentos e a independência física das pessoas com ausência de
visão. A nosso ver, a O.M. pode ser um meio de promover todos
esses aspectos.

Nossa experiência utilizando a bengala como instrumento lúdico

Introduzimos, em 2004, a atividade de Orientação e


Mobilidade nas classes do primeiro ano do ensino fundamental no
Instituto Benjamin Constant. O trabalho com a pré-bengala foi
iniciado no sentido de verificar se eram pertinentes ou não as
ideias contrárias ao uso da pré-bengala, ou mesmo da bengala
tradicional adequada à estatura da criança. Optamos por um
trabalho lúdico, fazendo com que as crianças assimilassem diversas
técnicas do caminhar independente utilizando um brinquedo similar
a uma bengala. A ideia foi buscar um brinquedo que desempenhasse
as funções da bengala: percepção tátil, à distância, de
referências espaciais e detecção de obstáculos. Para estas funções
podem ser utilizados brinquedos como carrinhos de madeira,
carrinhos de boneca ou raquetes feitas de bambolê. Em nossa
experiência, o material lúdico utilizado como pré-bengala
consistiu num bastão de madeira com uma haste e duas rodinhas, que
tinha, em sua extremidade inferior, um patinho de madeira que,
quando empurrado, produzia um estímulo sonoro com o bater de suas
asas. Nossa ideia foi introduzir a bengala evitando o caráter
estigmatizador que normalmente a acompanha. A expectativa era de
que a pré-bengala fosse encarada como uma espécie de prolongamento
do corpo para a captação das informações do espaço, ou
simplesmente como um objeto que ajuda na locomoção. No caso,
procuramos evitar a rejeição da bengala devido à representação
social negativa que ela ainda possui, ligada à desvalia da pessoa
cega.
Utilizamos a pré-bengala conjugada com estratégias lúdicas
durante o caminhar com o propósito de favorecer o deslocamento da
criança com autonomia e independência o mais cedo possível,
evitando que ela venha a se machucar com quedas e colisões. De
forma lúdica, estimulamos a coordenação dos movimentos, a
locomoção e a organização postural, ao mesmo tempo em que
procuramos despertar o interesse pelo próprio deslocamento
espacial, aguçando a curiosidade da criança para a exploração de
espaços desconhecidos.
Página 91
Durante o trabalho estivemos atentas para que a criança
permanecesse com a cabeça alinhada na altura dos olhos. Buscamos
também favorecer a formação dos conceitos de lateralidade, noção
de posição e de sentido, bem como o desenvolvimento da orientação
espacial e coordenação motora global. Mas o mais importante era a
atmosfera lúdica do trabalho, favorecida pelo uso do brinquedo.
Tudo começava com um convite a “levar o patinho para passear”.
Em nosso estudo, de caráter piloto e experimental,
trabalhamos com duas crianças. Uma delas, aqui denominada C1,
tinha a idade de seis anos e era cega congênita. A outra,
denominada C2, tinha sete anos, estava em processo de perda da
visão, possuindo uma visão bastante reduzida. As
brincadeiras/treinos ocorreram duas vezes por semana, com duração
de cinquenta minutos. O início do trabalho ocorreu em 2007 e
finalizou no ano seguinte. Como orientação metodológica da
pesquisa, utilizamos a observação participativa realizada durante
as aulas. As atividades foram registradas num diário de campo.
Foram também realizadas entrevistas com as crianças e suas
respectivas mães (aqui denominadas M1 e M2) ao final do trabalho,
cujo objetivo foi fazer uma avaliação de seus efeitos na vida
cotidiana das crianças.
Dentre os objetivos a serem alcançados na experiência,
podemos destacar como os mais importantes: 1) utilizar a
pré-bengala aprendendo, através da brincadeira, a caminhar de
maneira independente com a maior segurança possível; 2) propiciar
um ambiente de aprendizagem onde a criança deficiente visual
utilizasse de forma adequada e eficiente a informação proveniente
de todos os sentidos de que ela dispõe para orientar-se de maneira
eficaz no espaço. Caminhar empurrando o brinquedo/patinho tinha
também como objetivo fazer com que essas crianças descobrissem
novos espaços do local, no caso, sua escola (IBC), e como se
desviar dos obstáculos, fazendo-as sentirem-se mais seguras para
se locomover. Durante as aulas, não houve a preocupação de ensinar
técnicas específicas, mas ensinar como a pré-bengala, mesmo sendo
um brinquedo, podia atuar como um instrumento de percepção
importante no seu deslocamento.
Durante as primeiras brincadeiras treinos, foi solicitado às
crianças que percorressem o trajeto da sala de aula até o
banheiro. Elas deveriam sair da sala de aula, atravessar o
corredor passando em frente às portas das diversas salas que
servem como pontos de referência, até encontrar a porta do
banheiro. Iniciamos o trabalho utilizando somente o tato, passando
as mãos na parede e fazendo o rastreamento para reconhecimento do
espaço. Depois desse reconhecimento preliminar do ambiente,
passamos então a dar maior atenção à proteção superior e à
proteção inferior do corpo. Nesse momento, surgiu uma pequena
dificuldade, pois a proposta era caminhar sem tocar com as mãos
nas paredes. Passamos, então, a utilizar a pré-bengala, fazendo-as
caminhar e repetir o mesmo percurso com a companhia do patinho.
Posteriormente, partimos para um novo trajeto, mais
complexo, que tinha como ponto inicial o primeiro andar do IBC,
mais precisamente o refeitório, e como ponto final a nossa sala de
aula, que fica no segundo andar. O trajeto envolvia caminhar pelo
corredor, encontrar as escadas e subir, para então acessar o
segundo piso, onde se encontram as salas de aula. Durante esse
trajeto, passávamos por vários obstáculos, como pilastras, portões
e vãos, dentre outros. Para que este trajeto fosse concluído, foi
Página 92
necessário que os alunos percorressem o caminho e memorizassem
diversas pistas no ambiente e, posteriormente, elaborassem um mapa
mental do mesmo. Este não é um trajeto fácil e as crianças o
repetiram diversas vezes até que pudessem memorizá-lo.
Cabe destacar que ao longo do trabalho pudemos perceber uma
melhora progressiva no caminhar das crianças. Foi possível
perceber que, com os treinos consecutivos, elas foram adquirindo
uma maior confiança nos deslocamentos, em decorrência das
informações que a pré-bengala/patinho lhes proporcionava,
principalmente quando eram detectados obstáculos antecipadamente,
evitando colisões ou tropeços. Vale sublinhar também que, durante
todo o treino, não ocorreu nenhum episódio de utilização da
pré-bengala com outro fim que não o de orientar o caminhar. Para
isso, foi feito um trabalho de conscientização tanto com as
crianças como com seus pais. Foi dito aos responsáveis que, sempre
que pudessem, deveriam lembrar aos seus filhos que a bengala serve
para ajudá-lo a caminhar e não para bater nos colegas ou nos
objetos.
Durante as entrevistas, as crianças (C1 e C2) relataram sua
experiência, bem como suas mães (M1 e M2).

O trabalho enfrentou dificuldades no inicio, como relatou


esta mãe.

M2: "Mesmo usando a pré-bengala, ele se deslocava com muita


insegurança. Não conseguia concentração para as instruções que
estavam sendo dadas."

Uma das crianças (C2) tinha certo preconceito tanto com a


bengala como com a cegueira. Muitas vezes mencionava que
enxergava, mesmo sabendo que não conhecia os caminhos da escola. A
mãe afirmou que, antes do aprendizado com a pré-bengala, a criança
tinha bastante dificuldade de se locomover sozinha na escola.

M2: "Ela tinha medo principalmente de descer as escadas sozinha,


de ir até o refeitório, ela só ficavam comigo lá embaixo (no
térreo da escola), lanchando o que eu trazia. Ela descia e ficava
comigo lanchando, ficava ali na praça, não saía e ficava ao meu
redor. Era muito apegada a uma coleguinha dela, mas, quando ela
não vinha para a escola, aí é que ela não saía mesmo."
Foi relatada pela mãe a existência prévia de uma certa
resistência da criança em relação ao uso da bengala.

M1: "Eu lembro que no inicio ele apresentava uma resistência de


usar, ele ficava meio assim, porque nem sei... Acho que é meio
normal, porque percebo que várias crianças têm isso. Acho que eles
têm um pouco de vergonha... de andar com um instrumento na mão,
diferente das outras crianças."

A ideia era que a pré-bengala se constituísse em um recurso


lúdico e, ao mesmo tempo, um estímulo para que ela se motivasse no
deslocamento. Parecia que uma das crianças (C2) não gostava da
pré-bengala, pois não se considerava cega. Como tinha percepção de
luz, se movimentava de maneira rápida, mas, em diversos momentos,
sua visão era insuficiente e ela esbarrava nos objetos. Ela não
revelava insegurança para se locomover, todavia sua orientação não
Página 93
era muito boa. Parece que o patinho, ou seja, a forma da
pré-bengala, diferente da bengala tradicional, tornou-a menos
resistente ao uso desse instrumento para se locomover.

Com as aulas treino-brincadeira, esta situação foi se


amenizando e a criança passou a conhecer melhor a escola.

C2: "As aulas e a pré-bengala me ajudaram a conhecer o colégio.


Hoje eu já conheço o colégio e não preciso nem usar a bengala.
Para mim, que enxergo um pouco, a bengala não ajuda tanto, mas,
quando eu perder toda visão total vai ajudar."

O processo foi descrito por uma das crianças como produzindo


a experiência de conhecer novos espaços dentro da escola.

C1: "A tia hoje foi comigo até o refeitório, hoje a gente passeou
no pátio interno, passei pela Cantina do Zezinho."

Uma outra fala indica o desejo de ter as aulas, lembrando a


ocorrência de reclamações quando a criança considerava que algo
estava atrapalhando o trabalho.

M1: "Ele reclamava às vezes um pouco do trânsito, porque tem gente


na frente, que tem gente que não sai da frente, que tem gente que
não respeita a aula, que ele está passando, porque tem o trânsito,
tem gente que fica na frente e que não sai."

O relato desta mãe também deixa isto claro, indicando como o


treino favoreceu à mãe e à filha, que hoje circula de forma mais
autônoma, dando também liberdade para a mãe.

M2: "Ela ficou mais esperta, eu fiquei mais tranquila. Você


percebeu que este ano eu não estou mais no colégio, ela está
andando sozinha e segura. E eu posso ficar despreocupada e fazer
as minhas coisas."
Surgiram relatos de que a atividade melhorou de forma
progressiva e que, aos poucos, se fez presente fora das aulas. A
criança parecia gostar de andar em casa com a pré-bengala.
M2: "Bem, já foi um processo de independência, assim, isso foi uma
coisa clara para mim e para o meu marido. Ele começou a brincar em
casa."

Nesta fala, aparece indicado como as aulas de orientação e


mobilidade ampliaram para a criança seu conhecimento do mundo e,
inclusive, como ela já consegue guiar outras pessoas.

M2 relatou a fala do filho: "Por que eu já conheço outros


caminhos, caminhos que eu não sei muito bem, para lá... lá na
frente... lá no futuro, eu vou poder andar sozinho sem depender de
ninguém."

O relato também demonstra o desejo de independência e de


autonomia:

Página 94
C2: "Já sei guiar, agora eu ajudo ao meu amigo. Como ele não tinha
orientação e mobilidade, eu o ajudava com as coisas que eu já
sabia."

Considerações Finais

Pelas experiências narradas, o aprendizado antecipado da


Orientação e Mobilidade com a introdução da pré-bengala com
crianças cegas apresenta resultados relevantes e promissores,
tanto no seu cotidiano escolar como em sua vida fora da escola,
tornando-as mais seguras em seus deslocamentos. Percebemos que a
motricidade dessas duas crianças apresentou melhoras, bem como a
postura, o controle de tronco e da cabeça, proporcionando melhores
condições para o seu caminhar. O estudo sugere que as técnicas de
O.M. aprendidas no espaço educacional possibilitam às crianças
deficientes visuais a utilização de um dispositivo importante que
os levará a exercer mais cedo sua independência, autonomia e
cidadania.
Por intermédio das experiências vividas, as duas crianças
apresentaram um comportamento mais seguro, o que, em princípio,
parece de grande ajuda para se locomoverem com agilidade no
futuro, quando caminharem sozinhas nas ruas da cidade ou em
espaços desconhecidos. A O.M. parece repercutir também em outros
aspectos do desenvolvimento da criança, abrindo mais cedo um canal
entre o não ver e o sentir. Neste sentido, concordamos com Martin
e Bueno (2003), que a aplicação das técnicas de orientação e
mobilidade favorece o desenvolvimento psicomotor e, juntamente com
a antecipação do uso da bengala, possibilitam acesso a atividades
sócio-culturais na família, na escola e na comunidade, numa
perspectiva inclusiva.
Na experiência que realizamos, o brincar facilitou a
aceitação da bengala estilizada pelas crianças e nos faz prever
uma melhor aceitação da bengala no futuro. Quando a criança
percebe que a bengala lhe ajuda em seus deslocamentos, parece que
a resistência é minimizada. Através da experiência realizada
parece possível concluir que a inclusão precoce da pré-bengala é
bem vinda, desde que realizada de modo cuidadoso e lúdico. Não se
percebeu nenhuma intenção das crianças no sentido de utilizar a
pré-bengala para outros fins que não o de auxiliá-las em seus
deslocamentos. Nosso estudo analisou o desenvolvimento do trabalho
realizado com duas crianças. Outros estudos devem ser realizados
no futuro que testem o uso com outras crianças, contemplando os
diferentes perfis e o amplo espectro de casos no âmbito da
deficiência visual. Enfim, entendemos que, quanto antes a criança
tiver acesso às técnicas de O.M., bastante favorecida pelo uso da
pré-bengala, mais cedo ela andará com maior segurança, amenizando
o que é considerado como uma de suas maiores dificuldades causada
pela deficiência visual, ou seja, o domínio do espaço.

notas:

46 IBC – Centro de referência nacional para as questões da


deficiência visual. MEC-SEESP, 2008.
47 Disciplina onde são ensinadas tarefas do cotidiano como
dar laço, encher copos de água, abotoar e desabotoar, entre outras
tarefas. O deficiente visual necessita aprender essas tarefas
Página 95
formalmente na escola, tendo em vista que, pela falta de modelos
onde se espelhar, não assimila atitudes corriqueiras do cotidiano.

Referências Bibliográficas:

BRUNO, Marilda M. G. O desenvolvimento integral do portador de


deficiência visual: da intervenção precoce à integração escolar.
São Paulo: Laramara-Associação Brasileira de Assistência ao
Deficiente Visual, 1993.

FELIPE, João Álvaro de M. et al. Caminhando Junto: Manual das


habilidades Básicas de Orientação e |Mobilidade. Brasília:
Ministério da Educação- secretaria de Educação Especial, 2004.

FRAIBERG, S., Fredman, DA. Studies in the ego development of the


congenitally blind child. Psychoanalytic Study of the Child, 19,
p. 113-169, 1964.

OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky aprendizado e desenvolvimento:


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HATWELL, Y. Psychologie Cognitive de La Cécite Precoce. Paris:
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MARIÑO, C.G., FIGUEIREDO, A.S. La educación del niño ciego en la


familia, en los primeros años de vida. Playa: Editorial Pueblo y
Educación, 1998.

MARTÍN, M. B. e BUENO, S.T. Deficiência visual: aspectos


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PIAGET, J. A psicologia da criança. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 1998.

UNESCO e Espanha. Ministério da Educação e Ciência. Declaração de


Salamanca e Linhas de Ação sobre necessidades educativas
especiais. Brasília: Corde, 1994.

VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins


Fontes, 1984.

__________. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,


1989.

__________. Pensamento e linguagem. São Paulo: Livraria Martins


Fontes, 1991.

Seção 3 – Acessibilidade em museus


Página 96
Acesso à Arte e Cultura para pessoa com deficiência visual:
Direito e desejo

Viviane Panelli Sarraf

Introdução - O Direito de Acesso à Arte e Cultura para as Pessoas


com Deficiência Visual

Este texto apresenta e analisa o direito das pessoas com


deficiência visual a terem acesso às manifestações artísticas e
culturais. Este direito vai além da garantia dos direitos humanos
adquiridos, ele entra no campo simbólico48, uma vez que qualquer
pessoa só parte em busca da arte e da cultura se isso for de seu
desejo.
A arte e a cultura não fazem parte do rol de necessidades
básicas e vitais da sociedade, já que ninguém precisa, em termos
fisiológicos, das mesmas para sobreviver. É justamente por essa
razão que as atividades sócio-educativas no âmbito cultural entram
no campo simbólico. Ter acesso às mesmas representa estar incluído
socialmente em esferas que alimentam o espírito, e não o corpo.
Ao longo da história ocidental o acesso à arte e à cultura
integrou as atividades ligadas às elites e aos intelectuais, mas,
na atualidade, os espaços culturais e artísticos invadiram a vida
da população em geral por meio das políticas de acesso,
necessárias à sua legitimação na contemporaneidade.
O direito de participar das manifestações e espaços
artísticos e culturais é garantido em primeira instância pela
Declaração Internacional de Direitos Humanos, publicada em 1948 na
França. Desta Declaração consta o primeiro direito básico
adquirido, que se relaciona ao acesso às atividades aqui
abordadas: “o direito de ir e vir”, isto é, o direito que todos
temos de circular livremente pelos ambientes públicos e acessar os
benefícios provenientes de suas ofertas sociais, quaisquer que
sejam. O segundo direito identificado que se relaciona com a
temática é aquele que afirma que: “... toda pessoa tem o direito
de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir
as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios
que deste resultam” (ONU, 1948).
Utilizando como referência a Declaração Internacional de
Direitos Humanos, é possível afirmar que a defesa do direito
existe há mais de 60 anos, mas o abismo que separa a prática
cotidiana da garantia do direito para as pessoas com deficiência
visual ainda impede que ele seja plenamente exercido.
No que se refere aos direitos das pessoas com deficiência
especificamente, é possível identificar alguns documentos, leis e
normas que defendem o direito de acesso aos benefícios sociais,
que foram redigidos e mobilizaram mudanças ao longo do século XX.
Entre estes está a Declaração de Salamanca, que inspirou o
contemporâneo Movimento de Inclusão Social, com sua afirmação
“nada para nós, sem nós”, legitimando a plena participação da
pessoa com deficiência em tudo que lhe diz respeito: leis,
projetos, programas, políticas, produtos e outros. A citação
abaixo resume o escopo do movimento de Inclusão Social e um de
Página 97
seus marcos.

"Os anos 90 marcam o movimento denominado 'International


Inclusion', com a adoção da filosofia de inclusão social com o
intuito de promover mudanças sociais gerais. Segue-se a
promulgação da Declaração de Salamanca (1994), que provocaria um
grande debate conceitual e metodológico sobre a educação formal
oferecida às pessoas com deficiência." (Nowill e De Masi, 2006 p.
59)

No entanto, a inclusão dessa população na sociedade pode ser


considerada um acontecimento recente. O próprio termo “inclusão”
começou a ser utilizado e defendido na década de 1980, durante a
criação do Movimento de Inclusão Social, nos EUA, com a
participação de representantes do mundo todo, da ONU e da UNESCO,
em 1981, considerado então o “Ano da Pessoa com Deficiência”.
Antes da data citada, o termo utilizado para definir a aproximação
dessa população com a sociedade era “integração”. No conceito de
integração, a maior responsabilidade era atribuída ao
desenvolvimento pessoal e superação de barreiras do indivíduo,
enquanto a sociedade incumbia-se de receber a pessoa para o
convívio, mas sem a preocupação de adaptar os espaços e sistemas
sociais existentes.

"A sociedade, em todas as culturas, atravessou diversas fases no


que se refere às praticas sociais. Ela começou praticando a
exclusão social de pessoas que – por causa das condições atípicas
– não lhe pareciam pertencer à maioria da população. Em seguida,
desenvolveu o atendimento segregado dentro de instituições, passou
para a prática da integração social e recentemente adotou a
filosofia da inclusão social para modificar os sistemas sociais
gerais". (Sassaki, 1997, p. 16)

Atualmente, presenciamos o movimento de Inclusão Social, já


citado, que trouxe muitas melhorias para a vida da pessoa com
deficiência ao desenvolver ações que visam preparar os ambientes,
produtos e serviços que considerem as diferenças e a diversidade.
Dentro do pensamento e conceitos desenvolvidos pela
filosofia da inclusão social, o que alcança maior força e motivo
de militância é a acessibilidade. Esse conceito trabalha com uma
forma de concepção de ambientes, produtos e serviços que
consideram o uso de todos os indivíduos, independente de suas
limitações físicas e sensoriais. O conceito busca a melhoria da
qualidade de vida da população por meio do atendimento às
diferenças dos seres humanos.
No Brasil, desde 1985, existe a Norma Técnica de
acessibilidade da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas)
– NBR 9050, que afirma que a acessibilidade é a possibilidade e
condição de alcance, percepção e entendimento para a utilização
com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário,
equipamento urbano e elementos. A primeira versão dessa norma foi
redigida entre os anos de 1983 e 1985, com a participação de
profissionais que trabalhavam com a questão das deficiências e das
próprias pessoas com deficiência, lideranças do movimento de
inclusão.
Segundo o texto atual da norma citada, advindo de sua última
revisão em 2004, acessível é o espaço, edificação, mobiliário,
Página 98
equipamento urbano ou elemento que possa ser alcançado, acionado,
utilizado e vivenciado por qualquer pessoa, inclusive aquelas com
mobilidade reduzida. O termo acessível implica acessibilidade
física, intelectual, cognitiva e atitudinal.
Portanto, acessibilidade em espaços e ofertas de arte e
cultura significa que as exposições, espaços de convivência,
serviços de informação, programas de formação e todos os demais
serviços básicos e especiais devem estar ao alcance de todos os
indivíduos, perceptíveis a todas as formas de comunicação e com
sua utilização de forma clara, permitindo a autonomia dos
usuários. Esses espaços, para serem acessíveis, portanto, precisam
que seus serviços estejam adequados para serem alcançados,
acionados, utilizados e vivenciados por qualquer pessoa,
independente de sua condição física ou comunicacional.
Mesmo com os direitos humanos adquiridos, com as conquistas
do Movimento Internacional e Nacional de Inclusão Social e com
normas de acessibilidade que oferecem subsídios teóricos para a
viabilização de adequações em espaços culturais e artísticos, o
direito de acessar a arte e a cultura ainda é uma utopia para a
pessoa com deficiência visual. Não podemos deixar de reconhecer e
louvar as iniciativas isoladas de acessibilidade em arte e
cultura, mas essas não configuram uma nova concepção de propostas
artísticas e culturais inclusivas por sua concepção e natureza.
Segundo Nowill e De Masi: “Ao longo da história, constata-se que
muito se fez para o atendimento das necessidades das pessoas com
deficiência, tanto no campo médico, como no educacional e laboral.
No entanto, persiste a questão da exclusão” (Nowill e De Masi,
2006, p. 59)
Na terceira parte do texto são apresentadas as opiniões das
próprias pessoas com deficiência visual sobre seu desejo e direito
de acessar a arte e a cultura, de forma que as constatações
históricas aqui apresentadas podem ser ilustradas pelas falas dos
indivíduos aos quais esse artigo se dedica. Foram convidadas a
contribuir com suas opiniões pessoas de diferentes idades,
formações e interesses para conferir caráter fidedigno da
diversidade entre as pessoas com deficiência visual e semelhanças
no que se refere à importância do acesso à arte e à cultura.

A garantia do Direito à Inclusão Cultural na teoria e na prática

O número de espaços culturais e artísticos no Brasil é


superior a duas mil unidades, segundo o Cadastro Nacional dos
Museus e Centros Culturais do IPHAN – Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, realizado no ano de 2006. É
possível afirmar que a oferta de acessibilidade em espaços
culturais e artísticos do país é quase insignificante, não
chegando a 1% dos estabelecimentos. Esta realidade afasta a
população de pessoas com deficiência visual das instituições
culturais, pois, para a maior parte dessa população, a eliminação
de barreiras arquitetônicas e comunicacionais são imprescindíveis
para o uso dos serviços culturais.
No que diz respeito à legislação específica de acesso à arte
e à cultura no Brasil, é possível constatar que, apesar da
existência de legislações e normas técnicas para áreas como
edificações, transporte público, educação, saúde e trabalho, até
este momento não existe uma política pública para o acesso de
pessoas com deficiência em espaços culturais. O único documento
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oficial existente é a “Instrução Normativa n° 1, de 25 de novembro
de 2003, que dispõe sobre a acessibilidade aos bens culturais
imóveis acautelados em nível federal, e outras categorias,
conforme especifica” – redigida pelo IPHAN. Apesar da existência
do documento e de sua disponibilidade no endereço eletrônico do
órgão em questão, não existem registros, publicações, relatórios
ou mesmo evidências consolidadas das ações já realizadas que
seguem essa normativa. Encontram-se apenas casos isolados de
museus pertencentes ao sistema federal, como o Museu Histórico
Nacional do Rio de Janeiro, em que foram implantadas adequações
físicas, seguindo os conceitos de acessibilidade da NBR 9050,
possíveis por meio de projetos patrocinados por iniciativa
privada.
Em países mais desenvolvidos, como a Inglaterra, Espanha,
Estados Unidos da América e Austrália, existem políticas públicas
de acesso à arte e à cultura. O DDA – Disability Discrimination
Act, legislação inglesa de garantia de respeito e acesso para
pessoas com deficiência, por exemplo, apresenta em seu texto os
parâmetros ideais de acessibilidade em espaços culturais,
considerando os requisitos de locomoção, comunicação e inclusão
social. Dentro das responsabilidades das políticas públicas de
acesso à arte e à cultura, consta a providência de subsídios
financeiros, materiais, recursos humanos e programas de formação
para espaços culturais, com o objetivo de desenvolver programas de
inclusão qualificados para pessoas com deficiência e demais
públicos não habituais.
No âmbito da arte e dos movimentos artísticos simpáticos à
inclusão social podemos citar exemplos de exposições de artistas
que utilizaram e/ou utilizam abordagens sensoriais. Nessas
exposições é possível perceber que o interesse e envolvimento do
público em geral é maior do que o habitual nos casos que
apresentam apenas a comunicação visual. Podemos utilizar como
referência as obras de artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark e
Cildo Meireles; os dois primeiros, expoentes do movimento
Neoconcreto brasileiro, que começou a questionar os suportes
tradicionais das obras de arte e sua interação com o público; após
a realização de experiências exaustivas com composições de
desenhos e pinturas de natureza geométrica que lidavam com a
percepção visual, esses artistas começaram a experimentar suportes
diferenciados e incluir em suas criações questionamentos ligados à
cultura popular brasileira, à diversidade cultural e à
sensibilidade do ser humano. Oiticica desenvolveu trabalhos com
linguagens contemporâneas, como instalações e performances
envolvendo outros indivíduos; propôs os “Penetráveis”, instalações
baseadas em planos de diferentes cores ligadas ao clima tropical
brasileiro; os “Bólides”, objetos táteis, visuais e olfativos com
referências de parcelas materiais da cultura brasileira e os
“Parangolés”, obras de arte para o corpo, feitas a partir de
tecidos ligados às indumentárias de escolas de samba e às
manifestações populares. Estes últimos tinham como proposta que as
pessoas os vestissem e se manifestassem livremente, para que,
então, a obra fosse apresentada da maneira adequada, em movimento.
Lygia Clark também iniciou sua carreira com composições
bidimensionais que brincavam com a percepção visual do espectador.
Após algumas experiências ligadas à psicanálise e terapias
alternativas, começou a criar obras que privilegiavam a
participação do público, como os “Bichos”, esculturas geométricas
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que pressupunham a interação do público na descoberta de suas
formas inusitadas; e o despertar da sensibilidade humana com obras
como “O Eu e o Tu”, macacões emborrachados contendo materiais que
simulavam partes do corpo do homem e da mulher para serem
vivenciados por duplas, proporcionando uma intimidade proibida
entre indivíduos. Posterior à fase de experimentações ligadas ao
corpo humano, Clark iniciou a produção de objetos com caráter
terapêutico – propostas de arte desvinculadas de materiais
convencionais, os “Objetos Relacionais”, confeccionados com
matérias simples e de baixo custo, como sacos plásticos, água,
elásticos, conchas e pedras. Essas propostas tinham como objetivo
proporcionar o autoconhecimento do interlocutor por meio do uso
ilimitado dos mesmos para reflexão e terapia.
Cildo Meireles, artista contemporâneo brasileiro, utiliza,
em suas criações, objetos do cotidiano, com questionamentos em
relação à linguagem artística e à política (com maior presença em
suas criações das décadas de 1970 e 1980). Um de seus trabalhos de
grande destaque é o “Espelho Cego”, uma caixa contendo material
moldável em seu interior, onde as pessoas podem deixar o registro
de suas mãos. Assim como o espelho visual, a imagem está em
constante mutação, pois sempre que exposta pode ser manipulada
pelo público.
Nas exposições recentes de trabalhos dos artistas, foi
possível presenciar um crescimento significativo no número de
visitantes em museus como a Pinacoteca do Estado de São Paulo:
“Lygia Clark”, 2006 e “Hélio Oiticica”, 2005; Museu de Arte
Moderna de São Paulo: “Lygia Clark”, 2000 e na “Bienal de Artes de
São Paulo”: edições de número 24, em 1998, e 25, em 2002, evento
artístico de relevância internacional. A possibilidade de
interação sensorial com a arte gerou mídia espontânea para as
exposições que atraíram visitantes “de primeira viagem” aos
museus. O volume e diversidade de públicos proporcionaram às
instituições experiências que, em alguns casos, foram utilizadas
em outras propostas interativas e inclusivas. Exemplo disso foi a
exposição “Poética da Percepção”, do curador Paulo Herkenhoff,
realizada entre os anos de 2007 e 2008, que reuniu, no Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro e no Espaço Cultural VIVO de São
Paulo, obras de arte brasileiras dos séculos XIX ao XXI, que
apresentam relação sensorial em sua natureza. Entre as obras se
encontravam propostas de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Cildo
Meireles, entre outros. Outro exemplo foi a exposição “Arte para
Crianças” realizada em 2009 no SESC-Pompéia em São Paulo, onde
artistas plásticos contemporâneos, como Amilcar de Castro, Yoko
Ono e Cildo Meireles, foram convidados a criar instalações e obras
para a interação das crianças, o que culminou em propostas
sensoriais.
Os exemplos provenientes das exposições e criações de
artistas que lidaram com os sentidos e com as diferenças sociais e
culturais mostram que a mediação e o acolhimento nos espaços
culturais são mais eficazes e atingem seus objetivos nas propostas
de relacionamento sensível com os visitantes. O uso excessivo de
recursos visuais e das informações intelectualizadas já vem sendo
questionado desde a década de 1960, tanto pelo pensamento de Guy
Debord, que influenciou o movimento estudantil ligado à revolução
cultural, quanto pelos artistas contemporâneos, influenciados
pelas criações e conceitos de Marcel Duchamp.
Debord, em seu texto “A Sociedade do Espetáculo”, alertou
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que: “... a crítica que atinge a verdade do espetáculo o descobre
como a negação visível da vida; como a negação da vida se tornou
visível” (DEBORD, 1967, p. 16, grifo do autor).
Em oposição ao hipnotismo próprio da cultura do espetáculo,
em 1968, na França, os estudantes iniciaram uma revolução
cultural, que também contribuiu para uma mudança na postura dos
espaços culturais. Os revolucionários ambicionavam uma
apresentação dos conteúdos artísticos e culturais que respondesse
às necessidades da obra e do público, com modos de representação
mais didáticos do que os ligados apenas à contemplação da obra de
arte.

"Durante aquele período de manifestações, também os museus se


converteram em espaços de contestação. O que se ambicionava nesse
movimento, no tocante aos museus, era que as instituições
museológicas deixassem de ser apenas depositárias de bens
artísticos e culturais, passivas e elitizadas, bastião da
tradição, para se tornarem instrumentos ativos e democráticos do
conhecimento humano." (Resende, 2002, p. 30)

Nesse sentido, artistas sintonizados com o espírito de época


começaram a explorar a “crítica institucional” em suas propostas
artísticas, inspiradas principalmente pelos ready-mades de
Duchamp49. A crítica a noções redutivas institucionais de “espaço
de arte” foi anteriormente explorada pelas vanguardas históricas
e, neste movimento, a partir da década de 60, resgatadas com maior
coesão e efeito. O centro dessa crítica institucional era o
conceito de “cubo-branco”, que representava um lugar imaculado,
livre das interferências sociais, ideal à apreciação da obra de
arte como objeto sagrado.
Essa mesma crítica institucional, potencializada nos anos
60, continuou presente nos questionamentos da arte contemporânea
que, no entanto, ampliou as fronteiras do “cubo-branco”, trazendo
questões como negação do belo, convívio com as diferenças,
diversidade cultural, linguagens apropriadas de outras áreas e
apelo sensorial das obras de arte como subversão do espaço
cultural, bem como uma ampliação das noções de lugar, uso e função
da arte. Com base nesses conceitos da arte contemporânea, as ações
culturais inclusivas começaram a se desenvolver como crítica
institucional, deixando de lado a exclusividade da militância por
direitos constituídos própria dos movimentos sociais. A principal
mudança vem ocorrendo nas propostas inovadoras de mediação
cultural, ainda em desenvolvimento, voltadas ao respeito à
diferença e às diferentes formas de comunicação e percepção.
Analisando as informações contidas nessa parte do texto, é
possível afirmar que o direito de acesso à arte e cultura para
pessoas com deficiência, além de ser uma questão ética em busca da
cidadania, tem embasamento em leis e normas nacionais e
internacionais. A natureza da arte e da cultura institucionalizada
também mostra que a inclusão vem conquistando espaço em suas
propostas e linguagens. Assim, é possível afirmar que as pessoas
com deficiência visual representam hoje um desafio para essa área,
uma vez que já tomam parte das ofertas culturais existentes, mas
ainda precisam de mudanças físicas e conceituais para exercer seu
direito de fato.

O desejo das pessoas com deficiência visual em fruir a arte e


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usufruir as manifestações e patrimônio cultural

Nesta parte do texto apresentarei e analisarei as questões


pertinentes ao desejo de acesso à arte e à cultura das pessoas com
deficiência visual. Para que essa análise seja realizada de forma
a corresponder aos verdadeiros anseios dessa população, convidei
pessoas com deficiência visual para prestarem depoimentos sobre a
importância da arte de da cultura em suas vidas. O convite foi
realizado de forma aleatória, a pessoas com deficiência visual com
as quais mantenho relações de amizade e/ou profissional. As
pessoas consultadas são diferentes no que se refere à aquisição da
deficiência visual, ocupação e classe social, o que, no entanto,
não altera a intenção da coleta de depoimentos: comprovar que a
arte e a cultura são opções de lazer almejadas por essa população.
A intenção de apresentar os relatos reais foi comprovar que
existe desejo de participar da vida artística e cultural da
comunidade por parte das pessoas com deficiência, o que geralmente
causa dúvida para quem não convive cotidianamente com essa
população. Pode-se notar, por meio desses depoimentos, que as
afirmações e constatações históricas sobre as conquistas do
Movimento de Inclusão Social constituem o repertório dos
consultados que de alguma forma integraram e integram esse
movimento e a filosofia do mesmo, seja em sua criação, na década
de 1980 – como Dorina de Gouvêa Nowill – ou em sua fase mais atual
– como MAQ, Marco Antonio Queiroz e Antônio Carlos Grandi, dois
representativos militantes da inclusão.
O acesso à arte e cultura, como já afirmado, não é uma
necessidade, e sim um desejo, que está ligado ao campo simbólico.
Da mesma forma que as pessoas ditas normais têm o direito de
experimentar e selecionar suas preferências de lazer, as pessoas
com deficiência visual também devem ter esse direito. Por mais que
as ofertas artísticas e culturais se apresentem prioritariamente
visuais, o acesso às mesmas pode ser proporcionado de diferentes
maneiras: descrições, leituras alternativas e sensoriais,
mediações alternativas, acesso tátil, auditivo, olfativo e
gustativo, entre outros.
Além de falar sobre as pessoas com deficiência, é necessário
esclarecer que o papel dos espaços culturais em incentivar esse
direito e desejo é fundamental. O incentivo só é possível por meio
de novas e diversificadas ofertas culturais acessíveis, que
possibilitem a essas pessoas experimentar situações culturais
inusitadas. É por meio do hábito que o indivíduo desenvolve a
apreciação e gosto por atividades de lazer, mas essas atividades
precisam estar acessíveis às necessidades da deficiência visual.
A seguir apresentarei os depoimentos com os nomes dos
colaboradores e, posteriormente, realizarei uma análise,
destacando alguns pontos relevantes apresentados.

"Se é importante possibilitar o acesso às manifestações culturais,


artísticas, esportivas a todas as camadas da sociedade, é
imprescindível que este acesso seja propiciado aos deficientes
visuais. Faço esta afirmação com a certeza de ter experimentado as
duas situações. Foi após ter adquirido a deficiência visual que
passei a valorizar muito mais a oportunidade de acesso ao mundo
das artes e do conhecimento. A ausência de um dos sentidos aguça
os outros; no caso da deficiência visual, o tato, a audição, o
olfato. Uma visita a um jardim sensorial, por exemplo, oferece uma
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sensação muito mais valiosa do que a feita na condição de vidente.
O mesmo pode-se afirmar com relação a uma visita a um museu cujo
acervo já tenha passado pelas adaptações necessárias a fim de
tornar-se acessível. Assistir a um concerto de música clássica, a
um espetáculo teatral, a um show, são ocasiões que renovam o
espírito e deixam lembranças indeléveis!!" (Marieta Epel Boimel,
2009)

"A cultura é indispensável na vida de qualquer cidadão. A cultura


é o corolário das atividades que dão ao homem a oportunidade de
apreciar o belo e a arte.
O homem, através da cultura, cresce, desenvolve-se e torna-se mais
aberto ao bem, à justiça e ao conhecimento de si mesmo e de seu
potencial. Com a arte, eu compreendo a grandeza inerente às obras
da criação, à verdade da justiça e à presença do amor." (Dorina de
Gouvêa Nowill, 2009)

"Somos um casal de pessoas cegas e estamos experimentando


sensações novas ao termos a oportunidade de acesso a um curso de
fotografia oferecido pelo MAM, “Imagem e Percepção”. Eu,
particularmente, fui para esse curso para acompanhar meu marido,
que gosta muito de tirar fotografia. Entretanto, quando conheci a
proposta do curso, fiquei entusiasmada. É maravilhoso uma pessoa
cega construir uma imagem por meio de suas percepções e poder
registrar essa imagem. Tivemos, também, a oportunidade de
assistirmos à ópera “Cavalleria Rusticana” com áudiodescrição.
Somente desta forma uma pessoa cega pode entender uma ópera. Eu
tive o privilégio de participar de algumas iniciativas de
acessibilidade em museus, dando treinamento para profissionais que
trabalham em ações educativas dentro de espaços culturais.
Considero fundamental que a arte e a Cultura estejam ao alcance de
todos e também das pessoas com deficiência visual, que têm outras
percepções que não a visão, para abstrair o que um artista quer
transmitir com sua obra." (Maria Regina Lopes e Adeildo Silva,
2009)

"Meu nome é Regina e perdi a visão aos sete anos de idade em


consequência de um glaucoma congênito. Desde pequena tenho o
hábito de apoiar o rosto nas mãos quando estou preocupada ou
quando preciso refletir sobre alguma coisa. Uma amiga, observando
essa minha atitude, dizia sempre que eu a fazia lembrar a
escultura "O Pensador", de Auguste Rodin. Isso despertou em mim um
desejo enorme de conhecer a escultura. Há cerca de 10 anos, tive
essa oportunidade, e aquele foi para mim um momento emocionante.
Poder tocar aquela obra de Arte tão linda fez até com que eu
achasse que eu era privilegiada por ser cega, pois as pessoas que
enxergam podiam apenas olhá-la. O relato desse episódio de minha
vida tem o único objetivo de enfatizar que o acesso a toda e
qualquer manifestação artística ou a toda e qualquer forma de
lazer é um direito de todas as pessoas deficientes, pois, antes de
sermos deficientes, somos pessoas e todos sabem que a Arte e o
lazer são partes integrantes da vida de todo ser humano desde a
pré-História." (Regina Fátima Caldeira Oliveira, 2009)

"Como frequentador de teatros, cinemas, museus e exposições, mesmo


depois de perder minha visão, há dez anos, gostaria de ter meus
direitos à acessibilidade assegurados através do que já é
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regulamentado pela Lei de Acessibilidade (5296/2004), uma vez que,
como cidadão, eleitor, contribuinte consumidor de bens e serviços,
tenho direito ao acesso a cultura e entretenimento como qualquer
outra pessoa. O acesso à cultura é indispensável para a formação
do cidadão pleno e consciente. Através de recursos de
audiodescrição em cinemas e teatros, audioguias e placas de
identificação em braile em museus e exposições, sinalizações e
demais recursos de acessibilidade, é possível que se atendam os
deficientes visuais. Embora sejam escassas, iniciativas louváveis
já estão ocorrendo, mas ainda há muito para ser feito." (Antonio
Carlos Grandi, 2009)

"Minha primeira experiência tátil em museus após ter adquirido


cegueira em 1978, com 21 anos de idade, foi no museu da Pinacoteca
de São Paulo. Quando entrei na Pinacoteca de São Paulo, no final
do ano de 2003, com minha esposa, filho e sogro, conduzido pelo
artista plástico Alfonso Ballestero e rodeado por Amanda Tojal,
fui pego de surpresa em meio de tanta emoção. A primeira escultura
que toquei foi de Moema... Abrindo os braços e tocando, ou
tentando tocar, em tudo, para "ver" além de pedaços, soube então
que era Moema, morta, à beira do mar, onde a água e areia tinham
quase o mesmo nível, e minha emoção foi me tomando, um arrepio
subiu-me pela coluna, um nó se fez na garganta, senti um sei lá o
que de felicidade: a arte da escultura estava novamente possível
em minha vida! O mesmo aconteceu, cinco anos depois, com o cinema.
A audiodescrição, feita por Graciela Pozzobon, que é a descrição
das imagens das telas de cinema e televisão, deu-me de volta outra
arte. Só sei que estou vivendo o futuro que muitos cegos
imaginaram. Ainda pouco, ainda mínimo, mas que é o início da
oportunidade igual para todos, a verdadeira razão de ser do
desenho universal, a acessibilidade pensada, trabalhada,
desenvolvida por pessoas que estão além de todas as dimensões que
são, em si, a própria arte. A arte está em nossas mãos!" (Marco
Antonio de Queiroz – MAQ, 2009)

Analisando os depoimentos apresentados pelos sete


colaboradores que aceitaram ceder um relato de suas experiências e
opiniões é possível destacar alguns pontos comuns:
1. Todos os colaboradores acreditam que o acesso à arte e à
cultura faz parte da vida de todos os indivíduos, independente de
ter ou não deficiência.
Etsa constatação é possível na leitura e interpretação da
fala de todos os consultados, na citação de diferentes modalidades
artísticas e culturais, no conhecimento de diferentes linguagens e
no relato de experiências de produção e apreciação.
2. Ter acesso à arte e à cultura faz parte de seu direito de
cidadão e auxilia na formação do ser humano.
Da mesma forma, por meio de diferentes afirmações e
constatações, o grupo apresentou que o acesso à arte e cultura é
essencial no exercício da cidadania e que impulsiona o
desenvolvimento pessoal e social.
3. Não é muito comum encontrar iniciativas/espaços de arte e
cultura que proporcionem a inclusão de pessoas com deficiência
visual.
Alguns dos depoentes citaram nomes de espaços e
instituições, outros citaram atividades, mas tanto na afirmação
quanto na exemplificação não encontramos, em nenhum momento, uma
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passagem que constate que as ofertas culturais e artísticas em
geral são acessíveis.
4. Existem muitas providencias a serem tomadas por parte dos
espaços de arte e cultura para que estejam devidamente acessíveis
às pessoas com deficiência visual.
Em algumas passagens de forma contundente, em outras de
forma mais velada, é possível perceber que as pessoas com
deficiência visual consultadas concordam que o conjunto brasileiro
de espaços de arte e cultura ainda não se encontra acessível às
necessidades das pessoas com deficiência visual.
No que diz respeito ao desejo de acesso à arte e à cultura,
em âmbito particular, algumas questões relevantes para a reflexão
proposta ocorreram isoladamente, em um ou mais depoimentos. A
seguir, essas questões destacadas e comentadas:
No depoimento de Regina Fátima Caldeira Oliveira, ela conta
que se interessou em conhecer a escultura “O Pensador”, de Rodin,
por conta de uma amiga que sempre se referia à mesma, ao comparar
seu gesto de preocupação.
Mesmo sem a visão ou parte dela, os referenciais de arte e
cultura estão presentes de diferentes maneiras no cotidiano dessa
população. De tanto ouvir falar da obra de Rodin, Regina ansiou
por conhecê-la. Em determinada oportunidade, pôde tocá-la, o que
julgou um privilégio diante das pessoas que só podem vê-la.
No depoimento de Maria Regina Lopes, ela afirma que
ingressou no curso de fotografia para acompanhar seu marido, que
já apreciava a prática, mas que ficou fascinada ao perceber a
possibilidade de criação de imagens bidimensionais mesmo com a
deficiência visual.
Podemos interpretar esse fato da seguinte maneira: a
colaboradora descobriu por meio da prática artística que é
possível criar imagens utilizando diferentes percepções. O que, no
entanto, é pouco oferecido às pessoas com deficiência visual, por
conta do estigma da ausência de visão.
No depoimento de Dorina de Gouvêa Nowill, a colaboradora
constata que, por meio do conhecimento da arte, desenvolve sua
capacidade de apreciação do belo, seu senso de justiça e
sentimento de amor.
A ação de apreciar e refletir sobre obras de arte e
manifestações culturais tem o potencial de criar relações e
realizar conclusões de fatos da vida real, uma vez que a arte
mimetiza a realidade com diferentes objetivos de acordo com os
movimentos artísticos e com o espírito de época.
Marco Antônio Queiroz e Marieta Boimel relatam com
entusiasmo o prazer em ter acesso à arte e à cultura em diferentes
oportunidades, mais ligadas aos demais sentidos da percepção
(audição, olfato, tato) e aquelas onde a visão é muito importante,
mas pôde ser substituída por outras formas de comunicação e
mediação.
No caso de Marco Antônio, ele relata a felicidade de retomar
uma atividade muito apreciada enquanto tinha a visão. Já no
depoimento de Marieta, a mesma afirma que, em alguns casos, a
ausência de visão torna a atividade mais prazerosa, pela
possibilidade de perceber as manifestações artísticas, culturais e
naturais com os demais sentidos, geralmente pouco utilizados pelo
grande apelo visual da comunicação contemporânea.
No depoimento de Antônio Carlos Grandi, a questão da luta
pelo direito de integrar a vida cultural da comunidade é
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enfatizada pela politização do colaborador.
A consciência e conhecimento de seus direitos e de sua
importância como cidadão no que diz respeito ao cumprimento de
seus deveres civis leva-o a mostrar, de forma direta, que existem
muitas adequações a serem realizadas para que a inclusão cultural
da pessoa com deficiência visual se torne uma realidade, mas
também constata que existem iniciativas que realizam ações
válidas.
A análise dos aspectos gerais e particulares dos depoimentos
das pessoas com deficiência que se propuseram a contribuir com
esse texto possibilita afirmar que a arte e a cultura são
fundamentais em suas vidas. O desejo pelo acesso à informação,
conhecimento e criação artística/cultural é contundente, ele vai
além da consciência do direito adquirido por diferentes
declarações e leis.

Conclusão - Desejo e Direito aliados em busca do exercício da


cidadania e da construção de uma sociedade mais justa

Como já afirmado em outras partes deste texto, o acesso à


arte e cultura integra o campo simbólico do ser humano, uma vez
que proporciona prazer, satisfação e realização pessoal. O
exercício do direito de acesso a esses benefícios sociais tem como
possibilidade democratizar os resultados positivos, estendendo-os
à parte da população que ainda não se aventurou ou não teve
oportunidade de inclusão em iniciativas artísticas e sociais. É
possível afirmar que o desejo pela arte e cultura é inerente ao
indivíduo e, por essa razão, faz-se necessário garantir o direito
de acesso às mesmas. No entanto, no Brasil, esse direito ainda não
é garantido por lei para as pessoas com deficiência visual.
Podemos afirmar que a consciência por parte dos produtores,
gestores e agentes de arte e cultura caminha para a consideração
da inclusão cultural, mas ainda não promove mudanças substanciais
no cenário em questão.
As políticas públicas e leis têm a função de garantir os
direitos básicos da população. Segundo a análise realizada nesse
texto, o desejo de acesso à arte também pode ser interpretado como
um direito básico. Não poder realizar um desejo inerente à
natureza humana é algo muito frustrante e pode acarretar prejuízos
no desenvolvimento pessoal, social e na autoestima.
O estigma da deficiência visual impõe que as atividades que
envolvem a comunicação visual, como criação artística, exposições
de arte, científicas, históricas, cinema, teatro, ópera,
espetáculos de dança e manifestações que utilizam linguagens
híbridas, são proibidas às pessoas que não possuem a visão. A
imagem social estereotipada da pessoa com deficiência visual
restringe seu contato com arte e cultura ao que pode ser ouvido,
tocado, cheirado e provado; no entanto, como colocado no início
desse texto, todo ser humano tem o direito de ir e vir e de
participar da vida cultural da comunidade. Para que estes direitos
e desejos sejam exercidos são necessárias mudanças na organização
convencional das atividades em questão, o que atualmente é
plenamente possível por meio das novas tecnologias, avanços de
pesquisas acadêmicas na área e, principalmente, pelas conquistas e
sensibilização social conquistado pelo Movimento de Inclusão
Social.
A aplicação do conceito de acessibilidade a produtos,
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serviços, espaços e à criação artística e cultural vem sendo
colocada em prática e recebendo legitimação social por parte não
apenas do seu público beneficiário, as pessoas com deficiência,
mas também de todos aqueles que desejam vivenciar a cultura de uma
maneira diferente e inclusiva, menos elitizada e intelectualizada.
Além de beneficiar as pessoas com problemas de visão, idosos,
crianças em fase de alfabetização, familiares e amigos das pessoas
com deficiência visual, as adequações para inclusão proporcionam
aos indivíduos esgotados pelo apelo da comunicação visual a
possibilidade de perceber a arte e a cultura com seus outros
sentidos.

notas:
48 Quando afirmo que o desejo pela inclusão cultural entra
no campo simbólico do ser humano, refiro-me à esfera daquilo que
não é essencial em termos físicos de sobrevivência. Estar incluído
em ofertas e espaços culturais representa igualdade com os demais
indivíduos no campo social de status, dentro de um hall de
atividades que apresentam, ainda, caráter excludente e exclusivo.
Para esse uso, tenho como referência o autor Gilbert Durand que,
em seu livro “A Imaginação Simbólica”, trata com profundidade a
questão.
49 Esses objetos utilitários, transfigurados de seus
cotidianos e apresentados como obras de arte a partir de 1913 em
espaços de arte consagrados, como Salões e Museus de Arte, estão
na base da crítica institucional.

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Disponível em:
<www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>: Acesso em
maio de 2006.

ABNT. NBR 9050 -Norma Brasileira de Acessibilidade. Disponível


em: http://www.acessibilidade.org.br. Acesso maio de 2006.

Acesso tátil: uma introdução à questão da acessibilidade estética


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para o público deficiente visual nos museus50

Filipe Herkenhoff Carijó


Juliana de Moura Quaresma Magalhães
Maria Clara de Almeida

Introdução

A ideia de que os deficientes devem dispor do mesmo acesso


que possuem todos os cidadãos às diversas esferas da vida social
torna-se mais forte a cada dia. Em particular, é hoje ponto
pacífico que os deficientes devem possuir acesso à arte e que os
séculos de exclusão que fizeram de museus e galerias de arte
locais pouco convidativos a esse público é um grave equívoco e uma
situação a ser revertida o quanto antes51. Munidos desta
convicção, muitos museus e centros culturais lançam-se num
esforço, inédito em sua história, de trazer para dentro de suas
portas um tipo de visitante novo: o deficiente visual52. Trata-se,
de fato, de um movimento inédito, uma vez que, salvo raras
exceções (entre as quais podemos citar algumas obras de arte
contemporânea, como as de Lygia Clark e Hélio Oiticica), as artes
plásticas foram tradicionalmente concebidas como pertencentes
exclusivamente ao domínio visual. Entretanto, apesar do insight
que assaltou os museus nas últimas décadas, a inclusão de pessoas
com deficiência visual nesses espaços não se deu de maneira
imediata e sem dificuldades. Muito pelo contrário, até hoje são
frequentes as discussões sobre como implementá-la53, e persistem
obstáculos significativos. No Brasil, os museus que possuem
programas de acessibilidade são poucos e, mesmo neles, as
propostas encontram-se em estado incipiente.
Podemos dizer com segurança que as barreiras ao acolhimento
de pessoas com deficiência visual, dentre aquelas que se interpõem
à inclusão, em museus, dos deficientes em geral, são as que exigem
mais inventividade para serem contornadas. Afinal, receber pessoas
que apresentam perda parcial ou total do sentido visual requer não
somente uma reorganização do espaço físico do museu – algo já
custoso – mas, o que é um desafio ainda maior, requer também a
invenção de estratégias que viabilizem a apreciação, por pessoas
sem visão, de obras de artes plásticas e visuais. Fornecer acesso
a obras tão visuais quanto pinturas e esculturas é uma tarefa para
a qual não existe padrão ou caminho pré-definido. Não está claro o
que se deve fazer para dar acesso, através do tato e de outros
sentidos, a um acervo que sempre se pretendeu e foi visual.
Fazê-lo de uma maneira que desperte o interesse de todos os
públicos, e não apenas dos deficientes visuais, é algo ainda mais
difícil; trata-se, porém, de uma meta que caracteriza o horizonte
de uma inclusão efetiva.
Neste capítulo, buscamos introduzir o leitor à questão do
acesso aos museus através de uma discussão sobre os próprios
objetivos das iniciativas inclusivas atualmente em curso no
Brasil54, sobre seus métodos, estratégias, pressupostos e sobre o
valor que, implícita ou explicitamente, atribuem às modalidades
sensoriais não visuais, notadamente ao tato. Buscamos mostrar que
a concepção que o senso comum possui da modalidade tátil pode em
muito beneficiar-se de uma discussão sobre o seu funcionamento e
sobre sua dimensão estética potencial.
Em linhas gerais, a discussão sobre a acessibilidade de
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museus para o público deve atravessar dois níveis diferentes: o
acesso ao espaço físico e o acesso às obras. Estes dois problemas
são distintos e devem ser tratados separadamente. O acesso ao
espaço físico refere-se à necessidade de se criar um ambiente
transitável, que permita a locomoção da pessoa cega com o máximo
de autonomia e segurança possível. Isto pode ser alcançado através
da remoção de obstáculos, da criação de mapas táteis, da
instalação de piso tátil, de indicações em Braille, entre outros.
Em 2004, a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas)
publicou a NBR 9050, que consiste num conjunto de normas gerais de
acessibilidade a serem seguidas pelos espaços de exposição. Apesar
do alto custo desta reestruturação espacial e de todas as
dificuldades envolvidas nas políticas institucionais de cada
museu, podemos dizer que o acesso ao espaço é um problema
conceitualmente bem resolvido. Afinal, ainda que a implementação
das normas de acessibilidade ao espaço seja difícil, as normas
estão disponíveis. Isso não é sem motivo, já que, no que diz
respeito ao acesso ao espaço, está relativamente claro o que
precisa ser feito, mesmo que seja difícil realizá-lo. Em
compensação, nenhuma norma foi criada para estabelecer critérios
de disponibilização das obras de arte ao público de cegos55. Esta
ausência é, no fundo, a expressão do fato de que ninguém sabe ao
certo o que fazer desta face do problema. Assim, cada museu se vê
encarregado de criar suas próprias estratégias de disponibilização
do acervo, ora permitindo que se toquem as obras originais, ora
criando adaptações acessíveis ao tato.
Por se tratar de um campo pouco explorado, tomamos como
foco para nossa discussão o contato com as obras de arte por cegos
e deficientes visuais, elegendo como recorte sua fruição tátil.
Tal escolha se deve principalmente ao fato das principais
estratégias de acessibilidade para esse público atualmente
existentes no Brasil serem táteis. Como veremos, a promoção de
acesso às obras, que, afinal de contas, constituem o objetivo
principal da visita ao museu de arte, é povoada de controvérsias e
indefinições que estão longe de serem resolvidas.

A Proibição do Toque

Um eixo fundamental envolvido nas controvérsias que povoam o


campo da acessibilidade a museus para deficientes visuais é o tabu
relativo ao toque nas peças, o qual é rotineiramente concebido
como danificador. Através de uma análise mais minuciosa,
entretanto, é possível perceber que a aparente incompatibilidade
das obras de arte com o toque está calcada não somente na
possibilidade de dano, mas também em estigmas relativos ao tato e
ao cego.
A presença de tais estigmas fica clara nos argumentos da
historiadora da arte Fiona Candlin (2004), que busca
desnaturalizar a noção de toque como produtor de dano, trazendo à
cena outras possibilidades. No caso em que aquele toca é alguém
considerado “importante”, o toque agrega valor ao objeto tocado,
sobretudo se forem deixadas marcas. Já no caso dos curadores, que
têm intenso contato com as obras, muitas vezes sem luvas, a
possibilidade de danificação não é nem ao menos cogitada, como se
o toque destes experts fosse neutro.
O status do toque do grande público, por outro lado, é visto
como radicalmente diferente graças ao sentido pejorativo que lhe é
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historicamente atribuído por curadores e artistas plásticos, que o
concebem como algo que trará sujeira e danos. Esta concepção é, no
fundo, efeito da constituição de um saber e de um toque ingênuo,
em oposição a um saber e a um toque especialista, ou da
constituição de um toque danificador em contraponto a um toque
atribuidor de valor. Em alguns casos, a resistência chega a se
mostrar desproporcional aos danos reais que a exploração tátil
continuada poderia provocar, como é o caso das peças feitas de
materiais resistentes e que não se desgastam, além daquelas que,
com a higienização das mãos antes do toque, não se danificam.
O sucesso pedagógico do ritual de visita a um museu depende
da posse de certa capacidade cultural, a qual pode ser
identificada pela maior escolaridade, que possibilitaria a
decodificação dos significados do museu. Tal escolaridade, é
claro, está intimamente relacionada a uma classe social mais
elitizada. Assim, o museu até hoje permanece como uma instituição
voltada a poucos, um espaço de conservação. Hetherington (2000)
afirma que ocorre nos museus uma primazia dos objetos sobre os
sujeitos, daí ele ser concebido como um lugar de olhar, um lugar
de não tocar.
A ideia de se expandir o acesso aos museus e galerias de
arte a um público mais amplo gera duas posições (Barr, 2005). De
um lado, estão aqueles que defendem que tais instituições devem
atentar ao cumprimento de um acesso mais amplo e criar políticas
sociais de inclusão. De outro, os que consideram que os esforços
em tornar a visita a museus mais interessante para um público mais
amplo acabam decidindo diminuir o nível de dificuldade de ideias
complexas, promovendo uma simplificação exagerada. Para estes, a
arte seria intrinsecamente destinada a um círculo restrito.
Nesse contexto, o público deficiente visual enfrenta uma
situação bastante crítica no que diz respeito a seu acesso
estético aos museus, já que a cegueira tem sido historicamente
associada à incapacidade e mesmo à ignorância, em contraponto ao
museu, tido como instituição erudita e formulada para o usufruto
do público vidente.
Essa associação entre cegueira e ignorância tem suas raízes
no que Belarmino (2005) denomina paradigma visuocêntrico: a
identificação do conhecimento com a visão, sendo os demais
sentidos desqualificados enquanto agentes no processo cognitivo.
Este projeto, de acordo com Humphrey (1994), pode ser encontrado
inclusive em Platão, já que este faria uma clara distinção entre
os sentidos superiores, a visão e a audição, e os inferiores, o
olfato, o paladar e o tato, sendo os primeiros assim categorizados
devido à sua capacidade de suscitar conhecimentos racionais.
Charles Feitosa (2004) argumenta que essa hierarquia dos sentidos
é o motivo pelo qual as obras de arte são feitas para a audição e
a visão.
Para Candlin (2006), tal hierarquia pode também ser
encontrada nos argumentos de historiadores da arte do séc. XX,
como Erwin Panofsky, Bernard Berenson e Alois Riegl, para os quais
o tato não seria um sentido adequado para a fruição das obras de
arte por ser um modo mais primitivo, imediato ou intuitivo,
“carnal” (por ser proximal) e não intelectual, de perceber o mundo
que a visão. Em contraposição, a arte estaria vinculada à
transcendência do corpo, ao sublime e à racionalidade.
Assim, realizando uma análise crítica da proibição ao toque
no âmbito dos museus, fica claro que uma iniciativa de
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acessibilidade que sublinhe apenas o caráter danificador do toque
pode acabar por pecar em promover uma inclusão efetiva ao
fundamentar-se em preconceitos e estigmas, muitas vezes sem se dar
conta disto.

Informação ou experiência estética?

Para que possamos proceder a uma avaliação criteriosa das


estratégias inclusivas, devemos, antes de mais nada, conhecer
melhor algumas nuances do problema. É preciso distinguir os
objetivos pretendidos pelas diferentes formas de se promover
acesso. Afinal, de acordo com a forma como disponibilizamos obras
para a apreciação tátil podemos atingir diferentes resultados. Uma
primeira estratégia é priorizar a informação, valorizando o
aspecto pedagógico da experiência com a arte. Em abordagens que se
propõem a perseguir tal objetivo, são oferecidos ao público
deficiente visual, através de audioguias ou de textos em Braille,
informações sobre a história da arte, sobre determinado período ou
movimento ou sobre a vida e obra do artista em questão.
Descreve-se verbalmente a obra, expõe-se o contexto histórico, e
assim por diante. Tudo isso concorre para produzir um visitante
mais bem informado, melhor conhecedor da arte após a visita do que
era antes dela. Mas, mesmo reconhecendo que a informação sobre
arte é importante – saber as condições em que se criou certa obra,
conhecer seu significado e sua importância na história da arte,
ler ou ouvir sobre seu conteúdo –, é preciso também reconhecer que
receber informação sobre uma obra não equivale a contemplá-la.
Afinal, a experiência estética de uma obra de arte é algo que não
se reduz à aquisição de informação. Assim, numa política
diferente, pode-se tomar como objetivo a promoção de experiências
estéticas por meio do contato direto com as obras. Tal orientação
preocupa-se menos com o conhecimento formal que o público vai
adquirir sobre as obras, movimentos e artistas, e mais com a
emoção estética que a experiência com as obras pode despertar.
Entretanto, embora a oposição informação x estética56
pareça clara, nem sempre os museus com programas de acessibilidade
têm noção da diferença entre os efeitos produzidos por uma e outra
forma de acesso. Não estamos dizendo que é preciso optar
exclusivamente pela informação ou pela estética, mas sim que é
muito problemático confundi-las, tomando-as como se, no fundo,
fossem a mesma coisa. Não é que estética e informação estejam
necessariamente opostas. É possível, sem dúvida, provocar
experiências estéticas através de uma boa descrição verbal;
inversamente, o contato sensorial com uma obra não necessariamente
dá lugar a experiências estéticas. Entretanto, parece-nos claro
que um programa inclusivo com propósitos estéticos é, em essência,
diferente de um programa com propósitos informativos. Uma confusão
entre essas duas dimensões leva muitos museus a se acreditarem
perfeitamente acessíveis ao público deficiente visual quando, na
verdade, sua proposta de inclusão alcança somente o nível da
informação. Ora, a experiência estética é objetivo essencial de
qualquer museu; deve estar presente, portanto, também naquilo que
os museus oferecem aos cegos. Isto é especialmente verdadeiro para
os museus de arte, mas também é válido para outros. Um museu de
ciências onde não se fizesse nada além de fornecer informações ao
visitante poderia ser perfeitamente substituído por um livro
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igualmente informativo.

O conceito de experiência estética

De que estética falamos aqui? Afinal, o que se entende por


experiência estética tátil? Quando tocamos neste ponto, corremos o
risco de cair em um campo de imprecisões, dadas as diversas formas
de se entender o termo estética. O senso comum muitas vezes
considera que a principal característica da experiência estética
seja o sentimento do belo. De acordo com essa perspectiva, uma
verdadeira obra de arte é aquela que desperta sensações de beleza,
harmonia e perfeição no espectador. Esta forma tradicional de
entender a experiência estética parece-nos limitada, pois não é
difícil citar exemplos de obras de arte cuja principal
característica é a produção de estranheza, de angústia ou mesmo da
própria feiura. Assim, quando falamos de experiência estética, não
estamos nos restringindo à experiência do belo.
Para explicarmos melhor o que entendemos por experiência
estética, recorreremos às ideias de John Dewey (2005). Este autor
busca mostrar que a arte não deve estar sobre um pedestal,
afastada da experiência cotidiana. A arte não é isolável das
condições humanas sob as quais foi trazida à existência e nem das
consequências que ela gera na experiência vivida. Assim, o
conceito de experiência estética não aponta para nenhuma
transcendência, nem exige do sujeito uma forma de preparação
especial, lentamente trabalhada na academia de arte. Ao contrário,
Dewey faz notar que, na vida ordinária, vivemos situações comuns
que possuem caráter estético: tempestades, viagens ou a degustação
de um prato saboroso. A experiência estética gerada por uma obra
de arte nada mais é do que uma forma mais intensa desta
experiência estética primária, presente na vida cotidiana. É uma
experiência destacada, marcante e com caráter de completude (cf.
Dewey, 2005).
É a partir dessa ideia de experiência estética que
defendemos a possibilidade e a necessidade de uma estética tátil.
Afinal, é certo que, em nossa experiência comum, nos deparamos com
sentimentos estéticos ocorridos no domínio tátil. Tome-se, por
exemplo, a sensação de tomar um banho de mar ou o encontro com um
vento que nos coloca em um estado estético irrefutável. Assim como
existem experiências de caráter estético ligadas ao tato em nossa
experiência cotidiana, acreditamos que seja possível haver uma
estética tátil na arte. Considerar a visão como o sentido estético
por excelência e o tato como excluído de toda esfera estética57:
eis uma forma de desconhecimento da potencialidade de nossos
sentidos e de nossa cognição. Além disso, aceitar tal ideia é
desconsiderar que pessoas cegas, por exemplo, são tão capazes de
ter experiências estéticas quanto qualquer um, apenas dentro de um
funcionamento cognitivo diferente. Este é o primeiro passo para
que a diferença possa ser tratada com seriedade e com respeito à
forma de viver de cada um.
Uma boa proposta de acessibilidade é, então, aquela que não
se ocupa somente dos direitos das pessoas cegas no que concerne ao
acesso à informação e aos espaços, mas que vai além, buscando
assumir um compromisso estético (Quaresma e Kastrup, manuscrito).
É essencial que se criem iniciativas inclusivas de qualidade
artística. Considerar que, para incluir pessoas cegas em museus,
basta tornar o espaço transitável e permitir que se toquem peças é
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muito pouco. Ora, o museu é mais que um espaço físico. Quando se
exige e se conduz uma investigação sobre o modo como os
deficientes visuais percebem o mundo, suas especificidades e
potencialidades, pode-se então garantir condições mínimas para uma
experiência estética, que vai além da mera atividade recognitiva
usualmente oferecida nas propostas de acessibilidade. O que
defendemos é uma inclusão mais inventiva e mais verdadeiramente
tátil58. Além disso, consideramos que obras de qualidade
desenvolvidas para o público cego despertarão o interesse também
do público vidente, levando a uma inclusão efetivamente
integradora.
Muito longe deste quadro ideal, o que vemos hoje é uma
espécie de ciclo vicioso. Propostas pouco refletidas impõem-se sob
a égide da inclusão; ainda que altamente deficitárias, tais
propostas são bem aceitas pela maior parte do público a que se
destinam e por outros museus, dada a escassez de ofertas desta
natureza; tal sucesso leva ao surgimento de propostas semelhantes
às primeiras.

Adaptações e estratégias de inclusão

A seguir, analisaremos algumas das estratégias inclusivas


mais comuns em museus e centros culturais: as adaptações de
pinturas (tanto para o alto relevo quanto para as três dimensões),
as estratégias multissensoriais, a produção de réplicas de
esculturas e o uso de “kits táteis”. Veremos que as estratégias
inclusivas costumam deixar a desejar no que diz respeito à sua
adequação à modalidade perceptiva do tato, ora em sua dimensão
expressiva, ora no que concerne ao respeito à capacidade cognitiva
do deficiente visual (muito frequentemente infantilizado). Em
geral, elas também deixam a desejar em sua visibilidade,
divulgação e acessibilidade para o público vidente.
Uma das maiores dificuldades que museus e centros culturais
encontram ao abrirem suas portas ao público deficiente visual é a
de tornar seu acervo de pinturas, gravuras e fotografias acessível
a um público que não dispõe da visão para apreciá-lo. Em
consequência disto, temos visto muitos esforços para a invenção de
estratégias e dispositivos que permitam ao público deficiente
visual apreciar estas formas de arte de maneira alternativa. Uma
opção muito comum tem sido a criação de versões táteis, em alto ou
baixo relevo, das obras em questão. O intuito é fazer dos
contornos visuais contornos tangíveis, mantendo-se, assim, com um
aparente alto grau de fidelidade, a bidimensionalidade do
original.
Alguns museus trabalham, de maneira alternativa ou
complementar, com adaptações tridimensionais, que geralmente
consistem em maquetes que reproduzem o conteúdo das obras. Assim,
se um quadro retrata um casal sentado em um banco de praça,
cria-se uma maquete que busca reproduzir este conteúdo geral,
mantendo-se, tanto quanto possível, a disposição espacial dos
elementos que participam da cena. A maquete geralmente implica
numa eliminação de alguns elementos considerados menos
importantes, de modo a facilitar sua exploração pelo tato. O
público deficiente visual é convidado a tocar estas adaptações bi
ou tridimensionais e, no caso de algumas maquetes em que as peças
são destacáveis da base, recomenda-se o manuseio dos diferentes
elementos, que se prestam a uma espécie de jogo de encaixe.
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Uma terceira forma de dar acesso ao conteúdo das pinturas
são as adaptações multissensoriais. Aqui, a disposição espacial
dos elementos da obra costuma ser posta em segundo plano, visto
que o objetivo é fazer emergir experiências sensoriais
relacionadas ao conteúdo da obra. Uma prática comum é a
disponibilização de materiais, como diferentes tecidos ou tipos de
madeira, que exemplificam as características físicas daquilo que
está sendo representado na pintura. Se o quadro apresenta uma
jovem usando um vestido de seda, disponibiliza-se um retalho deste
mesmo tecido para o toque. Também encontramos, por vezes, apelo
aos sentidos olfativo, auditivo e gustativo como uma forma
complementar de produzir sensações relacionadas ao tema da
pintura. Através de um odorizador, posicionado ao lado da obra,
que apresente um jardim repleto de rosas, emite-se, por exemplo, o
perfume desta flor.
Quanto às esculturas, a adaptação nem sempre se faz
necessária. Afinal, elas são objetos tangíveis e tridimensionais.
Assim, alguns museus optam por separar algumas das peças de seu
acervo, disponibilizando-as ao toque do público deficiente visual.
Isto só é possível, porém, quando as peças são feitas de material
resistente, como bronze. Quando não é este o caso, os originais
podem ser substituídos por réplicas feitas de outros materiais
(por exemplo, de resina), às vezes em tamanho reduzido, às vezes
nas dimensões originais.

O problema da adequação cognitiva

À primeira vista, todas as formas de adaptação de obras de


arte que descrevemos parecem igualmente promissoras e capazes de
atender às necessidades do público a que se destinam. Na verdade,
é comum que sejam encaradas como ótimas soluções para o problema
do acesso às artes plásticas. No entanto, uma avaliação mais
detalhada revela que, em muitos casos, certas características
básicas do funcionamento cognitivo do tato não são devidamente
consideradas quando da concepção das adaptações. Como mostraremos
a seguir, adaptações feitas sem se considerar o funcionamento
próprio do tato muito frequentemente falham em fornecer as
condições para que os cegos compreendam aquilo que lhes é
oferecido. Inadvertidamente, muitas das formas mais comuns de
fornecer acesso geram mais confusão do que inclusão.
Vejamos o caso das réplicas em duas dimensões. Este tipo de
reprodução apresenta sérios problemas, sendo, em geral, pouco
compreensível e ineficiente. Isto ocorre por um motivo muito
simples: a representação em alto relevo mantém a estrutura
essencialmente visual da obra. Não raramente, recorre a elementos
visuais que pouco ou nenhum sentido fazem para a modalidade tátil
em seu funcionamento comum, como as leis da perspectiva e a
sobreposição aparente de objetos em planos diferentes (ver Hatwell
e Martinez-Sarocchi, 2006; Almeida et al., no prelo). Sentido
tridimensional por excelência, o tato encontra imensas
dificuldades na exploração de representações planificadas de
objetos. Em sua atividade comum, esta modalidade perceptiva busca
sempre as propriedades tridimensionais dos objetos e das formas.
Por exemplo, o encontro com arestas, vértices e concavidades é
extremamente importante para a identificação de objetos pelo
tato59. Em representações planificadas, estes elementos estão
ausentes, o que equivale a retirar do tato seus pontos de apoio.
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Um segundo problema é que o tato, diferentemente da visão, não é
um expert no reconhecimento da forma pura dos objetos, mas os
reconhece principalmente através de suas propriedades materiais:
de sua textura, de seu peso, de sua temperatura, de sua dureza ou
maleabilidade (Lederman et al., 1990; Lederman, 1997) –
propriedades que também estão ausentes no alto relevo. As
adaptações de pinturas em relevo sofrem, portanto, de um duplo
problema. De um lado, pressupõem a familiaridade com elementos
visuais estranhos ao tato, tais como a perspectiva e a
sobreposição. De outro, dão como única pista para a compreensão de
seu conteúdo a forma dos objetos, destituídos aqui de suas
propriedades materiais originais. Para o deficiente visual (assim
como para qualquer vidente que as explore com o tato), as
representações em alto relevo aparecem, na maior parte das vezes,
como uma confusão generalizada, em que é difícil reconhecer o que
quer que seja. Em comparação com esta forma de adaptação, as
maquetes, tridimensionais, são muito mais apropriadas; a
compreensão das obras é muito maior quando este recurso é
utilizado, sobretudo se, na produção das maquetes, concede-se a
devida atenção à escolha dos materiais.
Menos complicado parece ser o caso da exposição de
esculturas. As esculturas são tomadas, à primeira vista, como
obras tanto visuais quanto táteis. Entretanto, quando observamos
pessoas cegas tocando esculturas sem a ajuda de informações
complementares, notamos uma dificuldade inesperada na compreensão
das peças. Com frequência, os cegos enfrentam problemas no
reconhecimento do conteúdo da obra (um fenômeno que também pode
ser observado em videntes vendados explorando esculturas com as
mãos). Este tipo de problema nem sempre aparece, mas o fato de se
apresentar em algumas pessoas no contato com determinadas peças
deixa evidente que a apreciação de esculturas não é tão natural
assim para o sistema háptico. Mas por que, se as esculturas são
objetos tangíveis e tridimensionais? Ora, na escultura, as
propriedades materiais dos objetos representados encontram-se
totalmente modificadas. Todos os diferentes elementos, todas as
diferentes partes da peça apresentam as mesmas propriedades
materiais – aquelas do material de que é feita. Se para a
percepção tátil de um cabelo é central a identificação da textura,
da maleabilidade e da temperatura, então, é de se esperar que a
apreciação de certas peças (bustos, por exemplo) esbarre em alguns
problemas. Aquele mesmo cabelo, que é tatilmente reconhecido por
suas propriedades materiais específicas, passa, na escultura, a
possuir as propriedades materiais do mármore, do bronze, da
resina, etc. E, realmente, a modificação destas propriedades,
essenciais para a percepção tátil, dificulta em muito a
compreensão de algumas peças, fazendo da experiência com a obra
uma atividade mais ou menos bem sucedida de reconhecimento,
tornando improvável o contato estético com a obra de arte (Almeida
et al., no prelo).
É claro que isto não significa dizer que pessoas cegas não
devam tocar esculturas. Em primeiro lugar, não é sempre que o
reconhecimento das peças encontra-se prejudicado. Além disso,
outros sentidos costumam ser atribuídos à experiência de tocar uma
escultura. Por exemplo, o fato de se tratar de uma obra
importante, ligada a um certo movimento ou produzida por um
artista renomado, são razões pelas quais as pessoas podem querer
tocar uma peça. Certos cuidados também são bem-vindos no caso da
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exposição de esculturas, pois facilitam a apreciação das obras,
como a seleção de peças não muito grandes, evitando-se fazer da
exploração uma atividade cansativa, ou a disponibilização de peças
que apresentem diferentes texturas, dando ao percebedor tátil mais
pistas a explorar.

O problema da expressão

Vimos que uma desconsideração do funcionamento cognitivo do


tato pode implicar na criação de adaptações bidimensionais de
pinturas, gravuras e fotografias que permitem pouca ou nenhuma
compreensão pelo público deficiente visual. Se, no que concerne a
este tipo de adaptação, é urgente apontarmos um fracasso, há que
se deixar claro, entretanto, que o fracasso deve ser atribuído ao
museu e não aos deficientes visuais: é o museu que faz ao
deficiente visual um convite equivocado, não são os deficientes
que respondem de maneira inadequada. Ao colocar à disposição dos
cegos adaptações como essas, o museu faz da experiência estética –
e mesmo da informação – uma possibilidade remota, levando os
visitantes a se perderem numa longa atividade de reconhecimento.
Poderíamos imaginar que, em contraste, a estética comparece
com maior frequência no caso da adaptação tridimensional de
pinturas, visto que aí a tridimensionalidade e o uso de diferentes
materiais garantem condições mais propícias para uma percepção
tátil dotada de sentido. De fato, esta estratégia é mais bem
sucedida que o alto relevo no que diz respeito ao acesso ao
conteúdo do quadro, pois permite que o deficiente visual
compreenda quais são os objetos representados e a posição relativa
entre eles no espaço da obra. Assim sendo, ela certamente pode
contribuir para a aquisição de conhecimento sobre um determinado
movimento artístico ou determinado artista, se acompanhada de
informações verbais pertinentes. Mas, apesar de todas estas
vantagens, apreciar pinturas através desse tipo de adaptação ainda
causa decepção. Em parte, esta decepção é fruto de uma espécie de
infantilização presente em alguns usos dessa técnica, em que o que
se apresenta ao deficiente visual não é mais que uma proposta de
caráter lúdico (voltaremos a este ponto adiante). Mas a decepção
decorre, principalmente, de não se proporcionar condições para a
ocorrência de experiências estéticas. Com certeza, aqui, o caso é
bem diferente daquele de adaptações em alto relevo, em que o
fracasso resulta de uma falta de compreensão do próprio material.
Afinal, quando a maquete é construída com os materiais adequados,
os cegos são, em ampla medida, capazes de identificar os objetos.
Mas o problema é que, quando se trata de arte, essa identificação,
mesmo que presente, não é o bastante. O mero reconhecimento de
objetos não é suficiente para a emergência de uma experiência
estética. O problema maior, no caso das maquetes, está na perda da
expressividade da obra. Segundo Arnheim (2002), a expressão
refere-se à percepção de qualidades dinâmicas nos objetos,
qualidades estas que são estruturais e que podem ser apreendidas
por todas as modalidades sensoriais. Dizemos que uma pintura é
agressiva, delicada, alegre, triste, doce, sombria, leve, etc.
Todas estas qualidades, ingredientes básicos da experiência
estética, estão para além da mera informação de que estamos diante
da representação de uma mulher, de um vaso ou de uma árvore, de um
pássaro ou de uma natureza morta. Importam, isso sim, as
qualidades dinâmicas que estes elementos possuem. Nas palavras de
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Arnheim:

"Não se pode fazer justiça ao que vemos descrevendo-o somente


pelas medidas de tamanho, configuração, comprimento de ondas ou
velocidade. (...) Enquanto se fala sobre meras medidas ou
registros de objetos visuais, há possibilidade de se ignorar sua
expressão direta. Observamos: este é um hexágono, um dígito, uma
cadeira, um pica-pau cristado, um marfim bizantino. Mas, assim que
abrimos os olhos para as qualidades dinâmicas transmitidas por
quaisquer dessas coisas, inevitavelmente vemo-las carregadas de
sentido expressivo." (Arnheim, 2002, p. 437)

Quando transpomos a cena de um quadro para uma maquete sem


atenção a esse problema, perdem-se os elementos expressivos da
pintura. É importantíssimo notar, porém, que isto não ocorre por
qualquer deficiência inerente à experiência tátil: tal perda
ocorre mesmo se a adaptação é explorada com a visão. Tudo o que
resta são meras “coisas” e suas descrições. Ao adaptar obras de
artes visuais para os cegos, estamos sempre correndo o grave risco
de transpor objetos, sem nada transpor de sua expressividade – e,
assim, de perder a liberdade de um voo, da tristeza da luz, do
frescor de um jardim. Numa adaptação inexpressiva, resta ainda
sentido pedagógico e lúdico, mas nenhum sentido estético.
Elementos expressivos táteis, auditivos, poéticos, entre outros,
podem ser recursos muito mais interessantes e estão ainda por ser
mais bem explorados num esforço de proporcionar novas
experiências. É preciso, urgentemente, abandonar a ideia de que a
melhor forma de adaptação é aquela que reproduz conteúdos e
elementos visuais como uma espécie de cópia tátil correspondente.
O resultado desta orientação, a que poderíamos chamar
representacional, são peças que agradam somente àqueles que, cegos
ou videntes, esquecem-se que uma obra de arte não é um mero objeto
e acreditam, por isso, que representações de objetos podem
substituir uma obra de arte. É preciso criar adaptações
expressivas, é preciso encontrar novos caminhos, dos quais a
exploração da dimensão expressiva dos demais sentidos pode ser um
dos melhores.

O uso de kits

A maioria dos museus acessíveis brasileiros oferece “kits”


de acessibilidade. Tais kits consistem na reunião do material
adaptado para o público deficiente, ou seja, das reproduções de
obras do acervo do museu, incluindo tanto as réplicas bi e
tridimensionais quanto recursos multissensoriais, como os expostos
acima. Este material, via de regra, fica isolado do acervo em
exposição, guardado em um armário ou baú, sendo recrutado apenas
quando um deficiente visual visita o museu. É claro que, assim
isolados, os kits possuem, para os museus, a vantagem de conservar
melhor o material especial e de ocupar pouco espaço. Por outro
lado, o uso de kits caracteriza uma iniciativa não integradora na
medida em que o material destinado aos deficientes é segregado do
restante do acervo. O visitante comum não chega a tomar
conhecimento de sua existência. Claramente, pressupõe-se tanto que
o material que compõe o kit deve ser preservado do toque de muitas
pessoas quanto – o que é muito mais grave – que o contato com o
material não proporcionaria ganho algum para os videntes. Por
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isso, os kits acabam por contribuir para uma segregação ainda
maior entre cegos e videntes dentro do espaço do museu.
Além disso, os kits representam uma perda de autonomia para
o público a que se destinam, já que, para acessá-los, é necessária
a presença de um mediador. Para grupos de pessoas cegas que
agendam sua visita com antecedência e desejam ser acompanhados por
um mediador, este problema pode passar despercebido. Mas, quando
uma instituição se pretende acessível e busca de fato incluir
novos públicos, espera-se que crie condições para que a pessoa com
deficiência possa ir a qualquer exposição a qualquer momento. Do
contrário, torna-se impossível a visita que não foi planejada com
antecedência. O uso do kit como principal ou único recurso revela
uma desconsideração do fato de que um cego pode querer ir ao museu
sozinho, ou mesmo acompanhado de um amigo, a qualquer momento, e
de que ele pode fazer questão de caminhar e apreciar as obras por
conta própria, como qualquer visitante tem o direito de fazer.
Outro problema dos kits é que eles costumam restringir a
visita do cego a uma porção muito pequena (geralmente irrisória)
do museu. Se um cego chega à recepção de um museu que possui como
única ou principal oferta um ou mais kits táteis, ele é
imediatamente encaminhado, na maioria das vezes, à sala onde se
encontram os kits. Num grande número de casos, fica logo evidente
que estas – e apenas estas – são as salas às quais se espera que o
deficiente vá. Em geral, os mediadores não possuem preparo para
conduzir a visitação de um cego a partes do museu que não constam
neste curto script. No fundo, os kits são uma espécie de museu
alternativo dentro do museu. Quando o kit é a única ferramenta de
que o museu dispõe, este museu alternativo é tudo a que os
deficientes têm acesso e, reciprocamente, só é acessado pelos
deficientes. Ora, como dissemos no início, incluir é fazer
equivaler os direitos e oportunidades de pessoas com e sem
necessidades especiais, em qualquer espaço social. Vistos por este
ângulo, os kits portam algo de contrário à própria ideia de
inclusão.
Uma última objeção a ser feita quanto ao uso dos kits
refere-se a uma confusão entre os distintos tipos de necessidade
que diferentes visitantes podem apresentar. Às vezes, deparamo-nos
com adaptações a princípio criadas para serem utilizadas por
crianças ou por pessoas com déficit intelectual, mas que são
oferecidas também ao público cego. Em outros casos, embora tenha
sido criado especificamente para o público deficiente visual, o
material é infantilizador e parece mais adequado para crianças.
Parece haver aí uma confusão, como se a deficiência visual
necessariamente determinasse alguma restrição intelectual. Este
equívoco, que já mencionamos acima como uma das razões da exclusão
ao longo da história, é ainda hoje mais frequente do que se
imagina. É crucial que não se misturem as várias formas de
deficiência em um único caldeirão, como se as necessidades de
pessoas com deficiências diferentes fossem sempre as mesmas ou
pudessem, de alguma forma, se equivaler. Um cego adulto, tal como
um vidente adulto, vai a um museu de arte em busca de arte; não
espera ser recebido com um material de caráter predominantemente
lúdico e mais apropriado às crianças. É certo, como acabamos de
afirmar, que as melhores propostas de inclusão devem ser aquelas
cujo alcance abarque os mais diversos públicos: o material
desenvolvido para atender às pessoas com deficiência visual pode
ser interessante também para outros visitantes, inclusive para os
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videntes, sejam adultos ou crianças. Porém, a extensão das
propostas inclusivas para os muitos públicos deve estar baseada na
adequação do material para todos eles. Caso contrário, o efeito
pode ser diametralmente oposto ao que se esperava: em vez de se
verem acolhidos, alguns deficientes visuais sentem-se “enganados”,
infantilizados e inferiorizados por propostas que desconhecem seus
verdadeiros limites e subestimam suas verdadeiras capacidades60.

A complexidade da inclusão e seus efeitos para além das fronteiras


do museu
Buscamos apresentar de maneira introdutória o campo
problemático da acessibilidade em museus para deficientes visuais
e suas múltiplas facetas, que em muito transcendem o cumprimento
das normas técnicas. Neste sentido, fica patente que um museu ou
galeria que cumpra todas as normas de acessibilidade não
necessariamente apresenta-se como esteticamente acessível. Isto
requer uma política do toque pautada na compreensão das
especificidades e potencialidades cognitivas do tato, no
questionamento à naturalização do caráter danificador do mesmo,
bem como na inventividade para transmitir o caráter expressivo de
uma obra destinada à contemplação visual para a fruição tátil.
Esta última exigência, por sua vez, requer a consciência de que
uma adaptação não cumpre a função de reproduzir fielmente a obra
original, já que normalmente seus aspectos materiais e tamanho,
propriedades mais características do modo de conhecer e
experimentar através do tato, são transformados. Ao contrário, sua
potência reside justamente na recriação, na releitura da obra.
Essa concepção tem como efeito uma maior abertura à criação e,
consequentemente, à possibilidade de tornar palpável, para aquele
que não enxerga, a expressividade da obra que ele contempla.
A consideração de todos esses pontos que rondam o conceito
de acessibilidade, em museus, para deficientes visuais tem uma
finalidade: a criação de um terreno propício para o florescimento
de experiências estéticas para este público, o que significa
tornar sua experiência de ir ao museu mais significativa.
Um ponto importante a ser considerado é que não estamos
propondo que a permissão ao toque se dê de modo irrestrito, mas
que seja feita uma análise caso a caso, conforme a fragilidade e
raridade das obras em questão. De modo geral, entretanto, é
necessário que a proibição do toque não seja determinada a priori,
mas que sejam pesados os custos e benefícios da disponibilização
das peças à apreciação tátil.
Para que a acessibilidade possa dar-se de modo efetivo,
acreditamos que deva ser erguida sobre dois pilares: a
investigação cognitivo-estética e o engajamento político. O
primeiro deve garantir que o paradigma visuocêntrico não se
imponha de modo disfarçado, como no caso de adaptação para o tato
de obras cuja estética permanece visual, com grande apelo para os
aspectos formais, resultando pouco interessante ou até
incompreensível ao tato. O segundo, por sua vez, pretende que seja
aberto um canal de comunicação entre o museu e o público-alvo de
sua acessibilidade e que este possa analisar crítica e
experiencialmente a qualidade da inclusão que lhe é oferecida,
sendo seu feedback legitimado por meio da revisão das propostas e
mesmo no próprio planejamento das iniciativas. Sobre estes dois
pilares, então, deve haver uma integração entre os aspectos
científicos e políticos que envolvem a acessibilidade.
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Como o paradigma visuocêntrico consiste em um desdém do
valor cognitivo dos outros sentidos que não a visão, é de suma
importância, no movimento de resistência que deve embasar toda a
iniciativa de democratização da cultura para o público deficiente
visual, que haja essa integração, de forma que a inclusão se
mostre mais efetiva. Deste modo, buscamos evitar o risco de
reproduzir tal estética adaptada a outros sentidos e acabar,
perante a dificuldade de compreensão das adaptações, por reforçar
ainda mais o pressuposto da soberania cognitiva da visão sobre os
outros sentidos, realizando uma inclusão excludente.
Em suma, os desafios para a realização de uma boa iniciativa
de acessibilidade a museus para deficientes visuais são muitos e
permeados por estigmas, controvérsias e desconhecimento.
Entretanto, atentar a eles com cuidado é reconhecer que trazem
consigo em germe a possibilidade para uma gradual, mas verdadeira,
mudança paradigmática, que pode beneficiar tanto cegos como
videntes.

notas:
50 Este trabalho é fruto de uma pesquisa realizada junto ao
NUCC-UFRJ (Núcleo de Pesquisas Cognição e Coletivos), sob
orientação da professora Virgínia Kastrup, e contou com uma parte
de campo, em que os autores realizaram visitas técnicas a diversos
museus do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nas visitas aos museus do
Rio de Janeiro, ocorridas em 2009, os autores foram acompanhados
por um grupo de deficientes visuais do Instituto Benjamin
Constant, que também participou de discussões que contribuíram de
maneira importante para o presente texto. As visitas aos museus de
São Paulo ocorreram por ocasião de um estágio realizado pelos
autores sob orientação de Viviane Sarraf em 2008. Agradecemos
calorosamente a Virgínia Kastrup, Viviane Sarraf e aos deficientes
visuais que participaram do nosso grupo de discussão e visitação:
Virgínia Menezes, Alexandre Barel, Valéria e Waldir.
51 A este respeito cf. também os capítulos de Sarraf e
Kastrup inseridos nesta coletânea.
52 Para uma discussão histórica sobre a acessibilidade em
museus, ver Sarraf (2008).
53 Ver, p. ex., Candlin, 2004, 2006; Sarraf, 2008; Almeida
et al., no prelo; Quaresma e Kastrup, manuscrito.
54 Para maiores informações sobre os museus brasileiros que
possuem programas de acessibilidade, consultar o site
http://museuacessivel.incubadora.fapesp.br/portal, mantido pela
RINAM (Rede de Informação de Acessibilidade em Museus), criada por
Viviane Sarraf.
55 Nota sobre o acesso à informação.
56 Quem introduz esta distinção no que diz respeito à
acessibilidade para deficientes visuais em museus são Hatwell e
Martinez-Sarocchi (2006).
57 Esta posição, se no mais das vezes está apenas implícita,
é manifestamente declarada no trabalho de certos autores (ver, por
exemplo, RÉVÉSZ, 1950). Para uma perspectiva contrária, porém, ver
Arnheim (1990) e Löwenfeld (1951).
58 Para uma discussão mais extensa, ver Almeida et al., no
prelo.
59 Para uma discussão mais detalhada a este respeito, ver
Gibson (1962); Almeida et al. no prelo.
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60 Foi esse o caso, p. ex., de alguns dos deficientes
visuais que participaram de nosso grupo de discussão e visitação a
museus.

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Departamento de Ciência da Informação/Escola de Comunicações e
Artes/USP. Orientador: Prof. Dr. Titular Martin Grossmann. São
Paulo, 2008.

Seção 4 - Literatura e Cegueira


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Do mítico ao mágico, da alegoria ao realismo: a literatura e suas
metáforas sobre a cegueira

Joana Belarmino

Ao Modo de Introdução

Eu trouxe um convidado comigo para me auxiliar nessa


comunicação. Eu chamei, para dialogar conosco sobre cegueira e
literatura, um filósofo. Mas um filósofo que abdicou da sua
filosofia, um filósofo que saiu do rigor e da dureza do pensamento
científico para pensar sobre literatura, poética e estética a
partir da chama de uma vela. Alguns de vocês já sabem quem está
comigo. É Gaston Bachelard, esse poeta do claro-escuro, esse
filósofo do psiquismo humano. E por que ele? Porque, a partir da
leitura de Bachelard, eu pude pensar na literatura e na cegueira
como chama e penumbra, como claro e escuro, como luta e repouso.
Por que o que é a literatura, senão essa espécie de chama a tentar
iluminar o psiquismo humano, a tentar desenterrá-lo das suas
múltiplas peles, a buscá-lo no fundo do pântano e a perdê-lo no
momento mesmo de pura chama?
Sim. Se quisermos pensar na literatura como um fenômeno da
cultura, se quisermos tentar abarcar a literatura na sua
universalidade, podemos dizer que, ao longo da sua história, ela
sempre exercitou esse jogo entre a luz e a sombra, essa
contemplação do espírito por dentro de espaços de penumbra e de
escuro, ou evocando a luz, a iluminação. Então, posso dizer também
que cegueira e literatura são lugares exemplares para esse
exercício, para essa luta, para essa contemplação.
Posso dizer que a literatura e a cegueira fazem parte da
minha vida, como duas espécies de espirais que se tocam, se
conjugam. Mulher cega, às vezes cometo literatura através de
crônicas e contos, perseguindo um lugar, um modo de dizer,
inventando mosaicos para as lacunas do não ver, apalpando a
possibilidade de um estilo onde a palavra se afirme e diga o
intervalo, a ausência, luta perene essa que sempre me deixa de
mãos vazias, com fome de silêncios, enquanto mais palavras brotam
do meu sentir o mundo.
Mulher de escrita, às vezes percuto a cegueira como se se
tratasse de concha marinha. Escuto seus ecos, escavo suas sombras,
suas luminescências. Luta perene essa, por traduzir esse
intervalo, essa zona de sombra entre o ver e o não ver, luta que
sempre me deixa de mãos vazias, a sonhar uma biblioteca escura e
silenciosa onde eu possa flagrar a chama de uma vela.
Mas, antes que a gente se perca por esse caminho
resvaladiço, vamos fixar aqui algumas questões, ao modo de pistas
para a orientação nesta nossa jornada. De que modo a literatura
tem abordado, ao longo de sua história, o fenômeno da cegueira? De
que conteúdos e qualidades estéticas o romance, a crônica, a
poesia e o conto têm adornado os seus personagens cegos?
O título desta comunicação já anuncia um esboço de resposta.
Do mito à alegoria, do mágico ao realismo, são estas as chaves
privilegiadas de onde a literatura percute a cegueira, em obras
que, se não são abundantes, esmeram-se em uma rica produção de
sentidos variados sobre essa limitação sensorial e as múltiplas
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formas como a ideia de cegueira é percebida/construída na cultura
e na sociedade.
Mas não quero que pensem que essas quatro palavras encerram
todo o percurso literário em torno da cegueira. Creio que elas
resumem tendências de abordagens mais ou menos recorrentes no
âmago da criação literária, às quais dedicarei atenção nessa minha
comunicação.
Tampouco quero passar a ideia de que cada uma dessas
abordagens aparece separadamente, em obras literárias
particulares. O mito, a alegoria, a magia e o realismo são, por
assim dizer, símbolos da cultura. Sendo a literatura um sistema de
modelização da cultura, alimenta-se naturalmente dos seus
símbolos, das suas práticas, dos modos de ser e pensar dos
indivíduos e grupos sociais. Sendo a literatura uma espécie de
interface tradutora da cultura, recolhe desta os seus ecos, suas
ressonâncias, suas subjetividades, entrelaçando-as nas suas
narrativas, nos seus construtos imagéticos, que reverberam depois
nos processos de decodificação realizados pelos leitores de
livros.
Para explorar esses quatro enunciados, destacarei alguns
autores e obras em particular, em que a cegueira ou foi o veio
central da trama ou serviu para a composição de personagens dentro
da narrativa.
Neste meu percurso, não privilegiei uma época histórica em
particular, mas fui atrás de alguns escritores que fazem parte do
meu círculo mais íntimo de leituras e que privilegiaram a cegueira
em suas obras. Ernesto Sábato, José Saramago e André Gide são os
convivas principais desta nossa jornada.
Nos limites desta comunicação, tenho consciência de que
muitos nomes importantes ficaram de fora. O formidável personagem
cego da biblioteca de Borges em O Nome da Rosa; ou a bela
narrativa de Mia Couto em O Cego Estrelinho, uma trama onde se
misturam magia e realismo num enredo poético de muita beleza são,
entre tantos outros, exemplos de narrativas que bem poderiam aqui
figurar.
Para iniciarmos esta nossa jornada, como efeito de fundo,
peço que construam na imaginação esse cenário de penumbra onde
Bachelard nos convida a acender uma vela para nos quedarmos a
contemplar sua chama.

A Narrativa da Cegueira na Obra de José Saramago

Há escritores que escrevem com tudo o que têm. Escrevem com


o corpo, com o espírito, escrevem com a lactência de todos os
sentidos, imprimindo em nós, leitores, uma riqueza tão grande de
sensações que nos deixam maravilhosamente espantados. Pensei sobre
isso quando lia Marcel Proust, e reencontrei essa mesma polissemia
dos sentidos na obra de José Saramago.
Poderia mesmo dizer que, em sua obra A Caverna, ele faz um
belíssimo elogio ao sentido do tato, este sentido que aproxima,
num mundo saramaguiano assombrado pelas possibilidades de um
distanciamento tecnológico.
A cegueira é também uma metáfora muito cara à sua narrativa.
Em História do Cerco de Lisboa, a aparição do Almuaden cego nos
apresenta, de modo leve e poético, um indivíduo perfeitamente
incrustado na sua cultura, cumprindo um papel. É com sutileza que
Saramago nos apresenta esta antiga dicotomia da cultura: cegueira
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e luz. Mas aqui não é propriamente o narrador que fala, é a
própria cultura que se apresenta.
Acompanhemos o momento em que o nosso Almuaden entra em
cena:

"Quando só uma visão mil vezes mais aguda do que a pode dar a
natureza seria capaz de distinguir no oriente do céu a diferença
inicial que separa a noite da madrugada, o almuadem acordou.
Acordava sempre a esta hora, segundo o sol, tanto lhe fazendo que
fosse verão como inverno, e não precisava de qualquer artefacto de
medir o tempo, nada mais que uma mudança infinitesimal na
escuridão do quarto, o pressentimento da luz apenas adivinhada na
pele da fronte, como um tênue sopro que passasse sobre as
sobrancelhas ou a primeira e quase imponderável carícia que, tanto
quanto se sabe ou acredita, é arte exclusiva e segredo até hoje
não revelado daquelas formosas huris que esperam os crentes no
paraíso de Maomé." (Saramago, 1989)

Ao longo da descrição, Saramago nos entremostra a cegueira


do almuaden como se, fazendo par com a madrugada, fosse iluminando
devagar aquela face.
"A escada, em caracol, era trabalhosa de subir, de mais sendo este
almuadem já velho, felizmente não precisava que lhe vendassem os
olhos como às mulas das atafonas se faz
para que lhes não dê o mareio." (Ibid., 1989)

E é no arremate final desta apresentação, do topo do monte,


que a genialidade de Saramago desvela a cegueira do Almuaden,
coroada pela luz da manhã e, ao mesmo tempo, pela luz da oração
que aflora da sua boca.

"Aos pés do Almuadem há uma cidade, mais abaixo um rio, tudo dorme
ainda, mas inquietamente. A manhã começa a mover-se sobre as
casas, a pele da água torna-se espelho do céu, e então o Almuadem
inspira fundo e grita, agudíssimo, Allahu akbar, apregoando aos
ares a sobre todas grandeza de Deus, e repete, como gritará e
repetirá as fórmulas seguintes, em extático canto tomando o mundo
por testemunha de que não há outro Deus senão Alá, e que Maomé é o
enviado de Alá, e tendo dito estas verdades essenciais chama à
oração, Vinde ao azalá, mas sendo o homem de natureza preguiçoso,
ainda que crente no poder Daquele que nunca dorme, o Almuadem
repreende caridosamente esses outros a quem as pálpebras ainda
pesam, A oração é melhor que o sono, As-salatu jayrun min an-nawn,
para os que nesta língua o entendem enfim concluiu clamando que
Alá é o único Deus, La ilaha illa llah, mas agora só uma vez, que
é quanto basta quando se trate de verdades definitivas. A cidade
murmura as orações, o sol apontou e ilumina as açoteias, não tarda
que nos pátios apareçam os moradores. A almádena está em plena
luz. O almuadem é cego." (Ibid., 1989)

Vejam que perfeição de engaste temos aqui, nessa frase


final, em que luz e cegueira se irmanam, a beleza da narrativa
pintando a nudez de um quadro em que um cego desvela a luz da
manhã. Um quadro em que a cegueira mesma faz parte da beleza dessa
manhã que desperta.
Mas é no seu livro Ensaio sobre a Cegueira que a pena do
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escritor promove à condição de cegueira coletiva toda uma nação,
uma cegueira branca, íntima luz, envolvendo num “mar de leite”
tudo o que antes fora mundo visível.
Em uma curta passagem do livro, Saramago cuida mesmo de
distinguir essa cegueira inusitada da cegueira propriamente dita
quando escreve:

"...foi só passados alguns minutos que o ouvido distraído do


médico começou a perceber um ruído inconfundível de picotagem, que
imediatamente identificou, ali ao lado encontrava-se alguém a
escrever em alfabeto braille, também anagliptografia chamado,
ouvia-se o som ao mesmo tempo surdo e nítido do ponteiro ao
perfurar o papel grosso e bater contra a chapa metálica do
tabuleiro inferior. Havia portanto um cego normal entre os cegos
delinquentes, um cego como todos aqueles a quem dantes se dava o
nome de cegos, evidentemente tinha sido apanhado na rede com os de
mais, não era a altura de pôr-se o caçador a averiguar, Você é dos
cegos modernos ou dos antigos, explique-nos lá de que maneira não
vê. Que sorte estes tiveram, além de lhes ter saído na rifa um
escriturário, também poderão aproveitá-lo como guia, um cego com
treino de cego é outra coisa, vale o que pesa em ouro." (Saramago,
1995)

Ainda que diferente, a cegueira branca de Saramago permite


ao escritor recuperar, dentro do tenebroso cenário criado para os
seus personagens, toda a simbólica de uma cultura mítica, mágica,
realística e alegórica.
Os cegos de Saramago, caminhando inexoravelmente, em fila
indiana, rumo à barbárie de um país de cegos, evocam, em muitas
passagens do romance, a imagem bíblica de um bando de cegos a
caminhar rumo ao precipício, a qual foi tão cara ao romance do
início do século XX, Barranco de Cegos, escrito por Alves Redol,
para denunciar o desmantelamento de uma sociedade agrária,
comunitária, em favor de uma sociedade industrial de massas.
É somente por via dos olhos da mulher do médico, única
personagem a conservar a vista, que Saramago constrói todo o
horror da sua narrativa. A cegueira é a situação extrema, o fundo
do poço, a treva por onde o escritor tenta iluminar o espírito
humano, percutir desde as suas misérias mais sórdidas às sutis
delicadezas do espírito. Cegueira e animalidade andam juntas a
defraldarem a luta pela ascensão e a grandeza do espírito humano.
A cegueira como alegoria para o mal-estar de uma civilização
é, imagino, o intuito maior da obra de Saramago. A cegueira
branca, luminosa, como uma espécie de grito às avessas para um
mundo a caminhar inexoravelmente rumo a barbárie.
É no último parágrafo, no diálogo entre o médico e sua
mulher, que Saramago dá o arremate final a essa alegoria:

"Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a
conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que
não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que,
vendo, não vêem.
A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo,
para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e
cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco,
Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A
cidade ainda ali estava." (Ibid., 1995)
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III Os Subterrâneos de Sábato: Alegoria, Magia e Surrealismo na
sua Narrativa Sobre a Cegueira

Do princípio ao fim, o terceiro e longo capítulo da obra do


escritor argentino Ernesto Sábato, Sobre Héroes y Tumbas, o qual
se intitula Informe sobre Ciegos, nos impele a uma viagem
subterrânea até os alicerces do psiquismo humano, ali onde a
cegueira é como uma espécie de chama, a descamar as múltiplas
peles do imaginário sobre a morte, a sordidez, a magia, o
misticismo, o mítico, numa narrativa alegórica ao mesmo tempo
mórbida, obsessiva e poética.
Já nos primeiros parágrafos do seu informe, Sábato nos
entrega a lucidez obsessiva do seu narrador, frente a frente com a
cegueira, a deflagrar nele todos os temores próprios da ideia de
treva subterrânea, onde habitam os répteis frios e pegajosos, onde
o grande mal se organiza e dissemina.

"¿Cuándo empezó esto que ahora va a terminar con mi asesinato?


Esta feroz lucidez que ahora tengo es como un faro y puedo
aprovechar un intensísimo haz hacia vastas regiones de mi memoria:
veo caras, ratas en un granero, calles de Buenos Aires o Argel,
prostitutas y marineros; muevo el haz y veo cosas más lejanas: una
fuente en la estancia, una bochornosa siesta, pájaros y ojos que
pincho con un clavo. Tal vez ahí, pero quién sabe: puede ser mucho
más atrás, en épocas que ahora no recuerdo, en períodos
remotísimos de mi primera infancia. No sé. ¿Qué importa, además?

Recuerdo perfectamente, en cambio, los comienzos de mi


investigación sistemática (la otra, la inconsciente, acaso la más
profunda, ¿cómo puedo saberlo?). Fue un día de verano del año
1947, al pasar frente a la Plaza Mayo, por la calle San Martín, en
la vereda de la Municipalidad. Yo venía abstraído, cuando de
pronto oí una campanilla, una campanilla como de alguien que
quisiera despertarme de un sueño milenario. Yo caminaba, mientras
oía La campanilla que intentaba penetrar en los estratos más
profundos de mi conciencia: la oía pero no La escuchaba. Hasta que
de pronto aquel sonido tenue pero penetrante y obsesivo pareció
tocar alguna zona sensible de mi yo, algunos de esos lugares en
que la piel del yo es finísima y de sensibilidad anormal: y
desperté sobresaltado, como ante um peligro repentino y perverso,
como si en la oscuridad hubiese tocado con mis manos la piel
helada de un reptil. Delante de mí, enigmática y dura,
observándome con toda su cara, vi a la ciega que allí vende
baratijas. Había cesado de tocar su campanilla; como si sólo la
hubiese movido para mí, para despertarme de mi insensato sueño,
para advertir que mi existencia anterior había terminado como una
estúpida etapa preparatoria, y que ahora debía enfrentarme con la
realidad. Inmóvil, con su rostro abstracto dirigido hacia raí, y
yo paralizado como por uma aparición infernal pero frígida,
quedamos así durante esos instantes que no forman parte del tiempo
sino que dan acceso a la eternidad. Y luego, cuando mi conciencia
volvió a entrar em el torrente del tiempo, salí huyendo." (Sábato,
1961)

Os cegos de Sábato, embora tenham rostos, vontades, vozes e


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silêncios, são a chama que o impele ao mundo do desconhecido ou,
como ele próprio assinala,

"Y así, paulatinamente, con una fuerza tan grande y paradojal como
la que en las pesadillas nos hacen marchar hacia el horror, fui
penetrando en las regiones prohibidas donde empieza a reinar la
oscuridad metafísica, vislumbrando aquí y allá, al comienzo
indistintamente, como fugitivos y equívocos fantasmas, luego con
mayor y aterradora precisión, todo un mundo de seres abominables."
(Ibid., 1961)

Nos limites dessa comunicação, eu não poderia tratar com


propriedade de toda a riqueza simbólica do trabalho de Sábato. É
certo que, ao longo do seu escrito, ele serve-se da cegueira como
uma espécie de corrimão, de archote se quisermos, de campo de
força, de onde investiga o mal, o mal subterrâneo, enraizado no
espírito, nos recônditos mais insondáveis do psiquismo humano.
Ainda que recorra a personagens cegos, de carne e osso,
ainda que percuta, através destes, reflexões metafísicas, mágicas
e míticas com respeito a estes cegos, Sábato fala de uma outra
cegueira, uma cegueira que parece ao mesmo tempo iluminar,
organizar e corromper.
Tem-se, pois, na sua obra, um uso exemplar da cegueira como
alegoria para uma realidade que pertence ao mundo criativo, ao
mundo mágico-mítico, ao mundo simbólico onde se quer diluir as
fronteiras entre o racional e o irracional, onde se deseja
perscrutar essas zonas de sombra e de mistério.
A cegueira, na obra de Sábato, é, pois, para nos lembrarmos
de Bachelard, uma espécie de vela impiedosa, a iluminar e
justificar esse périplo do seu personagem pelo território do mal.

Cegueira, Estética e Poética na Obra de Gide

A cegueira compõe um dos personagens principais da obra de


André Gide, A Sinfonia Pastoral. A jovem Gertrudes, cega, vive na
casa do pastor evangélico que torna-se seu tutor e o responsável
direto por sua educação.
Numa narrativa direta, é com muita delicadeza que Gide tece
a trama dessa história em que, ao mesmo tempo em que o pastor
molda o espírito da jovem, subtraindo-a de conhecer o pecado, a
vilania, protegendo-a dos males do mundo, envolve-se
emocionalmente com aquele espírito puro, terno, capaz de
pressentir a beleza em tudo.
A cegueira de Gertrudes oferta lume ao escritor para que
discuta questões éticas e morais numa sociedade marcada pelas
tradições religiosas, questões que assumem, dentro da obra, uma
dramaticidade pungente.
O que nos chama a atenção em A Sinfonia Pastoral é o que já
classificamos como uma espécie de “modo tátil de pensar”,
“mundividência tátil”, que André Gide consegue flagrar com muita
maestria na fala de Judith.

A cena passa-se num final de tarde, em que o pastor leva Gertrudes


a um passeio pelo bosque. A meio de um diálogo ela diz:
“... Se o senhor soubesse – exclamou ela então numa
exaltação de alegria – se o senhor pudesse saber como eu
imagino tudo isso facilmente. Veja! Quer que eu lhe
Página 130
descreva a paisagem?... Há atrás de nós, acima e ao
redor de nós, os grandes pinheiros, com gosto de resina,
com troncos grenás, com longos e sombrios galhos horizontais que
se lamentam quando quer curvá-los o vento.
A nossos pés, como um livro aberto, inclinado sobre a estante da
montanha, a grande campina verde e matizada, que a sombra azula,
que o sol doura, e cujas palavras precisas são flores – gencianas,
pulsatilas, ranúnculos, e os belos lírios de Salomão – que as
vacas vêm soletrar com seus sinos, e onde os anjos vêm ler, já que
diz que os olhos dos homens estão fechados. Na parte inferior do
livro, vejo um grande rio de leite, enfumaçado, enevoado, cobrindo
todo um abismo de mistério, um rio imenso, sem outra margem senão,
ao longe, bem longe à nossa frente, os belos Alpes
resplandecentes...”. (Gide, 1948)

Encontramos aqui poesia. Encontramos aqui a sensibilidade do


escritor, que soube transpor para o seu personagem um mundo tátil,
ancorado na metáfora de um livro. Pedaço de natureza pensado como
livro, do qual eu posso me apropriar, posso segurar, posso ler.
Uma natureza que se expressa, que fala com suas flores abertas,
que se lamenta com seus pinheiros cheirosos.
Para aqueles que defendem a normalização, a homogeneização
da cegueira a uma realidade visuocêntrica, esse trecho não
passaria de verbalismo puro. Para aqueles que pensam na cegueira
como uma visão de mundo que se estrutura a partir desse pacto
entre todos os sentidos ativos e, ainda, um pacto entre esses
sentidos e a cultura mais ampla, encontrarão na fala de Gertrudes
um modo particular de apreender/perceber o mundo, o qual encontra
na palavra articulada sua melhor plataforma de tradução.
A título de conclusão, e para que depois possamos alimentar
o debate sobre essas questões, eu gostaria de apresentar algumas
polêmicas que surgiram principalmente a partir de obras como
Ensaio sobre a Cegueira e Informe sobre os Cegos, que, no entender
de muitas pessoas cegas, alimentam uma visão desfavorável acerca
da cegueira, contribuindo assim para a estigmatização desses
indivíduos frente à cultura.
Aqui estamos diante de um dilema: sabe-se que uma obra
literária, antes de ser produto de consumo, é uma transação
íntima, solitária, entre o escritor e a sua criação. Criação esta
que pode ser imprevisível, uma espécie de cavalo mal domado, a
trotar impunemente pela seara da escritura.
Será lícito segurar o freio dessa imaginação criativa,
impondo-lhe compromissos com valores e modos de pensar
politicamente adequados?
Teria a obra Ensaio sobre a Cegueira toda a sua força
narrativa, todo o seu cenário de horror, toda a sua dramaticidade,
o cenário apropriado para se vislumbrar a compaixão humana em toda
sua beleza, e até todo o realismo, se Saramago não tivesse ido até
as últimas consequências na exploração da situação do seu “povo de
cegos”?
E, mesmo as cenas mais belas, como aquela do banho das três
mulheres na varanda da casa da mulher do médico, como poderia
reter essa beleza de ser esse banho uma cerimônia íntima e
privada, desdobrando-se acima de uma cidade de cegos?
Saramago precisava da cegueira como uma espécie de chama de
vela para assombrar e fazer o caos no mundo do seu romance.
Do mesmo modo, Fernando Vidal, personagem da obra de Ernesto
Página 131
Sábato, necessitava crucialmente da cegueira para viver sua
obsessão num mundo subterrâneo, corroído, fraturado, onde era a
própria cegueira que organizava, reunia.
Numa outra ótica, mesmo a cegueira de Gertrudes, limpa,
poética, arranjo de ternura e beleza espiritual, mesmo essa
cegueira é o lugar de onde Gide extrai reflexões sobre moral,
ética, justiça e religião.
O mundo imaginativo, essa realidade fluida, plástica,
insubordinada, esse lugar de onde jorra a literatura, como
poderíamos impor-lhe nossos interesses, nossas crenças, sem
transformá-la numa outra coisa muito diversa de literatura
criativa?
Literatura e cegueira são, pois, duas realidades que se
tocam, estranham-se, entranham-se uma na outra, realizando ora o
fluxo da cultura, ora o refluxo para outros mundos, os mais
subjetivos, mais recônditos mundos onde não há lugar para a
lógica, a racionalidade, o politicamente correto. Mundos como
aquele onde vive Fernando Vidal, ou mundos como o da mulher do
médico, onde a solidão parece reverberar, como a única fala a ser
ouvida.
Entretanto, ouso dizer que, em todas essas obras, por
caminhos diversos, podemos encontrar uma espécie de ponto de
intersecção, uma espécie de convergência nas suas abordagens sobre
a cegueira. Saramago, tal como Sábato, serve-se da cegueira para
iluminar, para acentuar uma dada realidade subjetiva, interior,
própria do território do espírito, ou, se quisermos, da psiquê
humana. Do mesmo modo, ainda que em menor medida, Gide apropria-se
da cegueira de Gertrudes para refletir sobre moral, religião,
ética e justiça.
Ainda que tais marcas não sejam visíveis, é como se, em cada
uma dessas obras, se retomasse a ideia mítica de cegueira como
“iluminação interior”, como se se revificasse o mito de Tirésias,
adivinho da cidade de Tebas, que ficara cego ao tentar desvendar
os segredos dos deuses.
Podemos então, por força de metáfora, de aproximação, dizer
que a cegueira, no âmago dessas obras literárias, é a chama da
vela bachelardiana, a criar e alimentar ora realidades difusas, em
zonas de penumbra ou de treva absoluta; ora cenários vívidos e
clarividentes, plenos de beleza, numa cidade onde todos estão
cegos.
E ouso ainda um comentário final, sugerindo que, para além
da chama de uma vela, a cegueira acaba sendo uma espécie de
espelho às avessas, ao qual a literatura de Sábato, de Saramago e
de Gide submete impiedosa ou ternamente os seus personagens.

Referências Bibliográficas:

BACHELARD, Gaston: A Chama de Uma Vela. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 1989.

COUTO, Mia. O Cego Estrelinho. In: Estórias Abençonhadas. Lisboa:


Editora Caminho, 1987.

ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Coleção Mil Folhas. Porto: Público,


2000.

Página 132
GIDE, André. A Sinfonia Pastoral. Rio de Janeiro: Editora Vechi,
1948.

REDOL, Alves, Barranco de Cegos. Lisboa: Editorial Avante, 1982.

SÁBATO, Ernesto. Informe Sobre los Ciegos. In: Sobre Héroes y


Tumbas Argentina, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1961.

SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. Rio de Janeiro: Companhia


das Letras, 1995.

__________. A Caverna. Lisboa: Editora Caminho, 2000.

__________. História do Cerco de Lisboa. Rio de Janeiro: Companhia


das Letras, 1989.

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Literatura para quê?

Maria Helena Falcão Vasconcellos

Os fatos são sonoros, mas entre eles há um sussurro.


O que me impressiona são os sussurros.
Clarice
Lispector

O título

Foi lembrando a indagação de Holderlin: “Em tempos de


indigência, poetas para quê?” que escolhi o título: Literatura
para quê? Na verdade é a mesma pergunta: literatura é palavra
poética.
Podemos perguntar: quando Holderlin indaga “Em tempo de
indigência, poetas para que?” de que indigência falava?
Holderlin viveu no final do século XVIII e primeira metade do
século XIX, e criticava o modo de perceber-se e perceber o mundo e
o modo de produzir conhecimento decorrente da razão iluminista.
Ele e outros pensadores de sua época atentavam para a pobreza de
um modo asséptico de existir, que recusava um corpo a corpo com o
mundo, analisando-o de longe, para dominá-lo e submetê-lo a uma
relação utilitária. Em contrapartida, viam na relação amorosa com
o mundo, na experiência poética, a possibilidade de saída da
indigência.
Hoje, há também um modo de estar no mundo, um modo de
perceber-se no mundo, parece que majoritário, que é um modo
indigente de existir; desdobramento da indigência de que falava
Holderlin: dificuldade para fazer, daquilo que nos acontece, a
experiência do presente vivo. O presente do que nos acontece a
nós, videntes e não-videntes, seja lá o que aconteça, é nossa
grande chance de ir inventando um modo de existir. Parece que
muitas vezes desperdiçamos a possibilidade de fazer a experiência
do presente vivo.
Uma das indigências, quer dizer, uma pobreza de nossa época é
a indigência da experiência da vida pulsante que nos convoca
naquilo que nos acontece. Se for verdade que nós, videntes e
não-videntes, carecemos de sensibilidade para viver experiências,
pergunto: é possível aprender a viver uma experiência? Isso tem
alguma coisa a ver com literatura?
Repito: uma das indigências da atualidade é a dificuldade
para vivermos a experiência. Dentre outras, duas coisas
valorizadas em nossa atualidade dificultam a experiência do
presente vivo. Primeiro, o excesso de informação que nos assalta.
Somos bombardeados por informações e, muitas vezes, nos percebemos
na obrigatoriedade de consumir mais e mais informação. Outra coisa
é o excesso de opinião. A necessidade de proferir imediatamente
opinião sobre qualquer coisa, esse tagarelar imprevidente que
impede o silêncio, dificulta a experiência do presente vivo. Há
verdadeira obsessão pela posse da informação e pela opinião
supostamente pessoal. Mas não nos iludamos: o consumo de
informação e a emissão de opinião não são experiência. Pelo
contrário, o poder que oferecem o acúmulo de informação e a
presteza na emissão de opinião anulam a possibilidade de dar-nos
Página 134
conta do acontecimento que explode no baque violento do fora,
interferindo na dobra que constitui a subjetividade. Excesso de
informação acumulada e fome de emitir opinião não deixam espaço
existencial para acontecer a experiência (Larrosa, 2002).

Experiência/aprendizado

Mas então o que é experiência?


Encontramos em Heidegger uma boa descrição do que entendo
aqui por experiência:

Fazer uma experiência com algo, uma coisa, um ser humano, um deus,
significa que algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até
nós, nos avassala e transforma. Fazer não diz aqui de maneira
alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a
experiência. Fazer tem aqui o sentido de atravessar, sofrer,
receber o que nos vem ao encontro... (2003, p. 121)

Fazer uma experiência, portanto, não é decisão e ação de um


sujeito soberano, é algo que nos acontece; mais ainda, fazer uma
experiência é dar-se conta de que algo nos alcança, de que algo se
nos passa.61 Fazer uma experiência é um modo de estar no mundo,
sofrendo forças invisíveis que tomam posse de nós, nos arrancam de
nós e nos tombam para fora de nossos contornos, nos fazem outros.
Esse é o grande aprendizado que nos cabe na atualidade;
aprendizado de existir no fluxo de forças que constitui o mundo e
vai esculpindo em nós as marcas de um estilo de existência.
Fazer uma experiência, então, é operar uma receptividade
ativa que se sensibiliza às forças do vivo de que estão prenhes os
fatos. Urge engajar-nos neste aprendizado, abertura ao que nos
acontece, não desperdiçando a única matéria-prima da construção de
um si com o mundo: a matéria-prima de algo que se nos passa.
É aqui que entra de cheio a literatura. O que pode a
literatura? O que pode a palavra-em-estado-de-arte (Almeida,
2003)? A literatura é ingrediente poderoso para se aprender a
experimentar as forças do vivo, invisíveis nos fatos que nos
envolvem. Ela nos sensibiliza, nos torna porosos à potência que
pulsa na matéria do universo.
Esse é o aprendizado que nos apela. Apela a videntes e apela
a não videntes. Aprendizado de uma mudança perceptiva. Ou seja, a
proposta é modificar a frequência da percepção: passar do ruído
completamente audível dos fatos aos sussurros entre os fatos.
Clarice Lispector sintonizava com essa frequência perceptiva e
impregnava com ela a palavra que escrevia. “Os fatos são sonoros,
mas entre eles há um sussurro. O que me impressiona são os
sussurros.” (Lispector, 1977, p. 31)
Voltemos à pergunta: o que pode a literatura? A literatura,
como qualquer outra modalidade de arte, pode provocar em nós uma
abertura aos sussurros entre os fatos.
Todos nós somos um tanto cegos, um tanto surdos, um tanto
insensíveis às forças do corpo do mundo que tocam nosso corpo.
Essas forças são inaudíveis e invisíveis a ouvidos e olhos
exclusivamente empíricos, e requerem o aprendizado de um terceiro
ouvido e um terceiro olho. Este aprendizado está referido a um
tipo peculiar de sensação. Sensação vivida no corpo, sensação
provocada pela atmosfera de virtualidades que evolam entre os
fatos.
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Essa modalidade peculiar de ver e de ouvir não é atividade
natural em nós. O modo como habitualmente vemos, agarrados à face
bruta do mundo empírico, foi aprendido. Tão habituados estamos a
essa modalidade de visão e de audição que as consideramos
absolutamente naturais.
Num conto, o escritor moçambicano Mia Couto nos apresenta o
cego Estrelinho e seu guia Gigito:

"O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia
ser contada e descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. Gigito
conduziu o desvistado por tempos e idades. Aquela mão
repartidamente incomum, extensão de um no outro, siamensal. E
assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco
dedos e eram os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão.
O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimônia no
viver. O sempre lhe era pouco e o tudo, insuficiente. Dizia deste
modo:
– Tenho que viver já, senão esqueço-me.
Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que
ele minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia
era mais profícua que papaeira. O cego enchia a boca de águas:
– Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito!
A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim
estava como nunca esteve São Tomé: via para não crer. O condutor
falava pela ponta dos dedos. Desfolhava o universo, aberto em
folhas. A ideação dele era tal que o cego, por vezes, acreditava
ver." (p. 29-30)

O manuscrito da mentira, o mundo rendilhado que Gigito


minuciava, desfolhando o universo, aberto em folhas, não era o
corpo do mundo fremente de virtualidades, captado pelo terceiro
olho, pelo terceiro ouvido? O terceiro é sempre aquele que não se
fixa na margem do objeto nem na margem do sujeito. O terceiro se
situa num entre. Nem na margem esquerda, nem na margem direita do
rio. Na terceira margem.
Num outro conto, talvez Mia Couto se aproxime de Guimarães
Rosa. Parece que Nas águas do tempo e Terceira margem do rio são
contos aparentados. No conto de Mia Couto, um avô se dispõe
pacientemente a iniciar o neto na abertura às forças que perpassam
tudo aquilo que experimentamos empiricamente. Nas palavras do
escritor moçambicano, acompanhemos o processo de iniciação do neto
se robustecendo. Depois de remarem juntos até o lago, onde se
perdem as duas margens do rio, e de terem sofrido, aí, experiência
forte,

"Ao amarrar o barco, o velho me pediu:


– Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu?
Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos
se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No
mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para
dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu
filho, é que quase todos são cegos, deixaram de ver esses outros
que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra
margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá
nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a
ser visitado pelos panos.
– Me entende?
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Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao
lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o
tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na
proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado,
havia menos que ninguém. Desta vez, também o avô não via mais que
a enevoada solidão dos pântanos. De súbito ele interrompeu o nada:
– Fique aqui!
E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava
os territórios interditos?" (p. 16)

Em palavras de Mia Couto, o neto afirma: “Pela primeira vez


eu coincidia com meu avô na visão do pano.” E, nas palavras
finais, o conto relata a culminância do ritual de aprendizado de
modalidade nova de percepção:

"Enquanto eu remava em demorado regresso, me vinham à lembrança as


velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos
gêmeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim
um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto a
conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da
outra margem." (p. 17)
Nessa nova qualidade de percepção é o corpo inteiro que é
afetado. Nosso corpo não pode ser percebido como carne fatiada em
pedaços com funções estanques: apenas olho pra ver, apenas ouvido
pra ouvir, boca para degustar sabores, pele para a sensação do
toque. Podemos criar para nós a percepção de um corpo
sensibilizado, “visitado pelos panos”, aberto ao atravessamento
das sutis virtualidades do corpo do mundo. Um corpo que

"...se transforma num único órgão perceptivo (...) não à maneira


de um órgão sensorial, mas como corpo hipersensível às variações
de forças, ao seu tipo, à sua intensidade, às suas mais finas
texturas. Corpo particularmente sensível às vibrações e aos ritmos
dos outros corpos." (Gil, 2004, p. 2)

O que pode um corpo aberto a outros corpos, aberto em toda


sua superfície, penetrado por forças cósmicas, através de todos os
poros? Certamente pode ser ingrediente de um modo de existência
rico e não indigente.
Um modo de existência rico, na matéria efetiva, empírica, dos
corpos, vê o invisível, ouve a voz não audível, toca, cheira e
saboreia forças que são o mundo. Perceber estas forças na
superfície excitada da pele inteira, que reveste o corpo. Fazer a
experiência do que se nos passa de corpo inteiro. Naquilo que se
nos passa germinam sentidos que, muitas vezes, se encarnam em
palavras.
Acredito que a arte, no nosso caso aqui, a
palavra-em-estado-de-arte, palavra poética, literatura, seja um
dos meios de nos entregarmos ao que vai nos acontecendo e de
sermos sensíveis à potência do vivo em que estamos imersos. Entrar
em contato com o texto literário, fazer a experiência da linguagem
poética é abrir-se ao aprendizado de um modo de existência
potente.

Palavra-em-estado-de-arte

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A palavra-em-estado-de-arte é nossa aliada na empreitada de
aprendizado de outro modo de estar no mundo. É Clarice que afirma:
“Sou grata a meus olhos que ainda se espantam tanto. Ainda verei
muitas coisas” (1999, p. 76)
Palavras não são apenas palavras, elas agem, elas nos movem,
elas nos configuram; é com palavras que nós pensamos. A palavra
falada caracteriza a condição humana. Larrosa sugere que definamos
o ser humano como vivente dotado de fala, ou seja, de linguagem.
Habitamos o mundo imersos em linguagem. É na linguagem que habita
o sentido. A linguagem é a atmosfera em que nos movemos
existencialmente, é nela que temos acesso ao real. Existimos
linguajeiramente, sempre tentando dar conta de encontros que vão
nos engendrando no mesmo ato que engendram mundos de sentidos.
Mas não lidamos com a linguagem sempre do mesmo modo. Uma é
nossa lida com a linguagem na vida prática do cotidiano. Essa é
uma linguagem pragmática, a serviço da sobrevivência. Dizemos que
esse é um uso prático da linguagem. Como quando eu digo: – Você
vira a esquina, no outro quarteirão fica a padaria. – Aqui está o
livro de que lhe falei.
Na palavra poética, mesmo que em expressão cotidiana, a
linguagem funciona de outro modo, um funcionamento intensivo. É no
funcionamento intensivo, estendendo a palavra até seus limites,
que está a peculiaridade da literatura.

"Aquilo de que se vive – e por não ter nome só a mudez pronuncia


– é disso que me aproximo através da grande largueza de deixar de
me ser. Não porque eu então encontre o nome do nome e torne
concreto o impalpável – mas porque designo o impalpável como
impalpável, e então o sopro recrudesce como na chama de uma
vela." (Lispector, 1995, p. 178)
                                             
É verdade que os dois modos de funcionamento da linguagem se
mesclam, mas são distintos.
A linguagem prática pretende abarcar o real, dizê-lo com
exatidão e clareza. A palavra que funciona assim:

"...é uma palavra que pretende controlar o traço desconcertante


que emerge no contato com o real. Ela busca exorcizar a incerteza.
É linguagem autoritária no sentido de que pretende banir qualquer
resquício de vazio, de dúvida e de não-saber...” (Vasconcellos,
2007, pág. 129)

Já a linguagem poética diz intensidades. Cabe-lhe dar língua


ao encontro de fluxos, que instituem a experiência. Cabe-lhe dar
língua ao sussurro entre os fatos. Este sussurro é uma camada
difusa de forças intensivas, que lateja nos fatos. É na dureza e
na ternura dos fatos que se agitam multiplicidades. A linguagem
literária se sensibiliza a essa camada difusa e a encarna em
palavras. O escritor, violentado pela potência da gostosura ou da
crueldade dos fatos, toma o sussurro que ecoa entre os fatos como
matéria-prima

"...para criar mundos em corpo-de-dizer (...) ele capta o


murmúrio indizível do ser. É essa mestria de fragilidade que
institui a potência da obra de arte. Na palavra frágil balbucia,
gagueja a multiplicidade." (Vasconcellos, idem, Ibidem)

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Videntes veem empiricamente os fatos, ouvem a sonoridade
empírica dos fatos. Não videntes não veem empiricamente os fatos,
mas ouvem a sonoridade empírica dos fatos. Porém, não videntes e
videntes, precisamos todos apurar cada vez mais nossa habilidade
de sentir o sussurro das forças inaudíveis e invisíveis a olhos e
ouvidos puramente empíricos.
Na segunda parte do conto O cego Estrelinho, é Infelizmina
que substitui o irmão convocado para a guerra. Ela vê um mundo
diferente do descrito pelo irmão.

"Infelizmina não tinha sabedoria de inventar. Ela descrevia os


tintins da paisagem, com senso e realidade. Aquele mundo ao qual o
cego se habituara agora de desiluminava. Estrelinho perdia os
brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de
queixar."

E quando Gigito morreu na guerra, Infelizmina se calou mais


fundamente.

"A moça, essa, deixou de falar, órfã do irmão. A partir dessa


morte ela só tristonhava, definhava. E assim ficou, sem
competência para reviver. Até que a ela se chegou o cego e lhe
conduziu para a varanda de sua casa. Então iniciou de descrever o
mundo, indo além dos vários firmamentos. Aos poucos foi
despontando um sorriso: a menina se sarava da alma. Estrelinho
miraginava terras e territórios. Sim, a moça, se concordava. Tinha
sido em tais paisagens que ela dormira antes de ter nascido.
Olhava aquele homem e pensava: ele esteve em meus braços antes da
minha actual vida. E quando já havia desvencilhado da tristeza ela
lhe arriscou de perguntar:
– Isso tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde?
E o cego, em decisão de passo e estrada, lhe respondeu:
– Venha, eu vou lhe mostrar o caminho!"

Assim termina o conto de Mia Couto. É bom atentar que os três


personagens irmanados – o neto, Estrelinho e Infelizmina – vivem a
experimentação de uma nova dimensão da percepção do mundo. Os
textos citados descrevem um processo de aprendizado de um estilo
outro de existir, que não o mais habitual. Um modo de existir
entramado nas forças que compõem o mundo. Mas não é apenas nesses
enredos potentes que a literatura aprimora a competência de sentir
as forças não visíveis e não audíveis a olhos e ouvidos puramente
empíricos. A própria trama das palavras, que escreve forças e não
simplesmente a face bruta dos fatos, nos sensibiliza ao sussurro
do acontecimento.
No trabalho de apuro da sensibilidade, podemos contar com a
literatura, pois nas palavras do texto literário se agitam e
sussurram forças do mundo. Por isso, na escuta do texto literário,
no contato com a palavra poética, através da leitura dos olhos ou
leitura das mãos, pode acontecer que algo se nos passe, que algo
nos arranque de nós, nos tire do sério e nos faça tombar fora do
contorno da rotina cotidiana.
O contato com o texto literário como experiência forte com a
intensidade da linguagem atravessa e desloca a dimensão
identitária de nosso existir, instaurando em nós o terceiro
ouvido, o terceiro olho, que nos ensinam a ouvir e a enxergar o
mundo com o corpo inteiro: sensibilidade outra. Essa sensibilidade
Página 139
outra, acentuada ou inaugurada no encontro com a força da
literatura, extravasa e se esparrama em outros encontros que, do
mesmo modo, deslocam sentires e pensares.

nota:
61 “se nos passa” é apresentada como tradução possível, por
João Wanderley Gerardi, na tentativa de manter fidelidade à
construção do texto de Larrosa em espanhol.

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Julia. Estudos deleuzianos da linguagem. Campinas, SP:


Editora da UNICAMP, 2003.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. Lisboa: editorial Caminho S.A.,


1997.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio Janeiro: Ed. 34, 1992.

__________. Crítica e clinica. São Paulo: Ed. 34, 1997.

GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções - Estética e


Metafenomenologia. Lisboa: Relógio d´Água, 2005.

HEIDEGGER, Martin. A essência da linguagem. In: A caminho da


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Página 140
Literatura, devir-consciente e algumas considerações acerca do
conto Em terra de cego, de H. G. Wells

Maria do Carmo Cabral

"Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de
seu universo que não é o nosso (...). Graças à arte, em vez de
contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e
dispomos de tantos mundos quantos artistas originais existem."
(Proust, 1958, p. 142)

A literatura nos oferece mundos os mais diversos. Pela


literatura podemos experimentar outros tempos, outros lugares,
outras vidas. E com a leitura do conto Em terra de cego62, do
escritor inglês Herbert George Wells63, isso ocorre de forma
intensa. Nele, encontramos uma realidade distinta da que vivemos.
Com ele, entramos em um mundo de cegos, um mundo construído,
habitado e comandado por cegos – e essa diferença de perspectiva
pode ser transformadora.
Neste capítulo, abordamos os efeitos da leitura literária
sobre o leitor. Consideramos que a literatura enquanto arte tem a
potência de fazer pensar, de produzir subjetividades e de
transformar. O encontro com a literatura pode ser uma abertura
para o desconhecido, envolvendo o encontro consigo e com a
alteridade do texto, a invenção de si e do mundo, constituindo uma
experiência de devir-consciente.
A partir, principalmente, das pesquisas do historiador
francês Roger Chartier (1999, 2001, 2003), percebemos a existência
de diversas práticas de leitura. Desta forma, buscamos especificar
de início qual leitura será tratada. Em seguida, inserimos a noção
de devir-consciente (Depraz, Varela e Vermersch, 2003), assim como
a idéia de que algumas leituras podem levar a uma experiência
deste tipo. Por fim, apresentamos e comentamos o conto Em terra de
cego, de Wells.
Chartier investigou práticas de leitura que existiram ao
longo do tempo. Segundo ele, os diferentes modos de ler se
constituem a partir de múltiplos fatores, tais como o livro e o
texto, os lugares e épocas em que ocorrem, os objetivos dos
leitores, as formas de ler, as relações estabelecidas entre texto
e leitor, entre outros. Assim, nas definições que Chartier propõe
acerca das práticas de leitura, algumas questões se destacam:
a) O que ler: referente às características formais e técnicas do
texto, como o gênero literário, o estilo do autor, o leitor ideal,
os protocolos de leitura, e às características do livro enquanto
objeto material, sua forma final e como foi produzido;
b) Para que ler: onde se inserem as razões de ler, os objetivos,
interesses e expectativas do leitor quanto ao livro e à leitura;
c) Como ler: relativo às práticas de leitura, que envolvem a
modalidade física do ato de ler e a capacidade do leitor, o
método, a forma e o ritmo da leitura, assim como a relação que se
constitui entre o leitor e o texto;
d) Efeitos da leitura: quanto às consequências do ato de ler, ao
Página 141
que advém da leitura, ao que ela pode trazer para o leitor –
descoberta, reconhecimento, estranhamento, informação, prazer,
fruição, problematização, distração, transformação, fuga,
desconforto, conhecimento, reafirmação, etc.

Ao pensarmos a leitura a partir da perspectiva do leitor,


operamos uma diferenciação entre uma leitura de aquisição de
informação e uma leitura de acolhimento ou à espreita. A primeira
diz respeito a uma prática eminentemente segura, confortável e
inócua, onde o leitor apenas reafirma suas crenças e concepções de
mundo, fazendo uma leitura autocentrada e isenta de risco. Esta
prática está ligada a uma concepção de cognição como
representação, na qual o leitor busca acumular conhecimentos, e
não há abertura para que encontros aconteçam, nem para que ele
possa se transformar ou questionar suas próprias ideias em
decorrência dos efeitos da leitura.
Entretanto, há outra maneira de ler, característica de uma
cognição inventiva, que nomeamos de leitura de acolhimento ou à
espreita. Neste tipo de experiência, o leitor possui uma
disposição aberta para perceber e acolher o que pode vir do texto.
Ao estabelecer uma relação intensa, de entrega, a leitura provoca
uma abertura para o desconhecido, faz pensar, levando à invenção
de outras possibilidades de relação consigo, com o mundo e com a
alteridade. O leitor se questiona, se coloca em perigo e permite
que ocorram transformações a partir do encontro com o texto e das
ressonâncias que ocorrem nele.
Apesar de possível, esse tipo de leitura não é trivial, não
ocorre sempre, nem se dá da mesma forma para todos. A leitura de
acolhimento envolve um tipo específico de aprendizado, um
aprendizado que depende da prática, que é um cultivo e que tende a
alcançar uma atenção aberta (Depraz, Varela e Vermersch, 2003), de
entrega e de aceitação do texto lido. Além do cultivo, existe
ainda uma questão de acaso e de sorte para que esses encontros
aconteçam. Não há garantia, mesmo para quem já vivenciou essa
experiência antes, mesmo quando lemos um autor que gostamos. Esta
leitura exige prática e um movimento de desprendimento de si.
Quando isso acontece, essa leitura de acolhimento leva a um
mergulho na sombra, propiciando a transformação do leitor. Há na
leitura literária uma força para provocar uma interrupção na
correria do dia a dia (Zambrano apud Larrosa, 2003),
constituindo-se uma forma de resistência ao excesso de informação
existente na contemporaneidade.
Argumentamos que uma leitura de acolhimento pode levar a uma
experiência de devir-consciente. Natalie Depraz, Francisco Varela
e Pierre Vermersch (2003) descrevem o devir-consciente como o
tornar-se ciente de uma experiência presente. Um processo pelo
qual pode surgir na minha consciência alguma coisa de mim mesmo
que eu não tinha consciência, pois estava confuso, opaco,
pré-refletido. Esses autores salientam que esta é uma experiência
usual, que todos podem ter, mas que muitas vezes não se dão conta.
Por isso, eles buscaram definir a estrutura dessa experiência,
observando como ela ocorre em diversas práticas, tais como a
meditação budista, uma aula de filosofia, uma sessão de
psicanálise, a escrita, entre outras.
A estrutura do ato de devir consciente é constituída pelo
ciclo básico chamado redução, composto pela suspensão, redireção e
acolhimento ou deixar vir (letting-go) e pela evidência intuitiva.
Página 142
Existem ainda duas fases que podem ou não ocorrer, que são as
etapas de expressão e validação.
Com a leitura literária, podemos experimentar uma suspensão
do que a fenomenologia chama de “atitude natural” – que é a nossa
atitude usual de realizar julgamentos acerca do mundo externo. Em
suspensão, o leitor sai da atitude natural e direciona sua atenção
para a experiência, para o que está ocorrendo no momento.
No decorrer da leitura de acolhimento, pode acontecer uma
surpresa estética, o que leva a uma redireção da atenção do
exterior para o interior, desencadeando uma relação consigo, na
qual entramos em contato com a alteridade que nos habita. Essa
relação não é, portanto, nem reflexiva, nem pertence à dimensão
recognitiva. É uma relação de uma outra natureza, que envolve uma
atenção a si, uma dobra sobre si mesmo.
Após a leitura, ou mesmo em interrupções que ocorrem durante
a própria leitura, coloca-se a necessidade de um tempo vazio.
Nessa espera, há uma mudança na qualidade da atenção, que passa de
uma atenção que busca para uma atenção que acolhe (etapa do
acolhimento ou deixar vir).
Se o leitor conseguir sustentar esse vazio sem preenchê-lo,
permitindo que o texto ressoe nele, poderá ocorrer a evidência
intuitiva, que completa a experiência de devir-consciente. A
evidência intuitiva envolve o acesso ao plano pré-reflexivo e a
emergência de algo que nos habitava, mas que não tínhamos
conhecimento e que, por isso, pode nos surpreender e nos
transformar.

Em terra de cego

"No universo infinito da literatura sempre se abrem outros


caminhos a explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas
que podem mudar nossa imagem do mundo..." (Calvino, 2003, p. 19)

O conto Em terra de cego, de H. G. Wells, foi considerado


por Ítalo Calvino uma grande fábula moral e política, uma
meditação sobre a diversidade cultural e sobre o caráter relativo
de qualquer pretensão à superioridade. Esta história foi escolhida
para ser analisada pelo que traz de novidade e por sua potência
para mudar nossa imagem do mundo. Ao longo da apresentação do
conto, traçaremos um paralelo com a experiência de
devir-consciente que o leitor pode experimentar a partir do texto.
Para Alfredo Bosi, os textos literários são “uma formação
simbólica grávida de sentimentos e valores de resistência (...)
[que] podem exprimir tanto reflexos (espelhamentos) como
variações, diferenças, distanciamentos, problematizações, rupturas
e, no limite, negações das convenções dominantes no seu tempo”
(Bosi, 2002, p. 10). Apostamos na necessidade de ruptura e de
negação das convenções dominantes no nosso tempo. Acreditamos que
o conto de Wells nos faz pensar e abre a possibilidade de nos
constituirmos de outros modos. Ao inventar a terra dos cegos,
Wells desvenda novas possibilidades de vida e de organização de
uma sociedade. E, com isso, revela a existência de diversos
mundos, de múltiplas realidades.
Em uma leitura de acolhimento ou à espreita, o leitor entra
em contato com a literatura de Wells com uma disposição aberta
para acolher as diferenças e as novidades que vêm do texto,
experimentando uma suspensão de sua atitude natural e uma surpresa
Página 143
estética – que levam à redireção da sua atenção do exterior para o
interior e o fazem entrar em contato com a alteridade que o
habita. Após a leitura, com a espera, respeitando um tempo vazio
para que o que foi lido possa ressoar, há uma mudança na qualidade
da sua atenção: de uma atenção que busca para uma atenção que
acolhe. Nessa atitude de deixar vir pode emergir uma evidência
intuitiva a partir do que foi lido, com o acesso a algo que nos
habitava, mas que não tínhamos conhecimento. Dessa forma,
conclui-se uma experiência de devir-consciente, provocada pela
leitura do conto. Essa evidência intuitiva pode ser diversa para
cada pessoa, como a consciência de nossos próprios preconceitos,
ou uma maior abertura para a alteridade, ou qualquer outra
experiência transformadora suscitada por essa leitura. O que
gostaríamos de salientar é que o leitor que faz uma leitura
aberta, de acolhimento, sairá transformado da leitura do conto Em
terra de cego de Wells. Vamos a ele.
Wells narra que, nas regiões mais selvagens dos Andes,
existia um vilarejo separado do resto do mundo há várias gerações:
a Terra dos Cegos. A perda da visão de seus habitantes havia
ocorrido de forma inexplicável e gradativa, dando tempo para que a
população se adaptasse, construindo a cidade de acordo com suas
necessidades. Quinze gerações depois, eles haviam se esquecido de
muitas coisas e inventado outras. Eram fortes, hábeis e viviam
tranquilamente. Por volta dessa época um montanhês inteligente e
empreendedor chamado Núñez foi parar acidentalmente nesse lugar. E
essa é a história do encontro desse homem com essa sociedade.
Durante a escalada a uma montanha no Equador, Núñez guiava
um grupo de ingleses quando enfrentaram uma avalanche. Durante a
noite, ele caiu de um precipício e não foi mais visto. Porém,
devido à neve, sobreviveu e, depois de andar por doze dias, chegou
à Terra dos Cegos. Na primeira vez que avistou o vilarejo, suas
casas “pareceram muito estranhas para seus olhos” e todo o aspecto
do vale se tornava, à medida que o olhava, mais estranho e menos
familiar para ele. As casas formavam fileiras contínuas de cada
lado de uma rua central e eram multicoloridas, “de um colorido
selvagem (...) de extraordinária irregularidade” (Wells, 2004, p.
499) e sem janelas. Um muro cercava todo o vale e existia um canal
circular que irrigava o prado e as flores abaixo. Acima deste
canal, lhamas pastavam.
Os primeiros cegos que o encontraram “seguraram Núñez e o
apalparam” (p. 501), considerando-o “uma criatura estranha”. “Ele
fala”, argumentou um deles, “certamente é um homem”. Por fim,
chegaram à conclusão que se tratava de um “homem selvagem” (p.
501), feito pelas forças da natureza e parido das rochas.
Decidiram levá-lo aos anciãos, os sábios do lugar.
Em seu contato inicial com a população de cegos, o
provérbio: “Em terra de cego, quem tem um olho é rei” martelava em
sua cabeça como um refrão. Entretanto, Núñez ficara atordoado com
tantas pessoas querendo tocá-lo e, ao entrar nas casas sem janela,
não conseguia enxergar, esbarrando em tudo e derrubando coisas.
Além disso, ao tentar explicar de onde vinha e o que era a visão,
eles consideravam suas palavras desconexas e sem sentido. Desta
forma foi, imediatamente, considerado incapaz, imaturo, um
verdadeiro idiota.
Wells inventa uma sociedade diversa, com uma nova forma de
vida, que questiona e inverte o padrão visuocêntrico. Delineia uma
sociedade de cegos, construída e organizada para e pelos cegos, a
Página 144
partir de seus parâmetros, necessidades e escolhas. Se, no livro
Ensaio sobre a cegueira, Saramago recorre à cegueira enquanto
metáfora, construindo uma situação caótica como consequência da
perda da visão, neste conto, Wells constrói uma civilização
possível sem a visão. Uma sociedade que funciona de maneira
diferente da que conhecemos sendo, porém, verossímil, organizada e
bem estruturada. Uma cidade que propicia uma vida digna e
tranquila aos seus habitantes, ao contrário da impossibilidade, do
caos ou da animalidade decorrentes da cegueira que encontramos no
romance de Saramago.
Nesse vale, os cegos estão em maioria absoluta e o diferente
passa a ser aquele que vê. Apresentando particularidades, falando
do desconhecido e mesmo considerando-se em vantagem, este
estranho, vidente, tem dificuldades para se adequar a esse outro
modo de viver e é percebido como um ser imperfeito e incapaz. O
diferente, o que não é compreendido, é rechaçado, ridicularizado
ou temido, e acaba sofrendo pressão para adequar-se. Alguns pontos
suscitados por este conto dizem respeito à dificuldade de
compreendermos e aceitarmos o que é diferente de nós e a uma
incapacidade de enxergarmos e entendermos a realidade sob uma
perspectiva que absolutamente desconhecemos.
"Depois que sua precária tentativa de lhes explicar a visão tinha
sido posta de lado como a versão confusa de um ser recém-criado
descrevendo as maravilhas de suas sensações incoerentes, ele se
conformou, um tanto espantado, em ouvi-los. E o mais velho dos
cegos explicou a ele a vida, a filosofia e a religião, como o
mundo tinha sido inicialmente um vazio oco nas rochas, e então
surgiram, primeiro, coisas inanimadas sem o dom do tato, e depois
as lhamas e umas poucas outras criaturas que tinham pouco sentido
das coisas, e então os seres humanos, e enfim os anjos, que se
podiam ouvir cantando e se agitando, mas os quais ninguém podia
tocar." (Wells, 2004, p. 503)

Os anjos que o ancião descreveu eram os pássaros que


sobrevoavam o vale. Nesse sentido, vale observar como o ser humano
constrói explicações para o que não compreende, e muitas vezes o
faz de forma poética. O ancião continuou contando como o tempo
havia sido dividido em quente e frio, “e como era bom dormir no
quente e trabalhar no frio”. Explicando porque eles trabalhavam
durante a noite, que era mais fresco e agradável, e dormiam
durante o dia, por ser mais quente. Por fim, afirmou que Núñez
devia ter sido “criado especialmente para aprender a servir à
sabedoria que eles tinham adquirido e que, apesar de toda a sua
incoerência mental e todo o seu comportamento estabanado, ele
precisava ter coragem e fazer o melhor para aprender” (p. 504).
Desde sua chegada, quatro dias se passaram “e o quinto dia
encontrou o Rei dos Cegos ainda incógnito, como um estranho
desajeitado e inútil entre seus súditos” (p. 505). Ele percebeu
que não seria tão fácil tornar-se rei daquele lugar como havia
imaginado e, enquanto pensava em como realizar “seu golpe de
Estado”, ele resolveu fazer “o que lhe diziam e aprendeu as
maneiras e costumes da terra dos Cegos” (p. 505).
Sobre Núñez, concluíram que se tratava de um “homem
selvagem”, que havia sido feito pelas forças da natureza, pela
podridão, que foi parido pelas rochas e que veio para o mundo. O
consideravam “uma criatura estranha”, áspera, com “pálpebras
Página 145
piscantes” e cabelos duros como o pêlo de uma lhama. Refletiram
que, como acabara de ser criado, seus sentidos ainda eram
imperfeitos e ele não podia ouvir o caminho enquanto andava, por
isso tropeçava, precisando ser levado como uma criança. E, como
sua mente ainda não estava completamente formada, ele possuía
apenas os começos da fala, utilizando muitas palavras sem sentido.

Núñez ainda insistiu um pouco em explicar-lhes sobre a


visão. Mas, com o tempo, o que era inicialmente incredulidade
divertida da parte deles se transformou em uma atitude
condenatória. Refutavam as descrições de mundo feitas por Núñez,
confrontando-as com suas próprias crenças.

"Disseram-lhe que não havia montanhas de modo nenhum, mas que o


fim das rochas onde as lhamas pastavam era na verdade o fim do
mundo, dali partia um teto cavernoso do universo, de onde vinham o
orvalho e as avalanches; e quando ele se manteve firme na
afirmação de que o mundo não tinha fim nem teto, ao contrário do
que eles supunham, eles disseram que seus pensamentos eram
pecaminosos." (Wells, 2004, p. 506)

Ao perceber que suas palavras os chocavam, “desistiu de vez


desse assunto, e procurou mostrar-lhes o valor prático da visão”
(p. 507), relatando o que via para ser comparado com anotações que
os cegos faziam sobre o que acontecia. Sua demonstração, porém,
também falhou, uma vez que eles só tomavam nota do que acontecia
dentro ou atrás das casas sem janelas, e “dessas coisas ele não
podia ver ou dizer nada, e foi após o fracasso dessa tentativa, e
da ridicularização que eles não conseguiram reprimir, que ele
recorreu à força”. Descobriu, entretanto, “que era impossível para
ele agredir um cego a sangue-frio” (p. 507). Após um confronto,
acabou fugindo e “ficou fora do muro do vale dos cegos duas noites
e dois dias, sem comida ou abrigo, e meditou sobre o inesperado”
(p. 509).
Como não encontrava maneiras de conquistar aquele povo,
“finalmente rastejou de volta para o muro da Terra dos Cegos e
tentou entrar num acordo” (p. 510). Disse que havia enlouquecido,
mas que agora estava mais sábio e se arrependia de tudo o que
tinha feito. Sua revolta foi encarada “como mais uma prova da
idiotia e inferioridade gerais dele e, depois que o chicotearam, o
indicaram para fazer o trabalho mais simples e mais pesado que
tinham para alguém fazer, e ele, não vendo outro modo de vida, fez
submisso o que lhe disseram para fazer” (p. 510).
Ao mesmo tempo, continuou recebendo a visita dos filósofos
cegos, que falavam “da pecaminosa leviandade de sua mente, e o
repreenderam de tal maneira por suas dúvidas sobre a tampa de
rocha que cobria sua panela cósmica que ele quase duvidou se na
verdade não era vítima de alucinações ao não ver a tampa lá em
cima” (p. 510-511). Ou seja, devido às dificuldades enfrentadas,
acabou por submeter-se, dizendo o que queriam ouvir e depois,
diante dos “ensinamentos” que ouvia, chegou mesmo a duvidar do que
sabia.
Assim, Núñez se esforçou para se tornar “um cidadão da Terra
dos Cegos, e esse povo deixou de ser um povo generalizado; eles se
tornaram individualidades familiares para ele, enquanto o mundo
além das montanhas se tornou cada vez mais remoto e irreal” (p.
511). Com a convivência, ele aprendeu que não existe o cego, como
Página 146
uma entidade única, mas pessoas cegas, diferentes entre si, com
suas particularidades e características pessoais, da mesma forma
como entre os videntes.
Com o tempo, o vale se tornou o mundo para ele e, quando se
apaixonou por Medina-saroté, filha caçula de seu patrão Yacob,
pensou que poderia viver ali para sempre. Ela correspondeu ao seu
amor, mas havia grande oposição à união deles, já que, apesar da
aparente aceitação, ainda o consideravam “como um ser à parte
(...), uma coisa abaixo do nível permissível para um ser humano”.
O pai tentou convencer a filha a desistir, dizendo: “ele é um
idiota. Sofre de alucinações; não pode fazer nada direito” (p.
512). Mas a moça estava apaixonada e decidida a casar-se.
Resignado, Yacob foi falar com os sábios, buscando
interceder em favor da filha. Argumentou que Núñez já estava muito
melhor do que era antes, e que seria possível que um dia o
julgassem tão bom quanto eles próprios. Então, um dos sábios
afirmou: “Penso que muito provavelmente ele pode ser curado. (...)
O cérebro dele é que é afetado” (p. 513). Mas o que o afeta?
“Essas estranhas coisas que chamamos os olhos, e que existem para
fazer uma depressão macia e agradável no rosto, são doentes, no
caso dele, de uma maneira tal que afeta seu cérebro. São
excessivamente estendidas, ele tem cílios e suas pálpebras se
movem, e consequentemente seu cérebro está num estado de constante
irritação e distração. (...) para curá-lo completamente, tudo que
precisamos fazer é uma cirurgia bem fácil – ou seja, extrair esses
corpos irritantes (...). E então ele ficará perfeitamente são e
será um cidadão bem respeitável” (p. 513). Apesar das dúvidas de
Núñez, Medina-saroté o convenceu a enfrentar os cirurgiões cegos.
É importante destacar que a máxima autoridade local,
representada pelos anciãos, atuou no sentido de buscar a cura, a
normatização, a adaptação, frente à diferença, considerada como
sinal de inferioridade, insanidade ou mesmo ameaça. No conto, os
anciãos procuram agir em prol do que consideram o bem de todos.
Assim, pretendem educar e curar Núñez, visando sua adaptação à
sociedade local, tornando-o um igual. Não sendo capazes de
entender a resistência dele frente à decisão pela cirurgia.
"Durante a semana anterior à operação que deveria erguê-lo da
servidão e da inferioridade para o nível de um cidadão cego, Núñez
não dormiu nem um pouco (...) ele ficava sentado meditando ou
andava sem rumo, tentando levar sua mente a suportar o dilema.
Tinha dado a resposta, tinha dado o consentimento, e ainda assim
não tinha certeza." (Wells, 2004, p. 515)

Quando chegou o último dia de visão para ele, Núñez decidiu


buscar um lugar solitário e ali ficar até que chegasse a hora de
seu sacrifício.

"Mas enquanto andava ergueu os olhos e viu a manhã, a manhã como


um anjo em armadura dourada, descendo pelos picos... Pareceu-lhe
que, diante desse esplendor, ele, e esse mundo cego no vale, e seu
amor, e tudo, não eram mais do que um poço de pecado. (...) seguiu
em frente, e passou pelo muro circular e saiu para as rochas, e
seus olhos estavam sempre vendo o gelo e a neve iluminados pelo
sol. Viu sua beleza infinita (...). Pensou naquele mundo grande e
livre de onde tinha partido, o mundo que era o seu próprio mundo."
(Wells, 2004, p. 515)
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Continuou andando, escalando e, mesmo cansado e machucado,
“sentia como se estivesse à vontade e havia um sorriso em seu
rosto” (p. 516). Enquanto olhava para a “ilimitada vastidão do
céu” e para o pôr-do-sol, com “o azul se aprofundando para o
púrpura, e o púrpura para uma escuridão luminosa”, ele parou e
ficou quieto, “sorrindo como se estivesse satisfeito simplesmente
por ter fugido do vale dos cegos, no qual tinha pensado ser rei. O
brilho do pôr-do-sol passou, a noite chegou, e ele ainda estava
quieto, deitado, em paz e contente sob as estrelas frias e claras”
(p. 517).
O fim do conto é poético, mas triste, pois apesar de trazer
a reafirmação dos ideais de cada um, demonstra uma impossibilidade
de convivência intransponível. A despeito da novidade e do
questionamento de padrões, o conto não apresenta uma solução. Ao
final da história, sucumbe-se, mais uma vez, frente à
intolerância. Como se uma convivência pacífica, com respeito entre
as pessoas, fosse absolutamente inviável. Como se não fosse
possível que pessoas diferentes vivessem junto e em paz, onde um
não quisesse impor suas crenças e ideais ao outro, por não
conseguir entender, conceber e muito menos aceitar outras formas
de viver e de pensar. No fim, percebemos que essa forma libertária
de vida e de convivência permanece como uma utopia ainda por vir.

notas:

62 Este conto é de 1899 e pode ser encontrado no livro


Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Ítalo Calvino. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
63 H.G. Wells também é o autor de A máquina do tempo (1895),
A ilha do Dr. Moreau (1896), O homem invisível (1897), A guerra
dos mundos (1898), entre outros.

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Página 149
Seção 5 – Política e cidadania

Deficiência e política: vidas subjudagas, narrativas insurgentes

Bruno Sena Martins

A concepção de deficiência desenhada no século XVIII – que


nasceu e se consolidou alojada nas próprias estruturas culturais,
sociais e econômicas em que assentam as sociedades modernas –
viria a subsistir incólume até ao final da década de 60 do século
XX, em que pela primeira vez foi seriamente denunciada a
cumplicidade entre a noção de deficiência hegemonicamente
estabelecida, as formas vigentes de organização social e as
experiências de profunda marginalização então vividas pelas
pessoas descritas pelo idioma da deficiência. A noção de
deficiência que se instalou nas entranhas do advento moderno
persiste vigorando nas sociedades ocidentais. No entanto, hoje é
possível distinguir uma concepção hegemônica de deficiência de uma
concepção contra-hegemônica, sendo ainda possível aquilatar os
aportes que cada uma delas tende a imputar na vida social de
significativas minorias populacionais.
Interessantemente, ao mesmo tempo em que é possível
consagrar a violência simbólica e vivencial que as representações
modernas infundiram na experiência da deficiência, remetendo-nos
para um longo tempo que assinala como as diferentes condições
físicas se nutriram da experiência, é possível aceder a um tempo
curto. Falo de uma temporalidade que nos reporta à década de 1970,
a partir da qual é possível ler em que medida, nas diferentes
sociedades, nas diferentes nações, os valores hegemônicos
constituídos sobre as pessoas com deficiência foram
desestabilizados como forma de negar o seu impacto excludente nas
vidas de quem, utilizando a linguagem hegemônica, chamamos pessoas
deficientes ou pessoas com deficiência. Na realidade, numa
perspectiva radicalmente instigante, mais do que um conjunto de
atributos objetivamente identificáveis ou definíveis, a opressão
social será, porventura, a única coisa que as pessoas deficientes
têm em comum (Wendel, 1997, p. 264). Portanto, ciente do perigo de
universalizar uma diferença que assenta numa demarcação
contingente, definida historicamente, ao referir-me às
deficiências (físicas) em termos mais generalistas, viso
contemplar elementos comuns da subalternização das pessoas
deficientes. Aquelas mesmas que foram e vêm sendo identificadas no
próprio processo histórico da emergência de movimentos políticos
em torno das deficiências.
O surgimento, nos finais da década de 1960, dos movimentos
estudantis e das lutas pelos direitos civis constituiu uma
profunda reestruturação das práticas e valores democráticos até
então vigentes. Por um lado, foi aí achada a falência das formas
tradicionais de participação política, assentes na
representatividade partidária e na equação minimalista do
exercício da cidadania ao voto. Isto num quadro em que as lutas de
classe sindicalmente organizadas se estabeleciam como uma poderosa
exterioridade à luta político-partidária. Por outro lado, o
surgimento de tais reivindicações veio tornar clara a tensão
oposicional entre a noção moderna liberal de cidadania e a
Página 150
subjetividade individual (Santos, 1999, p. 204-208). Denuncia-se
aí como a universalização dos sujeitos operada pela noção
cidadania, sintetizada no princípio da igualdade de todos perante
a lei, esmaece a diferença que reside na subjetividade dos
indivíduos, nas suas narrativas pessoais, nas suas reflexividades,
nas suas orientações sexuais, na diferença sexual, nas identidades
adscritas à diferença dos seus corpos, etc.
Portanto, a gênese de uma profusão de organizações
insurgentes e reivindicativas nas décadas de 1970 e 80,
sociologicamente definidas pela designação de “novos movimentos
sociais”, reporta-nos para a dissensão que as lutas dos anos 60
estabeleceram em relação aos poderes estabelecidos e em relação ao
modo como estes eram contrapostos no idioma dos direitos e da
cidadania. Os novos movimentos sociais surgem, então, como uma
pletora de coalescências políticas estabelecidas à margem dos
campos ortodoxos de luta, fundando-se numa afirmação solidária de
identidades em que o pessoal se torna político. Deste modo, surgiu
toda uma constelação de lutas sociais que se vêm dirigir às
diversas formas de opressão que marcam as vidas dos sujeitos,
colocando-se na arena política as relações de poder que estão
presentes na vida cotidiana, para além das fronteiras entre
público e o privado e nas representações culturais. Por esta via
deu-se um alargamento do panorama democrático e um aprofundamento
da própria ideia de democracia, cunhada pela articulação de formas
de contestação cujos propósitos indicam, não raras vezes, a
necessidade de uma radical reconfiguração das traves econômicas e
sócio-culturais em que se fundou a vida moderna.
A aparição de toda uma miríade de organizações e movimentos
sociais, assentes em solidariedades políticas que visavam as
causas mais diversas, veio criar um inédito espaço de enunciação
para a reiterada experiência de exclusão e depauperação vivida
pelas pessoas com deficiência. Assim, nos anos 70, um pouco por
todo o mundo, viriam a criar-se e a reformular-se estruturas
organizativas que estabeleceram como propósito central, por vezes
único, a visibilização das múltiplas formas de opressão a que
estão sujeitas as pessoas com deficiência. Objetivo a que se
juntou a necessidade de uma transformação social passível de
reverter as lógicas propiciadoras dessa mesma opressão.
Identifica-se, pois, uma convergência entre os novos movimentos
sociais e políticos que se desenvolveram nas décadas de 60 e 70 e
a articulação de vozes de contestação pelas pessoas com
deficiência. Na minha leitura, a afinidade que ligou as pessoas
com deficiência a esse advento sócio-político reside
fundamentalmente no fato de se ter estabelecido uma leitura
crítica da sociedade vocacionada a desvelar as múltiplas faces da
opressão. Uma leitura que reconhece, ademais, em que medida o
exercício da opressão se dá muitas vezes de forma insidiosa,
inculcando-se de tal modo no corpo social que não é passível de
ser apreendido pela perspectiva da violência e da coerção.
Essa articulação dos percursos emancipatórios das pessoas
deficientes com outras propostas de transformação social viria
também a advir do fato de o corpo se ter tornado um locus
privilegiado das lutas pelo significado – tendo sido aí
amplamente denunciado o papel central que os valores embutidos nos
corpos ocupam na legitimação da desigualdade social e das relações
de dominação. Em particular, as pessoas com deficiência
encontraram nos discursos antirracistas e feministas uma assunção
Página 151
fundamental do incontornável lugar ocupado pelos discursos
opressivos reificados nos corpos e nas suas diferenças, surgindo
como absolutamente central a possibilidade de as pessoas definidas
como deficientes debaterem as concepções essencialistas que
ancoram a deficiência na incapacidade. No entanto, e ainda que a
entrada em palco da insurgência ativa das pessoas com deficiência
nos envie para a senda dos novos movimentos sociais, creio ser
necessário que reconheçamos o caráter singular dos desafios que se
colocaram às pessoas com deficiência para a enunciação das
condições de opressão a que as sociedades modernas as votaram. Num
primeiro momento, emerge a custosa valorização da diferença que
consigna a identidade das pessoas com deficiência. A inculcação de
solidariedades identirárias entre grupos marginalizados que se
reconheceram alvo de formas similares de desqualificação e o
consequente engendrar de um percurso emancipatório, dependeram
fortemente da criação de novas plataformas de inteligibilidade.
Novas configurações culturais em que os atributos distintivos
catalisadores da lutas contra-hegemônicas e/ou minoritárias
pudessem ser requalificadas, libertando-se do ônus da
inferioridade. Honi Haber (1994, p. 125), num ensejo propositivo,
sintetiza bem este imperativo:
"…os grupos social e politicamente marginalizados precisam de
continuar a construir a sua voz e a lutar pelo poder. Mas para
fazer isso os indivíduos e os grupos têm que aprender primeiro a
valorizar as suas diferenças. Isto deve acontecer antes das
estratégias e demandas políticas poderem ser formuladas (ou talvez
ambos aconteçam simultaneamente). Para valorizar as diferenças nós
temos que aprender a reconhecer as diferentes identidades que
existem não apenas na sociedade amplamente considerada, mas também
em cada um de nós." (minha tradução)

Assim, a valorização de diferenças opera como um duplo


significante político: diretamente, pelo confronto que estabelece
com a desqualificação produzida e reiterada pelas concepções
dominantes e, indiretamente, pela capacitação dos sujeitos que
assim se tornam capazes de estabelecer lealdades em torno da
afirmação positiva de um atributo diferencial. Na verdade, é a
este segundo aspecto que bell hooks64 (1995, p. 119) se dirige
quando afirma a “auto-estima como uma radical agenda política”. A
questão que se torna premente para uma avaliação dos desafios que
se colocam à articulação política a partir das deficiências e, em
contraponto com outras formas de assunção identitária, é o caráter
infinitamente mais problemático da valorização e celebração da
diferença que está na base dos esquemas classificatórios das
deficiências físicas.
As configurações materiais que identificamos como
deficiências pertencem ao mundo fenomenológico. O fato de alguém
não ver, não ter uma perna ou ter uma lesão na medula não é
completamente redutível ao caráter contingente das apreensões
culturais num dado contexto de crenças. Estamos, pois, perante a
tal relação quiasmática entre a linguagem e a materialidade de que
falava Judith Butler (1993, p. 69). Portanto, ao abordarmos as
configurações físicas que nos surgem sob o conceito de
deficiência, importa considerar que estamos perante condições que
muitas vezes implicam ou estão associadas a experiências de
privação e sofrimento físico que vão para além das formas de
Página 152
opressão social. No caso da cegueira, aquele que conheço melhor,
poderei referir, a título ilustrativo, situações tais como a dor
física que muitas vezes acompanha a evolução de um glaucoma65; a
frustração de uma mãe que não pode conhecer os olhos do filho, de
cuja beleza tanto ouve falar; a maior tendência para a ocorrência
de pequenos acidentes e quedas (embora este dado se associe muitas
vezes ao modo como o ambiente físico é elaborado); a profunda
experiência de privação sentida para quem perde a visão de
repente; a impossibilidade de desempenhar profissões que realmente
dependem da visão, ou de realizar atividades cotidianas, como
conduzir um carro.
Sendo possível e desejável uma valorização das pessoas com
deficiência, das suas capacidades, dos seus intentos vivenciais e
das suas propostas de transformação social, a pouco exequível
celebração da diferença implicada por uma deficiência constitui
uma especificidade político-identitária que importa relevar. O
cerne da questão é que afirmações contra-hegemônicas que procuram
valorizar a diferença, tais como Black is Beautiful ou Glad to be
Gay, denotam uma positividade que as aparta, de algum modo, das
pessoas com deficiência (neste particular, a definição da
comunidade surda como uma minoria linguística constitui uma
exceção). É exatamente pela presença fenomenológica deste “excesso
de real” reconhecido pelo conceito de deficiência que se torna
mais ardilosa uma desnaturalização ou dessomatização das
hierarquias sociais e econômicas vigentes nas vidas das pessoas
com deficiência, constituindo, por consequência, um dos elementos
preponderantes que assiste à particular complexidade em se
visibilizarem as condições de opressão a que estão sujeitas as
pessoas com deficiência.
Um outro elemento que singulariza os desafios que se
estabeleceram, e estabelecem, nos movimentos políticos de pessoas
com deficiência é, sem dúvida, o modo como a opressão social das
pessoas com deficiência tende a ser escamoteada por uma atitude
condescendente e paternalista por parte dos poderes e da sociedade
num sentido mais amplo. Vindo ao encontro desta preocupação, bell
hooks produz uma reflexão que creio ser particularmente
estimulante para se pensarem as aporias políticas que residem no
nexo entre a invisibilização da opressão social e a perpetuação de
um status quo. Refletindo sobre a luta das mulheres e homens
negros nos Estados Unidos da América, bell hooks expressa aquilo
que parece assomar como uma paradoxal nostalgia em relação ao
período que antecedeu às lutas pelos direitos civis nos anos 60. A
assunção de uma tal quase-nostalgia por parte da autora deriva do
fato de, perante à continuada vigência da “supremacia branca” nas
vidas das pessoas afro-americanas, a sua capacidade resistente e
militante ter sido francamente elidida no período que se seguiu à
contestação pelos direitos civis. Embora reconheça as conquistas
que advieram desse período de efervescência social, bell hooks
atenta, sobretudo, para o modo como, a partir daí, se terá dado,
fundamentalmente, uma transformação na natureza da opressão
exercida sobre a população negra. A autora assinala em particular
o fato de o racismo ter continuado a operar nas relações de poder
a par da sua negação na arena social, tornando-se imperioso
contemplar em que medida a subalternização dos afro-americanos
pela “supremacia branca” surge esmaecida pelos discursos em que a
integração social dos negros é celebrada como uma inequívoca
conquista dos direitos civis.
Página 153
O que esta leitura traz de instigante é o fato de assumir
que só se poderão articular resistências à opressão estrutural
quando, num dado contexto sócio-histórico, for possível dar
visibilidade a essas mesmas estruturas de opressão. Deste modo,
dirijo-me aos discursos e práticas congruentes com aquilo que
Martine Xiberras (1993, p. 16) identifica como sendo uma das mais
perniciosas formas de opressão: a compaixão. Ou seja, um conjunto
de valores e procedimentos que se dirigem paternalistamente às
pessoas com deficiência e que assumem o infortúnio e a
inferioridade como dados que devem ser minorados na medida do
possível.
Identificamos, assim, como entraves que demarcam a
articulação de um movimento social em torno da deficiência, a
ideia de que dificilmente existe uma diferença que possa ser
celebrada, e a constatação da prevalência de uma atitude social
que, longe de ser abertamente hostil e violenta para as pessoas
com deficiência, tende a ser compassiva, benevolente e provedora
de formas minimalistas de suporte. No fundo, a dificuldade de se
traduzir a vivência das pessoas com deficiência para uma linguagem
reivindicativa de direitos. Se por um lado importa reconhecer
estas aporias em relação aos restantes movimentos sociais
identitários que proliferaram na década de 1960, por outro, é a
tentativa da sua superação que permitiu que as pessoas com
deficiência assumissem um lugar na vaga a que costumeiramente se
chama de novos movimentos sociais. É aos discursos aí formulados
que procurarei dedicar alguma atenção.

Agendas emergentes

A primeira insurgência ativa das pessoas com deficiência com


um impacto assinalável deu-se nos Estados Unidos, na passagem da
década de 1960 para a de 1970. Um contexto que se encontrava,
então, profundamente marcado pelo impacto das pessoas que
adquiriram deficiências na Guerra do Vietnam, pela convulsão
social provocada, mormente, pela luta estudantil contra essa mesma
guerra e pela defesa dos direitos das pessoas negras. O surgimento
de um projeto de visibilização das condições das pessoas com
deficiência deu-se a partir da cultura universitária, com a
criação do primeiro “centro para a vida independente” (center for
independent living), a partir de uma residência destinada a
estudantes. A ideia do surgimento deste centro surgiu da
identificação da necessidade de um espaço de suporte, gerido pelas
próprias pessoas com deficiência, que lhes conferisse o necessário
apoio para sua integração na sociedade (mainstream society),
libertando as suas vidas do controle dos profissionais,
desmedicalizando-as. Estes centros viriam a disseminar-se por todo
o país, articulados com um amplo movimento social de pessoas com
deficiência – donde se destacou a American Coalition of Citizens
with Disabilities –, investido em pugnar pelo fim das relações de
dependência e pela visibilização dos obstáculos presentes no meio
envolvente (Barnes et al., 1999, p. 68; Barnes e Oliver, 1993, p.
10). Criou-se então aquilo que ficou designado como o Independent
Living Movement, um movimento que se centrou na defesa dos
direitos das pessoas com deficiência, e cuja emergência viria a
ter repercussões noutros contextos. Entre eles, o contexto
britânico, de onde emergem discursos que se mostram
particularmente interessantes para a nossa análise. Isto é assim
Página 154
tanto porque eles se tornaram influentes nas organizações
internacionais de pessoas com deficiência e em outras sedes, como
a OMS (Organização Mundial da Saúde), quanto porque nos conferem a
mais interessante plataforma conceitual onde se vertem e subvertem
as implicações da noção dominante de deficiência que a modernidade
consolidou. Os discursos reivindicativos procedentes do contexto
britânico estão imbuídos de uma reflexividade e de uma visão
estrutural que se mostra preciosa para a apreensão e subversão dos
legados modernos.
O movimento das pessoas deficientes no contexto britânico
viria a assumir uma fulcral importância com a criação, em 1974, de
uma supraorganização onde se agregavam várias organizações de
pessoas com deficiência: a Union of the Physically Impaired
Against Segregation (UPIAS). A UPIAS surgiu por reconhecer o
limitado alcance das principais organizações de pessoas
deficientes que se haviam constituído antes dela: a Disablement
Income Group, uma organização cujo objetivo era a luta contra a
pobreza vivida pelas pessoas com deficiência; e a Disability
Alilance, uma organização que lutava por propósitos semelhantes e
que era constituída por algumas das mais importantes instituições
da “velha guarda”, as instituições de pessoas deficientes geridas
por profissionais (Oliver, 1996, p. 19-20). A UPIAS procurava
superar as concepções que vinham alimentando a ideia de que a
reivindicação central das pessoas deficientes deveria ser a de
melhores pensões sociais. Ao invés, essa organização colocou no
primeiro plano a necessidade de se transformarem, quer as
concepções dominantes detidas em torno das pessoas com
deficiência, quer a organização social que excluía as pessoas
deficientes, remetendo-as à experiência da segregação e pobreza.
Os influentes valores e discursos que presidiram a ação da
UPIAS, e que constituem a estrutura fundamental do que se tornaria
o “modelo social da deficiência”, visam, sobretudo,
reconceitualizar a deficiência enquanto uma forma particular de
opressão social. A matriz dessa insurgência destabilizadora
ficaria reificada na formulação dos “Princípios Fundamentais da
Deficiência” (“Fundamental Principles of Disability”), que foram
publicados pela UPIAS em 1976. Uma formulação em cuja autoria se
destaca o nome de Vic Finklestein, um importante ativista tanto em
nível nacional como em nível internacional. O corolário da nova
perspectiva aí contida ficaria significativamente sintetizado nas
definições oferecidas aos conceitos de impairment e disability66:

Impairment67: Ausência de parte ou da totalidade de um membro, ou


existência de um membro, órgão ou mecanismo corporal defeituoso;

Disability: Desvantagem ou restrição de atividade causada por uma


organização social contemporânea que tome pouca ou nenhuma
consideração pelas pessoas com impairments físicos e que, assim,
as exclui da participação nas actividades sociais centrais. A
deficiência física é, portanto, uma forma particular de opressão
social. (apud Oliver, 1996, p. 22-23, minha tradução)

Estas definições fundam-se numa separação crucial entre


impairment, definida como uma condição biológica, e disability,
reconceitualizada como uma forma particular de opressão social. A
fronteira estabelecida entre estes dois conceitos, embora elabore
uma essencialização do elemento físico, define-o sem referir à
Página 155
consagrada noção de normalidade. Esta cristalização do impairment
chama-nos a atenção para o fato de que estamos perante uma
desconstrução imanente à estrutura conceitual da discursividade de
partida. No entanto, isto não obsta à radical transgressão que
reside nestas definições. Sobretudo pelo fato de a noção de
disability, aquela que é primordialmente usada para identificar um
dado grupo populacional (correspondendo, nesse sentido, à noção de
deficiência utilizada na língua portuguesa), ter sido desvinculada
da corporalidade para significar o conjunto de valores e
estruturas que excluem determinadas pessoas das “atividades
sociais centrais”. A reconfiguração do conceito de disability para
a afirmação de uma opressão vigente torna-se particularmente
eficaz na medida em que faz uso de uma sutileza linguística em que
a designação das pessoas com deficiência, disabled people, é
utilizada como a própria afirmação da situação de opressão social
vivida por uma ampla minoria populacional. Ou seja, as disabled
people são ali entendidas como as pessoas
deficientadas/incapacitadas pelos valores e formas de organização
presentes na sociedade:

"Na nossa perspectiva, é a sociedade que incapacita as pessoas com


impairments físicos. A deficiência é algo que é imposto sobre os
nossos impairments pela forma como somos desnecessariamente
isolados e excluídos de uma plena participação na sociedade. As
pessoas com deficiência são, portanto, um grupo oprimido na
sociedade." (UPIAS, 1976, apud Oliver, 1996, p. 33, minha
tradução)

Portanto, a partir das perspectivas desenvolvidas nos


Princípios Fundamentais da Deficiência da UPIAS, a noção
hegemônica de deficiência é disputada por uma outra, que retira as
suas implicações das configurações do corpo que foram modernamente
definidas, para trazê-las para a arena das relações sociais. É nos
anos 70 que a secular noção de deficiência deixa de vigorar em
termos monoculturais para passar a ser apreendida como uma leitura
dominante, em relação à qual se erigem perspectivas alternativas
oposicionais, que ficam formuladas de um modo particularmente
consistente nas definições que a UPIAS consagrou.
Significativamente, os valores daqui emanados viriam a constituir
um importante catalisador. Por um lado, no modo como propiciou uma
assunção identitária capacitante das pessoas com deficiência, que
assim encontraram um projeto de transformação social que lhes
permitiu libertarem-se dos fatalismos que vinham marcando as suas
vivências. Por outro lado, pelo fato de os discursos e práticas
das organizações de pessoas com deficiência terem encontrado ali
um eixo importante para a articulação das suas vozes e das suas
reivindicações em relação à exclusão social de um grupo
populacional que até ali havia estado largamente
silencioso/silenciado.
Esta conceitualização, com evidente vocação para a
transformação social e para a emancipação pessoal e política,
estabelece um gritante contraste com as visões hegemônicas acerca
da deficiência, tão bem epitomizadas nas definições propostas em
1980 pela OMS. De fato, as novas leituras, que os anos 70 nos
trouxeram, acerca da temática da deficiência nutrem-se de uma
visão dualista e oposicional que viria a ficar consolidada no
desenvolvimento do “modelo social da deficiência”. O conceito de
Página 156
“modelo social da deficiência” foi cunhado pela primeira vez em
1983 por Michael Oliver, um sociólogo e ativista político que, a
partir dos empreendedores conceitos do UPIAS, procurou constituir
um corpo teórico capaz de conferir uma perspectiva holista dos
problemas enfrentados pelas pessoas com diversos tipos de
deficiência. Foi grande a importância das estruturas conceituais
que germinaram deste itinerário, não só para o contexto britânico,
mas para a luta das pessoas com deficiência no mundo. Prova disto
é o fato de as definições da UPIAS terem sido adotadas pela seção
europeia Disabled People International (DPI), a mais importante
estrutura internacional de pessoas com deficiência, fundada em
1981; tendo-se tornado igualmente as definições operativas da
BCODP, a organização que haveria de suceder à UPIAS enquanto
estrutura “guarda-chuva” das organizações de deficiência no Reino
Unido, ela própria membro fundadora da DPI (Oliver, 1996, p. 28;
Barnes et al., 1999, p. 6-7).
O modelo ou teoria social da deficiência que Michael Oliver
desenvolveu parte exatamente da identificação de um conceito de
deficiência entendido como profundamente incapacitante e contrário
tanto à transformação social conducente à integração das pessoas
com deficiência, quanto à visibilização da situação de opressão
que a reclama. Essas concepções são denunciadas com uma leitura em
que se assinala como dominante o “modelo individual/médico da
deficiência”; no fundo, a sedimentação histórica que se procura
superar – caracterizada por uma apreensão social das pessoas com
deficiência, que se centra na anormalidade dos seus corpos –, em
termos próximos daqueles cujos contornos exaurimos na leitura da
deficiência como uma artefatualidade discursiva eminentemente
moderna. Um modelo que se identifica enquanto inconciliável com a
assunção de controle das pessoas deficientes acerca dos seus
desígnios, e com a concomitante possibilidade de transformação dos
contextos sociais e culturais da sua existência.
O modelo individual/médico da deficiência, cuja vigência
hegemônica nas sociedades ocidentais Michael Oliver (1990; 1996)
denuncia, apresenta como correlato central a celebração de uma
abordagem que, apropriando os discursos correntes e hegemônicos em
torno da deficiência, poderá ser designado de “abordagem
reabilitacional” (Striker, 1999). Embora o conceito de
reabilitação se tenha inculcado após a primeira guerra mundial
para os soldados que ficaram com alguma deficiência, ele apreende
bem a lógica social que se dirigiu às pessoas tidas como
deficientes, desde a sua objetificação como tal; uma lógica que
tem sempre por referência uma normalidade que se considera prévia
a qualquer ação. Assim, seguindo a leitura de Michael Oliver – uma
leitura que, não tendo uma grande densidade histórica, identifica
os valores e estruturas que tornam óbvias a transformação e a
politização da deficiência –, deverá relevar-se, em primeiro
lugar, o modo como, no modelo individual/médico da deficiência, as
pessoas com deficiência são sujeitas a lógicas cuja autoria tende
a escapar-lhes. Emerge aqui, quer o legado das instituições para
pessoas deficientes de carácter privado e matriz filantrópica,
quer as políticas e estruturas organizativas desenvolvidas pelo
Estado. Sendo que, em ambas as situações, a capacidade de decisão
acerca das vidas das pessoas com deficiência é remetida a peritos,
profissionais e voluntários no seio de estruturas que tendem a
consagrá-las como objetos passivos de cuidado e de estratégias que
se desejam conducentes à superação das limitações de atividade
Página 157
implicadas por uma deficiência. No fundo, esta leitura chama a
atenção para o modo como um modelo hegemônico de apreensão da
deficiência, que paulatinamente articulou a segregação
institucional em asilos com a promoção da educação e da integração
social, vigora numa lógica em que as pessoas deficientes não são
reconhecidas como agentes centrais. Aspecto que apresenta uma
evidente continuidade com as respostas caritárias que marcaram a
pré-modernidade.
O que Oliver desvela nesta passividade a que as pessoas
deficientes são remetidas é a vigência de uma lógica medicalizada,
por via da qual as pessoas deficientes se viam perante à
arbitrariedade de terem que assumir, nas diversas esferas da sua
vivência, o papel social do doente/paciente. Assim, Oliver atenta
para a “medicalização da reabilitação” (1990, p. 53) – na verdade,
a própria noção de reabilitação está já imbuída de valores médicos
– para denunciar o papel de médicos, assistentes sociais,
psicólogos, educadores e agentes de solidariedade na consagração
das pessoas com deficiência enquanto objetos de tratamento e
reabilitação. Daqui decorre a identificação de uma estrutura
panóptica erigida para dar resposta à diferença suscitada pela
deficiência e que vai operar uma completa “medicalização da vida”
(Illich apud Barnes et al., 1999, p. 59), ainda que não haja nela
médicos envolvidos. Portanto, a ênfase que os movimentos surgidos
nos anos 70 conferiram à autodeterminação das pessoas com
deficiência é, sem dúvida, produto da ideia de que a medicalização
dos problemas sociais tende a ser adversa à sua politização, uma
politização que se mostrava necessária para efetivar a
transformação de horizontes. Mas é também avatar da proposição
mais geral de que “ninguém pode libertar outrem, porque a
liberdade é o acto de a tomar.” (Cooper, 1978, p. 91).
Um outro aspecto que Michael Oliver faz constitutivo do
modelo médico da deficiência é o calvário pessoal que resulta do
fato de a lógica reabilitacional celebrar as possibilidades de
integração pessoal investindo no suporte aos sujeitos, mas
estabelecendo como postulados as enormes dificuldades a que as
pessoas com deficiência deverão ser capazes de fazer face. Estamos
perante a uma lógica que aceita aquilo a que alguém chamava, com
propriedade, “o calvário da integração”; uma lógica que, na maior
parte das vezes, tem como única ambição minimizar as consequências
da deficiência. Sendo verdade que a legitimação da abordagem
reabilitacional muito depende do papel simbólico desempenhado por
casos emblemáticos de integração de pessoas com deficiência, o
carácter excepcional destas situações é, por outro lado, bem
expressivo do quão ilusório é um horizonte em que a realização das
pessoas com deficiência seja feita dependente de um ciclópico
esforço individual de acomodação. Aliás, a ênfase nas excepcionais
narrativas das pessoas com deficiência que vingaram em superar
preconceitos e obstáculos de várias ordens é bem captada por Tom
Shakespeare. Este autor reflete interessantemente sobre as
representações das pessoas com deficiência na cultura mediática e
no cinema em particular. Nessas leituras, diz-nos Tom Shakespeare
(1999, p. 164-165), é possível desvelar três estereótipos
centrais: o inválido trágico; o amargurado, que procura se vingar
do mundo e alcançar a cura a qualquer custo; e o herói que triunfa
sobre a tragédia e as dificuldades que dela decorrem. É esta
última representação que se articula com o mito fundador das
possibilidades promovidas no seio de uma abordagem
Página 158
reabilitacional.
No fundo, o que Oliver retoma ao denunciar o nexo entre o
modelo médico e a apreensão social das dificuldades impostas às
pessoas com deficiência enquanto um desafio individual é, uma vez
mais, o efeito da reificação de uma questão social no corpo
físico. O autor identifica ainda o modo como as práticas e os
discursos da reabilitação efetivam, na vida quotidiana das pessoas
com deficiência, uma reverência à normalidade física e funcional
dos demais sujeitos, uma perspectiva que Oliver informa com a sua
própria narrativa, assim como com outras que lhe são próximas:

"O objetivo de fazer regressar o indivíduo à normalidade é a pedra


de esquina sobre a qual assenta toda a estrutura da reabilitação.
Se, como aconteceu comigo após a minha lesão na medula, a
deficiência não pode ser curada, as assunções normativas não são
abandonadas. (…) A filosofia da reabilitação enfatiza a
normalidade física e o alcance das capacidades que permitem ao
indivíduo aproximar-se o mais possível de um comportamento de
normalidade corporal." (Finkelstein apud Oliver, 1990, p. 54,
minha tradução)

Ou seja, refletindo, por via de experiências pessoais, sobre


o modo como as pessoas com deficiência são “acolhidas” no
médico/individual da deficiência, Michael Oliver como que denuncia
o pernicioso lugar ocupado por uma normalização que impõe
necessidades em vez de as reconhecer (Cooper, 1978, p. 10).
Portanto, é fundado nas definições da UPIAS que Michael Oliver
constrói um corpo teórico onde se identifica e recusa o modelo
médico/individual e a abordagem que este promove, como uma
estrutura que só poderá ser superada pela assunção de um modelo
social por parte dos movimentos de pessoas com deficiência. Um
modelo onde a deficiência é entendida como uma incapacitação, uma
forma de opressão que se abate sobre as pessoas em cujo corpo
esteja ausente a totalidade ou parte de um membro, ou onde exista
um membro, órgão ou mecanismo corporal defeituoso.
Esta visão dualista que Oliver, melhor que ninguém,
consolidou como uma estrutura operativa na luta política apoia-se,
interessantemente, numa luta do significado acerca da deficiência.
Uma luta em que duas formas de entender a deficiência se debatem.
É nesta contraposição que o autor e ativista vê a possibilidade de
se negar a grande narrativa que marca a vida das pessoas com
deficiência, a “narrativa da tragédia pessoal”. Assim, negar o
modelo médico é negar a abordagem reabilitacional reconhecida como
base central para que a deficiência seja pensada como uma tragédia
pessoal e não como o produto de relações opressivas.
Pela ótica da teoria social da deficiência, a natureza da
experiência das mulheres e dos homens com deficiência emerge,
fundamentalmente, como um produto de circunstâncias sociais e de
imaginários culturais opressivos que importa recusar e
transformar. A ideia central que esta influente proposta apresenta
é a negação do infortúnio e incapacidade, afirmando-se, ao invés,
as virtualidades de uma minoria populacional cuja realização e
inclusão dependem do efetivo reconhecimento das diferenças que as
deficiências transportam e da consequente desestabilização do
status quo. No fundo, o modelo social da deficiência sugere que é
a sociedade que importa reabilitar.

Página 159
Experiência incorporada e discurso político

Apesar do impacto do modelo social na capacitação das


pessoas deficientes, na criação de movimentos políticos, na
reconversão de instituições que, apesar de estarem registradas
como organizações de solidariedade, assumiram uma postura
reivindicativa, na articulação das diferentes deficiências, esta
formulação não deixou de estar sujeita a um importante criticismo.
Este tomou como mais importante argumento o fato de a
reconceitualização da deficiência como uma forma de opressão não
considerar as experiências de dor, sofrimento e privação que podem
estar associadas à condição física da pessoa com deficiência:

"…existe uma tendência no modelo social para negar a experiência


dos nossos próprios corpos, insistindo que as nossas diferenças
físicas e restrições são inteiramente criadas socialmente. Sendo
as barreiras ambientais e as atitudes sociais uma componente
crucial da nossa experiência de deficiência [disability] – e de
fato incapacitam-nos –, tende-se a sugerir que isso é tudo o que
existe, para negar a experiência pessoal de restrições físicas ou
intelectuais, de doença, do medo da morte." (Morris apud Barnes et
al., 1999, p. 91, minha tradução)

Estas leituras críticas dirigem-se, mormente, para o perigo


de que o reconhecimento da reflexividade social e das capacidades
das pessoas com deficiência deem lugar a outro silenciamento. O
silenciamento de experiências eminentemente físicas, passível de
ocorrer quando se substitui o modelo médico, erigido sobre um
centrismo somático, por um modelo social que reduza a experiência
da deficiência à experiência da opressão.
Este mesmo debate envia-nos para uma discursividade que
poderá ser considerada como a mais emblemática “versão” do modelo
social, a que a cegueira em particular diz respeito. Refiro-me às
influentes ideias que Kenneth Jernigan sustentou em prol de uma
afirmação positiva da cegueira e das pessoas cegas. Kenneth
Jernigan foi, de 1968 a 1986, o presidente da National Federation
of the Blind (NFB), a mais importante e mais representativa
associação de pessoas cegas nos Estados Unidos, que conta hoje com
mais de 50000 sócios. Kenneth Jernigan foi também uma figura
importante no plano internacional, ocupou cargos importantes na
União Mundial de Cegos, preservando-se como uma importante
referência mesmo após a sua morte, em 1998. Através dos seus
discursos e intervenções públicas, Kenneth Jernigan desenvolveu
aquilo que ficou designado como a “filosofia positiva da
cegueira”, uma construção que se tornou absolutamente constitutiva
dos intentos da NFB. A necessidade de se constituir uma filosofia
positiva decorreu da relação que Jernigan identificou entre os
limites vivenciais que se colocam às pessoas cegas e os mitos que
povoam os imaginários sociais em torno da cegueira:

"O que nós pedimos da sociedade não é uma mudança de coração (o


nosso caminho para o asilo tem sido sempre pavimentado por boas
intenções), mas uma mudança de imagem, uma troca de velhos mitos
por novas perspectivas." (Jernigan, 1970, minha tradução)

Kenneth Jernigan entendia, pois, que a persecução de


qualquer atividade em prol das pessoas cegas deveria tomar como
Página 160
ponto de partida uma desmobilização das ideias de desastre
irremediável que sobre elas se abatiam. Esta foi uma plataforma
que se mostrou central na ação da NFB desde as lutas pelos
direitos civis. Assim, da filosofia positiva que Jernigan inculcou
releva uma afirmação que ficaria estabelecida até hoje como
emblemática da NFB:

"O verdadeiro problema da cegueira não é a perda de visão. O


verdadeiro problema da cegueira é falta de compreensão e a
ausência de informação que existe. Se uma pessoa cega tiver a
instrução adequada e se tiver oportunidades, a cegueira é só um
incômodo físico."68 (1970, minha tradução)

Apesar do importante papel que estas formulações tiveram na


mobilização das pessoas cegas no contexto americano, também elas
foram alvo de contestação por menorizarem a relevância das
experiências de sofrimento que podem estar diretamente associadas
à condição física de uma pessoa cega. Aliás, esta filosofia
positiva foi alvo de um interessante debate entre a NFB e outras
associações de pessoas cegas, com particular destaque para o
American Council of the Blind. De fato, pode-se alegar que tais
elaborações – em que se acalenta a ideia da cegueira como um mero
incômodo físico – fracassam em apreender determinadas experiências
subjetivas vividas pelas pessoas cegas.
Quando nos confrontamos com as ideias que são expressas no
modelo social da deficiência ou na “filosofia positiva da
cegueira”, assim como com as críticas que essas elaborações
suscitam, somos levados a considerar em que medida as experiências
das pessoas com deficiência tendem a decorrer num espaço in
between. Isto é, em algum lugar entre as circunstâncias sociais e
a tangibilidade fenomenológica das suas experiências corpóreas. No
entanto, mesmo sendo possível afirmar que às formulações que
configuram o modelo social da deficiência escapará um espectro de
experiências pessoais, tal asserção não implica necessariamente
que essas formulações estejam eivadas de incompletude.
Creio que a emergência do modelo social da deficiência
deverá ser lida por referência às coordenadas sociopolíticas que o
reclamam e ao fato assinalado por Laclau (1996, p. 6), de todo o
projeto emancipatório necessariamente se constituir numa
historicidade em que a sua autoridade sobre o real não é senão a
contingência do que se procura superar: “Dicotomias parciais e
precárias têm que ser constitutivas do tecido social” (Ibidem, p.
17).
As coordenadas sociopolíticas do surgimento da
discursividade do modelo social da deficiência são bem
explicitadas por Michael Oliver quando afirma que a negação das
dores e privações associadas às condições físicas das pessoas
deficientes não resultam de uma omissão por negligência. Afirma o
autor que essa negação não é bem uma negação, mas sim uma
tentativa pragmática de identificar os aspectos que podem ser
transformados através da ação coletiva. Como reforça Mairian
Corker, esse novo discurso da deficiência obedece ao princípio da
“otimização da transformação social” (1999, p. 92). Ou seja, a
afirmação da deficiência enquanto uma questão social visa negar ao
mesmo tempo o fatalismo da marginalização de um significativo
grupo populacional e a naturalização dessa marginalização nos
corpos: “Referir a biologia, reconhecer a dor, confrontar os
Página 161
nossos impairments têm permitido que os opressores recolham a
prova de que, no fim de contas, a deficiência é “realmente” uma
questão de limitações físicas (Shakespeare apud Oliver, 1996, p.
39, minha tradução).
Portanto, a capacidade para fazer da deficiência uma questão
social, à luz de um discurso questionador das representações e das
formas de organização vigentes, deverá ser entendida como uma
polarização oposicional, por via da qual se visa confrontar a
sedimentação histórica por que se naturalizou/somatizou a
experiência de exclusão vivida pelas pessoas com deficiência. É o
desígnio de visibilização da opressão e de realidades sociais tão
longamente ignoradas que assiste à pertinência da afirmação da
deficiência como uma forma particular de opressão.

Democracia e participação

Quando analisamos as políticas estatais, não podemos


esquecer que a apreciação das dinâmicas específicas que definem as
medidas que se dirigem às pessoas com deficiência nos colocam,
inevitavelmente, perante um outro fator constitutivo da política
social: o fato de ela ser produto da luta política. Nesse sentido,
sendo verdade que o quadro no qual a deficiência foi modernamente
“inventada” apresenta uma poderosa vocação para a naturalização da
subalternidade, os diferentes contextos sociais não deixam de
apresentar matizes que muito se ligam ao papel a ser desempenhado
pela intervenção politica e pela participação democrática.
Na medida em que os que melhor conhecem as implicações dos
desenhos sociais na vida das pessoas com deficiência são elas
próprias, e na medida em que a sua agenda ocupa um lugar marginal
nas formas representativas de democracia, torna-se fácil perceber
a importância de uma ação sociopolítica a ser engendrada por via
da democracia participativa. Tal dinâmica deveria ser capaz de
articular a manifesta diferença implicada pela deficiência ? o
mesmo é aludir aos estigmas que a apreendem socialmente ? com uma
efetiva equalização de oportunidades. Isto mesmo é veiculado pelas
“Regras Gerais” da ONU: “Os Estados devem promover e apoiar
financeiramente e de outras formas a criação e consolidação de
organizações de pessoas com deficiência, de associações de
famílias e/ou de pessoas que defendam os seus direitos. Os Estados
devem reconhecer o papel daquelas organizações no desenvolvimento
das políticas em matéria de deficiência.”
Num quadro em que os valores culturais e as práticas sociais
ainda alimentam uma noção individual assistencialista, caritativa
e reabilitacional da deficiência, e onde a vitalidade da
democracia está fortemente coibida, como receber as propostas
legislativas que se dirigem à criação de igualdade de
oportunidades? Com inevitável prudência, evitando triunfalismos
sem sentido e com uma forte consciência de que muitas vezes as
leis, desarticuladas de outras dinâmicas, mudam para que tudo
fique na mesma. É em si positivo que as leis caminhem à frente dos
valores na medida em que, além do óbvio papel de punir e vigiar
incumprimentos, elas podem cumprir um papel de pedagogia social,
arrastar outras dinâmicas e novos discursos. A questão que convém
reter, cautelarmente, é que, conforme afirma Boaventura Sousa
Santos (1999, p. 155), “quanto mais caracterizadamente uma lei
defende os interesses populares e emergentes, maior é a
probabilidade de que ela não seja aplicada”.
Página 162
A fragilidade da democracia participativa nas nossas
sociedades, associada a uma cultura dominante marcada pela
“narrativa da tragédia pessoal”, deve nos alertar à compreensão
dos perigos que tantas vezes minam as transformações legislativas:

1- O perigo de, na prática quotidiana, os elementos da


administração pública, os empregadores privados, os engenheiros e
arquitetos, educadores e programadores culturais não estarem
enculturados nos direitos das pessoas com deficiência.
2- O perigo de nos próprios tribunais se refletirem preconceitos e
estereótipos. Os agentes judiciais não estão livres de
preconceitos, se não forem culturalmente imbuídos num modelo
social da deficiência; muitas vezes inscrevem nas suas decisões
valores que ainda não estão familiarizados com a magnitude do
desafio de uma sociedade inclusiva no que diz respeito às pessoas
com deficiência.
3- O perigo de surgirem leis sem um sério esforço de envolvimento
das organizações interessadas e da opinião pública.
4- O perigo de se confiar excessivamente na transformação
legislativa quando esta não é acompanhada por mudanças nas
representações culturais. Isto acontece porque muitas vezes se vê
uma lei como o fim do caminho. Importa é que a lei contribua para
uma pedagogia social e tenha efetividade nos tribunais, até porque
os casos exemplares têm frequentemente um valor pedagógico.
5- O perigo de as leis transformativas serem redigidas com
ambiguidades que fragilizam os seus propósitos transformativos,
facilitando que sejam capturadas pelos valores instalados.
Há, portanto, um caminho de transformação social mais
amplo, que tem que nutrir e ser nutrido por uma desestabilização
das representações dominantes da deficiência e por uma vitalidade
democrática, identitária e cidadã. O modelo social da deficiência
e as suas “versões” retiram a deficiência do corpo, conforme é
naturalizada a partir dos discursos hegemônicos, para a
relocalizar nas relações de opressão, aquelas que vêm forjando o
esmagamento das aspirações das pessoas com deficiência. A assunção
da deficiência como uma questão de cidadania e como uma questão de
direitos tem importantes implicações:
1- Na politização da relação entre os Estados e as organizações
das pessoas com deficiência, que assim passam a dialogar com os
poderes estabelecidos como agentes de reivindicação, de luta
contra a discriminação, de inclusão ativa e de transformação
sociopolítica.
2- Na lógica que preside aos serviços que são prestados às pessoas
com deficiência, não mais o assistencialismo reabilitacional, mas
sim a assunção de que o imperativo de igualdade de oportunidades
se cumpre pela capacitação dos sujeitos marginalizados e pelo
derrubar das múltiplas barreiras que desqualificam as suas
diferenças.
3- Na transformação cultural das concepções de deficiência, não
mais trágicas e fatalistas, mas positivas e militantes, apostadas
na afirmação dos múltiplos itinerários de realização a serem
vividos numa sociedade inclusiva.
4- Na transformação da subjectividade das pessoas com deficiência,
onde os valores hegemônicos promovem a interiorização de fatalismo
e incapacidade, o idioma dos direitos afirma, e continuará
afirmando, a insurgência das vidas subjugadas pelos edifícios da
nossa cultura69.
Página 163
notas:
64 "bell hooks", grafado em minúsculas, é o pesudônimo
literário de Gloria Jean Watkins.
65 Glaucoma é uma doença que pode progredir lentamente ou de
um modo rápido, pode ser hereditária ou adquirida no período de
gestação, e que consiste numa ineficaz remoção do humor aquoso que
provoca uma maior pressão no globo ocular. À medida que aumenta a
tensão no globo ocular, a visão vai diminuindo progressivamente.
66 Conceitos a que, na língua portuguesa, só podemos aceder
através de uma tradução muito grosseira e demarcação que equacione
impairment a “deficiência” e disability a “incapacidade”.
67 No original: “Impairment: Lacking part of or all of a
limb, or having a defective limb, organ or mechanism of the body.
Disability: the disadvantage or restriction of activity caused by
a contemporary social organization which takes no or little
account of people who have a physical impairments and thus
excludes them from participation in the mainstream of social
activities. Physical disability is therefore a particular form of
social oppression.”
68 No original: “The real problem of blindness is not the
loss of eyesight. The real problem is the misunderstanding and
lack of information which exists. If a blind person has proper
training and if he has opportunity, blindness is only a physical
nuisance".
69 Relativamente à tensão que muitas vezes se coloca às
pessoas cegas no uso da bengala branca, uma assunção pública da
cegueira nem sempre destituída de valores contraditórios, analisei
noutro lugar (Martins, 2006) de que modo a hegemonia da “narrativa
da tragédia pessoal” pode colonizar a subjetividade das pessoas
com deficiência, repercutindo-se fortemente nos cotidianos, nos
mundos da vida. Nesse sentido, relevo a decisiva relação entre a
politização da deficiência e o forjar de uma subjetividade
combativa e capacitada.

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XIBERRAS, M. Les théories de l´exclusion. Paris: Méridiens


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Página 165
Cidade Acessível: igualdade de direitos e particularidades da
pessoa com deficiência visual70

Jéssica David
Ximene Martins Antunes
Veronica Torres Gurgel

A deficiência visual não se configura exclusivamente como um


problema de natureza biológica, pois é também atravessada por
vetores sociais, históricos e culturais, que precisam ser
considerados para o seu amplo entendimento. Nesse atravessamento,
destaca-se a necessidade de a cegueira71 ser compreendida a partir
do contexto em que se insere, ou seja, um ambiente marcado
hegemonicamente pelo paradigma visuocêntrico (Belarmino, 2004),
organizado, portanto, em torno da visão. Tal paradigma está
presente em diversas situações vividas pelas pessoas deficientes
visuais em seus cotidianos, dentre as quais se destacam aquelas
referentes à sua relação com a cidade.
A vida dos cegos nas cidades tem sido marcada por limitações
e pela exclusão, ao mesmo tempo em que surge uma demanda por uma
participação mais efetiva e autônoma em todos os aspectos da vida
social. A dificuldade crescente enfrentada pelos deficientes
visuais em seu deslocamento diário ganha proporções alarmantes ao
considerarmos o meio urbano da cidade do Rio de Janeiro. Não são
raras as situações em que esse espaço torna-se intransitável a
qualquer pessoa, cega ou vidente, devido às inúmeras barreiras
existentes nos meios de transporte e nas vias públicas. Com
frequência, deparamo-nos com ambientes restritivos ou espaços
inacessíveis e estruturas excludentes.
Em função dos diversos relatos de acidentes envolvendo três
situações cotidianas em especial, foi realizada uma investigação
sobre a forma como pessoas cegas as enfrentam. São elas: pegar um
ônibus, atravessar a rua e desviar de um orelhão. Buscou-se
entender as dificuldades que podem advir destas situações a partir
de um estudo sobre as características da locomoção de pessoas com
deficiência visual e da reflexão sobre maneiras possíveis de se
amenizar tais dificuldades, permitindo o deslocamento da pessoa
cega e seu acesso à cidade.
Normas e política de acessibilidade

De acordo com o Decreto 3.298, de 20/12/1999, pessoa


portadora de deficiência é aquela que apresenta, em caráter
permanente, perda ou anormalidade de uma estrutura ou função
psicológica, fisiológica ou anatômica, que gere incapacidade para
o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal. No
Brasil, uma pessoa é considerada portadora de deficiência visual
quando apresenta acuidade visual igual ou menor que 20/200 no
melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a
20º (tabela de Snellen)72, ou ainda ocorrência simultânea de
ambos.
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), pela NBR
9050:1994, define acessibilidade como sendo “possibilidade e
condições de alcance, percepção e entendimento para utilização com
segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário,
Página 166
equipamento urbano e elementos”. Assim, chegar, entrar e utilizar
todas as instalações de edifícios públicos e privados deve ser
possível a todos. Embora as normas técnicas sejam de uso
voluntário, passam a ter força de lei quando mencionadas
explicitamente no corpo legislativo. É o que acontece com as
normas de acessibilidade, por exemplo, que passaram a integrar a
legislação federal e estadual.
Em 1985, foi criada a primeira Norma Técnica da ABNT
relacionada ao tema. Esta, intitulada "Adequação das Edificações,
Equipamentos e Mobiliário Urbano à pessoa portadora de
deficiência" – NBR 9050, preconiza padrões como:
1. Sinalização luminosa e sonora nos acessos de estacionamentos
com cruzamento de fluxos de veículos e pedestres (item 9.1.8);
2. Existência de dispositivo a ser acionado pelo portador de
deficiência visual nas travessias de pedestres onde houver
semáforo (item 9.1.9);
3. Comunicação auditiva dentro da cabine do elevador, indicando o
andar onde o elevador se encontra parado – este padrão se aplica
aos edifícios de uso público e de uso multifamiliar em que o
número de paradas do elevador for superior a dois (item 10.3.3.3);
4. Comunicação tátil nos telefones públicos onde houver
possibilidade de ligações interurbanas/internacionais (item
10.4.2).

A Lei 10.098/00 determina a eliminação de barreiras e


obstáculos que estejam nas vias e espaços públicos, nas
edificações, nos meios de transporte ou de comunicação que limitem
o acesso, a liberdade de movimento e a circulação com segurança
das pessoas cegas (art. 1º combinado com art. 2°, II). Eis algumas
das medidas que prescreve:

5. Atendimento, pelos veículos de transporte coletivo, dos


requisitos de acessibilidade estabelecidos nas normas técnicas
específicas (art. 16);
6. Os semáforos para pedestres instalados nas vias públicas
deverão estar equipados com mecanismo que emita sinal sonoro
suave, intermitente e sem estridência, ou com mecanismo
alternativo, que sirva de guia ou orientação para a travessia de
pessoas portadoras de deficiência visual, se a intensidade do
fluxo de veículos e a periculosidade da via assim determinarem
(art. 9º).

Observa-se, porém, que algumas dificuldades relatadas pelos


deficientes visuais em seu cotidiano não são previstas pelas leis,
como, por exemplo, aquelas causadas por buracos nas calçadas. Além
disso, mesmo quando alguns aspectos estão previstos, como a
sinalização sonora dos semáforos, outros de igual importância são
negligenciados. Isto fica evidente, por exemplo, no curto tempo
que o sinal de trânsito fornece para a travessia e na falta de um
piso tátil nas faixas de pedestres, o que permitiria um caminhar
retilíneo.
O presente texto é fruto de uma pesquisa realizada com
deficientes visuais nos arredores do Instituto Benjamin Constant –
escola e centro de reabilitação para pessoas com deficiência
visual – e do Campus da Praia Vermelha da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Utilizou-se um método que denominamos
“entrevistas-passeio”: acompanhadas dos entrevistados, passeávamos
Página 167
pela cidade. As entrevistas-passeio foram realizadas com três
pessoas cegas da divisão de reabilitação do Instituto Benjamin
Constant, sendo uma com cegueira congênita e duas com cegueira
adquirida.
Tal dispositivo surgiu a partir da necessidade de investigar
os aspectos cognitivos envolvidos nas três situações do cotidiano
eleitas para esta investigação, isto é, atravessar uma rua, pegar
um ônibus e desviar de um orelhão, tal como já fora explicitado.
Pedimos aos três participantes cegos que nos guiassem pelas ruas,
indicando suas dificuldades, além das estratégias desenvolvidas
para se deslocarem pela cidade. Deste modo, buscamos fundamentar
um conhecimento atrelado a todas as narrativas envolvidas, num
movimento de co-construção, que transforma reciprocamente
pesquisador e pesquisado.
Assim, não se trata de uma pesquisa feita para ou sobre
cegos, mas com eles, em conformidade com o que diversos autores
têm proposto na atualidade (Varela, s.d; Varela, Thompson e Rosch,
2003; Latour 2001, 1999, Mol 1999, 2002; Mol & Law, 2000, 2003).
Essas formulações teórico-metodológicas subsidiam um modo de
pesquisa que se tem desenvolvido, e do qual temos partilhado,
denominado PesquisarCOM73 (Moraes, 2008; Alvarez e Passos, 2009 e
Pozzana e Kastrup, 2009). Este articula produção de conhecimento e
intervenção no campo, defendendo que as estratégias de ação se
tornam mais relevantes na medida em que são construídas
conjuntamente.
Em geral, quando o tema deficiência está em discussão, são
enfatizadas as diferenças entre deficientes e não deficientes,
destacando-se, sobretudo, o que falta aos primeiros para se
equipararem aos ditos “normais”. No caso da deficiência visual,
muitas vezes essa forma equivocada de entendimento toma o limite
sensorial como algo que incapacita o indivíduo física e
intelectualmente. O cego não é percebido somente como alguém que
não pode ver, mas, algumas vezes, como alguém incapaz de ser
autônomo, interessante e produtivo.
Do ponto de vista biológico, a limitação sensorial não
implica, por si só, que o deficiente visual tenha prejuízos no seu
desenvolvimento cognitivo (Hatwell, 2003). No entanto, como afirma
Martins (2005), “o não-lugar que as pessoas com deficiência tendem
a ocupar na nossa sociedade se deve, centralmente, às barreiras
físicas, sociais e culturais que vêm negando a sua participação
social” (p. 4).
Entretanto, propor que os cegos possam participar ativamente
das mais diversas esferas da vida social não corresponde a afirmar
que eles são iguais aos videntes. Há que se levar em consideração
que a cegueira possui particularidades, destacando-se, aqui,
aquelas que podem atrapalhar a locomoção. Por outro lado, é
possível circular pelo espaço público com autonomia, desde que
condições específicas sejam atendidas, ou seja, as dificuldades
podem ser amenizadas quando certos requisitos são preenchidos,
permitindo um caminhar mais seguro pela cidade.
A pessoa cega pode aprender a circular de forma autônoma por
intermédio de um curso de orientação e mobilidade (como aquele
ministrado no Instituto Benjamin Constant) e também desenvolvendo
estratégias inventivas. Entretanto, consideradas as condições do
espaço urbano de muitas cidades, o cego acaba dependente da ajuda
dos videntes em diversos momentos, como se evidenciou na fala de
uma das pessoas que entrevistamos: “Às vezes eu espero quinze
Página 168
minutos para atravessar a rua. Se tivesse mais sinais sonoros, eu
não ia ter que esperar tanto tempo”.

Localização e deslocamento espacial: aspectos cognitivos,


dificuldades e estratégias

Segundo Yvette Hatwell (2003), os estudos cognitivos indicam


que não há na cegueira qualquer deficiência de natureza
intelectual. A principal dificuldade do deficiente visual diz
respeito à percepção do espaço e à mobilidade espacial. Tal
dificuldade resulta da falta de dados perceptivos provenientes do
ambiente. Hatwell (2003) e Lenay et al. (2001) sustentam que a
diferença cognitiva entre cegos e videntes diz respeito ao modo
como eles se movimentam e à sua percepção do espaço, o que tem
consequências para a locomoção na cidade.
De acordo com Hatwell (2003), a locomoção autônoma é
definida como sendo: a segurança que a pessoa tem ao andar, a
eficácia para alcançar metas, o quão agradável e confortável é o
deslocamento, a harmonia entre os movimentos e a independência
física do pedestre.
A localização e o deslocamento espacial estão presentes em
muitas ações corriqueiras, como pegar um ônibus, atravessar uma
rua ou desviar de um orelhão em uma calçada. Para os deficientes
visuais, estas atividades podem ser marcadas por diversas
dificuldades.
A visão tem grande importância na organização postural, no
controle do equilíbrio bípede e na locomoção à medida que ela
fornece, continuamente, uma atualização dos referenciais espaciais
externos ao corpo, completando as informações provenientes da
propriocepção. Além disso, possibilita que se construa uma
trajetória a partir das informações distantes e dos obstáculos
presentes. No que diz respeito às propriedades espaciais do
ambiente, nenhuma outra modalidade perceptiva é tão abrangente
quantitativa e qualitativamente. Para Rieser et al. (1990), o
vidente possui um fluxo visual contínuo, e é pela relação entre
movimentos realizados e as progressivas mudanças de distância e
direção entre os objetos e si mesmo que é possível a locomoção
organizada pelo espaço.
Embora o termo pré-visão (Hatwell, 2003) possa suscitar
mal-entendidos, este não se refere estritamente à visão, não se
tratando de um estágio que antecede à visão ou da capacidade de
prever aquilo que ainda não aconteceu. Trata-se, pois, da
possibilidade de perceber, à distância, obstáculos presentes na
trajetória a ser percorrida. A locomoção dos cegos tem como uma de
suas particularidades a ausência de pré-visão. Assim, os
deficientes visuais têm dificuldades em perceber os objetos que se
encontram no seu percurso antes do contato com o seu próprio
corpo. A falta de pré-visão dificulta a antecipação e transposição
de obstáculos. Isto, além de gerar insegurança na caminhada,
resulta na necessidade de recorrer a traços mnemônicos (por
exemplo, nomes de ruas e mapas cognitivos) e de voltar a atenção a
informações provenientes de outras modalidades sensoriais, como a
audição e o tato, para perceber se há obstáculos na trajetória. Ou
seja, ouvindo o barulho de passos, sabe-se que há alguém vindo em
sua direção; e tateando ou utilizando a bengala, pode-se perceber
a presença de objetos ou pessoas que estejam no caminho. Embora
outras modalidades sensoriais possam conferir certo grau de
Página 169
pré-visão, este se dá em um campo muito limitado e pouco preciso.
A propriocepção, também denominada “o sentido do próprio
corpo” (Sacks, 1997), permite a construção de uma imagem corporal
que se modifica a cada movimento e é fundamental para a manutenção
do equilíbrio e prosseguimento da ação. Sem a percepção visual do
próprio corpo e das consequências de seu deslocamento no ambiente,
os cegos utilizam as informações proprioceptivas para assegurar
seu equilíbrio. Porém, tais informações parecem ser menos precisas
do que as fornecidas pela visão. Isso pode fazer com que um cego,
mesmo que parado, tenha maior risco de desequilíbrio e queda do
que um vidente. Tal instabilidade se agrava durante o
deslocamento, sobretudo nos espaços urbanos, em função da forma
como estes estão estruturados.
O tato é a modalidade perceptiva que mais se aproxima da
visão, e sua relevância funcional na vida prática das pessoas
cegas é bastante destacada. De modo geral, é ao tato que os cegos
mais recorrem para acessar informações espaciais e físicas do
ambiente. Por meio da percepção tátil, os cegos constroem os
referenciais ambientais para o seu deslocamento no espaço. O tato
é um sentido proximal e permite acesso às informações do ambiente
(forma, tamanho, orientação, distância, localização, etc.) que
seriam perceptíveis à visão. Por depender do contato direto, a
percepção tátil obriga o cego a procurar intencionalmente por
barreiras exteriores com movimentos exploratórios, o que exige
grande investimento da atenção. Além disso, devido ao seu campo
perceptivo exíguo, o tato não fornece uma boa diferenciação entre
figura e fundo, isto é, ele não proporciona referenciais estáveis
que sejam capazes de configurar um sistema de referência
exocêntrico. Portanto, o tato induz, com frequência, a um
tratamento espacial egocêntrico, ou seja, baseado no próprio corpo
ou em códigos de movimentos exploratórios.
A escassa pré-visão proporcionada pelos sistemas
alternativos à visão é uma das maiores dificuldades enfrentadas
pela pessoa cega, conforme já foi colocado. A bengala é um dos
mais antigos dispositivos técnicos que podem auxiliar na
deambulação pelo espaço, pois, a partir da percepção tátil, ela
confere uma espécie de pré-visão ao cego, tornando possível a ele
obter informações antecipadas acerca de objetos presentes em seu
caminho. Todavia, o alcance da bengala é muito restrito, de forma
que essa pré-visão proporcionada por ela é limitada e não garante
completa segurança à marcha. A bengala é utilizada por meio de um
movimento de varredura, que permite verificar a presença de
objetos, declives do terreno, tipo de solo, entre outros. Uma de
nossas entrevistadas exemplificou esse importante papel comentando
os buracos nas calçadas, tão comuns nas cidades e que surgiram
diversas vezes ao longo do trajeto que percorremos. “Quando a
bengala me avisa que tem um buraco, boto a bengala na frente e vou
passando bem devagar. Se não fosse assim, teria um grande risco de
cair”.
No entanto, a bengala não permite que obstáculos aéreos e
objetos como uma lixeira ou um orelhão sejam percebidos, o que
ficou claro em nossas entrevistas-passeio: “Se quero uma lixeira
para jogar alguma coisa fora, vou com a bengala; se não encontro,
pergunto a alguém. Mas muitas vezes eu esbarro em uma”. A
locomoção com a bengala é facilitada pelo uso de uma linha-guia,
que, em uma cidade, pode ser um muro ou um meio fio. Essa
linha-guia funciona como um referencial constante pelo qual o cego
Página 170
se orienta, mantendo-se sempre à mesma distância dele. A
utilização e a importância da linha-guia também se evidenciaram
nas entrevistas-passeio. Uma de nossas entrevistadas nos
solicitou, ao se despedir de nós: “Me coloca no muro pra eu ir
seguindo a linha-guia. Indo pelo murinho eu não me perco”. Outra
comentou que a linha-guia também permite um caminhar mais
retilíneo.
Assim como a visão, a audição é um sentido distal.
Entretanto, a localização de uma fonte sonora às vezes é mais
trabalhosa e, geralmente, mais imprecisa do que a localização
visual, sobretudo porque a posição de um objeto pode variar em
três dimensões no espaço (vertical, horizontal e sagital). Como o
tato, a audição depende de uma apreensão sucessiva dos estímulos
ambientais. Tal caráter confere a esse sentido uma especialização
no domínio temporal que, investida de atenção, assume uma grande
importância na localização e no deslocamento. É possível encontrar
uma fonte sonora pela audição com base na ordem temporal em que os
sons são ouvidos. Para isso, muitas vezes os cegos posicionam uma
de suas orelhas na direção da fonte sonora, de forma que a outra
fica o mais distante possível de onde provém o som. Assim, o som
chega primeiro ao ouvido mais próximo à fonte sonora e depois ao
outro, o que maximiza a diferença de tempo em que o som chega a
cada um dos ouvidos (Hatwell, 2003).
A audição humana tem uma capacidade limitada de
discriminação. Ela não distingue facilmente sons de mesma
amplitude e intensidade acústica que ocorrem simultaneamente. Isso
faz com que a modalidade auditiva seja mais propensa a sofrer
interferência de estímulos irrelevantes (Rosa e Ochaíta, 1993).
Uma das entrevistadas comentou: “Quando está ventando complica
muito, porque prejudica a escuta. Não escutamos os barulhos
direito”. Para um deficiente visual, que precisa da audição para
se orientar no espaço, torna-se muito difícil discernir um som
pertinente de um som desconexo em meio a todo o ruído
característico dos centros urbanos. É o que ocorre, por exemplo,
quando o alerta sonoro de uma garagem se abrindo é mascarado pelo
tráfego intenso.
São poucos os referenciais espaciais que podem ser
percebidos pelo olfato. Além disso, como essa percepção tem
alcance restrito, a localização dos objetos e a estimativa de
distâncias pelo olfato se tornam pouco precisas. Esta é uma
modalidade perceptiva pouco lembrada e que parece pouco utilizada
para a percepção espacial (Rosa, A. e Ochaíta, 1993). Nas
entrevistas-passeio, nenhum dos participantes mencionou tal
sentido. Atualmente, ainda são poucos os estudos referentes ao
desenvolvimento e a utilização do olfato na ausência da visão.74
Normalmente, os cegos relatam utilizar os odores do ambiente para
reconhecer objetos, pessoas e lugares (Hatwell, 2003).

"Em ocasiões, talvez mais frequentes do que pensamos, usamos o


olfato para distinguir e conhecer certos elementos do espaço.
Assim, encontramos ou reconhecemos um estabelecimento, como uma
padaria, pelo odor que dela exala. Desta maneira, quando
associamos a um elemento ambiental um determinado odor, a
lembrança parece ser bastante perdurável." (Rosa, e Ochaíta, 1993,
p. 2008)

A visão fornece referenciais externos fixos através dos


Página 171
quais uma pessoa pode estar constantemente corrigindo sua postura.
A cegueira afeta a postura, pois dificulta a constante calibração
do próprio corpo em relação aos objetos do ambiente (uma vez que,
na ausência de visão, essa calibração depende principalmente da
propriocepção). A postura característica dos cegos, por sua vez,
diminui os aportes sanguíneos necessários às diferentes partes do
corpo, o que parece afetar a acuidade da propriocepção, gerando
consequências para a manutenção do equilíbrio. A insegurança,
diretamente relacionada à falta de pré-visão e ao constante risco
de colidir com obstáculos, resulta em uma caminhada lenta e
marcada por passos curtos. De acordo com Hatwell (2003), quanto
menor for a velocidade de locomoção, maior será a “tendência a
virar”, ou seja, a tendência a manter uma trajetória curvilínea.
Em função de sua marcha lenta, os cegos possuem uma maior
facilidade de sair de sua trajetória, uma vez que apresentam uma
maior “tendência a virar”, o que constitui fator complicador para
seu deslocamento.
Para entender a “tendência a virar”, é preciso considerar
tanto índices externos quanto índices corporais proprioceptivos.
Uma assimetria acentuada da postura, por exemplo, tende a gerar um
desvio da trajetória para o lado oposto àquele para o qual se está
inclinado. Um som não pertinente pode afetar a trajetória,
voltando-a em direção à fonte sonora. A “tendência a virar” existe
em qualquer pessoa, mas se torna um fator de risco para o cego, já
que este não possui um fluxo visual contínuo que facilite a
correção constante da sua rota. Assim, ele pode se desorientar,
por exemplo, ao atravessar uma rua, andando para frente e para a
direita, ao invés de andar somente para a frente.

Cidade que exclui

A dinâmica da cidade, além de organizada sob um paradigma


visuocêntrico, é marcada por mudanças contínuas e elementos
temporários que podem constituir os mais diversos obstáculos. O
mobiliário urbano está, em grande parte, disposto de maneira
caótica pela cidade, sendo muitos os exemplos: cabines telefônicas
e lixeiras sem sinalização, obras sem proteção ou cordão de
isolamento, veículos estacionados irregularmente em calçadas,
esgoto e bueiros abertos, ausência de sinais sonoros, toldos
baixos avançados nas calçadas e outros obstáculos aéreos,
pavimentação irregular, excesso de ruído, falta de faixas de
segurança com sinalização para travessia de pedestre e degraus nas
calçadas, dentre outros.
Com um espaço urbano mal planejado e mal organizado, os
acidentes são frequentes na vida dos cegos que se aventuram pelas
ruas do Rio de Janeiro. Nossos entrevistados relataram alguns
acidentes que sofreram ao se deslocarem sozinhos pela cidade. Um
deles caiu em um bueiro aberto e quebrou todos os dentes. Outro
sofreu um acidente em uma estação ferroviária, quando caiu entre a
plataforma e o vagão de trem. Além disso, todos mencionaram as
várias ruas esburacadas da cidade, enfatizando o quanto
pavimentações irregulares dificultam sua locomoção, tornando-a
mais lenta e perigosa. Uma queixa unânime foi relativa aos
automóveis estacionados em cima de calçadas. Em uma das
entrevistas-passeio, foi necessário que o participante passasse
com cuidado e com auxílio de um vidente por entre o muro e o carro
estacionado irregularmente na calçada, que já era bastante
Página 172
estreita. Caso não houvesse um vidente por perto, a pessoa cega
teria que se arriscar pelo meio da rua ou aguardar até que alguém
se oferecesse para ajudá-la.

Três situações difíceis: Desviar de um orelhão, atravessar uma


rua, pegar um ônibus

Nas entrevistas-passeio, pudemos observar as dificuldades


enfrentadas nas três situações propostas. Desviar de um orelhão é
uma tarefa que os três entrevistados mencionaram como sendo
difícil. Isso decorre do fato de apenas a base do orelhão – que é
menor do que sua parte superior – ser perceptível à varredura da
bengala. Uma das pessoas entrevistadas relatou uma situação em que
colidiu com o orelhão: “Uma vez não só trombei com um orelhão,
como entrei dentro dele! E olha que eu nem queria telefonar. Podia
ter um altinho em volta que nos avisasse, de alguma forma, que ali
tem um orelhão”. Outros entrevistados também comentaram situações
similares. Na frente do Instituto Benjamin Constant há esse tipo
de marcação no orelhão, contudo, na mesma rua, logo adiante, bem
como do outro lado da rua, já não se encontra tal sinalização.
Atravessar uma rua foi citado como a maior das dificuldades
para o deslocamento autônomo dos cegos. Uma das entrevistadas
disse que, mesmo em frente ao Instituto Benjamin Constant, onde há
sinalização sonora, ela não considera seguro atravessar sozinha.
Outra comentou que os professores de Orientação e Mobilidade não
aconselham que um cego atravesse sozinho uma rua em que não há
sinais sonoros. Disse ainda que um reabilitando do Instituto
Benjamin Constant foi atropelado desta forma porque estava com
pressa e não esperou pela ajuda de um vidente.
Além disso, há que se destacar que, mesmo quando há
sinalização sonora, não se leva em consideração que o cego tende a
ter uma marcha caracteristicamente mais lenta. Os sinais, em
geral, não só demoram a abrir para os pedestres como fecham
rapidamente, o que acarreta um tempo curto de travessia. Por esse
motivo, muitas vezes a pessoa cega ou tenta andar mais depressa,
arriscando-se a cair, ou precisa esperar pela ajuda de um vidente.
Pegar um ônibus também depende da visão. Sem enxergar, não
há como saber qual ônibus está se aproximando. Os entrevistados
explicaram como lidam com essa dificuldade. Quando querem pegar
determinando ônibus, pedem ajuda para alguém que esteja no ponto.
Caso não haja ninguém, percebendo, através da audição, que um
ônibus se aproxima, fazem sinal e perguntam ao motorista se aquele
é o ônibus pelo qual esperam. Para saltar, pedem ao trocador ou ao
motorista que avisem quando chegar o ponto em que precisam descer.
No ponto de ônibus localizado em frente ao Instituto Benjamin
Constant, há marcações em alto relevo na calçada que indicam sua
presença aos deficientes visuais. Entretanto, na maior parte dos
pontos de ônibus da cidade não há essa marcação, o que dificulta
significativamente a sua localização.

Atenção às Particularidades Cognitivas para Assegurar a Igualdade


de Direitos

Como foi ressaltado ao longo do texto, a principal


dificuldade dos cegos diz respeito à sua mobilidade espacial. No
entanto, embora a tarefa de circular pelo espaço seja dificultada
por particularidades cognitivas geralmente relacionadas à
Página 173
cegueira, um caminhar mais seguro e autônomo é possível desde que
certas condições sejam contempladas – algumas das quais já
previstas em lei. A partir das observações e entrevistas-passeio
realizadas, ficou evidente que o mobiliário urbano disponível nos
arredores do Instituto Benjamin Constant, local que se esperaria
ser um dos mais adequados às necessidades da pessoa com
deficiência visual, é bastante precário. O que se verifica é que,
mesmo nessa região, a grande maioria dos cegos anda acompanhada
por videntes.
Para garantir o acesso amplo e de qualidade às vias
públicas, é necessário que as leis de acessibilidade sejam
aplicadas devidamente. Isso, no entanto, ainda não é suficiente. É
preciso que o deficiente visual possa participar de forma ativa do
processo de elaboração de tais leis. Afinal, ninguém melhor do que
o cego para saber quais as principais dificuldades que a cegueira
pode acarretar ao seu deslocamento espacial. Além disso, estudos
cognitivos deveriam orientar a formulação de normas para
sinalização do mobiliário urbano, de obras e meios de transporte.
Por exemplo, a marcha dos deficientes visuais, caracterizada pela
ausência de pré-visão (em certa medida compensada pelo uso da
bengala), pela tendência a virar e por uma maior lentidão, deveria
ser considerada ao se pensar um semáforo acessível. Este deveria
ter um sinal sonoro, uma indicação no pavimento (para auxiliar o
cego a manter uma rota retilínea) e um tempo mais longo para a
travessia da rua.
Por fim, é importante destacar que, na busca por uma cidade
acessível, igualdade e particularidades cognitivas não se opõem.
Não se trata de defender que não exista qualquer diferença ou de
que sejam formas de experiência rigorosamente opostas; trata-se de
entender que a igualdade de oportunidades é uma conquista que
depende do reconhecimento de que cegos e videntes são diferentes,
pois somente assim podem ser criadas as condições que atendam às
particularidades das pessoas cegas.

notas:
70 Publicado originalmente em versão modificada na revista
Mnemosine Vol.5, nº1, p. 80-94, 2009. Foi escrito a partir de um
trabalho apresentado nas 1ª e 2ª fases da XXVII Jornada Julio
Massarani de Iniciação Cientifica, Artística e Cultural da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
71 A partir de meados da década de 1970, em lugar de
"deficientes" ou "cegos", passou-se a utilizar "pessoas com
deficiência visual", enfatizando a idéia de que o sujeito não se
resume à sua deficiência. Mais recentemente, estes mesmos termos,
“deficientes” e “cegos”, foram reapropriados politicamente por
grupos ativistas, de modo a destacá-los como um grupo social com
necessidades específicas a serem reivindicadas. Neste sentido, é
extensa a discussão quanto à terminologia adequada: cegos,
deficientes visuais, portadores de deficiência visual, portadores
de necessidades especiais. No presente artigo, utilizaremos um
vocabulário diversificado, como o faz a maioria dos deficientes
visuais com os quais convivemos.
72 A tabela de Snellen, também conhecida como optótico de
Snellen ou escala optométrica de Snellen, é um diagrama utilizado
para avaliar a acuidade visual de uma pessoa. Consiste em
um conjunto de letras de diferentes tamanhos dispostas de
Página 174
forma randômica.
73 A este respeito, cf. o capítulo PesquisarCOM: política
ontológica e deficiência visual, de autoria de Marcia Moraes,
inserido nesta coletânea.
74 Cf. Murphy e Cain, 1985; Smith, Doty e Bulingame, 1993;
Rosenbluth, Grossman e Kaitz, 2000.

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SOBRE OS AUTORES

Alexandra C. Tsallis – Doutora em Psicologia Social (UERJ em


associação com a Ecole des Mines - Paris). Pós-doutoranda do
Programa de Psicologia (UFRJ). Pesquisadora do Núcleo de Cognição
e Coletivos NUCC / UFRJ. Participa do Projeto Práticas Artísticas
e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ |
UFF | IBC) coordenando a Pesquisa "Fabricando um
Dispositivo Clínico Transversal". Atua nas áreas de Psicologia
Clínica, Psicologia Social, Produção de Subjetividade e
Deficiência Visual.

Bernardo Antonio A. P. De Souza – Graduando em Psicologia (UFRJ).


Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania
com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na Pesquisa
Fabricando um Dispositivo Clínico Transversal.

Bruno Sena Martins – Doutorando da Universidade de Coimbra,


Portugal. Investigador do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra.
Camila Araújo Alves – Graduanda em Psicologia da Universidade
Federal Fluminense (UFF), bolsista de inciação científica
(PIBIC/Faperj) no projeto de Pesquisa Perceber Sem Ver (2008 -
atual). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da
Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC).

Carolina Cardoso Manso – Graduada em Psicologia e Mestranda em


Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista
CAPES. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Perceber sem ver.
Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania
com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC).

Elisa Junger – Bacharel em Psicologia, aluno do Curso de Formação


de Psicólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
Bolsista de Extensão PIBEX. Participa do Projeto Práticas
Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes
Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na Pesquisa Fabricando um Dispositivo
Clínico Transversal.
Filipe Herkenhoff Carijó – Aluno do curso de Mestrado do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). E-mail: filipecarijo@yahoo.com.br

Jéssica David – Graduanda em Psicologia na Universidade Federal do


Rio de Janeiro (UFRJ) e Bolsista de Iniciação Cientifica PIBIC |
CNPQ | UFRJ. É membro do Núcleo de Cognição e Coletivos (NUCC), do
programa de pós-graduação do Instituto de Psicologia da UFRJ.
Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania
com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC).

Joana Belarmino – Jornalista, Mestre em Ciências Sociais e Doutora


em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP). Em literatura, escreve contos e crônicas,
com publicações em coletâneas nacionais e internacionais. É membro
do Clube do Conto da Paraíba.
Página 177
Josselem Conti de Souza Oliveira – Graduanda em Psicologia da
Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista de Iniciação
Cientifica (PIBIC/Cnpq) no projeto de Pesquisa Perceber Sem Ver
(2007 - atual) . Participa do Projeto Práticas Artísticas e
Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ |
UFF | IBC). Email: jocontioli@yahoo.com.br

Julia Guimarães Neves – Graduanda em Psicologia da Universidade


Federal Fluminense (UFF), bolsista de Iniciação Cientifica
(PIBIC/Faperj - 2008 e 2009) e bolsista de extensão (Proex -
atual) no projeto de Pesquisa Perceber Sem Ver (2007 - atual).
Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da Cidadania
com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC).

Juliana de Moura Quaresma Magalhães – Graduanda em Psicologia pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista de
iniciação científica PIBIC/ CNPQ/ UFRJ. Membro do Núcleo de
Pesquisa Cognição e Coletivos (NUCC/UFRJ). Participa do Projeto
Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas
Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC).
Laura Pozzana – Mestre em Psicologia pela Universidade Federal
Fluminense (UFF) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com
apoio do CNPq. Publicou O Corpo em Conexão: Sistema Rio Aberto
(EdUFF, 2008), Leituras em Elos: o prazer em ler com crianças e
adolescentes (Puc-Rio, 2009). É psicóloga do NUCC/UFRJ e
instrutora de práticas corporais.

Leonardo Reis Moreira – Bacharel em Psicologia e aluno do Curso de


Formação de Psicólogo na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da
Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na
Pesquisa Fabricando um Dispositivo Clínico Transversal.

Liz Eliodoraz – Graduada em Comunicação Social pela Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Pós-graduanda
em Terapia através do Movimento: corpo e subjetivação na Faculdade
Escola Angel Vianna. Atriz e diretora de teatro.
Lucia Maria Filgueiras – Doutora em Psicologia (UFRJ); Mestre em
Educação (UFRJ); Especialista em Alfabetização de Deficientes
Visuais (UNIRIO/ IBC), Especialista em Educação Física de
Deficientes Visuais (UFRJ/ IBC). Publicou Processo de
Ensino-Aprendizagem dos Alunos com Necessidades Educativas
Especiais: O Aluno com Deficiência Visual (UNIRIO, 2008). Foi
Coordenadora e Professora do I Curso de Formação de Professores de
Orientação e Mobilidade do Instituto Benjamin Constant. Atualmente
ministra aulas de Psicomotricidade no Instituto Benjamin Constant.

Luciana de Oliveira Pires Franco – Graduada em Psicologia pela


Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-graduanda lato sensu
em Psicanálise e Saúde Mental pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UFRJ). Psicóloga do projeto de pesquisa Perceber Sem
Ver. Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da
Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC).
Página 178
Marcia Moraes – Professora Associada do Departamento de Psicologia
da Universidade Federal Fluminense (UFF). Leciona na graduação e
na pós-graduação stricto sensu em Psicologia/UFF. Doutora em
Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP), coordenadora da pesquisa Perceber Sem Ver.
Bolsista de Produtividade em Pesquisa/CNPq. É autora de vários
artigos sobre deficiência visual e sobre as articulações entre
teoria ator-rede e psicologia. Em sua produção, destaca-se o
trabalho intitulado A contribuição da antropologia simétrica à
pesquisa e intervenção em psicologia social: uma oficina de
expressão corporal com jovens deficientes visuais, publicado em
Psicologia e Sociedade, vol. 20 (n. especial), 2008.

Maria Clara de Almeida – Aluna do curso de Mestrado do Programa de


Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). E-mail: mclarinhalmeida@gmail.com

Maria do Carmo Cabral – Graduada em Administração de Empresas e em


Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Pós-Graduação em Educação Infantil pela PUC/Rio e mestrado e
doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Investiga principalmente os seguintes temas:
leitura, literatura, aprendizagem, cognição, teoria da mente e
produção de subjetividade. Atualmente trabalha no Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES.

Maria Helena Falcão Vasconcellos – Doutora em Psicologia Clínica


pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas de subjetividade da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora
associada ao NEC - FACED (Faculdade de Educação) da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pela editora da UNICAMP, publicou
Dias de violência - o quebra. Coordena o grupo de
pesquisa Cultura, conhecimento e subjetividade e realiza pesquisa
em oficinas literárias.

Renata Machado – Bacharel em Psicologia e aluno do Curso de


Formação de Psicólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da
Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na
Pesquisa Fabricando um Dispositivo Clínico Transversal.

Rodrigo Pires Madeira – Bacharel em Psicologia e aluno do Curso de


Formação de Psicólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Participa do Projeto Práticas Artísticas e Construção da
Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na
Pesquisa Fabricando um Dispositivo Clínico Transversal.

Thadeu Gonçalves – Graduando em Psicologia da Universidade Federal


Fluminense (UFF), bolsista de inciação científica (PIBIC/Faperj)
no projeto de Pesquisa Perceber Sem Ver (2008/2009).

Vandré Vittorino – Bailarino contemporâneo pela Faculdade Escola


Angel Vianna. Pós-graduando em Terapia através do Movimento: corpo
e subjetivação pela mesma instituição.

Vera Regina Pereira Ferraz – Especialista em Docência e Educação


Página 179
Básica pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Professor
Especializado na área da Deficiência Auditiva pelo Centro Nacional
de Educação Especial/Instituto Nacional de Surdos. Pós-Graduação
em Desempenho Escolar pela Faculdade de Humanidades Pedro II.
Especialista em Orientação e Mobilidade (IBC). Professora de
Atividades de Vida Independente e Orientação e Mobilidade do
Instituto Benjamin Constant.

Veronica Torres Gurgel – Graduanda em Psicologia da Universidade


Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participa do Projeto Práticas
Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes
Visuais (UFRJ | UFF | IBC).

Virgínia Kastrup – Doutora em Psicologia (PUC-SP) e Professora


Associada do Instituto de Psicologia e do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ. Bolsista de Produtividade em
Pesquisa/CNPq. Publicou A invenção de si e do mundo (Papirus,
1999; Autêntica, 2007) e Políticas da Cognição (Kastrup, Tedesco e
Passos, Sulina, 2008). É uma das organizadoras de Pistas do Método
da Cartografia (Passos, Kastrup e Escóssia, Sulina, 2009) e
publicou diversos textos em coletâneas e revistas especializadas.
Seu trabalho situa-se na interface entre os estudos da cognição e
da produção da subjetividade, arte e deficiência visual.

Virgínia Menezes – Licenciatura em História pela Universidade


Federal Fluminense (UFF) e Pós-graduação em Educação Especial
Inclusiva (Universidade Cândido do Mendes). Graduanda em
Psicologia da Universidade Santa Úrsula. Participa do Projeto
Práticas Artísticas e Construção da Cidadania com Pessoas
Deficientes Visuais (UFRJ | UFF | IBC) na Pesquisa Fabricando um
Dispositivo Clínico Transversal. 

Viviane Panelli Sarraf – Mestre em Ciências da Informação pela


Universidade de São Paulo (USP) e Doutoranda em Comunicação e
Semiótica pela PUC-SP. Diretora-Fundadora e Consultora da empresa
social Museus Acessíveis, que presta serviços de acessibilidade em
projetos culturais e museológicos, como o Centro de Memória Dorina
Nowill – Fundação Dorina Nowill para Cegos e o Curso Imagem e
Percepção – MAM-SP, com premiações nacionais e internacionais –
Prêmio Darcy Ribeiro, Prêmio Cultura e Saúde e Prêmio Empreendedor
da Artemisia Foundation. Contato: vsarraf@gmail.com

Willy H. Rulff – Bacharel em Comunicação Social (UFF) e graduando


em Psicologia (UFRJ). Participa do Projeto Práticas Artísticas e
Construção da Cidadania com Pessoas Deficientes Visuais (UFRJ |
UFF | IBC) na Pesquisa Fabricando um Dispositivo Clínico
Transversal.

Ximene Martins Antunes – Graduanda em Psicologia (UFRJ) e Bolsista


de Iniciação Cientifica - FAPERJ.

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