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20/05/2019 Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede

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FAMECOS
mídia, cultura e tecnologia
Ciências da Comunicação
Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede
Digital traces from the perspective of actor-network theory
FERNANDA BRUNO
Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
<bruno.fernanda@gmail.com >
RESUMO ABSTRACT
Um volume expressivo de rastros de nossas ações é gerado, »¼½¾¿À¾ÁÂÃÀļÃÅÆÇÀļÆȼÄÉÃÂʽ¼ÆȼÆÇɼÃÂľÆÀ½¼ÃÉʼ¿ÊÀÊÉÃÄÊË̼
monitorado e tratado cotidianamente na internet constituindo monitored and treated daily on the Internet, creating
imensos arquivos sobre nossos modos de vida. Estes rastros huge archives of our way of life. These digital traces have
digitais vêm sendo apropriados por diversos campos: ÍÊÊÀ¼ ÃÎÎÉÆÎɾÃÄÊ˼ Íϼ ÅÃÀϼ ˾ÐÊÉÊÀļ ÁÊÑ˽Ҽ ½ÇÉÓʾÑÑÃÀÂÊ̼
vigilância, publicidade, entretenimento, serviços, etc. Eles advertising, entertainment, services etc. Yet they also have been
também vêm sendo valiosa fonte de pesquisa nas ciências a valuable source of research in human and social sciences.
humanas e sociais. O valor desses rastros está atrelado ao The value of these traces is related to the knowledge they
conhecimento que possibilitam e há, neste domínio, uma provide, which is the focus of a series of disputes. This article
série de embates. Este artigo confronta dois modelos de confronts two models of knowledge in this area, which have
conhecimento, os quais têm implicações diferenciadas para ˾ÐÊÉÊÀļ¾ÅÎѾÂÃľÆÀ½¼ÈÆɼüÎÆѾÂϼÆȼÄÔʼ˾¿¾ÄÃѼÄÉÃÂʽռÖÔʼÁɽļ
uma política dos rastros digitais. O primeiro, vigente nos model, that is present in commercial and police apparatus,
aparatos comerciais e policiais, concebe o rastro como evidência conceives the trace as an evidence linked to individuals and/
atrelada ao indivíduo e/ou a padrões comportamentais. O ÆɼÍÊÔÃÓ¾ÆÉÃѼÎÃ×ÊÉÀ½Õ¼ÖÔʼ½ÊÂÆÀ˼ÆÀÊ̼ØÔ¾ÂÔ¼¾½¼ÄÔʼÅþÀ¼
segundo, objeto maior de nosso interesse e inspirado na teoria object of our interest and inspired by the actor-network theory,
ator-rede, entende os rastros como inscrições de ações que understands the traces as inscriptions of actions that allow us
permitem descrever a formação de coletivos sociotécnicos. to describe the formation of sociotechnical collectives.
±²³²´µ²¶·¸¹²´º: Rastros digitais; Teoria ator-rede; Conhecimento. ÙºÚÛÜµÝ¶Ò Digital Traces; Actor-network theory; Knowledge.

Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, setembro/dezembro 2012

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“ A personalidade deve ser procurada onde o esforço pessoal é menos


intenso.”
Giovanni Morelli

E m meados dos anos 1980, um episódio até então menor da literatura em ciências
humanas e sociais, ganha relativa notoriedade no meio acadêmico com o
historiador Carlo Ginzburg (1989). O episódio se passa entre 1874 e 1876, quando uma
série de artigos sobre pintura italiana foi publicada numa revista alemã, assinados por
±²³´µ¶·¸¹ºµ·»´¸³µ¶¼±´»¸¶¸³½±¶¶¸³¾³¿ÀÁ¹³Âµ½²¸Ã»µÄųƶ³Á½¼»Ç¸¶³È½¸È±¹ºÁ²³±²³¹¸À¸³
método para atribuição de autoria de quadros, e suscitaram na ocasião fortes debates e
reações entre os historiadores da arte. Anos mais tarde, o italiano Giovanni Morelli se
revela o verdadeiro autor destes artigos que, sob o heterônimo russo, elaboravam o que
veio a ser conhecido na história da arte como o “método morelliano”. O método visava
´»Éµ½µ¹·»Á½Ê³¹¸³·Á²È¸³´Á³È»¹¼±½Áʳ¸½»Ç»¹Á»¶³µ³·ËÈ»Á¶Ê³´µ³²¸´¸³Á³»´µ¹¼»Ì·Á½³Á³Àµ½´Á´µ»½Á³
autoria do quadro. A sua singularidade consistia em uma estratégia atencional e
interpretativa distinta daquela, então, corrente. Era preciso, dizia Morelli, abandonar
o foco nos traços mais manifestos e centrais do quadro, aqueles que supostamente
conteriam a “assinatura” do pintor: o sorriso nos quadros de Leonardo da Vinci, ou
os olhos voltados para o céu nos quadros de Perugino, entre outros.
A atenção do examinador deve, ao contrário, voltar-se para detalhes menores e
¹µÇûǵ¹·»ÍÀµ»¶Ê³¹¸¶³Î±Á»¶³Á³»¹Ï±Ð¹·»Á³´Á³µ¶·¸ÃÁ³´¸³È»¹¼¸½³Ñ³²µ¹¸¶³²Á½·Á´ÁųҶ¶»²Ê³
a forma dos dedos e unhas, dos lobos de orelhas e outros detalhes sem glória, seriam
pistas muito mais valiosas quanto à autenticidade de um quadro do que os traços
“canônicos” da escola ou do pintor. Morelli cataloga, desta forma, as orelhas próprias

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a Boticelli e Signorelli, por exemplo; traços presentes nos originais, mas ausentes nas
cópias.
Embora seu método tenha tido sucesso na atribuição de quadros nos principais
museus da Europa, foi bastante criticado até cair em descrédito. O interesse pelo
método foi renovado muito mais tarde, notadamente a partir de Wind (1972), que viu
nele um exemplo da atitude moderna frente à obra de arte, mais atenta aos pormenores
que ao conjunto. De acordo com este autor:

“ Os livros de Morelli têm um aspecto bastante insólito se comparados


aos de outros historiadores da arte. Eles estão salpicados de ilustrações
de dedos e orelhas, cuidadosos registros das minúcias características que
traem a presença de um determinado artista, como um criminoso é traído
pelas suas impressões digitais. Qualquer museu de arte estudado por
Morelli adquire imediatamente o aspecto de um museu criminal […]”
(Wind, 1972 apud Ginzburg, 1989, p. 145)

Mas o método morelliano interessa a Ginzburg não tanto pelo seu papel na história
da arte, mas porque ele seria uma das matrizes de um paradigma que, segundo este
autor, começa a se estabelecer nas ciências humanas nas décadas de 1870-80, baseado
±²³´µ¶´²³µ¶³·¸¶³¹²º»¹¼º³½¼¹³¾¶¿¶º³´±À±´»¶º´Á²´º³½¶¹Á´»¶Á³²½¹¶¶±µ¶¹³¸Á²³¹¶²Â´µ²µ¶³
mais profunda. Trata-se do “paradigma indiciário”, que teria, além de Morelli, outros
representantes ilustres como Freud e o Sherlock Holmes, de Conan Doyle. Da mesma
forma que Morelli busca detalhes relativamente marginais do quadro, Holmes busca
em cinzas de cigarro, pegadas na lama e outros indícios pouco perceptíveis às pistas da
autoria do crime. Freud, por sua vez, propõe como um dos eixos de sua hermenêutica,

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a ideia de que o inconsciente se revela, sobretudo, nos resíduos, nos elementos


±²³´µ¶²µ·¸¹º»¼´²¹²¹½µ¾²³¹¿¹±À¾¿Á¿¹±¿³¼Âµ²¶¿Ã¹²Ä³±²¶Á¿¹½¿±¿¹¼·¾¼¹À¹·µ±µÂ²³¹Å¹¾À½¶µ½²¹
da psicanálise (Freud, 1914).
Em todos estes casos, está em jogo, segundo Ginzburg, a constituição de um saber e
um método interpretativo que toma o rastro, o resíduo, o negligenciável, como índice
e via mestra para realidades complexas ou profundas. Este paradigma indiciário que
“emergiu silenciosamente no âmbito das ciências humanas no século XIX” (Wind,
1972 apud Ginzburg, 1989, p. 143) teria, ainda conforme o autor, raízes muito mais
antigas. O patrimônio cognitivo de interpretação dos rastros teria sido legado por
nossos antepassados caçadores que, por milênios aprenderam a reconstituir as formas
e deslocamentos das presas invisíveis a partir de seus rastros selvagens.
Mas, no que este saber tão antigo quanto moderno nos interessa? Curiosamente,
o que renova o interesse por um saber dos rastros é uma paisagem recente e distante
dessas duas heranças: aquela das pegadas que deixamos nas redes de comunicação
distribuída, especialmente na internet, onde toda ação deixa um rastro potencialmente
recuperável, constituindo um vasto, dinâmico e polifônico arquivo de nossas ações,
escolhas, interesses, hábitos, opiniões, etc. Esses numerosos rastros digitais têm feito,
½¿±¿¹·¼¹·²Æ¼Ã¹²¹Ç¿³¾È¶²¹Á²·¹¼±É³¼·²·¹Á¼¹³²·¾³¼²±¼¶¾¿¹¼¹±µ¶¼³²ÊË¿¹Á¼¹Á²Á¿·¹É²³²¹Ä¶·¹
comerciais e publicitários 1.
Dispositivos de vigilância têm igualmente visto nestes rastros uma valiosa base de
dados para o controle (Bruno, 2006; 2008).
Entretanto, além e mesmo na contramão deste comércio e desta polícia dos rastros
digitais, há aí uma ocasião para se recolocar o problema da produção de um saber
dos rastros. Este texto nasce desta ocasião e explora o problema a partir das pistas
encaminhadas pela teoria ator-rede (TAR), especialmente pelo trabalho de Bruno
Latour (2007). A quantidade e a qualidade dos rastros digitais, hoje presentes na

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internet oferecem às ciências sociais, segundo este autor, a possibilidade de renovar


tanto suas metodologias quanto suas abordagens teórico-conceituais. Tais ciências
jamais estiveram diante de uma riqueza tão grande de dados: rastros subjetivos,
±²³´²µ¶·³¸¹¶·º»¼½¾º¹¿ÀÁ»¶º±²»¼½Â¹·¹±¸ºµ²»¼½Ã¸³½±²³²½º¹¶¸µ·ÄŸ»¼½·»»²±º·ÄŸ»½¸½±²¹Æº¶²»½
Ǹ½ÇºÈ¸µ»·»½¸»±·¾·»½¶²µ¹·³É»¸½»º¿¹ºÂ±·¶ºÈ·³¸¹¶¸½³·º»½Ê˱¸º»½Ç¸½»¸µ¸³½Ç¸»±µº¶²»½¸½
retraçados. Ao mesmo tempo, a natureza desses rastros traz novas inquietações. De
toda forma, talvez não seja exagero dizer que experimentamos algo próximo ao que
Ginzburg vislumbrou no século XIX: o rastro (agora digital) como via privilegiada de

conhecimento nas ciências humanas e sociais. Contudo, no lugar de reconhecermos aí


um paradigma, destacamos o quanto a produção de conhecimento dos rastros digitais
é um terreno de embates.
O que se tornam os rastros digitais quando vistos sob a perspectiva da teoria ator-
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O que se tornam os rastros digitais quando vistos sob a perspectiva da teoria ator
rede? A pergunta já indica a polifonia em jogo. Como apontamos, eles podem falar
a língua do comércio, da publicidade ou da vigilância. Mas também podem falar
a língua da composição de coletivos sociotécnicos, nos termos da TAR. A questão,
assim, é a de como fazer falar os rastros digitais segundo esta última perspectiva. Eis
a disputa colocada.

A ação humana e seus rastros


Toda ação humana, bem o sabemos, pode deixar atrás de si rastros de diferentes
ÌÀ·¾ºÇ·Ç¸»Í½Î½¸»¶·¶À¶²½Ç¸»»¸»½µ·»¶µ²»½Ï½ÇºÊÁ±º¾½Ç¸½Ç¸Â¹ºµ½¸³½¶¸µ³²»½´µ¸¶¸¹»·³¸¹¶¸½
universais, uma vez que o rastro é uma espécie de quase-objeto (Serres, 1991) e situa-
se num limiar entre presença e ausência; visível e invisível; duração e transitoriedade;
memória e esquecimento; voluntário e involuntário; identidade e anonimato, etc.
Uma lista bastante incompleta de aspectos importantes incluiria os seguintes “postu-
lados”:

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a) Rastros são mais ou menos visíveis. A visibilidade dos rastros não é uniforme,
mas múltipla, e implica técnicas distintas de visualização, as quais, por sua
vez, interferem no modo de existência do rastro. Um traço a lápis e uma im-
pressão digital numa folha de papel, por exemplo, são rastros de visibilidades
distintas.
b) Rastros são mais ou menos duráveis, persistentes. Oscilam desde a transitoriedade
das pegadas na areia, ou a duração instável das pedrinhas com que O Pequeno
Polegar marca seu caminho de volta para casa, até à persistência das inscrições
picturais nas grutas Chauvet-Pont d’Arc , que guardam esse gesto há 32 mil anos.
Espessuras temporais variáveis, portanto.
c) Rastros são mais ou menos recuperáveis. Prestam-se à memória e ao arquivo de
modos distintos. Um telefonema, uma carta, um e-mail, um sms têm graus de
rastreabilidade diferenciados.
d) Rastros são mais ou menos voluntários ou conscientes. Posso, por exemplo,
inscrever deliberadamente a minha ação num objeto ou texto que produzo. Ou,
posso deixar sem me dar conta, rastros de minha presença em lugares, coisas,
corpos.
e) Rastros são mais ou menos atrelados à identidade daqueles que os produzem.
Como bem nos mostrou Morelli, onde supostamente o rastro explicita a autoria,
pode vigorar o falso ou o heterônimo. Já onde rastros anônimos cairiam na
indiferença, pode residir o índice certeiro da identidade.

f) Rastros envolvem necessariamente uma inscrição material mais ou menos


recuperável por outrem. Neste sentido, remetem ao coletivo.
Estes postulados intimamente atrelados uns aos outros mostram o caráter
fragmentário, ambíguo e polissêmico dos rastros de uma forma geral. Os rastros
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fragmentário, ambíguo e polissêmico dos rastros de uma forma geral. Os rastros
±²³²´µ²¶·´¸¹º·»¼½·¶¾µ·¿ÀÁº·µÂ³¾¹µ¶·À¶»ÀòÄò±µ±À¶Å

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Rastros digitais
Um rastro digital é o vestígio de uma ação efetuada por um indivíduo qual-
quer no ciberespaço 2 . Há, certamente, rastros no ciberespaço que não derivam
de ações realizadas por indivíduos, mas de processos automatizados. Estamos
considerando neste texto apenas rastros que envolvem direta ou indiretamente a
ação humana, ainda que esta seja associada a inúmeros agentes maquínicos e não
humanos.
As particularidades dos rastros digitais não devem ser entendidas como
características exclusivas. Muitas delas são partilhadas por outros tipos de rastros,
±²³´µ¶·¸¶¹º²±´¶²´»¶³·º»¼½¸´¾»¿»¹²ÀÁ´µ³Âµ·»²À±µ¶¹µ´¶²´»¶¹µº¶µ¹Á´³Ã²´»¶¹µ¶³»Ä·²¼½¸Å´Æ±²´
série de algumas particularidades conteria:

a) Não se pode não deixar rastro. Comunicar é deixar rastro


Ainda que o rastro seja uma virtualidade de toda ação, ele nem sempre se atualiza. Na
internet, diferentemente, o rastro acompanha necessariamente toda ação, salvo que
medidas para evitá-lo sejam tomadas. O que se torna potencial é a sua recuperação.
Deste modo, além ou aquém das informações pessoais que divulgamos voluntariamente
na rede ( posts Á´¾²¾¸³´¾µ´ÂµºÄÀÁ´·¸¶Çµº³²¼Èµ³´¶¸´Éʻ˵º´¸Ã´¶¸´Ì²·µÍ¸¸ÎÏ´¹¸¾²´²¼½¸´Ð´
navegação, busca, simples cliques em links, downloads , produção ou reprodução de
um conteúdo – deixa um rastro, um vestígio mais ou menos explícito, suscetível de
ser capturado e recuperado.
O ato comunicacional ganha uma peculiaridade na internet. Não apenas aces-
samos, trocamos, produzimos conteúdos e informações diversas, mas deixamos
um rastro dessa comunicação. Comunicar é deixar rastro. A máxima da pragmática
“não podemos não comunicar” pode ser reescrita: não podemos não deixar
rastros.

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b) Arquivo por padrão


Historicamente, a produção da inscrição, do registro implicava, na maioria das vezes,
um gesto adicional, que se somava ao ato comunicacional. Quando o rastro passa a ser
consubstancial à ação, como na internet, temos uma máquina avessa ao esquecimento, a
um só tempo comunicacional e mnemônica. Um check-in no Foursquare 3, por exemplo,
é a ação de comunicar a presença num local e, ao mesmo tempo, a inscrição de seu
rastro. Se historicamente entende-se o esquecimento como o efeito mais “natural” e o
registro como gesto suplementar, vivemos na rede o inverso: para que o esquecimento
se produza, é preciso uma ação deliberada. O arquivo, por sua vez, está assegurado
por padrão.

c) Rastros digitais são persistentes e facilmente recuperáveis


Nem todo rastro é rastreável. Naturalmente, este princípio aplica-se também à internet,
mas os rastros digitais são relativamente mais persistentes e facilmente recuperáveis.
Isto se deve, em parte, à diminuição relativa do intervalo entre a ação, a inscrição do
rastro e sua recuperação. Há, mesmo, a possibilidade de monitorar e capturar o rastro
em tempo real, de modo a possibilitar vias diferenciadas de recuperação. O Google
Insights, por exemplo, permite que recuperemos os rastros de busca de termos em
±²³´µ¶µ·¸²·±²¹´º¹µ·»¸¼½·¾¿À½Á¿Â¶µ¸¿¸·¾¿¸Ã³²Ä¾Å¹½¿¸Â¾Æ¿¸À½ÂÇ¿¸¶µ¸È²Æ±µÉ

d) A topologia e a visibilidade dos rastros digitais são multiformes


Nossas pegadas digitais têm uma topologia complexa, constituindo uma cascata
¶²¸½Â·¹³½Ê˲·É¸Ì¾Æ¸²·È³¿Èµ¸Æ¿½·¸·¾±²³º¹½¿À¸²¸¼½·´¼²À»¸Ç͸¿¸¹µÆ¾Â½¹¿Êε¸¶²¹À¿³¿È½¼¿¸
e sua respectiva inscrição: o que publicamos ou um aplicativo que utilizamos, etc.
Concomitantemente, há informações que “emanam” desse primeiro estrato e geram
rastros de segunda, terceira, quarta ordens. Vestígios que se inscrevem em nosso

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navegador e nos sites que visitamos ( cookies ; beacons ), contendo o registro de nossa
navegação, são exemplos dessas outras camadas de rastros, menos visíveis. Marcas
quase invisíveis derivam de ações ou comunicações que muitas vezes nem são
percebidas como tais. Quando uso um aplicativo no Facebook, por exemplo, posso
querer apenas me divertir e não necessariamente criar um rastro que indica um
interesse que venha alimentar os bancos de dados publicitários. Neste contexto, somos
emissores não apenas no sentido declarativo; emanamos “pacotes de informação”
em cascata que alimentam bancos de dados de visibilidade variável. Daí deriva uma
extrema ambiguidade quanto aos aspectos voluntários e involuntários do rastro
digital. Quanto mais se deseja inscrever presenças na rede, mais rastros involuntários
são deixados.

O rastro em disputa: polícia, comércio, conhecimento e política


±²³´µ¶·¸¹¶º¹»µ¶¼½ºº¾¿¹À¶²´¹³Á²ÂõĶµÁIJŸÁ½º¶¼ÄƼIJ½º¶µ½º¶ÄµºÁĽº¶´²Ç²Áµ²ºÈ¶½¶º¹¸¶¹ºÁµÁ¸Á½¶
¼¹Äɵ³¹Ã¹¶¹É¶´²º¼¸Áµ¶¹¶³Ê½¶¼½´¹È¶´¹¶ËµÁ½È¶º¹Ä¶´¹Â³²´½¶´¹¶µ³Á¹Éʽ̶͵À¶´²º¼¸Áµ¶Î¶
atravessada por inúmeros interesses, saberes, práticas e, um dos focos de embate
consiste no tipo de conhecimento que se pretende extrair desses rastros. Este também
é o nosso foco de interesse. Colocaremos em contraste duas perspectivas. Cada uma
delas faz falar os rastros de modos distintos, implicando diferentes concepções da
rede onde eles se produzem. A primeira concebe o rastro como índice, prova ou
evidência, compreendendo a rede como aparato de captura. Tratarei brevemente desta
perspectiva, voltada para procedimentos de vigilância e controle de indivíduos e
grupos (Bruno, 2006; 2008). A segunda perspectiva, objeto maior de nossa atenção,
baseada na TAR, concebe os rastros como inscrições de ações, sendo a rede aquilo que
faz proliferar mediadores. Se na primeira o conhecimento dos rastros opera segundo
ÃIJÁÎIJ½º¶´¹¶²´¹³Á²ÂõÏʽȶ¼Ä½¿µ¶¹¶¼Ä¹¿²ºÊ½È¶Ã½À½Ãµ³´½¶½¶µÃ¹³Á½¶º½ÅŶ½¶²³´²¿¾´¸½Ð¶³µ¶

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segunda o conhecimento dos rastros opera segundo critérios de descrição e mediação,


colocando o acento sobre o coletivo.

a) A polícia e o comércio dos rastros digitais: rede como captura


Como se sabe, o monitoramento dos rastros pessoais vem se tornando uma rotina
dos serviços, sites, redes sociais e plataformas de produção e compartilhamento

de conteúdo na internet. Imensas bases de dados de nossos modos de vida são


cotidianamente elaboradas de forma distribuída segundo múltiplos propósitos:
comércio, entretenimento, marketing, publicidade direcionada, consultoria política,
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g p p
recrutamento de pessoal, desenvolvimento de produtos e serviços, inspeção policial
e estatal, etc.
O valor desses rastros consiste no conhecimento que eles supostamente possibilitam.
Apesar dos múltiplos usos, há elementos comuns quanto ao modelo de conhecimento
em jogo nesses casos. Em primeiro lugar, os rastros são interrogados prioritariamente
em seu caráter indicial. Toda a ambiguidade e polissemia são deixadas de lado
em nome de uma inspeção que faz falar o rastro como “evidência” de um ato ou
característica de um indivíduo. Leis como a Hadopi 4
, por exemplo, buscam rastros
que atestem que o internauta fez downloads de arquivos, violando direitos autorais.
Instâncias policiais, por sua vez, buscam indícios de crimes em rastros deixados na
rede. Boa parte do rastreamento efetuado por instâncias de segurança e/ou jurídicas
±²³´µ¶·´³¸¶´µ¹µ´¶º·´¹µ¶¹µ»¼½»¾¿½²¹ÀµÁ¶Â³¼½¹Ã¹µÁ¶¸¶´µÄ¹Å¹µ¿¼½»Ä³µ±²³µ¸³¾¶µÆµ»½³¼·»ÇĶÈɹµ
daquele que o gerou.
Fora do plano policial e securitário, há ainda outro modo de fazer falar o rastro
digital como “evidência”. Ê o caso do comércio, do marketing e da publicidade
direcionada. O rastreamento dos vestígios de navegações, comunicações e consumo
na internet constituiria, segundo esta perspectiva, uma via privilegiada de acesso aos

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mais autênticos desejos e traços de personalidade dos indivíduos. A suposição de


autenticidade contida nestes rastros está atrelada à ideia de que, uma vez “emanando”
±²³´µ¶´µ·²³¸¹º²³±»¼³»½¾¿¼³À²Á·±·»Â»¼Ã³¿Ä¿¼³¼¿µ·»Å³Æ¿¼ÁÇÈ·²¼³À²ÄÉ·±²¼³ in natura , e,
´²µ³·¼¼²Ã³Å»·¼³À²ÂÊËÆ¿·¼Ã³¹Å»³Æ¿Ì³Í¹¿³²³ÊÄÁµ²³±»³À²Â¼À·ÎÂÀ·»³¿¼Á»µ·»³Å»·¼³µ¿Ä»º»±²Ï³
Serviços e algoritmos dedicam-se ao monitoramento e tratamento desses rastros em
busca do conhecimento do que se designa, nesse setor, por on-line body language dos
usuários da rede.
Parte deste conhecimento alinha-se às pesquisas recentes sobre big data , com
aplicações em vários domínios. Como o próprio termo indica, estamos diante de uma
nova grandeza informacional que envolve tanto o aumento na capacidade de coleta,
estocagem e tratamento, quanto a emergência de um tipo de saber proveniente dessas
imensas quantidades de dados, as quais revelariam regras inscritas nas correlações
sutis entre eles (Anderson, 2008).
A pretensão de objetividade também está atrelada ao caráter automatizado do
tratamento desses rastros que não seriam submetidos à interpretação humana, mas a
procedimentos algorítmicos. Estes, por sua vez, revelam padrões de comportamento,
´¿µ¼²Â»Ä·±»±¿Ã³¼²À·»Ð·Ä·±»±¿Ã³±¿¼¿Ñ²³Í¹¿³ÂÒ²³¼Ò²³´µÓÔ±¿Ê·±²¼³Õ top down ), mas que
emergem o próprio cruzamento dos dados ( ±²³²´µ¶· ). Categorias que expressariam
um grau de objetividade mais agudo que quaisquer outras teorias, observações ou

interpretações permitiriam.
O saber em jogo pretende, ainda, ser proativo. As imensas quantidades de
rastros heterogêneos constituem, segundo esta perspectiva, gigantescos arquivos
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g g p p gg q
com capacidade de projetar padrões de comportamento e, consequentemente,
intervir sobre o curso das ações dos indivíduos, ofertando escolhas e caminhos que
incitem ou evitem, conforme o caso, o que se projetou. A evidência supostamente
revelada no rastro digital não tem, neste caso, a pretensão de ser uma prova ex post
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facto , mas um vetor que permitiria agir antes do fato, ou antes da ação, de modo a
orientá-la.
Há, claramente, a construção de um modelo de saber cujo argumento de legitimação
reside nas supostas objetividade e autenticidade próprias à coleta desses rastros em
tempo real, in natura , e ao tratamento automatizado. Argumento frágil e questionável
tanto do ponto de vista cognitivo, quanto político, pois, supõe que tais procedimentos
dispensam mediações (e suas consequentes traduções), atribuindo ao rastro um
estatuto de evidência.

b) O rastro digital segundo as pistas da teoria ator-rede: cognição e política


Na contracorrente da linguagem policial e comercial, outros modos de fazer falar os
rastros digitais são, entretanto, possíveis. Esta imensa e dinâmica “mina” de dados
deve ser, também, uma ocasião para se experimentar estratégias cognitivas e políticas
diferenciadas. Exploramos, nesta direção, pistas encaminhadas pela teoria ator-rede.

“ La médiation numérique s’étale comme un immense papier-carbone


±²³´µ¶·´¸¹·º»¼½µ»½º·º±»¼´¾½º·¿¾¸º·À½·À±µµÁ½º·Â¸Ã½¾¾½º·µÃ½µ·±µ¶·Ä´Å´¼º·
rêvées. Grâce à la traçabilité numérique, les chercheurs ne sont plus
obligés de choisir entre la précision et l’ampleur de leurs observations:
il est désormais possible de suivre une multitude d’interactions et,
º¼Å¸¾¶´µÁŽµ¶Æ·À½·À¼º¶¼µÇ¸½³·¾´·»±µ¶³¼È¸¶¼±µ·º¿Á»¼É¸½·Â¸½·»Ê´»¸µ½·
apporte à la construction des phénomènes collectifs. Nées dans une époque
de pénurie, les sciences sociales entrent dans un âge d’abondance.”
(Latour e Venturini, 2010, pp. 5-6).

Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 692

https://www.redalyc.org/html/4955/495551012006/ 10/20
20/05/2019 Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede

F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

Os autores apontam, no trecho acima, ao menos duas grandes oportunidades


para as ciências humanas e sociais. A primeira concerne a um ganho quantitativo.
Estas ciências contam hoje com uma rica e inédita fonte de dados, outrora de difícil
acesso. Mas não se trata apenas de um maior volume de dados disponíveis, mas da
possibilidade de renovar a leitura mesma dos processos sociais.
Por que a rastreabilidade digital e o conhecimento que dela deriva interessam
especialmente à TAR? A resposta implica um breve parêntese sobre alguns conceitos
e princípios desta abordagem. Em primeiro lugar, é preciso entender o estatuto do
±²³´±µ¶²¶·²±´¸±¶¹²¶ºµ»¼µ¶¹½¶²»¼µ¶½¶³½¾¶·²·½¿¶º²¶±½¹½Àº¸»¼µ¶¹µ¶³µÁ¸²¿Â¶·±µ·µ³´²¶·µ±¶
ò´µ¾±Ä¶Å³´²¶±½¹½Àº¸»¼µ¶¸Æ·¿¸Á²¶²Ç±¸±¶Æ¼µ¶¹µ¶Æµ¹½¿µ¶½È·¿¸Á²´¸Éµ¶É¸Ê½º´½¶½Æ¶Ê±²º¹½¶
parte da sociologia: aquele que postula a sociedade ou “o social” como um domínio
ou substância especial da realidade, capaz de explicar porque processos e seres se
mantêm juntos. Decorre dessa concepção essencialista ou substancialista, a ideia de
que a sociedade ou qualquer outra grande estrutura – o poder, o mercado, o capital,
o contexto, o simbólico – é o que explica uma série de processos ditos “sociais”.
ò´µ¾±¶·±µÉµÁ²¶½³´²¶´±²¹¸»¼µ¶²À±Æ²º¹µË¶Ìµ¶³µÁ¸²¿¶º¼µ¶½È¸³´½Íζ϶о½¶¸³´µ¶Ð¾½±¶¹¸Ñ½±Ò¶
ӾƲ±¸²Æ½º´½Â¶³¸Êº¸ÀÁ²¶Ð¾½¶µ¶Ì³µÁ¸²¿Í¶º¼µ¶Ô¶µ¶Ð¾½¶½È·¿¸Á²Â¶Æ²³¶µ¶Ð¾½¶Æ½±½Á½¶³½±¶
explicado. A provocação é endereçada a boa parte da sociologia, que teria se poupado
do trabalho fundamental de explicar como se constrói “o social”, transformando-o
numa espécie de grande estrutura que tudo explica. Na esteira da TAR, Latour
convida a inverter os termos e retomar o trabalho de explicar como se tece o
social.
Õ precisamente para aqueles que desejam efetuar este trabalho que a rastreabilidade
digital pode ser interessante. Pois, em linhas muito gerais, tal trabalho consiste
em retraçar as ações que múltiplos e heterogêneos atores efetuam, descrevendo as
associações e redes que se formam na composição de um coletivo qualquer. O “social”

Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 693

https://www.redalyc.org/html/4955/495551012006/ 11/20
20/05/2019 Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede

F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

é aquilo que emerge dessas ações, associações e redes, e não algo que paira sobre
ou sob elas. O trabalho de descrição do social é, assim, um trabalho de formiga,
±²³´µ¶·¸¶¹º»²¼·²½¾½²³´¿ºÀÁ½·¶º·Á³Â´³Ãµ¶´¹½·¾º²Ä¶¿º·Å½Æº·¶µ²Ç´³Äº·¿¶·ÈÉÊ·´¶·Æ˴»¶·
inglesa ( Actor Network Theory , ou ANT, também “formiga” em inglês). Implica assim
uma perspectiva “rasteira”, voltada para lugares concretos, ou oligóptica , termo
proposto em contraste com a perspectiva panóptica, que deseja tudo ver (Latour,
2007).
Esta descrição deve levar em conta uma série de princípios da TAR, retomaremos
apenas os diretamente atrelados à nossa argumentação.
¶Ì·Í½´Î»Ä·µ²³¹Ï²³º·Á»±Á¹¶´µ³¶Æ³Á¹¶·¿½Ã´½·¿½·¶´¹½Äк·º·Ñ»½·Ï·»Ä·¶¹º²Ò
b) A ação nunca é individual, e sim coletiva e distribuída;
c) Quando há ação, há rastro;
d) O trabalho de descrição das redes implica seguir os rastros das ações, sendo a
um só tempo cognitivo e político.
O primeiro princípio remete à heterogeneidade dos modos de existência que
compõem o social. Como se sabe, a TAR reivindica um social de composição híbrida,
entendido como coletivo sociotécnico de entidades humanas e não humanas. Tais
entidades não são, por algum atributo especial, atores (actantes). Um actante não se
define por sua natureza (humana ou não humana; animada ou inanimada), mas pelo
modo como age. Vê-se que o actante se diferencia do sentido sociológico clássico de
“ator social”, privilégio do domínio humano 5.
Agir, segundo a TAR, é produzir uma diferença, um desvio, um deslocamento
qualquer no curso dos acontecimentos e das associações. Mediação e tradução são
¹½²ÄºÁ·Ñ»½·±»Áµ¶Ä·¿½Ã´³²·½Á¹¶·¶Óк·Ñ»½·Ï·¹²¶´Á¾º²Ä¶Óк¼·Ô¹²¶³ÓкÕÖ·×Á·¿º³Á·¹½²ÄºÁ·
implicam deslocamentos de objetivos, interesses, dispositivos, entidades, tempos,
lugares. Implicam desvios de percurso, criação de elos até então inexistentes e, que de

Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 694

F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

algum modo, transformam os elementos imbricados. Qualquer entidade que produza


uma diferença no curso de uma situação deve ter o estatuto de actante, participando
assim da composição de um coletivo.

Esta composição deve ser descrita segundo a noção de rede, ou seja, como um
“encadeamento de ações onde cada participante é tratado, em todos os aspectos,
como mediador” (Latour, 2007). Um mediador é algo que age transformando;
dif t t d i l i t diá i t t lt U i l
https://www.redalyc.org/html/4955/495551012006/ 12/20
20/05/2019 Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede
diferentemente do simples intermediário, que transporta sem alterar. Um simples
quebra-molas, diz Latour (1994), opera uma transformação decisiva ao nos fazer agir
como seres morais (diminuindo prudentemente a velocidade), ainda que estejamos
apenas interessados em preservar a suspensão dos nossos carros. As cadeias de
ações e associações que constituem as redes não são, assim, meros veículos por onde
há transporte – de informação, sentido, objeto – sem transformação. Ao contrário,
as redes são aquilo mesmo que emerge do trabalho de mediação e tradução de
atores heterogêneos. Em sua composição, há uma série de disputas, negociações,
±²³´µ²¶·µ¸¹º¸»¼½¾»µ¾¿¾À³¾Á»±²³´¹³½ºÁ¾³´¾»²¸»º´²µ¾¸Â»¸½º¸»ºÃľ¸Â»º¸¸²±¹ºÃľ¸Â»Å¾Á»
como, a própria rede. Assim, as redes não existem como um objeto que estaria aí
antes de haver ação, ou que subsiste após cessarem as ações. Topologicamente, a rede
¸¾»¿¾À³¾»ÆDzµ»¸½º¸»±²³¾Èľ¸Â»¸¾½¸»Ç²³´²¸»¿¾»±²³¶¾µÉʳ±¹º»¾»Å¹Ë½µ±ºÃ̲ͻÎϺ»·»½Áº»
ÏÐɹ±º»¿¾»¸½Ç¾µËѱ¹¾¸Â»¿¾À³¹¿º»Ç²µ»¸¾½¸»ºÉ¾³±¹ºÁ¾³´²¸»¹³´¾µ³²¸»¾»³Ì²»Ç²µ»¸¾½¸»Ï¹Á¹´¾¸»
externos” (Moraes, 2000). Daí a importância de não se confundir a noção de rede
ǵ²Ç²¸´º»Ç¾Ïº»ÒÓÔ»±²Á»¼½ºÏ¼½¾µ»µ¾Çµ¾¸¾³´ºÃ̲»²½»²ÅÕ¾´²»´·±³¹±²»¾¸Ç¾±ÑÀ±²Í»ÖÁº»µ¾¿¾Â»
lembra Latour, é menos a coisa descrita, do que um modo de descrição. E esta descrição
é menos a de uma coisa estabilizada, do que a de um coletivo em seu movimento de
formação.
×»¸¾É½³¿²»Çµ¹³±Ñǹ²»Ø»¼½¾»ºÀµÁº»º»³º´½µ¾Ùº»±²Ï¾´¹¶º»¾»¿¹¸´µ¹Å½Ñ¿º»¿º»ºÃ̲»Ø»
permite compreender melhor o caráter da rede. A ação jamais é individual ou local.

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F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

Nunca agimos sós, quando agimos, outros passam à ação e, se agimos, é porque fomos
acionados por outros. Daí o termo contínuo ator-rede. A ação é sempre distribuída, em
rede, e não há nenhum princípio essencialista capaz de estabelecer, de antemão, que
atores serão mobilizados para a construção de uma rede.
Neste ponto, Latour (2007) retoma uma das intuições fundadoras das ciências
humanas e sociais na Modernidade: a de que não somos senhores de nossa própria
ação, seja porque nunca agimos sós (outros agem em nós), seja porque nunca
somos plenamente conscientes de nossas ações, seja ainda porque nossas ações nos
ultrapassam e produzem efeitos inesperados, que nos escapam. Sabemos o quanto
a psicanálise, a antropologia, a sociologia, a linguística retiraram do sujeito e da
consciência o centro da ação, multiplicando os agentes. Contudo, segundo Latour,
a potencialidade desta intuição é rapidamente sufocada pela invocação de forças
como o social, o inconsciente, a estrutura, o simbólico que sobredeterminariam o
sujeito e suas ações. Retomar esta intuição em sua radicalidade é supor que a ação é
sempre distribuída e “subdeterminada”, de modo que devemos manter sempre uma
margem de incerteza em relação à origem de qualquer ação. Quando agimos, devemos

perguntar: quem mais age ao mesmo tempo que nós? Quantas entidades invocamos?
Como não fazemos jamais o que queremos?
Estas são também as questões que se colocam quando se trata de explicar como as
³ ¸ ¹º º ¹¼ º ¹º¹ Á ¸º Æ È ¸ ³ È ¹ Ê ³
https://www.redalyc.org/html/4955/495551012006/ 13/20
20/05/2019 Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede
±²³²´µ²µ¶·¸²¹º»·´µ´·¶º·¹¼¶½º¶·´µ´²µ¶·½´¹º¹¾²¿ÀµÁÂøº¶ÄÅƷǵÄȽĸǵɾ²µ³²È½²µÄµ¹Ä±²Êĵ³Äµ
TAR: “seguir as coisas através das redes em que elas se transportam, descrevê-las em
seus enredos” (Latour, 2004, p. 397). Mas como “seguir as coisas”? Pelos seus rastros.
Chegamos ao terceiro e ao quarto princípios. Quando há ação, há rastro. Quando se
age, quando se produz uma diferença, produz-se um rastro que pode ser recuperado,
ainda que estes rastros sejam intermitentes (Latour, 2007). Uma das tarefas de descrição
de como as redes e coletivos sociotécnicos se constituem, consiste em retraçar os rastros

Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 696

F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

das ações, traduções, associações inscritos em documentos, arquivos, notas e registros


de toda ordem.
Eis porque a rastreabilidade digital pode ser interessante, se explorada segundo a
perspectiva da TAR. A rastreabilidade das ações de inúmeros atores nas redes digitais
de comunicação torna extremamente mais simples a tarefa de se retraçar a tessitura
mesma dos coletivos sociotécnicos. Os rastros digitais, fruto de ações, interações e
±²³´µ¶µ·¸²¹º±²º»¼±µº¹¼¶»²½ºµ´¾¿º±²ºÀµ¹»¼¹º²º±ÁÀ²¶¹Á³µ±¼¹½ºÃ¼±²¿º»²¶º¹Äµº»¶µÅ²»Æ¶Áµº
retraçada de forma relativamente simples, se comparada aos meios tradicionais
de recuperação de associações constitutivas de fenômenos sociais. Instrumentos
convencionalmente custosos e lentos (questionários, enquetes, cálculos estatísticos)
dão lugar a ferramentas mais ágeis e simples (sistemas automatizados de coleta,
registro e visualização), oferecendo às ciências sociais não apenas uma riqueza de
dados, mas a possibilidade de observar e descrever os processos sociais segundo uma
perspectiva que dispense as grandes partições com as quais a sociologia classicamente
trabalhou: micro e macro social, interações locais e estruturas globais, individual e
coletivo, subjetivo e social. Uma das apostas da teoria ator-rede – seguir a linha de
montagem dos coletivos sociotécnicos dispensando essas grandes partições – tem seu
fôlego renovado pelas redes digitais de comunicação. Boa parte da sociologia supôs
que suas partições eram incontornáveis, de modo que era sempre preciso escolher
observar, seja o pequeno mundo local das interações face a face dos indivíduos e
suas subjetividades, seja o grande aparato das estruturas, das dimensões coletivas e
sociais.
Estas esferas nunca existiram, de fato, como estratos diferenciados da realidade.
ǺÈIJºµ¹º±Á¹»µÉ³Áµº¾ºµº²Ê»¶²¿µº±Á³Ĵ±µ±²º±²º¹²ºµ³¼¿ÃµÉ˵¶ºµ¹ºµ·¸²¹º´¼³µÁ¹º²ºµ¹º
conexões que constituem os coletivos, tornando a passagem de uma escala a outra
extremamente difícil de rastrear e retraçar. A conexão ator-rede se faz em toda parte,

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20/05/2019 Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede

F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

mas quando se trata de descrevê-las e retraçá-las, os esforços são consideráveis. O


que as redes digitais favorecem é precisamente esta rastreabilidade, de modo que se
pode, ao mesmo tempo, seguir uma série de ações e associações locais e ver como cada
uma delas participa da construção de coletivos. A passagem de uma escala a outra se
torna facilitada: é possível manter simultaneamente o foco (local) e a amplitude da
observação, como num movimento de zoom.
±²³´³²µ¶²¶´·´³¸¹²¶º»º¼·²½¶¾³º¶¼³º¿´³¶À´¶¾³º¶µÁ¼´¶À´¶¼ÃIJ¿ÂÅÆDzµ¶¼Ãȴºȼɲµ¶
µ²»Â´¶º¶À¼µµ´³¼ÃºÊ˲¶À´¶Â¾³²Â´µ¶Ã²¶±Ì¼Í´Â¶Ãº¶²Çºµ¼Ë²¶À²µ¶¸Â²È´µÈ²µ¶À´¶º¿²µÈ²¶À´¶
ÎÏÐж´³¶Ñ²ÃÀ´µ¶ÒÓ¼¿Ô¶ÐÕԶֵȺ¶¼³º¿´³¶µ´¶À´À¼Çº¶´µ¸´Ç¼ÆǺ³´ÃÈ´¶º²¶Â¾³²Â¶À´¶×¾´¶²µ¶
protestos tinham chegado ao zoológico de Londres, ocasionando a soltura de animais
¸´¹º¶Ç¼ÀºÀ´Ô¶ØºÉ´¿ºÃÀ²¶¸´¹²¶¼ÃIJ¿ÂÅÆDz½¶É¼µ¾º¹¼Ùº³²µ¶ÈºÃȲ¶²µ¶º¿Â´¿ºÀ²µ¶Ú¿¹²»º¼µÛ¶Ü¶
resultantes das associações entre os tuítes¶Ç²ÃƳºÃÀ²¶ÒÉ´ÂÀ´Õ½¶Ç²ÃÈ´µÈºÃÀ²¶Òɴ³´¹Ý²Õ½¶
questionando (amarelo) ou comentando (cinza) os rumores – quanto às ações mais
locais, como os tuítes ¶´µ¸´ÇÞÆDzµ¶³º¼µ¶À¼µµ´³¼ÃºÀ²µ¶Ã²¶µ´¼²¶À´¶ÇºÀº¶º¿Â´¿ºÀ²¶Òǹ¼ÇºÃÀ²¶
nas “moléculas” dentro de cada “célula”, é possível visualizar os tuítes particulares,
reproduzidos na parte de baixo do canto esquerdo e abaixo da imagem dos agregados).
Ainda é possível acompanhar a trajetória do rumor em uma linha do tempo (parte de
cima da imagem), desde seu surgimento até a sua extinção. O exemplo ilustra bem
como a rastreabilidade digital permite retraçar a formação de um fenômeno coletivo,
navegando numa paisagem de dados que não supõe dois níveis – o elementar e o
sistêmico; o micro e o macro; o individual e o estrutural – mas um único nível tão plano
quanto possível, por onde se transita, sem sair da “superfície”, do ator à sua rede e
vice-versa. A ideia, cara à TAR, de que quanto mais se deseja localizar um ator, mais
se tem que estender a sua rede (Law, 1999), torna-se uma experiência relativamente
comum neste exemplo e em outros tantos similares na internet e nas bases de dados
digitais.

Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 698

https://www.redalyc.org/html/4955/495551012006/ 15/20
20/05/2019 Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede

F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

Figura 1 – http://visual.ly/riot-rumors

A partir desta perspectiva, podemos explorar os rastros digitais não mais


±²³²´µ¶·¸¹º±·»¼´»½¾µ¿»¸»¼´À´·¸µº½·Á±»Âò´¸µ´·º¸·¶Ä¸Å²¼´²Å´À´Æ¾µ¶·¼Ã²´¸µ´Æ»¸¾Çµ¼´
comportamentais, tal como querem a polícia e o comércio. Outro modelo de

Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 699

F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

conhecimento está proposto: os rastros digitais podem falar agora à infra-linguagem


da fabricação de coletivos, redes, mundos, permitindo compreender e descrever esta
fabricação em seu movimento. Concebidos como inscrições de ações, os rastros que
deixamos na internet são interrogados quanto aos efeitos que produzem na formação
https://www.redalyc.org/html/4955/495551012006/ 16/20
20/05/2019 Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede
deixamos na internet são interrogados quanto aos efeitos que produzem na formação
de coletivos. As redes onde eles se inscrevem não são entendidas como a teia que os
±²³´µ¶²·¸¹²º¸²¸´¶²¹²¸»µ¼¸¼¹¼¶½¼¸¾²º¸²¿À¼º¸»µ¼¸Á¼º¸¾¼¶²¹¸Ã¶Ä½¼¹¸¼¸»µ¼¸²º¸¹Ã¾Äű²¹¸
em retorno. Descrever essas tramas é produzir um conhecimento sobre um fenômeno
social qualquer e, ao mesmo tempo, reinventar um espaço político.
Para brincar um pouco com a sonoridade das palavras em jogo, passamos de uma
polícia para uma política dos rastros digitais. Eis o último ponto a tratar. Por que este
conhecimento é também uma política dos rastros digitais? Em termos breves, porque
descrever e retraçar os rastros das ações que constituem as redes e coletivos é também
um meio de continuar a sua composição, ampliando tanto a margem de entidades
heterogêneas que dela podem participar, quanto à margem de ação que ela pode
distribuir. Pois, uma rede é o que faz proliferar os mediadores (Latour, 2007) e, assim
como o social, jamais está plenamente acabada.
Quando entendemos a tarefa da política como a composição progressiva de
um mundo comum (Latour, 2007); quando entendemos que a composição de um
mundo comum é o trabalho mesmo de tessitura das redes de modo a ampliar os
modos de existência que dela participam, distribuindo a ação e fazendo proliferar os
mediadores; quando entendemos ainda que as redes não estão jamais acabadas, sendo
elas menos a coisa descrita do que o processo de descrição, retraçar os rastros digitais
que as compõem é uma tarefa simultaneamente cognitiva e política. O “social”, diria
Latour, se constitui precisamente nesses movimentos intermitentes, é aí que fazemos
sociedade, mundos. Antes de ser uma substância estável, o social é isto que só se torna
visível quando novas associações são fabricadas.

Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 700

F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

Tomemos um exemplo atual dessa “emergência do social” e da possibilidade


de retraçá-la segundo uma abordagem cognitivo-política via TAR: na ocasião dos
acampamentos dos “indignados” nas praças da Espanha em 2011, uma série de
dispositivos foram criados para fomentar e organizar a participação nas reivindicações,
propostas e assembleias presenciais realizadas nas praças. Murais temáticos onde
propostas políticas poderiam ser coladas; ardósias com a pauta das assembleias e
reuniões do dia; mapas da praça indicando os locais das atividades; “caixinhas” para
doações em dinheiro; petições redigidas colaborativamente; “varais” com listas de
endereços para contato e divulgação, entre outras táticas de ocupação e potencialização
da praça como espaço público e político. Atravessando todas essas táticas, uma série
de outros dispositivos produzidos na internet propagava e traduzia as diversas ações
das praças, ao mesmo tempo em que criavam novos rastros e associações tecendo as
conexões deste movimento nas ruas e nas redes digitais. O exemplo do Tweetometro

(Fig. 2) é especialmente interessante. O dispositivo foi criado para organizar e visualizar


com mais detalhes as votações das propostas encaminhadas nas praças e no movimento
de um modo geral. Ao fazer isso, possibilita ao mesmo tempo compreender (se nos
dedicarmos a seguir e descrever com paciência os rastros que ele atualiza) as diferentes
https://www.redalyc.org/html/4955/495551012006/ 17/20
20/05/2019 Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede
dedicarmos a seguir e descrever com paciência os rastros que ele atualiza) as diferentes
falas, ações e traduções em curso, e continuar o trabalho de composição da rede, isto
é, de distribuição das ações e de proliferação dos mediadores. Pois o Tweetometro, ao
traduzir as ações e declarações das praças em posts e hashtags ±²³±´µ¶·¸¹º±»¸¼½²¾³±½¿±
formato em que podem ser votados e visualizados comparativamente, possibilita uma
mudança de escala, tanto no âmbito cognitivo, permitindo ver, descrever, organizar,
comparar, rastrear algo que antes se encontrava difuso, quanto no âmbito político,
pois atua como um mediador que amplia o potencial de ação, decisão, negociação
para além do aqui e agora das praças e retornando sobre elas. Além disso, cria uma
camada de inscrição de rastros digitais mais duradoura e recuperável, potencializando

Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 701

F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

as possibilidades de pesquisa, reapropriação, difusão, discussão, contestação das ações


que lhes deram origem.

Figura 2 – www.platoniq.net/yeswecamp/

Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012


702

https://www.redalyc.org/html/4955/495551012006/ 18/20
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±²³ ´µ¶·¸²³ ¹º¹»¼µ·º²½³ ¾µ³ »²¿³ À¿Á²Âò¿³ ÄÀ¿¸¹³ »·ÂÀÃŲ³ ¿Å²³ ¹¿³ º¹Â¸²Æ¹ǹ¿³ »À³
controvérsias que utilizam massivamente dados disponíveis na internet para mapear
as disputas e toda a agonística implicada na construção de fenômenos sociais 6. Para

ser breve e concluir, ressaltando apenas um dos muitos aspectos em jogo, a ideia
central é utilizar a rastreabilidade digital tanto para descrever e tornar visível as
controvérsias que animam uma série de fenômenos coletivos, quanto para ampliar
a participação pública e política nestas controvérsias que, uma vez cartografadas, se
tornam sensorialmente, cognitivamente e politicamente mais próximas, ampliando a
margem de participação de atores diversos.
Está em jogo, nestes exemplos, uma expressiva distribuição da ação, pois trata-
se sempre de fazer agir; e de agir politicamente, não tanto no sentido de atuar
segundo uma causa política, mas no sentido de reverberar o poder de agir, traduzir
e transformar. Pois, agir, segundo a perspectiva que estamos desenhando aqui, é
precisamente fazer outros passarem à ação. Voltamos à questão que abre este texto:
o que se tornam os rastros digitais quando vistos sob a perspectiva da teoria ator-
rede? Que os rastros digitais que todos nós produzimos constituam mundos tão
comuns quanto heterogêneos e tenham outros destinos daqueles que lhes reservam
as tecnologias de controle, eis a aposta que se lança aqui para a pesquisa e a política
em cibercultura.

REFERÊNCIAS
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Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 703

https://www.redalyc.org/html/4955/495551012006/ 19/20
20/05/2019 Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede

F. Bruno – Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede Ciências da Comunicação

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NOTAS
1
µÆ¸ÊÀÅÕϼŹ¸ºÀ¹Ä¼Ö¹Â¹¸ÀƸ×ØÙظ¼ÂÀ¿Á¼Ã»¹Æ¾Å¸¹¸ÊºÀÅÀ¿Ç¹¸ÂÀ¸ÚÛ׸º¹ÅÁºÀ¹Â¾ºÀŸÂÀ¸Â¹Â¾Å¸ÂÀ¸ÏÅÏܺ¼¾Å¸Ý cookies,
¿»ÀÁ¶²´´ºÂ¸À¶¸¶¹¸Ã¶Ã¸»²´¼À ) em 5 sites da internet brasileira (Terra; UOL, Yahoo; Globo.com; YouTube) e de 295
rastreadores em 2 redes sociais (Orkut e Facebook). Cerca de 68% desses rastreadores atuam no campo do
marketing on-line. Cf. Bruno, F. et al. Social impacts of the use and regulation of personal data in Latin America .
IDRC, no prelo.
2
Neste texto, restringimos nossa análise ao domínio da internet.
3 <ÈÉÊÅËÌÌԾϺÅÕϹºÀ½»¾ÆÌ >.
4 <ÈÉÊËÌÌȹ¾ʼ½ÔºÌ >.
5
O termo actante, emprestado da semiótica, é utilizado por Latour para destacar esta diferença de
perspectiva. Neste texto, empregaremos os termos ator e actante de modo equivalente.
6
Cf. < ÈÉÊËÌÌÍÍͽƹÊʼ¿Þ»¾¿Áº¾ÎÀºÅ¼ÀŽ¿ÀÁÌ >.

Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, set./dez. 2012 704

https://www.redalyc.org/html/4955/495551012006/ 20/20

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