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obra de arquitetura1
C y r o C o r r ê a Ly r a
A obra arquitetônica, por ser uma arte eminentemente utilitária, necessita ser
continuadamente usada para sobreviver. As ruínas, em sua maioria, são testemunhos
de edifícios que ficaram ociosos. A readaptação é uma das soluções para preservar a
obra de arquitetura de valor cultural, mas ela deve atender à vocação específica da
tipologia arquitetônica a que pertence o monumento.
Pa t r i m ô n i o , p r e s e r v a ç ã o , u s o .
A maioria dos edifícios antigos deve sua extraídas toneladas de mármore travertino, para
longevidade ao fato de ter sido servir de material de construção para inúmeras
continuadamente utilizada. Ao longo de sua outras edificações. Seu desmonte quase foi
história, porém, eles sofreram alterações para interrompido no final do século 16, quando o
atender a novas funções, que, não raras vezes, Papa Sisto V propôs a adaptação do
resultaram na modificação de sua aparência. O monumento a uma tecelagem de lã conjugada
que hoje conhecemos é, freqüentemente, o com habitações para os operários.3 O projeto
resultado de sucessivas adaptações que não foi realizado, e a dilapidação continuou, só
possibilitaram sua sobrevivência. vindo a cessar dois séculos depois, quando o
Observando a história da arquitetura, percebe- local foi consagrado à memória dos mártires
se que, enquanto a noção de valor histórico não cristãos, por Bento XIV4 – só foi salvo, portanto,
se incorporou à construção das nacionalidades, a porque lhe reconheceram um sentido, uma
destruição dos edifícios considerados sem nova função, a de rememoração.5
função era uma prática generalizada e se, por
acaso viessem a ser reciclados, as modificações Felizmente muitas edificações que perderam sua
eram feitas exclusivamente em nome da função original não foram dilapidadas nem
reutilização do edifício, acarretando demolidas, mas reaproveitadas para novos usos,
freqüentemente perdas irreversíveis. ou seja, adaptadas para atendimento a novas
necessidades. Adquiriram valor ‘de
Na Roma renascentista, por exemplo, era contemporaneidade’ (Gegenwartswerte), ou seja,
comum a retirada dos materiais nobres dos
adquiriram a “capacidade de satisfazer aquelas
templos e palácios da Antigüidade para
reaproveitamento em novas edificações, necessidades que às novas criações modernas
pavimentação urbana ou mesmo para poderia satisfazer de maneira similar (quando
transformação em cal. não melhor)”.6 Sobreviveram pelo
reconhecimento de um “valor terreno de uso,
Do Coliseu, o mais imponente dos relativo às condições materiais de utilização
monumentos romanos, durante séculos, foram prática dos monumentos...”.7
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Quando o Patrimônio Histórico e Artístico religiosas. Tal como as fortificações, alguns
Nacional procedeu ao tombamento de conventos foram abandonados e arruinaram-se,
arquitetura militar verificou que as obras que se como o de Santo Antonio de Paraguaçu, na
encontravam em uso apresentavam bom estado Bahia, e o de São Boaventura, em Itaboraí,
de conservação. Por outro lado, a desativação Estado do Rio de Janeiro. Outros, porém, foram
de outras tinha provocado seu arruinamento, reciclados para a função hoteleira, como
perdendo suas condições de ser restauradas ou ocorreu com os antigos conventos carmelitas de
reutilizadas. Somente algumas fortificações, Salvador e Cachoeira. (imagem de abertura)
apesar de abandonadas por falta de função,
puderam ser restauradas e reutilizadas, como as Um dos fatores que contribuíram para a
fortalezas do litoral catarinense. preservação de edifícios antigos foi a
continuidade de uso. Exemplo extraordinário é a
Diferentemente do que ocorreu com a história de antiga chácara situada em Niterói,
arquitetura militar, os antigos conventos não tombada pelo Iphan em 1974, atendendo à
tiveram sua obsolescência decretada pelo solicitação de sua proprietária.11 Concluída sua
desaparecimento das razões de sua existência. construção em 1872, a casa, conhecida como
O que aconteceu com a maioria deles foi um Solar do Jambeiro, manteve seu uso residencial
esvaziamento progressivo. Essas construções, por 125 anos. Só após o falecimento de Lúcia
feitas para abrigar congregações numerosas, a Falkenberg, a antiga chácara passou a domínio
partir do final do século 19, foram-se público mediante desapropriação realizada pela
esvaziando, tornando-se sua manutenção Prefeitura Municipal de Niterói com o objetivo
excessivamente onerosa para as ordens de preservação do imóvel.12
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história da “arquitetura sem arquiteto”), valores a Ceschi, Carlo. Teoria e Storia del Restauro. Roma: Bulzoni
serem resgatados e protegidos. Editore,1970: 40.
5 Pela conceituação desenvolvida por Aloïs Riegl, o Coliseu
Se para a proteção de um edifício de valor torna-se um monumento ‘de rememoração’
cultural não houver outra solução senão sua (Erinnerungswerte) em seu reconhecimento como
destinação para uma função diversa da original, monumento histórico. Não o era de origem, pois a
intenção que motivou sua edificação não era essa. Ver
impõe-se como primeira questão a avaliação da Riegl, Aloïs. El culto moderno a los monumentos.. Madrid:
pertinência do uso pretendido em face da Visor Distribuciones. S. A., 1979: 30.
preservação do monumento. Em outras 6 Riegl, op. cit.: 69.
palavras, deve-se verificar se a nova função é
7
condizente com as vocações daquela tipologia “Esse valor de uso, segundo Riegl, é igualmente inerente a
arquitetônica e, o mais importante, com a todos os monumentos históricos, quer tenham
conservado seu papel memorial original e suas funções
vocação daquele monumento. Embora antigas, quer tenham recebido novos usos, mesmo
reutilizações completamente diversas das museográficos. A ausência de valor de uso é o critério
funções originais tenham salvado do que distingue do monumento histórico tanto as ruínas
desaparecimento muitos monumentos, pode-se arqueológicas, cujo valor é essencialmente histórico,
quanto a ruína, cujo interesse reside fundamentalmente
considerar que tais fatos foram excepcionais, na ancianidade”. Choay, Françoise. A Alegoria do
possuindo cada tipo arquitetônico um leque Patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, 2001: 169.
finito de vocações de uso. 8 Igreja romana dedicada a S. Francisco.
Assim como a tipologia arquitetônica resulta da 9 Depois do Forte de Copacabana não se construiu mais
função que a motivou, o que explica o fato de nenhuma fortificação, felizmente, porque a falta de
se diferenciarem externamente casas, igrejas, serventia militar das praças fortificadas seria comprovada
três décadas mais tarde, durante a Segunda Guerra
mercados e indústrias, por sua expressão Mundial.
formal, é de concluir que a função original marca 10
definitivamente o edifício, conferindo-lhe um Sobre as fortificações construídas e as que chegaram ao
século 20 há quatro trabalhos que merecem referência:
caráter. E, nesse sentido, não seria razoável Garrido, Carlos Miguez. Fortificações do Brasil.. Rio de
fazer de uma moradia uma fábrica, de um Janeiro: Imprensa Naval, 1940; Barreto, Annibal.
mercado um templo, porque as características Fortificações do Brasil; resumo histórico. Rio de Janeiro:
de cada tipologia arquitetônica impregnam Biblioteca do Exército, 1958; Azambuja, Diocleciano.
Evolução das fortificações brasileiras. Brasília: Ministério da
definitivamente seus exemplares. Cultura, Fundação Nacional Pró-Memória, 1984; e o
CD-ROM Fortalezas Multimídia, produzido pelo Projeto
Cada obra arquitetônica pertence, portanto, a Fortalezas Multimídia da Universidade Federal de Santa
uma determinada família em que cada membro Catarina, 2003.
tem traços comuns que identificam uma linha 11 A proprietária, Lucia Falkenberg, falecida em 1997, solicitou
vocacional. Além disso, cada edificação tem uma o tombamento em 1973, com receio de que os planos
história própria e uma relação específica com a urbanísticos que estavam sendo estudados para Niterói
comunidade a que pertence, fatores que devem viessem a mutilar a chácara pelo alargamento da via
condicionar a escolha de uma nova função. pública. O Iphan acatou o pedido, tendo em vista as
qualidades arquitetônicas e paisagísticas do imóvel,
inscrevendo o bem nos Livros de Tombo das Belas
Artes.
Cyro Corrêa Lyra é arquiteto, doutor pela Escola de Belas Artes da
UFRJ, com especialização em Conservação e Restauração de 12 Sobre a historia da casa e de sua restauração, ver: Ribeiro,
Monumentos e Sítios pelo International Center for Conservation
Paulo Eduardo Vidal Leite. A vida de uma chácara
and Preservation of monuments and sites – ICCROM, Roma, Itália,
e professor titular aposentado das Universidades Federais romântica, de Palacete Bartholdy a Solar do Jambeiro.
Fluminense e do Paraná. Dissertação.(Mestrado em Conservação e Restauração
do Patrimônio Cultural). Rio de Janeiro: Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio
Notas de Janeiro,1998.
1O artigo é parte integrante da tese de doutorado em 13 Ceschi, op. cit.: 45.
História da Arte intitulada Casa vazia ruína anuncia. A
14 Choay, op. cit.: 105.
questão do uso na preservação de monumentos., apresen-
tada pelo autor, em agosto de 2005, na Escola de Belas 15 Trecho
Artes da UFRJ. da carta enviada em 5 de abril de 1742 pelo
Conde de Galveias ao governador de Pernambuco, Luís
2 Saia, Luiz. Da Arquitetura. Tese de concurso para provimento Pereira Freire de Andrade. In.: Restauração e
da cadeira de Teoria da Arquitetura da Faculdade de revitalização de núcleos históricos. Análise face à
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. experiência francesa. Brasília: SPHAN, 1980: 61. Ver
São Paulo, 1957: 5. anexo 04.
3 Giedion, Sigfried. Espacio, tiempo e arquitectura. Barcelona:
Ulrico Hoepli, Editor, 1955:106.
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