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Notas de Leitura

A Alegoria do Patrimônio

Françoise Choay

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INTRODUÇÃO

1837: criação, na França, da primeira Comissão dos Monumentos Históricos, abrangendo três
categorias tipológicas: remanescentes da Antiguidade; edifícios religiosos da Idade Média;
alguns castelos.

“Posteriormente, todas as formas da arte de construir, eruditas e populares, urbanas e rurais,


todas as categorias de edifícios, públicos e privados, suntuários e utilitários foram anexadas
[...]”. (p.12), ultrapassando inclusive os limites dos edifícios individuais a abrangendo conjuntos
e a própria malha urbana.

“Até a década de 1960, o quadro cronológico em que se inscreviam os monumentos históricos


era, como hoje, praticamente ilimitado ‘a montante’, coincidindo, nesse aspecto, com o da
pesquisa arqueológica. ‘A jusante’ ele não ultrapassava os limites do século XIX.” (p.13)

Vários edifícios do século XX foram perdidos.

Participação dos próprios arquitetos nos processos de indicação de suas obras para o
tombamento (ex: Le Corbusier).

Expansão geográfica: em 1931, apenas representantes de países europeus participaram do 1º


Conferência Internacional para a Conservação dos Monumentos Históricos, ocorrida em
Atenas; a segunda conferência, em 1964 em Veneza, contou com a participação de três países
não europeus (Tunísia, México e Peru). Quinze anos depois, mais de 80 países foram
signatários da Convenção do Patrimônio Mundial.

Portanto, o campo da preservação do patrimônio cultural sofreu uma tripla expansão:


tipológica, cronológica e geográfica. [Essa expansão foi fundamental para a inclusão da
arquitetura moderna na lista dos bens culturais dignos de preservação: arquitetura recente,
comum (não monumental) e internacionalizada (sem vínculos nacionais).]

Na França, [assim como no Brasil], a legislação referente ao patrimônio privilegia o interesse


público. Nos EUA, a limitação de uso do patrimônio é considerada um atentado à liberdade
individual do cidadão.

“as ameaças que pesam sobre o patrimônio não impedem um amplo consenso em favor de sua
conservação e de sua proteção, que são oficialmente defendidas em nome dos valores
científicos, estéticos, memoriais, sociais e urbanos, representados por esse patrimônio nas
sociedades industriais avançadas.” (p.17)

Diferença entre monumento e monumento histórico:

O monumento é um objeto construído deliberadamente com a função de rememorar fatos


passados, sua função é pensada a priori de sua construção e opera em um nível simbólico. Ao
longo da história, foi perdendo sua função memorial com a invenção da escrita (nova forma de
preservar os testemunhos do passado, uma espécie de memória artificial) e da fotografia,
espécies de memórias artificiais. Ao longo da história, também assumiu outros significados e
valores, além do memorial, como o da beleza, o da técnica. Ex: totens, obeliscos, colunas,
templo, arcos de triunfo etc.

O monumento histórico não é desejado como tal desde o princípio, “ele é constituído a
posteriori pelos olhares convergentes do historiador e do amante da arte, que o selecionam na
massa dos edifícios existentes, dentre os quais os monumentos representam apenas uma
pequena parte” (p.25). “Todo objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico
sem que para isso tenha tido, na origem, uma destinação memorial.” (p.25-26) Ex: campos de
concentração da 2ª Guerra Mundial.

“Os objetos gregos espoliados pelos exércitos romanos começam por entrar discretamente no
interior de algumas residências patrícias, mas seu status muda no momento em que Agripa
pede que as obras entesouradas no recôndito dos templos sejam expostas à vista de todos, à
luz viva das ruas e dos grandes espaços públicos.” (p.33)

“[Na Roma Antiga] nenhum princípio proíbe a destruição dos edifícios ou dos objetos de arte
antigos. Sua preservação se deve a causas aleatórias. Além disso, nem os bens móveis
colecionados (esculturas, pinturas, vasos, camafeus) nem os edifícios antigos (religiosos ou
civis) admirados são investidos de um valor histórico. [...]” (p.33-34)

“Nâo se tratava de uma medida reflexiva e cognitiva, mas de um processo de apropriação:


fragmentos de arquitetura ou de escultura, objetos de artesanato grego, que adquiriam um
novo valor de uso uma vez assimilados à decoração das termas, da rua, dos jardins públicos e
privados, da residência, ou ainda após terem sido transformados em repositórios da vida
doméstica.” (p.34)

“motivos estranhos ao prazer próprio da arte: prestígio para os conquistadores, esnobismo para
os novos-ricos, lucro ou prazer do jogo para outros” (p.34).

Na Idade Média, “os grandes edifícios da Antiguidade são transformados em pedreiras, ou


então recuperados e desvirtuados; em Roma, no século XI, os arcos do Coliseu são fechados,
ocupados por habitações, depósitos, oficinas, enquanto na arena se constrói uma igreja e a
fortaleza dos Frangipani; o Circus Maximus se enche de habitações, que são alugadas pela
congregação de São Guido; os arcos do teatro de Pompéia são ocupados por comerciantes de
vinho e por trattorie, os do teatro de Marcellus, por trapeiros, adeleiros e tabernas. Na
Provença, os anfiteatros de Arles são transformados em fortaleza; suas arcadas são fechadas,
constrói-se um quarteirão de habitações sobre suas arquibancadas e edifica-se uma igreja ao
centro. Até nos arcos de triunfo erguem-se torres de defesa, como a que foi erigida no século
XII sobre o arco de Sétimo Severo pelos Frangipani.” (p.35-36)

O observador do quattrocento estabeleceu, pela primeira vez, uma distância histórica entre o
mundo contemporâneo e a longínqua Antiguidade cujo vestígios estuda (p.38).
“Para os clérigos do século VIII ou do XII, o mundo antigo é ao mesmo tempo impenetrável e
imediatamente próximo.” (p.38)

Na Idade Média, “a ausência de distanciamento [...] é o denominador comum de todas as


condutas relativas à herança da Antiguidade greco-romana.” (p.39)

“Móveis ou imóveis, as criações da Antiguidade não desempenham, pois, o papel de


monumentos históricos. Sua preservação é, de fato, uma reutilização. Ela se apresenta sob
duas formas distintas: reutilização global, combinada ou não com reformas; fragmentação em
peças e pedaços, utilizáveis para fins diferentes e em lugares diferentes.” (p.40)

“Os monumentos antigos não são, contudo, apenas ‘reciclados’; eles também são, com a
mesma simplicidade e desenvoltura, cortados em partes e pedaços, incorporados em seguida a
construções novas, para embelezá-las e decorá-las. [...] Colunas, capitéis, estátuas, frisos
esculpidos são, desse modo, retirados dos edifícios que faziam a glória das cidades antigas.”
(p.40)

Ainda que o interesse na conservação de edificações antigas remonte ao Quattrocento, (Alberti


foi o responsável pelo surgimento do “projeto, até então impensável, de estudar e conservar um
edifício unicamente pelo fato dele ser um testemunho da história e uma obra de arte”), a noção
de monumentos históricos e sua conservação só se consolida no século XIX, quando é
institucionalizada a conservação do monumento histórico estabelecendo uma jurisdição de
proteção e fazendo do restauro uma disciplina autônoma.

“O distanciamento em relação aos edifícios do passado requer uma longa aprendizagem, com
uma duração que o saber não pode abreviar e que é necessária para que a familiaridade seja
substituída pelo respeito.” (p.58)

CAPÍTULO 4 - A consagração do monumento histórico (1820-1960)

“Ruskin atribui à memória uma destinação e um valor novos do monumento histórico: ‘Nós
podemos viver sem [a arquitetura], adorar nosso Deus sem ela, mas sem ela não podemos nos
lembrar’.” (p.139)

“Para o autor de As pedras de Veneza, a arquitetura é o único meio de que dispomos para
conservar vivo um laço com um passado ao qual devemos nossa identidade, e que é parte de
nosso ser.” (p.139)

“Ruskin e Morris são os primeiros a conceber a proteção dos monumentos históricos em escala
internacional e a mobilizar-se pessoalmente por essa causa.” (p.142)

Giovannoni: desenvolvimento, em 1913, do conceito de “arquitetura menor”

“Querer e saber ‘tombar’ monumentos é uma coisa. Saber conservá-los fisicamente e


restaurá-los é algo que se baseia em outros tipos de conhecimento. Isso requer uma prática
específica e pessoas especializadas, os ‘arquitetos dos monumentos históricos’, que o século
XIX precisou inventar.” (p.149)
Na França, essa invenção foi obra de Vitet e de Merimée. (ver relato sobre trabalho de
Merimée na página 150).

“No curso do século XX, os estudos preparatórios para a conservação e restauração dos
monumentos históricos exigiram a aquisição suplementar de novos e numerosos
conhecimentos científicos e técnicos, ligados sobretudo à degradação dos materiais. mas a
história da arquitetura continuou sendo absolutamente fundamental.” (p.152-153)

Viollet-le-Duc vs Ruskin: doutrina intervencionista vs antiintervencionista (ver p. 153)

O antiintervencionismo de Ruskin deriva de sua concepção do monumento histórico: “os


edifícios antigos não nos pertencem, nós não podemos tocá-los” (Lâmpada da memória, §XX)

“O trabalho das gerações passadas confere, aos edifícios que nos deixaram, um caráter
sagrado. As marcas que o tempo neles imprimiu fazem parte de sua essência.” (p.154)

“Restaurar é impossível. É como ressuscitar um morto.” (p.155)

“Para Ruskin e Morris, querer restaurar um objeto ou um edifício é atentar contra a


autenticidade que constitui a sua própria essência. Ao que parece, para eles o destino de todo
monumento histórico é a ruína e a desagregação progressiva.” (p.155)

Para retardar o fim da vida útil dos edifícios, Ruskin e Morris preconizavam a manutenção dos
monumentos e admitiam a sua consolidação, desde que de forma imperceptível. (p.156)

Do lado francês, Viollet-le-Duc se contrapõe, quase ponto a ponto, a Ruskin.

Síntese

“Depois do trabalho fundador da primeira geração, veio, no fim do século, outra reflexão, crítica
e complexa.” (p.163): Camillo Boito e Alois Riegl

Camillo Boito:

“Engenheiro, arquiteto e historiador da arte, suas competências lhe permitem situar-se na


confluência de dois mundos que se tornaram estranhos: o da arte, passado e atual, e o da
modernidade técnica.” (p.164)

“Confrontado com essas duas doutrinas antagônicas [Ruskin e VLD],Boito recolhe o melhor de
cada uma, extraindo delas, em seus escritos, um síntese sutil, que aliás nem sempre haverá de
aplicar em suas próprias restaurações.” (p.164)

De Morris e Ruskin: respeito à pátina e às alterações realizadas ao longo do tempo


(estratificações); respeito à autenticidade.

De Viollet-le-Duc: prioridade do presente em relação ao passado; legitimação da restauração,


ainda que em circunstâncias excepcionais, após o fracasso de outras ações (manutenção,
consolidação, consertos imperceptíveis).

O trabalho de restauração deve ser ostensivo, sem pretender se passar por original -
distinguibilidade (p.166)
“toda intervenção arquitetônica num monumento é necessariamente datada e marcada pelo
estilo, pelas técnicas e pelo savoi-faire da época em que é feita.” “(p.166)

Alois Riegl:

Tripla formação (jurista, filósofo, historiador) e experiência como conservador de museu (Museu
de Artes Decorativas de Viena).

“o primeiro a definir o monumento histórico a partir de valores de que foi investido no curso da
história, faz-lhes o inventário e estabelece uma nomenclatura pertinente”. (p.168)

Duas classes de valores: valores de rememoração (ligados ao passado e se valem da


memória) e valores de contemporaneidade (pertencem ao presente):

Valores de rememoração (ligados ao passado):

- para a memória (monumento);

- para a história e a história da arte (monumento histórico);

- de ancianidade (monumento histórico); - “diz respeito à idade do monumento e


às marcas que o tempo não pára de lhe imprimir; evoca a transitoriedade das criações
humanas cujo fim é a inelutável degradação” (p.168)

Valores de contemporaneidade (pertencem ao presente):

- artístico

- relativo (monumento histórico) - “refere-se à parte das obras artísticas


que continuou acessível à sensibilidade moderna” (p.169);

- de novidade (monumento e monumento histórico); - “diz respeito à


aparência fresca e intacta dessas obras” (p.169)

- de uso (monumento e monumento histórico)

Valor histórico remete a um saber, enquanto valor de ancianidade é percebido de imediato por
todos.

“O valor de ancianidade do monumento histórico não é para ele uma promessa, mas uma
realidade. A imediatez com a qual esse valor se apresenta a todos, a facilidade com que se
oferece à apropriação das massas (Massen), a sedução fácil que ela exerce sobre estas
deixam entrever que ele será o valor preponderante do monumento histórico no século XX.”
(p.169)

Valor de uso é o que distingue um monumento histórico de uma ruína. [para a arquitetura
moderna, o valor de uso sempre deve estar presente]

Valor de novidade “diz respeito à aparência fresca e intacta dessas obras. Ela ‘deriva de uma
atitude milenar, que atribui ao novo uma incontestável superioridade sobre o velho (...). Aos
olhos da multidão, só o que é novo e intacto é belo’.” (p.169) [aplicável à preservação da
arquitetura moderna]
Valores podem ser contraditórios (ex: novidade/ancianidade; artístico/uso). “Riegl mostra que
eles não são, contudo, insolúveis e em verdade dependem de compromissos, negociáveis em
cada caso particular, em função do estado do monumento e do contexto social e cultural em
que se insere.” - concepção não dogmática e relativista do monumento histórico. (p.170)

É a partir de Riegl que atualmente se pode pensar em patrimônio histórico.

Até 1960, as práticas conservadores continuaram mais ou menos idênticas às do século XIX,
enfatizando essencialmente os grandes edifícios religiosos e civis (excluindo-se os do final do
século XIX), com a restauração fiel aos princípios de Viollet-le-Duc. O valor de ancianidade não
conquista as multidões na velocidade imaginada por Riegl; a mundialização institucional do
monumento histórico, desejada por Morris e Ruskin, praticamente não avança. Apenas em
1931 é a realizada a primeira COnferência Internacional relativa aos monumentos históricos
(dois antes do 1º congresso do CIAM).

CAPÍTULO VI - O Patrimônio Histórico na Era da Indústria Cultural

Convenção do Patrimônio Mundial (1972): expansão geográfica (p.207)

Expansão cronológica (p.209): “os produtos técnicos da indústria adquiriram os mesmos


privilégios e direitos à conservação que as obras de arte arquitetônicas e as laboriosas
realizações da produção artesanal” (p.209)

Expansão tipológica: reconhecimento de edifícios modestos, nem memoriais, nem prestigiosos;


edifícios. “Contudo, o aporte mais considerável de novos tipos se deve à transposição do muro
da industrialização e à anexação, pela prática conservatória, de edifícios da segunda metade
do século XIX e do século XX, que se apóiam, no todo ou em parte, em técnicas de construção
novas: imóveis para habitação, grandes lojas, bancos, obras de arte, e também usinas,
entrepostos, hangares, refugos do progresso técnico ou das mudanças estruturais da
economia, grandes conchas vazias que a maré industrial abandonou na periferia das cidades e
mesmo em seu centro. Além disso, a preocupação em conservar o patrimônio arquitetônico e
industrial do século XX (até mesmo as últimas décadas), quase sempre ameaçado de
demolição em vista de seu mau estado, gerou nos dias de hoje um complexo de Noé, que
tende a abrigar na arca patrimonial o conjunto completo dos novos tipo de construção que
surgiram nesse período.” (p.209) Dificuldades dessa postura podem ser exemplificados pelo
mercado de Reims e pelo pavilhão de Le Corbusier em Lège.

Expansão do público dos monumentos históricos: desenvolvimento da sociedade do lazer e,


consequentemente, a do turismo cultural dito de massa.

“Por sua vez, os monumentos e o patrimônio históricos adquirem dupla função - obras que
propiciam saber e prazer, postas à disposição de todos; mas também produtos culturais,
fabricados, empacotados e distribuídos para serem consumidos.” (p.211) -> metamorfose de
seu valor de uso em valor econômico.

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