Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Alegoria do Patrimônio
Françoise Choay
____________________________________________________________________________
INTRODUÇÃO
1837: criação, na França, da primeira Comissão dos Monumentos Históricos, abrangendo três
categorias tipológicas: remanescentes da Antiguidade; edifícios religiosos da Idade Média;
alguns castelos.
Participação dos próprios arquitetos nos processos de indicação de suas obras para o
tombamento (ex: Le Corbusier).
“as ameaças que pesam sobre o patrimônio não impedem um amplo consenso em favor de sua
conservação e de sua proteção, que são oficialmente defendidas em nome dos valores
científicos, estéticos, memoriais, sociais e urbanos, representados por esse patrimônio nas
sociedades industriais avançadas.” (p.17)
O monumento histórico não é desejado como tal desde o princípio, “ele é constituído a
posteriori pelos olhares convergentes do historiador e do amante da arte, que o selecionam na
massa dos edifícios existentes, dentre os quais os monumentos representam apenas uma
pequena parte” (p.25). “Todo objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico
sem que para isso tenha tido, na origem, uma destinação memorial.” (p.25-26) Ex: campos de
concentração da 2ª Guerra Mundial.
“Os objetos gregos espoliados pelos exércitos romanos começam por entrar discretamente no
interior de algumas residências patrícias, mas seu status muda no momento em que Agripa
pede que as obras entesouradas no recôndito dos templos sejam expostas à vista de todos, à
luz viva das ruas e dos grandes espaços públicos.” (p.33)
“[Na Roma Antiga] nenhum princípio proíbe a destruição dos edifícios ou dos objetos de arte
antigos. Sua preservação se deve a causas aleatórias. Além disso, nem os bens móveis
colecionados (esculturas, pinturas, vasos, camafeus) nem os edifícios antigos (religiosos ou
civis) admirados são investidos de um valor histórico. [...]” (p.33-34)
“motivos estranhos ao prazer próprio da arte: prestígio para os conquistadores, esnobismo para
os novos-ricos, lucro ou prazer do jogo para outros” (p.34).
O observador do quattrocento estabeleceu, pela primeira vez, uma distância histórica entre o
mundo contemporâneo e a longínqua Antiguidade cujo vestígios estuda (p.38).
“Para os clérigos do século VIII ou do XII, o mundo antigo é ao mesmo tempo impenetrável e
imediatamente próximo.” (p.38)
“Os monumentos antigos não são, contudo, apenas ‘reciclados’; eles também são, com a
mesma simplicidade e desenvoltura, cortados em partes e pedaços, incorporados em seguida a
construções novas, para embelezá-las e decorá-las. [...] Colunas, capitéis, estátuas, frisos
esculpidos são, desse modo, retirados dos edifícios que faziam a glória das cidades antigas.”
(p.40)
“O distanciamento em relação aos edifícios do passado requer uma longa aprendizagem, com
uma duração que o saber não pode abreviar e que é necessária para que a familiaridade seja
substituída pelo respeito.” (p.58)
“Ruskin atribui à memória uma destinação e um valor novos do monumento histórico: ‘Nós
podemos viver sem [a arquitetura], adorar nosso Deus sem ela, mas sem ela não podemos nos
lembrar’.” (p.139)
“Para o autor de As pedras de Veneza, a arquitetura é o único meio de que dispomos para
conservar vivo um laço com um passado ao qual devemos nossa identidade, e que é parte de
nosso ser.” (p.139)
“Ruskin e Morris são os primeiros a conceber a proteção dos monumentos históricos em escala
internacional e a mobilizar-se pessoalmente por essa causa.” (p.142)
“No curso do século XX, os estudos preparatórios para a conservação e restauração dos
monumentos históricos exigiram a aquisição suplementar de novos e numerosos
conhecimentos científicos e técnicos, ligados sobretudo à degradação dos materiais. mas a
história da arquitetura continuou sendo absolutamente fundamental.” (p.152-153)
“O trabalho das gerações passadas confere, aos edifícios que nos deixaram, um caráter
sagrado. As marcas que o tempo neles imprimiu fazem parte de sua essência.” (p.154)
Para retardar o fim da vida útil dos edifícios, Ruskin e Morris preconizavam a manutenção dos
monumentos e admitiam a sua consolidação, desde que de forma imperceptível. (p.156)
Síntese
“Depois do trabalho fundador da primeira geração, veio, no fim do século, outra reflexão, crítica
e complexa.” (p.163): Camillo Boito e Alois Riegl
Camillo Boito:
“Confrontado com essas duas doutrinas antagônicas [Ruskin e VLD],Boito recolhe o melhor de
cada uma, extraindo delas, em seus escritos, um síntese sutil, que aliás nem sempre haverá de
aplicar em suas próprias restaurações.” (p.164)
O trabalho de restauração deve ser ostensivo, sem pretender se passar por original -
distinguibilidade (p.166)
“toda intervenção arquitetônica num monumento é necessariamente datada e marcada pelo
estilo, pelas técnicas e pelo savoi-faire da época em que é feita.” “(p.166)
Alois Riegl:
Tripla formação (jurista, filósofo, historiador) e experiência como conservador de museu (Museu
de Artes Decorativas de Viena).
“o primeiro a definir o monumento histórico a partir de valores de que foi investido no curso da
história, faz-lhes o inventário e estabelece uma nomenclatura pertinente”. (p.168)
- artístico
Valor histórico remete a um saber, enquanto valor de ancianidade é percebido de imediato por
todos.
“O valor de ancianidade do monumento histórico não é para ele uma promessa, mas uma
realidade. A imediatez com a qual esse valor se apresenta a todos, a facilidade com que se
oferece à apropriação das massas (Massen), a sedução fácil que ela exerce sobre estas
deixam entrever que ele será o valor preponderante do monumento histórico no século XX.”
(p.169)
Valor de uso é o que distingue um monumento histórico de uma ruína. [para a arquitetura
moderna, o valor de uso sempre deve estar presente]
Valor de novidade “diz respeito à aparência fresca e intacta dessas obras. Ela ‘deriva de uma
atitude milenar, que atribui ao novo uma incontestável superioridade sobre o velho (...). Aos
olhos da multidão, só o que é novo e intacto é belo’.” (p.169) [aplicável à preservação da
arquitetura moderna]
Valores podem ser contraditórios (ex: novidade/ancianidade; artístico/uso). “Riegl mostra que
eles não são, contudo, insolúveis e em verdade dependem de compromissos, negociáveis em
cada caso particular, em função do estado do monumento e do contexto social e cultural em
que se insere.” - concepção não dogmática e relativista do monumento histórico. (p.170)
Até 1960, as práticas conservadores continuaram mais ou menos idênticas às do século XIX,
enfatizando essencialmente os grandes edifícios religiosos e civis (excluindo-se os do final do
século XIX), com a restauração fiel aos princípios de Viollet-le-Duc. O valor de ancianidade não
conquista as multidões na velocidade imaginada por Riegl; a mundialização institucional do
monumento histórico, desejada por Morris e Ruskin, praticamente não avança. Apenas em
1931 é a realizada a primeira COnferência Internacional relativa aos monumentos históricos
(dois antes do 1º congresso do CIAM).
“Por sua vez, os monumentos e o patrimônio históricos adquirem dupla função - obras que
propiciam saber e prazer, postas à disposição de todos; mas também produtos culturais,
fabricados, empacotados e distribuídos para serem consumidos.” (p.211) -> metamorfose de
seu valor de uso em valor econômico.