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Notas de leitura

TEORIA DA RESTAURAÇÃO
Cesare Brandi
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1. O Conceito de Restauração

Restauração, no sentido amplo, só aplica a intervenções sobre produtos da atividade humana.

Em produtos industriais (sentido amplo, partindo do mais simples artesanato), o restauro tem
por objetivo restituir sua funcionalidade.

“Mas, quando se tratar, ao contrário, de obras de arte, mesmo se entre as obras de arte haja
algumas que possuam estruturalmente um objetivo funcional, como as obras de arquitetura e,
em geral, os objetos da chamada arte aplicada, claro estará que o restabelecimento da
funcionalidade, se entrar na intervenção do restauro, representará, definitivamente, só um lado
secundário ou concomitante, e jamais o primário e fundamental que se refere à obra de arte
como obra de arte.” (p.26)

A arte é um produto da espiritualidade humana.

É essencial para a obra de arte o seu reconhecimento como obra de arte (p.27).

Como matéria, um objeto qualquer permanece sempre inalterado, idêntico a si mesmo ao


longos dos anos. Como obra de arte, no entanto, ele “é recriado todas as vezes que é
experimentada esteticamente”. (p.28) Até que ocorra essa recriação/reconhecimento, “a obra
de arte é obra de arte só potencialmente” e “existe apenas na medida em que subsiste” como
matéria (pedaço de mármore, tela etc).

“qualquer comportamento em relação à obra de arte, nisso compreendendo a intervenção do


restauro, depende que ocorra o reconhecimento ou não da obra de arte como obra de arte.”
(p.28) - juízo de artisticidade

A obra de arte condiciona a restauração, não o contrário (p.29).


“A ligação entre restauração e obra de arte se estabelece, pois, no ato do reconhecimento, e
continuará a se desenvolver em seguida, mas no ato do reconhecimento tem as suas
premissas e as suas condições. A partir desse reconhecimento serão levadas em consideração
não apenas a matéria através da qual a obra de arte subsiste, mas também a bipolaridade com
que a obra de arte se oferece à consciência.” (p.29)

Como produto da atividade humana, a obra de arte possui duas instâncias: estética (que define
a obra de arte como obra de arte) e histórica (produto realizado em certo tempo e em certo
lugar).

Em outros objetos, a única instância considerada para a restauração (no sentido amplo) é a da
funcionalidade/utilidade. Nas obra de arte, no entanto, a funcionalidade não pode ser
considerada de forma isolada, mas somente com base em sua consistência física e nas duas
instâncias fundamentais (estética e histórica). (p.30)
“a restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua
consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua
transmissão para o futuro.” (p.30)

“apesar de o imperativo da conservação se voltar de modo genérico à obra de arte na sua


complexa estrutura, está relacionada, em particular, com a consistência material em que se
manifesta a imagem. Para que essa consistência material possa durar o maior tempo possível,
deverão ser feitos todos os esforços e pesquisas.” (p.31) Consistência física tem precedência
por representar o próprio local da manifestação da imagem.

“Restaura-se somente a matéria da obra de arte.”

“A restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que
isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum
traço da passagem da obra de arte no tempo.” (p.33)

2. A Matéria da Obra de Arte

Na obra de arte, a matéria representa um meio, não um fim.

A matéria é considerada apenas em um segundo momento, quando se chega à intervenção


prática do restauro (p.36).

A matéria se mostra como “aquilo que serve à epifania da imagem” (p.36) e, como tal, possui
duas funções: aspecto (ex: tinta/pintura de um quadro) e estrutura (ex: tela/madeira).

Na restauração, o aspecto prevalece sobre a estrutura, se o conflito não puder ser conciliado
de outra maneira.

3. A Unidade Potencial da Obra de Arte

A unidade da obra de arte não deve ser concebida como um “total” (constituído de partes), mas
como um “inteiro”.

A reconstituição da unidade potencial é o imperativo da instância estética na restauração


(p.53).

“A imagem é verdadeiramente e somente aquilo que aparece.” (p.44) A suposição daquilo que
não se vê (um braço que não aparece em uma pintura, por exemplo) não pertence mais à
contemplação da obra arte, mas à retrocessão da arte à reprodução do objeto natural.

Dois corolários referentes à unidade da obra de arte:


“A obra de arte, não constando de partes, ainda que fisicamente fracionada, deverá continuar a
subsistir potencialmente e como um todo em cada um de seus fragmentos e essa
potencialidade será exigível em uma proposição conexa de forma direta aos traços formais
remanescentes, em cada fragmento, da desagregação da matéria.” (p.46)
Não se pode intervir em uma obra de arte mutilada por analogia (p.47)

Princípios:
- A integração deverá ser sempre e facilmente reconhecível, mas sem que isso venha a infringir
a própria unidade que se visa a reconstruir (p.47); [distinguibilidade]
- A matéria de que resulta a imagem só é insubstituível quando colaborar diretamente para a
figuratividade da imagem como aspecto e não para aquilo que é estrutura (p.48);
- Qualquer intervenção de restauro não deve impossibilitar, mas, antes, facilitar as eventuais
intervenções futuras (p.48) [reversibilidade]

“o mais grave, em relação à obra de arte, não é tanto aquilo que falta [lacuna], quanto o que se
insere de modo indevido.” (p.49)

[Na arquitetura moderna, a unidade potencial pode estar relacionada às intenções do projeto
original?]

4. O Tempo em Relação à Obra de Arte e à Restauração

Três acepções/momentos do tempo histórico relativo à obra de arte:


- como duração ao exteriorizar a obra de arte enquanto é formulada pelo artista;
- como intervalo inserido entre o fim do processo criativo e o momento em que a nossa
consciência atualiza em si a obra de arte;
- como átimo dessa fulguração da obra de arte na consciência.

Tentar atuar no primeiro momento (dentro do processo criativo) produz a mais grave heresia da
restauração, que é a restauração fantasiosa.

Atuar no segundo momento visa abolir o lapso de tempo ocorrido desde a conclusão da obra
de arte (restauro de repristinação).

“o único momento legítimo que se oferece para o ato da restauração é o do próprio presente da
consciência observadora, em que a obra de arte está no átimo e é presente histórico, mas é
também passado e, a custo, de outro modo, de não pertencer à consciência humana, está na
história.” (p.61)

“A restauração, para representar uma operação legítima, não deverá presumir nem o tempo
como reversível, nem a abolição da história. A ação de restauro, ademais, e pela mesma
exigência que impõe o respeito da complexa historicidade que compete à obra de arte, não se
deverá colocar como secreta e quase fora do tempo, mas deverá ser pontuada como evento
histórico tal como o é, pelo fato de ser ato humano e de se inserir no processo de transmissão
da obra de arte para o futuro.” (p.61)

Na prática, traduz-se como a diferenciação das partes integradas (unidade potencial) e no


respeito pela pátina, “que pode ser concebida como o próprio sedimentar-se do tempo sobre a
obra”. (p.61)

5. A Restauração Segundo a Instância da Historicidade


“Do ponto de vista histórico a adição sofrida por uma obra de arte é um novo testemunho do
fazer humano e, portanto, da história: nesse sentido a adição não difere da cepa originária e
tem os mesmos direitos de ser conservada. [...] a remoção deve sempre ser justificada e, em
todo caso, deve ser feita de modo a deixar traços de si mesma e na própria obra.” (p.71)

“Do ponto de vista histórico, portanto, a conservação da pátina, como aquele particular
ofuscamento que a novidade da matéria recebe através do tempo e é, portanto, testemunho do
tempo transcorrido, não apenas é admissível, mas é requerida de modo taxativo.” (p.73)

6. A Restauração Segundo a instância Estética

“Por isso, definindo a restauração como o momento metodológico do reconhecimento da obra


de arte como tal, a reconhecemos naquele momento do processo crítico em que, tão só,
poderá fundamentar a sua legitimidade; fora disso, qualquer intervenção sobre a obra de arte é
arbitrária e injustificável. Além do mais, retiramos para sempre a restauração do empirismo dos
procedimentos e a integramos na história, como consciência crítica e científica do momento em
que a intervenção de restauro se produz.” (p.100)

Apêndice 4: Princípios para a restauração de monumentos

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