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DUBITO ERGO SUM


Vilém Flusser

VILÉM FLUSSER:
PESSOA-PENSAMENTO NO BRASIL
Maria Lília Leão *

Traçar um perfil de personalidade tão rica quanto a de Vilém


Flusser não é tarefa fácil. Eu diria que é enorme desafio. Tal
personalidade não é meramente uma personalidade rica.
Engloba aspectos tão multifacetados e aparentemente
contraditórios que busquei eu mesma, que com ele
compartilhei tantos anos de convivência no Brasil, improvisar
uma metodologia para “pôr ordem na casa” - mental e
existencial. Uma metodologia que fosse capaz de me
prevenir contra as malhas da subjetividade e hábil para uma
orientação crítica de análise e síntese de todos aqueles
aspectos. Todos, naturalmente, no âmbito da minha própria
percepção.

Devo dizer que aceitar este desafio, como também o


privilégio em proferir a abertura do Seminário, se deve
exclusivamente ao fato de ser eu amiga de Flusser de muitos
anos. Uma amizade que se consolidou à distância, por cartas
que trocamos assiduamente, desde que deixou o país em
1972. Não eram cartas prosaicas, noticiosas, mas cartas
temáticas. Flusser jamais se interessaria por meras
descrições da circunstância pessoal, e foi preciso que ele
deixasse o Brasil para que eu, simplesmente, perdesse o
medo de Flusser: medo da sua genialidade, da sua
perturbadora fluência, da sua totalidade.

À medida em que me aventurei a expressar livremente idéias


e inquietações, e até mesmo a brigar com ele muitas vezes,
fui descobrindo um novo Flusser: aquele que se deixava
impressionar pelo outro capaz de impressioná-lo, que
buscava no interlocutor não a erudição, mas a autenticidade
espontânea, a faísca viva do pensamento livre e
descompromissado.

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Pois é justamente como uma descompromissada que eu aqui


me coloco. Não sou graduada em filosofia, não sou
intelectual militante. Minha relação com a filosofia é de
amadora - aquela que ama (não caberia, talvez, dizer que tal
relação com a filo-sofia é de dupla amante?). Sou, sim, uma
livre-pensadora. De modo algum, porém, isto implica ser
irresponsável, porque o compromisso é com a honesta
"liberdade de pensar" - aliás, título nada gratuito ao posfácio
"Flusser e a liberdade de pensar ou Flusser e uma certa
geração 60", para o Filosofia da caixa preta" - livro que
ajudei a publicar no Brasil, em 1985.

O comentário de Mário Bruno Sproviero, para o contexto, é


reconfortante: pelo que se pode inferir do historiador da
filosofia grega, Diógenes Laércio, as raízes da filosofia
nascem da Admiração e do Espanto. Aquela, pela obra
divina; este, pelo sentido trágico da vida. O homem, esse
eterno admirador espantado, deve superar a tragédia pela
comédia, posto que a vida é um Grande Teatro. Necessário,
pois, que o espectador seja o filó-sofo, tornando-se amigo
da sabedoria a fim de se capacitar para compreendê-la
profundamente e então superá-la pelo Riso. Filósofo, palavra
que ainda não existia - tal como Sofos, palavra corrente na
cultura grega antiga e já com equivalentes em várias
culturas da Antiguidade - passa a significar o livre-pensador,
dotado de sabedoria natural, inerente a qualquer um de nós,
espectadores que somos. "Livre pensar é só pensar", na
síntese perfeita de Millôr Fernandes, estaria na origem
mesma da filosofia, é seu gesto inaugural.

Quanto àquela personalidade efetivamente rica, eu diria que


ela encerra em si mesma uma grande síntese, e que para
percebê-la é preciso lhe desferir um corte transversal,
separando-a nos dois grandes corpos que a constituem. De
um lado, a pessoalidade flusseriana: vitalmente complexa e
fascinante, o caráter temperamental eivado de paradoxos,
num equilíbrio irônico de simultaneidades: não ora ético, ora
amoral, mas eticamente amoral; nem ora lúdico, ora
engajado, mas ludicamente engajado. E de outro lado, o
pensamento flusseriano: este universo de idéias
extremamente originais e audaciosas, sempre expressas com

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o rigor inusitado da razão-e-da-paixão, par-de-opostos que


Flusser, e muito raros, conseguiram amalgamar com tanta
veracidade.

Pois o desafio começa a tomar corpo. Porque é impossível


separar a pessoalidade do pensamento, separar o amigo-e-
mestre generosamente intempestivo do intelectual-e-filósofo
visceralmente provocativo. Flusser vivenciava tudo até os
mínimos gestos, porque as idéias e os conceitos não só
nestes se refletiam, como pareciam ser gerados a partir
deles, seja quando pensava, fumava, caminhava, falava,
escrevia, ensinava. E sobretudo quando se entregava ao
Diálogo, a quintessência de seus relacionamentos
interpessoais e da sua mediação com o mundo.

Não admira que se trate de um pensador que fez da


fenomenologia um método de investigação disciplinada. De
um analista-sintetizador do sutil e do óbvio, do superficial e
do profundo, do reprimido e do manifestado, do mil-vezes-
explicado ao não-ainda-articulado. Tudo isso em Flusser era
um contraponto assumido, quase ritualizado, ao
grandiloqüente, à inautenticidade e à falácia ou conversa
fiada – que se tornou um conceito flusseriano nas várias
línguas e culturas em que habitou, especialmente a cultura
brasileira.

A tal metodologia, pois, me fez coletar peculiaridades


daqueles dois campos energéticos, dentre as que mais me
marcaram e que julguei poderem sintetizar, do meu ponto de
vista, os traços pessoais e os conceitos mais significativos
deste universo existencial, filosófico, político, ético, estético e
religioso chamado Vilém Flusser. Os fios da memória
parecem ter cumprido seu papel, e quais garimpeiros-
arqueólogos foram encontrar as matrizes vivas da
experiência, como se aqueles traços e conceitos tivessem se
transformado em palimpsestos autobiográficos, reflexos nas
paredes da caverna da nossa história pessoal, reflexos estes,
ao mesmo tempo internalizados e refratados por nós -
aqueles jovens Amigos e Discípulos, todos por ele marcados
indelével, dolorosa, luminosamente.

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Da coleta que passei a fazer, os dados primários poderiam


ser assim formulados:

Flusser e o clima do absurdo


Flusser: o anti-acadêmico nato
Flusser e o horror a toda ideologia
Flusser: o homo ludens por
excelência
Flusser e a relação amor - repulsa
pela realidade brasileira
Flusser: este Judeu Errante e o
multiculturalismo
Flusser e os desafios existenciais face
à liberdade
Flusser e o confronto de idéias
Flusser e a linguagem: a paixão pela
língua portuguesa falada no Brasil
Flusser: o humanista do Diálogo, do
Gesto e da Amizade.
Flusser e a dialética da religiosidade:
Fé e Razão
Flusser e a Filosofia ou a “grande
conversação” .

Procurarei abrir clareira nesta floresta densa para comentar


alguns desses aspectos. Não todos, naturalmente, pois seria
tarefa para tese ou livro monumentais. Seguirei a trilha de
minhas próprias lembranças ao longo da convivência que se
estabeleceu de forma direta, dialógica, e de forma indireta,
epistolar, como também através dos textos que assimilei.

Passo a condensá-los em três grandes aspectos


transgressores no exercício e no ensino da filosofia, que
permearam sua conduta pela vida: o Anti-academicismo, o
Humor filosófico e a Religiosidade.

Vilém Flusser é o grande apologista do confronto de idéias,


do verdadeiro Diá-logo. Não suportava o Monó-logo: passivo,
dócil e quase sempre monótono. Em não havendo oposição,
o confronto dialético, a ele parecia não haver troca. Não

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estaria havendo aquela faísca imponderável do fenômeno


pensamento. Eu me lembro que costumava dizer, em suas
últimas viagens para cá, que gostava de voltar ao Brasil para
rever os amigos e "para matar a saudade de brigar com o
Milton Vargas"...

Esta sua maneira de provocar intelectualmente o outro foi


confundida por muitos de nós que o conhecemos aos
dezessete, dezoito anos - e por muitos mais velhos ainda -
com mera agressividade. Ao contrário, era um gesto de
comunicação essencial, um convite para que todo diálogo
atingisse o patamar da Grande Conversação - ou a filosofia.

Isso criou um estilo de fazer filosofia e de ensinar filosofia


peculiarmente flusserianos: tornar o interlocutor um seu
igual, à guisa de um diálogo inter-pares, independentemente
de grau e natureza do conhecimento, ou de nível da
bagagem cultural e, sobretudo, de hierarquia. A única
condição sine qua non: a presença erótica da Inteligência.
De modo que discutir vigorosamente com Flusser era já se
candidatar a ser Amigo de Flusser. Eis o pensador
sinceramente anti-acadêmico!

O tradutor do livro Eu e tu, Newton Aquiles Von Zuben, fez


certas afirmações a respeito de Martin Buber que, creio, se
aplicariam a nosso filósofo: "O fato primitivo para Buber é a
relação. O escopo último é apresentar uma ontologia da
existência humana, explicitando a existência dialógica, ou a
vida em diálogo". Tenho para mim que, se Flusser não
chegou a teorizar, como Buber, a relação eu-e-tu, conseguiu
existencializá-la, fazendo mesmo questão de torná-la a sua
praxis.

Diz Von Zuben: "Uma das manifestações antropológicas mais


concretas da existência da esfera entre é o fenômeno da
resposta. Quem ouve se não é para responder?" E aqui
relembro frase de uma carta de Flusser de 1990:

"Aprendi a duras penas que todo


projeto no Brasil é fadado a ser
engolido pelo algodão de indiferença
e desprezo pelo esforço do outro ..."

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Referia-se ele, genericamente, aos livros, artigos e ensaios


que publicava no Brasil e que raramente recebiam críticas da
imprensa cultural ou da comunidade pensante. Referia-se
também, especificamente, a um projeto editorial sobre sua
obra que apresentei à Fundação Vitae, cujo título era "Vilém
Flusser: Da passagem de uma Ficção Filosófica a uma
Filosofia da Escrita e da Imagem", projeto este que não fora
selecionado pela Vitae em agosto de 1990, e sobre o qual
farei mais adiante alguns comentários.

Passo a citar o próprio Martin Buber: "A verdadeira


comunidade não nasce do fato de que as pessoas têm
sentimentos umas para com as outras (embora ela não
possa, na verdade, nascer sem isso). Ela nasce de duas
coisas: de estarem todos em relação viva e mútua com um
centro vivo, e de estarem elas unidas umas às outras em
relação viva e mútua." Para Flusser, isso devia se dar na
arena das idéias,- para ele, este centro vivo coletivo e
interpessoal. Escreve o próprio Flusser em uma de suas
últimas cartas:

"Sou inter-nacional, por ser inter em


todos os sentidos (o termo
"intelectual" significa inter-legere,
isto é, escolher entre). O ódio aos
intelectuais que caracteriza os
nazistas revela o verdadeiro
significado de inter: saltos de escolha
para escolha em busca de
multiplicidade de pontos de apoio. Eis
a razão porque a fotografia me
fascina mais que a câmera vídeo:
salta, não desliza. (...) O dever de
gente como nós é engajar-se contra
a ideologização e em favor da dúvida
diante do mundo, que de fato, é
complexo e não-simplificável.
Engajamento difícil, mas nem por
isso, apolítico. Para nós, Polis é a
camada decisória da sociedade e não
a tal Massa."

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Ao lhe escrever sobre o projeto da Fundação Vitae - quando


ousei, pela primeira vez, chamar de ficção filósofica aquela
espécie de "filosofia-de-jornal" flusseriana -, ele me
surpreendeu com sua resposta risonha e franca: "Teu projeto
sobre mim veio no meio dos preparativos para o livro
Überflusser, do qual você participa com um ensaio." Tratava-
se do livro com que editores alemães quiseram homenageá-
lo pela passagem de seus 70 anos, e cuja tradução é uma
espécie de trocadilho em língua alemã: tanto pode significar
"Sobre Flusser", como "O Transbordador".

Flusser, então, prosseguia:

"Não preciso dizer-te quanto prazer


me dá teu interesse por meus textos
e o quanto estou convencido de que
você é a pessoa indicada para
tanto..." (desculpem-me pela
imodéstia em transcrever este
trecho) "...pela tua cultura, pela tua
capacidade intuitiva e pela amizade
que nos une (grifo meu). No entanto,
há vários pontos na tua descrição do
projeto que devem ser esclarecidos,
se é que o projeto venha a realizar-
se" . (era a sua veia profética...)
"Quanto aos meus artigos em
jornais: Tua idéia em considerá-los
"filosofia cotidiana de jornal" me
fascina, porque na época o que me
fascinava eram dois aspectos: o da
publicação quase imediata, e o da
imposição de limites (3 páginas para
o Suplemento do Estadão e 1 e 1/2
para a Folha).O fato de ser lido por
dezenas de milhares de receptores
não me comovia, porque já naquela
época eu era elitista. Sou, pois, o
contrário do jornalista, e "filosofia de
jornal" seria para mim o que o soneto
e o alexandrino são para

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poetas." (Isso revela a amplitude


mental de Flusser, voltado sempre
para o futuro, às novas formas de
pensar e expressar o pensamento, e
aos novos meios de comunicação.)
"Quanto ao título "ficção filosófica":
Há muito tempo estou com a idéia de
que o tratado filosófico (texto
alfanumérico sobre) não mais se
adequa à situação da cultura; de que
os filósofos acadêmicos são gente
morta, e que a verdadeira filosofia
atual é feita por gente como Fellini,
os criadores de clips, ou os que
sintetizam imagens. Mas como eu
próprio sou prisioneiro do alfabeto, e
como sou preso da vertigem
filosófica, devo contentar-me em
fazer textos que sejam pré-textos
para imagens. A maneira de fazê-lo é
escrever fábulas, porque o fabuloso é
o limite do imaginável. Escrevi e
publiquei uma fábula animal,
Vampyrotheutis Infernalis, sobre a
qual Abraham Moles escreveu que
inicia método filosófico futuro. Em
suma, sempre tentei fazer ficção
filosófica, e meus ensaios não
aparentemente fabulosos, na
realidade se querem ficcionais."

Por esta razão é que propus insistentemente à Edusp -


Editora da Universidade de São Paulo - o título para a sua
recente publicação Ficções Filosóficas, e que mereceu
comentário interessantíssimo do filósofo e professor de
filosofia, Bento Prado Júnior, em seu artigo na Folha de São
Paulo de 13.02.1999, "A chuva universal de Flusser". Bento
inicia com um enunciado do próprio Flusser:

"Participo da desconfiança por


analogias que tendem rapidamente a

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se transformar em metáforas, isto é,


transferências de raciocínio adequado
a um dado contexto para contexto
inadequado. No entanto, nada
captaremos sem modelo." Por meio
dessas frases, o leitor pode perceber
que o título do livro é menos
paradoxal ou subversivo do que
parece. Ou que o adjetivo "filosófica"
pode modificar o substantivo "ficção"
sem engendrar contradição.
Poderíamos dizer, ao contrário, que,
na afirmação dessa inquietante
proximidade, encontramos uma
cumplicidade perfeitamente clássica,
fixada exemplarmente na "alegoria
da caverna", da "República" de
Platão."

Também comentou o título outro artigo de nossa imprensa


cultural - "Filosofia e Ficção se encontram no labor paradoxal
de Flusser" - publicado no jornal "O Tempo", de 7.11.1998,
de autoria de Rodrigo Duarte:

Ficções filosóficas de Vilém Flusser é


um livro sui generis, a começar pelo
título que remonta a uma antiga
polêmica no seio da filosofia, desde
Platão. Para este, o filósofo -
literalmente o amigo da sabedoria -
deveria, per definitionem, superar o
filodoxo, isto é, o amigo das opiniões.
Enquanto o filodoxo labora sobre
coisas do senso comum - que
poderiam ser pura ficção - o filósofo
deveria obrigatoriamente ter como
objeto a realidade em si mesma -
para Platão, o mundo das Idéias.
Nesse aspecto, a coletânea de
Flusser já nasce sob a égide de um
paradoxo: a possibilidade de que

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possam existir, de fato, "ficções


filosóficas". Entretanto, para um
espírito inquieto e criativo como o do
pensador judeu (residente em São
Paulo desde sua expulsão da antiga
Thecoslováquia pelos nazistas até
sua mudança para a Europa em
1972), a inexistência de tais ficções
não chega a ser um problema: ele,
por assim dizer, as inventou..."

Não sem uma ponta de ironia, creio que, na qualidade de


cúmplice e co-inventora, devo confessar outra ousadia em
caso muito semelhante. Trata-se de um outro título para um
outro livro de Flusser, o Filosofia da caixa preta, que,
segundo consta, é o livro de Flusser mais lido no Brasil, e até
certo ponto, responsável por este seminário organizado por
fotógrafos, críticos e estudiosos da fotografia entre nós.

Publicar este livro no Brasil foi uma maratona de


dificuldades. Ao receber os originais do autor - quando o
visitei no sul da França, em sua casinha provençal, em
Robion -, o livro era sucesso na Europa com o título original
Für eine Philosophie der Fotographie. Uma vez em São Paulo,
tratei de procurar editora. Poucas se interessaram; muitas
nunca tinham ouvido falar em Vilém Flusser. Reuni então um
grupo de amigos comuns, formamos um conselho editorial
ad hoc, e produzimos o livro rapidamente. No entanto,
cometemos algumas "licenças poéticas" sem consulta prévia:
a foto do autor na contra-capa; o posfácio "Flusser e a
liberdade de pensar", que escrevi por achar indispensável, na
época, re-apresentar o autor à esquecida comunidade
brasileira; e, por fim, a mudança do título "Por uma Filosofia
da Fotografia" para o intrigante "Filosofia da Caixa Preta".
Ora, após tantas revisões do texto, meus critérios pareceram
corretos aos amigos-editores: era mais adequado ao
mercado editorial brasileiro e fiel ao estilo ensaístico de
Flusser. Além do mais, me convencera de que a analogia da
"caixa preta" entre os automatismos do aparelho fotográfico
e do aparatus da sociedade pós-industrial constituía o cerne
filosófico do livro.

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Tais licenças, porém, chocaram o nosso autor, que aqui


chegava em plena véspera do lançamento. Não fosse uma
consulta telefônica sobre o novo título ao Andreas Müller-
Pohle, seu editor na Alemanha e que detinha os direitos
autorais pela "European Photography", toda a produção
editorial e o nosso esforço teriam ido água abaixo. Graças a
Pohle, o "Filosofia da Caixa Preta" veio a lume: "Por que não
pensamos nisso antes? " Filosofia da Caixa Preta" é perfeito!"

Malgré tout, minha amizade com Flusser sofreu abalos


profundos. Mas a reconciliação veio logo por carta, e mais
uma vez surpreendente, revelando nova faceta de caráter:
"Quanto ao meu comportamento ir-ra-cio-nal e as feridas
que causou, digo o seguinte: todo engajamento é abandono
do privado em prol do público, e quem arrasta o privado para
dentro do público está cometendo, a meu ver, impudicidade.
Por isso protestei contra a minha foto na capa: strip-tease.
Ora, você mobilizou meu e teu privado em prol da publicação
do livro. E´ como se tivesse tirado minha roupa. Você pode
objetar que se trata de preconceito judeo-cristão contra a
nudez, mas considere: se transformo publicação em
exibicionismo, estou traindo o privado (relações de
intimidade) e o público (relações que visam mudar o
mundo). Tua ação (por mais nobre que tenha sido seu
motivo) projetou-se para o terreno viscoso da auto-
promoção. (...) Isso me fez refletir muito sobre a relação
entre escritor e editor, e mandarei oportunamente ensaio a
respeito. Se tu és meu editor, isto é a forma mais pública da
relação privada de amizade. Abraços, Vilém."

(E assim, só me resta fazer aqui uma confissão:


Continuamos brigando, Flusser, pois estou tornando público
o nosso privado, citando trechos de suas cartas - e, o que é
pior, com a mauvaise conscience da impudicidade, embora
movida novamente por motivo tão nobre... )

Também a relação de Vilém Flusser com a nossa


universidade não passou em brancas e serenas nuvens. Não
admira que difícil e raramente a academia brasileira, privada
ou pública, lhe tenha aberto as portas. Em tal contexto,
tornaram-se antológicas as polêmicas que suscitou. Hoje, à

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guisa de resposta a Flusser, assistimos a polêmicas de igual


teor em nossa imprensa sobre o ensino universitário da
filosofia. Não sei se assistimos a isso com entusiasmo ou
nostalgia: será que o anti-academicismo de Flusser, tão
rejeitado àquela época, estaria fadado a gerar seus frutos?...

Na Folha de São Paulo de 10.08.98, o professor de filosofia


da Universidade de São Paulo, Oswaldo Porchat Pereira, no
artigo "Em defesa de uma instituição", assim avalia seu
método de ensino: "Continuo persuadido de que o ensino da
filosofia deve necessariamente reservar um papel importante
e fundamental para os cursos de história da filosofia, os
cursos monográficos, os seminários e as explicações de
texto. Não teremos, entretanto, contribuído para que a
história da filosofia substituísse, gradativamente, a filosofia
em grande parte de nossos cursos? (...) Não nos teremos
deixado dominar por um temor exagerado de que nossos
estudantes se deixassem tentar pelo ensaísmo filosofante
irresponsável... adiando sempre, assim, suas elaborações
filosóficas pessoais?"

Voltando em contraponto aos anos 60, Flusser já ensaiava


sua rebeldia à fidelidade ao texto, em seu artigo "Breve
relato de um encontro em Platão", na Revista do Instituto
Brasileiro de Filosofia":

"Sócrates acaba de contar a Fedro


uma história egípcia sobre a
descoberta da escrita. E Fedro
responde: Tens um jeito, Sócrates,
de inventar com facilidade estórias
egípcias, ou de não importa que
outra terra. Sócrates: Havia uma
tradição no templo de Dodona que as
primeiras profecias foram articuladas
por carvalhos. Os primitivos, tão
diferentes no seu
subdesenvolvimento mental do
academicismo atual, eram de opinião
que o que importa é ouvir a verdade,
venha ela de onde quiser, e que seja

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de carvalhos ou rochas. Tu, no


entanto, pareces interessado não na
verdade de uma proposição, mas na
fonte da qual surgiu e no contexto no
qual se deu. O texto dispensa
comentários na sua simplicidade
cristalina. Fedro critica Sócrates por
sua irresponsabilidade intelectual em
não manter fidelidade a fontes e em
cometer inautenticidades históricas.
Sócrates responde ironicamente,
mostrando que o interesse por
explicações diacrônicas (historicistas)
encobre o fenômeno a ser explicado.
Sócrates põe a nu, na sua resposta, a
atitude de Fedro como tentativa de
relegar a discussão do mérito da
questão às calendas gregas. Mostra,
com efeito, que explicações históricas
têm a virtude de desviarem a
atenção do assunto, de serem um
explaining away, uma desconversa.
Que assumem ares de preciosismo
acadêmico para evitar o confronto
existencial com o fenômeno a ser
considerado."

E Flusser conclui:

"Admito de bom grado que nesta


reflexão husserlizei Platão, talvez
demasiadamente. Mas não importa
se inventei o meu Fedro, ou se relatei
um Fedro socrático, platônico, ou um
Fedro de outro contexto. Importa,
isto sim, se o que eu digo (ou o que
Sócrates, ou Platão, ou Husserl
dizem) é ou não é verdade. E´ neste
sentido que a leitura dos "Diálogos"
provoca sempre novos enfoques
sobre a nossa situação e os nossos

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problemas. E é neste sentido que não


se pode falar em "História da
Filosofia" como processo evolutivo."

Primorosa é também a análise que faz do estilo acadêmico


como escolha decisiva da forma de escrever, em seu artigo
"Ensaios" no Estadão de 1967 (republicada em Ficções
filosóficas):

"O problema que pretendo expor é


certamente vivenciado por todos cuja
meta é escrever sobre um tema
"erudito". E´ este: devo formular
meus pensamentos em estilo
acadêmico (isto é, despersonalizado)
ou devo recorrer a um estilo vivo
(isto é, meu) ? A decisão tomada
afetará profundamente o trabalho a
ser feito. Não é uma decisão que diz
respeito à forma apenas. Diz respeito
igualmente ao conteúdo. Não há um
pensamento único articulável em
duas formas. Duas sentenças
diferentes são dois pensamentos
diferentes. (...) O estilo acadêmico é
um caso especial de estilo. Reúne
honestidade intelectual com
desonestidade existencial, já que
quem a ele recorre empenha o
intelecto e tira o corpo.
Caracteristicamente evita o uso do
pronome "eu" pelo bombástico
(embora aparentemente modesto)
"nós", ou pelo "se", que não
compromete."

Escolho um fragmento de Novalis como fecho a este primeiro


grande aspecto transgressor do nosso filósofo judeu-tcheco-
paulistano, uma vez que o Flusser transdisciplinar defendia a
inseparabilidade entre ciência, política, filosofia, arte,
religião. Diz o poeta fazendo eco a Flusser: "A filosofia é

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fundamentalmente anti-histórica. Parte do futuro e do


necessário para o real. E´ a ciência do universal sentido
adivinhatório. Ilumina o passado com o futuro. A história faz
o contrário. A filosofia é, como toda a ciência sintética, como
as matemáticas: arbitrária."

II

Passemos ao segundo aspecto transgressor por excelência: o


humor flusseriano.

Rubem Alves escreveu recentemente na Folha de São Paulo:


"Meu filósofo mais querido, Nietzsche, escrevia para adultos
eruditos, e eles não o entendiam. Desanimado com a
estupidez dos adultos, ele escreveu: "Gosto de me assentar
aqui, onde as crianças brincam, ao lado da parede em
ruínas, entre espinhos e papoulas vermelhas. Para as
crianças, sou ainda um sábio; e também para os espinhos e
as papoulas vermelhas." E Rubem Alves conclui: "Os adultos
não o entendiam porque ele escrevia como criança." Eu diria
que esta é também característica do estilo de escrever
flusseriano, ou do que estou chamando de "humor filosófico
flusseriano". Mas sempre com a ressalva de que "escrever
como criança" não quer dizer "escrever infantilmente".

Quando, em 1983, organizei no MASP um evento cultural


para o lançamento do seu livro Pós-História, com um ciclo de
palestras com a presença do autor, ele me enviou um texto
informativo, que acabou ficando inédito. Chamava-se
"Confissões sobre o ensaio "Pós-História":

"Como se infiltrou essa unicidade


temática nas minhas reflexões? Foi
ela soprada pelo espírito do tempo?
Ou é produto da minha forma
mentis? Ou resultado da minha
biografia? A sensação do absurdo,
que é a vivência do acaso, será tão
onipresente a ponto de se manifestar
em campos aparentemente
desinteressantes para a existência?
Feita a descoberta da unicidade

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temática, confesso que remanejei os


vinte ensaios a fim de escondê-la. A
graça é precisamente o esconde-
esconde com a sensação do absurdo,
a sua descoberta em cantos
insuspeitados, e não a proclamação
sumamente banal do absurdo de
tudo. O que proponho ao leitor de
"Pós-História" é um jogo de baralho:
cada um dos vinte ensaios é carta
transparente que pode ser
sobreposta a qualquer outra. Toda
sobreposição poderá revelar o acaso,
enquanto matéria prima dos eventos.
Mas toda sobreposição revelará à sua
maneira. Estou propondo jogo
mortalmente sério. Por isso mesmo,
jogo divertido e infinitamente
permutável. Por favor, brinquem
comigo."

O Segundo Livro da Poética de Aristóteles - cujo famoso


desaparecimento é o tema de Umberto Eco em O Nome da
Rosa -, trata justamente da Comédia, e do modo pelo qual,
segundo o próprio filósofo, "ao suscitar o prazer do ridículo,
ela (a Comédia) pertence à purificação desta paixão". A
tensa originalidade dessa ficção filosófica sobre um fato
histórico está na descoberta final de que uma monumental
discussão sobre o mundo tem como nó a questão do Humor
e de sua proibição. Tudo porque era inconcebível à
mentalidade medieval a idéia de que Cristo pudesse ter rido.
Cristo sorria, mas não ria...

Até hoje, desconhece-se a natureza essencial do Humor. O


que sabemos, com certeza, é que se trata de fenômeno sui
generis de comunicação da espécie humana - exatamente
como o gênio de Aristóteles prenunciava: "...como já
dissemos, no Livro sobre a Alma, de nobre consideração é
digna uma tal paixão (o prazer do ridículo) na medida em
que, dentre os animais, só o homem é capaz de rir." Face à
postura de rejeição e preconceito com que o Humor é

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encarado enquanto tema e método de investigação


acadêmica - e, em particular, filosófica -, somos levados a
concluir que, pela falta de exercitar o Humor, o ser humano
vem assim des-aprendendo um pouco mais sobre si mesmo.

Lembro-me de uma palestra na Bienal de São Paulo em que


Flusser investia contra a maioria sisuda que o ouvia com este
comentário: "Daqui a alguns séculos, os futuros humanos
nos olharão com desprezo por nossa seriedade animalesca."
São tantos os exemplos da ironia, do humor e da leveza
estilística de Flusser que bastaria abrir a esmo o Ficções
filosóficas. Lá encontraremos o "Deixe isto pra lá":

"Uma análise fenomenológica e


existencial dos hit songs da
atualidade pode revelar a "alma do
povo".(...) O título do presente artigo
é tirado de uma dessas canções de
êxito fulminante. O núcleo dessa
canção é constituído pela frase: "Eu
não estou fazendo nada." Trata-se de
uma glorificação e de uma apologia
da conversa fiada pela conversa
fiada. "Faz mal bater um papo assim
gostoso com alguém?" O texto, a
melodia, o ritmo e os gestos
conseguem captar, de maneira feliz,
um aspecto da consciência coletiva:
"Deixe que falem, que digam, que
pensem, deixe isto pra lá, eu não
estou fazendo nada, você também.
Faz mal bater um papo assim
gostoso com alguém? Vem pra cá, o
que é que tem?" A minha tese é a
seguinte: por trás da aparente
idiotice do texto esconde-se um
cinismo profundo e uma desilusão
total com os valores da sociedade. A
canção advoga, com efeito, o
abandono desses valores, e sua
substituição pela inautenticidade do

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bate-papo. (...) "Vem pra cá, o que é


que tem, vamos não fazer nada. "
Esta é, a meu ver, a mensagem
infernal que a nossa canção articula.
Os leitores poderão argumentar que
estou exagerando a importância da
canção e que ninguém está tomando
a sério a sua mensagem. Que, afinal,
ela estará esquecida dentro de
poucas semanas. Mas este
argumento hipotético dos leitores
equivale a dizer: "Deixe que falem,. o
que é que tem? Faz mal bater um
papo assim gostoso com
alguém?" (...) "Escolhi como título
deste artigo a frase do texto "Deixe
isto pra lá", porque ela significa
quase exatamente aquilo que
Guimarães Rosa articula na primeira
palavra do Grande Sertão: Veredas,
a saber: "Nonada". Entre a canção e
o romance abre-se um abismo não
apenas estético mas também ético,
que é sintoma da situação dentro da
qual fomos lançados. Ambas as
articulações estão debaixo do signo
do nada. O brado desesperado, digno
e corajoso de Guimarães Rosa é "Não
ao nada!" A recomendação
desesperada, vergonhosa e cínica da
canção é "Sim ao nada!".

Em recente conversa com José Bueno, este me dizia, com a


convicção de amigo de Flusser de todos esses anos, que
"Vilém era um ingênuo." Isso me intrigou: filósofo do porte
de Flusser, ingênuo? Seria ele um ingênuo, ou um filósofo
do ingênuo?

(Questão filosófica da maior importância, meu bééim - diria


Flusser...)

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Seja como for, - espírito de criança, homo ludens, humour -


tudo isso só é possível na esfera sem pose da ingenuidade.
No entanto, o Humor permanece elemento ignorado e sub-
utilizado, para não dizer banido, de nossas escolas e
universidades. O que se constata é a postura generalizada de
desprezo pelo riso e pelo potencial-instrumental do Humor
para a arte de ensinar, aprender e comunicar. Ou
simplesmente, para a arte de viver. Mas Flusser foi ainda
mais longe: utilizou-o na arte de filosofar. Ao mesmo tempo
em que cria um humor filosófico, ele se propõe, até certo
ponto, a teorizá-lo. Embora não se refira exatamente ao
termo humor, este subjaz como objeto da reflexão ácida que
faz do "divertimento" no atual contexto da sociedade de
consumo. Abramos o "Pós-História" no capítulo "Nosso
Divertimento":

"Há culturas que recorrem à


concentração dos pensamentos para
alcançarem a felicidade. A nossa
cultura dirigiu-se para técnicas
opostas. Técnicas que visam divertir
o pensamento. (...) No divertimento
a oposição dialética entre eu e
mundo é desviada para terreno
intermediário, o das sensações
imediatas. (...) Parece, à primeira
vista, que acumular sensações é
armazená-las. Como se quiséssemos
guardar as sensações na memória.
Tal interpretação do divertimento
levou ao conceito da "sociedade de
consumo", sociedade que consome as
sensações materiais e outras
fornecidas pelos aparelhos
produtores. Como se a sociedade
fosse aparelho digestivo dos
aparelhos produtores. Isto seria
interpretar mal a essência do
divertimento. A sociedade de massa,
a que se diverte, se caracteriza
precisamente por falta de memória,

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por incapacidade de digerir o


devorado. (...) Não há memória
aonde não há um Eu, uma
interioridade. A sociedade de massa
não é aparelho digestivo, mas canal
pelo qual as sensações fluem para
serem eliminadas sem terem sido
digeridas. (...) Divertimento é
acúmulo de sensações a serem
eliminadas indigeridas. Uma vez
posto entre parênteses mundo e eu,
a sensação passa sem obstáculo. Não
há nem o que deve ser digerido, nem
interioridade que possa digerí-lo. Não
há intestino nem necessidade de
intestino. O que resta são bocas para
engolir a sensação, e ânus para
eliminá la.(...) Na sociedade do
divertimento funcionam apenas os
aparelhos orais e anais, apenas o
input e o output. Somos canais para
a repetição eterna. (...) Mas estão
surgindo ciências coprofílicas,
estudos do indigerido. A psicanálise,
a arqueologia, a etimologia, a busca
das fontes e das raízes é disto
exemplo. Estão surgindo movimentos
coprófilos que visam reciclar a
merda. O movimento ecológico é
disto exemplo. Outro é a reciclagem
de especialistas. O importante nisto é
a reestruturação do nosso
pensamento e da nossa atividade.
(...) Nada é tomado a sério, tudo nos
diverte. Não apenas os programas
destinados explicitamente ao
divertimento. Devoramos tudo com
atitude sensacionalista. Arte,
filosofia, ciência, política, inclusive os
eventos que nos dizem respeito em
nossa vida concreta: fome, doença,

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opressão. (...) Os aparelhos


codificaram o mundo de maneira a
divertir-nos. Tornaram "espetacular"
o mundo. (...) Esta é a meta dos
programas com os quais estamos
colaborando."

Eis o humor filosófico de Vilém Flusser: jogo mortalmente


sério. Por favor, brinquem comigo.

III

Iniciei e finalizo minha contribuição com o traço pessoal e


intelectual de Vilém Flusser que marcou o seu ser mais
profundo e configurou o percurso Bodenlos (“Sem Chão”:
título de sua autobiografia filosófica, inédita no Brasil, onde
relata as influências de amigos brasileiros) de sua existência.
O seu percurso sem chão, sem fundamento, sem raízes. Esse
traço é a Religiosidade (nas entrelinhas deste texto desde o
início, quando me referi e à Amizade que nos uniu e à sua
Totalidade).

Sempre tive a impressão de que Flusser queria que uma


certa tonalidade religiosa - e algo profética - permeasse
todos os temas de seu pensamento. Esta minha impressão
foi agora reiterada, não apenas ao pesquisar alguns trechos
de suas cartas e de seus textos, mas principalmente
reiterada pela certeza de Dora Ferreira da Silva - esta cara
amiga comum e constante interlocutora de Vilém Flusser.
Relatou-me ela que foram certa vez a uma sinagoga no Dia
do Perdão. E o Rabino Pinkuss, embora não tendo declinado
o nome de Flusser, anunciara: "Está aqui, hoje, uma pessoa
que não nos freqüenta, mas é a pessoa mais religiosa que
conheci e com quem dialoguei."

No livro Da Religiosidade, de 1967, já na Introdução Flusser


afirma: "O senso de realidade é, sob certos aspectos,
sinônimo de religiosidade. Real é aquilo no qual
acreditamos." Em seguida, no primeiro ensaio, cujo título é o
do próprio livro, e em que Flusser faz um paralelo entre
música e religião, musicalidade e religiosidade, define ele:

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"Chamarei de religiosidade a nossa


capacidade para captar a dimensão
sacra do mundo."

E conclui, profeticamente:

"A procura de um novo veículo para a


nossa religiosidade, que marca a meu
ver a atualidade, é uma superação da
Idade Moderna. Com efeito, todas as
nossas atividades criadoras, inclusive
as científicas e as artísticas, estão
dedicadas ao esforço de abrir campo
novo à religiosidade. Com nosso
intelecto ainda somos modernos, mas
com nossa religiosidade já
participamos de uma época vindoura.
O que equivale a dizer que somos
seres de transição e em busca do
futuro. Se as religiões tradicionais
são inaceitáveis para essa nova
religiosidade, se as religiões exóticas
são desvendadas como fugas, e se o
desvio da religiosidade para a
política, a economia, a tecnologia
decepciona, ficamos com a fome
religiosa insatisfeita. Invejamos os
que a satisfazem na forma tradicional
ou nas formas substitutivas, mas
simultaneamente sentimos desprezo
por eles. Essa mistura de inveja e
desprezo, de humildade e blasfêmia,
caracteriza a religiosidade
insatisfeita. E´ essa religiosidade não
comprometida, e portanto faminta de
compromisso, que construirá, a meu
ver, o futuro."

Na entrevista (texto disponível no site Vilém Flusser no


Brasil: uma apresentação - www.fotoplus.com/flusser, no
link Boletim Flusser) que J. C. Ismael fez a respeito do

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História do Diabo, o segundo livro de Vilém Flusser publicado


no Brasil, em 1965, a agilidade de suas respostas às
elaboradíssimas perguntas do entrevistador refletem o
quanto a problemática religiosa lhe aflorava à pele:

" O diabo é um idiota, Sr. Flusser?

“Há uma faceta idiótica no diabo -


desde que a palavra seja tomada no
seu sentido grego. A idiotice é a vida,
em particular na economia. Um dos
deveres do diabo é seduzir-nos para
a integração na família e no
emprego. Além disso, o paraíso da
satisfação que nos é prometido pelos
diversos messianismos
psicossomáticos, psicanalíticos e
econômicos é uma das metas do
diabo enquanto idiota.

“Se o diabo implica Deus, este é


também um idiota?

“Se o termo Deus pode ter


significado, este seria meramente
negativo, a saber, "não-diabo".
Desde que nessas perguntas a
idiotice do diabo foi salientada, Deus
poderia ser concebido como a
negação da idiotice, portanto, da
alienação, da família e da economia.

“O senhor vem sendo acusado


sistematicamente de ótimo poeta...

“Se você levar a pergunta a um


campo pessoal, devo admitir que me
engajei em filosofia e que portanto
resisti ao diabo idiótico para talvez
cair nas malhas de um diabo
estetizante. Com efeito, a filosofia e a
teologia são para mim indistintas, já

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que ambas propõem o terreno do até


agora não pensado, e o propõem no
clima da beleza.

“O senhor falou em comunicação


que já me parece uma palavra
gastíssima...

“Você tem razão, já ouvi que os que


não podem comunicar poderiam calar
a boca. Quando falei em pseudo-
comunicação, referi-me justamente
àquela massa de mensagens sem
informação que amalgama as
solidões individuais em solidões
coletivas. Aventuro a tese de que
onde há autêntica comunicação, isto
é, onde dois seres humanos se
abrem mutuamente, o diabo é
derrotado."

Vilém Flusser também manteve com o teólogo católico,


brasileiro de origem francesa, Hubert Lepargneur, intensa
correspondência, fundada toda ela na problemática de sua
religiosidade. Em carta de 1973, parece brandir ao universo
as questões de sua interioridade: "Para nós, queiramos ou
não queiramos, a fé (este submeter-se a uma espécie de
evidência existencial) abre por necessidade o espaço
transcendente. O problema, por certo para ambos, é este: o
que está dentro de tal espaço? Deus? As idéias? Os modelos?
A mathesis? A estrutura? Ou nada? Ou serão todos estes
termos indefiníveis, por definição, sinônimos?"

Karl Jaspers, em sua "Introdução ao Pensamento Filosófico",


pode estar querendo tranqüilizar Flusser: "Vivemos num
mundo de enigma, onde o que é autêntico deveria revelar-se
a nós, mas não se revela e permanece oculto na interminável
variação das significações." E Kant pode ainda exclamar,
entregando a ambos uma chave: "Duas coisas enchem o
espírito de admiração e de respeito: o céu estrelado acima
de mim e a lei moral em meu interior... Associo-as

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diretamente à consciência de meu próprio existir."

E para que esta tonalidade religiosa, que tão intensamente


tingiu o próprio existir de Vilém Flusser, possa evocar a sua
memória e presença entre nós, nada mais adequado que
recorrer à Poesia, esta co-irmã da Religiosidade - e da
própria filosofia, na visão de Novalis: "A Poesia é o real
absoluto, é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético,
mais verdadeiro."

Nada mais oportuno para a abertura deste Seminário "Vilém


Flusser no Brasil: uma apresentação" que re-apresentá-lo
com o poema recente e inédito de Dora Ferreira da Silva, a
quem agradeço profundamente pela permissão e a
cumplicidade:

RETRATO DE AMIGO
Dora Ferreira da Silva

Olhavas - óculos na testa -


e vias com a lupa da alma
calando mistérios.
Bastava a tarde
que dizia a superfície das coisas.

A luz se espreguiçava no terraço


com seus dedos de sombra. Amigos
iam chegando, a festa do pensamento
se iniciara. Conceitos fugiam
(ou símbolos )
e eram capturados na tapeçaria do dia
quase findo. Cachimbo na mão
investias contra argumentos
vacilantes e os deitavas por terra.

Amavas decifrar o sutil e ambíguo,


erguias paradoxos cambaleantes.
Nomes não davas
acaso os suprimias e ao chão em que
andavam -
Bodenlos - assim olhavas o esvoaçar
de gente, pensamentos. Bodenlos.
Enfim te atiravas à poltrona segura -
sorrindo - em silêncio.

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* Maria Lília Leão:


graduada em
Direito, pós-
graduação em
produção e direção
em TV Educativa.
Atua desde a década
de 1970 na área de
comunicação voltada
para educação,
tendo participado de
vários projetos na
RTC/TV Cultura,
Fundação Roberto
Marinho, Escola do
Futuro-USP,
Secretaria de
Educação à distância
do MEC e do INEP.
Editora do livro
Filosofia da caixa
preta (Hucitec,
1985), de Vilém
Flusser, em cuja
edição inclui-se seu
texto Flusser e uma
certa geração 60,
primeiro ensaio no
Brasil a traçar uma
trajetória da obra do
filósofo. Participa da
publicação Über
Flusser: die Fest-
Schrift zum 70,
sobre o autor,
editada pela
Bollmann Verlag em
1990, com o ensaio
Flusser e a liberdade
de pensar. Em 1998
lança, pela Edusp,
com a colaboração
de Milton Vargas, a
coletânea de ensaios
de Flusser Ficções
filosóficas. Texto
publicado no volume
Vilém Flusser no
Brasil, organizado
por Ricardo Mendes
& Gustavo Bernardo
em 1999.

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