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Christianne Luce Gomes

organizadora

Faltava no Brasil a publicação de um Dicionário dedica-


do à temática do Lazer. Mas agora esta lacuna já está
preenchida!
Este livro é fruto do empenho coletivo de administra-
dores, bacharéis em artes cénicas, comunicação social,
relações públicas, turismo, economistas, educadores, jor-
nalistas, psicólogos, professores de educação física e
sociólogos.
Esta obra pioneira possibilita aos profissionais, pesqui-
sadores e interessados no assunto o acesso a 50 verbetes
relacionados ao lazer, tornando-se uma referência obri-
l dicionário crítico do

azer
gatória para aqueles que desejam aprofundar conheci-
mentos sobre o tema.

*4.*--\
Christianne Luce Gomes
(Organizadora)

DICIONÁRIO
CRÍTICO DO LAZER

Autêntica
opyright © 2004 by Christianne Luce Gomes
SUMÁRIO

apa
'ictor Bittow
levisão
r
ucha

todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.


Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, Apresentação 7
;eja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia
(erográfica sem a autorização prévia da editora.
1. Acampamento - Edmur António Stoppa 9
2. Animação cultural - Victor Andrade de Melo 12
Autêntica Editora 3. Arte-Victor Andrade de Melo 15
4. Brincadeira - José Alfredo Oliveira Debortoli 19
Belo Horizonte
Rua São Bartolomeu, 160 - Nova Floresta 5. Brinquedo - Rogério Correia da Silva 25
31140-290 - Belo Horizonte/MG
6. Cidadania - Silvia Cristina Franco Amaral 30
Tel: (55 31) 3423 3022 - Televendas: 0800 2831322
www.autenticaeditora.com.br 7. Cinema - Victor Andrade de Melo 35
e-mails: editora@autenticaeditora.com.br (geral) 8. Clown - Ana Elvira Wuo 40
vendas@autenticaeditora.com.br (vendas)
9. Colónia de férias - Cristiane Queiroz de Souza Assunção 45
10. Consumo - Janete da Silva Oliveira, Ricardo Ferreira Freitas 48
São Paulo
Rua Visconde de Ouro Preto, 227 - Consolação 11. Conteúdos culturais - Victor Andrade de Melo 51
01.303.600 - São Paulo/SP - Tel.: (55 11) 3151 2272
12. Cultura-Vânia de Fátima Noronha Alves 54
13. Dança - Maria Inês Galvão Souza, Victor Andrade de Melo 60
14. Diversão - Maria Cristina Rosa 64
15. Equipamento de lazer - Ana De Pellegrin 69
Gomes, Christianne Luce 16. Espaço de lazer - Ana De Pellegrin 73
G683
Dicionário crítico do lazer / organizador por
17. Espetáculo - Denise da Costa Oliveira Siqueira, Ricardo Ferreira Freitas 75
Christianne Luce Gomes. - Belo Horizonte:
Autêntica, 2004. 18. Esporte-Victor Andrade de Melo 80
19
240 p.ISBN 85-7526-144-4 - Eventos - Antonia Marisa Canton 85
l.Lazer-dicionários.2.EducacãoFísica.I.Título.
20. Festa - Maria Cristina Rosa 88
CDD 379.8(038) 21
- Formação profissional - Hélder Ferreira Isayama 93
22. Género- Silvana Vilodre Goellner. 97 APRESENTAÇÃO
23. Gestão - Patrícia Zingoni 100
24. Globalização - João Luís de Araújo Maia, Ricardo Ferreira Freitas 104
25. Hotéis de lazer - Olívia Cristina Ferreira Ribeiro 107
26. Indústria cultural - Ricardo Ferreira Freitas, Ronaldo Helal, Fernanda Pizzi 112
n. Internet - Gisele Maria Schwartz 116
28. Lazer - Concepções - Christianne Luce Gomes 119
29. Lazer - Educação - Luciana Marcassa 126
50. Lazer - Ocorrência histórica - Christianne Luce Gomes 133
51. Lúdico - Christianne Luce Gomes 141
$2. Marketing - Daniel Braga Hubner. 147
$3. Meio ambiente - Heloísa Turini Bruhns 152 A ideia de elaborar o Dicionário Crítico do Lazer partiu do desejo e da
necessidade de reunir, em uma obra, um corpo de conhecimentos que fundamen-
$4. Mercado de trabalho - Marcelo Weishaupt Proni 158
tasse alguns dos vocábulos e expressões de referência no campo de estudos sobre o
55. Mídia - Giovani De Lorenzi Pires, Cássia Hack 162
lazer. Idealizada no Centro de Estudos de Lazer e Recreação (CELAR), do Departa-
56. Ócio - Luciana Marcassa 165 mento de Educação Física da Universidade Federal de Minas Gerais, esta obra re-
57. Parques - Olívia Cristina Ferreira Ribeiro 172 presenta um convite à reflexão crítica sobre o lazer, um tema que cresce em impor-
58. Planejamento - Daniel Braga Hubner. 177 tância - social, política, económica e pedagógica - no despertar deste século XXI.
59. Políticas públicas - Silvia Cristina Franco Amaral 181 O Dicionário Crítico do Lazer tem como objetivo possibilitar aos académi-
10. Política de lazer - António Carlos Bramante 185 cos, profissionais e pesquisadores de diversas áreas o acesso a uma obra composta
H. Projeto - Patrícia Zingoni 188 por 50 verbetes relacionados à temática do lazer, com o propósito de situá-los neste
campo de estudos, aprofundar o conhecimento sobre o assunto e, conseqiientemen-
12. Qualidade de vida - Euclides Guimarães, Vera Lúcia Alves Batista Martins 191
te, instigar diálogos sobre o tema.
13. Recreação - Luciana Marcassa 196
A concretização deste desafio foi possível a partir da colaboração dos 38 estu-
1.4. Rua de lazer - Vima Carolina Carvalho Munhoz , 203
diosos aqui presentes, convidados em virtude de seu conhecimento sobre o assunto
15. Serviços de lazer - Marcelo Weishaupt Proni 207 em questão, bem como pela sua significativa produção académica e profissional. Este
16. Shopping Center- Ricardo Ferreira Freitas 211 Dicionário foi fruto, portanto, do empenho coletivo dos administradores, bacharéis
17. Televisão - Giovani De Lorenzi Pires, Sérgio Dorenski Dantas Ribeiro 213 em: artes cénicas, comunicação social, relações públicas e turismo; economistas, edu-
18. Tempo livre - Valquíria Padilha 218 cadores, jornalistas, psicólogos, professores de educação física e sociólogos aqui reu-
\9. Terceiro setor - Cássio Avelino Soares Pereira 222 nidos, os quais evidenciaram a fecunda possibilidade de empreender discussões mul-
tidisciplinares sobre o lazer.
'0. Trabalho - Ricardo Antunes 227
Como os autores tiveram liberdade de posicionamento em face das ques-
tões debatidas em seus escritos, os textos não expressam a visão de todos os
colaboradores do Dicionário. Além disso, é importante esclarecer que os verbe-
tes aqui contidos não têm a intenção de prescrever uma abordagem única, mas
lê problematizar aspectos essenciais para uma abordagem crítica sobre o lazer.no- ACAMPAMENTO
adamente nos dias atuais. Por essa razão, tivemos o cuidado de relacionar as refe-
ências que fundamentaram as reflexões empreendidas pelos autores com a inten- Palavra derivada de"campo", que tem sua origem na palavra latina campus (MAGNE, 1953),
ão de que essas fontes instiguem outros estudos sobre determinado assunto. acampamento é o ato ou efeito de acampar ou, ainda, o lugar onde se acampa. Como
sinónimo de acampamento, encontra-se, também, a palavra"acantonamento", originária
Nosso anseio é que a obra auxilie o trabalho didático de académicos de diver-
do verbo acantonar, vinda, por sua vez, da palavra francesa cantonner(BwNo, 1966).
os cursos de graduação, estudantes no nível de pós-graduação (Especialização, Mes-
rado e Doutorado) e professores de instituições de ensino superior que lecionem Há em todo o Brasil, principalmente na Região Sudeste do País, a presença de
.isciplinas relacionadas ao lazer, estimulando reflexões sobre o assunto. Esperamos, uma centena de espaços de lazer chamados de acampamentos de férias e, em alguns
inda, que o Dicionário enriqueça o estudo de pessoas, em geral, interessadas em casos, de acantonamentos de férias, que são locais destinados a receber grupos de
profundar conhecimentos sobre o lazer. crianças e adolescentes nos períodos de férias escolares ou, ainda, grupos de escolas,
igrejas, famílias e empresas em outras épocas do ano. Para a realização dessas tempo-
radas, os locais são dotados de infra-estrutura física, material e humana para recepcio-
Christianne Luce Gomes nar, hospedar e animar os participantes por períodos de até 25 dias, realizando ativida-
[Organizadora] des culturais de acordo com os variados interesses propostos por Dumazedier.
Atividade realizada no País desde meados da década de 1940, de inspiração
americana, foi inicialmente desenvolvida pela Associação Cristã de Moços (ACM),
desenvolvendo atividades com seus associados. Posteriormente, foi fundado, em 1947,
o Acampamento Paiol Grande, sociedade civil sem fins lucrativos, primeiro acam-
pamento do País a possuir uma área própria para a realização de suas atividades,
iniciada com a temporada de férias de janeiro e fevereiro de 1948, com cerca de 70
rapazes, entre 10 e 16 anos.
Espaço importante para a convivência e a troca de experiências entre os parti-
cipantes de variadas idades, os locais contam, em seus quadros de recursos huma-
nos, com a atuação de profissionais e estudantes de diversas áreas de formação, como
educação física, turismo, pedagogia, arte-educação e outras que deveriam atuar como
mediadores entre os participantes e as atividades a se realizarem no local.
Nesse sentido, as possibilidades de atuação profissional são bastante grandes,
principalmente com relação à organização e à orientação de atividades, existindo
atualmente um número variado de opções voltadas aos mais diferentes tipos de acam-
pamentos, como locais em que o trabalho realizado está relacionado ao desenvolvi-
mento dos esportes (basquetebol, hipismo, ténis), ao estudo de línguas, a diabéticos,
dentre outros.
A seleção dos profissionais à monitoria das atividades é feita, geralmente, por
entrevistas e mediante um treinamento no local onde o acampamento vai ser reali-
zado. As características procuradas nos candidatos estão relacionadas, principal-
mente, a aceitação da filosofia de trabalho do local, à estética pessoal do candidato, à
necessidade da pessoa de gostar do trabalho com crianças e adolescentes e ser extro-
vertida, situação que leva ao entendimento equivocado de que o bom profissional é

:IONAWO CRITICO DO LAZER] [ACAMPAMENTO] 9


Essa pesquisa chega a pormenores inusitados em relação às questões pertinentes
aquele associado à pessoa mais "palhaça", engraçada (confundindo seriedade na ação
aos acampamentos, por exemplo, a interferência do adulto no brincar das crianças e ado-
profissional com sisudez, daí a importância de a pessoa ser extrovertida), e com isso
lescentes. Um dos motivos da interferência é a obrigatoriedade na participação das ativi-
perdendo-se os limites necessários a uma boa atuação profissional.
dades de lazer. Essa é uma questão que ocorre, embora os discursos oficiais afirmem o
Entre as características apontadas por vários estudiosos na área do lazer como im- contrário, o que revela uma falta de coerência entre o discurso da direção dos locais e a
portantes em um animador cultural, a de maior presença, talvez, seja a questão da ligação ação efetivada durante a realização das atividades.
afetiva com a prática, sendo muito comum em acampamentos, por exemplo, a presença A ocorrência dessa obrigatoriedade é criticada até mesmo por alguns profissio-
de pessoas com 16 e 17 anos, ex-partidpantes que, por questão de idade, não podem mais nais do acampamento entrevistados na pesquisa de campo, embora afirmem que
ser acampantes. Com raras exceções, é exigida na seleção dos candidatos a competência realizam seu trabalho mesmo discordando dele, pois é preciso "vestir a camisa do
técnica específica para a realização das funções de monitoria de atividades. local", uma vez que concordaram com a filosofia de trabalho desenvolvida no espa-
A forma de "contratação", geralmente, está relacionada ao trabalho comofree- ço, e explicada no treinamento, antes da temporada de férias.
lancer, ou seja, as pessoas são chamadas pela própria gerência e/ou coordenação dos Para as crianças e adolescentes, essa questão também não passa despercebida.
locais, que possuem um rol de interessados e que vão participando à medida que há Para eles a obrigatoriedade acontece, pois em diversos momentos da programação
disponibilidade de tempo para a realização do trabalho, sendo paga a remuneração faltam opções, o que os levam, obrigatoriamente, a participar da atividade proposta e
de acordo com o número de dias trabalhados. Esse tipo de inserção no mercado de ainda são insistentemente convidados pela monitoria das atividades.
trabalho revela a precarização das relações trabalhistas nesses espaços, em que grande Segundo a pesquisa, a ocorrência dessa situação fez criar, num grupo de crian-
parte das pessoas atua como mão-de-obra informal e de alta rotatividade, de baixo ças em um dos acampamentos, determinada forma de organização contra esse tipo
custo para o empregador. O local funciona como um "bico" para o empregado, uma de obrigatoriedade para minimizar a situação adversa. Apesar de toda a pressão, um
vez que trabalha sem qualquer vínculo empregatício, colocando em evidência a ques- dos participantes revelou que é fácil burlar a obrigatoriedade, o que mostra a resistên-
tão do profissionalismo no lazer. Essa informalidade, reflexo da situação social do cia das crianças em relação a esse problema. Segundo o relato, em último caso basta ir
País, é encontrada em outros espaços de atuação semelhantes aos acampamentos de para a enfermaria e dizer que não está se sentindo bem. É a senha para escapar da
férias, como os hotéis de lazer e clubes sociais. atividade. Esse tipo de situação ocorria, principalmente, em atividades que exigiam
correr pelo acampamento, cuja dificuldade está relacionada ao desnivelamento do ter-
No entanto, é importante destacar que, embora o mercado de trabalho em acam-
reno. Na enfermaria, era comum encontrar esses grupos sentados, conversando entre si
pamentos de férias tenha uma abrangência muito grande, ainda se caracteriza como
ou com as enfermeiras, sem qualquer problema aparentemente maior que os impedis-
uma atividade, geralmente, marcada por uma visão bastante restrita em relação aos
sem de participar das atividades.
estudos relativos à área do lazer, entendida como uma área de "fácil" atuação, aberta
Dada a ocorrência de questões como essa, entende-se que a atuação desses pro-
a todos os interessados, mesmo àqueles sem qualquer qualificação profissional. As-
fissionais não tem privilegiado a vivência do elemento lúdico para as crianças e ado-
sim, fica evidente, na maioria dos espaços, a falta de uma política básica de recursos
lescentes participantes, caracterizando a ação não como mediadora entre a cultura
humanos, tanto no que diz respeito a sua seleção, formação e atuação, quanto em
que a criança traz consigo e o acampamento e suas possibilidades de lazer, mas como
relação ao desenvolvimento de uma ação específica na área do lazer.
centralizadora em todas as tomadas de decisão.
Pesquisa realizada em dois tradicionais acampamentos do Estado de São Pau-
lo revela a necessidade de um repensar na atuação dos profissionais nesses locais, Edmur António Stoppa
pois, geralmente, a ação é realizada sem qualquer sustentação teórica na área do
Bibliografia
lazer que possa fundamentar tanto a formação específica de profissionais para o BUENO.F.S. Grande dicionário etimológico prosódico da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1966.
exercício da função, quanto a filosofia de trabalho, apoiada apenas nas experiências
MAGNE, A. Dicionário etimológico da língua latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1953.
acumuladas com o passar dos anos, situação importante, mas que, por si só, não
STOPPA,E.A.Acampamentos deferias. Campinas: Papirus, 1999.
se basta, haja vista que deve ser embasada pela teoria ou teorias relativas à área
WERNECK, C. L.; STOPPA, E. A.; ISAYAMA, H. F. lazer e mercado. Campinas: Papirus, 2001.
do lazer. (STOPPA, 1999)

[ACAMPAMENTO] '11
10 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
ANIMAÇÃO CULTURAL Já na perspectiva interpretativa, o animador atua como um "formador cultu-
ral". Como considera que as subjetividades são absolutamente diferentes e toda rea-
Essa expressão pode ser definida como uma das possibilidades de intervenção peda- lidade particular, entende que deve, sim, interpretar as necessidades do grupo, mas
gógica nos momentos de lazer. O termo "animação" é originário do grego "anima", apenas oferecer um conjunto de atividades, convidando as pessoas a tomar parte no
que, traduzido para a língua portuguesa, significa "alma". Define a peculiaridade de processo de reflexão. Acaba, assim, desconsiderando as tensões culturais que edu-
ação de um profissional que tem a cultura como foco e estratégia central de atuação. cam de forma restrita o gosto e funcionam mesmo como elementos impeditivos de
Epistemologicamente, parece-nos mais adequado do que outras expressões corren- um acesso mais amplo às diversas linguagens nos momentos de lazer. Além disso,
temente utilizados no Brasil, como recreação e ação cultural. crê que basta educar subjetividades para que a coletividade seja modificada, não
Algumas ressalvas, contudo, precisam ser feitas: a) a Animação Cultural não é percebendo que os indivíduos devem aprender e ser estimulados a construir ações
conjuntas. Nesse sentido, também acaba contribuindo modestamente para a cons-
exclusiva do âmbito do lazer; podemos, por exemplo, também pensar em ações dessa
trução de um novo modelo de sociedade. Essa é uma perspectiva muito encaminha-
natureza rio espaço escolar, algo que tem estado em voga nas recentes teorias peda-
da por museus e centros culturais, por exemplo.
gógicas que se aproximam dos Estudos Culturais; b) existem diferentes propostas de
Animação Cultural ligadas às peculiaridades do campo de intervenção, à visão de O animador cultural que atua a partir da perspectiva dialética pretende cons-
mundo, às intencionalidades e ao compromisso social do profissional de lazer; c) se truir uma democracia cultural. Entendendo que a realidade é complexa e historica-
não é a única possibilidade de atuação no âmbito do lazer, tem sido comumente abor- mente construída, percebe que é fundamental gerar movimentos comunitários. Não se
dada por estudiosos do assunto; d) é de alguma forma tematizada por várias disci- trata de impor uma programação nem somente convidar, mas gerar propostas em con-
junto com o público, a partir de seu envolvimento, crendo em estratégias de mediação
plinas académicas: Antropologia, Comunicação Social, Arte, Educação Física, Psico-
para ampliar o grau de compreensão e de vivências culturais do grupo. Espera que a
logia, Serviço Social, dentre outras.
comunidade envolvida possa paulatinamente desvelar os mecanismos e se empenhar
Existem muitas expressões que, mesmo preservando certas especificidades, se na sua emancipação. Por isso, acreditamos que esta perspectiva possa constituir uma
aproximam conceitualmente da Animação Cultural: promoção cultural, difusão cul- ação transformadora da sociedade.
tural, ação cultural, desenvolvimento cultural, dentre outras. Na França e na Espa-
Didaticamente, para que se compreenda melhor a natureza de intervenção do
nha, mais comumente, utiliza-se o termo Animação Sodocultural. Nesses países, existe animador cultural, podemos reconhecer três grandes padrões de organização cultu-
até mesmo uma formação, em nível superior, específica para a preparação do profis- ral que, obviamente, devem ser concebidos a partir da lógica de trocas e circularidade. A
sional, próxima da Educação Social. Já na Inglaterra, é corrente o uso da denomina- chamada "cultura erudita" é aquela relacionada a manifestações que historicamente se
ção Desenvolvimento Comunitário Sociocultural. organizam em escolas e/ou tendências que reúnem manifestações que apresentam carac-
José António Caride Gomez (1997) classifica as perspectivas de Animação terísticas em comum (barroco, surrealismo, por exemplo), reconhecidas por instituições
Cultural em três grupos: tecnológico, interpretativo e dialético. Na primeira pers- sacralizadas (museus, bibliotecas), nas quais se destacam grandes ícones (Rembrandt,
pectiva, o profissional atua como um "engenheiro cultural", verticalmente identi- Salvador Dali, por exemplo). Por estar de alguma forma ligada às classes dominantes,
ficando e implementando o que julga necessário para seu público, serh solicitar possui caráter normativo, estabelece padrões estéticos e suas instituições possuem certo
uma participação ativa deste na definição dos caminhos a seguir: o animador é o grau de prestígio e poder de decisão.
único responsável por descrever e prescrever ações e soluções. Compreende a rea- A chamada"cultura de massas" é a chave da constituição da sociedade do espetá-
lidade como genérica e o grupo como homogéneo, determinando hierarquicamente culo. Comumente são produções de caráter comercial denotado, de fácil acesso, de qua-
os comportamentos que devem ser observados. Por desconsiderar as subjetivida- lidade discutível, menos elaboradas do ponto de vista estético. Certamente temos que
des e deixar pouco espaço para a participação crítica dos indivíduos, julga-se que tomar cuidado com preconceitos, não reforçando a ideia de que somente o que vem da
nessa perspectiva há poucas possibilidades de contribuição para a superação da cultura erudita possa e deva ser valorizado. Mas também não podemos cair na apreen-
ordem social. É a mais comumente encontrada no âmbito do lazer nas atuações são simplista de que tudo é igual, cabendo às pessoas escolher o que acham de boa
dos "recreadores tradicionais". qualidade: há tensões culturais que devem ser cuidadosamente consideradas.

12 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [ANIMAÇÃO CULTURAL] 13


O acesso restrito à "cultura de massas", fartamente incentivado pelos meios de ofissional que educa ao incomodar e informar sobre as possibilidades de melhor
comunicação, tem grande relação com a manutenção do status quo, não só porque orver, acessar e produzir diferentes olhares.
as manifestações constituem-se como poderosos mecanismos de difusão de represen-
tações, como mesmo porque podem encaminhar uma lógica ascética restritiva. Deve- Victor Andrade de Melo
mos ter claro que tais manifestações são normalmente construídas em razão de modas
Bibliografia
temporárias e de relações impessoais, produtos descartáveis logo substituíveis. Não
AUGUSTIN, Jean-Pierre, GILET, Jean-Claude. L 'animation professionnelle. Paris: UHarmattan, 2000.
podemos, contudo, deixar de perceber que os enquadramentos não são lineares e, mes-
BERNETJaumeTrilla.AmmaciónsodocwZfura/: teorias, programas y âmbitos. Barcelona: Ariel, 1997.
mo, que existem produtos híbridos no âmbito desse modelo de organização.
GOMEZ, José António Caride. Paradigmas teóricos em Ia animación sociocultural. In: BERNET, Jaume
O terceiro padrão refere-se à chamada "cultura popular", uma produção ligada a Trilla. Animación sociocultural: teorias, programas y âmbitos. Barcelona: Ariel, 1997. p. 41-60.
determinada tradição, com poder restrito, a não ser quando estabelece contatos com os MELO, Victor Andrade de. Educação estética e animação cultural. Licere, Belo Horizonte, v. 5, n. l,
outros padrões. Com isso não devemos encará-la como estática, mas sim desconfiar p. 101-112,2002.
dos graus de intercâmbio com outros níveis de organização, nem tampouco como apá- MELO, Victor Andrade, ALVES JÚNIOR, Edmundo de Drummond. Introdução ao lazer. São Paulo:
tica, mas identificar os seus mecanismos de resistência pela ressignificação. Manole,2003.
Tendo em conta tais padrões, o desafio do animador cultural é difundir as mani-
festações da "cultura erudita", estimulando que os indivíduos se entendam como pos-
síveis produtores (quando confeccionam algo e/ou quando dialogam criticamente com
ARTE
o produzido); lidar estrategicamente com a "cultura de massas" não no sentido de ser
estritamente contra, mas no de paulatinamente contestar seu sentido restritivo; e di- O conceito de arte tem sido uma busca constante e motivo de polémica desde a Anti-
fundir e colaborar com esforços de recuperação dos elementos da "cultura popular". guidade grega, muito anteriormente ao surgimento da Estética, entendida como uma
A intervenção cultural não se trata somente de pensar nos conteúdos e valores, disciplina filosófica específica para o estudo dos modos específicos de apropriação
mas também nas representações e sensibilidades. Determinadas percepções e sensi- da realidade, na qual se destacam as questões ligadas à sensibilidade. Vale destacar,
bilidades podem se ajustar ou contestar determinado conjunto de valores, mas muito aliás, que se no âmbito dessa disciplina se observam reflexões sobre as manifesta-
dificilmente poderão prescindir dele. Ao observarmos de forma mais complexa e di- ções artísticas, estas não são exclusivas; a preocupação é com todo conjunto de rela-
nâmica tal articulação, pode-se até mesmo dizer que as sensibilidades, simultane- cionamentos no qual se destaque a mediação das sensações.
amente, expressam e contestam conjuntos de valores, da mesma forma que os valo- Se a estruturação dessa disciplina data do século XVIII, desde os gregos se dis-
res se ajustam e contestam determinadas percepções. Há uma forte e contínua relação cutia o que seria a arte e qual seria sua função, debates de alguma forma conectados
entre forma e conteúdo.
com as reflexões acerca dos conceitos de beleza e de sua relação com a compreensão
Com isso, lembramos que a Animação Cultural é também, e talvez fundamental- do que seria verdade. Em Platão, por exemplo, podemos identificar certa oposição en-
mente, um processo de educação estética, de educação das sensibilidades, o que pode tre arte e filosofia, fruto de uma disputa pela supremacia na produção de conhecimen-
permitir aos indivíduos desenvolverem o ato de julgar e criticar a partir do estabeleci- to. Compreendia-se que a arte somente imitaria a vida, permitindo, portanto, um simu-
mento de novos olhares acerca da vida e da realidade. A Animação Cultural não deve lacro de entendimento. Enquanto isso, a Filosofia transcenderia e permitiria o acesso
negligenciar que há um claro processo de empobrecimento das sensibilidades, enten- aos objetos em si, em decorrência de sua possibilidade de contemplação.
dendo que isso tem relações com a redução da capacidade de pensar e de se posicionar Estavam lançadas as bases de uma compreensão que, ora mais ora menos, vai
criticamente. Por isso é que compreendemos que a educação estética pode transformar perpassar a história da sociedade ocidental: o conhecimento racional é o que deve
a existência cotidiana injetando nela um princípio fundamental de liberdade e escolha. ser mais valorizado. Com isso, aponta-se um caminho de separação, de distancia-
Podemos conceber a atuação do animador cultural como a de um estimulador mento entre a arte e a vida, algo que traz impactos e deve ser cuidadosamente consi-
de novas experiências estéticas, alguém que, em um processo de mediação e diálogo, derado na intervenção do animador cultural. Há um rosário de equívocos historica-
pretende apresentar e discutir, induzir e estimular o acesso a novas linguagens; um mente construídos que precisam ser desfeitos urgentemente na contemporaneidade.

[DICIONÁRIO CRITICO no LAZER]


[ARTE] 15
Depois de um longo percurso de tentativas de definição da arte a partir de sua funcionar como dificultador de sua fruição e de sua produção, aqui entendida tanto
essência, mais recentemente podemos destacar a contribuição de Morris Weitz (1955). como confecção como possibilidade de diálogo crítico. Não há uma essência, mas
O autor defende que a própria lógica da produção artística desautoriza qualquer ten- sim uma existência (construída de forma múltipla) que define o papel que ocupa na
tativa de defini-la pela essência, já que é um campo que se caracteriza notavelmente sociedade. Esta forma de existir, entretanto, não pode ser encarada como único parâ-
por ser aberto e mutável em razão da constante busca de originalidade. Propõe, assim, metro de definição, e sim como desafio para que se concebam diversas formas de
que abandonemos a busca por uma definição do conceito, chamando a atenção para ampliação de seus sentidos, de seus significados, de suas formas de vivência.
que possamos compreender uma dupla dimensão: a classifícatória e a apreciativa: nem Vale a pena destacar que, a partir dessa perspectiva, tem sido comum a recupe-
tudo que é rotulado como "arte"é, dessa forma, vivenciado pelas pessoas. ração do pensamento pedagógico de John Dewey: a arte como experiência. Esse au-
A partir dessa provocação, novos estilos de definição começam a ser gestados. tor não tinha por objetivo definir de forma categórica o que é arte, mas construir
Desloca-se o eixo da busca das propriedades da arte para seu processo de geração, conceitos que permitissem que com ela trabalhássemos de forma a ampliar os li-
para a organização do campo. Essa preocupação está, por exemplo, contemplada na mites de suas compreensões habituais. Não se trata de estabelecer uma verdade
teoria institucional da arte proposta por George Dickie (1971). Para ele, quem deve acerca da arte, mas repensá-la a partir do entendimento de sua importância, de
definir o que é uma manifestação artística são os indivíduos e as instituições que seu papel na vida dos indivíduos, de sua função social, encarando-a fundamental-
transitam nesse campo de relações. mente como uma forma específica de contato com a realidade, que traz impactos
Se a proposta de Dickie avança no sentido de chamar a atenção para o contexto para além da própria obra em si. Se também tal proposta apresenta limites e pos-
social, rearticulando arte e sociedade, é limitada na medida em que é puramente sibilidades de crítica, parece que permite encaminhar profícuas perspectivas de in-
formal. Na verdade, o autor não só não resolve o problema de definição com sua isen- tervenção pela e a partir da arte.
ção, como também acaba por limitar o campo a seus extratos mais estandartizados. A arte poderia ser entendida como o que as pessoas sentem como arte. A ques-
Tal compreensão acabaria por excluir grande parte das possibilidades de inovação e tão passa a ser que condições concretas os indivíduos têm de sentir ou não a partir
criação; a produção dos Impressionistas e de Van Gogh, só para ficar nesses exem- de determinadas obras. Obviamente há uma relação clara entre as condições obj.e-
plos, só seria considerada como artística muito depois de sua ocorrência, já que hou- tivas (o económico, as possibilidades de acesso, a oportunidade de experiências, os
ve resistências claras no momento em que emergiram; se formos pensar na arte con- estímulos no decorrer da vida, por exemplo) e as vivências subjetivas. Os indivíduos
temporânea, tal fato se tornaria ainda mais limitante. Além disso, elimina um grande deveriam ser educados e oportunizados a ampliar as suas possibilidades de extrair
conjunto de obras que não frequentam museus, centros culturais e/ou são menos sensações de manifestações as mais diversas possíveis. Ressignifica-se, com isso, o
visualizadas pelas instituições nem sempre atentas do mundo artístico. papel da arte na vida dos indivíduos e o espaço que ocupa nas agências de formação
Mais ainda, em um mundo onde o mercado é extremamente voraz, segmentado e (escola, família, tempo livre).
discriminatório, tal teoria seria no mínimo perigosa para o próprio desenvolvimento Ao mesmo tempo, os indivíduos devem ser estimulados a se compreender como
artístico e para pensarmos a questão da produção e da difusão cultural. produtores, não aceitando os limites, muitas vezes rígidos, impostos pelas institui-
Já Arthur Danto (1981) tende a conceituar a arte em razão de sua ocorrência ções artísticas formais, o que pode desautorizar suas críticas pessoais acerca das
histórica: seria aquilo que, em cada contexto específico, fosse definido como tal. Se obras e desconsiderar sua formas específicas de manifestação a partir de um critério
Danto critica Dickie por sua falta de compreensão histórica, no fundo acaba incor- duvidoso de qualidade.
rendo em problema semelhante, pois quem vai definir o que é arte em cada momen- Assim, o posicionamento de alguém que não seja crítico profissional deve ser
to senão os indivíduos e instituições ligadas ao mundo artístico? também considerado e não descartado a priori como "opinião de um não entendi-
Mais recentemente, tende-se a definir a arte como uma prática sociocultural. do", ainda mais se estiver pautado em construções de conhecimento constantes acer-
Assim sendo, solicita uma preparação prévia no sentido de ser vivenciada plena- ca do acessado. As manifestações artísticas também não podem ter seu valor julga-
mente e de compreensão de suas peculiaridades, que se não observada, mesmo que do de forma apriorística, de maneira preconceituosa: o samba pode ser tão arte
não funcione como elemento absolutamente impeditivo de seu acesso, pode, sim, quanto a música clássica; a pintura naifnão é menos valorosa do que as obras

[DICIONÁRIO CRfnco DO LAZER] [ARTE] 17


expostas em famosos museus; a dança das ruas pode ter um status artístico tão respei-
Ao contemplar os interesses artísticos em seu programa, o profissional de lazer
tável quanto o do bale clássico. A valor da manifestação não deve ser estabelecido por
deve ter em vista que deve contribuir para educar a sensibilidade de seu público-
algo que venha de fora, mas construído a partir dos efeitos que ocasiona nos diferentes
alvo, apresentando, em um processo paulatino de mediação e diálogo, novas lingua-
indivíduos, considerando que estes devem ter acesso a processos de formação.
gens e possibilitando a vivência de novas experiências, a partir das quais pode cons-
A experiência estética é o grande valor das obras de arte, aquilo que devem truir conhecimento acerca das peculiaridades de cada manifestação em sua
ocasionar. Sem essa experiência, esvazia-se a potencialidade de sua intervenção. diversidade de correntes e propostas. Obviamente nesse processo não cabe precon-
Um quadro bastante valorizado por uma instituição famosa não deixa de ser arte ceito a priori com qualquer manifestação. O intuito não é de se posicionar contra
quando não é reconhecido por um indivíduo, mas para ele deixa de ser encarado qualquer forma de organização artística, mas de ampliar os limites de experiência
como tal. O potencial da arte está na sua experimentação e no que desencadeia a estética dos indivíduos, dando condições para que se possa escolher com mais clare-
partir dessa vivência. Quando permite ao indivíduo exercer sua possibilidade de za e critério, de acordo com os desejos e escolhas.
crítica e de escolha; quando amplia, ao incomodar, as formas de ver a realidade;
Não se trata de somente incorporar esses interesses na perspectiva da contem-
quando educa para a necessidade de olhar cuidadosamente (tão importante em
plação. Podemos (e devemos) também contribuir para despertar nos indivíduos seu
um mundo de signos e símbolos); também quando desencadeia vivências praze-
senso de produção artística. Não se trata de trabalhar no sentido de formar renoma-
rosas (embora estas não devam ser consideradas como único padrão de julgamen-
dos artistas plásticos, músicos ou escritores, mas sim estimular em cada um as sen-
to: por vezes não é essa a intencionalidade do artista), a arte cumpre sua função
sações ocasionadas pelo ato de pintar, cantar, tocar, representar, escrever. Ainda mais,
social. Quando cumpre esses papéis, a arte extravasa sua existência para além da
estimular a percepção de que se essa produção pode se dar em diálogo com o que já
manifestação em si. Quando não, as obras podem não passar de algo amorfo para
alguns, privilégio de uma minoria. existe configurado, não necessariamente precisa se comparar ou se limitar ao que já
é valorizado pelo circuito de produção artística.
Perceba-se que não estamos a falar da arte como meio de educação. Ela é
uma parte importante de nossa vida (somente não assim reconhecida em razão Victor Andrade de Melo
dos quadros de tensões sociais) e possui uma ligação inextricável com a realidade.
Portanto, a experiência artística (compreendida, ressalte-se, como produção de um Bibliografia
objeto específico, mas também como diálogo crítico com as obras) passa a ser uma BARBOSA, Ana Mae. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.

vivência fundamental para que os seres humanos melhor compreendam o que está FARIAS, Agnaldo. Arte brasileira hoje. São Paulo: Publifolha, 2002.

a seu redor. A arte não tem uma função, é uma função. Não se trata somente de JIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999.

pensar em uma educação pela arte, mas, fundamentalmente, em uma educação MELO, Victor Andrade. Educação estética e animação cultural. Licere. Belo Horizonte, v. 5, n. l, p. 101-
para a arte. 112,2002.
MELO, Victor Andrade; ALVES JÚNIOR, Edmundo de Drummond. Introdução ao lazer. São Paulo:
Para tal, então, como profissionais de lazer, devemos investir em processos de Manole,2003.
educação artística que, na verdade, se estruturariam como de educação estética. Al- SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arfe. São Paulo: Editora 34,1998.
guns parâmetros claros devem ser observados: a) a necessidade de superação do dis-
tanciamento entre a arte e a vida: tem uma existência concreta, expressa uma apre-
ensão acerca da realidade, não é menos importante do que outras formas de
BRINCADEIRA
conhecimento; em uma última instância, podemos falar da possibilidade de viver a
vida como uma arte; b) a necessidade de compreender com profundidade e ampli- São diversos os estudos, as questões, bem como as contradições que envolvem a com-
dão o papel e a função da arte: deve desencadear sensações naqueles que a procuram preensão do brincar e da brincadeira. Concepções distintas, usos, utilidades e sensi-
(ser experienciada corporalmente), não pode ser ascética, não é para poucos privile- bilidades divergentes; diferentes olhares sobre um conhecimento e uma experiên-
giados, é uma forma de expressão acessível a todos. cia que requerem, antes de tudo, ser tomados do ponto de vista de um fenómeno

PICIONARIO CRITICO DO LAZER]


[BRINCADEIRA] 19
cultural, identidade inalienável do humano, expressão da condição humana: cultu-
Contudo, não há uma verdade única sobre o brincar e há muitas investidas para
. ral, histórica, ética, estética e política. Animais não brincam! Os seres humanos, ao
dele se apropriar fazendo usos os mais diversos. Também é importante ressaltar que o
observarem determinados comportamentos dos animais, os categorizam a partir
brincar é contextualizado e carrega, por isso, as marcas do contemporâneo, tornando-
daquilo que se assemelha à sua condição humana. O brincar radicalmente se mani-
se a própria representação de uma sociedade que coloca para si ideias e ideais de pra-
festa como dimensão que é simbólica, constitui inserção cultural, se expressa como
zer individualidade, consumo, provisoriedade, descartabilidade. O brincar, nesse senti-
linguagem e como processo de elaboração de significados e sentidos coletivos, con-
textualizados e enraizados no universo social que o legitima. do, acaba sendo usado paradoxalmente não como fonte de criação e produção do mundo,
mas como artefato de reprodução de estruturas que devem ser ensinadas às crianças,
No sentido de Vigotski (1998), brincadeira não é sinónimo de prazer, o brincar tanto no sentido técnico quanto moral, transformados em conhecimento e padrão de
não é espontâneo, o brincar não é natural nem próprio das crianças, ainda que se comportamento futuro. É, necessário, pois, atentar para alguns discursos correntes so-
expresse pelas/nas crianças em suas formas mais genuínas. O brincar só pode ser bre as brincadeiras e seus muitos equívocos, como os exemplos a seguir.
compreendido como processo de inserção em um tempo-espaço de aprendizados
demarcadamente sociais. Para Brougére (1994), expressa uma necessidade humana de Brincadeira pedagógica: as brincadeiras são chamadas pedagógicas quan-
explorar os objetos culturais de forma a ampliar o universo simbólico que potencializa do relacionadas diretamente ao que se considera como aprendizagens escolares, na
as mais diferentes representações do real. Constitui-se, por isso, como imaginação e maioria das vezes articuladas a uma ideia de alfabetização e de aprendizagens mate-
narrativa, processo de problematização e reconstrução da realidade. Alguns autores máticas. São diferentes jogos que promovem o diálogo das crianças com as letras e os
procuram diferenciar brincadeira de jogo, afirmando que a brincadeira não possui um números, um esforço para dar um tom mais agradável ao que se quer ensinar. Uma
sistema de regras que estruturam sua experiência. ideia de"atividade lúdica" aparece intimamente relacionada a uma ideia de fazer com
prazer. Esse discurso carrega consigo o paradoxo de afirmar que o que as crianças
O brincar e a brincadeira, mais que conceitos, materializam-se como concep-
têm para fazer, conhecer e aprender é tão monótono que precisa de outra roupagem
ções e princípios profundamente complexos: quanto mais os tentamos agarrar,
para se tornar mais agradável.
mais eles se dissolvem e nos contradizem. Afirmo que a brincadeira expressa uma
das formas mais sutis e sofisticadas de partilha de regras, por mais tácitas que sejam. Brincadeira recreativa: denominada como "recreação" ou "atividade recrea-
Uma brincadeira entrecruza histórias, tempos e espaços. Não se brinca apenas com tiva", normalmente, está relacionada a uma ideia funcional de ocupação do tempo
um objeto. Brinca-se com uma memória coletiva que muitas vezes transcende quem ou "recuperação/desgaste de energias acumuladas"; ou, como assinala Kuhkmann Jr.
brinca e o próprio momento da brincadeira: objetos, tempos, substâncias, regiões, (2000), essa concepção se fez presente na educação das crianças, principalmente, a
épocas, cidades, países, estações do ano, rituais, os mais amplos e ricos contextos partir da década de 1940, quando as crianças eram tomadas como único elemento
humanos. Prefiro dizer que toda brincadeira consiste num jogo, no sentido mais ple- da relação pedagógica, o que produziu um afastamento do lugar do adulto das rela-
no da construção de regras e instauração de uma dinâmica coletiva de significação ções pedagógicas, reforçando outro entendimento de "ludicidade" relacionado à ideia
de suas relações.
de atividades espontâneas e prazerosas por meio das quais as criança entrariam em
Contudo, nem todo jogo é uma brincadeira, nem todo jogo se expressa como contato com o ambiente e com os objetos, sendo esses os princípios fundamentais de
possibilidade de reconstrução e ressignificação da realidade, o que pressupõe, se- mediação do seu desenvolvimento.
gundo Souza (1996), uma produção "lúdica" (dimensão dos sujeitos e linguagem
Brincadeiras livres: essa noção é comumente utilizada para os momentos
que expressa uma racionalidade que envolve o corpo, a memória, o simbólico e um
em que as crianças brincam sem uma interferência direta do adulto, deixando que
universo de significação coletiva e não individual) ou, no sentido de Benjamim
elas mesmas escolham e construam suas brincadeiras. Reforça um discurso que pro-
(1984), uma possibilidade de experimentar e narrar uma história a partir do que,
cura valorizar a autonomia das crianças sem que, na maioria dos casos, se tenha
muitas vezes, foi tomado como "lixo" dessa própria história: aquilo que foi/é des-
clareza da concepção que traz, o que acaba por reforçar formas individualizadas de
cartado por sua aparente inutilidade pode ser (re)humanizado, (re)significado,
expressão da criança, pouco problematizando as tensões e contradições que emer-
(re)apropriado como sentido, significado e história. Nisso, certamente, as crianças
são as maiores mestras. gem das relações, não dimensionando a importância dos lugares dos adultos - por
isso, também, das crianças - nesse contexto. As crianças acabam abandonadas às
20 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

L
[BRINCADEIRA] 2
cantam a música que está sendo cantada na brincadeira e ficam sintonizadas com o
suas próprias relações como se, a priori, fossem capazes de resolver elas mesmas
que está sendo feito; há momentos em que elas também precisam ficar sozinhas an-
seus conflitos. As crianças sabem, sim, organizar-se, mas elas expressam as relações
tes que se disponham a estar com o grupo. Outras vezes é o contrário.
que conhecem; há tensões e relações de poder e muitas vezes vê-se reforçado justa-
É necessário, pois, atentar para a riqueza das relações que emergem em uma
mente algo que precisaria ser melhor trabalhado com as crianças na direção da cons-
brincadeira. Só é possível percebê-las no envolvimento; nem sempre se é capaz de
trução de suas relações e experiências. Como ressalta Benjamin (1984), a relação de
dar respostas imediatas e nem sempre é preciso assim fazer; o próprio desenrolar da
brincadeira evoca uma tarefa histórica: a da "orientação rigorosa", capaz de poten-
brincadeira, muitas vezes, apresenta as soluções necessárias. Por isso é necessário
cializar questionamentos às experiências e à vida, reconhecendo, no presente, possi-
clareza de intenções e dos lugares de adultos e de crianças. Brincadeira é coisa sé-
bilidades (esperança/utopia) de "libertar" o futuro de sua forma desfigurada.
ria? muitas vezes, parece que a importância da brincadeira, como lembra Wajskop
Brincadeiras dirigidas: as brincadeiras também são tomadas sob o ponto (1995, p. 22), só se evidencia mesmo quando, de alguma forma, está relacionada ao
de vista e estatuto de conhecimentos escolares que devem ser ensinados às cri- que histórica e comumente é reconhecido como "conteúdos","habilidades" ou "valo-
anças. Denominadas de brincadeiras dirigidas, acredita-se que exista uma ma- res" sociais ou escolares, justificando a presença e a possibilidade do brincar na edu-
neira "certa" de como as crianças devem brincar. Vê-se reforçada uma ideia de cação e em outros contextos.
que as crianças não sabem muitas brincadeiras ou não sabem brincar da ma- Dizer que o brincar e a brincadeira são coisas sérias reforça uma tentativa de
neira correta, o que inclui os gestos que devem fazer, as regras que devem respei- dar um estatuto de importância a partir da referência daquilo que o olhar adulto
tar e o comportamento que devem ter durante a brincadeira. O objetivo princi- considera importante, como o trabalho e a ciência; ou outros conhecimentos, como a
pal ressaltado para essas "atividades" é o de ensinar a brincadeira, mas não matemática, a leitura e a escrita, ou comportamentos disciplinados e considerados
necessariamente o de brincar. como adequados. O brincar, assim, adquire importância por subsidiar outras apren-
dizagens, mas não por seus temas, linguagem, tensões e suas relações específicas.
Brincar pelo brincar: buscando superar posturas que hierarquizam e/ou
Nem sempre a brincadeira do adulto é brincadeira para as crianças: às vezes os
secundarizam o brincar em relação a outras aprendizagens ditas escolares e procuran-
adultos criam uma circunstância chamando de brincadeira algo que para as crian-
do contrapor-se a uma ideia de "uso pedagógico" da brincadeira, lança-se mão de uma
ças não têm nada de brincadeira. As crianças fazem de tudo para se livrar dessa situa-
ideia abstrata e idealizada do brincar e da infância, na qual os conflitos e as tensões não
ção: dispersam-se e fazem bagunça; são ameaçadas, por exemplo, de não deixar fa-
são considerados nas relações. Sobressai uma concepção do brincar relacionada a uma
zer as brincadeiras seguintes caso não participem da brincadeira proposta. Essa é
ideia de relaxamento, prazer, distensão e autonomia individual.
uma situação extremamente paradoxal, e as crianças chegam a perguntar, no meio
da brincadeira, a que horas elas vão poder brincar.
Às vezes o brincar vira uma obrigação e deixa de ser brincadeira: a
brincadeira apresenta esse paradoxo, principalmente, para.a escola. Se, de um lado é A televisão também pode ser um tempo de brincadeira, mas precisa perma-
preciso afirmar que o brincar é sempre um convite, o que, muitas vezes, instaura nentemente de mediações. Em diferentes circunstâncias, as crianças são colocadas
uma contradição entre os tempos e espaços institucionais e os tempos e espaços dos em um lugar de extrema passividade, e a televisão parece ser utilizada como um
sujeitos, seus desejos e ritmos subjetivos, por outro, essa tensão também explicita objeto capaz de fazer, por ele mesmo, as mediações necessárias à sua apropriação. As
outro princípio e contradição permanente da brincadeira, que é sua dinâmica de crianças são colocadas diante do televisor como se qualquer coisa pudesse preen-
reconstrução e ressignificação permanente; a brincadeira ao mesmo tempo em que cher aquele momento. O uso da televisão não pode estar relacionado a mero preen-
se instaura como uma experiência coletiva de relação e significação, também é expe- chimento do tempo ou substituição das relações e interações humanas. Alguns pro-
gramas de televisão trazem representações absurdas das crianças, com o rótulo de
rimentada com sentidos profundamente distintos entre as diferentes pessoas que
programa infantil. Como exemplo, cito um quadro de um programa de uma apre-
brincam juntas, e até mesmo daquilo que foi colocado como foco prioritário. Há
sentadora que vem atravessando gerações, supostamente educando as crianças, mas,
muitas maneiras de participar de uma mesma brincadeira em um mesmo tempo e
sobretudo, gerando representações e expectativas de consumo: em um "clipe", a
lugar. Por exemplo, algumas crianças dizem que não querem ficar na roda com as ou-
apresentadora canta uma música que sugere movimentos corporais e conteúdos
tras crianças, mas quando "saem da brincadeira" ficam olhando as outras crianças,

22 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [BRINCADEIRA] 23


matemáticos. Sob o rótulo de educativo aparecem crianças repetindo um refrão BRINQUEDO
que traz na letra uma contagem numérica. Contudo, quem aparece, prioritaria-
mente, protagonizando a cena, é a própria apresentadora. Ao fundo, bem ao fundo, Na busca de uma conceituaçâo do brinquedo, encontramos diferentes maneiras de
completamente secundárias, aparecem uma criança, um macaco e um cachorro; concebê-lo. Assinalo, particularmente, um olhar sobre o brinquedo como parte in-
um tratamento pretensamente infantil, que menoriza a presença das crianças, que dissociável do brincar da criança e outra perspectiva que o tematiza como um pro-
coloca a criança, o macaco e o cachorro em um mesmo plano, como meros coadju- duto cultural, objeto reconhecido por adultos e crianças como brinquedo, que, inde-
vantes, para não dizer objetos. As crianças se divertem. Essa cena mobiliza uma pendentemente de estar sendo utilizado como "instrumento do brincar", não perderia
agitação. As crianças se levantam e ficam pulando e repetindo gestos e música. seu estatuto de brinquedo.
Isso não é secundário. É a incorporação de um lugar e de uma maneira de estar De um lado, o brinquedo é considerado suporte da brincadeira e, nesse sentido,
inseridos na cultura. Sujeitos ou objetos? Produção ou consumo? qualquer objeto pode tornar-se fonte da ação lúdica. Por exemplo, em uma institui-
Embora a resposta seja tensa e dialética, cabe, pois, lembrar que cada coisa que ção infantil, enquanto as crianças pequenas esperam pela hora de servir a merenda,
fazemos ou aprendemos faz parte de uma cultura, de uma tradição e de nosso siste- o prato em suas mãos vai aos poucos mudando seu sentido imediato: de utensílio de
ma coletivo de significações. Sempre podemos incluir, por mais imperceptível que cozinha a chapéu, volante de carro, tambor e novamente como lugar para colocar a
pareça, algo novo, algo que é nosso, que é fruto da nossa história, das nossas experi- refeição que ainda não foi servida. De outro, ressalto tanto os brinquedos industriali-
ências, de nossa imaginação. Podemos sempre reconstruir as regras, reinventar pala- zados quanto os artesanais como as bolas, as bonecas, os carrinhos e os objetos, em
vras e jeitos de falar, recriar o mundo com nossas pinturas, esculturas, festas, brinca- sua maioria feitos por adultos para crianças e que remetem ao universo infantil.
deiras, etc. Somos artistas e artesãos desse mundo. As crianças, nesse sentido, lembram Procuro entender o brinquedo de outra forma: pode-se falar de uma produção
ao adulto que cabo de vassoura também pode ser um cavalo e uma caneta pode ser cultural da criança e de uma produção cultural para a criança. Entretanto, mesmo
um foguete ou avião, que pode levar-nos a lugares e mundos jamais conhecidos, co- considerando essas duas dimensões, faço o exercício de não abordá-las de forma se-
nhecer pessoas, experimentar novas relações. A brincadeira, como concepção e prin- parada. A criança brinca tanto com os brinquedos que constrói quanto com os "brin-
cípio, nos faz lembrar como são ricas, diversas e múltiplas as maneiras de produção quedos" propriamente ditos, e mesmo quando o brinquedo traz uma imagem im-
dos sentidos, de nossa história e de nossa humanidade: se a história foi assim, ela pregnada de sugestões para o brincar, a criança ainda assim o subverte e lhe atribui
pode ser diferente; podemos vivê-la, partilhá-la, experimentá-la de formas diferen- novo sentido (como no caso de bonecos de soldados de guerra participando de bati-
tes, sobretudo imponderáveis.
zado de bonecas, chorando, namorando...). Os significados entrecruzados no brin-
quedo não estão descolados do processo de inserção da criança no mundo da cultura
José Alfredo Oliveira Debortoli e das imagens que o adulto constrói sobre a infância, a criança e seu brincar.
Bibliografia Embora a brincadeira não seja uma ação ou expressão específica e restrita às
crianças e ao tempo da infância, pode-se dizer que é uma das formas principais em
a. São Paulo: Cortez 1995 que elas constróem suas aprendizagens e conhecimentos. É quando tem início a for-
mação de seus processos de imaginação ativa, bem como se apropria das funções
sociais e das normas de comportamento social (FRANÇA,1990). Desde o nascimento,
^ as crianças estão inseridas num contexto social e o comportamento delas é construí-
do a partir dessa referência. Progressivamente, as crianças são inseridas no tempo e
espaço da brincadeira: primeiro com os pais, depois com seus pares.

desemoMment Durante esse processo, a criança aprende a compreender, a dominar e, depois, a

- ° produzir uma situação específica distinta de outras situações. A criança reconstrói


na brincadeira alguns elementos da realidade, a fim de que ela os compreenda segun-
do uma lógica própria. Nesse sentido, durante o brincar a criança formula hipóteses,
DO LAZER]
[BRINQUEDO] 25
para que possa compreender os problemas que lhe são propostos pelas pessoas e pela procuramos adequar o valor do brinquedo aquilo que acreditamos que ele mereça
realidade com a qual interage. Num espaço à margem da vida comurn, obedecendo a ou aquilo que podemos pagar. Contudo, não é só isso.
regras criadas pelos sujeitos brincantes diante das situações inesperadas que vão sur- Diante dos brinquedos, emitimos nossas opiniões sobre eles, demonstramos
gindo, as crianças brincam com o sentido da realidade mudando-o, transformando-o. nossa atração por alguns e repulsa por outros, avaliamos seu aspecto lúdico. Muitas
Durante a brincadeira, os objetos passam a ter outro significado. Se entendermos que o recordações, descobertas,dúvidas e estranhamentos...
brinquedo é todo e qualquer objeto que pela ação da criança torna-se suporte da brin-
O simples ato de comprar brinquedos nos insere num diálogo com a cultura da
cadeira, entendemos também que está na mão da criança a decisão de eleger, a partir
criança e com o imaginário construído sobre a infância em que estamos imersos em
da ação lúdica, os objetos que a ajudarão no processo de leitura do mundo. Durante a
nossa sociedade: imagens de infância guardadas em nossa memória, representações de
brincadeira o brinquedo estará ajudando a criança a reconstruir e a recriar alguns ele-
criança (diversas e contraditórias), frutos das práticas culturais estabelecidas na rela-
mentos da realidade, a fim de que ela os compreenda segundo uma lógica própria.
ção adulto-criança, do discurso de teóricos das mais diversas áreas do conhecimento,
O brinquedo como objeto industrializado ou artesanal, reconhecido como tal que buscaram construir um olhar diferenciado com relação a criança e suas brincadei-
pelos adultos e crianças, independentemente de ser utilizado ou não, continua sendo ras - (desde Rousseau (1999), passando por Frõebel (1913), Huizinga (1990), Benja-
brinquedo destinado à criança. Objetos feitos pelos adultos torna-se, nesse sentido, min (1984), Piaget (1978), Vygotsky (1996), Brougére (1995) dentre tantos outros) -,
produção cultural voltada para a criança.
do papel da cultura de massas e da cultura popular no fomento dessa imagem e, por
Um gesto muito presente em nossa cultura que pode nos auxiliar na tarefa de fim, mas não menos importante, nosso próprio diálogo com a criança que brinca.
reflexão sobre o significado da palavra brinquedo é a prática dos adultos de presen- Por mais que simplesmente compremos aquilo que as crianças nos pedem não
tear as crianças. O brinquedo adquire, dessa maneira, o significado de presente. O deixamos de emitir nossa opinião e, dessa forma, fazemos escolhas. Nossas escolhas
aniversário, o Natal, o Dia das Crianças, datas comemorativas, por exemplo, ensinam por determinados brinquedos refletem muitas vezes a imagem que nós adultos te-
às crianças a noção de tempo decorrido quando relembramos o dia do seu nascimento mos da criança (ou da nossa própria infância vivida) e uma preocupação sobre a
(aniversário), colocando-as em lugares de destaque ou mesmo em momentos em que imagem de mundo e de cultura que queremos valorizar (ou esconder) nos pequenos.
ela se torna o centro das atenções, o motivo e o sentido da festa. Diante do gesto de As campanhas pelo desarmamento, organizadas pela sociedade civil quando as cri-
presentear a criança, damos testemunho de sua importância em nossa sociedade, bem anças trocam suas armas de brinquedos por bolas ou bonecas, nos dizem muito so-
como de sua infância. Dentre os presentes, os brinquedos estão no topo da lista. bre essa questão. Afinal, o que colocaria na escala de valores a boneca e a bola como
Nos momentos de escolha do brinquedo, envolvemo-nos num processo de su- melhores que as armas de brinquedo?
cessivas e pequenas decisões. Quem, às vésperas do Natal, de um aniversário ou do Um aspecto bastante presente no brinquedo de nossos tempos, espantosamen-
dia das crianças decidiu sair para comprar brinquedos já viveu a angústia (ou eufo- te perceptível a partir do exemplo acima mencionado, é como a indústria cultural do
ria) da escolha: milhares de brinquedos, expostos em prateleiras, coloridos, convida- brinquedo e do entretenimento está cada vez mais presente nas relações entre a
tivos, novinhos, prontos para serem levados para casa e desembrulhados por mãozi- criança e o brinquedo, orientando, assim, novas e muitas vezes problemáticas for-
nhas ansiosas e sedentas de novidade. Por onde começar? Brinquedos tradicionais mas de brincar. Tenho dúvidas seja superamos algumas questões apresentadas pelas
ou os brinquedos da moda? Bonecos dos heróis dos seriados de TV, armas de brin- concepções críticas da cultura de massas interessadas na análise dos produtos cultu-
quedo, qual boneca escolher entre a enorme variedade de bonecas e bonecos dos
rais voltados para o público infantil, muito presentes na década de 1980. Hoje, mes-
mais variados tamanhos, estilos e nomes? Qual seria mais adequado à idade da
mo com alguns incómodos na aceitação de suas proposições, ainda assim as consi-
criança que vou presentear? Este brinquedo é seguro? Este brinquedo é educativo?
dero uma das explicações plausíveis no sentido de compreender a relação estabelecida
Essas poderiam ser algumas das perguntas que faríamos diante do brinquedo, nem
entre a indústria do brinquedo, a televisão e o brincar da criança. Na sua concepção,
sempre fáceis de responder.
a indústria cultural do brinquedo insere na relação criança-brincar a lógica da com-
Antes da compra, pesquisa: olhos e ouvidos atentos, anotamos os pedidos pra e venda, do lucro, da necessidade de despertar desejos na criança pelo objeto a
das crianças, assistimos aos anúncios de TV, ouvimos opiniões de especialistas, fim de atingir as prerrogativas acima. O brinquedo industrial se contrapõe ao brin-
lemos as informações contidas nas caixas que os protegem e também os anunciam, quedo artesanal. Ao brinquedo artesanal, feito pelo artesão, pai, irmão mais velho ou

DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]


[BRINOÍIEDO] 27

L
pela própria criança, único (porque nenhum ficava igual ao outro e porque traziam a (lógica do faz-de-conta), fornecendo representações manipuláveis de imagens com
marca autoral do seu criador), em que a criança reconhecia em seu conjunto os ma- volume, ao mesmo tempo em que possibilitaria a socialização e a integração
teriais com que foi produzido, despertando, com isso, sensações estéticas singulares, da criança ao universo codificado de determinada cultura. A propaganda, os
do brinquedo tradicional que traduzia os valores culturais, estéticos e espirituais do filmes publicitários de brinquedos caracterizariam o principal momento de encena-
grupo cultural ao qual a criança pertencia, contrapomos a visão do brinquedo in- ção de suportes de brincadeiras e situações lúdicas na TV.
dustrializado: feito de plástico, colorido produzido em série, em grande quantidade, Brougère supera a suposta dicotomia que apresento no início do texto. O brin-
produto pasteurizado, homogéneo, milhares de brinquedos iguais, traduzindo valo- quedo, de objeto de consumo destinado à criança, passa a ser visto como uma produ-
res culturais de um mundo globalizado. A parceria com a televisão potencializa ain- ção cultural dela, pois, traria a marca de uma relação ativa introduzida pela criança
da mais o valor atribuído ao brinquedo industrializado. Mal o desenho animado sur- com o objeto e com as imagens da TV. A brincadeira permitiria à criança passar de
ge nas telas da T V, encontramos réplicas de seus personagens principais à disposição uma situação de passividade diante da imagem da televisão para a atividade lúdica.
nas principais lojas do ramo, desde os shoppings até as bancas de camelos. As propa- Apesar das representações simbólicas estarem como que impregnadas no brinque-
gandas acentuam a possibilidade de a criança ter em casa o boneco do personagem do, elas constituem apenas a base a partir das quais produzem-se deslocamentos,
de seu programa preferido. O brinquedo estaria ganhando maior destaque na brin- transformações ou invenções.
cadeira do que a relação entre as crianças? Os modismos, a enorme quantidade de Refletir sobre a importância do brinquedo no brincar da criança nos instiga sair
brinquedos anunciados pela TV todo ano e a rapidez com que precisam ser renova- da posição cómoda das certezas, dos lugares comuns. Quando salto no vazio as certezas
das as relações entre a criança, a TV e os brinquedos, lembram o comportamento de se desfazem, o olhar tão convicto sobre a criança e seu brincar ganha fluidez, desman-
um esquizofrênico: a criança está presa a um ciclo, no qual é seduzida pelo anúncio cha-se no ar. Às vezes navegar entre as incertezas também desanima. Nesses momentos
do brinquedo e, uma vez de posse do objeto real, frustra-se com suas possibilidades, saio do computador e permaneço quieto, em silêncio. Das imagens que nesse texto res-
não condizentes com o produto anunciado nem com suas próprias necessidades, dei- gatamos sobre a criança e seu brincar uma se destaca emerge, ganha força, e acredito
xando-o de lado, para logo em seguida reiniciar o ciclo. que seja essa que me marcou profundamente nesses anos de trabalho com crianças, e
Brougère (1995), longe da imagem da criança consumista e aliciada pelos produ- também é aquela que faz me caminhar. São as reflexões propostas por Walter Benjamin
tos televisivos, inverte a lógica da relação criança e TV e vai nos propor que algumas sobre a criança, o brinquedo e a educação. Para o autor, a criança, na sua relação com os
imagens da televisão possuem elementos que podem ser integrados ao universo lúdico objetos, está sempre de prontidão para subverter a ordem estabelecida, invertendo a
da criança, às estruturas que constituem a base de sua cultura lúdica. E quais seriam ótica dos que a cercam. É na brincadeira e na eleição de seus brinquedos que a criança
essas estruturas? A luta, o confronto com o perigo, o socorro levado a alguém, a repro- nos revela sua visão de mundo. A criança apropria-se com interesse e paixão de tudo
dução de certas cenas do cotidiano. A criança, na sua relação com a televisão, não seria aquilo que foi abandonado pelos adultos, estando sempre pronta a nos mostrar outra
vulnerável às mensagens televisivas, mas estaria selecionando os conteúdos da TV, rea- possibilidade do real, de apreensão das coisas do mundo e da vida. Para ela, os objetos
tivando-os e se apropriando deles por meio de suas brincadeiras. A televisão não esta- se tornam um reino de enigmas e podem ser decifrados em diversas direções, nas quais
ria se opondo à brincadeira, pelo contrário, estaria alimentando-a, influenciando-a, es- cada objeto, pedra, flor, borboleta é o começo de algo, ao mesmo tempo em que faz
truturando-a. Ela estaria oferecendo às crianças referências únicas, uma linguagem parte de uma única coleção. O colecionador se mistura ao caçador, o único capaz de
comum. Sendo assim, em situações de brincadeiras coletivas, não existiriam dificulda- enxergar os espíritos presentes nas coisas (BENJAMIN, 1984).
des entre as crianças em proporem determinada brincadeira vinda da TV, uma vez que
todas as crianças potencialmente teriam acesso a ela, sendo ponto de partida comum.
Rogério Correia da Silva

No caso específico do brinquedo, entendido como objeto industrial ou manu- Bibliografia


faturado, reconhecido como tal pelo consumidor em potencial em razão dos traços
BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. Trad. Marcus Vinícios M. São
intrínsecos e de seu lugar no sistema social de objetos destinados à criança, impreg- Paulo: Summus, 1984.
nado de imagens e representações produzidas pela sociedade, teria como papel BERALDI.Maria J. Televisão e desenho animado: o telespectador pré-escolar. Dissertação (Mestra-
despertar imagens que permitiriam à criança dar sentido às ações na brincadeira do em Psicologia). Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, 1978.

DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]


[BRINQUEDO] 29
BROUGÉRE, Gilles. Brinquedo e cultura, ffad. de Gisela Wasjkop. São Paulo: Cortez, 1995. caprichos (daí,'idiossincrasia'), independentemente dos valores públicos e das con-
CORDELIAN, W.; GAITAN, Juan A.; OROZCO GOMES, Guillermo. A televisão e as crianças. Comuni- venções." Com a evolução da sociedade, houve um crescente contraste entre o pri-
cação é- Educação, v. 3, n. 7, p. 45-55, set./dez. 1996. vado, o fechado em si e o público e a idiotia passou a ser referida àqueles que não
CORSARO, Willian. Entering the child's World research strategies for field entry and data collection in a participavam da vida comunitária, por deficiência ou por escolha. Como não par-
preeschool setting. In: GREEN, Judith L.; WALLAT, Cynthia. Etnography and language in educatio- ticipavam da vida comunitária, eram ignorantes. Idiotia então é o oposto de cida-
nal settings. Norwood: Ablex, 1982.
dania. Essa explicação nos traz, no entanto, apenas um primeiro elemento para o
EMERIQUE, Paulo Sérgio. Assistir, imitar e brincar: um estudo sobre a influência da televisão no debate em torno do termo, qual seja, o de que ele está envolto e pressupõe uma vida
comportamento de crianças pré-escolares. Tese (Doutorado em Psicologia da USP). Instituto de Psi-
cologia da USP, São Paulo, 1989. em comunidade.
FRANÇA, Gisela Wasjkop. Tia, me deixa brincar! O espaço do jogo na educação pré-escolar. Dis- Benevides (1994, p. 6) expõe que a "ideia moderna de cidadania e de direitos do
sertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação da PUC, São Paulo, 1990. cidadão tem, como é sabido, sólidas raízes nas lutas e no imaginário da Revolução Fran-
FRÕEBEL, F. La educacion dei hombre. Trad. dei alemá por Luis de Zulueta, s.l Daniel Jorro Edi- cesa. Mas dela herdou, também, parte das ambiguidades que carrega até hoje".
tor,1913.
No clássico estudo desenvolvido por T. S. Marshall, Cidadania classe social e
FUSARI, Maria F. de Rezende e. Brincadeiras e brinquedos na TV para crianças: mobilizando opiniões status (1967), a cidadania como instituição criada pelo Estado liberal aparece com-
de professores em formação inicial. In: KISHIMOTO,Tizuko M. (Org.) Jogo, brinquedo, brincadeira
e a educação. São Paulo: Cortez, 1996. p. 143-164.
posta por três elementos: civil, político e social. O autor alerta que não se trata de
uma teoria a respeito da temática, pois esses elementos foram ditados pela própria
HUIZINGA, J. Homo Ludens. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1990.
história da sociedade inglesa.
JOBM e SOUZA, Solange. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas: Papirus, 1994.
KRAMER, Sônia (Org.). Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas: Papirus, 1996.
Na realidade inglesa, os direitos civis surgiram no século XVIII, os políticos no
século XIX e os sociais no século XX. O autor recomenda, entretanto, que essa perio-
KRAMER, Sônia; LEITE, Maria I. (Orgs.) Infância e produção cultural Campinas: Papirus, 1998.
dização histórica dos fatos seja tratada com uma elasticidade razoável e observe-se
PACHECO, Elza Dias (Org.). Televisão, criança, imaginário e educação. Campinas: Papirus, 1998.
que esses direitos estão entrelaçados.
PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
ROUSSEAU, J. J. Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Ao analisarmos a cidadania moderna, é possível perceber que cada um desses
SILVA, Rogério Correia da. A televisão sob o olhar da criança que brinca: a presença da televisão
direitos possui uma caracterização própria. Os direitos civis são aqueles necessários
nas brincadeiras de crianças de uma creche comunitária. Dissertação (Mestrado em Educação). para o indivíduo ir e vir; ter a liberdade de imprensa, pensamento e fé; o direito à
Faculdade de Educação da UFMG, Belo Horizonte, 1999. propriedade privada e de concluir contratos válidos; e o direito à justiça, ou seja, di-
VENEGAS, Silvia Eloísa Fernadez. Olhar a televisão com olhos de aprendiz: a relação da criança reitos à liberdade individual.
com a linguagem publicitária televisiva. Dissertação (Mestrado em Educação).Departamento de
Exercidos individualmente, os direitos civis correspondem ao momento em que
Educação da PUC, Rio de Janeiro, 1992.
as mudanças na base económica da sociedade exigiam a liberdade individual como
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1996a.
pré-requisito para a existência não apenas do trabalho livre, mas também dos direi-
VYGOTSKY, L.S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1996b.
tos e dos deveres referentes aos contratos privados e à concorrência no mercado. A
WAJSKOP, Gisela. Brincar na pré-escola. São Paulo: Cortez, 1995.
efetiva existência desses direitos implicou, segundo Fedozzi (1999, p.31),"a destrui-
ção das relações de produção feudais e a passagem de uma sociedade estamental a
uma sociedade de classes. Mas esse momento é constituído também pelos direitos de
CIDADANIA liberdade religiosa e de opinião, firmado pelo indivíduo frente ao Estado absoluto
[...] Os direitos civis são, pois, direitos contra o Estado."
Podemos pensar no termo "cidadania" contrapondo-o ao termo grego "idiotia". Os direitos civis foram sempre determinados pelas mudanças estruturais da
Segundo Veríssimo (1999, p. 12), a idiotia refere-se"no seu sentido original grego, sociedade e, consequentemente, pelas lutas sociais de blocos hegemónicos em defesa
a uma pessoa privada. Alguém que tinha seus próprios valores e seus próprios de novas liberdades contra velhos poderes.

l [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [CIDADANIA] 31


Nesse sentido a passagem do Estado Absoluto para o Estado de Direito, na estatal. Além disso, a legislação não foi cumprida nem pelas instâncias legislativas,
modernidade, foi o marco referencial das relações contratualistas, que deveriam executivas e judiciárias, nem pela população, que sucumbia aos acordos classistas, à
limitar o abuso do poder soberano em relação ao indivíduo. Deu-se, então, a divi- venda de votos ou às benesses advindas de políticos. Carvalho (1995, p. 11) nos alerta
são de poderes t sua regulamentação, bem como a dos direitos dos indivíduos, em sobre um ponto fundamental em relação à constituição da cidadania quando avança
letra morta numa carta maior: a Constituição. Segundo Luciano Fedozzi (1999), suas reflexões para além das realizadas por T. S. Marshall, quando afirma: "Indo além
isso se deu na positivação dos direitos levada a termo pela Revolução Americana de Marshall, eu diria que a cidadania é mais que uma coleção de direitos, e que o
(1776) e pela Francesa (1789). cidadão não é meramente uma penca onde se colam direitos civis, políticos e sociais.
Cidadania é também a sensação de pertencer a uma comunidade, de participar de
O direito político é entendido como a possibilidade de o indivíduo participar
valores comuns, de uma história comum, de experiências comuns". Para o autor, sem
do exercício do poder político, como um membro de um organismo investido de au-
esse sentimento de identidade coletiva a existência de nações democráticas moder-
toridade ou como eleitor de seus membros. "O momento dos direitos políticos é o
nas não seria possível. Em virtude desse aspecto, "identidade nacional e cidadania,
momento delimitado estruturalmente pelo progressivo processo de racionalização
do Estado e do poder, do qual a cidadania é ao mesmo tempo promotora e resultante" sem se confundirem, se reforçam mutuamente" (p. 11).
(FEDOZZI, 1999, p. 36). Nesse âmbito, o Estado de Direito é o marco institucional desse A cidadania brasileira foi fortemente construída sobre parâmetros que provêm
processo de racionalização da sociedade ocidental que acompanhou o surgimento e das elites que estiveram no poder. Em relação a essa construção, podemos distinguir
desenvolvimento do modo de produção capitalista. seus avanços e retrocessos em períodos distintos, que solidificaram os limites que se
apresentam na realidade atual ao seu pleno exercício. Hoje em dia, passados quase
Por fim, o direito social diz respeito a tudo que se relaciona com um mínimo
dois séculos do fim do regime colonial, a efetividade dos direitos cidadãos continua
bem-estar económico e de segurança; é o direito do indivíduo de participar por com-
pleto da herança social, levando a vida de um ser civilizado, de acordo com os pa- inconclusa. Tal fato criou uma grande contradição entre o país legal e o país real.
drões prevalecentes na sociedade em que está inserido. Após os ares reformistas da Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988,
Reportando-se aos direitos sociais, Fedozzi (1999 p. 51) escreve que"ao contrá- porém, a questão da cidadania tem estado no centro de muitas discussões académi-
rio dos direitos de liberdade negativa que nascem contra o superpoder do Estado, cas e políticas. A própria carta constitucional privilegia um espaço nunca antes exis-
[eles são] organizados pelos serviços públicos e viabilizados historicamente pela in- tente e admite uma combinação de formas distintas de democracia: a direta e a repre-
tervenção ativa do poder do Estado". sentativa. A Constituição de 1988 é um extenso e detalhado documento em que
predominou a preocupação com as garantias do direito cidadão. Ela expressa a necessi-
No Brasil, a construção e a aquisição dos elementos que compõem a cidadania
dade de que a população seja participativa de diversas formas, em diferentes níveis e
aconteceram de forma distinta da realidade inglesa. A contribuição de T. S. Marshall
com as mais variadas finalidades. Contudo, é preciso urgentemente refletir sobre dois
à leitura da cidadania, na realidade brasileira, fica restrita à caracterização de seus
pontos importantes relativos a participação: primeiro, que a ausência dos saberes jo-
três direitos. Eles podem servir como balizadores de nossa análise, pois, "ao exami-
gou a grande massa na ignorância fabricada pela negação da educação; segundo, sobre
nar o desenvolvimento da cidadania no Brasil, devemos prestar atenção a duas ques-
tões: os três tipos de direitos que abarcam [-na] e a sequência em que foram efetiva- a que tipo de participação estamos nos referindo.
mente conquistados (se é que o foram)", são diferentes do caso inglês, como sublinha Na última década do século XX e nestes primeiros anos do século XXI, há ges-
Carvalho (1995, p.11). Em nossa realidade foi dada maior importância a um dos di- tões democráticas e movimentos sociais e populares organizados dos quais pode-
reitos em detrimento dos outros, bem como à ordem em que eles foram conquista- mos extrair parâmetros para uma nova forma de participação que poderá proporcio-
dos sofreu alterações. Os direitos políticos vieram antes dos direitos civis. nar a superação do sistema representativo.
A alteração imposta à concessão e a sequência dos direitos no Brasil, especial- Marilena Chauí comenta que o debate em torno da representação tem se
mente dos direitos sociais e políticos, deu-se em momentos em que o Estado apre- dado, no Brasil, vinculado a uma discussão mais ampla acerca da cidadania. Para
sentava-se autoritário. Os direitos aqui não foram adquiridos unanimente mediante essa autora, esses debates têm se estabelecido em três níveis: o primeiro, vincu-
uma luta e uma conquista da classe trabalhadora, mas sim concedidos pelo poder lado à exigência de uma ordem legal democrática que prime pela diminuição do

J2 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [CIDADANIA] 33


do poder executivo em detrimento do legislativo; o segundo, que exige a manu- BENEVIDES, M. V. M. Cidadania e democracia. Lua Nova - Revista de Cultura e Política, n. 32,
tenção do Estado de Direito; e, por último, aquele que parece ser o mais abran- 1994, p. 6-16.
gente, que se inscreve "como exigência do estabelecimento de um novo modelo BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
económico destinado à redistribuição mais justa da renda nacional, de tal modo Obra Coletiva da Editora Saraiva com a colaboração de António Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina
que não só diminua a excessiva concentração da riqueza e o Estado desenvolva Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. São Paulo: Saraiva, 2002.
uma política social que beneficie prioritariamente as classes populares, mas ainda CARVALHO, J. M. Desarollo de Ia ciudadanía en Brasil México: Fondo de Cultura Económica, 1995.
implica o direito dessas classes de defenderem seus interesses tanto através de CHAUÍ, M. Introdução. In: LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: HUCITEC, Unesp, 1999.
movimentos sociais, sindicais e de opinião pública, quanto pela participação CHAUf.M. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 1990.
direta das decisões concernentes às condições de vida e de trabalho" (CHAUÍ, 1990, MARCELLINO.N. Lazer e esporte: políticas públicas. Campinas. São Paulo: Autores Associados, 2001.
p. 297). A autora conclui que, nesse nível, a questão da cidadania é de justiça MARSHALL,!. S. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
social e económica. FEDOZZI, L.Orçamento participativo: reflexões sobre a experiência de Porto Alegre. Porto Ale-
gre: Tomo Editorial; Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal, 1999.
O lazer também apareceu, pela primeira vez, como direito social nessa constitui-
VERÍSSIMO, L. F. A versão dos afogados: novas comédias da vida pública. Porto Alegre: L&PM, 1999.
ção. O art. 6° coloca o lazer no mesmo patamar de outros direitos que já haviam sido
garantidos pelo Estado, como a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança, a WERNECK, C. Lazer, trabalho e educação: relações históricas, questões contemporâneas. Belo
Horizonte: UFMG, CELAR/UFMG, 2000.
previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desampa-
rados (BRASIL, 2002, p. 12). É possível inferir dessa afirmativa que o lazer constitui, a
partir de então, um aspecto formador e garantidor de cidadania.
No campo específico do lazer, no Brasil, o estudo sobre a cidadania está forte- CINEMA
mente vinculado à discussão das políticas públicas e políticas privadas, aos direitos
No dia 22 de março de 1895, Auguste e Louis Lumière, inventores de uma máquina
do trabalhador e, mais recentemente, às ações das Organizações Não-Governamen-
que aperfeiçoava uma longa trajetória de tentativas de captar e expor imagens em
tais (ONGs). Os estudos desenvolvidos sobre cidadania encaram-na como uma con-
movimento, exibem publicamente, pela primeira vez, para algumas poucas dezenas
quista dos cidadãos historicamente situados, como um espaço de autonomia das co-
de convidados, em Paris, o pequeno filme A Saída das Fábricas Lumière. Naquele
munidades. Entretanto, outros encaram o lazer como um direito social, logo, sob a
instante, não imaginavam que o cinema seria uma das manifestações culturais mais
égide do Estado, como responsabilidade social das empresas ou como ação das ONGs
importantes do século que estava para começar.
(muitas vezes, tais ações colocam-se como alternativas ou como substituição das
políticas de Estado). Além disso, qualquer estudo no campo do lazer, em especial os Sendo uma das mais recentes manifestações artísticas (se compararmos à dan-
ligados à perspectiva política, os que trazem uma discussão sobre cidadania, implí- ça, à música, à pintura, à literatura, por exemplo), até mesmo por ser um produto
cita ou explicitamente, está permeado de uma concepção ideológica. Temáticas sob o claro do avanço tecnológico que marca o momento tardio da modernidade, o cinema
convive, desde suas origens, com uma dupla dimensão nern sempre facilmente con-
nome de políticas públicas e privadas de lazer, lazer e empresa, lazer e voluntariado,
dicionável: é arte e é indústria. Vale lembrar que o cinema nasceu como uma curiosi-
lazer e terceiro setor, vida cotidiana e lazer, em muitos casos, têm a cidadania como
categoria central ou tocam nessa temática. dade, exposta em feiras e parques temáticos: fascinava a população a possibilidade
de observar imagens em movimentos.
Silvia Cristina Franco Amaral De curiosidade tecnológica à gestação de uma linguagem artística própria, com
peculiaridades de expressão dramática, o cinema se desenvolveu no âmbito de uma
estrutura industrial específica, até mesmo por necessitar de montantes financeiros
Bibliografia
elevados para que possa ser viabilizado. É efetivamente uma arte cara: sua produção
AMARAL, S. C. Políticas públicas de lazer e participação cidadã: entendendo o caso de Porto e exibição dependem de muitos profissionais diferentes e de enorme dispêndio de
Alegre. Unicamp:Tese de Doutorado, 2003.
equipamentos e materiais.

DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]


[CINEMA] 35
Já nos primeiros anos do século XX, o cinema começou a se espalhar pelo contrário, tanto na formação escolar quanto na não-escolar, uma intervenção exage-
mundo, cativando pessoas nos mais diferentes locais, das mais diferentes culturas. radamente centrada na palavra. O racionalismo extremo que permeia os processos
Seu poder de mobilização e a influência cresceram rapidamente. Alguns autores de- pedagógicos induz à redução da preocupação com a educação da sensibilidade, uma
fendem a ideia de que esse processo está relacionado ao fato de que é um produto dimensão fundamental da construção do indivíduo e da sociedade, relegando à arte
bastante adequado a uma nova estética de excitação e estimulação sensorial típicas (e logo também ao cinema) lugar secundário.
da vida agitada e moderna, cujo sentido de velocidade é sempre presente. Estaria o Assim sendo,é lamentável que somente se veja o cinema (e outras mídias audio-
cinema diretamente ligado aos momentos iniciais da sociedade de espetáculo, ao visuais) como recurso auxiliar e complementar, e não como conteúdo específico de
mundo de símbolos e imagens que estava nascendo. educação. Não se trata somente de educar pelo cinema, mas também de educar para
A linguagem cinematográfica, paulatinamente, tornou-se cada vez mais refi- o cinema. Não se trata somente de uma didática pela imagem, mas de uma didática
nada, muitas vezes até mesmo de difícil compreensão. Apesar disso, parece que o da imagem.
acesso ao cinema é aparentemente simples: todos nós aprendemos de alguma forma Se hoje os firmes estão entre as opções de lazer mais procuradas, temos que estar
a assistir filmes, "independentemente" de explicações ou processos formais de edu- atentos à qualidade de tal acesso, normalmente feito a partir da televisão e do videocas-
cação. É necessário desnaturalizar essa compreensão. Trata-se de uma linguagem sete, muitas vezes limitado a um produto restrito, difundido com vigor pelos diversos
extremamente rica e complexa, em que se articulam, de forma múltipla, som, luz, meios de comunicação. Se a linguagem cinematográfica desenvolveu-se notavelmente
imagens, falas, em ângulos diferentes, velocidades e ritmos diversos, montadas de desde sua criação, somos forçados a aceitar que o acesso à diversidade de olhares ainda
forma competente de acordo com as intencionalidades dos responsáveis pela execu- não é usual, até mesmo em razão de dificuldades de distribuição. Não podemos negar
ção do filme. Cinema é arte, é técnica, é espetáculo, é cultura, é diversão; é uma lin- que a experiência que os indivíduos têm com o cinema constitui um dos elementos
guagem com regras e convenções; tem relação com sonhos e desejos; e também tem importantes no desenvolvimento de suas capacidades e habilidades para olhar, ver,iden-
uma forte interface com a ideologia, com a política, com a economia. tificar. Em um mundo permeado de metáforas visuais, não podemos ser negligentes
Não estamos tratando de um produto ingénuo, mas de um poderoso dispositi- quanto a essa perspectiva de intervenção pedagógica.
vo de representação, de difusão de valores, compreensões e sensibilidades ora mais, Que papel deve ocupar o profissional de lazer nesse contexto? Como educar
ora menos explícitas. Logo, existem relações de poder ao redor da produção dessa pelo e fundamental para o cinema? Como contribuir para que nosso público-alvo
manifestação: um mercado destinado ao consumo e ao fazer consumir. O cinema possa passar de uma visão superficial, dispersa e casual para outra crítica e orienta-
deve ser compreendido inserido, como todas outras manifestações artísticas, nas ten- da, sem que isso signifique a formação de críticos especializados, a destruição do
sões geradas pela sociedade de consumo. prazer (central nos momentos de lazer), bem como qualquer forma de "patrulha-
Se um filme carrega em si tantos elementos, não podemos negar, mesmo que mento" de escolhas? Alguns apontamentos são possíveis.
não devamos considerar a situação de forma linear, a sua repercussão na vida em É interessante pensar no papel que a televisão, o videocassete e o DVD po-
sociedade. Por certo, um filme é só um filme, não é em si a realidade, mas, indubita- dem ocupar. Podemos, sem dúvida, enumerar alguns problemas relacionados ao
velmente, carrega olhares e intencionalidades sobre a sociedade, tendo um forte po- hábito de se assistir a filmes nessas mídias: a) as imagens são cortadas, reduzidas,
tencial de influenciar na formação de mentalidades. aceleradas, não tendo também a mesma qualidade de exposição das imagens; b) o
É importante também compreender a inserção do cinema no âmbito de uma ambiente disperso da residência não permite concentração completa no filme, des-
sociedade contemporânea que valoriza os estímulos de natureza visual. Em um con- viando a atenção das minúcias e detalhes; c) há baixa qualidade da programação
texto no qual "uma imagem vale mais do que mil palavras", no qual é intensa a indu- de TV e do oferecimento de títulos na maioria das locadoras; d) nada substitui o
ção pela oferta constante e excessiva de signos e símbolos, o cinema como mecanis- ritual de ir ao cinema, encontrar pessoas, entrar na sala escura e vivenciar coleti-
mo de influência social ganha força e deve ser cuidadosamente considerado. vamente as emoções de um filme.
O fato de vivermos em mundo de imagens e símbolos não significa que esteja- Não podemos negar, contudo, que trazem também algumas vantagens, poten-
mos sendo adequadamente preparados para tal. Na verdade, podemos perceber o cialidades e mesmo benefícios: a) permite ver filmes que não passaram no circuito

36 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [CINEMA] 37


ou passaram em circuito restrito, democratizando o acesso a diferentes lingua- Mas como pensar em possibilidade de escolha se grande parte dos cinemas
gens cinematográficas, podendo constituir-se grande parceiro no processo de (das cidades que os possuem) passa prioritariamente filmes "circuitão"? Mais ainda,
educação do olhar; b) permite rever filmes especiais; c) permite estudar, discutir e quando as salas que exibem os perfis "alternativo" e "híbrido" se restringem a menos
compreender melhor as películas. bairros ainda, normalmente aqueles onde mora a população socioeconomicamente
privilegiada?
Parece que o problema central não é o fato de assistir a filmes nas mídias do-
mésticas, mas sim quando elas substituem completamente o hábito de ir às salas de Isto é, sem querer condenar as diferentes formas de organização dos espaços
cinema. Ambas as possibilidades podem conviver com equilíbrio sem problemas, se diversos no âmbito da cidade, nem afirmar que esse é o fator central de afastamento
bem equacionadas. da população de outras formas de compreensão da narrativa cinematográfica, não
creio que podemos a priori dispensar esse fato como relevante e considerável em
O problema é que em alguns casos não há alternativa: somente 7% dos municí-
nossas reflexões.
pios brasileiros possuem cinema (isto é, 4.455 não dispõem), enquanto 64% pos-
suem videolocadoras e 98% têm acesso à televisão. Poucas cidades (como Rio de Da forma como as coisas estão organizadas, não adianta esperar que as pes-
Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte) possuem uma rede ampliada de cinemas e pos- soas venham assistir aos filmes "alternativos"; é necessário levar tais filmes às pes-
sibilidades de assistir a diferentes narrativas cinematográficas. soas não para criar uma nova "ditadura" de imagens, mas, fundamentalmente, para
pregar a polifonia saudável.
Mesmo nessas cidades há problemas no que se refere à distribuição de cine-
mas pelos bairros: normalmente, poucos são os que possuem salas. Mais ainda,grande Vale a pena destacar que em momento algum afirmamos que os indivíduos
parte está localizada em shopping-centers (inseridas claramente em uma lógica de sejam passivos perante o cinema. No que se refere ao papel ativo dos sujeitos na re-
consumo) e cobram caro pelos ingressos. Por certo, esses são elementos que dificul- cepção das mensagens cinematográficas, a discussão sobre os modos de endereça-
tam o desenvolvimento de hábitos cinematográficos. mento parece ser um bom referencial. A relevância está em questionar não somente
o que o espectador espera do filme, mas sim o que o filme espera do espectador, ou
Ainda há outro fato a ser considerado: o perfil de filmes exibidos. De maneira bas-
melhor, como foi encaminhado o filme para possibilitar e provocar emoções, senti-
tante generalizada, somente para fins de classificação, podemos dividir as películas em
três grupos: a) "circuitão"ou "pipoca", produzida pelas grandes empresas de cinema, com mentos, desejos, difusão de valores.
artistas conhecidos e forma de filmar (narrativa) mais comum; b) "alternativa", produzi- Nessa relação espectador-filme, não se deve considerar o público de forma apá-
da por empresas menores, com notáveis preocupações artísticas com a linguagem; tica, homogénea, monolítica e idealizada. Os espectadores interagem com os filmes,
c) "híbrida", que dialoga intermediariamente com as possibilidades anteriores. contrastam seus pontos de vista, suas formações culturais diversas, suas subjetivida-
Observe-se que essa classificação não traz uma valorização embutida. Devemos, des com o que está sendo exibido; trata-se de um processo de interação.
aliás, tomar cuidados com preconceitos e posicionamentos a priori. Não se trata de É fato inegável que os modos de endereçamento possuem um grande poder de
colocar de forma linear e maniqueísta, por exemplo, o cinema americano em confronto indução, mas não se deve negar que os indivíduos os reelaboram, têm a possibilidade
com o cinema brasileiro. Nem todo filme brasileiro é bom, bem como nem todo filme de construir novos sentidos e significados a partir do diálogo, até mesmo porque nunca
norte-americano é um produto "descartável". Nem todo filme "alternativo" é de boa se consegue atingir todas as pessoas da mesma forma e abarcar todas as diferenças,
qualidade e deve ser visto em qualquer ocasião, bem como seria equivocado dizer que que não devem ser negligenciadas pelo conceito confortável e genérico de "público".
todo filme "circuitão""não presta". Aliás, daria um longo debate a discussão sobre o que A questão, para o animador cultural, passa a ser, então, aprender a lidar e a
seria um bom filme. E mesmo os produtos descartáveis podem ser consumidos dife- utilizar a incapacidade de enquadramento como dimensão fundamental que pode
rencialmente se determinada postura crítica existir por parte do público assistente. permitir uma atuação mais efetiva na busca de difusão de novos olhares cinemato-
Os gostos e as diferentes intencionalidades que conduzem as pessoas a procu- gráficos. De forma resumida, trata-se de induzir novas sensibilidades a partir da apre-
rar o cinema como diversão devem ser respeitados. A proposta de animação cultural sentação de divergentes modos de endereçamento, pois se cada filme contém uma série
não deve ser construída contra determinada forma de organização artística, mas a de valores que são ressignificados, se pudermos difundir um conjunto maior de com-
favor da diversidade, da construção do exercício da escolha. preensões, estaríamos contribuindo para processos de reelaboração mais complexos,

38 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [CINEMA] 39


até mesmo por potencializarmos as possibilidades de prazer a partir de um entendi- qualquer maneira, o clown foi originalmente campesino. Outra origem é na língua
mento mais amplo do que está sendo visto. celta, que originalmente designa um fazendeiro, um campônio, visto pelas pessoas
Assim, o desafio central para o profissional de lazer é pensar como incorporar da cidade como um indivíduo desajeitado e engraçado, indicando depois aquele que,
o cinema em suas propostas de animação cultural de forma a reverter esses proble- com artificiosa torpeza, faz o público rir. Em sua aplicação geral, o clown é um per-
mas: a) desenvolver hábitos cinematográficos em seu público-alvo, buscando um sonagem cómico que se comporta de maneira estúpida ou excêntrica, em particular
equilíbrio entre a utilização de mídias domésticas e o ato de ir às salas de cinema; b) alguém que se especializa em comédia física. Clown se traduz por palhaço, mas as
em um processo pedagógico, ir introduzindo outras narrativas cinematográficas, res- duas palavras têm origens diferentes. Palhaço vem do italiano paglia (palha), usada
significando o ato de assistir a filmes, buscando construir uma consciência crítica para revestir colchões: a primitiva roupa de palhaço era feita do mesmo tecido gros-
mais ativa sobre o acesso a essa poderosa ferramenta. so e listrado do colchão.
Importante considerar que isso não deve significar o afastamento das caracterís- Enquanto o palhaço relaciona-se geralmente a feira e praça, o clown refere-se
ticas de uma atividade de lazer. Não se trata de formar críticos ou analistas profissio- a circo e a palco. Na língua comum italiana como na linguagem especializada do
nais, mas de contribuir para que nosso público-alvo esteja mais atento às múltiplas espetáculo, hoje, não existe nenhuma diferença entre a palavra palhaço e a palavra
dimensões e possibilidades de fruição da linguagem, inclusive a partir do descortinar clown, pois as duas se confluem em essências cómicas. A primeira, no entanto, é
de seus elementos técnicos e peculiaridades do processo de produção. Ao mesmo tem- usada às vezes como insulto, significando estúpido, ridículo e exibicionista, ou para
po em que desenvolve novos olhares sobre o cinema, pode também desenvolver novas indicar o cómico do circo. O clown tem suas raízes fincadas na ingenuidade e na
posturas perante a realidade, perante a vida. Também não se trata de difundir somente pureza, sendo, portanto, puramente humano. O termo clown, que hoje se utiliza mui-
uma perspectiva de pensamento, mas multiplicar divergentemente as possibilidades tas vezes para denominar todos os tipos cómicos que atuam no picadeiro, parece
de percepção, pois, a partir desse fato, com o decorrer do processo de educação da sen- provir da deformação da palavra inglesa clod.
sibilidade, temos a esperança que os indivíduos possam exercitar de forma mais efetiva Os exímios cavaleiros que formaram a "troupe de Astley", no célebre número
seu senso crítico, sua alternativa de escolha. do recruta da cavalaria, simulavam camponeses simplórios e astutos, provocando,
com suas extravagâncias, a hilaridade nas plateias. No circo moderno o clown é o
Victor Andrade de Melo
personagem criado na pista de Astley por um acontecimento cómico: o paisano tenta
Bibliografia imitar um militar, equilibrando-se sobre um cavalo. Não consegue, por ser atrapa-
BULLARA, Bete; MONTEIRO, Marialva Paranhos. Cinema: uma janela mágica. Rio de Janeiro: Me- lhado, levando a plateia ao riso. O modelo de espetáculo recriado por Astley une opos-
mórias Futuras/Cineduc, 1991. tos básicos da teatralidade: o cómico e o dramático; associa o palhaço à acrobacia, ao
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. equilíbrio, às provas equestres e ao adestramento de animais. É a base do circo de
COSTA, António. Compreender o cinema. São Paulo: Editora Globo, 1989. hoje. As características do clown moderno circense só podem ser definidas com se-
DUARTE, Rosália. Cinema e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. gurança a partir da troupe de Astley, em que o clown é uma simbiose da máscara da
LOURO, Guacira Lopes. O cinema como pedagogia. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano
Commedia deli'Arte e da tradição da farsesca francesa e anglo-saxônica.
Mendes; VEIGA, Cynthia Greive. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. O clown é um ser à parte na sociedade, pois sua lógica difere de convenções
MELO, Victor Andrade de. A análise da produção cinematográfica, o lazer e a animação cultural. In: sociais preestabelecidas. A sua visão de mundo é diferenciada, como já falamos ante-
III Seminário Lazer em Debate. Belo Horizonte: Celar/UFMG, 2002. riormente, e entende tudo concretamente, ao "pé da letra"; é praticamente outro ser
vivendo na mesma sociedade, mas com outra lógica de raciocínio caracterizado por
uma considerável ingenuidade. Ele passa do riso ao choro sem pensar; o que importa
CLOWN é satisfazer suas necessidades internas. Sua satisfação imediata é a de estar sempre
alegre, feliz, após tentar solucionar tantos obstáculos e problemas. É como uma cri-
Palavra inglesa (pronuncia-se "cláun") que apareceu no século XVI. Essa terminolo- ança: chora e esbraveja, se não consegue o que quer, e vibra de alegria, ao conquistar
gia nos leva a colonus e clod, significando um fazendeiro ou rústico, torpe e, de uma coisa muito desejada.

40 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [CLOWN] 41


As crianças se identificam com o jeito sofredor do clown, que se faz de vítima As reflexões focadas neste estudo com a atuação num processo de tratamento
como um patinho feio ou um cachorro magro. Antes de fazer rir, essa figura trapa- clínico pressupõem as relações do lazer com a arte do clown no tratamento hospita-
Ihona e desajeitada surge para provocar comoção, sugerir solidariedade. Deve ter uma lar, no sentido de estabelecer com o paciente as suas perspectivas de vida não no
cara engraçada, mas também desamparada, frágil. Aperta o coração da plateia para sentido de recuperar - do latim recuperare -, recobrar, retornar ao que já foi, mas de
depois alargar o riso no rosto de todos. Mistura de dor e humor, o clown representa, colocar o lazer como a ação participativa de modificar uma condição atual, ou me-
na forma mais eficaz, comovente e cómica, um ser que se encontra num mundo enor- lhor, transformar - do latim transformare -, dar nova forma, feição ou caráter, tornar
me e desconhecido e, apesar de ignorá-lo, acredita poder enfrentá-lo. Essa é a luta do diferente do que era. É por meio de nossos sentimentos transformados que temos a
clown, que desajeitadamente tenta sobreviver num mundo dos fortes, mas que, ape- capacidade de motivar a mudança de atitude. Ao participarem de uma atividade de
sar de tudo, cria uma nova conduta de solidariedade humana e enfrenta o que quer lazer, por mais que as pessoas queiram, não conseguem deixar a atividade como entra-
que seja a sua maneira, porque o clown conhece a sua própria fragilidade, mas en- ram. Algo foi acrescido ao seu conhecimento e as modificou. O lazer, nesse processo de
frenta o mundo por meio dela, pois ele tem fé de que possa fazer e acredita poder cura, tem caráter de propiciar um ânimo, no qual as pessoas procuram melhorar a
mudar o mundo. Temos, na literatura, no cinema e no teatro, tipos ingénuos e desa- qualidade de vida de modo geral, para que, assim, sejam os descobridores de sua pró-
justados que vêm acompanhando nossa vida, dentre eles: Charles Chaplin, o Gordo e pria verdade, gerando a atitude de evoluir a ponto de cuidar de si mesmas, escolhendo
o Magro, Buster Keaton, Jerry Lewis, Mazzaropi. maneiras próprias de superar e transformar traumas e angústias pessoais.
A arte de clown inserida num tempo de lazer em uma instituição de saúde Ao falarmos da arte de clown no hospital, partimos do termo transforma-
faz parte do interesse do hospital em propiciar ao paciente um conteúdo artístico, ção, e esse elemento está basicamente contido na relação do paciente com o seu
no qual possa vir a desenvolver, no tratamento, a passividade de recebê-lo, mas processo de cura. A arte do clown é um canal privilegiado de substâncias necessá-
que passe a ter um olhar criativo para ele. O lazer na instituição, especialmente no rias a um processo contínuo de transformação, trazendo essa característica a um
hospital, confirma a importância do desenvolvimento pessoal e a responsabilida- conceito na situação específica de lazer, baseado na prática, lazer participativo e
de pela cura dos pacientes, tendo como elementos de base as funções psicocriati- em ação. O lazer no processo de cura, por si só, formado por elementos de autocura, a
vas e a busca da auto-realização. A arte de clown, como conteúdo do lazer, desen- partir do momento em que é oferecido e acatado na mesma medida do medica-
volve aspectos instituídos na movimentação do elemento e componente lúdico. Isso mento clínico e atua diretamente como ponto de apoio ao tratamento; a atuação do
não significa que o lúdico e o lazer não se possam manifestar em outros "tempos". clown não é terapêutica, mas pode resultar a manifestação desse caráter, desde
Muito pelo contrário. O lazer é entendido, na sua especificidade, com possibilida- que seja uma escolha pessoal.
des de gerar valores que ampliem o universo da manifestação do brinquedo, do O profissional que trabalha na área do lazer hospitalar coloca à disposição da
jogo, da criatividade, da recreação, para além do próprio lazer-Entendemos, com população um produto com qualidades específicas àquele contexto. A atuação da área
isso, que podemos ampliar o lazer para além do próprio lazer, já que os seus con- de lazer-artístico está munida de elementos propiciadores a despertar aspectos rela-
teúdos constituem inúmeros valores, entrelaçados na constituição e no envolvi- cionados à arte de forma abrangente, não esperando do paciente um produto final,
mento social, comportando análise de vários ângulos. Pretendemos, com isso, ana- uma forma perfeita ou resultados estéticos, mas a sua atuação e desempenho no pro-
lisar a questão da arte de clown como conteúdo de lazer, permeando todas as cesso artístico, que não tem caráter funcionalista mas ativo e participativo. A atitude
relações desenvolvidas nesse tempo de lazer e suas implicações com a ação dos do profissional que lida com atividades inseridas na área de saúde é de profunda
sujeitos sociais e suas relações participativa e interativa, gerando valores de am- aceitação das qualidades e conteúdos artísticos manifestados pelo paciente. As ma-
plitude desse universo. nifestações expressivas são observadas como uma revelação artística pessoal e são
Acreditamos que o lazer no tratamento hospitalar tem a intenção de recuperar, orientadas para que adquiram dimensionamento das suas necessidades criativas,
mas, acima de tudo, é propiciador e representante de possibilidades do desenvolvi- chegando a ser uma habilidade artística.
mento do ser humano com objetivos de facilitar a manutenção e a expressão de um Apoiamo-nos na técnica de clown teatral, a qual propõe, por meio de exercí-
estilo de atividades apropriado para indivíduos com limitações no aspecto físico, cios, jogos e brincadeiras, que o participante, em um processo criativo, possa desve-
mental, emocional ou social. lar para si a sua própria maneira de se ver diante do seu lado clown perante o

12 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [CLOWN] 43


mundo. O clown ao qual a criança deu vida é o que ela precisa ter e o que vai ajudá- DORNELES, Juliana. Clown, o avesso de si: uma análise do clownesco na pós-modernidade 2003.
la a superar a sua angústia gerando vida dentro do seu "eu". A vida é um elemento Dissertação. (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) - Universidade Federal do Rio Grande do
gerador de aspectos saudáveis no tratamento como um componente essencial ao pro- Sul, Porto Alegre, 2003.
cesso de cura. O objetivo principal de uma atividade de lazer com a técnica de clown FELLINI, Frederico. Fellini por Fellini. 3. ed. Porto Alegre: L&PM, 1986.
é que a criança crie, recrie, construa, destrua, quantas vezes quiser o seu clown. Ele FO.Dario.Manuaí mínimo do ator. São Paulo: Senac, 1998.
faz parte da sua vontade e de seus desejos. A condição principal é que a postura da RUIZ, Roberto. Hoje tem espetáculo?te origens do circo no Brasil. Rio de Janeiro: Inacen/Minc, 1987.
pessoa doente leve-a à atitude de seu desenvolvimento pessoal, o qual poderá estar
TOWSEN, John H. Clowns. New York: Hawton, 1976.
diretamente ligado ao ato pessoal de criar. O lazer de caráter ativo-participativo gera
WUO, Ana Elvira. O clown visitador no tratamento de crianças hospitalizadas. Dissertação. (Mes-
no paciente os mecanismos de criatividade. O paciente pode dançar, atuar, rir, correr,
trado em Educação Física) - FEF/Unicamp, Campinas, 1999.
representar personagens e jogar com sua doença. O corpo doente se transforma du-
rante a atividade de lazer num corpo vivo, alegre, expressivo, criativo. Nesse aspecto,
o corpo está buscando a sua recuperação; assim, o tratamento não esta confinado ao
leito ou à clínica convencional. O lazer divide com o atendimento clínico a mesma COLÓNIA DE FÉRIAS
condição de estar dando cuidados ao paciente.
Essa especificidade no lazer indica a existência de uma relação não claramente Espaço organizado para a vivência do lazer das pessoas em seus períodos de férias.
instituída, mas presente na vida, de aprendizagem e integração da pessoa no meio Existem, atualmente, dois tipos de colónias de férias. O primeiro consiste em espa-
ambiente social e cultural pelo meio da atuação própria de caráter criador. Criar nes- ços, geralmente pertencentes a empresas, sindicatos ou associações, colocados à dis-
se sentido significa projetar a sua existência por meio daquilo que somos capazes de posição dos funcionários ou associados para a estada em viagens e outras experiên-
fazer no seu intuito, na decisão íntima de expressar-se por intermédio da habilidade cias de lazer. Nesse caso, o que se verifica é que, comumente, não há a atuação de
existente e nada mais. animadores socioculturais e um planejamento específico a ser seguido, mas a dispo-
nibilização de equipamentos para vivências de lazer. Mesmo quando existe a presen-
As atividades de lazer que possibilitam o contato e atuação pessoal por meios
ça desse profissional, a programação geralmente é flexível e a participação dos fre-
artísticos levam o ser humano a entrar em contato e a realizar as habilidades até
agora encobertas não no sentido de criar os produtos artísticos, mas de colocar-se nes- quentadores nas atividades é voluntária.
sa atividade de forma espontânea, sincera, apoiada plenamente na confiança naquilo O segundo tipo de colónia de férias é caracterizado pela utilização de um espa-
que cada um é, sem buscar apoios nos meios sociais de existir e atuar. É encontrar a si ço, tal como clubes sociorrecreativos, escolinhas esportivas e escolas (sobretudo de
mesmo numa atuação que traz à tona aquilo que cada um é, que cada um possui como Educação Infantil), para proporcionar vivências de lazer aos participantes. Há uma
o cerne de si mesmo, expor-se naquilo que é e doar a si mesmo numa forma espontânea programação fixa a ser seguida, e as atividades são desenvolvidas por uma equipe de
de existir, na qual confia, a qual se exprime e que se coloca exposto na verdade daquilo animadores socioculturais.
que é e não o que tenta ser numa sociedade. Assim, as relações entre o lazer e o clown, No primeiro caso, a colónia funciona durante todo o ano, pois seus frequentado-
nesse sentido, são adotadas como envoltório de proteção e fazem parte desse prolonga- res usufruem suas férias em épocas variadas. Costuma ser procurada por pessoas das
mento do corpo físico, psíquico e social dos seres humanos. diversas faixas etárias. O outro tipo ocorre somente no período das férias escolares e é
voltado apenas para crianças e adolescentes que frequentam a colónia diariamente,
Ana Elvira Wuo mas não dormem no local (embora a pernoite possa ocorrer esporadicamente). A pro-
gramação costuma ser elaborada pelos animadores e seguida pelos participantes, sem
Bibliografia muita margem de escolha ou oportunidade de realizar outra atividade fora do grupo.
BURNIER, Luis Otávio. A arte de ator: da técnica à representação, elaboração, codificação e sis- Vários conteúdos culturais são colocados à disposição dos frequentadores das
tematização de ações físicas e vocais para o ator. Tese. (Doutorado em Cultura e Semiótica) - Pon- colónias de férias, embora o mais comum seja a ocorrência de atividades relaciona-
tifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1994. das aos interesses físico-esportivos. Encontramos vivências como jogos e brincadeiras,

44 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [COLÓNIA DE FÉRIAS] 45


atividades manuais, teatro, atividades com sucata, esportes, música, excursões e gin- grande parte, "das insatisfatórias e precárias condições materiais, higiénicas, cul-
canas, dentre outras. turais, morais, da casa e do lar da criança desvalida" (p. 322). Segundo o autor, foram
As colónias de férias têm constituído um importante espaço de atuação do pro- criadas pelos poderes públicos e associações privadas dois tipos de instituição com o
fissional do lazer e contam com um grande número de professores de educação físi- objetivo de sanar os problemas sociais: as primeiras, de caráter corretivo e altamente
ca, embora encontremos profissionais de outras áreas, tais como pedagogia, turismo, dispendiosas, como hospitais, sanatórios, creches, abrigos e reformatórios; outras, de
belas-artes, e também pessoas sem formação académica atuando nesses espaços. natureza preventiva e não muito dispendiosas, como escolas ao ar livre, centros de
Talvez isso ocorra, dentre outros fatores, pela forte presença dos conteúdos cultu- saúde, colónias de férias e f arques infantis.
rais relacionados aos interesses físico-esportivos, conforme relatado no parágrafo Posteriormente, em 1952, Arnaldo Sussekind, Inezil Penna Marinho e Oswaldo
anterior. Essa estrutura multidisciplinar, quando ocorre dentro de uma mesma Góes fazem referência à existência de colónias de férias no Brasil, embora em peque-
colónia, pode ser bastante interessante, pois permite a realização de um trabalho no número, em seu Manual de Recreação (Orientação dos Lazeres do Traba-
que integra diversas áreas. lhador). Os autores citam que as poucas colónias em atividade, organizadas pelos
A parca bibliografia existente sobre o assunto não elucida a história das co- Estados, eram voltadas exclusivamente para crianças e atentam para a necessidade
lónias de férias. Steinhilber (1995) indica que a primeira colónia foi realizada na de estendê-las aos trabalhadores (SUSSEKIND; MARINHO; GÓES, 1952). Essa obra teve como
década de 1930, no Forte São João, atual Escola de Educação Física do Exército. En- objetivo estimular a adequada utilização do tempo livre dos operários em uma época
tretanto, o autor trata mais de aspectos metodológicos, e no pequeno "histórico"apre- em que havia uma grande preocupação com a "ocupação sadia" desse tempo, visando
sentado no texto não é esclarecida a maneira como esses dados foram obtidos. Po- conservar a força produtiva do trabalhador e fazê-lo conformar-se ao sistema vigente.
rém, se tomarmos essa década como referência e analisarmos o surgimento da As férias, nesse contexto, foram instituídas para preservar a saúde do trabalhador,
recreação em nosso país, podemos supor que as colónias de férias nasceram como proporcionando-lhe o descanso necessário à recuperação do organismo.
um espaço possível para a concretização de atividades na perspectiva recreacionista. Nesse âmbito, podemos supor que as colónias de férias surgiram como uma
Na década de 1930, a educação ganhou grande importância na sociedade bra- possibilidade educativa, dentre outras existentes, visando dar continuidade ao traba-
sileira, sendo proclamada como símbolo de modernização do País. Nesse contexto, lho da escola por meio da recreação. Assumiram a função de manutenção da ordem
houve grande influência da "Escola Nova", caracterizada pela mudança do centro do social, primeiramente, mediante trabalho com as crianças e, em seguida, estenden-
processo educativo, que se deslocou do professor para o aluno, e pela negação de um do-a aos operários.
controle exterior demasiadamente rígido. Nesse sentido, a educação, para cumprir Atualmente, as colónias de férias vêm sendo realizadas por instituições parti-
sua função de adaptar os indivíduos à sociedade, deveria mudar seu aspecto rígido e culares, pois as iniciativas públicas parecem ser cada vez mais raras no País. Em um
assumir um caráter alegre e dinâmico. Além disso, deveria substituir a disciplina mapeamento realizado na cidade de Belo Horizonte, por exemplo, não encontrei ne-
exterior pela educação da autodisciplina, conseguindo um controle menos visível nhuma colónia realizada por iniciativa pública (ASSUNÇÃO, 2003).
sob as crianças. Assim, a recreação tornou-se o espaço ideal para a conquista desses As escolas de Educação Infantil têm sido um dos principais espaços de realiza-
objetivos (WERNECK, 2003).
ção de colónias, com o objetivo de estender o atendimento às crianças ao período de
Werneck (2003) ressalta, ainda, que as propostas de recreação sistematizadas, férias, quando muitos pais e mães continuam trabalhando. Essas instituições foram
tais como os programas desenvolvidos nos parques infantis nessa época, eram volta- criadas a partir da necessidade de tornar público o cuidado com a criança pequena,
das para as crianças proletárias e assumiam a função de suprir suas necessidades dada a inserção da mulher, que possuía a função social de cuidar da casa e dos filhos,
básicas. As bases desse espaço educativo eram vinculadas a aspectos higienistas e à no mercado de trabalho. Os clubes sociorrecreativos também vêm sendo importan-
preservação social, ou seja, as crianças eram educadas no seu meio de origem, man- tes realizadores de colónias de férias no contexto atual, juntamente com as institui-
tendo-se os diferentes extratos sociais em seus devidos lugares. ções patronais de direito privado.
Os estudos de Miranda (1942) parecem reforçar a ideia da recreação como as- Enfim, as colónias de férias são importantes experiências na atualidade e, como
ta
sistencialismo, ao defendê-la como solução para os problemas sociais decorrentes, em is, podem constituir fecundas oportunidades para se vivenciar o lazer. São, ainda,

46 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [COLÓNIA DE FÉRIAS] 47


locais de produção, ampliação e ressignificação cultural, mediante vivência lúdica dos suas mensagens no consumo de produtos, serviços e, principalmente, de imagens.
diferentes conteúdos construídos pelo homem através da história. Com os produtos, os indivíduos formam sua subjetividade mais por meio dos meios
de comunicação, como Internet, TV e cinema, do que pelas interações sociais em
Crístiane Queiroz de Souza Assunção instituições tradicionais, como a escola e a família. A função de convivência, ou de
simples convivialidade, está se deslocando dos antigos espaços públicos, como as
Bibliografia praças e os bulevares, em direção aos shopping centers, aos condomínios fechados e
aos grandes parques temáticos, lugares que espelham a espetacularização das ima-
ASSUNÇÃO, Cristiane Q. de S. Lazer e colónias deferias: mapeando o mercado de trabalho na
cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocu- gens midiáticas e o desejo pelo seu consumo.
pacional da UFMG, 2004. (monografia de conclusão de curso). Consumir um objeto é adquirir os atributos conferidos a ele pela propagan-
MIRANDA, Nicanor. A casa da criança proletária. Revista do Arquivo Municipal São Paulo, ano VII, da, fazendo com que o consumo contemporâneo seja mais qualitativo do que quan-
v. LXXXII, p. 319-322, mar./abr. 1942.
titativo. Assim, o mercado não pode manter o mesmo produto por muito tempo. Os
STEINHILBER, Jorge. Colónia deferias: organização e administração. Rio de Janeiro: Sprint, 1995.
sujeitos exigem modificações constantes em um círculo vicioso no qual as suas
SUSSEKIND, Arnaldo; MARINHO, Inezil R; GÓES, Oswaldo. Manual de recreação: orientação dos necessidades de satisfação mudam permanentemente, assim como aquilo que eles
lazeres do trabalhador. Rio de Janeiro, 1952.
consomem renova-se incessantemente. A emoção e a expectativa pelo consumo
WERNECK, Christianne Luce Gomes. Recreação e lazer: apontamentos históricos no contexto da edu-
impulsionam a procura persistente pela novidade, por novas sensações que, ao se-
cação física. In: WERNECK,Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Org.). Lazer, recrea-
ção e educação física. Belo Horizonte: Autêntica, 2003,p. 15-56. rem frustradas pelo processo de desgaste ou insatisfação, precisam ser estimula-
das novamente com um novo produto ou serviço ou com uma adaptação da ima-
gem dele. Por esse motivo, a criatividade na propaganda e as inúmeras formas de
vender foram uma grande arma para o consumo do século XX e no XXI. Com as
CONSUMO imagens variadas e a potencialização de diferentes emoções latentes dos indivídu-
os, é possível sempre criar expectativas e anseios de satisfação para a continuidade
Ato ou efeito de consumir. Palavra genérica para compra e venda de produtos ou
serviços. do processo de consumo.
Consumir hoje significa, antes de tudo, uma busca por uma identidade e por
Segundo uma visão economicista, o consumo seria a utilização dos bens mate-
um referencial encontrados nos objetos e nos serviços, configurando uma procura
riais para a satisfação das necessidades demandadas pelos homens, já que a própria
incessante de satisfação das necessidades emocionais dos indivíduos. Esse raciocí-
Economia é por definição a alocação dos recursos limitados do mundo aos desejos
nio aplica-se ao lazer. Após o nascimento da indústria e da implantação da jornada
ilimitados dos seres humanos. Contudo, essa visão não explica, na contemporanei-
laborai e uma clara divisão entre capital e trabalho, o lazer era tido como um descan-
dade, o processo consumista em toda a sua extensão. O fato de adquirir um produto
so, um momento em que os trabalhadores poderiam relaxar e passar um tempo com
hoje não satisfaz apenas "necessidades económicas", mas também as subjetivas, dentre
a família. É assim que Halbwachs (1913) interpreta o tempo que o operário consagra
elas o lazer. No entanto, não podemos nos esquecer de que os diversos sistemas de
ao espetáculo da rua, aos bares e, sobretudo, às refeições com a família. Hoje, descan-
trocas vividos pelas civilizações ao longo de suas histórias também se caracterizam
sar não mais condiz com esse conceito de lazer; o tempo todo os meios de comunica-
como consumo, já que ele é uma prática idealista na sua essência. O consumo é um
ção de massa estimulam os cidadãos a trocar o antigo repouso por um momento de
modo ativo de relação no qual se funda boa parte do sistema cultural contemporâ-
neo. O extremo dessa alternativa de relação cultural é a venda. consumo supostamente mais emocionante e prazeroso.
O consumo de lazer oferece um amplo leque de possibilidades em parques te-
Os objetos não são mais comprados somente pelo seu valor de uso ou pela sua
utilidade, mas também pela capacidade de preencher necessidades do ego, potenciali- máticos, ilhas paradisíacas, esportes radicais e festas intermináveis, sem descanso.
zadas pelos meios de comunicação de massa. Em um mundo no qual o poder de Podemos perceber essa tendência por meio de algumas redes de hotéis ao longo do
compra tem norteado as ambições de grande parte da população, a mídia pauta globo, cuja atual proposta para o cliente são acomodações mais simples e o foco no

48 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [CONSUMO] 49


entretenimento do cliente, fazendo com que ele fique o menos tempo possível dentro McKENDRICK, Neil; BREWER, Jonh; PLUMB, J.H. The birth ofa consumer society: the commer-
do quarto, preenchendo seu dia com inúmeras atividades: esportes, festas e jogos. A cialization ofeighteenth-century England. Londres: Europa Publications, 1974.

satisfação via consumo de bens de lazer se dá pelas emoções proporcionadas pelo McCRACKEN, Grant. Cultura e Consumo: novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e das
mundo dos objetos e das fantasias. atividades de consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

Nestor Garcia Canclini (1995) chama a atenção para o fato de o consumo ter
ultrapassado as fronteiras clássicas da Economia, atingindo outras dimensões da vida
social. Considera o consumo como uma parte do processo comunicacional, como CONTEÚDOS CULTURAIS
alguma coisa que os indivíduos desejam transmitir mediante a aquisição de bens e
O conceito de cultura carrega uma dupla dimensão que deve ser compreendida de
serviços. Ou seja, o consumo é cultural e expressa a apreensão coletiva que as pes-
forma complexa, não linear. Podemos falar de um conjunto de normas, valores, hábi-
soas possuem sobre o ambiente no qual vivem. É, antes de tudo, uma aquisição sim-
tos que norteiam a vida humana em sociedade, nas suas mais diferentes especifici-
bólica que visa comunicar ao grupo social alguma mensagem. A cidadania já não se
dades, mas não devemos esquecer que elas se articulam com formas de organização,
constitui somente em relação a movimentos políticos e sindicais, mas, especialmen-
representações, sensibilidades. Assim, há uma relação entre aspectos éticos e estéti-
te, em processos de comunicação de massa e de consumo.
cos nas diversas formações culturais.
A Internet apresenta-se como um importante componente da comunicação Tendo em vista tal discussão, deveríamos considerar como "conteúdos cultu-
social na contemporaneidade, configurando um novo imaginário de relações de rais" qualquer dos elementos componentes desses campos: poderíamos estar nos re-
consumo e lazer. Nela, a diversão está diretamente associada ao consumo, seja por ferindo a valores, a sensibilidades e/ou a articulação entre ambos.
meio de banners, pop-ups e spams ou de sites específicos de vendas. A Internet
Contudo, correntemente no âmbito da discussão sobre o lazer no Brasil, tende-
pode ser um paradoxo, pois, apesar de virtual, materializa-se em variados produ-
mos a denominar como "conteúdos culturais" um conjunto de estratégias possíveis
tos e serviços, fortalecendo a globalização e pluralizando ainda mais o cotidiano de ser implementadas em programas de lazer, tendo em vista o alcance de determi-
dos cidadãos.
nados objetivos estabelecidos pelo animador cultural.de forma mais ou menos cons-
Em uma sociedade fragmentada como a contemporânea, a pluralidade de pro- ciente e crítica, associados ou não com seu público-alvo.
dutos implica um processo de entrelaçamentos entre diferentes estilos de vida e bens A utilização da expressão "conteúdos culturais" para designar as manifesta-
que os refletem. O processo de aquisição de produtos e serviços hoje transita pelo ções culturais é uma clara influência do pensamento do sociólogo francês Joffre Du-
campo do simbólico, dos sonhos despertados pelas expectativas das emoções que o mazedier no País, notadamente de sua classificação das atividades de lazer. É interes-
consumo pode vir a proporcionar: conhecimento, prazer, aceitação ou desejo. sante perceber como sua tipologia permanece bastante utilizada até os dias de hoje,
mesmo que parte significativa de seu pensamento tenha sido criticada no decorrer
Janete da Silva Oliveira
da década de 1980, muitas vezes de forma injusta e imprópria, diga-se de passagem.
Ricardo Ferreira Freitas Provavelmente, sua proposta de classificação permanece reconhecida por ainda dar
respostas convincentes às necessidades de concepção e programação de interven-
Bibliografia ções no âmbito do lazer.
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro, Elfos; Lisboa: Edições 70,1995. Dumazedier procurou classificar as atividades de lazer segundo o interesse cen-
CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. tral desencadeador de sua busca, o elemento principal que motivaria os indivíduos a
CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. procurá-las. Ao percorrer as diferentes motivações humanas, trabalhando com di-
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. versas linguagens, estaríamos ampliando o alcance de nossa intervenção. Por certo,
HALBWACHS, Maurice. La classe ouvrière et lês niveaux de vie: recherches sur Ia hiérarchie dês contemplar as possibilidades de interesse não constitui uma dimensão suficiente
besoins dans lêssociétés industrielles contemporaines.Paiis: FelixAlcan, 1913. Para garantir um trabalho de qualidade; ela deve, todavia, ser considerada como
HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: UNESP, 1997. urna preocupação importante para o profissional de lazer.

>0 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [CONTEÚDOS CULTURAIS] 51


Obviamente, devemos ter em conta os limites dessa classificação, já que o pro- massas; há que se explicitar que todos os indivíduos podem produzir suas manifes-
cesso de escolha dos indivíduos nem sempre é absolutamente explícito, tampouco tações artísticas, independentemente de seu grau de habilidade, que a arte não é pri-
modulado por um interesse único. Quando alguém resolve ir ao cinema, não o faz vilégio de virtuoses; há que se construir caminhos de veiculação das manifestações
pensando: "agora vou mobilizar meu interesse artístico". Tampouco o faz desconsi- culturais construídas à margem dos sistemas usuais de distribuição; há que se esti-
derando que esse ato está ligado também ao intelectual, ao social. A ação humana é mular nos indivíduos a compreensão de que também produzem quando dialogam
complexa demais para caber em limites rígidos de categorias, o que não significa que criticamente com as diferentes manifestações. Maiores informações podem ser obti-
a classificação seja ineficaz: somente devemos utilizá-la tendo claros os seus limites, das no verbete "Arte" deste dicionário.
a considerando como um guia para nossas intervenções.
O terceiro grupo é o dos "interesses manuais", cuja motivação se encontra fun-
Segundo Dumazedier, cinco são os interesses centrais. O primeiro deles é o de damentalmente na manipulação de objetos e produtos. Nesse grupo podemos en-
"interesses físicos". Nesse grupo podemos situar os esporte em geral, a ginástica, a contrar a jardinagem, a carpintaria, a marcenaria, a costura, a culinária, os hobbies
dança, a prática de caminhada, dentre outros. Essas atividades podem ser situadas em geral. Muitas dessas atividades, por terem ligação direta com preocupações de
entre as mais procuradas e acessadas nos momentos de lazer, notadamente em razão natureza estética, acabam se confundindo com as artísticas.
da influência dos meios de comunicação.
Poder-se-ia argumentar que o grau de diferenciação está na originalidade de
O elemento central de motivação nesse grupo é o prazer de movimentar ou assis- produção de alguns objetos (o que os situariam como artísticos) em detrimento a
tir a movimentação corpórea, compreendida nas suas mais diversas possibilidades lú- sua confecção em série (o que os faria ser considerados como artesanato). Ainda
dicas: de atividades leves a extenuantes; realizadas em ambientes rústicos ou em espa- assim, até mesmo em razão das ressignificações dos conceitos de arte e de sua pecu-
ços construídos; praticadas em condições de absoluta segurança ou ocasionando riscos liaridade no que se refere a uma intervenção no âmbito do lazer, tal limite não seria
controlados; vivenciadas individualmente ou em grupos. Ao redor de cada um desses convincente.
casos gestam-se, até mesmo, estilos de vida específicos. O mais importante é que possamos contemplar esse conjunto de atividades em
Podemos apontar como desafios para o profissional de lazer com seu público- nossos programas, tomando o devido cuidado para não confundi-lo como forma de
alvo, a partir da perspectiva do duplo aspecto educativo: contribuir para ampliar o grau preparação para o trabalho, já que muitas dessas atividades acabam se confundindo
de acesso à vivência de atividades físicas (muitas vezes restrita a uma só prática); o com "bicos".
estímulo a sua prática e não só a sua assistência; o desenvolvimento de criticidade pe- Mesmo que não devamos negar que em qualquer outro grupo há uma mobili-
rante os espetáculos ligados à cultura corporal de movimento. Maiores informações zação ativa do ato de pensar, a quarta categoria é a de atividades de "interesses inte-
podem ser encontradas no verbete "Esporte" deste dicionário. lectuais", já que a ênfase central nesse caso está mais diretamente ligada ao exercício
Os "interesses artísticos" constituem outro dos grupos definidos por Duma- do ato de raciocinar. Nesse grupo de atividades estão enquadrados, por exemplo, jo-
zedier. A motivação central que conduz os indivíduos a essas manifestações é a gos como xadrez, dama, gamão.bridge. Também podemos incluir palestras e cursos,
experiência estética ocasionada, embora, é importante ressalvar, isso não seja exclu- desde que não estejam sendo procurados pelas necessidades do trabalho. Isto é, es-
sivo desse conjunto de interesses. Nesse grupo encontramos a arte em suas mais di- tando ligados a outros interesses da vida que não aqueles diretamente desencadea-
ferentes formas de apresentação: cinema, teatro, dança, música, artes plásticas, lite- dos pelo mundo profissional.
ratura; encontradas em ambientes especificamente organizados para armazenamento Esse grupo de interesse, além de uma possibilidade de intervenção direta, tem
e/ou exposição (museus, centros culturais, casas de espetáculos), mas também pos- grande utilidade na preparação para a intervenção com outros interesses. Pode dia-
síveis de ser produzidas pelos indivíduos. logar com praticamente todos os outros grupos, retroalimentando e potencializando
No que se refere a esse grupo, tem o profissional de lazer um grande desafio, as vivências sensórias.
uma vez em que há um grande distanciamento entre a arte e grande parte da popula- Por fim, o último grupo categorizado por Dumazedier é o dos "interesses so-
ção. Os embates são múltiplos: há que se fazer a arte produzida chegar às pessoas em ciais", atividades relacionadas ao fator motivador de encontros entre indivíduos, di-
sua mais diferentes possibilidades e não somente naquilo que difunde a cultura de mensão de alguma forma também presente em todos os outros grupos. Nesse caso,

52 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]


[CONTEÚDOS CULTURAIS] 53
podemos situar as festas, os espetáculos, a frequência a bares e restaurantes, a parti- sendo utilizada para classificar as pessoas e servindo como arma discriminatória en-
cipação em espaços de convivência. tre os grupos sociais contra sexo, idade, classe social, etnia.
No Brasil, seguindo uma sugestão do sociólogo Luís Octávio de Lima Camargo, Por vezes, a cultura é entendida como o modo de vida, hábitos e costumes de
ex-aluno de Dumazedier, muitos costumam considerar outra possibilidade: os "inte- determinados grupos. São línguas, artes, comportamentos, tão diferentes e diversos,
resses turísticos". Independentemente se devem ser tidos como um novo grupo ou ser que chegam, em alguns momentos, a nos causar profunda estranheza. Ficamos nos
enquadrados nos "interesses sociais", vale a pena ao profissional de lazer estar atento a perguntando: Como é possível uma pessoa ou mesmo um grupo de pessoas viver
tal possibilidade de intervenção não somente na perspectiva de conhecimento de ou- desse ou daquele modo? É comum considerarmos o nosso modo de viver melhor e
tras localidades, como mesmo de reconhecimento do próprio espaço onde vive o indi- mais interessante do que o de outros povos e, do mesmo modo, valorizarmos a cultu-
víduo, já que um dos grandes problemas identificados na contemporaneidade é o esva- ra de determinados lugares em detrimento de outras e, até, da nossa própria. Afirma-
ziamento dos espaços públicos como locusde vivência social e o desconhecimento das mos, por exemplo, que os índios de hoje estão usando calça jeans e relógio, por isso,
potencialidades locais, um verdadeiro processo de distanciamento do cidadão de sua perderam sua cultura, não são mais índios.
cidade, que acaba por potencializar uma série de mazelas sociais. Dá para notar que não é nada simples definir o conceito de cultura. Uma rápi-
da consulta aos dicionários nos coloca diante de inúmeras compreensões diferencia-
Victor Andrade de Melo das, também bastante utilizadas pelo senso comum. Vejamos mais algumas: 1) a ação
ou maneira de cultivar as plantas; 2) o desenvolvimento de certas espécies microbia-
Bibliografia nas; 3) o terreno cultivado: a extensão das culturas; 3) a criação de certos animais: a
DUMAZEDIER, Joffre. Valores e conteúdos culturais do lazer. São Paulo: Sesc, 1980. cultura das abelhas; 4) o conjunto de conhecimentos adquiridos; 5) o conjunto das
estruturas sociais, religiosas, etc., das manifestações intelectuais, artísticas, etc., que
MELO, Victor Andrade de. A cidade, o cidadão, o lazer e a animação cultural. Licere. Belo Horizonte, n.
6, p. 82-92,2003. caracteriza uma sociedade: a cultura dos inças; 6) a aplicação do espírito a alguma
MELO, Victor Andrade de; ALVES JÚNIOR, Edmundo de Drummond. Introdução ao lazer. São Paulo: coisa: a cultura das ciências; 7) o desenvolvimento das faculdades naturais: a cultura
Manole,2003. do espírito; 8) o apuro, a elegância: a cultura do estilo; 9) a cultura de massas: o
PALLAMIN, Vera (Org.). Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: Es- conjunto dos fatos ideológicos comuns a um grupo de pessoas consideradas fora das
tação Liberdade, 2002. distinções de estrutura social e difundidos em seu seio por meio de técnicas indus-
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. triais; 10) a cultura física: o desenvolvimento racional do corpo por exercícios apro-
priados. (HOUAISS; KOOGAN, 1992).
Uma consulta da etimologia da palavra cultura nos ajuda a compreender as
concepções até aqui apresentadas. Cultura vem do latim cultura, que significa la-
CULTURA
voura, cultivo dos campos, instrução, conhecimentos adquiridos, derivado do latim
A palavra "cultura" está presente em nosso cotidiano em vários momentos e é interpre- colçre, "cultivar, cuidar de, tratar", representado em grego por dois vocábulos distintos,
tada com significados diversos. No senso comum, uma primeira tradução do conceito geôrgía, "lavoura, cultivo dos campos" e máthema, mathçmata,"conhecimentos ad-
diz respeito às manifestações que envolvem as artes de modo geral: música, poesia, quiridos". Opõe-se, desde a época clássica, à palavra latina natura, "natureza, ordem
literatura, dança, teatro, circo, festas, dentre tantas outras. Outro sentido atribuído ao estabelecida pela natureza, curso natural das coisas". A diferença fundamental entre
termo relaciona-se com o fato de ouvimos dizer que, enquanto "fulano de tal" é uma cultura e natura, é que a cultura, "lavoura, conhecimentos adquiridos" só se realiza
pessoa muito culta, "sicrano" não tem cultura. Tal visão equivale à capacidade de com- com a participação direta do homem, agindo sobre a natura, enquanto esta existe in-
preender dados: organizá-los, analisá-los e conferir-lhes novos significados. Assim, a dependentemente da ação humana. (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1986).
cultura é quase sempre um adjetivo atribuído às pessoas que possuem volume de É possível afirmar, portanto, que desde suas origens a palavra cultura está liga-
leituras, controle de informações, diplomas e títulos universitários. Nesse sentido, da à noção de cultivo, cuidado: com a terra (daí agricultura); com as crianças (pueri-
a palavra é usada como sinónimo, ainda que restrito, de educação, de inteligência, cultura); com os animais (apicultura, psicultura) e com os deuses (culto). Essas

>4 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [CULTURA] 55


noções originais trazem a ideia de uma ação que conduz à plena realização das po- Durante o século XVIII, a cultura é o padrão ou o critério que mede o grau de civi-
tencialidades de alguma coisa ou de alguém. É fazer brotar, frutificar, florescer e cobrir lização de uma sociedade, sendo possível avaliar o progresso, a evolução de uma socieda-
de benefícios (CHAUÍ, 1989). Se seguirmos essa linha de raciocínio poderíamos dizer, de. É considerada como um conjunto de práticas que envolve as artes, ciências, técnicas,
ainda nos dias de hoje, que o objeto de nosso cultivo é a própria vida. Desse modo, ofícios efilosofia.Só a partir de meados do século XIX - é mais precisamente em 1871
cultivamos a vida biológica, afetiva e social: o trabalho e o lazer, a guerra e a paz.
- que Edward Tylor, baseado nessa concepção iluminista de cultura, tornou-se o pri-
Entretanto, ao mesmo tempo em que a compreensão de cultura como cultivo, meiro estudioso a sistematizar seu conceito afirmando que "cultura ou civilização, no
culto, foi perdendo terreno na história do ocidente, ganha destaque a oposição entre seu sentido etnográfico, é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte,
natureza e cultura. A partir dessa oposição, a cultura passa a ser entendida como moral, leis e costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo ho-
produção e criação da linguagem, da religião, dos instrumentos de trabalho, das for- mem como membro de uma sociedade" (LARAIA, 2001, p. 25).
mas de lazer, da música, da dança, dos sistemas de relações sociais, particularmente os Esse conceito evolucionista de cultura foi alvo de várias críticas, instaurando con-
sistemas de relações de parentesco e as relações de poder (CHAUÍ, 1989). Para que a vida cepções diferenciadas que buscavam atingir o seu grande desafio: superar o etnocen-
exista e persevere, ela exige. É das respostas que damos às exigências da vida que nasce trismo inerente a essa perspectiva. Esta visão etnocêntrica, presente em todas as socie-
a cultura. Cultura é o fazer, como fazer, para que e para quem se faz. A cultura constitui- dades, considera que o "nosso" mundo é o centro de tudo e de todos, como se "nossa"
se em todas as atividades que satisfazem nossas necessidades, mesmo supérfluas. So- cultura fosse a única possível e aceitável. Em decorrência dessa visão, o modelo impos-
mos todos produtos e produtores de cultura. A arte, a educação, o trabalho, o lazer, den- to e aceito foi o capitalista, europeu, branco e cristão, gerando muitos preconceitos, in-
tre tantas outras atividades, fazem parte da cultura. A cultura é o ser humano, é o que tolerâncias, violências e racismos que ainda se fazem presentes em todo mundo.
há de mais humano no ser, é aquilo que nos distingue dos outros animais.
A problematização dessa concepção se deu a partir da introdução de novas
A percepção desses fazeres e de suas diferenças foi possibilitada pelo desenvol- metodologias para as pesquisas antropológicas, principalmente as iniciadas pelo an-
vimento científico e tecnológico, marco da passagem para o mundo moderno. Por tropólogo alemão, radicado nos EUA, Franz Boas. Sua pesquisa etnográfica, que re-
meio do advento das grandes navegações, iniciado no século XVI, esse desenvolvi- quer a presença do pesquisador no trabalho de campo com as populações estudadas,
mento permitiu à Europa colonizar os povos das Américas, Ásia e África. Do encon- contribuiu para que cada sociedade fosse compreendida de acordo com um relativis-
tro da sociedade do "eu" com a sociedade do "outro" e o esforço de compreender as mo cultural, a partir de novas ideias de cultura e história. Boas pontua que as dife-
diferenças culturais, surgiram às bases para a constituição do conceito de cultura, renças culturais podem ser comparadas por meio de investigações históricas, isto é,
que passa a ser o conceito-chave da antropologia, ciência que surge no século XIX, cada cultura segue os seus próprios caminhos em razão dos diferentes eventos que
mas que só se desenvolveu como campo epistemológico no início do século XX. De enfrenta. Ressalta a importância do acesso à língua da sociedade estudada para a
modo sucinto, veremos como esse conceito e as várias concepções que se encontram compreensão das culturas nas suas particularidades. Cada sociedade passa a ser con-
presentes em nossa sociedade foram se constituindo. A cultura é o objeto de estudos siderada em si e para si mesma, adquirindo o estatuto de uma totalidade autónoma.
da ciência antropológica (ciência da alteridade, da relação do "eu" com o "outro") e Desde então, não se pode mais falar em cultura no singular, e sim em culturas.
não pode ser considerada seu sinónimo.
Se pensarmos num país como o Brasil, que desde suas origens históricas se consti-
Os primeiros objetos dos estudos antropológicos foram as sociedades "primiti- tuiu a partir da mistura de várias etnias que nos deixaram um legado cultural incalcu-
vas", populações que não pertenciam à civilização ocidental. O filme Guerra do fogo lável, veremos que Boas tinha razão. O Brasil é, com certeza, uma nação pluricultural,
ilustra como, desde os primórdios da humanidade, os homens possuem maneiras constituída por diferenças, por isso mesmo as inúmeras manifestações de lazer pre-
diferenciadas de se estar no mundo, provocando um choque cultural entre eles. O sente neste universo de cultura(s) precisam ser consideradas como uma totalidade.
relato bíblico sobre a Torre de Babel demonstra como a diferença causou espanto e
Neste instigante debate sobre o conceito de cultura, Mauss e Malinowski, nas
surpresa entre os homens. Discutir o conceito de cultura é também enveredar pela primeiras décadas do século passado, introduziram uma concepção funcionalista ao
construção histórica da antropologia como ciência, tendo como pano de fundo a clás- afirmarem que o indivíduo tem certas necessidades e cada sociedade tem como fun-
sica oposição apresentada entre natureza e cultura em sua etimologia, sinónimo de ção satisfazê-las - por isso, a própria sociedade cria os recursos. No campo do lazer,
civilização (ideia de vida civil, isto é, vida política e regime político).
vários exemplos dessa perspectiva funcionalista podem ser citados. O futebol é um
;
6 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]
[CULTURA] 57
deles. Poderíamos, então, perguntar: Qual a função social do futebol? É possível imagi- significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, ob-
nar um país como o nosso sem o futebol? Não é por acaso que, a cada ano, assistimos jetivo e direção à nossa vida. Os homens são, portanto, seres incompletos e inacaba-
com a mesma garra e euforia aos intermináveis campeonatos, sejam eles oficiais ou dos que se completam por meio da cultura. No Brasil, por exemplo, podemos identi-
não. O que dizer do carnaval e outras festas? ficar a cultura do caipira, do urbano, do imigrante e tantas outras, e em cada cultura
Até a década de 1960, os estudos antropológicos centraram-se nas pesquisas em particular, certamente, encontraremos vários tipos de homens, pois eles também
de povos e sociedades "ditas" primitivas. Essas sociedades, porém, sofreram influ- são diferentes.
ências de outros contextos e tenderam ao desaparecimento. Assim, após um período de Também essa concepção de cultura vem sendo criticada e discutida por sociólo-
crise com seu próprio objeto de estudos, a antropologia passa a considerar as socieda- gos como Maffesoli (1987) e Featherstone (1995) e antropólogos como Canevacci (1993)
des "ditas" complexas como possibilidades para compreender o homem em seus con- e Canclini (1997), dentre outros. A partir de análises teóricas diferenciadas, afirmam
textos culturais, problematizando o conceito de cultura e inaugurando outras vertentes que a cultura nestes novos tempos não pode conviver com a ideia do todo formado por
para a ciência, como foi o caso da antropologia urbana e seus desdobramentos, por partes, mas sim numa perspectiva de rede, este conjunto inorganizado e, no entanto,
exemplo, a antropologia do corpo, da saúde, da festa, da religião, dentre outras. sólido, invisível, que serve de ossatura a qualquer outro conjunto, seja ele qual for.
Nesse cenário merecem destaque o estruturalismo de Lévi-Strauss e a antro- Para esses autores, vivemos, na atualidade, o tempo dos fluxos de informações,
pologia hermenêutica de Geertz. Ao contrário da antropologia cultural - que consi- conhecimentos e imagens, constituídos de forma interdependentes. Essas caracterís-
dera cada cultura particular -, Lévi-Strauss inaugura outra vertente, o estruturalis- ticas introduzem novas estruturações sociais no que tange às relações entre os indi-
mo, na qual as culturas são apreendidas em um nível que não é mais o dado, e sim víduos e as novas formas de agrupamentos e, ainda, da relação que eles estabelecem
construído: o do sistema. Para esse autor, importa estudar a lógica da cultura enten- com as novas territorialidades (ou desterritorialidades), provocando diferentes ma-
dida como um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mente neiras de se situar nos tempos e espaços culturais.
humana (LARAIA, 2001, p. 61). Seu trabalho tem procurado descobrir na estrutura- Com efeito, a globalização, o acesso à informatização e o desenvolvimento tec-
ção dos domínios culturais - mito, arte, parentesco e linguagem - os princípios da nológico são os principais responsáveis por esse novo desenho social. As TVs a cabo
mente que geram essas elaborações culturais. e a Internet rompem as fronteiras, possibilitando novas interações e construções do
Geertz, por sua vez, vem desenvolvendo argumentos para se compreender uma sujeitos com o tempo e o espaço. A cultura não é mais o controle, mas, em certo sen-
antropologia hermenêutica, ou antropologia interpretativa. Em A interpretação das tido, é a desordem, traz a pluralidade, a diversidade, a estilização da vida. Não é mais
culturas (1989), ele afirma que a cultura é um conjunto de mecanismos de controle o pensar com a razão, e sim o agir com a emoção. A cultura torna-se, portanto, aquilo
- planos, receitas, regras e instruções - para governar o comportamento. Sem esse que é experienciado no cotidiano, numa profusão de estilos de vida e paisagens.
sistema organizado de símbolos significantes, o comportamento do homem seria in-
controlável, um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua Vânia de Fátima Noronha Alves
experiência não teria qualquer forma.
A cultura, nessa perspectiva, é uma condição para a existência humana e pode Bibliografia
ser vista como um texto possível de ser lido, interpretado. Compreendida como um
ALVES.Vánia RN. O corpo lúdico Maxakali: segredos de um "programa de índio". Belo Horizon-
código, como um sistema de comunicação, seu caráter dinâmico é percebido pelas
te: FUMEC-FACE, Cl Arte, 2003.
interpretações, significados, símbolos diante uma realidade permanentemente em
ALVES, Vânia F. N. Uma leitura antropológica sobre a educação física e o lazer. In: WERNECK, Christi-
mudanças ao mesmo tempo em que extremamente rica em sua diversidade.
anne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Org.). Lazer, recreação e educação física. Belo Hori-
Geertz (1989) nos auxilia a compreender a cultura como um conjunto de zonte: Autêntica, 2003a, p. 83-114.
mecanismos simbólicos para controle do comportamento que fornece o vínculo CANCLINI, Nestor G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São
entre o que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que eles Paulo: EDUSP, 1997.
realmente se tornam, um por um. Tornar-se humano é tornar-se individual, e CANEVACCI,Massimo. A cidadepolifonica. Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São
nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de Paulo: Studio Nobel, 1993.

58 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [CULTURA] 59


CHAUf, Marilena. Cultuar ou cultivar. Revista Teoria e Debate., n. 8,1989, p. 50-56. do movimento. Não podemos nos esquecer de que o bale clássico desenvolveu-se
ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL. Enciclopédia Brítannica do Brasil Publicações Ltda. respaldado pelo pensamento lógico matemático que predominava na época de sua
São Paulo-Rio de Janeiro, v. 7,1986, codificação. Nesse contexto, o estudo do movimento muitas vezes tendeu a ficar
FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. Trad. de J. A . Simões. São Paulo: desconectado da emoção.
Studio Nobel, 1995.
Notamos que, com a criação do bale clássico, a dança passou a ser oferecida,
GEERTZ.Clifford.A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. prioritariamente, como forma de espetáculo, de consumo passivo, tendencialmente
KOOGAN/HOUAISS. Enciclopédia e dicionário. Rio de Janeiro: Edições Delta, 1992. restrita a grupos sociais pertencentes à elite económica. Como outras manifestações
LARAIA, Roque de B. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. artísticas, a dança teatral também se estruturou como elemento de status e distinção
MAFESSOLI.Michel. O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa. para poucos que podiam praticar e/ou consumir espetáculos, ainda mais que seus
Rio de Janeiro: Fiorense Universitária, 1987. códigos se afastassem de uma construção coletiva.
Os rígidos cânones do bale clássico foram modificados somente no início do
século XX, com o movimento da Dança Moderna, apesar de terem sido questionados
DANÇA já no século XVIII pelo francês Jean-Georges Noverre, que propôs reformas na ence-
nação e na formação dos bailarinos, objetivando resgatar a expressividade do movi-
Muitos são os historiadores que reconhecem o nascimento da dança já entre as mento e a essência do ato de dançar. Ocorreram, assim, mudanças sensíveis em rela-
sociedades primitivas. Contudo, preferimos considerar que sua estruturação, como ção ao modo de pensar e praticar a dança.
um campo específico e sistematizado de conhecimento e espetáculo, vai se dar no Construíram-se outros sentidos e significados: buscou-se não só uma nova for-
século XVII, com o desenvolvimento do bale clássico.
ma de dançar, bem como novas intencionalidades para o ato de dançar, em movi-
A dança, nos seus primórdios, era uma manifestação coletiva, construída no mentos que supostamente pretendiam tornar essa arte mais próxima do público, me-
âmbito das tradições da cultura popular. Quando passa a ocupar, na forma de bale, nos artificial, menos escolástica, questionando-se o rígido espaço ocupado pela
os salões das cortes, principalmente francesa e italiana, vemos um processo paulati- técnica do bale clássico e preconizando a emoção e a relação da arte com a vida como
no de separação dessa prática do conjunto geral da população. A dança, que outrora fatores fundamentais a serem recuperados.
era popular e que não estava dissociada da vida do povo, nesta nova conformação Quando na modernidade se questionou o rigor técnico da arte académica,
passa a ser concebida como divertimento da aristocracia cortesã, assim como um não havia ainda uma metodologia que valorizasse a investigação de elementos es-
dos elementos para afirmar o prestígio e o poder desse grupo dominante.
truturadores da linguagem. É importante lembrar que qualquer arte exige um do-
Obviamente que isso não significou que a população deixou de dançar. Houve, mínio técnico que viabilize o modo específico e qualitativo do seu fazer e que a
e até hoje há, uma constante inter-relação, que deve ser compreendida à luz de um valorização da emoção e das subjetividades não pode significar o abandono dessa
processo de circularidade cultural. Devemos lembrar, inclusive, que é justamente a dimensão fundamental, sem a qual corremos o risco de uma construção sem pa-
partir dos passos, movimentos e gestos das danças populares que o bale iniciou seu râmetros, pautada exclusivamente nas articulações políticas do campo, sem crité-
desenvolvimento, entabulando um processo de refinamento aristocrático e de alta rios claros de julgamento.
complexificação técnica. Contudo, não podemos negar que se criaram mecanismos Rudolf Laban, no começo do século XX, foi o grande artista e pesquisador
de diferenciação, de valorização, destinando às danças das elites a preponderância que criou bases metodológicas do ensino da dança moderna. Ele pensou e desen-
na consideração de "melhor", mais "bonita" ou "mais adequada" forma de dançar. volveu uma proposta de dança educativa como um elo entre o conhecimento inte-
No final do século XVII, quando o bale saiu dos salões da corte e passou a ser lectual e a criatividade, permitindo que o aluno percebesse com maior clareza as
apresentado em palcos italianos, esse quadro pouco se modificou: grande parte da sensações contidas na expressão dramática do indivíduo, quer na dança teatral ou
população permaneceu ainda afastada da dança teatral. na comunitária. Para Laban, a partir da compreensão das qualidades de movimento,
É nessa época que melhor se estruturou o método académico de dança, valo- implícitas em qualquer ação humana, o aluno podia ser educado por meio do mo-
rizando-se a clareza e a harmonia das formas, a perfeição técnica, a geometrização vimento, da linguagem da dança.

60 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [DANÇA] 61


Na contemporaneidade, há um processo de rupturas e permanências no que se prisões dos sentidos, das ideias, dos prazeres, da percepção e das relações que pode-
refere à dança moderna e ao bale clássico. Trouxe-se para a dança, assim como para mos traçar com o mundo" (MARQUES, 2003, p. 26).
outras manifestações artísticas, o desafio do desenvolvimento de novas experimen- Em certo sentido, grande parte da população continua a dançar no seu cotidia-
tações para a linguagem, a busca de desconstrução de determinados parâmetros e a no e podemos, sem medo de errar, afirmar que é uma das linguagens que maior
tentativa de estabelecimento de diálogos entre as linguagens, já embrionariamente potencial tem de desenvolvimento, tendo em vista o espaço que sempre ocupou na
observados nos movimentos das vanguardas artísticas europeias no início do século história social e mesmo sua possibilidade operacional de implementação. Para dan-
XX (por exemplo, no futurismo e no surrealismo). çar, precisamos somente de música, em certo sentido, pois nem a música é completa-
Hoje a dança tem se caracterizado por uma diversidade maior de tipos corpo- mente imprescindível.
rais e pela flexibilidade dos critérios quanto ao nível de domínio técnico, o que indica Não podemos nos esquecer, contudo, de que há estímulos constantes da indús-
uma pequena abertura no sentido de maior absorção de pessoas no campo. Mas isso tria cultural para o dançar. Basta lembrarmos das muitas "coreografias" que acom-
não deve se contrapor a ideia de que intérpretes não tenham que ser constantemente panham os produtos musicais por ela difundidos (coreografias de axé, de/wnfc e dos
preparados para a pesquisa, o domínio e a expressão da linguagem corporal. grupos de pagode). Podemos até questionar a qualidade desses construtos (seu vo-
No Brasil, apesar de já existirem iniciativas ligadas à prática desde o século cabulário corporal restrito e pobre, a ausência de liberdade de criação e expressão
XIX, inclusive no que se refere ao lecionar e ao formar bailarinos, o primeiro grande dos corpos, já que o público fica submetido à reprodução de certos modelos), mas
impacto da arte da dança ocorreu com as apresentações da companhia russa de Dia- não podemos negar a sua penetrabilidade.
ghilev, na década de 1920. A elite do Rio de Janeiro emocionou-se ao assistir à inter- Por outro lado, os espetáculos de dança não fazem parte das opções usuais de
pretação de Nijinsky. lazer de grande parte da população. Na verdade, aliás, quando falamos em espetáculo
A primeira escola de dança, fundada em 1927, do Teatro Municipal do Rio de de dança, vem logo no imaginário da grande maioria a estilística do bale clássico.
Janeiro se deve à permanência no Brasil da solista Maria Oleneva, da companhia de Evidentemente, este é um estilo que produz encantamento em razão dos movimen-
Ana Pavlova. Apesar de o teatro existir desde 1909, a dança só foi se estabelecer de tos virtuosos apresentados pelos bailarinos, seus temas fantasiosos, seus belíssimos
forma organizada a partir dessa ocasião. O corpo de baile foi oficializado em 1936, figurinos e cenários. Sem esquecer, principalmente, que a tradição de sua existência,
mas é apenas a partir da década de 1950 que a companhia experimenta um novo que atravessa mais de quatro séculos, perpetua-se no imaginário coletivo.
estilo de dança. É por intermédio de Nina Verchinina, bailarina do Ballet Russe de
Os espetáculos de dança contemporânea, que vêm ocupando espaço no cenário
Monte Cario, que a dança moderna chegou ao Municipal.
da dança em todo o País e no exterior, tendo em vista seu poder de afetação e mudança
Verchinina foi uma das principais responsáveis pela difusão da dança moder- de consciência, ainda se encontram distanciados do lazer das camadas populares. Ob-
na nas academias do Rio de Janeiro. Assim, começaram a se formar, no Brasil, escolas
viamente que não podemos também deixar de considerar isso à luz do contemporâneo
e companhias de dança, notadamente no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Hori-
processo de tensão no âmbito da cultura e da ação da indústria cultural.
zonte, em Curitiba e em Salvador.
Já protestava Artaud, no começo do século XX, contra a ideia de isolamento
No ensino de 3° grau, a partir de 1939, a dança se instituiu como parte inte-
entre vida e arte/cultura, como se a arte/cultura não fosse um meio refinado de com-
grante dos currículos de Licenciatura em Educação Física, sendo Helenita Sá Earp a
preender e exercer a vida. Para o grande pensador da arte da encenação, o mais ur-
pioneira na Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É
gente não seria defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser hu-
somente na década de 1970 que surge a primeira iniciativa específica no nível supe-
rior: a Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. mano de ter fome, mas extrair daquilo que se chama arte/cultura ideias, cuja força
viva é idêntica à da fome.
Como pensar as peculiaridades dessa arte como forma de lazer e como estraté-
gia de intervenção pedagógica? O conhecimento em dança articula-se com o conhe- Compreender a dança como opção de lazer parte desse pressuposto. Um pro-
cimento por meio da dança, problematizando e abrindo o leque de possibilidades de cesso de educação para e pela dança deve permitir e incentivar um diálogo crítico
relações entre arte, ensino, aluno e sociedade. Devemos, sobretudo, ter em mente que, mediante referenciais técnicos construídos, permitindo o desenvolvimento de cons-
"ao contrário do que nos dita o senso comum, as aulas de dança podem ser verdadeiras ciências acerca das mais diversas possibilidades de expressão através do corpo.

62 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [DANÇA] 63


Se desejarmos contribuir para a formação de produtores de cultura, e não só repro- Dumazedier (1976), que as anuncia como descanso, diversão e desenvolvimento,
dutores, tal processo não pode prescindir de compreensão acerca dos diversos senti- concepção adotada e aprimorada no conceito de lazer defendido por Marcellino, uma
dos e significados que o ato de dançar obteve no decorrer da história. das principais referências no campo do lazer, no Brasil. Consequentemente, a men-
ção à diversão como uma das funções ou objetivos do lazer é usual. Associada a essa
Maria Inês Galvão Souza prática, critica-se a visão reducionista do lazer, em que não só as funções de diverti-
Victor Andrade de Melo mento e descanso devem ser priorizadas, como também o desenvolvimento. A diver-
são aparece, assim, como elemento importante, entretanto o lazer não pode se redu-
zir a ela, embora isso aconteça.
Bibliografia
Em outros estudos, o termo toma a dimensão da compensação. A diversão é
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
valorizada porque demanda recuperação de energias gastas no trabalho; é útil por-
GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
que alivia tensões. Uma abordagem utilitarista.
LABAN, Rudolf. Dança educativa moderna. São Paulo: ícone, 1990
Encontramos também a palavra como benefício proveniente da experiência do
MARQUES, Isabel A. Ensino de dança hoje. São Paulo: Cortez, 1999.
lazer. Junto com alegria, prazer e liberdade, a diversão é vislumbrada como resultado/
PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
recompensa. Alcança evidência, pois acredita-se que ela rompe com o tédio e a rotina,
SOUZA, Maria Inês Galvão; PEREIRA, Patrícia Gomes; MELO, Victor Andrade de. Dança e animação
provocando evasão, fuga e desvio. Uma visão simplista e compensatória, considerando
cultural: improvisações. Pensar a prática. Goiânia, 2003. no prelo.
que as regras que regem a vida, em suas diferentes dimensões, são as mesmas.
Há pesquisas, no entanto, em que o entendimento do termo é discutido, pro-
blematizado e desenvolvido. Essas pesquisas apresentam, principalmente, duas ca-
DIVERSÃO racterísticas: versam sobre a história da recreação, lazer ou tema afim; ou tratam do
lazer rural. Situo uma e outra.
A diversão não é um tema corrente nas pesquisas no campo do lazer. Pouquíssimos
As pesquisas que elegem o lazer e a história como objetos, que almejam proble-
estudos priorizam o assunto. Isso, portanto, não indica que as investigações não fa-
matizar e engendrar conceitos de recreação, lazer, ócio, etc., percorrem caminhos cujo
çam menção ao termo. Verifica-se, na maioria das vezes, a ocorrência de uma abor-
retorno às sociedades pré-industriais é quase certo. Nessas sociedades, o lazer apreen-
dagem indireta em estudos sobre consumo, trabalho, lazer, etc.
de o significado de diversão, que tem como principal traço a não-dissociação de outras
O comum é o termo aparecer como sinónimo de palavras como lazer, entrete- esferas da vida, como o trabalho. A compreensão do termo torna-se, então, essencial
nimento e tempo livre. Em muitos trabalhos, confunde-se diversão com lazer, di- para entendimento do lazer, recreação, etc. Entretanto, a fundamentação teórica de dis-
vertimento com tempo livre, entretenimento com tempo de não trabalho, ócio com tintas pesquisas tem como referência análises realizadas, principalmente, em outros
ociosidade, etc, permutando-se em combinações diversas. Situação prejudicial para países, o que reclama inquirições sobre a nossa realidade cultural. Quero destacar que
o aprimoramento do debate na área, pois transparece a falta de construção e estabe- são poucas as pesquisas que versam sobre história e lazer no Brasil. Raras as que abar-
lecimento de conceitos, bem como da explicitação de autores da compreensão de ele- cam a primeira metade do século XX, período em que esse fenómeno ainda era inci-
mentos essenciais em suas argumentações e reflexões. piente. Notáveis as que abordam períodos anteriores a este - indicando necessidade de
Tudo isso demanda, portanto, certa confusão de conceitos que podem (ou não?) pesquisas. Pimentel (1988), por exemplo, tendo como tema o rodeio, estuda os diverti-
se aproximar, opor e/ou complementar, conforme o tempo histórico e social em que mentos do Brasil agrário na época colonial e a persistência dos traços coloniais em
significados lhes são atribuídos nas práticas culturais. Nesse emaranhado, o termo manifestações do lazer do século XX. Para ele, o rodeio foi, no início do século XIX, uma
aparece com alguns significados que prevalecem, embora alguns autores não expli- prática rústica de diversão e a ruralidade produziu entretenimentos que ainda persis-
citem preocupação como o seu devido uso ou sua devida apropriação. tem nos diais atuais, como o rodeio, hoje um evento de massa.
Ao escreverem sobre o lazer, movidos por interesses diversos, pesquisadores Os pesquisadores que estudam o lazer, entre o urbano ou o rural, normalmente
frequentemente fazem referência às funções sociais desse fenómeno, tendo como base preferem o primeiro. Isso ocorre porque o conceito moderno de lazer, fenómeno social

64 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [DIVERSÃO] 65


institucionalizado, concilia-se diretamente à revolução industrial e ao processo de ur- entendida como desvirtuadora dos valores cristãos, provocadora de desordem e per-
banização, não significando proveniência exclusiva deles. Conseqíientemente, as inves- dição" (MARIN, p. 79). A orientação era preencher o tempo com trabalho ou oração,
tigações que têm o lazer urbano como objeto buscam conhecimentos sobre o mundo pois as diversões eram condenadas; porém, persistiram.
predominantemente urbano e industrializado, em que o tempo fragmentado rege. Es-
A etimologia da palavra diversão, datada no século XVII, "vem do latim tardio
tudam-se, pois, espaços e tribos urbanas, equipamentos de lazer, como parques, praças
diversio, anis 'digressão, diversão', do verbo latim divertere 'afastar-se, apartar-se, ser
e clubes. O campo/campestre geralmente aparece em poucas situações - quando o con-
diferente, divergir'." (HOUAISS, 2001). Reporta-se ao desvio de algo útil para algo inútil,
teúdo é esporte radical ou o equipamento é um hotel fazenda, por exemplo.
ao afastamento de um trabalho precioso, de qualquer séria ocupação, para se entre-
Ao abordar o lazer rural - ocorrências, permanências e transformações -, os gar a outra ocupação menos necessária. Divertir, fazer uma diversão, "é tirar, ou di-
autores discorrem sobre a diversão de forma mais cuidadosa e criteriosa. Nas socie- minuir a aplicação a algum estudo, negócio. Desviar de alguma ocupação, empresa,
dades rurais, trabalho, não-trabalho, diversão, religião, etc., estão relacionados, não
etc." (BLUTEAU, 1712).
ocorrendo uma divisão rígida, portanto. A divisão social do tempo e espaço - histo-
ricamente em transformação - é diferente da predominante na atualidade, em que o Ressalto a citação supracitada sobre a educação das colonas para estabelecer
ritmo é acelerado, busca-se a exatidão e o tempo/espaço estabelecidos para práticas outro significado atribuído à diversão, que diz sobre a sua negatividade, associando-
diversas, como lazer, trabalho, alimentação e cuidados corporais -, embora muitas a à ociosidade, ao vício, ao tempo para obrar coisas inúteis. Essa valorização, cons-
vezes burlados, conciliados, transgredidos, entremeados e/ou violados. truída sob forte influência do eclesiástico, estabelece uma moral social, ditando bons
costumes e boas condutas.
Como cita Corbin (2001, p. 6), no início do século XIX, "o tempo do camponês,
o do artesão, tal como o do operário eram porosos, impregnados de imprevistos, aber- A diversão é, então, moralizada, criam-se novos valores associados ao vício, à
tos à espontaneidade, sujeitos à interrupção fortuita ou recreativa. Este tempo de re- doença, à inutilidade e ao desonesto. No entanto, existe a diversão lícita - permitida,
lativa lentidão, flexível, maleável, ocupado por atividades muitas vezes mal determi- conforme a lei e aos princípios do direito - e a ilícita - proibida, condenada pela lei e/ou
nadas foi sendo pouco a pouco substituído pelo tempo calculado, previsto, ordenado, pela moral - que convivem, harmoniosamente ou não, nos diferentes tempos e locais. O
precipitado da eficácia e da produtividade; tempo linear, estritamente medido que entendimento da construção social desses valores denuncia permanências e desconti-
pode ser perdido, desperdiçado, recuperado, ganho". nuidades que precisam ser investigados em nosso contexto cultural.
Alguns elementos conformam, portanto, a diversão nas sociedades rurais, como A negação da diversão em benefício da racionalidade teve entre suas consequências
coletividade, dispensabilidade de artefatos, continuidade temporal e espacial entre a institucionalização do lazer - ação que reclamou intervenções e estratégias múltiplas. O
as esferas da vida humana e ritmo não determinado pelo mercado. Tomo como exem- lazer moderno/institucionalizado congrega referências como padronização, organização,
plo as festas, uma forma de diversão. Ao escrever sobre as camponesas, Canclini (1983) uso de equipamentos, precisão e ocupação; configura-se pela ocupação do tempo com
as caracteriza como acontecimentos coletivos enraizados na vida produtiva, celebra- experiências lícitas, saudáveis, segundo o modelo determinado. Para compreender esse
ções fixadas de acordo com o ritmo do ciclo agrícola ou o calendário religioso. Já as processo ou a constituição e transformação dos significados atribuídos ao termo diver-
festas na cidade adquirem outras características: sofrem influências das relações ex- são, um caminho interessante é olhar para o próprio discurso da Igreja.
trafamiliares, da comunicação de caráter massivo e da indústria do lazer, ou seja, a Obras de teólogos e moralistas, como compêndios, prontuários e dicionários
participação é mais individual, as datas mais arbitrárias e o motivo religioso, quan- de casos de consciência, que circularam em diversas instituições educativas da Améri-
do existe, é colocado em segundo plano pela lógica mercantil. ca Portuguesa, trazem normas religiosas que deveriam reger, governar, dirigir e regular
Em seu estudo sobre trabalho e diversão de mulheres colonas que vivem no todas as ações do homem cristão, como a sexualidade, o trabalho e a diversão.
meio rural, um dos raros em que a diversão é matéria primordial, Marin (1996) tam- A teologia moral ensina "com clareza tudo o que devemos fazer, e de que deve-
bém cita a relevância das celebrações festivas entre as formas de diversões por ela mos fugir, para conseguirmos a salvação", fazendo conhecer boas e más ações, bons
encontradas. Consequentemente as discute num capítulo específico.
e maus costumes. Larraga (1813, p. 260-63) enumera diversas ações para as quais
"A vida dessas colonas está pontilhada por uma educação privilegiando o deveriam os confessores orientar, como: "Não dar, nem receber banquetes, não ir
trabalho em detrimento do jogo, do divertimento, do descanso. [...] A diversão era aos espetáculos públicos, nem consentir em sua casa algum divertimento, ainda

56 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]


[DIVERSÃO] 67
Os termos equipamento social e equipamento público também são bastan- de semana. Por sua vez, o macroequipamento polivalente caracteriza-se como um
te utilizados, especialmente na área do urbanismo e em documentos administrativos equipamento de grandes dimensões, adequado para receber um grande número de
de órgãos públicos e prefeituras, tais como os planos diretores, para designar equipa- pessoas, com amplas áreas verdes, que oferece a possibilidade de vivência dos diver-
mentos urbanos em geral, constituídos para atender à população e suas diferentes sos interesses do lazer. Esse tipo de equipamento tem seu pico de uso nos fins de
necessidades (lazer, educação, saúde, transporte, etc.). semana e deve estar situado em pontos estratégicos da cidade, de fácil acesso à popu-
lação, uma vez que eles não existem em grande número.
Na publicação Cadernos de Lazer l (1977) organizada pelo SESC de São
Paulo, encontramos uma espécie de apêndice que se intitula "Bibliografia Básica Como tratado anteriormente, trata-se de três modelos ou instrumentos de aná-
de Lazer (Europa e Estados Unidos)". Nessa compilação encontramos uma peque- lise. À medida que observamos um equipamento na realidade concreta, podem ocor-
na lista de publicações ligadas ao tema" Habitat e Equipamento", todas da década rer variações nas suas características, de modo que encontremos, por exemplo, um
de 1960 e 1970, sendo que a maioria delas refere-se a publicações francesas e uma microequipamento de polivalência dirigida.
delas é norte-americana. Entre os títulos franceses encontramos a palavra équi- Um quarto tipo de equipamento apresentado pelos autores é o chamado equi-
pementou équipement culturel pamento de turismo social, cuja finalidade seria o atendimento de turistas sem re-
A partir das reflexões de diversos autores e da produção teórica que começa a ser cursos. Nessa categoria se encaixam os campings, as colónias de férias e similares.
veiculada no Brasil, a temática dos equipamentos ganha destaque, especialmente, na Historicamente, a existência desse tipo de equipamento talvez não seja tão comum
obra dos sociólogos Renato Requixa e Luiz Octávio de Lima Camargo, que dividem os no Brasil quanto nos países da Europa, porém de algum tempo para cá, com a cons-
equipamentos de lazer em dois grupos principais: os específicos e os não-específicos. tituição do turismo como campo de estudos e pesquisas, e, conseqiientemente, com
Os equipamentos específicos seriam aqueles construídos com a finalidade de a demanda de políticas para a área, alguns exemplos de equipamento de turismo
abrigar atividades e programas de lazer. Em relação aos equipamentos específicos, é social começam a surgir no cenário do turismo no Brasil.
bastante aceita entre pesquisadores e profissionais brasileiros, para fins de estudo e O outro grupo de equipamentos de lazer a que se referem os dois sociólogos é
planejamento, a classificação proposta por Requixa (1980) e por Camargo (1979), constituído pelos equipamentos não-específicos, que seriam aqueles que original-
que consideram três critérios básicos para nomear os diferentes equipamentos espe- mente não foram construídos com essa finalidade, porém acabam se configurando
cíficos de lazer. Os critérios que dão base a essa classificação são: dimensão física do como tais, em razão de determinadas circunstâncias. Requixa, Camargo e também
equipamento, população atendida no equipamento e interesses culturais privilegia- Marcellino (1983) indicam a casa, o bar, a rua e a escola como exemplos de equipa-
dos no equipamento. Os autores consideraram a classificação dos interesses cultu- mentos não-específicos. Considerando que, na sua origem, esses espaços eram res-
rais apresentada por Joffre Dumazedier (1980). pectivamente destinados à moradia, ao comércio, à circulação e à educação formal,
Com base nisso, Requixa (1980) apresenta três modelos de equipamento: o pode-se dizer que o processo de urbanização e a constituição de uma sociedade ur-
microequipamento especializado, o equipamento médio de polivalência dirigida e o bana contribuíram para que esses espaços passassem a figurar como locais propícios
macroequipamento polivalente. Sobre esses modelos de análise podem ser operadas para que o lazer acontecesse.
variações entre os critérios, resultando em outros modelos de equipamento, de acor- Com relação a casa, ao lar, é possível observar situações bastante contrastantes:
do com as especificidades concretas e objetivas de cada local. a casa, de fato, acaba sendo, em muitos casos, o local onde as pessoas mais vivenciam
Vejamos cada um dos modelos em separado. O microequipamento especializado o lazer, ainda que as razões para isso estejam ligadas à dificuldade de acesso aos
seria um equipamento de pequenas dimensões, capaz de atender uma população equipamentos específicos e ainda que o lazer dessas pessoas se resuma à televisão,
restrita, sendo voltado para interesses bastante específicos do lazer. Os microequipa- por exemplo. Numa situação extremamente oposta, a casa é deliberadamente provi-
mentos, em geral, distribuem-se por toda a cidade e são destinados às atividades de da de uma rede própria de equipamentos de lazer para que os habitantes não preci-
lazer diárias das pessoas. O equipamento médio de polivalência dirigida seria um sem sair dela em busca de satisfação. É o caso dos condomínios fechados de alto
equipamento de dimensões maiores, capaz de atender a uma população maior, vol- padrão, que têm se proliferado de algumas décadas para cá, em que as casas contam
tando-se para interesses mais variados. É um tipo de equipamento menos comum com uma infra-estrutura em termos de equipamentos que favorece a permanência
em relação ao microespecializado, frequentado durante a semana e também nos fins das pessoas no ambiente do lar.

[EQUIPAMENTO DE LAZER] 71
70 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
O bar, para além da sua função de comércio e abastecimento, passa a ser um Bibliografia
local de encontro, de convívio e também de veiculação de produções culturais, uma BIBLIOGRAFIA básica de lazer (Europa e Estados Unidos). Cadernos de Lazer l, São Paulo: Brasili-
vez que há um setor económico organizado em torno da produção e do consumo de ense/SESC, 1977, p. 60-64.
cultura. Nessa mesma lógica e considerando a atual valorização exacerbada do con- CAMARGO, Luiz Octávio de Lima. Recreação pública. Cadernos de Lazer 4. São Paulo: SESC, 1979,p. 29-36.

sumo de modo geral, os shopping centers também começam a figurar como equipa- CAMARGO, Luiz Octávio de Lima. O que é lazer. São Paulo: Brasiliense, 1986.
mentos de lazer, abrigando, inclusive, salas de cinema, teatros e outros tantos equipa- DE PELLEGRIN.Ana. Os contrastes do ambiente urbano: espaço vazio e espaço de lazer. Disserta-
mentos menores dentro deles. ção (Mestrado). Campinas: Unicamp, 1999.
DUMAZEDIER, Joffre. Valores e conteúdos culturais do lazer. São Paulo: SESC, 1980.
Por fim, a rua, originalmente concebida como espaço de passagem e circula-
MARCELLINO, Nelson Carvalho. Lazer e humanização. Campinas: Papirus, 1983.
ção, e a escola, como lugar da educação formal, são, eventualmente, usadas como
REQUIXA, Renato. Sugestão de diretrizes para uma política nacional de /azer.São Paulo: SESC, 1980.
equipamentos de lazer nos fins de semana ou nos períodos de férias. Vale lembrar
que nem sempre isso se dá em razão de um planejamento, senão em virtude da difi-
culdade de acesso das pessoas aos equipamentos específicos. A caracterização da
rua como equipamento de lazer, por exemplo, não deixa de ser uma questão contro- ESPAÇO DE LAZER
versa para o Poder Público, uma vez que nas grandes cidades existem cada vez me-
nos espaços públicos vazios, há problemas de segurança e de transporte, e a rua, Termo genérico que diz respeito aos lugares em que se desenvolvem ações, ati-
muitas vezes, é o lugar que "sobra", a única opção de equipamento. vidades, projetos e programas de lazer de modo geral. Em contexto restrito, é possível
Os equipamentos de lazer fazem parte do desenho da cidade moderna, isto é, encontrar a expressão espaço de lazer sendo usada para designar um lugar específi-
são formas urbanas concretas sobre as quais operam forças de ordem económica e co ou para caracterizar determinado equipamento. Do ponto de vista mais amplo,
política. Dessa maneira, ao mapear uma cidade e os equipamentos de lazer que nela espaço de lazer refere-se a um dos aspectos de uma política de lazer. Diz respeito a
existem, contrastes urbanos diversos se fazem claros aos nossos olhos: áreas nas quais como se organizam os diferentes equipamentos em uma cidade, como são distri-
os equipamentos são abundantes, variados e bem conservados e áreas nas quais eles buídos, que tipo de possibilidades oferecem. Refere-se, também, aos espaços po-
são raros e malconservados, áreas de fácil acesso e áreas de difícil acesso, equipa- tenciais (vazios urbanos e áreas verdes, por exemplo), aqueles que podem vir a
mentos superlotados e equipamentos subutilizados. Enfim, há vários contrastes pos- transformar-se concretamente em equipamento de lazer. Em suma, a expressão
síveis de ser percebidos e que revelam que: 1) a lógica do capital se estende também espaço de lazer diz respeito a toda a rede de equipamentos de lazer, vazios urbanos
sobre a distribuição dos equipamentos urbanos em geral, inclusive os de lazer, ou e áreas verdes de uma cidade.
seja, a especulação imobiliária é, ao mesmo tempo, resultado e contribuinte dos dese- A exemplo do que ocorre com a temática dos equipamentos de lazer, o tema
quilíbrios espaciais gerados em vários setores; 2) a rede urbana de equipamentos de espaço de lazer também começa a ser tratado pelos estudiosos e pesquisadores da
lazer opera estreitamente ligada à dinâmica das outras redes de equipamentos, de trans- área em estreita vinculação com as políticas de lazer e com o planejamento do lazer
porte, de habitação, etc., o que deve ser levado em conta pela Administração Pública ao e, claro, com os próprios equipamentos de lazer. Seja em políticas ou em planejamen-
desenvolver o planejamento urbano. to, os aspectos espaço, tempo, atividade, animação, equipamento têm sido aborda-
A temática dos equipamentos de lazer continua sendo objeto de estudos e pes- dos como pontos fundamentais. Dessa forma, alguns dos autores que se dedicam à
quisas na área do lazer, exigindo, inclusive, contribuições de diferentes campos do temática do espaço de lazer são os mesmos que se dedicam às políticas e ao planeja-
conhecimento, tais como a geografia, a arquitetura, o urbanismo, a sociologia, a edu- mento; as questões relativas ao espaço aparecem em maior ou menor densidade de
cação e o turismo. Nos eventos académicos da área, tem sido comum a constituição acordo com a formação, com a especificidade e com os interesses de cada autor. Dentre
de mesas temáticas em torno do eixo lazer e espaço, onde se inserem os equipamen- os autores que em algum momento abordaram as questões relativas ao espaço de lazer
tos como um dos subtemas. de forma direta ou indireta, destacamos Joffre Dumazedier, Renato Requixa, Marlene
Yurgel, Thema Patlajan, Ethel Bauzer Medeiros, António Carlos Bramante, Nelson Car-
Ana De Pellegrin alho Marcellino, Heloísa Turini Bruhns.

72 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [ESPAÇO DE LAZER] 73


Vale observar que para se falar de espaço de lazer é necessária uma base teóri- Uma vez que o espaço está intimamente ligado à política, parece oportuno dei-
ca cujas referências vêm de vários campos do conhecimento, como a geografia, a xar claro que o trato com o espaço de lazer na elaboração e na implementação de
arquitetura, a sociologia, que são áreas que lidam com o tema do espaço de modo uma política pública dependerá necessariamente dos valores com os quais se traba-
mais geral, de um panorama mais amplo. lha, das concepções de homem, de mundo e de sociedade que se tem. Nesse sentido, é
necessário compreender as conexões históricas e ideológicas do espaço de lazer com
Vários arquitetos e urbanistas chegaram a incluir o espaço de lazer como um o espaço de modo geral e com a sociedade. Para este desafio encontramos contribui-
ponto específico do planejamento urbano, ainda que baseados numa visão funcio- ções valiosas em autores da filosofia, da geografia, da sociologia, da antropologia e
nalista, como é o caso da abordagem de Lê Corbusier, na famosa Carta de Atenas
do urbanismo.
(1993). Talvez o mais importante tenha sido o fato de o tema do espaço de lazer ter
Muitos autores podem contribuir de maneira especial para a construção de
passado a merecer cada vez mais destaque no âmbito das políticas públicas urbanas.
um corpo de conhecimentos e de uma base teórica que nos permitam visualizar es-
O espaço de lazer possui importância mesmo por se caracterizar como espaço de
sas conexões do espaço. Dentre eles, destacamos aqui apenas alguns, a título de su-
encontro, de convívio, do encontro com o "novo" e com o diferente, lugar de práticas
gestão, para futuras leituras e/ou aprofundamentos. São eles: Henri Lefebvre, Milton
culturais, de criação, de transformação e de vivências diversas, no que diz respeito a Santos, José Guilherme Cantor Magnani e Jean-Paul Lacaze.
valores, conhecimentos e experiências.
A julgar pelos trabalhos que vêm sendo publicados e apresentados em eventos
A organização espacial de uma cidade se faz sob relações de poder e controle, académicos da área do lazer, pode-se dizer que já existe um eixo constituído em tor-
ou, em outras palavras, sob forças económicas e políticas que agem em diferentes no da temática lazer e espaço. Esse eixo temático tem exigido e propiciado debates
correlações, dependendo do momento, fazendo com que o ambiente urbano adquira entre pesquisadores oriundos de diferentes áreas e com formações diversificadas, o
determinados contornos. que, do ponto de vista das políticas públicas, é extremamente positivo.
O espaço em que vivemos hoje não pode mais ser chamado simplesmente de
"natureza" (como se esse termo lhe conferisse um sentido de neutralidade); o espaço Ana De Pellegrin
em que vivemos é social, é político, é económico, uma vez que as relações de poder e
de controle que se estabelecem sobre ele acabam determinando não apenas o dese- Bibliografia
nho, mas também o uso que se faz dele. LÊ CORBUSIER. A Carta de Atenas. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1993.
Se o espaço de modo geral tem significado político, essa dimensão também LACAZE, Jean-Paul. Os métodos do urbanismo. Campinas: Papirus, 1993.
está presente no espaço de lazer. As relações de poder que se estabelecem em torno MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço. São Paulo: Brasiliense, 1984.
dele e sobre ele determinam, por um lado, conforme já dissemos, como é o uso que se e Torres, Lílian de Lucca. Na metrópole. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1996.
faz desse espaço e como ele está organizado. Por outro lado, o uso do espaço e a ma- MOREIRA, Ruy. O que é geografia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.
neira como ele está organizado também vão determinar certas relações na sociedade REVISTA CARAMELO, n. 7, Grémio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/USP, 1994, p. 61 -71.
circunscrita a ele. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Hucitec, 1987.
Se concordamos com Milton Santos (1987) quando diz que cada cidadão pos- WERNECK, Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Helder Ferreira. Aprofundamento em lazer nos currí-
sui um "lugar socioeconômico", que lhe dá mais ou menos possibilidades de acesso culos dos cursos de graduação em educação física no Brasil. Coletânea. n. 12. Encontro Nacional de
aos bens e serviços da rede urbana, fica fácil perceber que o espaço de lazer está Recreação e Lazer, Balneário Camboriú, Univali, 2000, p. 92-103.
articulado com as relações de poder, de controle e de hegemonia. A tensão entre pú-
blico e privado interfere, necessariamente, no trato com o espaço urbano e, conse-
quentemente, no trato com o espaço de lazer. Nesse sentido, o planejamento urbano ESPETÁCULO
sofre efeitos da lógica do mercado e da especulação imobiliária, como denuncia o
geógrafo: as áreas ricas, as áreas fluidas, não admitem planejamento porque o mer- Ato ou manifestação que chama a atenção. Espetáculo é conceito que se identifica na
cado tem mais força que o Estado. contemporaneidade em diversas áreas da vida em sociedade. Além do universo das

[ESPETÁCULO] 75
74 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]
artes, a propaganda, a publicidade, o jornalismo, o marketing, as relações públicas, a figurinos. Na França, o jovem Louis XIV se notabilizou como dançarino e assumiu como
educação e a política recorrem ao espetáculo e a seus recursos para se consolidar. alcunha o título de um dos personagens por ele levado à cena: o "Rói Solei!" (Rei Sol). Já
Assim, espetáculo pode assumir caráter de entretenimento, lazer, formação, educa- mais velho, o rei se afastou dos palcos e foi seguido pelo resto da corte em um movi-
ção, ideologia. mento que marcou o início da profissionalização da dança francesa: os nobres passa-
Muito antes do advento dos meios de comunicação de massa e das novas tec- ram a assistir aos espetáculos, agora não mais dançados por aristocratas.
nologias, o espetáculo já ocupava importante espaço na vida social e cultural de de- No século XVIII, o mestre de ballet Jean-Georges Noverre se afastou das dan-
terminadas sociedades. ças cortesãs e buscou inspiração no gestual do cotidiano para compor os célebres
A ideia de espetáculo como fenómeno feito por pessoal preparado (atores, dan- ballets d'action. Sob inspiração dos ares da Revolução Francesa que se preparava,
çarinos, mímicos), que acontece em um local específico (o teatro), para um público aboliu os trajes pesados, pomposos dos nobres e vestiu os dançarinos com roupas
que vai até lá para assistir a ele (a plateia), surgiu, no Ocidente, da Grécia Antiga, que facilitavam e valorizavam a movimentação.
embora em outras culturas, como a chinesa e a egípcia, também se explorasse o es- Ainda no universo das artes cénicas, a partir do século XVIII, a ópera se tornou
petáculo milenarmente. diversão popular, especialmente na Itália, na Alemanha e na França. A história da
ópera, no entanto, começou também na Grécia Antiga, no teatro. "As peças de Esqui-
Na Grécia Antiga, a noção de espetáculo reunia o que na Idade Moderna seria
lo, Sófocles e Eurípedes permanecem como alicerces do teatro no Ocidente. Desta
separado em dança, teatro, mímica, música, ópera, circo. Esse complexo ritual -
rica fonte da primitiva tragédia grega, desenvolveu-se a forma de arte por nós deno-
musiché - tinha origem religiosa no culto ao deus Dionísio (ou Baco para os roma-
minada ópera." (Di GAETANI, 1988, p. 21).
nos, posteriormente) com o intuito de homenagear para obter uma boa colheita e
celebrar para agradecer pela boa safra. O século XIX foi a época áurea - sob inspiração romântica - do ballet clássico
e da ópera. O ballet do século XIX teve como grande criador o francês radicado na
O espetáculo grego assumia a importante tarefa de formar a plateia, veiculando
Rússia Marius Petipa. A ópera teve como mais proeminentes representantes Giu-
mensagens, valores para públicos de milhares de pessoas. A tragédia grega possuía
seppe Verdi e Richard Wagner. Na metade do século XIX e princípio do século XX,
finalidade moral e ideológica, recorrendo, para isso, aos mitos da tradição oral. Hou-
desenvolveram-se formas mais simples de ópera cómica em vários países: eram as
ve época em que o Estado grego tomou para si a organização do teatro, instituindo
operetas. Nesse tipo de teatro musical, o texto ou roteiro é mais importante que a
concursos entre os poetas dramáticos. Desses, eternizaram-se especialmente Sófo-
música. Nasceram daí géneros como os musicais americanos da Broadway, inspira-
cles, Esquilo e Eurípedes. O espetáculo se popularizou.
ção para os musicais do cinema.
Os romanos não geraram trágicos como os gregos, mas espalharam casas de
O final do século XIX e o início do XX marcaram a busca por outras formas de
espetáculos por todo seu império - além do território hoje conhecido como Itália, expressão cénica por meio do corpo em movimento. Loie Fuller fez experimentos
pela Gália, Ibéria, África do Norte, Danúbio. Os romanos também aperfeiçoaram e com a luz em cena. Suas performances dançadas marcaram a busca de movimento
criaram máquinas e andaimes para obter recursos especiais para a cena. distinto daquele que o vocabulário do ballet clássico proporcionava. Isadora Dun-
Na Idade Média, após a queda de Roma, o teatro "pagão" foi proibido, pois o can, Bronislawa Nijinska, depois Martha Graham e Mary Wigman, de diferentes for-
espetáculo com intenção artística ou estética não foi considerado adequado. No seu mas e com distinas intenções, buscaram dançar outras danças, com corpos forma-
lugar, no entanto, a Igreja utilizou o drama litúrgico, os "autos", para catequizar. No- dos de modo diferente e resultando em espetáculos mais próximos do corpo urbano,
vamente, o espetáculo foi utilizado como recurso para veiculação de determinadas industrializado contemporâneo. A americana Isadora Duncan buscou dançar uma
mensagens, geralmente ligadas ao calendário litúrgico. "dança livre", livremente inspirada na Grécia Antiga, sem o virtuosismo do método
Com o Renascimento italiano, a inspiração na cultura greco-romana voltou à do ballet, com túnicas soltas no corpo e pés descalços. A alemã Mary Wigman foi
tona. Os espetáculos não-religiosos foram valorizados nos círculos aristocráticos. No expoente da dança expressionista alemã. No período entre a Primeira e a Segunda
universo da dança, a construção da noção de espetáculo levou séculos para se consoli- Guerras Mundiais, dançou mostrando dor, pessimismo.
dar. No Renascimento - especialmente na Itália e na França -, notabilizaram-se os ba- A noção de espetáculo e a sua relação com o entretenimento são questões que
les das cortes, peças de longa duração dançadas e vistas por nobres vestidos em ricos ocupam pensadores da área. No universo do teatro, uma questão sempre esteve

76 [DICIONÁRIO CRfnco DO LAZER] [ESPETÁCULO] 77


pós-moderna, até rodeios já acontecem em espaços híbridos entre a cidade e o cam-
presente: Deve ou não o trabalho cénico formar/educar o público? O teatro deve po, como pode ser observado nas periferias das grandes centros urbanos ou nas ci-
assumir uma tarefa pedagógica, política, conscientizadora?
dades de forte influência rural.
O dramaturgo Bertold Brecht foi um dos autores que questionou o fazer teatral O espetáculo também é uma questão importante nos estudos das ciências so-
e sua tarefa na sociedade. Suas histórias não visavam impressionar, provocar emo-
ciais e das humanidades em geral. Guy Debord, um dos grandes nomes das teorias
ções, catarse e sim trazer o espectador à razão. Seu trabalho foi revolucionário ao
sociológicas do espetáculo, considera que a sociedade modernizada chegou a um
questionar, com seu método, a tradição teatral aristotélica que tinha corno objetivo,
estágio de espetáculo integrado, caracterizada pelo efeito combinado de aspectos pós-
através do espetáculo, levar o público à catarse, à purgação e ao alívio, por meio da
industriais como a renovação tecnológica incessante, a fusão entre economia e Esta-
identificação com os mitos.
do e o presente perpétuo.
No Brasil, também no século XX, um dramaturgo buscou outra tarefa para o
Para Debord, o movimento de inovação ideológica não é recente, é fruto do
teatro que não o entretenimento: Augusto Boal estabeleceu seu teatro do oprimido,
inundo capitalista e está exponencialmente presente no imaginário industrial e pós-
buscando fazer o público participar da cena, colocar-se. Com intenção completa-
industrial. Na sociedade do espetáculo, a mercadoria contempla a si mesma num
mente diferente, Nelson Rodrigues compôs uma obra que ele mesmo declarou ser
mundo que ela própria cria. O espetáculo produzido pelo capitalismo, fundamenta-
"desagradável", sem objetivo de "agradar".
do na mercantilização de tudo e no fetichismo generalizado, abre caminho para sua
Na contemporaneidade, espetáculo tornou-se sinónimo de representação teoria crítica da sociedade moderna.
teatral e de toda a ação que acontece no espaço da cena. Isso implica em graus
Nesse contexto, o espetáculo é uma relação social mediada por imagens, resul-
variados de profissionalização dos atuantes e dos que trabalham na produção e
tado e projeto do capitalismo. A atual ideologia da democracia estaria, portanto, con-
realização de um espetáculo. No senso comum, o espetáculo tornou-se metáfora
dicionada à liberdade ditatorial do mercado, temperada pelo reconhecimento dos
para tudo o que chama a atenção, atrai e prende o olhar; cena ridícula ou escanda-
direitos do consumidor/espectador. Debord defende a hipótese de que o espetáculo
losa; o que dá muito na vista; ostentoso, pomposo, espalhafatoso e, paradoxalmen-
não se esgota na mídia, mas está diretamente relacionado ao mundo da produção. Na
te, algo considerado ótimo ou excelente. Assim, o conceito pode ser empregado tanto
contemporaneidade, está explícito nas mais diversas situações, desde o merchandi-
em sentido pejorativo quanto positivo. Na mídia, programas de televisão e cader-
sz«£teatralizado dentro de um supermercado até os grandes shows de cantores po-
nos culturais em jornais se ocupam com uma programação dita "cultural", divul-
pulares nas praias. Apesar da visão crítica acerca do espetáculo na contemporanei-
gando a lista de espetáculos em cartaz. Espetáculo, nesse caso, assume ampla defi-
dade, Debord busca na vida cotidiana a base da contestação social.
nição, abarcando apresentações musicais, encenações teatrais, execuções de
coreografias, performances e tudo o que possa ocorrer sobre um palco. Nesse sen- Denise da Costa Oliveira Siqueira
tido, espetáculo assume claramente contornos de entretenimento.
Ricardo Ferreira Freitas
A experiência do espetáculo como opção de lazer na sociedade contemporânea
está diretamente ligada ao consumo. Sob a ótica da Indústria Cultural, prevalece o es-
petáculo da comercialização das artes. DVDs com clipes de cantores, minúsculas salas Bibliografia
de cinema em shopping centers, lojas de museus e compras de ingressos pela Internet
BOURCIER, Paul. Histoire de Ia danse en ocàdent. Paris: Seuil, 1994. v. l e 2.
são alguns exemplos que compõem o atual cenário do consumo do espetáculo. Mesmo
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o Iluminismo como mistificação de
o jornalismo, com sua tarefa ligada à informação, vem adotando o formato de espeta- massa. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
cularização da notícia em diversos meios, especialmente os eletrônicos.
Dl GAETANI, John Louis. Convite à ópera. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
Com isso, o lazer-espetáculo é cada vez mais vivido em territórios fechados. SUBIRATS, Eduardo. A cultura como espetáculo. São Paulo: Nobel, 1989.
Já os espaços públicos, a rua, a praia, a praça contam hoje mais com espetáculos DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.
produzidos pelas prefeituras e empresas especializadas em grandes eventos do que
DEBORD, Guy. Commentaires sur Ia société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.
com manifestações espontâneas de festividade como o carnaval de rua da primeira
ORTEGA Y GASSET, José. A ideia de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1991.
metade do século XX. O imaginário rural também faz parte da espetacularização

[ESPETÁCULO] 79
78 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
NOVERRE, Jean-Georges. Cartas sobre a dança. In: MONTEIRO, Mariana (Org.). Noverre, cartas so- de produção. Para tal, consolidava-se uma aliança entre Estado, poder jurídico e reli-
bre a dança. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1998. gião, que passam a condenar e perseguir as práticas populares, dentre as quais os
KLEIST, Heinrich von. Sur lê théâtre de marionnettes. Paris: Mille et une Nuit, 1998. antigos jogos (obviamente não sem resistência daquelas camadas).
FEBVRE,Michèle. Danse contemporaine et théâtralité. Paris: Chiron, 1995. O esporte recém-sistematizado passa, então, a ser oferecido como uma diver-
são "apropriada" à população, como forma de substituição dos antigos jogos popula-
res condenados. A mesma população que vira a sua possibilidade de jogar subtraída
e perseguida passa a ter o "direito" de acesso ao espetáculo esportivo, fundamental-
ESPORTE mente concebido como consumo passivo, tanto no sentido da prática em si (não se
Existem duas tendências não necessariamente antagónicas quando nos referimos à podia jogar, somente assistir), quanto no sentido de interferir no desenvolvimento
definição das origens do esporte. Em uma delas, acredita-se que tal manifestação do campo que se gestava (não se tinha a possibilidade de participar da direção de
cultural já existia desde a Antiguidade, sendo identificada em jogos que eram prati- iniciativas e entidades representativas).
cados por povos diversos (chineses, egípcios, gregos, romanos, dentre outros) no No século XIX, o esporte rapidamente se difundiu por vários países, dialogando
decorrer da História. Na outra, procura-se entendê-lo como um fenómeno da com as culturas locais. Observam-se ressignificações nos seus sentidos, em razão das
modernidade que, mesmo apresentando similaridades técnicas com antigas prá- tensões comuns que se estabelecem no âmbito dos encontros culturais, mas pode-se ob-
ticas corporais, possui sentidos e significados bastante diferenciados daqueles jo- servar a manutenção de muitas de suas características originais. Esteve inserido nos pri-
gos "pré-esportivos". mórdios do desenvolvimento da cultura de massas e da sociedade dos espetáculos, ade-
A despeito das diferenças de concepção, não tíá como negar que desde o final quando-se às peculiaridades culturais da sociedade ocidental das transições do século
do século XVIII essa manifestação cultural apresenta características marcantes e XIX-XX, período denominado de Belle Époque em diversas localidades.
observáveis até os dias de hoje: a) se organiza em forma de clubes.federações, confe- Nesse momento, o esporte já era concebido como um estilo de vida pelas elites,
derações e outras entidades locais, nacionais e internacionais; b) possui um calendá- um sinal de status e distinção. O acesso aos clubes era permitido somente para pou-
rio próprio, já não mais sendo praticada estritamente de acordo com outros tempos cos. Ressalte-se que até esse momento ainda não estava definitivamente estabelecida
sociais; c) envolve um corpo técnico especializado cada vez maior (treinadores, pre- uma relação entre o esporte e o exercício físico. Aliás, durante muito tempo, alguns
paradores físicos, dirigentes, gestores,psicólogos, médicos, dentre muitos outros); d) até mesmo compreendiam a intensa movimentação física como prejudicial à saúde.
gera um enorme mercado ao seu redor, que extrapola até mesmo o que a princípio Na Europa, há similaridades entre o crescimento das preocupações com a "saúde
poderia ser considerado específico da prática esportiva. corporal" e o desenvolvimento do "esporte moderno" (basta lembrar a criação dos
É importante entender o processo de organização do "esporte moderno" para métodos ginásticos, já observáveis nos primeiros anos do século XIX), mas em ou-
que se possa compreender sua importância no século XX, notadamente como um tros países tal processo se deu em momentos posteriores (como no caso do Brasil).
dos principais produtos da indústria cultural, um dos mais procurados e acessados Não por acaso, em muitos países, inclusive no nosso, o turfe esteve entre os
nos momentos de lazer. Não é equivocado afirmar que o esporte foi uma das mais primeiros esportes a se organizarem. O turfe era bastante adequado ao novo modelo
influentes manifestações culturais do século passado. de sociabilidade que estava em desenvolvimento. Os hipódromos, instalações para a
No século XVIII, originou-se dos jogos populares apreendidos pelas public prática das corridas de cavalos, permitem que as pessoas assistam às apresentações
schools inglesas (escolas responsáveis por formar os filhos dos membros da bur- e sejam vistas, podendo ser divididas as arquibancadas de acordo com o poderio
guesia). Tais jogos tiveram seus sentidos completamente modificados, passando a económico. Era também adequado por estar mais próximo de uma realidade ainda
ser concebidos como estratégia "educacional", de controle corporal e de prepara- mais rural do que urbana. No mais, quem faz a atividade física é um animal, condu-
ção de lideranças. zido por um homem normalmente oriundo das camadas populares (o jóquei).

Ao mesmo tempo, entabularam-se iniciativas de controle das diversões das ca- O acirrar da relação entre o esporte e a atividade física se dá com o aumento
madas populares, cuja perspectiva era o forjar de uma nova cultura (articulação de das preocupações com a saneabilidade das cidades e com a saúde da população,
conjunto de valores e de sensibilidades) necessária à implantação do modelo fabril que se desenvolveram em muitos países dados os desdobramentos do avanço da

80 [DICIONÁRIO CRÍTICO no LAZER] [ESPORTE] 81


industrialização e da rápida urbanização. Era necessário estabelecer novos parâ- Por certo, por tais características, o esporte também foi e continua sendo utili-
metros de convivência que permitissem às nações rumar em "direção ao progres- zado diversas vezes por regimes políticos e administrações governamentais como
forma de investimento para encaminhar suas propostas de intervenção social e fun-
so". Nesse sentido, cada vez mais se fazem necessárias estratégias de controle cor-
damentalmente como forma de propaganda de uma suposta eficácia administrativa.
poral e de preparação de um "corpo saudável" para a condução da nova perspectiva
socioeconômica. Isso é notável em ações de governos ditatoriais, sendo perceptível nas Copas do Mun-
do de Futebol e nos Jogos Olímpicos, festivais mundiais que compõem uma das face-
O esporte passa também a ser concebido como estratégia de formação corpo- tas mais conhecidas do fenómeno esportivo.
ral; uma boa ferramenta para a preparação de corpos musculosos (que passaram a
Não se deve negligenciar o fato de que o esporte é um dos mais potentes ele-
ser considerados como padrões de "saúde"), bem como para a difusão desse modelo.
mentos de desenvolvimento de identidade nacional. Basta lembrar que há mais paí-
Um novo modus vivendis estava sendo construído e o esporte nele se inseria. No Bra-
ses filiados à FIFA do que à ONU. Além disso, vale a pena atentar para o relaciona-
sil, o remo é exemplar dessa mudança. Já não é mais um animal que corre, como no
mento constante do fenómeno esportivo com outras linguagens. O objeto é tematizado
turfe, mas sim um homem que conduz o barco com seus próprios braços. Nas corri-
em filmes, em escritos literários de diferentes naturezas, em letras de músicas, em
das de cavalos, o jóquei deve ser fraco e pequeno, enquanto no remo os atletas eram
obras de artistas plásticos, em peças de teatro.
fortes e "saudáveis", constantemente retratados em posições que valorizassem seu
É importante perceber que, dado o seu valor económico e a sua adequação aos
físico. O remo era o esporte do mar, da modernidade, do indivíduo audaz que enfren-
ta as ondas bravias. novos valores culturais em voga (dimensões que devem ser compreendidas de forma
articulada), o esporte é uma das práticas culturais mais difundidas no século XX. As
A partir do remo, no Brasil, os esportes em geral (na época o ciclismo, o atletismo maiores audiências televisivas mundiais estão exatamente constituídas ao redor das
e natação) vão paulatinamente perdendo a característica de jogo de azar (uma influên- Copas do Mundo de Futebol e dos Jogos Olímpicos. Sem sombra de dúvida, pode-se
cia do turfe) e ganhando cada vez mais um caráter de escola de virtudes e caráter. afirmar que é a manifestação que maior número de pessoas consegue mobilizarão seu
É importante perceber que, desde o início da organização do "campo esportivo" redor, tendo grande interferência nos comportamentos, hábitos e costumes.
(pois estamos falando não de uma prática que se encerra em si; além de possuir O esporte é uma das principais formas de lazer de grande parte da população, tendo
certa autonomia, o objeto tem influências para além de suas especificidades), esta- o potencial de alcançar os mais diversos públicos: interessados em "aventuras", seja na
vam concebidas e implementadas estratégias de negócios. As elites, responsáveis natureza (montanhismo) ou em espaços construídos (skate); envolvidos em atividades
pela condução do campo, obtinham lucros com as vendas de ingressos, com as apos- com o caráter de espiritualização e/ou fuga do cotidiano (desde caminhadas até ativida-
tas e loterias, com a venda de "objetos esportivos". Ganhava-se dinheiro das mais des físicas suaves como ioga, tai chi chuari); há os que gostam de esforços mais intensos
diversas formas. A imprensa também lucrava, ao vender espaços para a propaganda (musculação, longas corridas); há os que preferem as lutas (caratê.judô) e aqueles que
dos clubes e ao aumentar sua vendagem em dias próximos às competições. se envolvem com jogos coletivos, dentre os quais se destaca o futebol. De alguma forma
Com a vinculação do esporte à"saúde" (uma relação equivocadamente linear que há um interesse generalizado em algo ligado à prática esportiva, mesmo que seja pontu-
permanece até os dias de hoje), muitos outros produtos passam a ser vendidos: tónicos, al, por parte de mulheres e homens, crianças, adultos, idosos, ricos e pobres.
fortificantes, extratos. Cada vez mais o fenómeno é identificado como uma "forma de Quando entendemos o esporte como forma de lazer, alguns problepias são
viver", adotada pelos "modernos". No vestuário, por exemplo, vemos surgir e se popu- notáveis. Um deles, claro em nosso país, é a monocultura do futebol. Em muitas
larizar o paletó saco, o ténis, o short, todos produtos decorrentes da prática esportiva. O ocasiões, os indivíduos são mesmo refratários a outras práticas. Obviamente isso se
esporte lança modas e influencia a vida das pessoas por todo o mundo. articula com o espaço privilegiado que ocupa nos meios de comunicação (jornais,
O mercado ao redor do campo não só faz uso das imagens esportivas para ven- televisão e rádio). O tempo de exibição do futebol supera em muito o de outros es-
der suas mercadorias, como também, nesse processo, ajuda a reforçar sentidos e sig- portes, sendo um desafio para o animador cultural ampliar as possibilidades de vi-
nificados originariamente construídos. Hoje o esporte é apontado pelos economistas vências esportivas de seu público-alvo.
como um dos maiores produtos de negócios e presencia-se a rápida profissionaliza- Além disso, percebe-se um consumo pouco crítico do fenómeno esportivo.
ção de sua administração. Percebe-se o auge de um longo processo. Alguns autores apontam que há uma mediação perigosa de supostos "especialistas"

82 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [ESPORTE] 83


(comentaristas, jornalistas), que acabam por obliterar uma percepção mais comple- EVENTOS
ta e complexa, por parte do público, de todas as dimensões que estão envolvidas ao
"São fatos e/ou acontecimentos estrategicamente, tendo na sua base de interesse o
redor de uma manifestação somente supostamente ingénua. Há que se retirar o es-
público a que se destina e os objetivos e resultados almejados" (CANTOU, 2002).
porte da compreensão de um entretenimento meramente ligado a um consumo des-
percebido, concebendo-o como diversão eivada de representações que devem ser bem Nos tempos mais antigos, quando não havia televisão e outros meios de comu-
identificadas pelo público. nicação de massa, as pessoas buscavam as festas, quase sempre ligadas a motivos
religiosos, desde as comemorações litúrgicas, procissões, quermesses, até aquelas que
Por certo tais dimensões acabam se articulando com o fato de o esporte ser
pareciam - e na verdade eram - pagãs, mas que cumpriam uma função religiosa,
mais consumido pelas mídias do que praticado. Como profissionais de lazer, deverí-
como o carnaval. Em outras palavras, sair de casa sempre significou a busca de um
amos estar atentos à necessidade de estimular nosso público-alvo não só a assistir ao
lazer festivo, sendo as "festas" marcadas por características básicas: comemoração
espetáculo esportivo, como também a vivenciar corporalmente suas possibilidades
múltiplas de benefício e prazer. de uma data, excesso de bebidas, de sexo e, ainda, de certa forma, um certo caos.
No início da era industrial, o homem era educado para o trabalho, uma vez que
Para tal, devemos estar atentos à própria distribuição de bens e equipamentos
o paradigma estabelecido visava à ocupação do tempo com tarefas que possihjlitas-
de esperte pelas cidades, normalmente restritas ao oferecimento de quadras. Há que
sem de imediato o retorno financeiro. Considerada essa educação, as pessoas muitas
se ampliar tais possibilidades, questionando as restrições e as compreensões de que
vezes se reprimiam a participar de atividades puramente lúdicas, gerando um pre-
existiriam práticas adequadas a determinadas classes sociais. Cabe estarmos atentos
conceito em relação a lazer e eventos.
à necessidade de contribuir para ampliar as vivências esportivas da população.
Importante salientar que o homem, nessa fase, deixou por um tempo o seu lado
Por fim, vale estarmos atentos para que não venhamos a reproduzir nos mo-
fantasioso e festivo, acreditando que tais atos seriam para os loucos ou os desocupa-
mentos de lazer a mesma lógica do "esporte de alto nível", em que a vitória a qual-
dos. O homem industrial, operário, empresário não tinha tempo para tais aventuras.
quer custo adquire papel central, mesmo que nos discursos se afirme o oposto. Há
que se trabalhar no sentido de descobrir e desenvolver entre nosso público-alvo a Estava mais encantado com as máquinas que produzia em grande escala antes não
compreensão de que nos momentos de lazer a prática esportiva deve adquirir carac- imaginada, deslumbrado com as possibilidades de riqueza deixando que o seu espí-
terísticas próprias, não sendo simulacro de outros níveis. rito de celebrar, fantasiar, inerente a ele, fosse adormecendo. Adormecido, porém não
expulso de dentro do seu ser.
Enfim, o esporte não se trata, como nunca se tratou, de uma ingénua diversão.
Posteriormente, com a fase pós-industrial, as festas começaram a perder a sua
É uma manifestação cultural poderosa, influente, que envolve emocionalmente um
ligação restrita com a religião e a tradição, guardando a feição de lazer. Passaram a ser
grande número de pessoas e que hoje se apresenta como uma eficaz forma de negócios,
mais bem organizados, as atividades mais programadas e planejadas, e os excessos e o
capaz de mexer com sonhos e difundir ideias, comportamentos, atitudes.
caos mais controlados. Converteram-se em eventos, as quais, mesmo comemorando
Victor Andrade de Melo datas religiosas, perderam parte e, às vezes, todo o sentido religioso.
Ou seja, a festa passa também a atender objetivos comerciais, promocionais,
institucionais e outros, constituindo-se um instrumento de valor para organizações,
Bibliografia empresas e pessoas como forma de atingir os mais diferentes fins.
Nessa reflexão histórica, percebemos que os eventos trafegam ludicamente por
BOURDIEU, Pierre. Como é possível ser esportivo? In: _. Questões de sociologia. Rio de
Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 136-163. épocas diversas da cultura humana, refletindo sempre um momento social, trazendo
com eles uma nova maneira de apreensão do tempo e a possibilidade de aquisição de
ELIAS, Norbert. A busca da excitação: desporto e lazer no processo civilizacionaL Lisboa: Difel, 1992.
novas linguagens.
MELO, Victor Andrade de. Cidade Sportiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará,2001.
MELO, Victor Andrade. Esporte. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (Org.). Dicionário do século
O evento vem ampliar as possibilidades do entretenimento, das atividades lú-
XX: guerra e revoluções: eventos, ideias e instituições. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. dicas que, por diversos e aliados métodos, tendem para a integração social. Serve de

[EVENTOS] 85
84 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]
elo entre o indivíduo e a realidade interior e entre a relação do indivíduo com a reali- Dessa maneira, considerando a vasta abrangência da relação eventos-lazer, as
dade externa ou compartilhada. Nesse aspecto, percebemos também que os eventos festas assumem relevante papel, uma vez que representam uma ação coletiva muito
organizados sempre foram verdadeiros panos de fundo para o mundo da magia, da peculiar que compreende situações determinadas e refletem uma ordem social
fantasia, do novo, do surpreendente. momentânea:
Como representações sociais, os eventos são imagens que condensam um con- - implica uma determinada estrutura social;
junto de significados; são sistemas de referência que permitem interpretar o que nos
- envolve uma clientela específica;
acontece e servem para classificar circunstâncias, interpretar a realidade cotidiana,
- aparece como uma interrupção do tempo social;
o conhecimento social. Os eventos compostos pela bagagem cultural se expressam
por códigos, valores e ideologias que fazem uma interface entre o homem e a socie- - articula-se em torno de um objeto focal;
dade. Representam o resgate do homem festivo, fantasioso, que redescobriu o pra- - trata-se de uma produção social que pode gerar vários produtos.
zer da celebração e da participação coletiva, substituindo todas as ferramentas,
Além de ser visualizado como um produto de consumo, um evento deve ser
indumentárias do seu dia-a-dia de trabalho pelo prazer, para utilizar esse momento da
considerado estratégico pelo seu poder de comunicação e marketing, demandando
fantasia e apresentar o que realmente gostaria de ser. O fato relevante é que as pessoas,
pesquisa, planejamento, organização, coordenação, controle, implantação e avalia-
ao "se produzirem" para ir a um evento, possibilita a si mesmas o direito à cartase, à
ção que venha convalidar seus objetivos e a plena satisfação do seu público-alvo.
liberação e a vivenciar outros papéis.
Os eventos pressupõem a presença do profissional ou de profissionais que irão
Os eventos são inicialmente imaginados e, mais do que a descoberta, retratam
programar as atividades inclusive do lazer. O evento assim entendido passa a ser um
um sonho, um determinado deslumbre. Para além que dos motivos evocados pelos
produto que deverá ser produzido adequadamente, levando em consideração es-
participantes para justificar seus deslocamentos, fica claro o equivalente simbólico
pecialmente seus objetivos e públicos.
de um rito de passagem. Somente depois é que o evento é vivido. E em último lugar,
no retorno, ele é recontado, comentado, ilustrado por fotos, filmes ou souvenirs, e Numa linguagem mais atual, considera-se um evento um conjunto de ativida-
brindes ganhos no encontro. des destinadas à otimização de ações profissionais em busca de resultados qualifica-
dos e quantificados com o público-alvo; seu organizador e profissional deve possuir,
Essas representações sociais vividas por meio dos eventos, por se expressarem
além do conhecimento e habilidades essenciais de administração e gerência, a criati-
através de sistemas cognitivos, têm uma lógica e uma linguagem particular e podem,
vidade para olhar velhos problemas sob novos ângulos e visão estratégica para bem
na realidade, ser estudadas e vistas sob essa ótica, apoiadas pelos vários comportamen-
utilizar os instrumentos e ferramentas disponíveis para sua realização.
tos e pelas relações sociais, que se estabelecem em configurações originais.
Assim, decorrente de um produto adequadamente concebido diante de um pro-
Nessas representações sociais programadas, vemos em jogo a ordenação, a
blema preestabelecido, aspectos organizacionais passam a desempenhar papel rele-
hierarquização da própria estrutura social em que grupos modelam representações
deles próprios e dos outros, favorecendo a compreensão e o funcionamento atual vante perante os aspectos de produção, instalação, realização e desmontagem.
daquela sociedade. Nessa revisão histórica e teórica, o que se confirma é o poder Nessa questão, os profissionais de eventos, principalmente os de eventos di-
social dos eventos, pela identidade cultural, e, ao mesmo tempo, como interlocutores rigidos ao lazer, exercem um papel relevante na conduta dessa nova sociedade ain-
do processo de mudança, pela possibilidade de articulações e manipulação dos valo- da em busca do lazer. Eventos culturais, educacionais, esportivos, lúdicos, recreati-
res socioculturais vigentes. vos e de animação se tornam cada vez mais necessários para o desenvolvimento de
Pelo exposto, a participação em um evento exprime uma dimensão mais pes- uma comunidade.
soal de ruptura em relação à vida habitual, sugerindo a ideia de uma passagem de Durante a organização dos eventos, processam-se contratações, estabelecem-se
um estado mental ou social dado, a um outro, mais valorizado, e vivido como outro. parcerias e, se necessário, terceirizações, especialmente quando se entende a necessida-
Nesses ritos de passagem se incluem: a expectativa do encontro, a chegada e agrega- de de execução de atividades específicas no contexto do evento, que, por sua natureza,
ção ao grupo e aos efeitos residuais provocados no indivíduo, após sua participação. requerem um tipo especial de habilidade, profissionalismo e conhecimento.

86 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [EVENTOS] 87


A abordagem deste assunto em estudos produzidos no campo do lazer.no Bra-
No planejamento das atividades de uma organização, as metas e os objetivos
sil, ainda é muito recente. Até o momento, são poucas as pesquisas que o privilegiam
fundamentais para sua consecução são estabelecidos. O processo de controle mede
bem como os pesquisadores. Entretanto, detectamos, nos últimos anos, um aumento
o progresso rumo a essas metas e permite que os administradores descubram des-
nas pesquisas e publicações. A partir de um olhar sobre anais de encontros académi-
vios do plano a tempo de tomar medidas corretivas antes de ser tarde demais. Cada
cos bem como sobre trabalhos finais de programas de pós-graduação, o tema surge
evento tem uma particularidade própria e cabe ajustá-lo aos meios disponíveis à
timidamente como algo que fascina e encanta, dadas suas possibilidades. A festa é
sua implantação.
visualizada como manifestação cultural e espaço para a vivência do lazer. Por meio
Assim, os eventos vêm contribuir para uma maior participação do público e dela, ressalta Canclini (1983), é possível compreender o que há de transgressão, de
para a criação de um cenário de diversão cada vez mais criativo, em que os apelos e o reinvenção do cotidiano, o que transcende o controle social e se abre para o floresci-
envolvimento do indivíduo na atividade sejam cada vez mais expressivos. Passam a mento do desejo. A preponderância da resignação ou da emergência dos desejos de-
ser, então, considerados elementos de comunicação dirigida, aproximativa e interati- pende das relações entre as forças repressivas e expressivas de cada sociedade.
va em razão das estratégias por ele utilizadas.
Nos estudos do lazer, dada a característica transdisciplinar do campo, pesqui-
Em resumo, o evento, sob o ponto de vista do lazer, poderá ser considerado sadores com formações diversas, como educadores - em destaque os com formação
como atividade promocional da imagem de uma localidade ou empresa e como ins-
específica em Educação Física -, sociólogos, economistas, etc, têm construído um
trumento e meio de comunicação aluando como estratégia de promoção e marke-
referencial teórico importante na tentativa de compreender a experiência humana
ting de pessoas físicas e jurídicas. Os eventos permitem ampliar o consumo, a estabi-
por meio da dinâmica festiva. Os enfoques dos estudos são distintos, as escolhas das
lidade dos níveis de emprego, diminuindo a sazonalidade e promovendo produtos e
manifestações, bem como as localidades e temporalidades também, o que denota
serviços locais, afetando e agilizando principalmente toda a cadeia produtiva local.
singularidades e pluralidades em interpretações que têm como referência o contexto
Antonia Mansa Canton em que práticas são construídas, vivenciadas e transformadas. Entre as festas estu-
dadas destaco o carnaval (de época ou fora de época) pesquisado em cidades do
interior do País e em grandes centros urbanos, Ocktoberfest, Festa do Divino Espíri-
Referência
to Santo, rodeio, marcha da Nico Lopes, festa nacional do milho e festa de Nossa Se-
CANTON, Antonia Marisa. Eventos: Ferramenta de sustentação para as organizações do terceiro
nhora de Achiropita. Importantes obras estão sendo elaboradas a partir de análises
setor. São Paulo: Roca, 2002.
que privilegiam a festa - religiosa, profana, espetáculo, protesto, pedagógica, cívica,
etc. - como campo de intervenção, conhecimento e pesquisa.
Roger Callois, Jacques Heers, Jean Duvignaud, Mikhail Bakhtin e Maria Isaura
FESTA Pereira de Queiroz constam entre as principais referências utilizadas nas investigações
sobre a festa. Mas é sob forte influência de autores próximos à antropologia, como Car-
A festa tem sido estudada a partir de múltiplos interesses. Busca-se, a partir desse los Rodrigues Brandão, Eunice Ribeiro Durham, Roberto Da Matta, Nestor Garcia Can-
objeto, compreender identidades nacionais, usos e costumes, hierarquias sociais, clini e José Guilherme Cantor Magnani, que trabalhos têm sido construídos, principal-
relações mercadológicas, práticas de encontro, formas de sociabilidade, culturas mente no que diz respeito ao referencial metodológico - a abordagem cultural.
de grupos, modos de consumo, redes de relações sociais e económicas, dentre ou-
Os estudos têm privilegiado a investigação da festa por meio da análise da cultura.
tros aspectos.
A festa é, então, visualizada como processo, como acontecimento cultural inacabado, em
Diversas áreas ou campos de conhecimento privilegiam este tema, como a an- que há conformações, resistências e trocas. A relação entre cultura popular e de elite, tão
tropologia, sociologia, lazer, educação e história. Entretanto, muitas vezes, o diálogo
presente em diversos estudos, ganha uma dimensão que não se restringe a conceitos de-
entre festa e lazer é realizado de forma indireta, não sendo o objetivo central. Revela-
terminados, mas a interpretações dadas no contexto cultural.
se, pois, um assunto secundário estudado não pela intencionalidade do pesqui-
sador, mas dada a força com que o conteúdo lazer se manifesta na dinâmica festiva. A partir da articulação de três elementos centrais - lazer, festa e cultura - são
Há exceções. desenvolvidas questões que permeiam a dinâmica cultural da sociedade, com base

[FESTA] 89
88 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
nas relações sociais nas quais se inserem. A abordagem folclorista, tão questionada e espetáculo disfarça as desigualdades sociais, porém logo as denuncia através de um
arraigada à tradição e à estagnação, perde lugar. A festa estudada em seu processo mapeamento traçado no espaço social".
histórico, em sua realidade cultural, ressalta novos contornos para o entendimento Outros autores indicam, em seus estudos, questões também relevantes, como a
dos conteúdos culturais do lazer. transformação da festa rural em nacional, do jogo em competição, da festa em espe-
O livro Festa no Pedaço, escrito por Magnani (1984), torna-se clássico no es- táculo. Problematiza-se a participação de criadores, organizadores e executores da
tudo do tema. Esse estudo, mais do que a festa, abrange formas de entretenimento festa, e as ações de atores e expectadores. O cenário também se destaca, bem como
com que a população da periferia de São Paulo preenche o tempo e espaço de lazer. O relações entre lazer, trabalho e saúde. O sagrado e profano, a tradição e a inovação, o
autor coloca em destaque, por meio da pesquisa etnográfica, um assunto relegado tradicional e o moderno, as motivações e os interesses, a produção e o consumo, o
pelos estudiosos - o lazer. A partir da vivência do futebol de várzea, excursão de público e o privado, o autêntico e o dissimulado - todos problematizados buscando
farofeiros, bailes populares - forró, roda de samba,yz/«£ sou/-, circo, festa de ani- não a dicotomia entre os pólos, mas a complexidade das relações. Pesquisa-se a festa
versário e de casamento, concurso de violeiros, ele busca entender valores, modos de almejando compreender os significados atribuídos às ações de produtores e consu-
pensar e agir. Nesse estudo, revela ações que combinam rural e urbano, tradicional e midores, de participantes e espectadores - agentes sociais.
moderno, folguedos e indústria cultural, mostrando-nos que "mais relevante que la- Considerando a festa tempo/local de sociabilidade e de manifestação de lazer,
mentar a perda de urna suposta autenticidade [...] é tentar analisar as crenças, costu- tem-se indagado sobre os aspectos culturais com base em códigos de conduta e com-
mes, festas, valores e formas de entretenimento na forma em que se apresentam hoje, portamentos. A festa, tempo e espaço de vivência lúdica, é analisada como possibili-
pois a cultura, mais que uma soma de produtos, é o processo de sua constante recri- dade de vivência (ou não) do lazer criativo e crítico.
ação, num espaço socialmente determinado" (p. 18-19). Por meio de abordagens históricas, são destacadas transformações no proces-
Bruhns (1995), no Departamento de Estudos do Lazer da Unicamp, também so de institucionalização, urbanização e espetacularização da festa, em que interes-
desenvolve uma pesquisa importante - Futebol, Carnaval e Capoeira: as transi- ses políticos, culturais e sociais de diferentes instâncias do poder são mobilizados
ções entre os grupos sociais - posteriormente publicada com o título Futebol, car- para a sua (re)invenção, (re)edição e/ou (re)elaboração.
naval e capoeira (1998). Essa pesquisa motivou outros pesquisadores a se aventu- Abordar o corpo e sua gestualidade é uma ação recorrente nas pesquisas so-
rarem em um assunto hierarquicamente não muito bem situado entre os conteúdos bre a festa porque os principais centros de estudos no âmbito do lazer encontram-
do lazer, porque este se aproxima mais de valores contrários a ordem social vigente, se atrelados a escolas de educação física. Busca-se, assim, compreender corpos que
como vagabundagem, libertinagem, excesso, vadiagem, gratuidade e transgressão do dançam, consomem músicas e gestos padronizados, disputam provas no esporte
que de valores relacionados a ela, como produtividade e rendimento. rodeio, trabalham nas barracas e vivenciam festas/turísticas. As manifestações
Nesse trabalho, utilizando a abordagem cultural, a autora destaca a pluralida- corporais expressas por meio da dança, da marcha, do esporte, do jogo tornam-se
de das três manifestações estudadas, identificadoras do jeito de ser brasileiro, e que mediadoras na busca de significados de corpos que se divertem, trabalham, dan-
se inserem no universo lúdico brasileiro. Aqui, os sujeitos - que elaboram, produ- çam, consomem e celebram.
zem, representam - são identificados por ações e não a partir da estrutura. Entre A festa, prática cultural, é, da mesma forma, visualizada como um tempo-es-
interessantes argumentações desenvolvidas pela autora, destaco: a diversidade cultu- paço de educação, de disciplina, em que são pedagogizadas práticas da vida cotidia-
ral, ao trabalhar com a pluralidade da festa; as relações entre as manifestações estuda- na, mas também de reivindicação e de subversão. É discutida como mercadoria, prin-
das e a indústria cultural, discutindo a cultura de massa e a cultura popular e destacan- cipalmente quando atrelada ao turismo. Festa e turismo, práticas lúdicas, são
do as imbricações entre as mesmas; e as relações entre as categorias casa e rua. mercadorias de grande atrativo à indústria do entretenimento e, frequentemente, são
Ela também discute a não-oposição entre festa e cotidiano, enfatizando "os ele- abordados corno produtos económicos. Ao pesquisar a palavra festa na Internet, ve-
mentos controladores e disciplinadores envolvidos no tempo 'livre' e no tempo de rificamos que os itens encontrados estão localizados, essencialmente, em páginas de
trabalho", ambos "centrados no tempo cronometrado da vida". Divergindo da supos- empresas de turismo.de prefeituras municipais ou órgãos afins que têm como obje-
ta inversão dos papéis sociais na festa, a autora afirma que "o símbolo coletivo do tivo divulgar e vender o lugar e suas manifestações culturais. O objetivo é conquistar

90 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [FESTA] 91


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consumidores. Essas festas populares aparecem aliadas a outros atrativos, como re- Bibliografia
servas naturais, museus, cultura local, hotéis, restaurantes e arquitetura. Porém, en- BEIRÃO, P. S. L. A questão da transdisciplinaridade no cenário mundial e as implicações para o lazer e
tre as festas encontradas, há festas e festas... Pois há diferentes consumidores bem a educação. In: Encontro Nacional de Recreação e Lazer, 13,2001, Natal, Anais... Natal: CEFET, 2001.
como opções e tipos de festa no mercado. BRUHNS, H. T. Futebol, carnaval e capoeira: as transições entre os grupos sociais. Campinas:
Departamento de Estudos do Lazer da Faculdade de Educação Física, UNICAMP, 1995. (Relatório final
Aqui, é interessante destacar um ramo do mercado que desponta com base,
de pesquisa CNPQ).
principalmente, em grandes festas nacionais: o infantil. Na festa de adultos, são pro-
BRUHNS, H. T. Futebol, carnaval e capoeira. Campinas: Papirus, 1998.
porcionados, simultaneamente, locais similares aos da festa principal, mas com ca-
CANCLINI, N. G. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliensex1983.
racterísticas que atendem esse público específico, em dimensões e atrativos. Situa-
COLETÂNEAS de seminários "O lazer em debate", UFMG, Belo Horizonte, MG.
ção importante que demanda estudos, pois estão sendo gerados/educados novos
consumidores. COLETÂNEAS de congressos brasileiros de história do esporte, lazer e educação física.
COLETÂNEAS de encontros nacionais de recreação e lazer.
Percebe-se, desse modo, um lazer cada vez mais associado a bens e serviços
M AGNANI, J. G. C. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Brasiliense, 1984.
disponibilizados pela indústria do entretenimento, em que consumir produtos, sím-
ROSA.M. C (Org.); PIMENTEL, G. G. de A.; QUEIRÓS, I. L. V. B. G. de. Festa, lazer e cultura. Campinas:
bolos e imagens torna-se a atividade principal. Entretanto, é importante ressaltar
Papirus, 2002.
que as pesquisas revelam que a vivência da festa não se restringe a essa faceta. Não se
pode generalizar.
Mesmo em grandes festas como o Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém,
Oktoberfest em Blumenau, festa do peão em Barretos, carnaval no Rio de Janeiro e
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
festa do Divino Espírito Santo em Pirenopólis, em que se tem como característica Ao refletir sobre a formação de profissionais para atuar no âmbito do lazer, inicial-
tudo em grande dimensão, como o número de pessoas, a associação com o turismo, mente é necessário reforçar que o lazer se configura como um campo multidiscipli-
a programação, os patrocínios, os números económicos, a infra-estrutura e as atra- nar que possibilita a concretização de propostas interdisciplinares, por meio da par-
ções, temos que buscar as singularidades, pois, além da reprodutibilidade, a diversi- ticipação de profissionais com diferentes formações (Arte-Educação, Educação Física,
dade cultural permeia a experiência festiva. Pedagogia, Psicologia, Sociologia, Terapia Ocupacional, Turismo e Hotelaria, dentre
Destaca-se que a festa também é abordada, indiretamente, em estudos que pri- outros). Lamentavelmente, ainda se pensa que, para atuar na área, não é necessário
vilegiam outras temáticas relacionadas ao lazer, como políticas públicas. A festa - ter formação específica e aprofundada sobre o tema. Por isso, é preciso repensar os
comemoração, evento, data, encerramento -, como a oficina, a rua de lazer e o tor- pressupostos que encaminham a formação de profissionais e como ela está sendo
neio, é uma forma de intervenção em políticas de lazer voltadas para a cultura. processada em nosso contexto.
Como aponta Beirão (2001), o lazer é parte do processo de educação e da for- Segundo Werneck (2000), formar significa fecundar um conjunto de ideias e
mação da cidadania e as ações de políticas públicas mesmo que sinceramente dese- reflexões, criar possibilidades que nos retirem de posições acomodadas, mobili-
josas de apoiar atividades culturais ou esportivas, podem acabar disciplinando-as, zando e transformando o outro de alguma maneira. É uma maneira de nos colo-
manietando-as, tornando-as assépticas e mesmo desvirtuando-as. Para esse autor, carmos avessos às incertezas cristalizadas, com curiosidade e desejo de saber para
um caminho carreto é abordar cada caso de forma transdisciplinar, considerando os construirmos juntos o conhecimento. Nesse sentido, o desafio é agregar esforços
contextos cultural, social, económico, etc. para formar profissionais capazes de construir coletivamente ações teórico-práti-
Os pesquisadores do lazer começam a descobrir perspectivas de estudos ao arti- cas significativas sobre o lazer, a fim de não mascarar ou atenuar os problemas
cular festa e lazer. As abordagens ainda são incipientes, embora relevantes. Configura- sociais dos sujeitos envolvidos.
se, portanto, um tema que demanda importantes estudos e intervenções. A formação profissional no âmbito do lazer vem se concretizando, principal-
mente, a partir de duas perspectivas. A primeira se preocupa em formar um profis-
Maria Cristina Rosa sional mais técnico e tem como orientação primordial o domínio de conteúdos

92 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [FORMAÇÃO PROFISSIONAL] 93


específicos e metodologias. Nesse caso a formação privilegia a familiarização com as investigação, que auxiliem no aperfeiçoamento da ação profissional no campo do
práticas e atividades que se apresentam no dia-a-dia do animador cultural. A prática lazer e no gerenciamento do próprio desenvolvimento de ações educativas lúdicas.
torna-se o eixo da formação e sua realização tende a minimizar o papel da teoria na Com isso, uma sólida formação profissional voltada para o lazer não pode vi-
ação profissional. Dessa forma, reafirma-se a dicotomia entre teoria e prática, enfati- sar ao simples processo de transmissão de saberes, mas de constituição e posiciona-
zando-se a segunda e atribuindo menor importância às reflexões de cunho filosófi- mento de nossa própria inserção como sujeitos, e de nosso lugar nas várias divisões
co, político, cultural e sociológico, fundamentais no processo de atuação profissional socioculturais apresentadas em nossa realidade (WERNECK, 2000).
nesse âmbito. Na atualidade, existe uma tendência à comercialização das propostas de for-
É importante frisar que um sólido referencial teórico possibilita a compreen- mação profissional na área que, de maneira geral, restringe a compreensão sobre o
são da prática a partir de novos olhares, permitindo a consolidação da práxis. Um lazer, que é focalizado como um filão no mercado que abre amplas possibilidades de
animador cultural que atua em clubes, por exemplo, e conhece questões sobre as ganhos e é associado ao consumo exacerbado e alienado de bens materiais e de ser-
diferentes faixas etárias (criança, adolescente, adulto e idosos) e grupos sociais (por- viços "recreativos", que pode auxiliar a fuga e a distração dos problemas apresenta-
tadores de necessidades especiais, negros, índios, homossexuais, etc) terá a sua práti- dos em nosso cotidiano. Nesse caso, a expansão desenfreada de cursos que apresen-
ca a partir de outra perspectiva. Dessa forma, a relação teoria-prática adquire função tam essa tendência é preocupante e deve ser analisada cuidadosamente pelos
muito diferente de um simples fazer mecânico e técnico. interessados em ampliar seus conhecimentos sobre o lazer.
A segunda perspectiva propõe uma formação centrada no conhecimento, na Analisando as propostas de alguns cursos de reciclagem, aperfeiçoamento, atuali-
cultura e na crítica, concretizando-se por meio da construção de saberes e compe- zação.bem como de disciplinas ministradas em diferentes cursos de graduação pode-
tências alicerçados no comprometimento com os valores disseminados numa socie- se observar uma ênfase na reprodução de atividades diversas, mediante o ensino de
dade democrática, bem como na compreensão do papel social do profissional na edu- uma variedade de jogos e brincadeiras. Essas propostas disponibilizam "receitas" de
cação para e pelo lazer. A formação deve possibilitar o domínio de conteúdos que atividades, não superando a tradição prática e com dificuldades de fomentar a siste-
devem ser socializados a partir do entendimento de seus significados em diferentes matização de conhecimentos efetivamente teórico-práticos. No entanto, já existem
contextos e articulações interdisciplinares. Deve, ainda, promover o conhecimento iniciativas de algumas universidades, grupos de pesquisa e órgãos públicos que pro-
de processos de investigação que auxilie no aperfeiçoamento da ação do animador curam enfocar o lazer de maneira abrangente e contextualizada.
cultural e no gerenciamento do próprio desenvolvimento de ações educativas lúdi- Apesar do crescimento na discussão sobre o lazer em diversos cursos de gra-
cas, críticas e criativas. duação - como Administração, Artes, Educação Física, Fisioterapia, Hotelaria, Peda-
A formação de profissionais no campo do lazer deve, portanto, ser pautada na gogia, Terapia Ocupacional e Turismo -, a análise de muitos desses currículos de-
competência técnica, científica, política, filosófica e pedagógica e no conhecimento monstra que a discussão dos conhecimentos sobre o lazer tem pequeno espaço nas
crítico da realidade. É preciso romper com a visão essencialmente tecnicista, comum propostas. Isso caracteriza uma incompatibilidade entre a forma como esses temas
em nosso meio, tendo em vista uma práxis consciente. A ação deve ser comprometi- são tratados nos currículos e as diferentes oportunidades de estudo e atuação que o
da com mudanças que considerem as lutas contra as injustiças sociais, na intenção campo vem abrindo para profissionais formados (ISAYAMA, 2003).
de concretizar uma sociedade mais igualitária, que respeite as diferenças culturais e Um aspecto importante a ser ressaltado é que no Brasil, desde 1998, vêm sendo
que crie possibilidades de participação e de democratização social (MARCELLINO, 1995). ofertados cursos de graduação específicos sobre o lazer. Alguns desafios permearam
Por isso, é necessário pensar a construção de saberes e competências que de- a implantação e o desenvolvimento desses cursos, tais como a necessidade de buscar
vem estar relacionados ao comprometimento com os valores alicerçados numa so- referências locais que norteiem a construção curricular, a falta de recursos humanos
ciedade democrática, à compreensão do papel social do profissional na educação especializados e qualificados e, ainda, a inadequação das estratégias de implantação
para e pelo lazer. Além disso, a formação deve proporcionar o domínio de conteúdos e difusão geralmente adotadas pelas instituições.
a ser socializados, a partir do entendimento de seus significados em diferentes con- Na atualidade, a pós-graduação lato e stricto sensu vem se apresentando com
textos e articulações interdisciplinares, e, por fim, ao conhecimento de processos de uma interessante possibilidade de formação de profissionais para atuar no âmbito

94 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [FORMAÇÃO PROFISSIONAL] 95


do lazer, tendo em vista a formação docente para atuar em diferentes níveis e de pes- GÉNERO
quisadores interessados em aprofundar conhecimentos sobre a temática. No entanto
A palavra "género", desde a década de 1980, tem sido recorrente em um bom número
ainda é pequeno o número de cursos oferecidos regularmente, se comparado ao núme-
de pesquisas, ensaios, resenhas, textos produzidos por vários autores/as vinculados
ro de profissionais interessados em aprofundar conhecimentos nesse campo.
às áreas de lazer, educação física e esportes. Ainda que esse termo possa ser observa-
Além disso, outra possibilidade de formação é vislumbrada em um número do a partir de diferentes olhares (marxista, estruturalista, psicanalítico, feminista
expressivo de grupos de estudo/pesquisa que estão sendo criados em diferentes fa- radical, pós-estruturalista, dentre outros) é consensual afirmar que se refere, funda-
culdades, escolas, departamentos e cursos, conforme pode ser visualizado no traba- mentalmente, à construção social do sexo. Ou seja, como uma categoria analítica,
lho de Melo e Alves Júnior (2003). Esses autores apresentam outras possibilidades "género" evidencia que masculino e feminino são construções sociais e históricas.
tais como: a realização de eventos técnico-científicos específicos; a criação de listas Surgido na década de 1970, no contexto anglo-saxão, a partir de algumas ver-
de discussão na Internet; a publicação de artigos científicos em revistas das mais tentes da denominada segunda onda feminismo, essa expressão permite uma ampli-
diferentes áreas, com destaque para a Revista Licere (atualmente único periódico ação de referências e análises teóricas ao contemplar amplas possibilidades de expli-
específico sobre o lazer no País).
car as diferenças e desigualdades entre homens e mulheres. Noutras palavras, o termo
Há muito que realizar no âmbito da formação de profissionais para atuarem "género" permite alavancar uma produção académica larga e importante cuja cen-
no campo do lazer. No entanto, é preciso fornecer elementos para a consolidação de tralidade está na afirmação primeira de que não é apenas o sexo (biológico) que
um profissional crítico, criativo, questionador, reflexivo, articulador, pesquisador, in- estabelece diferenças entre homens e mulheres, mas, também, aspectos sociais, his-
terdisciplinar, que saiba praticar efetivamente as "teorias" que propõe a grupos com tóricos e culturais. Desestabiliza, portanto, a noção da existência de um determinis-
os quais vai atuar. Para isso, é necessário incentivar a formação em uma perspectiva mo biológico cuja noção primeira afirma que homens e mulheres constroem-se mas-
continuada, sendo constantemente alimentada pela participação em cursos de dife- culinos e femininos pelas diferenças corporais e que essas diferenças justificam
rentes naturezas (técnicos, de atualização, de aperfeiçoamento, de especialização, de determinadas desigualdades, atribuem funções sociais, determinam papéis a ser de-
mestrado, de doutorado), em eventos técnicos-científicos, em listas de discussões, sempenhados por um ou outro sexo.
dentre outras ações de devem fazer parte do cotidiano dos profissionais que dese- O termo "género" ou como se referem algumas pesquisadoras "sexo social",
jam atuar com o lazer. Saliento, ainda, que é necessário um esforço sistemático quando visto por essa ótica, desnaturaliza o comumente considerado "natural". Por
para responsabilizar as instituições pela formação continuada de seus profissio- isso é polémico, incomoda, faz pensar e invoca mudanças epistemológicas.
nais, investindo na produção de conhecimento sobre essa formação e nas mudan- Há que referenciar que o próprio conceito de "género" não é unívoco nem nun-
ças que isso pode gerar nos processos de atuação profissional, objetivando a efetí- ca foi. Num primeiro momento, esteve relacionado aos estudos das mulheres, mais
va participação cultural. especificamente àqueles estudos que advinham de uma militância feminista das dé-
cadas de 1960 e 1970, quando se fazia premente denunciar a situação de dominação
Hélder Ferreira Isayama da mulher em relação ao homem, sua quase inexistência na escrita da história e na
escrita académica, etc. Não que não houvesse, antes disso, a participação das mulhe-
res em diferentes espaços sociais; mas porque elas pouco figuravam na produção
Bibliografia
académica, a não ser como minorias.
ISAYAMA, Hélder F. Recreação e lazer como integrantes dos currículos dos cursos de graduação
em educação física. Campinas: Faculdade de Educação Física da Unicamp, 2002. Tese (Doutorado etn
Pensar o campo "estudos de género" pressupõe pensar, também, que sua emer-
Educação Física). gência se dá num momento de efervescência política e cultural em diferentes contex-
MARCELLINO, Nelson C. O lazer na atualidade brasileira: perspectivas na formação/atuação profissio- tos culturais. Tempo de resistência, de lutas sociais amplas pelo reconhecimento das
nal. Licere. Belo Horizonte, v. 3. n. l, p. 125-133, set. 2000. diferenças e por uma sociedade mais igualitária. Tempo também da contestação da
MELO, Victor A.; ALVES JÚNIOR, Edmundo D. Introdução ao lazer. São Paulo: Manole, 2003. neutralidade da ciência, da emergência de novos olhares e novos objetos de pesquisa
WERNECK, Christianne L. G. Lazer, trabalho e educação: relações históricas e questões conterfl' não porque fossem inexistentes, mas porque eram desconsiderados como possíveis e
porâneas. Belo Horizonte: Editora da UFMG/CELAR, 2000. merecedores de um trato "científico".

96 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [GÉNERO] 97


Ao afirmar, portanto, que o termo "género" não é unívoco, cabe mencionar estudos de género. Esta identificação, presente também em outras áreas do conheci-
que sua apropriação no contexto brasileiro se dá em face da influência de dois cam- mento, se dá, em grande parte, pela própria origem dos estudos de género que come-
pos intelectuais: o americano dos women's studies e gender studies e o francês çaram a ser desenvolvidos tendo nos estudos das mulheres seu apoio teórico-meto-
das "pesquisas sobre as mulheres", "estudos feministas" ou "estudos sobre as rela- dológico. No entanto, na produção teórica da educação física brasileira, essa parece
ções sociais de sexo". Referência essa que possibilita compreender a multiplicida- ser ainda uma representação recorrente. É certo que essa delimitação sofre interlo-
de de olhares sobre o campo dos "estudos de género" ou, como dizem as francesas, cuções, afinal alguns estudos sobre mulheres têm um caráter relacional e se configu-
dos "estudos das relações sociais de sexo". ram, também, como estudos de género. No entanto essa não é a única abordagem por
Enfim, muitos são os temas, as abordagens e as discussões possíveis de ser con- meio da qual se percebe essa identificação. Vários textos e pesquisa que abordam
sideradas quando a referência é "estudos de género", expressão em plena expansão e temas como padrão motor, estereótipos de atletas, composição corporal, treinamen-
aprofundamento teórico na pesquisa académica brasileira, inclusive no campo da to físico, menarca, dentre outros, quando relacionados a mulheres, são, não raras ve-
educação física, do lazer e do esporte que, desde a década de 1980 vem direcionando, zes, identificados como estudos de género ou, ainda, identificam-se nesse campo te-
também, seu olhar para essa temática. Especificamente nesse campo teórico é possí- órico o que demonstra, de certa forma, uma estreita proximidade com o que se tem
vel evidenciar, fundamentalmente na década de 1990, uma maior produção acerca produzido nacional e internacionalmente sobre " estudos de género".
de estudos de género cuja circulação na área se apresenta a partir de diferentes enfo- Mais recentemente, novas abordagens têm sido contempladas na produção da
ques teóricos, demarcando, ainda, diferentes posições epistemológicas e políticas. área, tendo no pós-estruturalismo sua vertente teórica. Ao considerar "género" não
Uma dessas ênfases situa-se na identificação da palavra "género" com palavra só como uma categoria analítica, mas como constituinte da identidade dos sujeitos,
"sexo". Ou seja, é possível evidenciar, na produção da área, pesquisas em que a utili- essas pesquisas têm alavancado uma produção teórica que transcende, por exemplo,
zação do termo "género" é referenciada para definir o sexo dos sujeitos investigados. a discussão acerca dos estereótipos e papéis sexuais. Essa compreensão parte do en-
Várias dessas pesquisas se sustentam em um arcabouço teórico-metodológico ad- tendimento de que a referência a esses termos remete à afirmação da existência de
vindo das ciências biológicas como a fisiologia, a biomecânica, a aprendizagem mo- papéis preconcebidos, nos quais se encaixam sujeitos masculinos e femininos. Para a
tora, o treinamento esportivo, entre outras, privilegiando análises que comparam, abordagem pós-estruturalista, masculinidade e feminilidade se definem reciproca-
por exemplo, as capacidades físicas e fisiológicas do homem e da mulher, o rendi- mente, visto não existir nenhuma essência a priori determinada para uma e outra
mento esportivo, o comportamento motor, etc. identidade. Essas identidades, ao contrário, são produzidas na cultura, não havendo
Ainda que essa ênfase seja observada nas décadas de 1970 e 1980, vale ressal- uma fixidez na sua produção. Rejeita, portanto, a ideia da existência de uma essência
tar que, na atualidade, ainda se faz presente, e essa definição atribuída ao termo "géne- que está colocada para um e outro sexo, visto que não se está a considerar a constru-
ro", mais do que simplista, é absolutamente equivocada, pois, ao contrário do que his- ção cultural dos géneros, mas a enfatizar um caráter já fixado da condição humana.
toricamente os estudos de género vêm evidenciando, nesses trabalhos se privilegia o Para os estudos decorrentes do pós-estruturalismo, os sujeitos não são apenas
determinismo biológico, no qual masculino e feminino não são observados como homens ou mulheres, mas homens e mulheres de várias raças, classes, religiões, ida-
socialmente construídos, mas significando simplesmente sexo masculino e feminino. des, etc., portanto, há diferentes mulheres e diferentes homens. Essa compreensão faz
Outra ênfase bastante presente na produção teórica da educação física, esporte com que a expressão "estereótipos masculinos e/ou femininos" seja negligenciada
e lazer está vinculada às pesquisas que abordam a temática de género a partir do em detrimento da utilização, por exemplo, de temas como masculinidades e femini-
estudo de estereótipos e papéis sexuais. Essa abordagem pode ser facilmente encon- lidades. Essa abordagem possibilita, enfim, falar da existência de uma identidade de
trada em várias pesquisas, sendo, inclusive, recorrente na produção teórica dessa género, o que significa afirmar que "género" se incorpora na identidade do sujeito, faz
área de conhecimento. Sua circulação na área conferiu visibilidade ao termo "géne- parte da pessoa e a constitui.
ro", demarcando, de certa forma, que entre meninos e meninas há um universo de Com relação ao corpo, essa perspectiva teórica se afasta, em grande medida,
diferenças e que essas diferenças são produzidas na cultura. daquelas que o definem a partir de sua materialidade biológica; afasta-se também
Para além dessas há, na produção teórica da área, uma outra ênfase a ser desta- das análises que identificam no corpo o local a partir do qual se avaliam as diferen-
cada e pode ser localizada na identificação de estudos sobre mulheres como sendo ças entre mulheres e homens. Aqui, o corpo passa a ser observado como um

98 [DicioNAiuo CRITICO DO LAZER] [GÉNERO] 99


constructo cultural que ao mesmo tempo em que produz relações de poder é nelas A administração e a gestão são conceitos semelhantes que podem ser defini-
produzido. Cabe registrar, ainda, que essa abordagem não nega o aspecto biológico dos como um conjunto de princípios, normas e funções que tem por fim ordenar os
do corpo, no entanto não lhe confere centralizada na atribuição, por exemplo, de dife- fatores de produção/operação e controlar a sua produtividade e eficiência, para se
rentes lugares sociais ou hierarquias a ser exercidas e exercitadas por um ou outro obter determinado resultado.
sexo. O aspecto biológico do corpo aparece como um dos elementos partícipes na Embora os princípios de gestão tenham surgido no meio empresarial, mais
conformação de "género", afinal, são os corpos que estão em constante construção e recentemente, tais princípios estão sendo aplicados de maneira mais flexível em di-
que assumem identidades masculinas e femininas. A ênfase desses estudos é que a versos outros segmentos, podendo, inclusive, fazer parte de nossa vida particular.
categoria "género" possibilita a análise dos processos por meio dos quais se dá essa Assim, a utilização dos princípios de gestão tem sido a diferença entre o sucesso e os
construção de corpos masculinos e femininos, evidenciando, sobretudo, que mulhe- fracassos de diversas organizações sejam elas do meio privado ou público.
res e homens se constróem ao longo da vida mediante inúmeras práticas sociais. Portanto, para sermos bem-sucedidos em nossos projetos e profissionalmente,
precisamos ir além da paixão, precisamos de método de trabalho e principalmente
SUvana Vilodre Goellner
de gestão. Sem paixão não há sonho, mas sem gestão o sonho pode se tornar um
pesadelo.
Bibliografia A gestão de determinada organização, serviço ou projeto depende, sobrema-
LOURQGuaciraL Género, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista Petrópolis:Vozes, 1997. neira, do seu planejamento, que deve trazer, entre outras coisas, uma definição clara
LOURO, Guacira; NECKEL, Jane; GOELLNER, Silvana V. Corpo, género e sexualidade: um debate dos objetivos propostos. Isso contribui muito para o acompanhamento e a avaliação
contemporâneo em educação. Petrópolis:Vozes, 2003.
da iniciativa, uma vez que oferece parâmetros para uma apreciação a respeito de seu
LUZ JÚNIOR, Agripino. Educação física e género: olhares em cena. São Luís: Imprensa Universitária desempenho e seus resultados.
UFMA/CORSUP.2003.
O planejamento é importante porque contribui fortemente para o sucesso e
GOELLNER, Silvana V. Género, educação física e esportes. In: VOTRE, Sebastião (Org.). Imaginário ó-
representações sociais em educação física, esporte e /ozer.Rio de Janeiro: Editora Gama Filho,2001. nos dá algum controle sobre o futuro. O planejamento não é estático, ou seja, não
SCOTT, Joan. Género: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre,
pode ser encarado como uma camisa-de-força. Assim, o planejamento é construído
v.20,n.2,jul./dez. 1995. com base em uma análise de cenário. Caso esse cenário modifique o planejamento,
SOUSA, Eustáquia S.; ALTMANN, Helena. Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na deve ser alterado e adaptado a essa nova perspectiva.
educação física escolar. Cadernos CEDES. Campinas, n. 48,p. 52-68. Quem não planeja corre o risco muito maior de não saber o que fazer ou tomar
decisões inapropriadas diante de um novo contexto. É aquela história: Quem não
sabe aonde vai qualquer vento serve, inclusive para o lugar errado. Entretanto,
quem planeja sabe qual o impacto da mudança na sua organização e no seu trabalho
GESTÃO
e refaz o seu planejamento para atingir os resultados!
Existem termos que não sabemos definir ou conceituar ou, até mesmo, explicar de As técnicas de gestão são imprescindíveis para o sucesso de qualquer projeto
maneira mais sistematizada o que são. Entretanto, quando ocorre um problema, logo ou organização. Mas deve-se lembrar sempre que ela não é uma ciência exata, em que
nos lembramos da sua necessidade. Assim, quando somos mal-atendidos, enfrenta- 2 + 2 = 4. A característica básica dos problemas de gestão - e que os diferencia dos de
mos filas, recebemos o produto errado ou mal produzido, ou até mesmo quando so- lógica - é a existência do ser humano com ações e reações nem sempre previsíveis.
licitamos um prato descrito no cardápio e o garçom nos informa "tem, mas acabou", Gestão significa, sobretudo, coordenar ações coletivas por meio de instrumen-
logo identificamos ali uma falta de administração ou gestão. tos racionais,promover os desejos e as realizações individuais e coletivas com o obje-
Muitos acreditam, inclusive, que o futebol brasileiro poderia ser ainda mais tivo básico de cumprir as metas estabelecidas (SANTOS, 1992).
competitivo e rentável para todos se houvesse uma "boa administração fora de cam- Para isso há vários tipos de gestão. Quando prisioneira de muitas formalidades
po"- em outras palavras, se tivesse gestão. e pouco compromisso com resultados, fala-se que é um estilo de gestão burocrático;

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"tf

quando mobiliza de maneira articulada todas as suas partes, fala-se de uma gestão modo a mobilizar em favor dos objetivos desejados. Ao contrário da pirâmide, a organi-
integrada (PEREIRA, 1955) zação em rede se espalha horizontalmente. Não há hierarquia de importância entre os que
a compõem. Há diferentes tipos de poder, diferentes tipos de responsabilidade e funções
ongo o ternpo,muitas formas de gestão foram desenvolvidas. Elas se diversi-
diversas. Mas todos os seus membros estão no mesmo nível, em termos de poder.
™e as instituições se complexificam. Vão da forma altamente centra-
4 as que incluem a flexibilidade na tomada de decisão, no aprimora- Rede, portanto, é um espaço de convergência de vários atores sociais, todos
as ec
|uipes e na valorização das capacidades humanas (SENGE, 1998). incompletos, que precisam tecer uma articulação de esforços diante de objetivos de-
r finidos, ou seja, potencializar recursos com e para um público comum. Rede, tomada
PU lico, por exemplo, a crise da estrutura burocrática de gestão públi-
como espaço aberto de complementaridade e cooperação com regulação, só pode
ca chegou ao seu ápice na década de 19go e desencadeou a reforma da estrutura do
ser, assim, respeitada se contemplar a intermediação da participação e do controle
Estado Moderno, em especjai ao que se referia ao model0 de gestão. Na mesma déca-
do público atendido. A ideia de rede consagra o princípio da descentralização de de-
da, o modelo neoliberal sobressaiu, formando a estrutura do Estado Mínimo. Parale-
cisão, entendida como o processo de transferência de poder de níveis centrais para
lamente, foi tomando corpo Um segundo modelo de gestão pública apelidado, no
periféricos, de modo a reestruturar o aparato central de decisão não para reduzi-lo,
Brasil, de Estado Gerencial,que os ingleses denominam Terceira Via (GIDDENS, 1999).
mas para torná-lo mais ágil e eficaz, democratizando a gestão por meio da criação de
Todos estes novos modelos partiam de uma premissa fundamental: o Estado deveria
novas instâncias de poder.
P PIOS de gestão empresarial e a adoção de valores gerenciais, de mer-
Nas organizações cada pessoa tem sua própria agenda. O gerente de marketing
cado, para definir a performance pública. Na última década do século XX, uma pro-
de um clube acha que a salvação da organização exige mais propaganda; o gerente de
funda crítica a esses modelos (tanto ao neoliberal quanto ao gerencial) foi se esbo-
vendas quer preços mais baixos dos serviços para o sócio; o gerente de P&D demanda
çando. Boaventura Santos, professor da Universidade de Coimbra acredita ser
mais recursos para a melhoria dos serviços existentes e para o desenvolvimento de
incompatível a reforma do Estado proposta à luz do princípio do mercado, local da
novos produtos. O problema é que se todos os gerentes fizerem bem a sua parte, assim
competição e da destruição do outro. Boaventura sugere o fortalecimento do poder mesmo o clube se dará mal. Os setores têm programas setoriais, mas pouco se preocu-
da sociedade civil, loCUs d0 diálogo entre interesses, da negociação coletiva e dos pam com a organização em si. O grande benefício do conceito de gestão integrada (ou
valores morais (SOUZA, I99g\
intersetorial) consiste em deslocar o foco, transferindo-o dos departamentos para os
p q e um gmp0 de pessoas ou de entidades se dispõe a trabalhar juntas, objetivos. Cada objetivo essencial, por exemplo - conquistar e reter clientes -, exige o
e erni trabalho integrado de vários setores. Cada vez mais, as organizações são desenvolvidas
inado objetivo, elas precisam se organizar: dividir responsa-
bihdades e funções, estabelecer regras de comunicação e decisão. O modo mais tra- como projetos de equipe interdisciplinares em vez de projetos setoriais.
dicional de nos organizarrnos é em pjrâmide. Organizar em pirâmide significa A gestão integrada pode se dar dentro da mesma organização, entre duas ou
que definimos resPonsabilidades e poder de decisão afunilando-os. Os níveis de res- mais organizações parceiras, além da participação direta dos usuários.
ponsabilidade se superpõem e se estabelece uma hierarquia de poder entre esses ní- Nesses modelos de gestão integrada, segundo Ricci (2001), não se governa por
veis. As pirâmides, ao concentrarem sempre mais poder à medida que se sobe nos departamento ou por serviço, mas por projetos elaborados em conjunto com o usuário
1S
> criam duas dinâmicas perversas: a da dominação e a da compe- que demanda as ações. Criam, assim, nova demanda em relação a qualificação dos pro-
tição. A dominação, para manter o poder; a competição, para chegar ao poder. fissionais que, de especialistas, passam a ser considerados polivalentes, articuladores
Or de várias áreas na construção de projetos integrados de atendimento de demandas.
V ganizaçã0 alternativa à organização em pirâmide, por meio da
qual esses problemas podem ser evitadoS) é a organização em rede (CASTELLS, 1999). Uma gestão de lazer em rede precisa superar os modos de gestão burocrático
A noção de gestão em rede tem se tornado figura obrigatória em todo discurso que indicamos acima por modelos mais interativos e participativos. Alguns indica-
sobre política social, seja nos setores públicos, seja nos setores privados. Rompendo dores apontam para um estilo participativo de administrar (ZINGONI, 2003), desta-
com o desenho hierarquizado e rígido da burocracia, o trabalho em rede se baseia cando algumas características como:
em uma visão sistémica do mundo Trabalhar em rede é perceber que todo ator A) Uma Organização do lazer que busca um estilo participativo de adminis-
- individual ou coletivo _ está inserido numa rede de sistemas para atuar de trar deve superar o centralismo das decisões. É preciso que os profissionais do lazer

102 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [GESTÃO] 103


passem a se reconhecer e a se fazer reconhecidos como gestores, e não apenas exe- Nas metrópoles, o processo de desterritorialização e reterritorialização da cul-
cutores de ações predeterminadas, pois em suas mãos se encontra a responsabili- tura é tão forte que muitos espaços urbanos abafam seus significados ou conteúdos
dade pelo diagnóstico, programação, supervisão e continuidade das ações de lazer particulares. O conceito de Nação como produtora da ideia de identidade é redimen-
da instituição. sionado diante da fragmentação gerada nos processos acelerados de informações
B) Portanto, estas decisões devem ser compartilhadas com todos os envolvi- (ORTiz, 2000). Mesmo quando não nos deslocamos, o mundo penetra no nosso coti-
dos na ação, por meio, por exemplo, de incentivo a estruturas colegiadas nos vários diano enfaticamente através das diversas telas, sejam as dos computadores sejam as
níveis de decisão. O objetivo, neste caso, é articular formas de gestão direta - os pró- das emissoras de televisão a cabo. Dada a circulação de informações nas redes de
prios gerentes decidem sobre as ações -, com formas representativas - eleição de computadores t também da movimentação das pessoas no mundo, a interconexão
representantes -, que fazem a mediação entre a organização e o usuário. acontece de maneira mais acelerada a cada dia. Acontecimentos gerados em qual-
quer ponto do mundo são acompanhados em tempo real.
Patrícia Zingoni O processo de modernização, simultâneo à mundialização do capitalismo, pros-
Bibliografia segue na generalização do pensamento pragmático ou tecnocrático. Modernizar nesse
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. contexto significa secularizar, individualizar, urbanizar, industrializar, mercantilizar,
GIDDENS.Anthony. A terceira vw.Rio de Janeiro: Record, 1999.
racionalizar de maneira totalitária em todo o mundo. A modernização espalhada de
modo homogeneizante passou a ser o emblema do desenvolvimento, crescimento,
PEREIRA Bresser et ai. Introdução à organização burocrática. São Paulo, 1986.
evolução e progresso. Os países não produtores de novas tecnologias se tornam peri-
RKCl,Rudá et ai. Descentralização e participação popular em gestões municipais. Belo Horizonte:
Consultoria em Políticas Públicas (CPP), 2001. féricos numa geografia de poder centralizada apenas naqueles altamente desenvol-
vidos tecnicamente. A produção, a reprodução e a universalização cultural são facili-
SANTOS, Boaventura de Souza. A reivindicação solidária e participação do Estado. Brasília: Minis-
tério da Administração e Reforma do Estado, 1998. tadas pelas novas tecnologias (IANNI, 1995).
SANTOS, Luiz Alberto A. dos. Planejamento egestão estratégica nas empresas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1992. Atualmente, tanto os objetos quanto as ações derivam da técnica. As técnicas
SENGE, Peter. A quinta disciplina; arte e prática de organização que aprende. São Paulo: Best Seller, 1998. estão em toda parte: na produção, na circulação, no território, na política, na cultura.
ZINGONI, Patrícia. Descentralização e Participação em gestões municipais de esporte e lazer. In: WER- Elas também estão permanentemente no corpo e no espírito do homem. Nesse pano-
NECK, Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Pereira (orgs.). Lazer, recreação e educação físi- rama é difundida a ideia de que a velocidade constitui um fato irreversível na produ-
ca. Belo Horizonte: Autêntica,2003,p.217-242. ção da história. Assim, a velocidade é um dado de redimensionamento da questão
política. A técnica de informação é o elo entre as demais técnicas, unindo-as e crian-
do um novo sistema técnico com força globalitária (SANTOS, 2002).
GLOBALIZAÇÃO A celeridade das mudanças tecnológicas abole a percepção de tempo e obscu-
rece as referências do espaço; esse efeito levou os técnicos a consolidar o conceito de
Esse termo pode ser empregado para falar da imposição de um modelo produtivo, globalização. A era da globalização se inicia no pós-guerra e se fortalece na década
em diversos domínios do social, que tem como ponto de elaboração e difusão um de 1970, quando os Estados Unidos abandonam o padrão-ouro como base de susten-
determinado centro, espalhando-se e repetindo-se em vários lugares do planeta em tação cambial. É nesse momento que surge a liberação dos controles cambiais e os
ações quase sempre simultâneas. fluxos de capital se voltam para novas oportunidades de investimento no mercado
A globalização pode ocorrer em diferentes setores da sociedade - na política, mundial, superando as fronteiras nacionais. Assim, os beneficiados foram os capitais
na economia ou na cultura -, com a pretensão de uma integração do mundo e do financeiros, empresas transnacionais, bancos e companhias petrolíferas. As grandes
pensamento mediante intensificação do fluxo de trocas. A ideia da globalização pode corporações com poder de barganha com os Estados multiplicam as filiais das em-
ser entendida como consequência da imposição das decisões geradas em centros eco- presas. Na construção desse espaço, as novas tecnologias microeletrônicas facilitam
nómicos ou em empresas transnacionais e seus desdobramentos nos ambientes das a circulação de moedas e títulos no mercado globalizado. A revolução nas comunica-
grandes cidades periféricas. ções, presente com as redes de computadores, transmissões por satélite, cabos de

104 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [GLOBALIZAÇÃO] 105


fibras éticas e transferência de dados em alta velocidade, permite maior atividade Apesar do pessimismo da maioria dos cientistas sociais e políticos contempo-
especulativa. O fluxo de informações se torna permanente, vinte e quatro horas por râneos, verifica-se, em outras poucas vertentes de pensamento, em oposição às idei-
dia, sem fronteiras territoriais (SEVCENKO, 2001). A velocidade presente nas redes de as desenvolvidas até aqui, uma visão mais otimista da globalização que declara o fim
comunicação envolve o planeta. da universalidade moderna. Com essa postura, diante da circulação rápida de infor-
mações sobre o mundo, parte das pessoas volta-se ao pensamento sobre o local: sur-
Com a mundialização da cultura, o consumo de signos e o aspecto simbólico dos
gem posições "desglobalizantes" que afirmam a existência de conhecimentos menos
bens e produtos tornam-se importantes fontes de satisfação. Grupos se dedicam à este-
pretensiosos e mais sensíveis às diferenças locais. Esse pensamento privilegia a cul-
tização da vida produzindo a circulação veloz de novos estilos pelo mundo. A mídia é
tura localista e o vernáculo, derrubando as hierarquias simbólicas dos círculos de
fator fundamental nesse processo. Os noticiários, os megaeventos e a publicidade são
legitimadores intelectuais e críticos.
algumas das poderosas armas midiáticas na guerra do consumo globalizado.
A partir da Segunda Grande Guerra, difundiu-se uma ampla variedade de João Luís de Araújo Maia
noções de cultura e uma capacidade reduzida para impor uma hierarquia de valo- Ricardo Ferreira Freitas
res. O ato de comprar se transforma em experiência de prazer e lazer, exponen-
cializando a antiga relação entre comércio e cultura, tão presente nos diversos mo-
mentos da história da humanidade (FEATHERSTONE, 1998). Com isso, a vida das Bibliografia
cidades passa a contar com novos valores éticos, estimulados pela comunicação BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
social e pela reformatação dos espaços urbanos. O consumo generalizado e popu- FEATHERSTONE, Mike (org). Cultura global: nacionalismo, globalização e. modernidade. Petró-
lista se fortifica ao longo do século XX, deslocando-se das feiras e dos mercados de polis: Vozes, 1998.
rua em direção às grandes galerias e às lojas de departamentos; já na década de IANNI, Octávio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
1980, o cidadão globalizado experimenta a ditadura do consumo associado ao la- MAFFESOLI, Michel. La transfiguration du politique: Ia tribalisation du monde postmoderne.
zer com os shopping centers. Paris: La Table Ronde, 2002.

A globalização não é mera ideologia. Trata-se de um processo real, multiface- ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000.

tado e paradoxal. Nas grandes cidades brasileiras, a globalização é facilmente perce- SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio
de Janeiro: Record, 2001.
bida na mídia e no consumo. Os meios de comunicação de massa e dirigida exerci-
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da
tam implacavelmente a propaganda de serviços e produtos que levarão a felicidade e
Universidade de São Paulo, 2002.
o conforto aos cidadãos, não importa onde eles estejam, já que os ingredientes da
SEVCENKO, Nicolau.A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa. São Paulo: Compa-
satisfação são os mesmos em qualquer continente: segurança, lazer e moda. Por esse
nhia das Letras, 2001. (Coleção Virando Séculos, 7)
motivo, multiplicam-se os shopping centers, os condomínios fechados e os edifícios
inteligentes. A globalização leva à valorização da individualização do cotidiano, dada
a possibilidade de se estar conectado a qualquer parte do mundo. O traiçoeiro senti-
mento de autonomia proveniente das novas tecnologias faz com que o indivíduo per- HOTÉIS DE LAZER
tença a tribos efémeras que afastam momentaneamente a solidão, mas fragilizam o
pathos de pertencimento a grupos sociais sólidos como a Igreja e o Estado. Cresce, São meios de hospedagem que estão voltados para atender turistas, tanto individuais
assim, o número de redes de diversas ordens em todo o planeta, provocando o fenó- quanto em grupo. Podem estar localizados em áreas urbanas ou rurais, em monta-
meno chamado por Maffesoli (2002) de "tribalização do mundo". Os movimentos de nhas, grandes centros turísticos, florestas, praias ou em outras zonas de interesse
reivindicações étnicas, o ressurgimento dos fanatismos religiosos e a proclamação turístico ou ecológico (CAMPOS; GONÇALVES, 1998). Possuem áreas de lazer voltadas aos
radical das especificidades culturais são alguns dos exemplos das novas comunida- esportes, atividades físicas, sociais, dentre outras. A maioria desses hotéis possui uma
des que surgem na pós-modernidade, concorrendo com outras mais efémeras, como equipe de profissionais com diversificadas formações para desenvolver progra-
aquelas formadas em chats da Internet. mações de lazer aos hóspedes, sejam estes crianças, adultos, terceira idade, dentre

[HOTÉIS DE LAZER] 107


106 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]
outros. Normalmente, estes hotéis possuem um profissional contratado, que é o co- hotel -, a maior parte deles constituem-se em destinaçoes turísticas que por si só
ordenador de lazer do hotel, e os animadores terceirizados oufree-lancers. A progra- justificam uma viagem (ANDRADE et ai, 2001). A EMBRATUR exige que os resorts
mação de lazer desses hotéis é, muitas vezes, o grande diferencial. estejam localizados em áreas de conservação ambiental. Assim, a instalação de um
O Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR), órgão do governo federal, clas- resort exige que seja seguida a legislação de proteção ao meio ambiente.
sifica os meios de hospedagem segundo uma categoria de uma a cinco estrelas: Super Esse tipo de hotel também pode oferecer espaços e equipamentos para con-
Luxo e Luxo ou cinco estrelas, Superior ou quatro estrelas, Turístico ou três estrelas, gressos e reuniões, mas o lazer é ainda o seu principal atrativo. É o tipo de hotel de
Económico ou duas estrelas e Simples ou uma estrela (EMBRATUR, 2002). Esta classi- lazer mais recente e que mais tem crescido nos últimos anos no Brasil. Uma tendên-
ficação diz respeito aos espaços, equipamentos, condições de conforto, comodidade, ser- cia dos atuais resorts é o tratamento do lixo e da água, bem como o aproveitamento
viços e atendimento que o hotel oferece. Normalmente os hotéis de lazer são classifica- da energia solar.
dos entre três e cinco estrelas. Segundo Andrade et ai. (2001), existem também os grandes complexos hotelei-
Os hotéis de lazer mais representativos podem ser subdivididos em hotéis-fa- ros do tipo multiresort, cujo exemplo no Brasil é Costa de Sauípe, na Bahia, que pos-
zendas, de estâncias hidrominerais, ecológicos e resorts. sui cinco hotéis e seis pousadas e está instalado numa área de 1.750 hectares, com
l .650 apartamentos, oferecendo, inclusive, um campo de golfe. Esse Estado têm se des-
Os hotéis-fazendas se localizam afastados dos centros urbanos, com caracterís-
tacado nos projetos de resorts já instalados e outros que ainda serão inaugurados.
ticas tipicamente rurais. Possuem amplas áreas verdes, podendo ter, também, lagos ou
lagoas com barcos,"pedalinhos" e outros equipamentos para a prática de esportes náu- A Associação Brasileira de Indústrias Hoteleiras (ABIH) coloca as característi-
ticos. Podem oferecer, ainda, pomares com árvores frutíferas, hortas e culturas de flores cas dos resorts para o próximo milénio: "locais exóticos e desconhecidos, locais com
e plantas regionais, animais de fazenda como galinhas, porcos, dentre outros. Também apelo ecológico, agregação de cultura e conhecimento (artesanato, pintura, técnicas
oferecem passeios de charretes e equitação. Normalmente, a área de alimentos e bebi- de relaxamento, etc.) e decoração ao estilo da região ou temáticos" (ABIH, 2003).
das é ampla e oferece pratos típicos da região (CAMPOS; GONÇALVES, 1998). A maioria des- Outros tipos de hotéis, os spas e os hotéis de praia, também têm investido no
ses hotéis é administrada pelos próprios familiares que são os proprietários. lazer. Os spas, um tipo de hotel voltado para o cuidado com a saúde e o condiciona-
Nos hotéis de estância hidromineralas fontes e as piscinas de água mineral são mento físico, têm atraído, também, hóspedes que queiram somente descansar. É co-
o maior atrativo. Atraem turistas que querem descansar, bem como utilizar essas fontes mum encontrar nesse tipo de hotel, além dos médicos, fisioterapeutas, esteticistas e
no auxílio do tratamento de determinadas doenças. Segundo Martinelli (2001), esses professores de educação física, profissionais do lazer para oferecer outras atividades
hotéis são mais frequentados por pessoas da terceira idade, pois podem encontrar ne- sociais e recreativas como aqueles formados em hotelaria e turismo. Segundo Marti-
les conforto, diversão e possibilidades de tratamento de alguns problemas de saúde. nelli (2001) os spas oferecem serviços personalizados para que o hóspede possam
alcançar o relaxamento "corpo-mente".
Os hotéis ecológicos também denominados hotéis de selva ou, ainda, lodges,
estão situados em locais de acesso mais difícil. Atrai turistas que têm a preocupação Os hotéis localizados no litoral, os hotéis de praia, também têm espaços espe-
de preservação ambiental ou mesmo curiosos ou estudiosos da natureza, segundo cíficos e equipes com profissionais para desenvolver as programações. Nesse tipo de
Campos; Gonçalves (1998). Muitos desses hotéis, no Brasil, situam-se na região nor- hotel a praia é utilizada como mais um tipo de espaço para o desenvolvimento das
te, em torno da floresta amazônica. Um exemplo é o Aríaú Amazon Towers, com atividades de lazer.
construções circulares de vários andares sobre palafitas nas águas do rio Ariaú. Hoje deve-se destacar, ainda, os navios, que também funcionam como um meio
Nos resorts a estrutura de lazer é superior aos outros tipos de hotéis de lazer. de hospedagem. Segundo Andrade et ai. (2001), o papel hoteleiro que os transatlânti-
Possui amplas e diversificadas instalações de lazer para atender os hóspedes de dife- cos apresentam tornam-se cada vez mais importante. Apesar de apresentar tamanho
rentes faixas etárias o ano todo. As atividades de lazer oferecidas também são bas- reduzido dos apartamentos ou camarotes e de não possuir janelas, pode haver luxo e
tantes variadas. Normalmente, possuem arquiteturas horizontais e se localizam em conforto, apresentados no projeto do interior e no mobiliário (ANDRADE et ai, 2001).
locais com amplas áreas verdes e muitas belezas naturais. Por esse motivo, e por se- Os navios de cruzeiros representam um tipo específico de resorts: os "re-
rem auto-suficientes - os hóspedes não precisam procurar outros serviços fora do sorts-flutuantes" (MILL, 2003). Os cruzeiros oferecem a bordo uma programação

108 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [HOTÉIS DE LAZER] 109


de lazer bastante diversificada (shows, atividades físicas e esportivas, festas, etc.), conceito que passou a vigorar nos hotéis de lazer é de que os hóspedes deveriam ser
além das paradas em cidades turísticas que possibilitam a vivência de outras ativi- "levemente estimulados" e não "obrigados" a participar das atividades.
dades de lazer. Dadas essas características e também devido à sua auto-suficiência, A colocação desse autor é questionável, pois, mesmo com todo o desenvolvi-
os cruzeiros têm sido os maiores concorrentes dos resorts. Segundo Mill (2003), ati- mento dos cursos de hotelaria, lazer e turismo no Brasil, nos últimos anos, ainda as
vidades exóticas têm sido oferecidas por cruzeiros para atrair cada vez mais os hós- pessoas constantemente reclamam da atuação dos animadores em hotéis de lazer.
pedes. Nos Estados Unidos, já é possível nos cruzeiros patinar, jogar golfe, nadar com Segundo Camargo e Ansarah (1991, p. 36), o objetivo da programação num
tubarões (dentro de gaiolas de aço), etc. No Brasil, a busca por esse tipo de resort hotel é "permitir que as pessoas desfrutem da melhor forma possível de sua via-
flutuante é crescente. gem e ou estada num hotel". Esses autores alertam, contudo, que é necessário
Atualmente, os hotéis do lazer, para não terem prejuízos com a sazonalidade, têm que o hóspede seja respeitado na sua privacidade. Muitos hóspedes buscam o
modificado suas instalações para que, durante a semana, possam atender aos mais di- descanso, atividades calmas ou individuais (como uma leitura, por exemplo) e,
versificados tipos de eventos empresariais, científicos, religiosos, dentre outros. Nestes neste caso, deve-se evitar fazê-los participar a qualquer custo de atividades que
eventos, os principais clientes são os laboratórios farmacêuticos, montadoras de auto- eles não apreciam.
móveis e equipes médicas que utilizam os hotéis para fazer treinamento de equipes. Em 1973, foi inaugurado o primeiro resort brasileiro, o Club Mediterranée,
Nos finais de semana, feriados e férias escolares, os hotéis de lazer continuam na Ilha de Itaparica na Bahia, e, com ele, o conceito de lazer programado por meio
atendendo os turistas. Este binómio lazer-eventos tem sido tão comum que Campos de seus animadores denominados de "gentis organizadores", conhecidos como
(2003, p. 37) aponta que "dizer que um hotel é de lazer e convenções é quase desne- "GOs". Esse e os outros resorts dessa rede constituem um desses hotéis já citados,
cessário, para não dizer redundante". Isso tem ocorrido, segundo o autor, com muita em que os GOs abordam os hóspedes de forma muitas vezes insistente e, por isso,
ênfase, desde o final do século XX e início do século XXI. têm sido muito criticados atualmente.
Quanto à implantação das atividades monitoradas de lazer nos hotéis não se Segundo Trigo (2002) a década de 1980 foi de muitas dificuldades para a
têm registros dos hotéis brasileiros que foram os pioneiros em oferecer esse serviço, hotelaria nacional dado os altos índices inflacionários e crises económicas. Mes-
comentam Ribeiro et ai. (2002). Provavelmente, a colónia de férias Ruy Fonseca do mo assim, segundo o autor houve uma lenta expansão das redes hoteleiras nacio-
SESC, em Bertioga, litoral paulista, inaugurada em 1948, pode ter sido uma das pio- nais e internacionais.
neiras, pois já possuía os profissionais do lazer (os animadores) para desenvolver as Na década de 1990, com a estabilização da economia, os investimentos recome-
programações. Nessa época, quando o conceito de resort não existia ainda, o SESC çaram e o mercado hoteleiro voltou a crescer, aponta Trigo (2002). O autor completa
disponibilizava um centro de mais de dois mil metros quadrados, com equipamento que, desde 1994, a hotelaria nacional vem sofrendo grandes transformações. Novas re-
de hospedagem e lazer sofisticados destinados aos trabalhadores do comércio, inclu- des internacionais entram no mercado brasileiro. Grandes hotéis de luxo e económicos
indo programa de lazer segmentado (TRIGO, 2002). têm sido construídos. Os hotéis de lazer se espalham: resorts de luxo são implantados
Para Campos (2003), as atividades de lazer monitoradas nos hotéis começa- no litoral brasileiro, hotéis-fazendas são construídos no interior dos Estados, empre-
ram a ser oferecidas, a partir da década de 1960, primeiro aos filhos, para que os pais endimentos antigos passam por reforma ou utilizam novas estratégias de posiciona-
pudessem melhor usufruir seus horários de descanso. Posteriormente, foram esten- mento, demonstrando a expansão por que está passando a hotelaria nacional.
didas aos adolescentes e, depois, aos adultos também, evidencia o autor. Segundo Todas essas mudanças também fazem com que se profissionalize a área e cres-
Castelli (1991), esses hotéis foram influenciados pelas programações dos navios tran- ça o número de cursos em hotelaria no País. Porém, não é somente o conhecimento
satlânticos e resolveram aproveitar a ideia e aplicá-la em terra firme. técnico da área de hotelaria e do turismo que deveria possuir o profissional que irá
Campos (2003) mostra que, no início do oferecimento das atividades de atuar num hotel de lazer. O conhecimento da "teoria do lazer" é fundamental. Mas,
lazer, os hotéis exageravam em suas propostas e seus animadores acabavam sendo infelizmente, a visão dos gerentes dos hotéis de lazer ainda está longe de ser a ideal. A
inconvenientes, perturbando e constrangendo os hóspedes que buscavam o relaxa- maioria deles ainda não tem a consciência de que existe essa teoria do lazer que dê
mento e não a diversão. Esse autor complementa que, a partir da década de 1980, o suporte à atuação deles, bem como à dos coordenadores e animadores desses hotéis.

[HOTÉIS DE LAZER] 111


110 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
Estes últimos, como já citado anteriormente, devem estimular os hóspedes a partici- No esforço de pensar filosoficamente a realidade vigente, marcada por trans-
par das atividades de lazer sem constrangê-los. formações nas dimensões política e económica, o conceito de "indústria cultural",
Assim, os hotéis de lazer têm sido um importante segmento de mão-de-obra, tal qual alcunhado por Adorno e Horkheimer, designa o sistema totalitário e massifi-
mas espera-se que, futuramente, haja uma fundamentação teórica na área do lazer cador que rege a cultura na época de sua produção em série. Os meios de comunica-
também para os que exercem cargos de gestão nesses locais. Espera-se, ainda, que os ção de massa e os objetos de consumo apresentam-se como campo privilegiado para
coordenadores e animadores também se conscientizem de que essa fundamentação a reflexão sobre a relação entre política, tecnologia e sociedade. Nele, ganham desta-
é imprescindível. Dessa forma, a atuação dele seria mais crítica e os hóspedes pode- que a mercantilização da cultura e sua alienação.
riam, então, alcançar o relaxamento e o prazer buscados nos hotéis de lazer. De fato, os meios de comunicação de massa e a cultura de massa são fenóme-
nos decorrentes da industrialização da sociedade. A economia de mercado, conse-
Olívia C. F. Ribeiro
quência da Revolução Industrial ocorrida no século XVIII, possibilitou o desenho da
sociedade de consumo que veio a se consolidar a partir da segunda metade do século
Bibliografia XIX. A discussão em torno do que se convencionou chamar de "cultura de massa"
ANDRADE, N. et ai. Hotel: planejamento e projeto. 3. ed. São Paulo, Editora SENAC, 2001. atingiu seu apogeu após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e uma coletânea
CAMARGO, L. 0. L.; ANSARAH, M.G.R. Animação Turística: um fenómeno da moas?.Revista Turis- reunindo 49 artigos de diversos autores, organizada por Bernard Rosenberg e David
mo em análise.SHo Paulo,v.2,n.2 nov., 1991. Manning White, intitulada Cultura de Massa: as artes populares nos Estados
CAMPOS, J. R. V. (Org.). Estudo de viabilidade para projeto hoteleiro. Campinas: Papirus, 2003. Unidos, apresentou o debate em torno do assunto e tornou-se referência nos estudos
CAMPOS, L. C. A. M.; GONÇALVES. Introdução a turismo e hotelaria. Rio de Janeiro: Editora SENAC relacionados ao tema. Essa obra inspirou, inclusive, o ensaísta e teórico da comuni-
Nacional, 1998. cação Umberto Eco a escrever o livro Apocalípticos e Integrados, um clássico nos
CASTELLI, G. Produto animação. Revista Hotelnews, jul. 1991, n. 237. estudos da comunicação. Adorno e Horkheimer e seu conceito de "indústria cultural"
MARTINELLI, J.C. Fundamentos multidisciplinares do turismo: hotelaria. In: Turismo: como apren- estão, na classificação de Eco, sob a rubrica "apocalíptica", significando, de forma
der, como ensinar. São Paulo, Editora SENAC, 2000. resumida, a perspectiva que via os meios de comunicação de massa como detratores
MILL.R.C. Resorts: administração e operação. Porto Alegre: Bookman, 2003. da cultura, seja popular ou erudita. Já os "integrados", também de forma resumida,
TRIGO, L.G.G. Viagem na memória: guia histórico das viagens e do turismo no Brasil. São Paulo, viam esses meios como uma forma única de colocar ao alcance do homem comum
Ed. SENAC, 2. ed., 2002. uma riqueza cultural que até então ele não possuía.
RIBEIRO, O.C.F, et ai. Os hotéis de lazer do estado de São Paulo: um diagnóstico. Santa Cruz do Sul, Adorno e Horkheimer eram membros da conhecida Escola de Frankfurt (refe-
UNISC/RS, Anais do XIV ENAREL, em CD-Room, 2002. rência aos pesquisadores e estudiosos do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt,
www.embratur.gov.br, acesso em 12/out./2003. fundado em 1923) e alcunharam a expressão de "indústria cultural" por considerar
www.abih.com.br, acesso em 20/out./2003. que "cultura de massa", por maior que fosse a crítica que se fazia a ela, possuía cono-
tação democrática, como se fosse uma cultura feita pelas massas. Com o objetivo de
politizar ainda mais a discussão e dar um caráter mais crítico à expressão, o conceito
foi criado e trabalhado exaustivamente no capítulo "A Indústria Cultural: o esclareci-
INDÚSTRIA CULTURAL mento como mistificação das massas"do livro Dialética do Esdareámento,de 1947.
Críticos do primado da razão como forma de dominação e do progresso como um
Formulação cunhada pelos alemães Theodor Wiesengrund Adorno e Max fim em si mesmo, os autores denunciam que a difusão em massa das mercadorias
Horkheimer em Dialética do Esclarecimento, texto escrito na vigência do na- não visa mais suprir necessidades, mas auto-suprir o mercado mundial. Eis a grande
zismo (1941- 44) e publicado em 1947. Conjunto de bens culturais, difundidos força da "indústria cultural": proporcionar ao homem a necessidade de consumir
pelos meios de comunicação de massa, impondo formas universalizantes de com- incessantemente. Insatisfeito, o consumidor garante o crescimento e a dinâmica do
portamento e consumo. mercado. O desejo de posse constantemente renovado pelo progresso tecnológico e

112 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [INDÚSTRIA CULTURAL] 113


científico funciona como motor dessa dominação. Assim, as crises de superprodução americano Marshall Berman faz uma análise interessante sobre este texto em Tudo
preconizadas por Karl Marx como intrínsecas ao capitalismo e que, inevitavelmente, que é sólido desmancha no ar, título extraído de uma frase do Manifesto. Para
resultariam na sua derrocada, eram "superadas" pelas mensagens persuasivas da pu- Berman, Marx e Engels anunciavam ali o drama da modernidade que viria no século
blicidade e dos meios de comunicação. Na era da "indústria cultural", novas formas seguinte. Não podemos esquecer que Adorno e Horkheimer eram marxistas e suas
de dominação estariam em jogo, mais sutis e ardilosas, perpetuando o sistema e ne- análises são permeadas por essa teoria.
gando a noção de derrota inexorável como o resultado da síntese da contradição do Para eles, os meios de comunicação de massa penetram no cotidiano dos indi-
capitalismo analisado à luz do marxismo. víduos como uma ordem. "A recomendação transforma-se em comando" (ADORNO;
A tecnologia, comprometida exclusivamente com o mercado, reduziria a infor- HORKHEIMER, p. 149), de forma que sujeitos potencialmente livres, diante de meios que
mação e a comunicação às suas dimensões ideológicas e à circulação de mercadoria. não exigem nenhum esforço de pensamento, tornam-se uma massa passiva e indife-
Para Adorno e Horkheimer, a mídia centraliza o económico, produz e dissimula a renciada, conforme a uma realidade que lhe retira o poder de agir e pensar de modo
relação puramente mercadológica, impondo o mercado como única forma possível autónomo e livre. Os autores argumentam que o modelo de transmissão e distribui-

de integração social. A racionalidade técnica seria, hoje, a racionalidade da própria ção de mensagens, próprio dos meios de comunicação de massa, dada a promessa de
gratificação sem esforço, faz com que os homens desejem aquilo mesmo que os do-
dominação. O declínio da razão crítica se cumpre com a própria racionalidade ins-
trumental em vigência. mina. Com efeito, ao proibirem a atividade intelectual e crítica do espectador, os meios
de comunicação de massa representam "a vitória da razão tecnológica sobre a verda-
Nesta "indústria cultural", o homem não passa de mero instrumento de traba-
de" (p. 129). E, assim, os valores humanos são substituídos em favor do interesse eco-
lho e de consumo, ou seja, objeto. Com efeito, as massas a quem ela se dirige, nas
nómico. Um exemplo recorrente para Adorno é o cinema. O que antes era um meca-
vozes do rádio e nas imagens do cinema e da televisão, não são anteriores a esta nismo de lazer, ou seja, uma arte, torna-se um meio eficaz de manipulação. Portanto,
indústria - elas são o seu efeito, a sua ideologia. A "indústria cultural" produz, a um pode-se dizer que a"indústria cultural" traz consigo todos os elementos característi-
só tempo, o produto e o seu consumidor. Trata-se, portanto, de um sistema que faz cos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel específico, qual seja, o de
coincidir a produção de coisas com a produção de necessidades, um instrumento de portadora da ideologia dominante, que outorga sentido a todo o sistema. Com seus
domínio e integração social que configura, segundo Adorno e Horkheimer, uma nova produtos, a"indústria cultural"pratica o reforço das normas sociais, repetidas à exaus-
forma de despolitização da sociedade.
tão sem questionamento.
É nesse sentido que os meios de comunicação de massa representam a degra- Adorno e Horkheimer estão imbuídos de uma concepção da técnica que so-
dação da cultura, que, seguindo a lógica da indústria e da mercadoria, levam à derro- mente nela vê o processo de automatizar. Entendendo a história como fortalecimen-
cada os sujeitos autónomos, independentes. O exercício livre e crítico da razão en- to progressivo da razão técnica, que se perfaz com a perda do momento da revolução,
contra-se atrofiado por essa indústria que não é senão a outra face do trabalho só resta esperar por outro surto revolucionário. Enquanto ele não vem, a tarefa é re-
mecanizado. A "indústria cultural" se insere no amplo quadro de administração do fletir sobre a arte e a cultura e mostrar como elas lidam com formas de dominação.
tempo livre. Em outros termos, a organização do lazer, em razão da valorização do
A estética é o território privilegiado da análise adorniana. De acordo com o
capital, promove uma racionalização de procedimentos que expande a reificação da filósofo, a antítese mais viável para a sociedade é a arte; somente ela liberta o homem
esfera da produção e do mundo do consumo para o âmbito da vida imediata. Daí a das amarras dos sistemas e o coloca como um ser autónomo, um ser humano. Se
advertência de que a liberdade produzida no capitalismo não é senão esquecimento para a "indústria cultural" o homem é mero objeto de trabalho e consumo, na arte é
que imobiliza a consciência e a sensibilidade em um presente perpétuo, cristalizado um ser livre para pensar, sentir e agir. Adorno entende que a "indústria cultural" não
na cultura do supérfluo descartável. Na substituição veloz das mercadorias, o novo pode ser pensada de maneira absoluta: ela possui uma origem histórica e, portanto,
deteriora-se antes de envelhecer, garantindo, assim, o predomínio da astúcia do capi- pode desaparecer. No entanto, os trabalhos sobre a "indústria cultural" são permea-
tal e de sua valorização continuada mediante inovação permanente. dos por um forte pessimismo em relação à emancipação do homem, e aí nem mesmo a
Interessante notar que Karl Marx e Friedrich Engels já haviam escrito algo se- arte surge como antítese da ordem vigente, mas sim como uma afirmação do status
melhante no Manifesto do Partido Comunista, em 1848. O crítico social norte- quo. Utilizando o conceito de "cultura afirmativa" justamente para designar a perda

114 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [INDÚSTRIA CULTURAL] 115


A Internet tem representado um elemento emergente, tanto na difusão das ques-
dessa capacidade de antítese, os membros da Escola de Frankfurt, incluindo aí, além
tões voltadas à prática, no âmbito das atuais opções de lazer, quanto no contexto acadé-
de Theodor Adorno e Max Horkheimer, também Herbert Marcuse, foram criticados
mico, como um instrumento para o desenvolvimento de pesquisas científicas.
por não conseguirem elaborar um esboço de saída viável para o impasse que verifi-
cavam. Como o marxismo trabalha com a noção de dialética e, na base dos trabalhos No que se refere a estas novas opções de atividades de lazer, isto é, o lazer virtual,
Frankfurtianos sobre arte e cultura, a antítese que negava a ordem vigente estava inúmeras possibilidades, são associadas aos interesses pela busca da conexão em rede,
justamente centrada na arte, o que acontece quando a "indústria cultural" absorve o salientando-se a possibilidade de aquisição de conhecimentos e informações de modo
campo artístico e passa a afirmar os valores da sociedade de consumo? mais ágil, de interação social e diversão, com a utilização de salas de "bate-papo", jogos
É também recorrente a crítica que remonta à partição entre cultura popular e virtuais e troca de correspondência, evidenciando espaço para todos os interesses cul-
cultura erudita. Questiona a manutenção a qualquer preço da cultura erudita, por turais do lazer (DUMAZEDIER, 1980; CAMARGO, 1986, SCHWARTZ; SILVA, 2000).
considerar que se vai criando um culto quase mítico da cultura, como se ela estivesse A Internet tem sido apontada como elemento importante para ampliação,
separada da vida das pessoas. disseminação e mudanças de valores concernentes aos conteúdos educacionais
Adorno e Horkheimer, com Walter Benjamin, Erich Fromm, Herbert Marcuse do lazer, despontando, inclusive, como nova perspectiva de atuação do profis-
e, mais tarde, Júrgen Habermas, formam os expoentes da Escola de Frankfurt, que sional do lazer.
empreendeu uma vasta releitura do marxismo e da psicanálise, problematizando o Uma das principais características desse meio virtual consiste na busca, na
modo como se pensa a relação entre capitalismo, sociedade e cultura. Não podemos representação, na criação, na distribuição e no gerenciamento de informações em tempo
esquecer que a época em que viveram foi marcada por acontecimentos como a Se- reduzido, atingindo grandes distâncias, podendo congregar um imenso número de usu-
gunda Guerra Mundial, o nazismo, a Guerra Fria e o surgimento e o desenvolvimento ários simultaneamente. Esses fatores afetam substancialmente a estrutura de disse-
dos modernos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, o que minação de uma informação, tendo em vista seu caráter descentralizador.
levou pensadores e intelectuais a elaborar teses apocalípticas sobre a relação entre Esses aspectos favorecem uma nova visão relacionada à possibilidade de utili-
governantes e governados.
zação dessa rede com a finalidade de disseminação da educação para o lazer. As in-
Ricardo Ferreira Freitas formações veiculadas por meio da utilização da Internet contêm textos, figuras, ima-
gens e sons que são passados por meio de supervias eletrônicas, com diferentes
Ronaldo Helal
objetivos, sendo apropriados no campo do lazer das mais diversas formas, emergin-
Fernanda Pizzi
do, daí, esse novo conteúdo cultural do lazer, qual seja, o conteúdo virtual.
Bibliografia As características relativas à educação pelo e para o lazer vêm sofrendo inú-
ADORNO, Theodor. W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarerímento.foo de Janeiro: Zahar, 1985. meras interferências, necessitando-se, no momento atual, atualizar e ampliar o con-
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. ceito e os valores relacionados ao lazer, os quais, de forma recorrente na sociedade,
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979. assumem características apenas terapêuticas, utilitaristas ou compensatórias, sendo
ROSENBERG, Bernard.; MANNING WHITE, David. Cultura de massa: as artes populares nos Esta-
minimizados em sua dimensão, conforme alertou Marcellino (1987). Nesse sentido é
dos Unidos.São Paulo: Cultrix, 1973. que se pode identificar, atualmente, o uso da Internet como possibilidade tanto de
prática opcional nos momentos de trabalho, como também de lazer, evidenciando a
importância de seu papel, inclusive na educação para o lazer.
Alguns estudos estão emergindo nas diferentes áreas de conhecimento, focali-
INTERNET
zando as diferentes possibilidades de relação do uso da Internet e, no âmbito dos
A área do lazer tem se apropriado do uso da rede Internet, por suas características estudos do lazer, pode-se apontar as reflexões de Werneck (1999), salientando o
marcantes de agilidade de tempo e espaço, assim como pela possibilidade de con- imaginário construído na Internet como uma possibilidade de contribuição para
densação de um número sem limite de informações. experiências críticas e criativas no lazer.

[INTERNET] 117
116 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
Schwartz et ai. (1998) evidenciaram o uso da Internet como espaço atual de Tendo em vista essa gama de elementos que permeiam a utilização das novas
lazer, tendo em vista as características da sociedade contemporânea, que focaliza a tecnologias no âmbito do lazer, torna-se importante a reavaliação de valores concer-
procura de diversão e de interação social como os principais objetivos que motivam nentes à utilização da rede Internet como coadjuvante no processo de educação para
o acesso de usuários. o lazer, assim como um importante e emergente meio metodológico de desenvolvi-
A possibilidade de ampliação do espaço educacional sobre os valores do lazer mento de pesquisas académicas.
para além dos muros escolares, especialmente com a utilização da rede Internet, tam- Gisele Maria Schwartz
bém foi tema de outro estudo de Schwartz et ai. (2000), tendo em vista a perspectiva
de desenvolvimento nos níveis pessoal e social, enfatizando-se, inclusive, o espirito
de cidadania e de aquisição de direitos. Bibliografia
Uma das tarefas centrais desse veículo de comunicação, em relação à educação CAMARGO, L.O.L. O que é lazer. São Paulo: Brasiliense, 1986.
para o lazer, é a oportunidade oferecida aos mais variados tipos de pessoas de se DUMAZEDIER, J. Valores e conteúdos culturais ao lazer. São Paulo: SESC, 1980.
inteirarem sobre as diversas formas de usufruir um estilo de vida com maior nível MARCELLINO, N. C. Lazer e educação. Campinas: Papirus, 1987.
qualitativo e mais saudável, no qual as experiências podem ser escolhidas conforme SCHWARTZ, G. M., SILVA, R. L. Internet: uma perspectiva para o profissional na educação para o lazer
o interesse particular e com vínculo imediato ao enredo psicológico de cada indiví- In: ENCONTRO NACIONAL DE RECREAÇÃO E LAZER, 12; ENCONTRO LATINO-AMERICANO DE
RECREAÇÃO E LAZER.4,2000, Camboriú: Universidade do Vale do Itajaí. Anais... Camboriú, 2000. p.
duo, para que se tornem, de alguma forma marcantes e significativas, tendo em vista
492-498.
a possibilidade de especificidade dos focos nos custos e benefícios das novas pers-
SCHWARTZ, G.M.; SILVA, R.L.; ZANCHA, D.; FERREIRA, M.L.C. A Internet como espaço de lazer. In:
pectivas de opções.
SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, XXI, 1998, São Paulo, A«ais...São Paulo,
No âmbito das pesquisas académicas relacionadas ao lazer, a Internet tem fa- 1998, p. 135.
vorecido uma perspectiva de ampliação do universo instrumental, uma vez que essa SCHWARTZ, G.M.; SILVA, R.L.; Leisure Education through Web. In: WORLD LEISURE CONGRESS, 6,
tem se tornado uma ferramenta importante para a seleção de amostras específicas, 2000, Bilhão, Anais... Bilbao, 2000, p. 3-7.
ou como meio de aplicação de questionários e entrevistas, cujo alcance é ampliado SILVA, R. L., SCHWARTZ, G. M. Cultura midiática e esportes de aventura In: CONGRESSO DE EDUCA-
sem fronteiras. ÇÃO FÍSICA E CIÊNCIA DO DESPORTO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA. 9,2002, São Luís,
MA., Anais..., São Luís, MA, 2002, p. 100.
Silva e Schwartz (2000) utilizaram a rede para selecionar e entrevistar indiví-
SILVA, R. L., SCHWARTZ, G. M. Gender, discrimination, lesbianism and leisure In: WORLD LEISURE
duos que se autodenominavam homossexuais, que pudessem auxiliar a compreen- CONGRESS, 6,2000, Bilbao, Anais... Bilbao, 2000, p. 46-47.
der as possíveis tendências discriminatórias relacionadas à participação social de VIVIANI, L. H. S. N., SCHWARTZ, G. M. A questão da violência e os jogos virtuais. In: CONGRESSO DE
algumas minorias, no caso os homossexuais, no contexto do lazer. INICIAÇÃO CIENTIFICA, XIV, 2002, Presidente Prudente: Unesp, Anais..., Presidente Prudente, 2002.
Viviani e Schwartz (2002) procuraram identificar, na visão de jogadores de jo- WERNECK, C. L. G. Brincando na Internet: uma análise sobre o imaginário presente nos bate-papos
gos virtuais, as principais diferenças de atitudes diante dos estímulos competitivos virtuais. Revista Licere. Belo Horizonte, v. 2, n. l, p. 74-90,1999.
no mundo virtual, evidenciando reflexões sobre adversários e parceiros virtuais e a
concepção de jogo envolvida nessas modalidades.
Em outros estudos de Silva e Schwartz (2002), a rede foi utilizada para selecio- LAZER - CONCEPÇÕES
nar indivíduos participantes de atividades de aventura na natureza, no sentido de
compreender melhor a relação homem-natureza. Considerando que a análise das diversas concepções de lazer recorrentes nesse cam-
Não se pode fazer do progresso humano e dos avanços tecnológicos apenas po de estudos é uma tarefa complexa, não se pretende, nesse texto, esgotar o assun-
vilões historicamente concebidos e situados, mas pode-se fazer uso deles, com a fi- to, mas sim contribuir para as reflexões sobre o pensamento de alguns autores que
nalidade de buscar soluções mais humanizadoras, evidenciando a informação e a aprofundaram conhecimentos sobre o lazer, emitindo conceitos sobre este objeto
orientação precisas como caminhos para um bom uso da tecnologia. de estudos.

118 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [LAZER - CONCEPÇÕES] 119


• Caráter liberatório: o lazer é liberação de obrigações institucionais (profissi-
No Brasil, é recorrente a ideia de que o livro Lazer Operário, publicado em
onais, familiares, socioespirituais e sociopolíticas) e resulta de uma livre escolha.
1959 por Acácio Ferreira, trata-se de uma obra pioneira sobre o tema em nosso país.
Entretanto, muitos estudos brasileiros sobre o assunto remontam à primeira metade • Caráter desinteressado: o lazer não está, fundamentalmente, submetido a
do século XX, e neles já é possível identificar concepções de lazer em voga naquele fim algum, seja lucrativo, profissional, utilitário, ideológico, material, social, político,
período histórico. socioespiritual.
• Caráter hedonístico: o lazer é marcado pela busca de um estado de satis-
Examinando textos da época é possível constatar que o lazer, em geral, era com-
fação, tomado como um fim em si: "isso me interessa". Essa busca pelo prazer, feli-
preendido como uma fração de tempo situada no âmbito do chamado "tempo li-
cidade, alegria ou fruição é de natureza hedonística e representa a condição pri-
vre". Portanto, o lazer era entendido como um fenómeno decorrente das conquistas
meira do lazer.
trabalhistas, materializado na forma da limitação da jornada de trabalho, das férias
• Caráter pessoal: as funções do lazer (descanso, divertimento e desenvolvi-
e fins de semana remunerados, que constituem ainda hoje os períodos de tempo ins-
mento da personalidade) respondem às necessidades do indivíduo, em face das obri-
titucionalizados para os descansos, passatempos e diversões.
gações primárias impostas pela sociedade.
Nesse contexto, difundiu-se a ideia de que as horas de lazer deveriam ser pre-
enchidas com atividades recreativas consideradas "saudáveis" pelos segmentos he-
gemónicos. Este encaminhamento contribuiu com a ampliação do acesso das cama- Em suas análises conceituais do lazer, Dumazedier (1973,p.34) o compreende
das populares a diversos conteúdos culturais que antes constituíam privilégio da como"[...] um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre
burguesia. No entanto, foi revestido de caráter coercitivo, pois as atividades ofereci- vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou ainda
para desenvolver sua formação desinteressada, sua participação social voluntária,
das à população operária eram apenas aquelas consideradas "lícitas".
ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações
A visão acima foi reforçada por Arnaldo Sussekind, que explicitou um con- profissionais, familiares e sociais."
ceito formal de lazer: "o período entre duas jornadas consecutivas de trabalho e os
Por situar o lazer como um "conjunto de ocupações", restringindo o fenómeno
repousos obrigatórios, isto é, o descanso semanal e as férias anuais" (SUSSEKIND et
à prática de determinadas atividades, esse conceito é alvo de críticas por parte de
a/., 1952, p. 16-17).
alguns autores. Além disso, Dumazedier define o lazer em oposição ao conjunto das
A concepção que entende o lazer como um período de tempo - que deveria ser necessidades e obrigações da vida cotidiana, especialmente do trabalho profissional,
"racionalmente"organizado e"adequadamente"preenchido - também pode ser iden- interpretação passível de questionamentos.
tificada na obra de Acácio Ferreira (1959). Fundamentado em Gerald Fitzgerald, o Trabalho e lazer, apesar de possuírem características distintas, integram a mes-
autor explicita os conceitos que são a essência de sua pesquisa: "Lazer é tempo, e ma dinâmica social e estabelecem relações dialéticas. É preciso levar em conta o di-
recreação é expansão dos interesses humanos em tempo de lazer" (p.31). namismo desses fenómenos, atentando para as inter-relações e contradições que eles
No entanto, a compreensão que restringe o lazer ao tempo subtraído da jorna- apresentam. Em virtude desse aspecto, trabalho e lazer não constituem pólos opos-
da de trabalho foi alvo de reflexões, especialmente na segunda metade do século XX. tos, representando faces distintas de uma mesma moeda.
No Brasil, esse repensar sobre o lazer vem ocorrendo desde a década de 1970, perío- Ê importante enfatizar que, na vida cotidiana, nem sempre existem fronteiras
do em que foi notável a repercussão da produção teórica do sociólogo francês Joffre absolutas entre o trabalho e o lazer, tampouco entre o lazer e as obrigações profissio-
Dumazedier. Um exame dos trabalhos produzidos em diversas áreas do conhecimento nais, familiares, sociais, políticas, religiosas. Afinal, não vivemos em uma sociedade
indica que o pensamento desse autor representa uma grande referência para os estu- composta por dimensões neutras, estanques e desconectadas umas das outras, como
dos sobre o tema, inclusive nos dias de hoje. o conceito de lazer proposto por Dumazedier nos faz pensar.
Joffre Dumazedier (1979) formulou proposições teóricas pautadas nos resulta- Fundamentando-se no pensamento de Dumazedier, Renato Requixa e Luiz
dos das pesquisas empíricas por ele desenvolvidas na França, nas décadas de 1950 e Octávio Camargo também esboçaram concepções de lazer que coincidem com os pos-
1960, nas quais destaca um sistema de caracteres específicos e constituintes do lazer: tulados do sociólogo francês. Requixa (1980, p. 35) define o lazer como "ocupação não

120 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [LAZER - CONCEPÇÕES] 121


obrigatória, de livre escolha do indivíduo que a vive, e cujos valores propiciam condi- importância de aprofundarmos conhecimentos sobre esta última. O lazer é uma das
ções de recuperação psicossomática e de desenvolvimento pessoal e social." importantes dimensões da cultura, assim como o trabalho, a educação, a família,
Para Camargo (1986, p. 97), o lazer representa "um conjunto de atividades gra- dentre outras.
tuitas, prazerosas, voluntárias e liberatórias, centradas em interesses culturais, físi- No que diz respeito ao tempo no qual o lazer ocorre, Marcellino (1987, p. 29)
cos, manuais, intelectuais, artísticos e associativos realizados num tempo livre rou- afirma: "Talvez, fosse mais correto falar em tempo disponível, ao invés de tempo li-
bado ou conquistado historicamente sobre a jornada de trabalho profissional e vre". Esta afirmação é baseada no pressuposto de que, no seu ponto de vista, "tempo
doméstico e que interfere no desenvolvimento pessoal e social dos indivíduos". Suas algum pode ser considerado livre de coações ou normas de conduta social".
obras mais recentes não apresentam um conceito formal de lazer, mas é possível iden- O tempo disponível para o lazer implica liberação de determinadas obrigações,
tificar em seus textos a influência do arcabouço teórico formulado por Dumazedier, pensamento que se aproxima do "caráter liberatório" proposto por Dumazedier (1979),
que é considerado um mestre por Camargo. autor que também critica os determinismos e coações presentes no suposto tempo
Nos últimos anos, os trabalhos de Nelson Marcellino vêm sendo consideravel- "livre". Para denunciar e refletir sobre esse paradoxo, o autor francês amparou-se
mente citados nos estudos sobre o lazer em nosso país. Analisando seu primeiro li- nos pensadores da Escola de Frankfurt, que chamaram a atenção para o fato de que a
vro sobre o assunto (Lazer e Humanização), observa-se que sua produção intelec- produção do tempo livre representou mais uma peça que movimenta a engrenagem
tual também endossou as ideias de Dumazedier. Em outras publicações de sua autoria, do sistema de produção-consumo capitalista.
verificamos a presença de Dumazedier, embora as análises do sociólogo brasileiro
É importante ter clareza de que, aparentemente, o chamado tempo livre se opõe
sejam redimensionadas em alguns pontos. Fundamentado em António Gramsci,
ao tempo de trabalho, mas, na realidade, é sua própria extensão.
Marcellino se vale das perspectivas marxistas para subsidiar suas considerações.
António Carlos Bramante, ao apresentar um conceito de lazer, indica sua prefe-
Do ponto de vista conceituai, o autor entende o lazer "como a cultura - compreendi-
rência pela expressão "tempo conquistado" para assinalar o tempo no qual o lazer é
da em seu sentido mais amplo - vivenciada (praticada ou fruída) no'tempo disponível'."
vivenciado. Segundo sua interpretação, o tempo é um "conceito objetivamente ine-
O importante, como traço definidor, é o caráter 'desinteressado' dessa vivência. Não se
lástico" que vem sendo encarado como uma mercadoria de luxo, em que a máxima
busca, pelo menos fundamentalmente, outra recompensa além da satisfação provo-
"tempo é dinheiro" chega a refletir o seu significado. "Portanto,'conquistar' um tem-
cada pela situação. "A'disponibilidade de tempo'significa possibilidade de opção pela
po da não-obrigação vem se impondo como um desafio para todos que desejam exer-
atividade prática ou contemplativa" (MARCELLINO, 1987, p. 31. Grifos do autor).
citar a face humana da vida plena" (1998, p. 11). Conforme seu entendimento,"o lazer
Essa concepção amplia o conceito de lazer enunciado, anteriormente, pelo pró-
se traduz por uma dimensão privilegiada da expressão humana dentro de um tempo
prio autor (MARCELLINO, 1983), no qual lazer e ócio eram colocados em campos opos-
conquistado, materializada através de uma experiência pessoal criativa, de prazer e
tos. Ao redimensionar o lazer como cultura, essa compreensão supera o seu entendi-
que não se repete no tempo/espaço, cujo eixo principal é a ludicidade. [...]" (p. 9).
mento como mero "conjunto de ocupações". Porém, as heranças de Dumazedier
podem ser identificadas na concepção de Marcellino, sobretudo no que se refere à A ludicidade, compreendida como eixo principal da experiência de lazer é, se-
presença do caráter "desinteressado", do "hedonístico" (busca de satisfação) e, em gundo Bramante, uma das poucas unanimidades entre os estudiosos que teorizam
certa medida, do "liberatório", como será retomado adiante. sobre o tema. Esta é, pois, uma referência marcante da discussão conceituai do lazer
no contexto brasileiro, pois, em outros países, nem sempre verificamos o mesmo en-
Apesar de promover um avanço na compreensão de lazer, alguns pontos do
caminhamento. No Brasil, mesmo com as particularidades que distinguem cada pes-
conceito de Marcellino também vêm sendo foco de questionamentos. Vânia Noronha
Alves (2003, p. 98) pondera: apesar da apropriação, por muitos, dessa concepção de quisador, a presença do lúdico pode ser constatada em várias abordagens. Leila Pinto
lazer, algumas questões precisam ser repensadas. "O que nós, profissionais e estudio- (2003, p. 254), por exemplo, considera o lazer como "espaço privilegiado para a vi-
sos do lazer.estamos entendendo por cultura [...]? E o que quer dizer a expressãoem vência lúdica, na qual o prazer é conquista da experiência da liberdade."
seu sentido mais amplo'? Existe um sentido restrito para a cultura?" Trilhando caminhos marxistas, Fernando Mascarenhas (2001, p. 92) também
A autora conclui suas reflexões afirmando a necessidade de superar o enten- formulou um conceito de lazer. Conforme suas palavras, "o lazer se constitui como
dimento restrito de lazer como cultura. Associar o lazer com a cultura ressalta a um fenómeno tipicamente moderno, resultante das tensões entre capital e trabalho,

122 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [LAZER - CONCEPÇÕES] 123


que se materializa como um tempo e espaço de vivências lúdicas, lugar de organiza- institucionalizado na atualidade como um campo dotado de características pró-
ção da cultura, perpassado por relações de hegemonia". prias. Mas o lazer não é um fenómeno isolado, pois está em franco diálogo com o
Neste âmbito, é pertinente fazer uma reflexão: Sendo resultante da tensão capi- contexto. Por um lado, o lazer pode contribuir para o mascaramento das contradi-
tal/trabalho, o lazer não existiu (tampouco existe) nas sociedades que resistem ao ções sociais, mas, por outro, pode representar uma possibilidade de questionamento
capitalismo? Na opinião de Dumazedier (1979), o lazer é um fenómeno verificado e resistência à ordem social injusta e excludente que predomina em nosso meio.
nas sociedades industriais, sejam elas capitalistas ou socialistas. Em síntese, entendo o lazer como uma dimensão da cultura constituída
Mascarenhas, fundamentando-se no pensamento gramsciano, salienta um as- por meio da vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/espaço
pecto interessante. O autor esclarece que o lazer deve constituir um espaço de organi- conquistado pelo sujeito ou grupo social, estabelecendo relações dialéticas
zação da cultura, ampliando as oportunidades para que se questionem os valores da com as necessidades, os deveres e as obrigações, especialmente com o traba-
ordem social vigente, de maneira que as pessoas não apenas vivenciem, mas tam- lho produtivo.
bém produzam cultura. Como nem todas as concepções de lazer em voga nesse campo de estudos fo-
Pelo exposto, a cultura institui uma expressiva possibilidade para se conceber o ram aqui apresentadas e discutidas, é importante recomendar a leitura de obras pu-
lazer em nossa realidade histórico-social. Apesar de neste texto não se pretender aprofun- blicadas por outros autores que vêm trazendo expressivas contribuições para o avan-
dar conhecimentos sobre o conceito de cultura, pauta-se no pressuposto de que a cultura çar de conhecimentos sobre o tema. Alguns desses estudiosos são, inclusive, co-autores
constitui um campo de produção humana em várias perspectivas, e o lazer representa deste Dicionário. A leitura das obras sugeridas nas referências bibliográficas aqui
uma de suas dimensões: inclui a fruição de diversas manifestações culturais. listadas poderá, assim, instigar reflexões e ampliar os horizontes da discussão con-
ceituai sobre o lazer.
O lazer compreende, dessa maneira, a vivência de inúmeras práticas culturais,
como o jogo, a brincadeira, a festa, o passeio, a viagem, o esporte e também as formas de Christianne Luce Gomes
arte (pintura, escultura, literatura, dança, teatro, música, cinema), dentre várias outras
possibilidades. Inclui, ainda, o ócio, uma vez que esta e outras manifestações culturais
podem constituir, em nosso meio social, notáveis experiências de lazer (GOMES, 2003). Bibliografia
Assim, o lazer é uma dimensão da cultura construída socialmente, em nosso ALVES, Vânia F. N. Uma leitura antropológica sobre a educação física e o lazer. In: WERNECK, Christi-
contexto, a partir de quatro elementos inter-relacionados: anne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Org.). Lazer, recreação e educação física. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2003, p. 83-114.
• Tempo, que corresponde ao usufruto do momento presente e não se limita BRAMANTE, António Carlos. Lazer: concepções e significados. Licere. Belo Horizonte, v. l, n. l. p.9-17,
aos períodos institucionalizados para o lazer (final de semana, férias, etc.). set. 1998.
• Espaço-lugar, que vai além do espaço físico por ser um "local" do qual os CAMARGO, Luiz Octávio L. O que é lazer. São Paulo: Brasiliense, 1986.
sujeitos se apropriam no sentido de transformá-lo em ponto de encontro (consigo, DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. São Paulo: Perspectiva, 1973.
com o outro e com o mundo) e de convívio social para o lazer. DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia empírica do lazer. São Paulo: Perspectiva, 1979.
FERREIRA, Acácio. Lazer operário: um estudo de organização social das cidades. Salvador: Livra-
• Manifestações culturais, conteúdos vivenciados como fruição da cultura,
ria Progresso, 1959.
seja como possibilidade de diversão, de descanso ou de desenvolvimento. GOMES, Christianne Luce. Significados de recreação e lazer no Brasil: reflexões a partir da análi-
• Ações (ou atitude), que são fundadas no lúdico - entendido como expressão se de experiências institucionais (1926-1964). Tese (Doutorado em Educação). Belo Horizonte: Fa-
culdade de Educação/UFMG, 2003.
humana de significados da/na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro e
com a realidade. MARCELLINO, Nelson C. Lazer e humanização. Campinas: Papirus, 1983.
MARCELLINO, Nelson C. Lazer e educação. Campinas: Papirus, 1987.
Tomando esses quatro elementos como referência, observa-se que o lazer se
MASCARENHAS, Fernando. Lazer e trabalho: Liberdade ainda que tardia. In: SEMINÁRIO "O LAZER
inscreve no seio das relações estabelecidas com as diversas dimensões da nossa EM DEBATE", 2, Belo Horizonte. Coletánea... Belo Horizonte: Imprensa Universitária/CELAR/DEF/
vida cultural (o trabalho, a economia, a política e a educação, entre outras), sendo UFMG, 2001, p. 81-93.

124 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [LAZER - CONCEPÇÕES] 125


PINTO, Leila Mirtes S. M. Inovação e avaliação: desafios para as políticas públicas de esporte e lazer. In: compensadoras, são também produtoras de vigor físico, remédio necessário para com-
WERNECK, Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Org.). Lazer, recreação e educação bater a preguiça e o ócio.
física. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 243-264.
Se na escola a recreação cumpriu funções importantes na formação das novas
REQUIXA, Renato. Sugestão de diretrizes para uma política nacional de lazer. São Paulo: Sesc, 1980.
elites, cooperando para que "as crianças aprendessem a retirar do comportamento
SUSSEKIND, Arnaldo, MARINHO, Inezil P, GÓES, Oswaldo. Manual de recreação (Orientação dos
lazeres do trabalhador). Rio de Janeiro: Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, 1952. social burguês benefícios e prazeres físicos" (COSTA, 1999, p. 186), fora da escola, ou
WERNECK, Christianne Luce Gomes. Lazer, trabalho e educação: relações históricas, questões seja, nos chamados Centros de Recreio (equipamentos públicos de lazer destinados
contemporâneas. Belo Horizonte: Editora UFMG/CELAR, 2000. às famílias pobres e operárias, propagados pelas principais metrópoles brasileiras
durante as quatro primeiras décadas do século XX), a recreação assume a feição de
uma formação essencial aos setores populares, sobretudo aos operários, como um
reforço à insuficiente educação praticada no ambiente doméstico. Para Miranda
LAZER-EDUCAÇÃO (1962), um dos representantes dessa proposta, além da educação física, moral e inte-
lectual, são objetivos pedagógicos da recreação a educação maternal e a instrução
Pensar a relação existente entre lazer e educação requer uma tomada de posição em
doméstica, no caso das moças operárias, e a formação para o trabalho, no caso dos
face da gama de possibilidades, aspectos, desafios e dificuldades que tal questão envol-
rapazes. Sendo assim, as atividades mais indicadas no programa de recreação para a
ve. Por isso, optou-se aqui por um enfoque sob as principais correntes ou tendências de
moça operária podem classificar-se em físicas, manuais, dramáticas, musicais e so-
explicação ou intervenção no campo do lazer e educação que se configuraram ao longo
ciais, e, "entre as atividades manuais, seriam adotadas, em primeiro lugar, todas as
da história e que podem ser verificadas, de alguma forma, nos dias de hoje.
que têm aplicação doméstica imediata, como bordados, tricô, costura, decoração do
De modo geral, é possível identificar três ou quatro perspectivas em que a rela- lar..."(p. 232). Já as atividades sociais "seriam constituídas de tudo aquilo que pudes-
ção entre lazer e educação é tratada e estabelecida. Uma primeira tendência, predo- se simultaneamente proporcionar o ensino das boas maneiras e socializar no mais
minante até meados de 1960 e que interveio diretamente na constituição do pró- alto grau a adolescência operária [...] preparando o espírito das jovens para a consci-
prio campo do lazer, é aquela que reclama a aplicação de recursos e estratégias ência de um sadio e puro nacionalismo" (p. 233). Enfim, "trata-se de plasmar mães
pedagógicas para a ocupação saudável e produtiva do tempo livre, contribuindo operárias aptas para formar gerações mais capazes e mais robustas que as atuais"
para a autodisciplina e a correta "organização dos lazeres" por meio da recreação. (p. 232). Quanto à educação dos moços,Miranda (1984) deixa claro que os Clubes de
Primeiramente atrelada à escola, a recreação aparece já na segunda metade do Menores Operários "não visam tão-somente, como julgam muitos, à educação física
século XIX, quando as ideias a respeito da formação de um novo cidadão, que res- da juventude trabalhadora de São Paulo. A sua finalidade é mais precípua, mais am-
pondesse com disposição e êxito às exigências da nova sociedade que se construía, pla, mais universal. Eles visam criar uma personalidade vigorosa no adolescente ope-
penetram o ambiente escolar atribuindo à educação o papel de forjar o perfil social rário, uma personalidade cuja expressão seja originada da prática dos jogos dos es-
de homem e de mulher desejado. Nesse intuito e conforme as orientações pedagó- portes e do cultivo de certas formas de arte. É seu objetivo, ainda, o aumento da
gicas que vigoravam na época, à recreação coube a função de disciplinar as mentes capacidade e melhoria do trabalhador profissional, a educação higiénica, o aperfei-
e cultivar os corpos das crianças de acordo com a educação moral, higiénica e físi- çoamento da vida mental do adolescente, a formação de hábitos morais e a elevação
da consciência cívica dos moços" (p. 36-37).
ca. Costa (1999) já demonstrou que a recreação dentro de escola procurou corrigir
e encetar determinados hábitos que se tornaram, claramente, sinónimos de disci- Como se observa, a proposta educativa desenvolvida pela recreação na primei-
plina e domesticação. Ela era considerada formativa à medida que estimulasse o ra metade do século XX revela que o lazer surge como uma alternativa no cotidíano
corpo e o espírito para a escolha de brincadeiras, exercícios e distrações que recu- da grande cidade - que já vivia todos os problemas relacionados ao impulsivo pro-
perassem as energias gastas em outras tarefas ou trabalhos escolares. Nesse proje- cesso de urbanização e industrialização -, colaborando para a criação de novos com-
to de formação, em que nada podia ser deixado ao acaso, uma vez que o tempo e o portamentos e a formação da subjetividade de que a sociedade burguesa precisava.
espaço escolares assumem princípios utilitários e disciplinares, as chamadas "horas Os centros de recreio, por exemplo, tornaram-se campos dissipadores das ideias
liberais dominantes, por onde se desenvolvia uma estratégia para a adesão dos
livres" são, paulatinamente, preenchidas pelas atividades recreativas que, além de re-

[LAZER - EDUCAÇÃO] 127


126 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
(1980), tal compreensão pode ser considerada como uma concepção burguesa e
setores populares. Travestidos de "serviço social", ou seja, prestando às famílias po-
subjetivista do lazer, visto que esse é a vivência de um estado subjetivo de liberdade
bres a assistência mínima necessária, promoviam valores e saberes a respeito da or-
e de expressão da personalidade. E a preparação subjetiva para responder de forma
dem, da disciplina, da aquisição de hábitos saudáveis, da ocupação útil e adequada
ativa e bem-sucedida aos riscos da vida; é, justamente, o que sustenta a relação entre
do tempo livre, e forjavam corpos vigorosos, porém dóceis, e comportamentos sub-
missos nas suas relações sociais de classe e na sua condição de força de trabalho no lazer e educação.
mercado capitalista. Deste modo, o que se observa é que a recreação, como o conteú- O inglês Parker (1978) é outro que pode ser inserido nessa segunda corrente.
do do lazer e instrumento de educação, contribuiu para divulgar um novo modelo de Com alguma influência no Brasil, defende que a experiência do lazer é atravessada
organização do tempo livre e de como ele deveria ser aproveitado, bem como de uma por valores, significados individuais e sentidos sociais, e que a educação se dá de três
nova concepção de trabalho, consoante com aquela requerida pelas relações capita- maneiras: a educação para o lazer, a educação como lazer e a educação permanente.
listas de produção. Cooperou também para a redefinição dos papéis sociais desem- Para ele, são objetivos tanto do lazer como da educação desenvolver a personalidade
penhados pelo homem, pela mulher e pela classe trabalhadora, não só reforçando a e o enriquecimento pessoal, promovendo a formação de hábitos, atitudes e estilos de
desigualdade e as relações de poder e dominação já existentes, mas produzindo no- vida mais "flexíveis e adaptados" e uma postura ativa diante da vida, do lazer e do
vos mecanismos de controle e subserviência a elas articulados. Dessa análise, é pos- trabalho. Critica as experiências de lazer organizadas e reivindica que as atividades
sível dizer que, em tal perspectiva, há uma visão instrumental e de controle social desenvolvidas nesse tempo de liberdade individual tenham um sentido em si mes-
sobre a relação entre lazer e educação, vista até os dias de hoje. mas. Por outro lado, acredita que o lazer cumpre uma função na vida individual e
social, visto que ele é o "equilíbrio desejável entre a liberdade do indivíduo e o bem
A segunda perspectiva de análise da relação entre lazer e educação, essa bem
da sociedade" (p. 183). Conforme Munné (1980), Parker é um dos autores que se apro-
mais complexa, pois são variados os tempos históricos em que foram produzidas e
ximam de uma visão burguesa de lazer e, embora ele seja considerado um teórico,
diferentes as propostas que podem ser consideradas, refere-se ao entendimento de
possui características marcadamente liberais e individualistas, tendo em vista que
que o lazer é um espaço de educação constante, uma vez que permite aos indivíduos
considera o lazer como um assunto privado, por meio do qual se exprime a liberdade
o descanso e a recuperação das suas forças físicas e mentais para o retorno ao traba-
lho, alivia as tensões, mantém-nos ocupados em atividades que lhes dão prazer e, individual, única propriedade humana inquestionável.
ainda, promove seu desenvolvimento pessoal e social, condição indispensável para Mas são as ideias do francês Dumazedier (1976) que mais penetram os estu-
que o homem se mantenha em equilíbrio e, assim, possa dispor de toda sua energia e dos sobre o lazer no Brasil, representando bem essa segunda corrente. Embora não
inteligência para a resolução dos problemas e a criação de respostas ajustadas às se refira diretamente à relação entre lazer e educação, vê o lazer como um elemento
mudanças rápidas e emergentes da vida moderna, dando sua contribuição para o central na cultura vivida por milhões de trabalhadores e como mediador importante
bem-estar geral da nação. na democratização da cultura com as massas. Influenciado pelos movimentos de
educação popular na França, defende a elevação das massas mediante a "tomada de
Gaelzer (1979) é uma personalidade importante dessa segunda corrente. Com
ênfase na dimensão subjetiva da experiência do lazer e fazendo uma distinção entre decisões" quanto aos valores transmitidos pelos meios de comunicação e difusão
recreação (atividade) e lazer (bem-estar consequente), define este último como "a cultural, assim como a manifestação de atitudes ativas diante das práticas rotineiras
e imagens estereotipadas, o que "exige sempre um progresso pessoal livre pela busca,
harmonia individual entre a atitude, o desenvolvimento integral e a disponibilidade
na utilização do tempo livre, de um equilíbrio, na medida do possível pessoal, entre o
de si mesmo. É um estado mental ativo associado a uma situação de liberdade, de
repouso, a distração e o desenvolvimento contínuo e harmonioso da personalidade"
habilidade e de prazer" (p. 54). A atitude de cada um torna-se o elemento básico in-
(p. 258). Dessa forma, indica que o lazer é ação cultural e, como tal, mecanismo de
dispensável, não mais a atividade (recreação), e, como "o homem da sociedade atual
educação: "A ação cultural poderá ser vista com vistas à ação económica e social, como
recebe constantemente uma carga poderosa de mensagens através dos meios de co-
municação, [então] faz-se necessário estar preparado e revestido de uma atitude crí- o modo pelo qual agentes públicos e particulares intervêm sobre interesses, informa-
tica construtiva e sadia para apreciar, selecionar, rejeitar ou aceitar as solicitações e ções, conhecimentos, normas e valores da população de um grupo ou da sociedade
global, em função de seus critérios de desenvolvimento cultural" (p. 280). Recorrendo
os estímulos externos de maneira cuidadosa antes de serem apreendidos, antes de
às análises de Munné (1980) mais uma vez, é possível dizer que Dumazedier também
incorpora-los à personalidade" (p. 53). Segundo a classificação elaborada por Munné

[LAZER - EDUCAÇÃO] 129


128 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
se encontra entre os autores da concepção burguesa de lazer, mais especialmente entre interesses cada uma delas corresponde. Para Requixa (1973), a "essência" da ação
os empíricos, embora tenha algumas aproximações com o humanismo marxista. De comunitária é a educação social segundo a perspectiva da educação permanente.
qualquer forma, não consegue alçar suas críticas a uma reflexão mais radical e profun- Originalmente realizada pelo Serviço Social do Comércio (SESC), seu objetivo é, por
da dos determinantes histórico sociais que condicionam a apropriação do lazer pelas meio de atividades de lazer, capacitar o ser humano para "estabelecer, com seu meio
massas e convertem a cultura popular em indústria de consumo, o que acaba reforçan- ambiente, um relacionamento ideal, a fim de que haja desenvolvimento pessoal e
do, nesse autor, uma postura ingénua e conservadora, em que o lazer e a educação cum- social a um só tempo, consciência de responsabilidade em face do progresso, discer-
prem funções para a manutenção e o funcionamento da ordem estabelecida. nimento de situações e ajustamento às realidades cambiantes do mundo contempo-
râneo" (p. 3). Segundo o mesmo autor, a ação comunitária é "um trabalho sócio edu-
Assimilando profundamente essas referências, o sociólogo brasileiro Requixa
cativo que consiste numa intervenção deliberada em determinada comunidade,
(1980) é outro que exprime seus conceitos acerca da relação entre lazer e educação.
através de atividades programadas em conjunto com pessoas e instituições locais,
Logo de início, ao esboçar suas inquietação quanto ao tema, afirma que o lazer pode
objetivando despertar e ampliar sua consciência para os problemas da comunidade,
beneficiar os indivíduos se vislumbradas suas possibilidades de educação. Trata-se,
sensibilizá-la para a mobilização e coordenação de lideranças e predispô-las para a
então, de aproveitar as ocupações do lazer para o incremento de valores que propiciem
ação que vise o encaminhamento de soluções daqueles problemas, ou a tentativa de
a recuperação, o reequilíbrio ou readaptação, bem como o desenvolvimento pessoal
realização de aspirações relacionadas com a comunidade como um todo" (p. 9). Nes-
e social. Nessa direção, o lazer teria um sentido para além dele, e, na sua relação com
sa perspectiva, a ação comunitária é um processo educativo que, ao conjugar as for-
a educação, acaba cumprindo finalidades bastante abrangentes, como o sucesso in-
ças dos agentes interventores e da comunidade em geral, parece interessante na ten-
dividual e o bem-estar social, o estímulo à participação ativa no atendimento às ne-
cessidades e aspirações de todas as ordens e a disposição para colaborar com a co- tativa de superar as relações assistencialistas, instrumentais e paternalistas que
munidade. Dessa forma, o lazer é um elemento de motivação capaz de instigar os vinham predominando na prática educativa do lazer. Por outro lado, quanto aos seus
indivíduos à procura de mais conhecimentos ou qualificação, sendo sua responsabi- interesses, fica claro que a preocupação com o ajustamento da comunidade à ordem
lidade o incremento da própria força de trabalho e da sua capacidade de se realizar social e seu empenho para torná-la socialmente eficaz são traços que reforçam esta
no trabalho, no lazer e na vida. vertente da ação comunitária dentro da lógica funcionalista.

Pensando o conjunto dessas referências e autores, parece haver uma crença no São esses aspectos, dentre outros, que diferenciam a postura de Marcellino
enriquecimento da personalidade humana por meio do lazer, como possibilidade de (1990). Em primeiro lugar, sua compreensão do duplo aspecto educativo do lazer
liberação das padronizações e automatismos e de adaptação a quaisquer circunstân- como veículo e objeto de educação. Depois, a consideração das suas potencialidades
cias adversas. Assim, o lazer tem, nessa concepção, um conteúdo psicológico (a com- para o desenvolvimento pessoal e social e para satisfazer necessidades também indi-
pensação e estabilização individual), e um conteúdo social (a readaptação e manu- viduais e sociais. E, sobretudo, na convicção de que "só tem sentido falar em aspectos
tenção da ordem). Além disso, por meio do lazer, espera-se uma progressiva educativos do lazer, se esse for considerado [...] como um dos possíveis canais de
transferência das responsabilidades referentes à educação, ao sucesso profissional, atuação no plano cultural, tendo em vista contribuir para uma nova ordem moral e
ao descanso e à autopromoção, sempre de forma equilibrada e em consonância com intelectual, favorecedora de mudanças no plano social" (p. 63-64). Concebido como
a ordem estabelecida, aos indivíduos e coletividades, o que indica, portanto, que esta um dos campos possíveis de contra-hegemonia, Marcellino reveste o lazer e sua rela-
corrente apóia-se numa visão burguesa e funcionalista da relação entre lazer e edu- ção com a educação de um conteúdo crítico, apostando no engajamento da socieda-
cação, colaborando para o funcionamento harmonioso da sociedade, do poder cons- de em direção a mudanças culturais, capazes de fazer com que a experiência do lazer
tituído e das relações de hegemonia. se torne mais rica e promotora do ser humano em si e, conseqúentemente, que as
pessoas tenham mais prazer de viver e a experiência do lazer possa se tornar mais
A estratégia da ação comunitária desenvolvida por Requixa (1973), outra pro-
posta importante no debate sobre lazer e educação, caberia bem na visão funciona- rica e promotora do ser humano em si mesmo. Opondo às abordagens funcionalistas
lista acima mencionada, não fossem as diferenças empregadas por Marcellino, em a sua compreensão do lazer-educação, o autor orienta a ação comunitária para os
meados da década de 1980, a essa metodologia. Cabe aqui, então, localizar as duas interesses dos trabalhadores, desenvolvendo toda uma experiência nesse campo com
compreensões acerca da ação educativa do lazer neste âmbito e discriminar a quais as políticas de esquerda e com os governos democrático-populares. Nesse aspecto,

130 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [LAZER - EDUCAÇÃO] 131


embora a estratégia da ação comunitária mantenha sua estrutura organizativa origi- funcional diante das exigências constantes de reestruturação do mundo do trabalho
nal, ela deixa de ser funcionalista, uma vez que a opção política aliada ao compro- e da produção capitalista. É essa a preocupação que está presente na tentativa de
misso com os interesses e finalidades que devem cumprir o lazer em nossa realidade apanhar as tendências ou principais visões de mundo que embalam o debate sobre o
atual para a construção de uma sociedade livre e democrática posicione o autor de lazer e educação em nosso campo, visando contribuir com a discussão sobre os mei-
acordo como uma visão crítico-humanista da relação entre lazer e educação. os e fins do lazer-educação e de seu lugar na construção de uma nova sociedade.
Por último, cabem algumas considerações a respeito da proposta de Masca-
Luciana Marcassa
renhas (2003) para uma intervenção socioeducativa no lazer sistematizada con-
temporaneamente. Embasado na proposta de educação popular de Paulo Freire, Bibliografia
entende o lazer-educação como "posição política e político-pedagógica de com- COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
promisso com os grupos ou movimentos sociais mediante sua resistência e luta DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. São Paulo: Perspectiva, 1976.
cotidiana por sobrevivência, por emancipação e pela conquista de um mundo mais
GAELZER.Lenea. Lazer: bênção ou maldição? Porto Alegre: Sulina: URGS, 1979.
justo e melhor para se viver" (p. 22). Nessa direção, ressalta que a intervenção pe-
MASCARENHAS, Fernando. O lazer como prática da liberdade. Goiânia: Editora da UFG, 2003.
dagógica do lazer deve ultrapassar os limites da ação cultural, devendo se articu-
MARCASSA, Luciana. As faces do lazer: categorias necessárias à sua compreensão. Anais do XIII Con-
lar à realidade socioeconômica e, tratando-se de uma proposta que visa à supera-
gresso Brasileiro de Ciências do Esporte, Caxambu, 2003.
ção das atuais condições materiais de existência, especialmente se enfocarmos a
MARCELLINO, Nelson Carvalho. Lazer e educação. Campinas: Papirus, 1990.
realidade dos grupos populares e movimentos sociais específicos, é fundamental
MIRANDA, Nicanor. Esporte, recreação, educação. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo,
que o primeiro dado a ser conscientizado seja a situação histórica de classe. Uma Secretaria de Educação e Cultura, Divisão do Arquivo Histórico, 1962.
vez articulados a prática pedagógica e os conteúdos do lazer, espera-se que os su-
MIRANDA, Nicanor. Organização das atividades de recreação. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.
jeitos envolvidos na ação reconheçam-na como espaço de resistência e organiza-
MUNNÉ, Frederic. Psicossociología dei tiempo libre: un enfoque crítico. México: Trillas, 1980.
ção social, tanto em relação às próprias possibilidades de ocupação e vivência do
PARKER, Stanley. A sociologia do lazer. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
lazer como em relação à construção das suas estratégias de reivindicação e exigên-
REQUIXA, Renato. Lazer e ação comunitária. São Paulo: SESC, 1973.
cia por mudanças, não só no que se refere ao acesso e fruição dos bens culturais,
. Sugestão de diretrizes para uma política nacional de lazer. São Paulo: SESC, 1980.
mas também quanto à sua participação efetiva na produção da cultura, nas deci-
sões políticas e na condução da vida social. O lazer como prática da liberdade sig-
nifica, então, a possibilidade de, mediante uma experiência lúdica e educativa, re-
fletir sobre a realidade que o cerca e praticar a liberdade como um exercício de
LAZER - OCORRÊNCIA HISTÓRICA
cidadania e participação social. Dessas definições, é possível vincular o autor a
uma visão crítico-libertadora da relação entre lazer e educação.
A questão da emergência do lazer em nosso contexto se coloca em terreno de dúvi-
Para concluir, parece necessário dizer que se o lazer é concebido como um tem- das e controvérsias que dividem os estudiosos do assunto. Nesse âmbito, é pertinente
po-espaço de organização da cultura, como uma instituição que envolve um conjun- retomar uma crucial indagação: o lazer sempre existiu ou representa um fenómeno
to de práticas cujas normas e características internas lhe conferem um estatuto pró- característico das modernas sociedades urbano-industriais?
prio de funcionamento e que agrega a realização de diferentes atividades lúdicas, A busca de respostas para essa polémica questão demanda, inicialmente, co-
diferentes formas de divertimento e descontração, ou, ainda, variadas experiências nhecer alguns argumentos elaborados pelas duas abordagens que discutem o assun-
de contato e recriação do universo cultural, ele se configura, por sua vez, num campo to, seguidas das objeções dirigidas à tendência contrária. Embora para muitos estu-
de disputas, de negação e de afirmação de interesses e necessidades, promovendo va- diosos seja enfadonho retomar essa velha polémica, ela se revela pertinente e atua
lores, saberes e significados articulados às possibilidades e às condições das diferentes para aqueles que ainda não têm conhecimentos e opiniões definitivas sobre ° e _ •
classes sociais (MARCASSA, 2003). Se perdermos essa dimensão de vista, nossa compre- Ao invés de apontar uma resposta categórica, este texto procura estimular ré
ensão da relação entre lazer e educação ficará submetida ao enfoque instrumental ou sobre a emergência do lazer em nosso contexto.

132 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] HISTÓRICAjtlíP


[LAZER - OCORRÊNCIA
Em geral, os adeptos da primeira corrente situam a origem do lazer nas fases Considerando a importância dos divertimentos para a compreensão do pro-
antigas da nossa história. Esta é a interpretação enunciada, dentre outros autores, cesso histórico do lazer, podem ser citados os estudos de Ethel Medeiros (1975, p. l),
por Sebastian De Grazia (1966). Para o autor, falar das origens do lazer significa re- para quem o lazer "corresponde a uma das necessidades básicas do ser humano",
portar-nos à vida social dos filósofos da antiga Grécia. O grego Skholéera um termo não sendo, portanto, característica da sociedade industrial. A autora deixa transpa-
que, no uso comum, denotava um tempo desocupado, um tempo para si mesmo que recer sua concepção de lazer como um tempo de folga decorrente da interrupção do
gerava prazer intrínseco. Para Aristóteles, o "lazer" era um estado filosófico no qual trabalho, no qual poderiam ser realizados divertimentos vários/Conforme seu pen-
cultivava-se a mente por meio da música e da contemplação. Esse estado seria alcan- samento, esses momentos de folga sempre existiram.
çado apenas por aqueles que conseguiam libertar-se da necessidade de estar ocupa- A Idade Média caracterizou-se por uma economia predominantemente agrí-
do (e de realizar o trabalho produtivo, que era visto como indigno). O ideal clássico cola e por uma sociedade fechada entre a nobreza que possuía terra e os camponeses
de "lazer" indicava, portanto, distinção social, liberdade, qualidade ética, relação com que viviam em estado servil. Foi um período marcado pelo recuo da noção de Estado,
as artes liberais e busca do conhecimento (DE GRAZIA, 1966). no qual prevaleceu um sistema de pensamento fundamentado na lei religiosa e defini-
Antes de prosseguir, é essencial chamar atenção para alguns aspectos impor- do pela Igreja, representada pelo clero (WERNECK, 2000). Nos inúmeros feriados existen-
tantes. Pelas observações efetuadas por De Grazia, é possível identificar certa confu- tes no período, os poderes hegemónicos procuravam controlar as festas e os diverti-
são entre ócio e lazer - termos que, na língua portuguesa, nem sempre são entendi- mentos, procurando conferir às práticas culturais o caráter de culto e de cerimónias
dos como sinónimos. Além disso, a palavra "lazer" não integra a língua espanhola e, oficiais sérias. As festas oficiais consagravam a desigualdade, a imutabilidade e a dura-
no caso, o vocábulo ócio é aquele cujos significados são mais próximos. Isso gera bilidade das hierarquias, das normas e dos tabus religiosos, políticos e morais.
complexos problemas de tradução que acabam interferindo sobremaneira em nossa Mesmo com a vigência desses preceitos, a cultura popular na Idade Média e no
compreensão sobre o processo de constituição histórica do lazer. Por esse motivo, Renascimento proporcionou outras visões deliberadamente não-oficiais que procu-
quando o termo espanhol ócio (sem acento e entre aspas) for empregado neste texto, ravam subverter a ordem social estabelecida por meio de ritos e espetáculos cómi-
será utilizado com sentidos semelhantes à nossa palavra lazer. cos. Essas manifestações culturais ocupavam lugar de destaque na vida medieval e
Frederic Munné, embora discorde de Sebastian De Grazia em muitos pontos, contrastavam com as festividades oficiais. Os carnavais, por exemplo, levavam multi-
também é favorável à tendência de que a ocorrência do lazer antecede a Idade Mo- dões às praças e ruas durante vários dias, questionando a verdade dominante e o
derna. Para este psicólogo social, o ócio é um modo típico de nos comportarmos no regime vigente, como anuncia Bakhtin (1979).
tempo, que se estrutura em quatro áreas de atividade: l) o tempo psicobiológico (des-
Munné (1980) observa que, com o renascimento, os estratos superiores da so-
tinado a necessidades fisiológicas e psíquicas); 2) o tempo socioeconômico, funda-
ciedade poderiam se entregar ao dolcefar niente, ou seja, entregar-se ao desfrute de
mentalmente referido ao trabalho; 3) o tempo sociocultural, em que nos dedicamos
nada fazer. A vida cultural da classe ociosa se converteu, quase integralmente, em um
à vida em sociedade; e 4) o tempo de ócio, destinado a atividades de desfrute pessoal
jogo de sociedade no qual se valorizava o passar do tempo sem realizar nada de pro-
e coletivo (MUNNÉ; CODINA, 2002).
dutivo. Isso devia-se a um sentido de indignidade do trabalho e à demonstração da
O autor assinala que Roma introduziu a noção de otium como possibilidade
capacidade pecuniária que permite uma vida de ociosidade, reflexo de prestígio, ri-
de "descanso para o corpo" e "diversão para o espírito", condição necessária para re-
queza, poder e respeitabilidade social.
tomar os negócios: trabalho no comércio, exército, política, serviço público. Esse en-
Contudo, diante do valor ético e religioso do trabalho ressaltado pelas ideias
tendimento pode ser encontrado principalmente em Cícero, para quem o otium era
puritanas, na Modernidade, a conduta ociosa passou a representar um grave perigo
estratificado socialmente: estava associado, no caso das elites intelectuais, com a
pessoal e social. A nascente burguesia industrial adotou profundamente esse pensa-
meditação. Porém, no que se referia às pessoas comuns, significava descanso e diver-
timento proporcionados, sobretudo, pelos grandes espetáculos. Tratava-se do "pão e mento, valorizando a laboriosidade e combatendo os prazeres e distrações "nocivos"
circo" oferecido pelos imperadores e cônsules ao grande público, estratégia que tinha - aparentemente, nocivos às camadas pobres (como alcoolismo, algazarra,prostitui-
como finalidade despolitizar o povo, reduzido à condição de mero espectador. Com ção, jogos de azar). Mas, na realidade, muito mais prejudiciais ao processo produtivo
isso, Munné (1980) observa que no contexto romano o sentido que prevalece não é o capitalista em desenvolvimento, que demandou uma nova disciplina de trabalho -
de desocupação, mas de diversão. como enfatizado por Thompson (1991).

134 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [LAZER - OCORRÊNCIA HISTÓRICA] 135


Esse pensamento foi difundido na Europa Moderna, período em que ocorre- • O trabalho profissional destacou-se das outras atividades ao adquirir um li-
ram diversas transformações fundamentais para a compreensão do lazer. Como, em mite arbitrário, não mais sujeito à natureza. Como o trabalho possui uma organiza-
geral, efetuar discussões sobre o lazer na Modernidade é um ponto (em certa medi- ção específica, o tempo livre é nitidamente separado dele.
da) "pacífico" entre os partidários das duas correntes, é importante acrescentar ao Em síntese, o sociólogo francês defende o pressuposto de que o lazer foi gesta-
debate algumas informações. Os argumentos que se seguem são o ponto de partida do nas sociedades industriais avançadas - capitalistas ou socialistas. De acordo ele,
para conhecer os elementos constitutivos da segunda abordagem, baseada no pres- o lazer "corresponde a uma liberação periódica no fim do dia, da semana, do ano ou
suposto de que o surgimento do lazer está atrelado às transformações processadas da vida de trabalho" (p. 28). Tal compreensão pode ser datada, pois a chamada Revo-
pela Revolução Industrial. lução Industrial foi deflagrada na Grã-Bretanha no século XVIII, com a invenção da
máquina a vapor (1769), o que gerou aproximadamente no decurso do século XIX
A tese de que o lazer sempre existiu é refutada por vários pesquisadores, desta-
uma progressiva redução da jornada de trabalho.
cando-se Joffre Dumazedier (1979). Ao analisar as sociedades do período arcaico, o
Além de Dumazedier, outros autores consideram o lazer como um fenómeno
autor sublinha que trabalho e jogo estão associados às festas por meio das quais o
característico das modernas sociedades urbano-industriais.
homem participa do mundo dos ancestrais. Embora sejam diferentes, trabalho e jogo
Nelson Marcellino (1983) afirma que a gestação do fenómeno lazer como esfe-
possuem significações de mesma natureza na vida da comunidade: eles se mesclam,
ra própria e concreta ocorreu a partir da Revolução Industrial, em decorrência dos
e a oposição entre ambos é menor ou inexistente. Por esse motivo, o autor considera
avanços tecnológicos que acentuaram a divisão do trabalho. Dessa forma, para o au-
que o lazer (entendido como um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode
tor, o lazer é resultante da nova situação histórica em que o progresso tecnológico
ser entregar de livre vontade após livrar-se das obrigações profissionais, familiares e permitiu alcançar maior produtividade com menos tempo de trabalho. O lazer surge
sociais) é um conceito inadaptado ao período arcaico. como resposta às reivindicações sociais pela distribuição do tempo liberado do tra-
Segundo sua interpretação, o lazer tampouco existe nas sociedades pré-indus- balho, mesmo que fosse apenas para reposição de energias.
triais, pois o trabalho se inscreve nos ciclos naturais dos dias e das estações do ano. Victor Melo e Edmundo Alves Júnior (2003) também procuram refletir sobre
Seu ritmo é natural, sendo cortado por pausas, cantos, jogos e cerimónias - não há, esse aspecto. Para os autores, o lazer não nasceu na Grécia Antiga, não surgiu em
pois, um corte nítido entre trabalho e repouso, mas uma sucessão de domingos e Roma e também não apareceu na Idade Média. Foi no quartel final do século XVIII,
festejos que dependem do culto. com a implantação do modelo de produção fabril, que ocorreu uma artificialização
dos tempos sociais. Segundo os autores, foi no seio desse processo, típico da moder-
Dumazedier não acredita que a ociosidade dos filósofos da antiga Grécia ou
nidade, que o lazer surgiu. Os sentidos e significados desse fenómeno se estabelece-
dos fidalgos do século XVI possa ser chamada de lazer. Esses privilegiados de sorte,
ram, assim, no âmbito das tensões entre os detentores dos meios de produção e as
cultos ou não, sustentavam sua ociosidade com o trabalho de escravos, camponeses
camadas populares que vendiam a força de trabalho.
ou valetes. Portanto, essa ociosidade não se define em relação ao trabalho, não é nem
Essa abordagem não está isenta de críticas, e algumas delas já foram sinalizadas
um complemento nem uma compensação: é um substituto do trabalho. "O lazer não
anteriormente. Uma das finalidades da obra Lazer: necessidade ou novidade? de au-
é a ociosidade, não suprime o trabalho; o pressupõe" (p. 28).
toria de Medeiros (1975), é justamente oferecer subsídios para refutar a tese oponente.
O sociólogo explica que, obviamente, o tempo fora do trabalho é tão antigo Munné (1980), ponderando sobre os argumentos de Dumazedier, considera forçosa e
quanto o próprio trabalho. Entretanto, o lazer possui traços específicos, característi- falaz a conclusão de que o lazer seja um produto da civilização moderna. Pontua, ainda,
cos da civilização nascida da revolução industrial. Duas condições foram imprescin- que o sociólogo francês reduz, por definição, qualquer possível manifestação histórica
díveis para que o lazer se tornasse possível para a maioria dos trabalhadores, coexis- do lazer (ócio) à mera desocupação ou ociosidade, o que não procede.
tindo apenas nas sociedades industriais e pós-industriais: Assim, a acirrada polémica permanece... o que instiga a retomada de algu-
• Nas sociedades industriais, trabalho e lazer escapam dos ritos coletivos. Mes- mas reflexões.
mo que sejam exercidos determinismos sociais sobre as preferências das pessoas, o Obviamente, é questionável denominar de "lazer" a vida social dos gregos
lazer depende da livre escolha de cada um. da Antiguidade. Mas, indubitavelmente, conhecer e considerar as peculiaridades

136 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [LAZER - OCORRÊNCIA HISTÓRICA] 137


daquela e de outras realidades que compõem a nossa história pode fornecer expres- sempre uma tarefa restrita, mutilada e hermética. Nessa direção, ressalto um insti-
sivas contribuições para apreendermos o processo de constituição do lazer. Afinal, é gante exercício: percorrer obras de época em busca de elementos que auxiliem a com-
inegável que a vivência das manifestações e tradições culturais da humanidade po- preensão do processo de constituição histórica do lazer. Os dicionários, por exemplo,
mesmo sendo pejorativamente considerados "senso comum", reúnem os termos em-
dem auxiliar a compreensão dos significados comumente atribuídos ao lazer em nosso
pregados no vocabulário de uma determinada língua, bem como os significados a
contexto. Embora algumas ideias tenham que ser repensadas e revistas, este é um
eles atribuídos em cada contexto histórico, pois um determinado entendimento pode
lado da questão que ressalta o valor dos estudos daqueles que acreditam não ser o
transformar-se e evoluir-se ao longo dos tempos.
lazer um fenómeno recente.
Em meados do século XVIII, a famosa Enciclopédia (1751), idealizada pela
Por outro lado, também é notório que a era moderna foi fundamental para que
burguesia "iluminada" pontuou o francês loisir como um tempo vago deixado pelas
o lazer se estabelecesse como um fenómeno autónomo, normativo e organizado, con-
nossas obrigações, do qual poderíamos dispor de maneira "agradável, honesta e vir-
figurando-se da forma como o conhecemos hoje. Esse período também foi palco
tuosa", caso nossa educação tivesse sido "adequada". A obra salienta que as ativida-
para o estabelecimento de importantes reivindicações operárias, o que ressalta a va-
des livres (loisirs) eram a parte da vida que mais nos honrariam e da qual nos recor-
lor desse movimento histórico e social para o lazer (WERNECK, 2003).
daríamos com o maior consolo ao chegar o momento de abandonar a vida. Dessa
Tais considerações reconhecem a importância da obra dos autores que se de- forma, a Enciclopédia salientava que as boas ações que compunham o lazer "apro-
bruçam sobre o lazer adotando a Modernidade como referência para suas análises. priado" eram realizadas por gosto e com sensibilidade seriam determinantes para o
Valorizar os conhecimentos produzidos por partidários de abordagens distintas "nosso próprio benefício" (MUNNÉ, 1980).
não significa "ficar em cima do muro" ou propagar um suposto consenso entre as duas A publicação da Enciclopédia precede a invenção da máquina a vapor e, na
correntes de pensamento que divergem no que diz respeito à ocorrência histórica do obra, já identificamos a emissão de juízos de valor sobre o lazer. Embora a Revolução
lazer. Significa tomar esses saberes como ponto de partida para novas reflexões. Industrial tenha sido um processo, ela ainda não estava em curso na França nesse
Alguns autores são contundentes ao afirmar que o lazer surge no século XVIII, período. Apesar de reconhecer o mérito da produção de Dumazedier e de outros auto-
ou no XIX. Será? res que seguem o seu pensamento, as evidências indicam ser um equívoco afirmar que
Os argumentos elaborados por Dumazedier (1979) - notadamente no que se o lazer é um fenómeno observável apenas nas civilizações industriais avançadas.
refere à consideração do lazer como fenómeno característico da civilização nascida Na Coleção de Obras Raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o termo
da Revolução Industrial - refletem seu empenho em conferir à chamada "Sociologia lazer foi identificado em dois dicionários de língua portuguesa: o primeiro data do
do lazer" o estatuto de ciência. Para ser reconhecida como um ramo especializado da século XIX; o outro, do século XVIII. Bluteau (1789) deriva o termo lazer do inglês
Sociologia, os pesquisadores do lazer precisavam fazer um recorte do objeto estuda- leisure com os significados de vagar, comodidade. D'Almeida e Lacerda (1859), por
do, elaborar hipóteses e verificá-las, utilizar estratégias metodológicas confiáveis, for- sua vez, apresentam dois termos: "lazer" e "lezêr". Ambos são derivados do francês
mular quadros de referência e apontar categorias de análise, dentre outros procedi- loisir e apresentam os seus significados "antigos": enquanto o primeiro também é
mentos de cunho positivista. Esses encaminhamentos poderiam distinguir a entendido como vagar, comodidade, espaço, o segundo é considerado descanso, fol-
"Sociologia do lazer" dos outros ramos já estabelecidos: Sociologia do trabalho, So- ga, vagar - além de remeter o leitor ao verbete lazer. De acordo com os autores portu-
ciologia da família, Sociologia da religião, etc. gueses, ambos os verbetes se tratam, portanto, de um mesmo objeto.
Como as manifestações culturais vivenciadas antes da Revolução Industrial se No século XIX, vagar queria dizer "ficar livre, desocupado", sendo o termo oposto
mesclavam com as outras dimensões da cultura, considerar a realidade vivida nessa à pressa e tomado como sinónimo de ócio, de tempo desocupado, de "falta de diligen-
época inviabilizaria a legitimação da "Sociologia empírica do lazer". Reconhecer que o cia" (D'ALMEIDA; LACERDA, 1859, p. 374). A mesma obra apresenta o significado de fol-
arcabouço teórico formulado por Dumazedier tenha sido coerente e importante não gar como alegrar, dar folga, divertir-se com folganças, alegrar-se, regozijar-se, diver-
significa que tenhamos que concordar, integralmente, com as ideias por ele defendidas. timento, função de prazer e recreio.

É demasiado arriscado definir, com exatidão, o momento histórico em que o Todas as palavras acima, embora denotem sentidos imprecisos, guardam re-
lazer se configura na sociedade ocidental. A busca pela compreensão do passado é lação com o lazer nos contextos em questão. Até agora, nenhuma novidade além do

[LAZER - OCORRÊNCIA HISTÓRICA] 139


138 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]
Bibliografia
que já foi discutido, principalmente porque o lazer continua sendo referenciado nos
séculos XVIII e XIX. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de Fran-
çois Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UNB, 1999.
Segundo Machado (1969), a forma arcaica do vocábulo lazer era lezer, palavra
BLUTEAU, Rafael. Diccionario da língua portugueza. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira,
que remonta ao século XIII com o significado de preguiça, pouca vontade de traba-
1789. (Tomo segundo)
lhar. Tal informação sobre o lazer nos reporta ao contexto medieval. Mas como o
D'ALMEIDA, José Maria; LACERDA, Araújo C. Diccionario da língua portugueza. Lisboa: Francisco
autor não apresenta os elementos que o permitiram fazer esta afirmação, ainda deixa
Arthur da Silva, 1859.
dúvidas com relação à procedência dessa localização histórica.
DE GRAZIA, Sebastian. Tiempo, trabajo y ócio. Madrid: Editorial Tecnos, 1966.
Entretanto, além de Houaiss e Villar (2001) confirmarem a datação do vocábulo DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia empírica do lazer. São Paulo: Perspectiva, 1979.
lezer (século XIII), assinalam 1619 como o ano em que a palavra lazer é registrada em HOUAISS, António; VILLAR, Mauro S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
documentos medievais da língua portuguesa. Os autores esclarecem que estas data- Objetiva,2001.
ções foram obtidas mediante consulta ao fichário completo do índice do Vocabulário MACHADO, José f .Lazer. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Lisboa: Editorial Confluên-
de Português Medieval (IVPM), que integra o acervo do Setor de Filologia da Casa cia, 1969. v. II.
de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Segundo informações fornecidas pelos pesquisa- MARCELLINO, Nelson C. Lazer e humanização. Campinas: Papirus, 1983.
dores, esse fichário abriga mais de 170 mil fichas, contendo a transcrição de passagens MEDEIROS, Ethel B. Lazer: Necessidade ou novidade?Rio de Janeiro: Sesc, 1975.
documentais extraídas de mais de uma centena de textos medievais. MELO, Victor A., ALVES JÚNIOR, Edmundo D. Introdução ao lazer. São Paulo: Manole, 2003.
De acordo com os autores, o lazer representa: a) o tempo que sobra do horário de MUNNÉ, Frederic. Psicossociología dei tiempo libre: un enfoque crítico. México: Trillas, 1980.
trabalho e/ou do cumprimento de obrigações, aproveitável para o exercício de ativida- MUNNÉ, Frederic; CODINA, Núria. Ócio y tiempo libre: consideraciones desde uma perspectiva psico-
des prazerosas; b) atividade que se pratica neste tempo; c) cessação de uma atividade, social. Licere. Belo Horizonte, v. 5, n. l. p. 59-72, set. 2002.

descanso, repouso. Os sinónimos e variantes do lazer são: folga e passatempo. THOMPSON, Edward P. Tempo, disciplina do trabalho e o capitalismo industrial. In: SILVA, Tomaz
Tadeu (Org.). Trabalho, educação e prática social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
Obviamente, os significados de lazer apresentados Houaiss e Villar são mais
WERNECK, Christianne Luce Gomes. Lazer, trabalho e educação: relações históricas, questões
precisos e elaborados do que os sentidos encontrados nos dicionários dos séculos contemporâneas. Belo Horizonte: Editora UFMG/CELAR, 2000.
XVIII e XIX, uma vez que guardam relação com o nosso contexto atual, no qual a WERNECK, Christianne Luce Gomes. Recreação e lazer: apontamentos históricos sobre os saberes
palavra lazer já integra o vocabulário comum em muitas localidades. Todavia, os construídos e possibilidades de encaminhamento no contexto da educação física. In: WERNECK,
autores têm o mérito de acrescentar mais uma valiosa informação ao debate: o Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder F. Lazer, recreação e educação física. Belo Horizonte:
registro da palavra lazer com esta grafia em um documento datado de 1619 - ou Autêntica, 2003.
seja, do início do século XVII, que pode ser visto como um período que precede as
civilizações industriais europeias, especialmente as "avançadas". Ademais, se "le-
zer" era a forma arcaica do vocábulo lazer, quer dizer que no século XIII já vinham
sendo anunciados alguns significados que são importantíssimos para o objeto de
LÚDICO
nossas reflexões.
Atualmente, o lúdico é uma palavra empregada no vocabulário corrente da língua
Concluindo, a discussão sobre o assunto não se esgota com essas ponderações portuguesa, mas o mesmo encaminhamento não é verificado em outras línguas que
iniciais, que sublinham a necessidade de entender o lazer em sua complexidade his- desconhecem este termo, tampouco os seus significados.
tórica, social, política, cultural e semântica, explicitando suas condições de realiza- Apesar de ser um vocábulo frequentemente utilizado em nossa língua, a com-
ção em nosso meio. Fica, assim, o convite para o desenvolvimento de outras reflexões preensão dos seus significados muitas vezes constitui um ponto obscuro. Como exa-
e pesquisas sobre a ocorrência histórica do lazer. mina Valter Bracht (2003), o lúdico é um termo amplamente utilizado nos estudos
Christianne Luce Gomes sobre o lazer no Brasil. Chama a atenção do autor não apenas a recorrência da

140 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [LÚDICO] 141


expressão "lúdico" nos estudos sobre o lazer, como também a ausência de preocupa- sujeitos envolvidos) e se realiza em limites temporais e espaciais próprios. Porém, não
ções em precisar o significado com que se usa essa palavra. avalizo o pensamento de que o lúdico seja gratuito (ou desinteressado) e exterior à vida
Diversos estudiosos se debruçam em dicionários, enciclopédias e obras es- real, propiciando a evasão. Embora ciente de que o lúdico pode favorecer a "evasão da
pecializadas em busca de definições para o lúdico - procedimento interessante, mas, realidade", considero esse fato lamentável porque mascara injustiças sociais e estimula
conforme lembra Nelson Marcellino (1990), pouco esclarecedor. O autor atestou a a passividade. Neste ponto, aproximo-me de Umberto Eco, que sublinhou a importân-
imprecisão que ronda o significado comum das palavras que designam o lúdico, bem cia de considerar as ideologias dominantes na realidade concreta.
como o seu caráter abrangente. Umberto Eco, analisando as considerações de Huizinga, esclarece que esse au-
Nos dicionários da língua portuguesa são apresentados os significados comu- tor não contextualizou o jogo social, histórica e culturalmente. Com isso, pontua que
mente atribuídos ao lúdico, qualificado como um adjetivo"que tem o caráter de jo- Huizinga descreveu o como, mas sem buscar os porquês. Eco argumenta, ainda, que
gos, brinquedos e divertimentos", os quais constituem "a atividade lúdica das crian- o jogo sofre pressões do contexto material na forma de prémios, títulos e status. Se
ças" (FERREIRA, 1986, p. 1.051). tomarmos a realidade como referência, veremos que o jogo não é "desinteressado"
como supôs Huizinga. Esse questionamento compromete a característica de gratui-
Essa primeira constatação sobre o lúdico pauta-se no senso comum e estimula
dade do jogo, mas não o lúdico.
discussões. Em primeiro lugar, porque restringe o lúdico a uma única fase da vida -
a infância. Assim, reforça a crença de que pessoas de outras faixas etárias, preocupa- Bracht (2003, p. 160) averiguou que na área dos estudos do lazer é "quase uma
das com as coisas "sérias" da vida, não podem se entregar às chamadas "atividades unanimidade atribuir ao lúdico (práticas lúdicas, universo lúdico, vivência lúdica)
lúdicas", nas quais predomina um suposto caráter inútil-improdutivo. Em segundo características eminentemente positivas, como: interessantes, agradáveis, prazero-
lugar, porque o vocábulo lúdico refere-se apenas aos jogos, aos brinquedos e aos di- sas, criativas, autónomas, voluntárias e livres". O autor pondera: por que o termo
vertimentos das crianças, quando existe uma infinidade de manifestações culturais lúdico "recebe, agora, esta conotação positiva?"
construídas socialmente pela humanidade. As manifestações constituem patrimó- A conotação positiva impera nos trabalhos que consideram o lúdico como um
nio cultural e refletem os valores, regras, tradições e costumes de determinado grupo fenómeno que provoca nos sujeitos um estado de agradável sensação. Nesses termos,
social em diferentes contextos e épocas. a essência da ludicidade poderia ser traduzida como prazer, júbilo, regozijo e alegria.
Considerando a produção académica sobre o tema, a maioria dos autores que Embora essa interpretação seja muito difundida em nosso meio, sobre ela recaem
discute o lúdico utiliza como referência a clássica obra Homo ludens, escrita em algumas ressalvas. Isso ocorre justamente porque, frequentemente, são emitidos jul-
1938 pelo filósofo Johan Huizinga. Segundo este autor, o lúdico é um fenómeno mais gamentos idealizados sobre o lúdico.
antigo que a cultura e se concretiza no jogo. Nos dizeres de Silvino Santin (1994, p. 29),"a ludicidade é fantasia, imaginação
Nas diversas línguas, existem sentidos variados para a palavra jogo, assim como e sonhos que se constróem como um labirinto de teias urdidas com materiais simbó-
o emprego de termos distintos para expressá-la. No entanto, ludus é uma palavra licos". Na visão do autor, o impulso lúdico que habita o imaginário humano contra-
que cobre todo o terreno do jogo na língua latina. De acordo com o autor, o elemen- põe-se à"coisificação" do humano, à racionalidade técnica, à razão científica e à lógi-
to lúdico da cultura se encontra em decadência desde o século XVIII. A partir des- ca racional do capitalismo.
sa época, o espírito lúdico (marcado pela espontaneidade e despreocupação) foi Como destaca Bracht (2003, p. 162), é problemática "a ideia de vitimizar o lúdi-
perdendo espaço para o espírito profissional. Isso pode ser exemplificado pelo es- co, identificando a razão como o seu algoz". Ao invés de simplesmente preservar o
porte moderno, cada vez mais distante do fair-play, isto é, "boa-fé expressa em lúdico no sentido de uma "pureza original", salientando as características desejáveis
termos lúdicos". Uma das conclusões a que o autor chegou funda-se na constata- JM
(como o prazer, a liberdade, a criatividade -e a autonomia) que o compõem, o autor
ção de que "a verdadeira civilização" não pode existir sem um certo elemento lúdi- alerta que o desafio consiste em potencializar o lúdico numa determinada direção. So-
co (HUIZINGA, 1993, p. 234). bre esse ponto, exemplifica a ação da indústria cultural, quando esta apela para o inte-
Concordo com Huizinga quando este ressalta que o lúdico caracteriza-se pela resse "natural" da criança pelo jogo. Os meios de comunicação de massa estruturam o
livre escolha, busca a satisfação, possui uma ordem específica (construída pelos universo das brincadeiras e dos jogos infantis por meio da oferta de determinados

142 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [LÚDICO] 143


A ludicidade é apontada por José Alfredo Debortoli (2002) como uma das
objetos, fantasias, da delimitação dos espaços e dos tempos, de maneira que a crian-
dimensões da linguagem humana, possibilidade de expressão do sujeito criador
ça não é protagonista, mas mero objeto de um jogo maior.
que se torna capaz de dar significado à sua existência, ressignificar e transformar
É fato que vários estudiosos brasileiros que pesquisam o lazer, mesmo não ten-
o mundo. Fundamentado em Solange Jobim e Souza, o autor assinala que a lingua-
do uma visão idealizada sobre o lúdico, atribuem-lhe uma conotação positiva. Mui-
gem vai além da fala: é expressão, é capacidade de tornar-se narrador. Dessa for-
tos autores conferem, ainda, um caráter subversivo e utópico ao lúdico.
ma, a ludicidade é uma possibilidade e uma capacidade de se brincar com a rea-
Para Nelson Marcellino (1990), o lúdico é um componente da cultura histori-
lidade, ressignificando o mundo.
camente situada e pode significar uma experiência revolucionária, urna vez que per-
Pelo exposto, são várias as interpretações sobre o lúdico. Mas, entre as aborda-
mite não só consumir cultura, mas também criá-la e recriá-la, vivenciando valores e
papéis externos a ela. gens possíveis, parece-me acertada a compreensão do lúdico como uma forma de ex-
pressão humana, ou seja, como linguagem, conforme sinalizou José Alfredo Debortoli.
Heloísa Bruhns (1993) afirma que é preciso redimensionar o lúdico para além da
diversão ingénua ou simples entretenimento. Isso se torna possível mediante a desco- Nesse sentido, para ampliar a compreensão de lúdico é necessário, futuramen-
berta da dimensão humana em sua interação com o meio e através da busca do signifi- te, aprofundar conhecimentos sobre linguagem, buscando fundamentos em autores
cado do lúdico na produção social, em suas raízes históricas e culturais. que se dedicaram ao assunto - tais como Mikhail Bakhtin, que a compreende como
O lúdico é considerado por Leila Pinto (1995, p. 20) como vivência privilegiada enunciação e atividade constitutiva.
do lazer que materializa experiência cultural, movida pelos desejos de quem joga e De pronto, afirmamos que o lúdico, sendo linguagem humana, pode manifes-
coroada pelo prazer. Para a autora, concretizar o lúdico é "renovar relações interpes- tar-se de diversas formas (oral, escrita, gestual, visual, artística, dentre outras) e ocor-
soais, experiências corporais, ambientes, temporalidades e energias; é reencontrar rer em todos os momentos da vida - no trabalho, no lazer, na escola, na família, na
consigo mesmo, com o que gosta e deseja [...]." política, na ciência, etc. Todavia, como visto, em nossa sociedade capitalista o lúdico é
Liberdade, gratuidade, criatividade, fantasia e mistério são ressaltados por equivocadamente relegado à infância e tomado como sinónimo de determinadas ma-
Maurício Roberto da Silva (2001, p. 18), corno valores ontológicos e éticos do lúdico. nifestações da nossa cultura (como festividades, jogos, brinquedos, danças e músicas,
No sistema de produção capitalista, o lúdico - que é visto como jogo, brincadeira e entre inúmeras outras). Mas as práticas culturais não são lúdicas em si. É a interação
criação contínua - é a sua própria negação, uma vez que se contrapõe à racionalida- do sujeito com a experiência vivida que possibilita o desabrochar da ludicidade.
de produtiva. Na pesquisa realizada com meninos e meninas que trabalham nos ca- Em virtude deste aspecto, o lúdico constitui novas formas de fruir a vida social,
naviais de Pernambuco, o autor pontua o caráter de subversão e de transgressão da marcadas pela exaltação dos sentidos e das emoções - mesclando "alegria e angús-
ordem desenvolvidos por meio de ações lúdicas. Essa transgressão "deve ser compre- tia, relaxamento e tensão, prazer e conflito, regozijo e frustração, satisfação e expec-
endida como um caminho cultural e possibilidade real de construção de níveis mais tativa, liberdade e concessão, entrega, renúncia e deleite. Pressupõe, dessa maneira, a
avançados de fazer política, história e cultura." valorização estética e a apropriação expressiva do processo vivido, e não apenas do
O autor reconhece que o lúdico não é apenas uma "entidade divina e metafísi- produto alcançado" (WERNECK, 2003, p. 37). Mesmo quando não se obtém o resultado
ca, um reino da fantasia, dotado apenas da força transgressora [...]" (p. 16). Além de almejado (por exemplo, torcer ou integrar um time que não sai vitorioso de uma
conter todos os valores citados, contém também uma relação dialética entre consen- partida), prevalece o pensamento de que a vivência valeu a pena, sendo mantido o
so e conflito, dor e prazer, alienação e emancipação.
desejo de repeti-la e conquistar novos desafios.
Vânia Noronha Alves (2003, p. 70), em sua pesquisa sobre o "corpo lúdico Ma- Nessa direção, entendo o lúdico como expressão humana de significados da/
xakali", entende "o lúdico como um valor presente na essência do ser humano que re-
na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro e com o contexto. Por
presenta, por meio do seu corpo, tanto as possibilidades quanto a diversidade da espé-
essa razão, o lúdico reflete as tradições, os valores, os costumes e as contradições
cie humana, ao mesmo tempo que lhe proporciona prazer e alegria". A autora considera
presentes em nossa sociedade. Assim, é construído culturalmente e cerceado por vá-
o lúdico como uma dimensão humana que se expressa na cultura. Homens, mulheres e
rios fatores: normas políticas e sociais, princípios morais, regras educacionais, con-
crianças interferem no meio e sofrem influências dele, o que permite a construção de
uma "teia de relações" em que sujeito e cultura são modificados. dições concretas de existência.

[LÚDICO] 145
144 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
Como expressão de significados que tem o brincar como referência, o lúdico re-
MARKETING
presenta uma oportunidade de (re)organizar a vivência e (re)elaborar valores, os quais
se comprometem com determinado projeto de sociedade. Pode contribuir, por um lado, Historicamente, antes de 1930 as estratégias empresariais eram definidas com base
com a alienação das pessoas: reforçando estereótipos, instigando discriminações, in- na produção. As principais características desse modelo eram: uma demanda supe-
citando a evasão da realidade, estimulando a passividade, o conformismo e o consu- rior à oferta, produção artesanal (poucas unidades), toda a produção era consumida
mismo; por outro, o lúdico pode colaborar com a emancipação dos sujeitos, por meio e os preceitos da Revolução Industrial acelerando a produção.
do diálogo, da reflexão crítica, da construção coletiva e da contestação e resistência à
Entre as décadas de 1930 e 1950, ocorreu uma alteração no cenário mercadoló-
ordem social injusta e excludente que impera em nossa realidade.
gico. Foi um período conhecido como Era de Vendas. Nessa fase, houve: sinais de
Christianne Luce Gomes excesso de oferta, formação de estoques,produção industrial em série e técnicas agres-
sivas de venda. Essas características não ocorreriam por muito tempo. A precisão
industrial e a necessidade de agilizar os processos de distribuição e consumo eram
Bibliografia demandas latentes para as empresas.
ALVES, Vânia F.N. O corpo lúdico Maxakali; Segredos de um "programa de índio". Belo Horizon- Nesse contexto, surgiu a partir de 1950 a Era do Marketing. O início desse pro-
te: FUMEC-FACE,C/Arte,2003. cesso foi marcado por ações inovadoras, como: constatação dos desejos e necessida-
BRACHT, Valter. Educação física escolar e lazer. In: WERNECK, Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder de do consumidor, maior valorização do consumidor e relações permanentes entre
Ferreira (Org.).Lazer, recreação e educação física.Belo Horizonte: Autêntica Editora,2003.p. 147-172. clientes e empresas. O foco principal dessas estratégias era a conquista e a manuten-
BRUHNS, Heloísa Turini. O corpo parceiro e o corpo adversário. Campinas: Papirus, 1993. ção dos clientes.
DEBORTOLI, José Alfredo O. Linguagem: marca da presença humana no mundo. In: CARVALHO, Alysson et ai. No Brasil, o marketing chegou pouco mais tarde. Entre 1950 e 1960, a orienta-
(Org.). Desenvolvimento e aprendizagem. Belo Horizonte: Editora UFMG/PROEX-UFMG, 2002. p.73-76. ção ainda era dirigida para vendas. Em 1954 a teoria do marketing chegou ao ambi-
DEBORTOLI, José Alfredo O. As crianças e a brincadeira. In: CARVALHO, Alysson et ai. (Org.). Desen- ente académico, com a disciplina "Mercadologia e Ação no Mercado". A partir de
volvimento e aprendizagem. Belo Horizonte: Editora UFMG/PROEX-UFMG, 2002. p.77-88.
1960, o marketing consolidou-se também no Brasil, com a entrada das empresas mul-
ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
tinacionais e a instalação do Shopping Iguatemi. Até aproximadamente 1970, houve
PEREIRA, Aurélio B. de Holanda. Lúdico. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2.ed. rev/ um uso intensivo e indiscriminado da teoria do marketing no Brasil (MIGUEL, 2002).
aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
A partir desse período, o marketing ganha cada vez mais espaço nas organiza-
GOMES, Christianne Luce. Significados de recreação e lazer no Brasil: reflexões a partir da análi-
se de experiências institucionais (1926-1964). (Tese, Doutorado em Educação). Belo Horizonte: ções. Hoje, muitas são as empresas que possuem um departamento de marketing.
Faculdade de Educação/UFMG, 2003. Mas a utilização desse conhecimento não é privilégio desses departamentos. A gran-
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. de tendência é a utilização do marketing integrado, que visa atingir objetivos como
MARCELLINO, Nelson C. Pedagogia da animação. Campinas: Papirus, 1990. ganhar mercado, dar lucro, melhorar a imagem, além dos objetivos sociais. Como
PINTO, Leila M.S.M. Lazer: Vivência privilegiada do lúdico. In: BELO HORIZONTE. Prefeitura Munici- todos os departamentos da organização promovem o atendimento a esses objetivos,
pal. Secretaria Municipal de Esportes. O lúdico e as políticas públicas: realidade e perspectivas. não é possível deixá-los por conta exclusiva do de marketing.
Belo Horizonte: PBH/SMRS, 1995, p. 18-26. Mas, então, o que vem a ser, de fato, o marketing? No senso comum, a primeira
SANTIN, Silvino. Educação física: da alegria do lúdico à opressão do rendimento. Porto Alegre: ideia que se tem a respeito é "divulgação". Essa compreensão não está equivocada,
Edições EST/ESEF, 1994.
mas incompleta e bastante limitada. Conceitualmente, busco apoio em Philip Kotler,
SILVA, Maurício Roberto. A exploração do trabalho infantil e suas relações com o tempo de lazer/lúdi- um dos principais estudiosos e autores deste campo. Kotler define o marketing como
co: quando se descansa se carrega pedra! Revista Licere.Zelo Horizonte, n.l, v.4,2001,p.9-21. "uma orientação da administração que pretende proporcionar a satisfação do cliente e
WERNECK, Christianne Luce Gomes. Recreação e lazer: apontamentos históricos no contexto da educa- o bem estar do consumidor, em um prazo longo, como forma de satisfazer aos objetivos
ção física. In: WERNECK, Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Org.). Lazer, recreação
e responsabilidades da empresa". O autor cita um outro conceito, elaborado por Lãs
e educação física. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 15-56.
Casas, que afirma que o marketing e uma área de conhecimento que engloba as

146 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [LÚDICO] 147


atividades concernentes às relações de troca, sendo estas orientadas para a satisfa-
A mensuração de todas essas características dos produtos e serviços é realiza-
ção dos desejos e necessidades dos consumidores, visando alcançar determinados
da pela satisfação do cliente, que é a função do desempenho de um produto em rela-
objetivos de indivíduos e organizações (KOTLER, 1994).
ção à expectativa do consumidor. Dessa forma, entendemos por que o mesmo produ-
Assim sendo, precisamos esclarecer alguns dos termos utilizados pelos auto- to pode satisfazer alguém e não satisfazer a outras pessoas. Essas ações são finalizadas
res. Para isso, comecemos pelas necessidades. Necessidades humanas são estados de no mercado, que consiste no grupo de compradores reais e potenciais de determina-
carência percebida. Maslow classificou e hierarquizou em modelo de pirâmide as
do produto/serviço.
necessidades humanas: fisiológicas, segurança, afeto, status e estima e, por fim, auto-
Conhecer as necessidades, desejos e demandas dos clientes é o foco principal
realização (CHIAVENATO, 1987). Cada um desses níveis de necessidade pode ser satis-
das empresas que se destacam por sua orientação para o marketing. Mediante pes-
feito de maneiras diferentes. Então, surgem os desejos e as preferências, formados
quisas com consumidores, são analisadas suas queixas, dúvidas e também garantias e
com base na cultura, nas características individuais e nas peculiaridades regionais.
qualidade dos serviços e produtos oferecidos. Busca-se descobrir os desejos não reali-
A necessidade de alimentação, por exemplo, pode ser atendida por um prato de feijão
zados dos clientes, que são observados sobre os produtos que usam da empresa e dos
com arroz, ou massa, ou peixe cru, ou, ainda, hambúrguer com refrigerante. No caso
concorrentes, tentando identificar quais são as preferências dos consumidores. É fun-
do lazer, uma necessidade de relaxamento, por exemplo, pode ser satisfeita com a
damental para subsidiar o planejamento da estratégia de marketing compreender de-
leitura de um livro ou revista, por estar deitado em uma rede, frequentar uma sauna
talhadamente as necessidades, os desejos e as demandas do cliente.
ou salão de jogos, realizar um passeio ou viagem, dentre inúmeras outras possibili-
dades. Os desejos representam uma forma variada de atender a uma necessidade e A ação mercadológica não tem a capacidade de criar as necessidades, pois elas
aumentam conforme a sociedade vai evoluindo tecnologicamente e se industriali- constituem fatores internos, inerentes ao ser humano. A orientação externa apenas
zando. Assim, as empresas buscam criar e oferecer produtos e serviços que satisfa- estimula a preferência ou o desejo por determinado produto ou marca, de acordo
çam esses desejos. com as diferentes formas de satisfação por parte dos clientes/consumidores.
Para satisfazer as necessidades e os desejos do consumidor, o marketing apoia-
Os recursos para a satisfação das necessidades humanas são limitados, enquanto
os desejos do homem são quase ilimitados. Dessa forma, chamamos de demanda as se em quatro ferramentas básicas, também conhecidas como os 4 Ps do marketing:
situações quando os desejos humanos podem ser comprados. Existem oito tipos de produto, preço, ponto de venda (ou praça) e promoção. Para melhor análise e resulta-
demanda conhecidos: negativa, inexistente, latente, declinante, irregular, plena, ex- do, a pesquisa permeia todos esses elementos.
cessiva ou indesejada. O produto é algo que pode ser oferecido a um mercado para atenção, aquisi-
Os produtos e serviços ofertados pelo mercado são vistos pelos consumidores ção, uso ou consumo e que pode satisfazer um desejo ou uma necessidade, enquanto
como pacotes de benefícios. A escolha pelo produto final ocorre pelos benefícios sen- o serviço é um produto essencialmente intangível e, embora seja pago, não resulta
tidos pelos consumidores, em face da satisfação, conforme seus desejos e recursos em propriedade. Os produtos possuem três níveis: básico, real e ampliado, sendo clas-
financeiros. Por isso, entendemos a razão pela qual os produtos e serviços disponí- sificados em produtos de consumo e produtos industriais, cujos atributos são quali-
veis no mercado atualmente são tão sofisticados. A demanda da indústria automo- dade, características e design.
bilística não é somente por meios de transporte, mas por vários outros fatores, como Os produtos têm o seu desenvolvimento prejudicado quando há: escassez de
baixo consumo de combustível, segurança, status, conforto, luxo. As empresas de la- ideias importantes; fragmentação dos mercados, restrições societárias e governa-
zer e entretenimento exploram esse nicho de mercado criando sua oferta de servi- mentais, aumento do custo de desenvolvimento, escassez de capital, tempo mais rá-
ços/produtos, como: música, cinema, teatro, clubes, hotéis, parques, praças, museus, pido de desenvolvimento e ciclos de vida dos produtos mais curtos. Esse fator, o ciclo
shows, shoppings, festas, boates, restaurantes, roteiros turísticos, jogos, modalidades de vida, tem os seguintes estágios: desenvolvimento, introdução (distribuição do pro-
esportivas, academias, dentre outros. Essas e diversas outras opções visam proporcio- duto nos pontos de venda), crescimento, maturidade e declínio. O objetivo principal
nar realização aos clientes mediante o cultivo do sonho e da fantasia, que são satisfei- do produto é de ser igual ou superior à expectativa do consumidor.
tos pelo acesso a experiências de lazer. Chamamos de valor a diferença entre os bene- O preço é o volume de dinheiro cobrado por algo. o somatório dos valores tro-
fícios obtidos na compra e uso de um produto/serviço pelo custo de sua produção. cados pelo benefício de posse ou uso de um bem ou serviço. O preço de produtos e

148 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]


[LÚDICO] 149
serviços tem nomenclaturas diversas, podendo ser: aluguel, prémio, mensalidade, Encerrando as explanações sobre as ferramentas, apresento, por fim, a promo-
honorário, consulta, suborno, passagens, ordenado, taxas, tarifas, comissão, juros, ção, que é um conjunto de ações empreendidas pela empresa no sentido de tornar o
salário, pedágio, contribuições, imposto, franquia, gratificação, diárias, remunera- produto atrativo ao cliente, buscando conquistar sua preferência, visando à venda.
ção, gorjetas, adicionais, despesa e, mais recentemente, observamos a expressão cus- A promoção é a parte mais fácil de ser visualizada nas ações de marketing.
tos operacionais, logísticos e outros. O preço é a única variável do composto de ma-
Churchill & Peter (apud KOTLER, 1994) ressaltam a importância da comunica-
rketing capaz de produzir receita, sendo o elemento maisflexível,que pode ser alterado
ção de marketing por meio do modelo AIDA (atenção, interesse, desejo e ação). Eles
rapidamente. A definição do melhor preço a ser colocado no produto pode ser basea-
apresentam o composto da comunicação formado pela propaganda, publicidade, ven-
da no custo, no consumidor e/ou na concorrência. Descontos por quantidades espe-
da pessoal e promoção de vendas. A propaganda é qualquer maneira paga de apre-
ciais e condições de pagamento também são fatores analisados para uma melhor
definição dos preços, que não podem ser altos nem baixos demais, pois, assim, pro- sentação impessoal e de promoção de ideias, bens ou serviços por um patrocinador
vocam desprezo por parte dos clientes. Achar o ponto de equilíbrio não é tarefa das identificado, tendo como objetivos informar, persuadir e lembrar. A propaganda é
mais fáceis. O preço deve ser competitivo e compatível com o mercado, estratégia paga, oferecendo uma razão à compra, enquanto a publicidade, ou informe publici-
organizacional e poder de compra dos potenciais consumidores. tário, é gratuita. A promoção de vendas oferece um incentivo à compra. A venda pes-
soal é o conjunto das atividades realizadas pelo vendedor com o propósito de infor-
Para atingir esse objetivo, existem estratégias de adequação de preços, sendo:
(1) descontos e abatimentos: à vista, por volume, funcional ou sazonal; (2) segmen- mar, motivar e persuadir o cliente a adquirir um produto ou serviço da empresa,
tada: segmento de clientes, versão do produto, localização ou período; (3) psicológi- podendo incluir ou não a concretização da venda propriamente dita. A venda pessoal
ca: definição de um preço psicológico em face de um preço referencial; (4) promocio- é o elemento responsável por produzir as receitas para a organização.
nal: preços de ocasião, geralmente financiados a juros baixos, garantias mais longas t Cabe também dizer sobre o papel de relações públicas, cuja função é manter o
assistência grátis; (5) geográfica: macrorregiões e microrregiões, zonas, pontos-base; contato com os veículos de comunicação, difundindo uma boa imagem do produto e
(6) valor: combina qualidade e bom serviço a um preço justo; (7) internacional: cus- da empresa, realizando o lobby sempre que necessário. Por fim, o merchandising, que
to de capital, legislação, importação/exportação, câmbio. é observado pelas ações desenvolvidas no ponto de venda (loja) relativas à exposição e
O ponto de venda, ou praça, é constituído pelo conjunto de organizações apresentação do produto com o objetivo de produzir a compra.
interdependentes, envolvidas no processo de tornar um produto ou serviço disponí- Como se vê, associar o marketing somente a divulgação é uma ideia extrema-
vel, para o consumidor final ou organizacional. É a ferramenta que tem como objeti- mente limitada. O marketing é uma complexa teoria mercadológica, da qual o campo
vo levar o produto até o público consumidor. Pode ser uma edificação ou, no contex- do lazer também está se apropriando. Empresas de entretenimento, parques, clubes,
to contemporâneo, virtual. Possui duas funções: distribuição e comercialização, e hotéis, academias e vários outros empreendimentos de lazer já desenvolvem ações
logística (processamento de pedidos, armazenagem, gerenciamento de estoques, significativas de marketing. O objetivo é sobreviver no mercado, cada vez mais com-
transporte). As principais atividades realizadas nos pontos de venda são: informação petitivo, complexo, multidisciplinar e exigente.
dos produtos, comparações, vantagens e desvantagens; a promoção por meio de co-
municações persuasivas; o contato direto com os compradores; adaptação da oferta Daniel Braga Hubner
disponível à necessidade dos compradores; negociação de preços, quantidade, condi-
ções de pagamento. Existem três sistemas na variável praça no composto de marke-
Bibliografia
ting. O primeiro, chamado de sistema convencional de marketing, funciona com fun-
ções específicas a cada agente envolvido: fabricante, atacadista, varejista, consumidor. CHIAVENATO, Idalberto. Teoria geral da administração. 3. ed. São Paulo: McGraw Hill, 1987.
No segundo, conhecido como sistema vertical de marketing, o fabricante é também CHURCHILL JR, Gilbert A. Marketing: criando valor para o cliente. São Paulo: Saraiva, 2000.
atacadista e varejista, relacionando-se diretamente com o consumidor. Já o sistema KOTLER, Philip; ARMSTRONG, Gary. Princípios de marketing. 7. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1998.
horizontal de marketing acontece quando duas ou mais empresas de um mesmo ní- KOTLER, Philip. Administraçao de marketing: análise, planejamento e controle. S.ed.São Paulo: Atlas, 1994.
vel juntam-se para seguir uma nova oportunidade de marketing, combinando capi- MIGUEL, Almir Márcio. Conceitos centrais de marketing. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton
tais, capacidade de produção ou recursos de marketing. Paiva, 2002 (Palestra).

150 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] 151


MEIO AMBIENTE Nesse aspecto podemos visualizar a crise ambiental não somente como crise
ecológica, mas como crise da razão, na qual os problemas ambientais situam-se como
Tentarei desenvolver questões em torno do conceito do vocábulo "meio ambiente", problemas do conhecimento. Segundo Leff (2000, p. 217),"apreender a complexida-
desde já alertando os leitores sobre a impossibilidade e a improcedência da tentativa de de ambiental não constitui um problema de aprendizagem do meio, e sim de com-
fechamento nas discussões que serão apreendidas, pois elas representam um olhar, en- preensão do conhecimento sobre o meio".
tre muitos outros, sobre o fenómeno a ser explorado. Portanto, mais do que estabelecer Podemos pensar essas questões engatilhadas a partir da década de 1960, nos
definições, desejo ampliar e contribuir para a construção do conceito. movimentos contraculturais constituindo e desembocando em crises deflagradas no
Em oposição a um sujeito-observador, o qual situa-se fora do tempo histórico, âmbito das instituições (família, ensino, igreja dentre outras), bem como contestan-
perseguindo os sentidos verdadeiros, real, permanente e inequívoco, prefiro me apro- do instrumentos socioculturais e político-econômicos de organização das socieda-
ximar de um sujeito-intérprete me posicionando diante de um mundo-texto, imerso des, questionando teorias e práticas em torno da luta pelo poder.
na polissemia e na aventura de produzir sentidos a partir de um panorama histórico Surge uma noção de ambientalismo, conforme Cascino (1998, p. 266), na qual
(CARVALH0.2001). está embutida não apenas a preservação de maneira isolada e estanque, mas inte-
Inicio expondo um dentre os muitos conceitos estabelecidos, não no sentido de grando uma infinidade de conteúdos, de complexificação do conhecimento, articu-
tomar partido do mesmo, mas para utilizá-lo como possibilidade de iniciar um diá- lando uma visão diferenciada sobre os acontecimentos naturais, socioculturais, polí-
logo sobre a compreensão do mesmo. tico-econômicos, num entendimento do ser humano como elemento co-responsável,
fundamental, em tudo o que ocorre no âmbito da sobrevivência física do planeta e da
De forma geral, poderíamos pensar o meio ambiente como o modo pelo qual
própria qualidade de vida em um sentido amplo, renovado e diferenciado. Nessa di-
os organismos vivos (e aqui incluo os seres humanos) interagem com o conjunto de
reção, prossegue o autor,"as novas configurações do expressar a política, o fazer rei-
condições naturais, sociais e culturais, através de influências mútuas estabelecidas
vindicações, o agir sobre os temas de interesses e importância na defesa de territó-
entre os mesmos, envolvendo um campo complexo das relações entre a natureza e a
rios existenciais coletivos e individuais, se reveste de inéditas estruturas simbólicas,
sociedade.
abrindo campos até então intocados da expressão humana, rompendo com velhas
De modo a contribuir com o debate, busco Reigota (1998, p.21), o qual define mensagens, envelhecidas cores de expressão dos desejos".
meio ambiente como "um lugar determinado ou percebido onde estão em relações
Um novo ambientalismo, em contraposição à concepção de"proteção à nature-
dinâmicas e em constante interação os aspectos naturais e sociais. Essas relações
za" presente em instituições provindas do século XIX (sociedades de proteção da
acarretam processos de criação cultural e tecnológica e processos históricos e políti-
natureza, da vida selvagem, dos animais, etc.) procede, como mostra Diegues (1996,
cos de transformação da natureza e da sociedade".
p. 39), desse movimento ativista crítico da sociedade tecnológico-industrial (tanto
Assim, a compreensão ultrapassa a ideia do meio que circunda espécies e po- capitalista quanto socialista), cerceadora das liberdades individuais, homogeneiza-
pulações biológicas, situando o ambiente como categoria sociológica (não biológi- dora das culturas e, sobretudo, destruidora da natureza.
ca), relacionada a uma racionalidade social, onde estariam envolvidos comportamen- Movimento ambientalista constituindo-se em alvo de censuras, pois represen-
tos, valores e saberes, bem como novos potenciais produtivos (LEFF, 2000). tava um modelo importado dos países industrializados, nascido com a opulência da
A racionalidade instrumental utilitarista numa ética baseada em benefícios riqueza (rejeitando o industrialismo e os valores consumistas), não refletindo aspi-
imediatos regeu por um tempo considerável (se é que podemos afirmar o seu desa- rações e conceitos sobre a relação homem/natureza dos países subdesenvolvidos, pois
parecimento) a economia e o processo de acumulação, buscando atingir o cresci- muito raramente incluíam o problema da pobreza e, principalmente, a má distribui-
mento económico. Nesse processo os recursos naturais sofreram uma deterioração e ção de renda. Os movimentos ambientalistas nos países subdesenvolvidos estão
devastação comprometendo a vida no planeta, provocando desigualdades sociais e diretamente relacionados com as condições de produção e de satisfação das necessida-
um entendimento equivocado de conservação ambiental traduzida como nichos iso- des básicas da população, portanto implicam qualidade de vida. Entretanto, na década
lados. Esse quadro provocou uma crise e uma reação contrária, impulsionando uma de 1980, coloca Diegues (1996, p. 38), "ficou mais difícil a defesa do ambientalismo
nova racionalidade social diferente da racionalidade científica prevalecente. primeiro-mundista, por causa da grave recessão que gerou altas taxas de desemprego .

152 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [MEIO AMBIENTE] 153


As contrapropostas ambientalistas direcionaram-se para uma sociedade liber- de menor importância os aspectos socioculturais e político-econômicos caracterís-
tária, constituída de pequenas comunidades auto-suficientes, utilizando uma ciên- ticos das populações locais. Portanto, a redefinição dos modelos de desenvolvimento
cia, um trabalho e uma tecnologia não alienante e a afirmação da sociedade civil em pautada nos "critérios ecológicos" tem acontecido, como discutem Ribeiro e Barros
contraposição a um Estado centralizador. (1997, p. 39), "muito mais no sentido de uma adequação à ideia de 'equilíbrio com o
Uma utopia simplista manifestou-se nesse movimento de ruralização e pro- meio natural' do que em relação à de justiça social, ao reconhecimento das popula-
posta de volta às comunidades rurais, qual seja, o retorno aos modelos de convívio ções humanas como os verdadeiros sujeitos do meio ambiente".
dos pequenos povoados e vilas. Ainda nessa discussão, percebe-se uma forte ênfase nas posturas empresariais e
Trazendo temas de grande alcance político em seu bojo (energia nuclear, auto- políticas de planificação e gestão, quando a fala enfoca o turismo sustentável, despre-
nomia local, crescimento económico), desencadearam um afastamento em relação zando aspectos relativos aos comportamentos sociais como atitudes, expectativas e va-
ao poder instituído, concomitantemente colocando-se como força política, conquis- lores da população, não respondendo à necessidade de preservação dos recursos natu-
tando espaços (partidos, ministérios, organizações não-governamentais). rais para garantir sua continuidade e regeneração, costumes e estilos de vida, na busca
Surgiu um âmbito propício para o desenvolvimento de abordagens, temas e do enriquecimento da experiência turística e nos benefícios advindos dela.
problemas até então considerados irrelevantes para a investigação social. Não mais O ecoturismo privilegia áreas naturais apelativas do ponto de vista estéti-
se atendo à narrativa das conquistas dos "grandes homens", esses temas expandi- co,"segundo valores ocidentais", como florestas, cachoeiras, rios extensos, canyons,
ram-se para aspectos da vida cotidiana, examinando modos de amar, trabalhar, di- ocorrendo uma discriminação por áreas naturais "menos nobres", como pântanos,
vertir-se, bem como práticas e representações corporais. brejos, cerrados, etc., mesmo reconhecendo que esses ambientes são essenciais para
Algumas práticas de lazer, tendo como pano de fundo o ambientalismo - en- o funcionamento dos ecossistemas (DIEGUES, 1996). Essa proposta responde a con-
quanto movimento crítico-social -, surgem nessa época, muito próximas às peregri- cepções de vida, inspiradas no ambientalismo, apoiados em ideologias ambientalis-
nações do movimento hippie ou aos seus propósitos de volta ao campo, em que a tas e/ou místico-religiosas.
busca pela natureza representava uma contestação de valores em relação à produção O movimento ambientalista desencadeou vários enfoques, muitos deles con-
e ao consumo. A natureza como território da experiência passa a operar um reencan- traditórios, gerando conflitos a partir de posicionamentos opostos. Dois grandes en-
tamento do mundo. Assim, as visitas à natureza traduzidas nas formas de acampa- foques podem ser detectados na análise da relação homem/natureza: o"ecocêntrico"
mento, caminhadas, exploração de cavernas e montanhismo tornam-se cada vez mais e o "antropocêntrico". O primeiro visualiza o mundo natural na sua totalidade, o
frequentes, desencadeando posteriormente uma série de atividades na natureza como qual possui um valor independente da utilidade que venha a ter para o ser huma-
o rafting, canyoning, bóia-cross, cascading, tirolesa e outros. Essas atividades foram no. O segundo incorpora a dicotomia homem/natureza, onde o homem tem direi-
desenvolvidas mediante aprimoramentos tecnológicos, os quais promoveram tanto tos de posse e controle sobre o mundo natural, sobretudo através da ciência e da
o acesso a lugares antes inacessíveis (por exemplo, o Everest no Himalaia ou as caver- tecnologia. A natureza representa uma reserva de "recursos naturais" disponíveis
nas do PETAR no Brasil) quanto a possibilidade da prática com segurança. O ecotu- para exploração (DIEGUES, 1996).
rismo, denominação posteriormente atribuída a essas viagens, ganha destaque como Torna-se importante, na compreensão do "mundo natural selvagem", verificar
atividade de lazer, incorporando os conflitos e contradições geradas no próprio am- a posição de algumas linhas de pensamento envolvidas nessa questão. Aproveitando
bientalismo. Sem deixar de considerar a possibilidade de ações limitadas, acentuan- os estudos de Diegues (1996), detenho-me em três delas: a ecologia profunda, a eco-
do a comunidade e a localidade, as resistências locais e regionais, os movimentos logia social e o ecossocialismo.
sociais, o respeito pela alteridade, o ecoturismo corre o risco da apelação por uma A ecologia profunda é uma vertente ecocêntrica, possuindo influência espi-
política sectária e estreita, na qual o respeito pelos outros pode se perder numa com-
ritualista (cristã, religiões orientais e outras), pregando quase uma adoração do
petição por entre os fragmentos.
mundo natural. Atribui grande importância aos princípios éticos que deveriam ser
Por outro lado, as atividades, em que a pretensão do cunho ecológico é mani- adotados para reger as relações homem/natureza. Recebeu muitas críticas, pois che-
festada, restringem-se a fatores físico-bióticos do meio ambiente, relegando a planos gou a propor ao ser humano "pensar como montanha". O homem tem características

154 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [MEIO AMBIENTE] 155


humanas e racionará segundo elas, por mais solidário que seja em relação à natureza • A relação com a natureza não se opera de forma individual, mas coletiva. A
e por mais crítico que se coloque perante o racionalismo antropocêntrico. sociedade é produto do mundo natural por um trabalho de invenção constante. Uma
Um "ecofascismo" manifesta-se nessa posição, na qual a sociedade humana, série de distorções surgiu a partir do culturalismo (sociedade contra a natureza), o
em sua organização, deveria adotar como modelo as características do mundo natu- qual justificava a necessidade de acumulação como refúgio diante a possibilidade de
escassez, gerando proibições e interdições (sexuais, alimentares), provocando a divi-
ral (homeostase, diversidade biológica, dentre outras).A justificação da ordem social
são entre os homens, bem como desigualdades sociais.
pelas leis da natureza serviu ao totalitarismo, exemplificado aqui com o nazismo, o
qual se prevaleceu da seleção natural. Esse"novo naturalismo"propõe uma sociedade onde a natureza representa uma
possibilidade concomitante de desenvolvimento humano quanto de participação no
A ecologia social justifica, ao lado dos marxistas, a degradação ambiental como
desenvolvimento.
produto da ação capitalista. Afirma ser a sociedade humana constituída de grupos
diferenciados, como pobres e ricos, brancos e negros, jovens e velhos, e critica o po- Nesse enfoque, o fechamento da natureza em parques, como já comprovado,
der baseado na noção de Estado, propondo uma sociedade democrática, descentrali- acelera a destruição dela (degeneração genética), não estabelecendo uma relação har-
zada, baseada na propriedade comunitária de produção. Aproxima-se dos anarquis- moniosa entre a sociedade e o meio ambiente.
tas e, assim sendo, afasta-se dos marxistas clássicos. Possui uma vertente utópica, A questão ambiental requer novos conhecimentos teóricos e práticos para sua
pois prega a busca por uma comunidade orgânica, a qual se constituiria numa nova compreensão e resolução, com alterações na própria ciência, num novo olhar sobre a
sociedade, na qual a tecnologia estaria sempre a serviço do homem. sociedade, induzindo transformações teóricas e um desenvolvimento diferenciado
O ecossocialismo surge a partir de uma crítica ao marxismo clássico nas suas de conhecimento nas diversas áreas do conhecimento. Ela gerou novas problemáti-
considerações sobre o mundo natural, alegando sobre ele manter uma visão de natu- cas sociais e abriu espaços temáticos para a pesquisa interdisciplinar, a qual, mais do
reza estática, uma vez que a considera apenas via de ação transformadora do ho- que articulação de ciências, colaboração de especialistas de diversas áreas e integra-
mem, por meio do processo de trabalho, resultando na satisfação das necessidades. ção de recortes selecionados da realidade, significa a transformação ambiental do co-
nhecimento produzindo um processo de reconstrução social (LEFF, 2000). Está presen-
Argumenta ser necessário incorporar na contradição básica da sociedade ca-
te aqui uma noção de ciência não pautada em fundamentos seguros, aberta para um
pitalista a contradição existente entre as forças produtivas históricas e as forças pro-
processo de revisão e autocrítica permanente, privilegiando o jogo das percepções
dutivas da natureza, pois, na impossibilidade de estas últimas operarem, instaura-se
criativas em detrimento da manipulação dogmática de fórmulas fechadas. Busca mais
um impasse na própria reprodução da sociedade.
uma relação de conjunto e menos a busca precisa de fragmentos; mais a preocupação
Essa corrente propõe uma revisão do tradicional naturalismo o qual incorpo- pelo sentido das ações, não se prendendo num enrijecimento racionalista.
rava uma aversão pela sociedade e pela cultura, tratando o homem como pura
O saber ambiental não é homogéneo nem unitário, constituindo-se num processo
natureza.Esse naturalismo negava o culturalismo para o qual a sociedade teria todas
de relação com o objeto e o campo temático de cada ciência, o qual vai abrindo espaços
as qualidades e a natureza, todos os defeitos, esforçando-se para distanciar o homem
para a articulação interdisciplinar, gerando novas teorias, disciplinas e técnicas.
em relação à natureza.
O "novo naturalismo" estabeleceria a passagem tanto de uma reação contra a Heloísa Turini Bruhns
natureza para uma posição reconciliatória ativa, como de uma visão ingénua para
uma nova afirmação da relação homem/natureza. Baseia-se em três ideias: Bibliografia
• O homem é produtor e produto de seu meio, e os problemas consequentes CARVALHO, Isabel C. Moura. A invenção ecológica.PoHo Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 2001.
referem-se não ao fato, mas à maneira dessa intervenção. A natureza pura, não trans- CASCINO, Fábio. "Pensando a relação entre educação ambiental e ecoturismo". In: VASCONCELOS,
formada, representa um museu, uma reserva e um artifício de cultura. Fábio P. (Org.) Turismo e meio ambiente. Fortaleza, Editora FUNECE, 1998.

• A natureza faz parte da história, não cabendo voltar atrás para restabelecer DIEGUES, António Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo, Hucitec, 1996.
uma harmonia perdida, mas sim restabelecer uma relação com o estado da natureza LEIFF, Enrique.Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2000.
conforme a situação histórica. REIGOTA, Marcos. Meio ambiente e representação social São Paulo: Cortez, 1995.

156 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [MEIO AMBIENTE] 157


RIBEIRO, Gustavo L.; BARROS, Flávia L. A corrida por paisagens autênticas: turismo, meio ambiente e dessas atividades e caracterizar seus trabalhadores. A Pesquisa Nacional por Amos-
subjetividade no mundo contemporâneo". In: BRUHNS, Heloísa T.; SERRANO, Célia M.T. (Orgs.) Via- tra de Domicílios (PNAD), do IBGE, permite examinar seis ramos de atividade: 1) os
gens à natureza: turismo, cultura e ambiente. Campinas: Papirus, 1997. serviços de diversão (danceteria, boate, cinema, teatro, circo, escola de samba, gru-
po de dança, brinquedos mecânicos, fliperama, parque de diversões, aluguel de lan-
cha, salão de bilhar, locadora de vídeos, promoção de espetáculos, músicos, etc.); 2)
MERCADO DE TRABALHO 05 serviços de hospedagem (hotéis, motéis, pousadas, hospedarias, etc.); 3) as or-
ganizações esportivas (clube social, federação ou associação desportiva, estádio,
Nas economias mais desenvolvidas, as transformações em curso desde a década de piscina pública, quadra esportiva, camping etc.); 4) os serviços de comunicação
1970, que combinam a introdução de novas tecnologias com novas formas de orga- (empresas de rádio ou televisão); 5) as organizações culturais (museu, biblioteca,
nização da produção, têm apontado para mudanças profundas no mercado de traba- centro cultural, aquário, jardim botânico, jardim zoológico, reserva ecológica etc.); e
lho. À medida que diminui a participação do emprego industrial, aumenta a impor- 6) os jogos e outros (jogo do bicho, cassino, clube de caça, bordel, meretrício, prosti-
tância de atividades denominadas "serviços" no conjunto dos ocupados. tuição, etc.). Por problemas metodológicos, ficam de fora alguns segmentos que po-
O trabalho em serviços de lazer, embora ainda pese pouco na estrutura ocupa- deriam ser incluídos como "opções de lazer", a saber: restaurantes, choperias, sorve-
cional (em comparação com outros ramos de atividade), tem se mostrado relativa- terias, academias, saunas, agências de viagem, ou mesmo shopping center.
mente dinâmico, em razão da expansão na oferta pública e privada de atividades de Em 2001, somando-se esses seis ramos de atividade, havia l, l milhão de pessoas
entretenimento. De fato, nos países desenvolvidos, cada vez mais pessoas estão tra- trabalhando com lazer no País - 1,9% do total de ocupados não agrícolas. Estima-se
balhando em empresas comerciais, em órgãos governamentais ou no terceiro setor que, entre 1992 e 2001, 293 mil novos postos de trabalho foram criados nessas ativida-
(ou ainda de forma autónoma), abrangendo uma enorme gama de atividades e asse- des (variação positiva da ordem de 36%).
gurando um leque de opções de lazer dos mais diferentes tipos. O segmento que mais cresceu, nesse conjunto, foi o de serviços de diversão,
Ocupações que se tornaram tradicionais no campo do lazer, como as de músico, cuja participação alcançou 37% do total dos ocupados em atividades de lazer, em
de dançarino e de atleta profissional, são hoje mais valorizadas. E ocupações inusita- 2001.0 segmento de serviços de hospedagem (cujos mercados têm certa sazonalida-
das, como professor de artes circenses e de instrutor de trekking, ganharam visibilida- de) teve um crescimento relativamente pequeno, passando, assim, para a segunda
de. Mas, a maior parte dos que trabalham nas diversas atividades desse ramo económi- posição em termos de participação (24%). Em terceiro lugar aparecem as organiza-
co exerce ocupações pouco notadas: são bilheteiros, faxineiros, vigias, atendentes etc. ções esportivas (17%). Chama atenção, também, o fato de as organizações culturais
Na década de 1990,8% dos empregos criados nos EUA estavam relacionados à ocuparem uma parcela muito pequena desses trabalhadores (menos de 3%).
cultura e ao desporto, ao passo que 4% dos empregos gerados na França estavam
associados a serviços de entretenimento e cultura. Porém, na maioria das vezes, os Tabela l - Ocupados em serviços de lazer (Brasil, 2001)
postos de trabalho criados em empreendimentos desse tipo são mais precários do
Ramo de atividade Remuneração
que os empregos que estão desaparecendo no bojo das mudanças em cursos, isto é,
N % média
apresentam relações de trabalho menos estáveis e têm menores remunerações.
No Brasil, de modo similar ao que vem ocorrendo nos países desenvolvidos, o mer- serviços de diversão 408.221 37,2 644,43
cado de trabalho em serviços de lazer tem se expandido nos centros urbanos - mas tam- serviços de hospedagem 267.217 24,3 526,72
organizações esportivas 186.276 17,0 535,24
bém no "novo rural". A maioria dos que são empregados nessas atividades possui baixa
serviços de comunicação 114.114 10,4 1.027,97
qualificação profissional. E ressalte-se que, no contexto nacional, tende a imperar a infor-
organizações culturais 31.085 2,8 595,75
malidade e a baixa produtividade, às vezes com relações de trabalho quase servis. 318,86
jogos e outros 90.692 8,3
Dimensionar o número de pessoas economicamente ocupadas em atividades
Total 1.097.605 100,0 608,84
de lazer não é tarefa simples, porque são variados os campos de atuação do lazer e não
há uma fonte de informações apropriada para delimitar com exatidão o conjunto IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: 2001.

[MERCADO DE TRABALHO] 159


158 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
Em relação aos rendimentos dos ocupados em atividades de lazer, houve Tabela 2 - Remuneração e jornada de
uma melhoria razoável entre 199212001: o rendimento médio mensal aumentou trabalho em ocupações selecionadas (Brasil, 2001)
de R$ 513 para R$ 609. De qualquer modo, trata-se de um valor relativamente baixo
que correspondia a 3,3 salários mínimos em 2001 (o mesmo rendimento médio do Ocupação N Remuneração Jornada
média semanal
conjunto dos ocupados não agrícolas, na época). As remunerações mais elevadas si-
tuavam-se nos serviços de comunicação (média de R$ 1.028 ou 5,6 sm); as mais músico 87.155 599,06 23,4
baixas nas atividades ligadas a jogos e prostituição (R$ 319 ou 1,7 sm). O aumento artista de teatro, rádio, tv 45.705 629,51 26,6
mais significativo no poder de compra dos rendimentos ficou por conta dos ocupa- artista de circo 1.162 194,02 30,6
dos em organizações esportivas (32%), cuja remuneração média (R$ 535 ou 2,9 sm)
diretor de espetáculos 18.585 1.301,28 39,0
ainda assim, continuou abaixo da média geral dos ocupados em lazer.
cinegrafista 10.660 1.014,17 45,1
Certamente, o número de pessoas direta ou indiretamente envolvidas com a
oferta de atividades de lazer está subestimado, já que a metodologia adotada não cenotécnico 24.263 524,79 32,8
inclui, por exemplo, os professores de Educação Física, os trabalhadores em acade- operador de estúdio 10.849 1.221,92 41,1
mias e os funcionários municipais que trabalham em secretarias de esporte, lazer, comunicador 24.029 445,51 29,2
cultura ou turismo. De qualquer modo, a estimativa apresentada serve de referência
atleta de futebol 9.903 1.323,31 29,5
inicial para debater o campo de trabalho dos profissionais que procuram ocupar um
lugar neste mercado tão heterogéneo. atleta de outro esporte 4.075 1.618,21 ' 27,1

Para completar esse quadro geral do mercado de trabalho em lazer, é oportuno árbitro esportivo 3.393 254,91 7,0
visualizar os diferenciais de remuneração e jornada de trabalho entre profissionais técnico esportivo 109.369 607,28 30,7
de distintos segmentos. Na Tabela 2, foram selecionadas algumas ocupações caracte-
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: 2001.
rísticas do ramo de lazer e entretenimento no Brasil, mas sem circunscrever o levan-
tamento àqueles segmentos anteriormente referidos.
Em primeiro lugar, chama atenção não só a quantidade de técnicos esporti- Em suma, o mercado de trabalho em lazer, no Brasil, não só tem se expandi-
vos, músicos e artistas, mas também o número considerável de diretores de espe- do, como é bastante heterogéneo. Há, certamente, diferenças regionais que não foram
táculos e de comunicadores. Em segundo lugar, destaca-se a relativamente alta re- aqui explicitadas. Mas o importante é que são muito diversificados os campos de
muneração média mensal dos atletas profissionais (certamente, os altíssimos atuação profissional, nesse ramo, que se abrem para pessoas das mais diferentes for-
rendimentos da elite puxa a média para cima) e a baixa remuneração média dos mações académicas.
artistas de circo (que recebem rendimentos não monetários, principalmente ali-
Marcelo Weishaupt Proni
mentação e moradia), lembrando que o salário mínimo legal estava fixado em
R$ 180 na época. Por último, nota-se que a jornada média dos cinegrafistas ultra-
passava 45 horas semanais, ao passo que os árbitros esportivos trabalhavam apenas Bibliografia
7 horas por semana, em média.
MARCELLINO, Nelson (Org.) Lazer: formação e atuação profissional. Campinas: Papirus, 1995.
Vale a pena ressaltar as duas categorias profissionais mais numerosas nesse POCHMANN, Mareio. A década dos mitos. São Paulo: Contexto, 2001.
recorte. Os técnicos esportivos trabalhavam, em média, 31 horas por semana e ga- PRONI, Marcelo Weishaupt. O mercado de trabalho em serviços de lazer no Brasil. Anais do XV Enarel.
nhavam, em média, 3,4 sm por mês. Por sua vez, os músicos ganhavam 3,3 sm Santo André: Sesc, 2003.
mensais, em média, e trabalhavam apenas 23 horas por semana, em média. TRIGO, Luiz Gonzaga G. Filosofia da formação profissional nas sociedades pós-industriais: um
Mas, em geral, os primeiros exercem sua profissão durante o dia e os segundos no olhar para o além do tradicional: o caso do lazer e do turismo. Campinas: Unicamp, 1996. Mimeo.
período noturno.

160 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]


[MERCADO DE TRABALHO] 161
MÍDIA funcionando como o principal braço operacional da Indústria Cultural, posto que, a
partir do conceito formulado por Adorno e Horkheimer (1985), ao pretender a inte-
Palavra aportuguesada do inglês media, adotando a sua pronúncia. Origina-se do la- gração de todos a padrões gerais de consumo, não apenas adapta seus produtos às
tim media, forma plural de médium (meio). Aplicada ao campo da comunicação soci- massas, mas o determina. A Indústria Cultural impõe um novo ritmo ao consumi-
al, é associada ao fenómeno de massa, sendo, portanto, também uma simplificação da dor, molda da mesma maneira o todo e as partes. Ele não tem mais escolhas, porque
expressão original em inglês mass media, ou meios de comunicação de massa. não há nada mais a classificar que o esquematismo da produção já não tenha anteci-
Designa, de forma restrita, um conjunto de meios de comunicação, que inclui padamente classificado. Por intermédio da mídia, a Indústria Cultural, produtora e
indistintamente, diferentes veículos, recursos e técnicas. Nesse sentido, é subdividi- disseminadora de cultura, sobretudo da cultura danificada, oferece o produto cultu-
da em mídia digital - baseada em tecnologia digital como a Internet e TV digital; ral integrado à lógica do mercado não como elemento de formação, mas como forta-
mídia eletrônica - TV, rádio, cinema e outros recursos audiovisuais; mídia im- lecedor e incentivador da integração à sociedade administrada.
pressa - jornais, revistas, mala-direta,/oWer, catálogo, etc.; Mídia mix - multimí- Assim, admitindo que a cultura contemporânea se apresenta como um grande
dia ou uso interativo de diferentes recursos e técnicas de veiculação. Nesse sentido, é mosaico de símbolos e significações e socialmente compartilhado, que são produzidos
entendida também como suporte ou a tecnologia usada para gravação ou registro de pela Indústria Cultural e colocadas em circulação pelos meios de massa, e também pela
informações (por exemplo, o CD, a fita cassete ou VHS, o impresso, etc.). crescente integração e dependência da sociedade aos sentidos assim veiculados, pode-
Há quem prefira referir-se à mídia no plural (SANTAELLA apud BETTI, 1998), en- mos reconhecer que a mídia vem se tornando a principal promotora de tais significa-
tendendo que a expressão mídias representaria melhor os diferentes veículos ou fer- dos sociais, influenciando não apenas na forma, mas, sobretudo, no conteúdo (ou na
ramentas de veiculação da mensagem, cabendo a cada uma delas determinado papel sua secundarização) do que reconhecemos e nos apropriamos como bens culturais. É
ou função comunicacional na sociedade, assertiva que se justificaria pelas diferen- nessa interseção que se localizam, por exemplo, os estudos midiáticos sobre a função
ças de base tecnológica de cada uma delas e pela perspectiva da inter-relação e com- de agendamento social (agenda-setting) exercida pela mídia, que se refere aos possí-
plementaridade existente no conjunto das mídias. veis efeitos de longo prazo sobre o cidadão e a sociedade (WOLF, 2001). Ao produzir e
Baitello Jr. (2003) reconstitui a proposição de Harry Pross para uma classifica- introduzir matérias sobre determinado assunto (normalmente já acompanhado de um
ção da mídia em primária, secundária e terciária. Mídia primária relaciona-se ao juízo de valor preliminar) em seu discurso (PIRES, 2002), a mídia pauta a sociedade e a
sujeito, no âmbito da corporalidade humana e suas relações sócio-históricas, a ges- cada um de nós, estabelecendo os temas sobre os quais devemos ter opinião e, no limi-
tualidade, a mímica, a expressividade, a fala, dentre outras. A mídia secundária é te, influenciando na formação da nossa opinião pública sobre eles.
constituída pelos "meios de comunicação que transportam a mensagem ao receptor, Esse aspecto, aliás, faz parte de uma das características mais debatidas no que
sem que este necessite de um aparato para captar seu significado". São mídias secun- se refere à mídia, qual seja, a sua função como, talvez, o mais poderoso interlocutor
dárias, portanto, "a imagem, a escrita, o impresso, a gravura, alotografia, também seus na construção do espaço público e da política e, por extensão, da cidadania. A metá-
desdobramentos enquanto carta, panfleto, livro, revista, jornal, [...] máscaras, pinturas, fora que considera a imprensa como o 4° Poder da República parece nunca ter sido
adereços corporais, roupas (sistemas de vestimentas e moda), a utilização do fogo ou mais adequada à situação que se percebe hoje na sociedade contemporânea. De fato,
fumaça (incluindo os fogos de artifício e fogos cerimoniais, velas, etc.), os bastões, a alerta Habermas (1984) que a esfera pública era o âmbito de mediação entre o Esta-
antiga telegrafia ótica, bandeiras, brasões [...], pinturas e quadros, cartaz, bilhete, ca- do burguês, o cidadão-sujeito e as forças organizadas da sociedade, sendo considera-
lendário." A mídia terciária consiste naqueles "meios de comunicação que não po- da como o espaço em que as liberdades civis e os direitos constitucionais podiam ser
dem funcionar sem aparelhos tanto do lado do emissor quanto do lado do receptor". exercidos em sua plenitude. No último século, porém, de integrante importante desse
São exemplos a "telegrafia, telefonia, cinema, radiofonia, a televisão, indústria fonovi- contexto, por dar visibilidade e permitir a veiculação da crítica aos atos governamen-
deográfica e seus produtos, discos, fitas magnéticas, CDs fitas de vídeo, DVSs, etc." tais, a mídia passa a intervir de forma a individualizar e privatizar os indivíduos,
A partir de uma análise sociológica de vertente crítica, a mídia pode ser impedindo a formação de uma opinião pública racional, crítica e dialogicamente
compreendida como uma indústria - a indústria midiática - que produz, veicu- constituída. Para Habermas (1984), o imbricamento da racionalidade técnica-ins-
la e determina "mercadorias" ou bens culturais banalizados para o consumo, trumental como modo da ação política do Estado, que dispensa o debate normativo

162 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [MÍDIA] 163


por ser inquestionável, com os interesses privados na publicidade oportunizada pela indústria cultural. De fato, a fruição da cultura em sua plenitude, traço característico
mídia,"colonizou" ou "refeudalizou"a esfera pública, transformando-a em teatro para e identificador do lazer (MARCELLINO, 1987), tende a não se efetivar quando substituí-
promover a pseudoparticipação de uma população altamente despolitizada e massi- mos a autonomia de realizar atividades com total liberdade de escolha quanto ao
ficada, que é, assim, substituída pela mídia. tipo, ao tempo e à forma de vivência por atitudes passivas, que demandam apenas
(re)agir ao ritmo de desenvolvimento de ações que simulam, até mesmo virtualmen-
Por fim, cabe breve reflexão quanto ao processo de danificação da experiência for-
te, situações de movimentos que nos mantêm imobilizados e, pior ainda, submetidos
mativa humana na sociedade contemporânea, em vista da progressiva substituição do
aos controles externos exercidos pelos artefatos técnicos.
contato e apreensão direta da realidade pela mediação tecnológica exercida pelos meios
de comunicação de massa, notadamente a televisão, os jogos eletrônicos e a Internet. Giovani De Lorenzi Pires
Com base no pensamento dos teóricos críticos da Escola de Frankfurt, a expe- Cássia Hack
riência cultural formativa (Erfahrung) implica o caráter ativo do sujeito em se apro-
priar conscientemente da realidade, num processo dialógico entre o fato em si e a
Bibliografia
formulação do seu conceito, que demanda um necessário tempo para a sua vivência,
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação
reflexão e subjetivação (RAMOS-DE-OLIVEIRA, 1998). Nesse processo, são mobilizados
das massas. In: Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
reciprocamente mecanismos de sensibilização e racionalização que possibilitam a
BAITELLO Jr, Norval. O tempo lento e o espaço nulo: mídia primária, secundária e ternária.
incorporação da experiência como conhecimento (ZuiN,1999).
Disponível em http://www.cisc.org.br/biblioteca/index.htlm.Acessado em 20/10/2003.
Ocorre que, quando a realidade sobre a qual se poderia estabelecer uma expe- COSTA, Belarmino César G. Estética da violência: jornalismo e produção de sentidos. Piracicaba,
riência formativa nos é apresentada de forma racionalizada e naturalizada, desen- Campinas: Ed. UNIMEP, Autores Associados, 2002.
carnada das suas contradições e complexidades, como é típico do que promove o ERBOLATO, Mário. Dicionário de propaganda e jornalismo. Campinas: Papirus,1985.
discurso midiático, ocorre uma adulteração da vida sensorial (COSTA, 2002). FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portu-
A mediação tecnológica utiliza géneros que simplificam e deterioram as estru- guesa. Nova Fronteira, 1999.

turas subjetivas de percepção, favorecendo o caráter de integração (in)voluntária à HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio dejaneiro: Tempo Brasileiro, 1984.

cultura tecnicamente mediada. O imenso fluxo de estímulos em forma de mensagem MARCELLINO, Nelson C. Lazer e educação. Campinas: Papirus, 1987.

que é disponibilizado pelos meios eletrônicos e a velocidade com que vão se suce- RABAÇA, Carlos Alberto; BARBOSA, Gustavo. Dicionário de comunicação. São Paulo: Ática, 1995.

dendo à frente do indivíduo provocam uma apreensão fragmentada e superficial da PIRES, Giovani De Lorenzi. Educação Física e o discurso midiático: abordagem crítico-emanci-

realidade, porque destituída dos elementos e do tempo necessário para a reflexão e patória. Ijuí: Ed. UNIJUf, 2002.

sua incorporação subjetiva como experiência. Assim, por constituir-se um conjunto RAMOS-DE-OLIVEIRA.Newton. Reflexões sobre a educação danificada. In: ZUIN, António; PUCCI,
Bruno; RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton. Educação danificada: contribuições à teoria crítica da
difuso de informações, não possibilita que o receptor se aproprie efetivamente da
educação.Petrópolis,São Carlos: Vozes,Ed.UFSCar, 1998.
realidade e possa agir sobre ela.
ZUIN, António Álvaro. Indústria cultural e educação: o novo canto da sereia. Campinas: Autores
A repetição massificada desse contato prejudicado com o real compromete a au- Associados, 1999.
tonomia da recepção e a qualidade da formação cultural produzida, gerando uma adap- WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. 6 ed. Lisboa: Presença, 2001.
tação ao simplificado de tal modo que qualquer atividade que demande um esforço
maior de preparação, de leitura, de reflexão e de interpretação é sumariamente despre-
zada, porque impossível de ser compreendida em toda a sua plenitude/complexidade.
ÓCIO
A consolidação desse processo, especificamente em relação aos aspectos for-
mativos sensoriais e estéticos que a experiência lúdica pode promover, isto é, a sua Um dos fenómenos culturais mais antigos de que temos registro, durante a longa
progressiva substituição por tais vivências eletronicamente mediadas, gera uma história da humanidade, o ócio, assume diversas feições e significados origina-
banalização do lazer que passa a ser concebido como mero entretenimento pela dos de um tempo e lugar e pelas ações e relações humanas neles construídas.
Para compreendê-lo temos de percebê-lo em sua historicidade, apanhá-lo em movi-
mento, enxergá-lo como uma expressão dos diferentes modos de vida constituídos e
T cujos valores e normas envolviam a submissão ao poder do Estado e respeito aos
seus representantes.É nesse contexto que,segundo Munné (l980),o ócio assume um
como manifestação cultural que, permeada por valores e sentidos específicos, acaba aspecto recreativo, de divertimento de massa, deixando de ser um modo de vida para
por assumir características próprias, definindo-se como uma experiência destacada relacionar-se com descanso, recreação e meditação, formas de recompensa e prepa-
das demais atividades humanas. Somente assim, através da história, e recorrendo a ração para o próprio trabalho. Torna-se, assim, um tempo reservado à sua própria
ela, é possível apreender quais as tendências postas hoje para a vivência do ócio na ocupação, à medida que são inaugurados também novos modelos de diversão e pas-
sociedade contemporânea.
satempo, embalados pelas lutas sangrentas travadas nos circos violentos da antiga
Uma das primeiras manifestações do ócio pode ser vista na Grécia Antiga, onde Roma. Percebe-se, então, que neste momento, o ócio ganha uma feição instrumental,
aparece como um valor nobre, atitude inseparável de um modo de vida contemplati- uma vez que se buscava afirmar o poder e a misericórdia do Imperador mediante a
vo, ligado ao exercício da filosofia e da política, o que lhe dá lugar na composição do promoção de uma diversão violenta e dotada de um caráter controlador, que acaba
ideal educativo do período: a Paidéia. Do grego, ócio deriva de scholé, que significa gerando a brutalização dos indivíduos. Dessa maneira, o ócio, que até então signifi-
um estado de paz, de fruição criadora, condição para a sabedoria. Os cidadãos, isto é, cava liberdade, ainda que exclusiva para determinadas camadas sociais, converte-se
os homens considerados livres, eram aqueles que desfrutavam da vida na polis, já amplamente na própria não-liberdade.
que dispunham de todo o tempo social para dedicar-se ao incremento das capacida- Com a difusão do cristianismo e a queda do Império Romano, ao ócio são arti-
des humanas em si mesmas. Entretanto, a vivência desse estado de liberdade propor- culadas ideias ainda mais complexas e diferenciadas. Ao lado do ócio popular, que
cionado pelo ócio, ao passo que possibilitava uma ação intelectual destinada ao continua existindo como possibilidade de descanso e festa, ainda que supervisiona-
aprimoramento do espírito na sua forma pensante e a busca por valores supremos da pela aristocracia feudal e pelo clero, surge uma classe ociosa, nova significação
como o bem, o belo, a verdade, a justiça, a temperança e o bem-viver, supunha a isen- atribuída ao ócio, porém aliada a um espírito lúdico classista e a um estilo de vida
ção do trabalho, atividade considerada penosa, desprezível, menor ante a hierarquia cavalheiresco (MUNNÉ, 1980). A vivência dessa dimensão social pressupunha, de um
do universo, portanto, um serviço de escravos. Nesse sentido, embora a democracia lado, a abstenção do trabalho e, de outro, o cultivo de atividades livremente escolhidas,
ateniense represente a realização de uma grandiosa experiência cívilizadora em que como a guerra, a política, as justas e batalhas medievais, a religião e a ciência, de forma
o cultivo do ócio era uma virtude, por outro lado, a conservação dessa vida contem- que a dedicação às essas atividades passa a indicar elevada posição social, tanto pela
plativa significava a dominação, exclusão e domesticação de muitos que ali viviam e conotação negativa que o trabalho volta a assumir, quanto pela diferenciação de classe
produziam, com o seu trabalho, a existência de todos, pessoas às quais era reservada garantida por uma vida de ociosidade. Segundo Munné (1980), esse tempo gasto com
a tarefa exclusiva da servidão, com predomínio do trabalho tipicamente corporal. um "nada fazer produtivo" passa a representar riqueza e poder uma vez que o exercício
Como se observa, neste contexto, o ócio é expressão de uma experiência particular e de atividades improdutivas era sinal de que dispunham de todo o tempo para o apri-
demonstrativa da classe dos homens livres e representa, portanto, a liberdade possi- moramento e a exibição de suas habilidades e caprichos, o que leva ao entendimento do
bilitada pelo não-trabalho numa sociedade escravista verticalmente estratificada. ócio como ociosidade. Observa-se, assim, que a ostentação do próprio tempo livre e dos
Com a decadência da polis ateniense e a construção do Império Romano, as seus passatempos converte-se em sentido para o ócio, ou seja, ele conquista um signifi-
experiências relacionadas ao ócio são transformadas, alterando profundamente a sua cado em si mesmo, colaborando para uma nova redistribuição vertical do tempo soci-
inserção e expressão na sociedade. Se na Grécia Antiga o ócio era a antítese do traba- al, que passa a acompanhar, como demonstrativo de nobreza pessoal e familiar, a estra-
lho, em Roma, ele se configura num tempo liberado deste para o descanso da alma e tificação estabelecida pelo sistema socioeconômico.
a recreação do espírito (MUNNÉ, 1980). Para tanto, o trabalho deixa de ter uma feição De outro lado, como observa Werneck (2000), na Idade Média foram difundi-
negativa como antes e passa a representar dignidade, o que possibilita tanto ao ócio dos também conhecimentos, valores e normas respaldadas na existência de um Deus
como ao trabalho constituírem o modo de vida do homem completo. É que a conju- único, soberano, criador e castrador. Tanto é que as doutrinas pedagógicas do perío-
gação e o equilíbrio entre otium (ócio) e nec-otium (não-ócio, ou seja, negócio) do, baseadas numa concepção essencialista de homem, atribuíam à educação papel
e a conversão do ócio à atividade meio e do trabalho à atividade fim, tornam-se con- disciplinar, na tentativa de que os indivíduos não se deixassem corromper pelos pra-
dições fundamentais para a manutenção de uma sociedade obediente e mercenária, zeres da carne e pelo apego aos bens materiais, uma vez que a visão social de mundo
predominante na época pregava o reencontro humano com a sua verdadeira origem (LAFARGUE, 1999, p. 77). Entretanto, a despeito dos consistentes argumentos desenvolvi-
o reino celeste. Para isso, deveriam eles se dedicar à elevação do seu pensamento a dos pelo autor quando mostra que, diante dos modernos meios de produção, não havia
Deus e, conforme a dicotomia corpo/alma ou matéria/espírito que parece nos acom- necessidade de mais de três horas de trabalhos diários, podendo os trabalhadores, no
panhar desde aquele tempo, tudo que dizia respeito à vida na terra era entendido restante do tempo, dedicarem-se à preguiça, o que acaba prevalecendo, até pela neces-
como pernicioso e devastador do código moral pregado nas santas Escrituras, já que sidade de consumo das mercadorias geradas pelas crises subsequentes de superprodu-
esta - a vida na terra - não significava outra coisa senão, justamente, o exílio dos ção, é mesmo a restrição da atividade humana criadora à mera produção das suas con-
homens, o castigo e a punição resultante do pecado original. Nesse sentido, as dife- dições materiais de existência. E, no que se refere ao ócio, fica limitado, cada vez mais, a
rentes formas de ocupação do tempo, como o trabalho corporal, as festas, jogos, raras possibilidades de vivência cultural não circunscritas às normas e valores estima-
espetáculos, danças e comemorações, representavam um perigo à purificação da dos pela razão instrumental e pela lógica produtiva que se configurava.
alma e um desvio dos homens do caminho que os levaria ao encontro de Deus. Por É, então, a partir desse entendimento que encontramos a experiência do ócio
isso, à noção de ócio são associadas apenas as práticas relacionadas à contempla- confundida, já no Brasil, com a vagabundagem, o vício, a delinquência e a criminali-
ção, à oração e à elevação do espírito, porém, controladas e disciplinadas pela Igre- dade. Ao longo do século XIX e início do século XIX, observa-se em toda a Europa e
ja. Assim, retomando Werneck (2000), o ócio ganha um sentido de lícito, permiti- também no Brasil um processo de urbanização, modernização e industrialização
do, concedido, sendo o termo latino licere aquele que melhor representa a das suas maiores cidades, acompanhado ideológica e culturalmente do aburguesa-
manifestação do ócio nesse contexto.
mento da sociedade. Esse movimento, que promovia mudanças nas relações de tra-
A Reforma Protestante, o Renascimento e o amadurecimento do pensamento balho e diversão, bem como alterações profundas nos estilos de vida, hábitos, com-
liberal imprimiram novos contornos à manifestação do ócio. Munné (1980) salienta portamentos, significados culturais, implicou sobre a configuração do ócio uma
que, nos inícios do século XVIII, os homens de negócio vêem-se pressionados pelas atividade presente na vida cotidiana. Associado a um modo de vida ultrapassado,
ideias puritanas e pela necessidade de se dedicarem às indústrias em expansão, re- herdado da tradição colonial e preservado como um hábito relativo ao dia-a-dia nas
vestindo a existência do ócio de coloração assistencial, passando a ser vivenciado fazendas, passa a ser questionado e sua presença submetida às novas exigências da
pelas esposas, pelos filhos e pelos empregados vitalícios como expressão de ativida- produção e do progresso. Quem melhor demonstra as características assumidas pelo
des sociais, domésticas, passatempos moderados com aparência de dever, demons- ócio como vício e libertinagem ainda sob o capitalismo mercantil da Inglaterra pré-
trando que esses não eram vagos, e sim que estavam plenamente ocupados com um industrial é Thompson (1998). Segundo o autor, enquanto os homens detiveram o
tempo, embora nada lucrativo, mas dotado de alguma utilidade importante. Werneck controle de sua vida produtiva, o padrão de trabalho admitia e alternava momentos
(2000) também nota que a doutrina protestante impelia os homens a se entregarem de atividade intensa e de ociosidade. Entretanto, com o avanço da ética protestante e
inteiramente ao trabalho e às "boas obras", evitando o consumo supérfluo, as tenta- da internalização da disciplina do trabalho, o tempo torna-se uma mercadoria de-
ções degradantes da capacidade produtiva dos homens, bem como a vadiagem e os masiado preciosa para ser subestimada, de modo que os ritmos irregulares do traba-
prazeres pessoais. É nesse sentido que o ócio é confundido com preguiça, e essa é lho tiveram como resposta "a severidade das doutrinas mercantilistas quanto à ne-
identificada como "pecado capital". cessidade de manter os baixos salários para prevenir o ócio" (THOMPSON, 1998, p. 289).
Mas é, sem dúvida, de Lafargue (1999) a leitura mais original da ocorrência do Além disso, o autor revela a poderosa retórica tecida em torno do ócio e dos males
ócio ao longo do século XVIII e XIX. Tecendo críticas severas ao que ele chama de "dog- por ele causados ao trabalho e à formação social dos trabalhadores, trazendo à tona
ma ou religião do trabalho", que levava centenas de trabalhadores ao esgotamento de as intenções de tal discurso: condenar o gasto de tempo com passeios, compras, fes-
suas forças! físicas vitais, rebela-se contra o trabalho sacrossantificado pelos padres, tas, funerais, horas de sono e estimular o aumento do tempo e do ritmo de trabalho.
economistas e moralistas representantes da burguesia nascente - isto é, o trabalho No Brasil, é no final do século XIX e início do século XX que, buscando alcan-
alienado, insalubre, superexplorado - e invoca o "direito à preguiça" como possibilida- çar o posto das sociedades mais desenvolvidas do mundo, desenvolveu-se um proje-
de de libertação do proletariado francês da tortura, da prisão e da miséria, visando ao to de controle social que procurou banir as experiências não correspondentes à ma-
desenvolvimento das suas capacidades humanas em si mesmas, o que lhe permite nutenção da ordem e da disciplina necessários à lógica do trabalho no capitalismo
compreender que o ócio é uma atividade que "faz a vida bela e digna de ser vivida' nascente. É quando ao ócio são atribuídos valores como desordem, improdutividade,
debilidade corporal e perda de tempo. Como um hábito não circunscrito à esfera da Sabemos que o tempo livre e todas as atividades nele contidas compõem uma
utilidade e estranho aos padrões de comportamento culturalmente dominantes, o dimensão da vida humana em que a racionalidade produtiva penetra, se estende e se
ócio torna-se inadequado à sociabilidade da família burguesa e à formação moral perpetua, dificultando, cada vez mais, o efetivo exercício de ser livre. Ao passo que
dos novos trabalhadores, os quais passavam a assumir uma tarefa crucial no proces- assume uma nova conotação na vida cotidiana moderna, tendo seu sentido submeti-
so de produção e no desenvolvimento social almejado. Desse modo, o indivíduo do aos interesses do mercado e às forças hegemónicas do capital globalizado, abre
ocioso era identificado com vadio e, como tal, criminoso. Aquele que não tivesse uma espaços cada vez menores para a expressão dos verdadeiros desejos e necessidades
atividade económica regular e que, por isso, ficasse a vagar pelas noites das cidades, humanas. Quanto ao ócio, se suas possibilidades de expressão estão contidas em rá-
estava sujeito à aquisição de vícios destruidores do caráter, da higiene, dos bons cos- pidos e esporádicos momentos de não-liberdade, cujos significados e práticas tam-
tumes, da capacidade produtiva e da civilidade. Relacionando-se com o crime e com bém não se coadunam com aqueles incentivados pela sociedade atual, é possível ca-
a delinquência, o ócio torna-se inconciliável com o ideal de formação humana con- racteriza-lo, portanto, como uma expressão típica do mundo pré-capitalista, embora
veniente à racionalidade produtiva que orientava as relações de poder e dominação. persistente entre nós como uma idéia-força capaz de resgatar experiências anterio-
Percebe-se, então, que ele se configura numa prática incompatível com os códigos e res e formas de sociabilidade perdidas no tempo, mas que ainda permanecem no
significados valorizados pela ideologia em ascensão, de modo que todo tempo "deso- imaginário social. Dessa forma, a explicitação dos valores e dos significados cultu-
cupado" passa a ser entendido como possibilidade de subversão e, portanto, como rais alusivos à ordem social em vigor, que acabaram por subsumi-lo a uma série de
uma ameaça à ordem estabelecida. Aos poucos, as diferentes estratégias de combate novas atividades lúdicas - de recreação, de lazer -, aponta para uma tendência na
ao ócio que foram surgindo o conduziram a experiências clandestinas e improvisa- qual o ócio caminha para o seu completo esvaziamento, ainda que continue vivo na
das nas poucas horas de tempo livre que restavam aos trabalhadores, ocasionando memória coletiva por muito tempo. As indicações deixadas por Heller (2000), quan-
quase que a sua completa desaparição. do se refere à emergência e ao declínio dos valores que, ao longo da história, decor-
rem do estágio em que se encontram numa determinada sociedade, permitem com-
Esse é justamente o momento em que o ócio é substituído ou, pelo menos, in-
preender que, depois de perder o sentido para as relações sociais estabelecidas, o
corporado e suprimido por um conjunto de novas atividades lúdicas e recreativas
ócio pode não ter sido inteiramente aniquilado, mas só existe como possibilidade,
que passo a chamar, então, de lazer (MARCASSA, 2002). Isso significa que, a partir de
esperando ser novamente descoberto.
então, a tendência colocada para a manifestação do ócio como uma experiência pre-
sente, viva e significativa entre as esferas da vida cotidiana é de esvaziamento ou Mesmo assim, e apesar do destaque que vêm ganhando as apologias feitas ao
mesmo de extinção. Essa explicação parece ganhar consistência à medida que a raci- ócio na atualidade (DE MASI, 2001), não vislumbro para o futuro uma sociedade ba-
onalidade moderna e a lógica produtiva vão se tornando hegemónicas, atribuindo ao seada no ócio e nem acredito no ócio criativo como a grande saída para a libertação
tempo livre um caráter económico, mercantil, metódico, rígido e contabilizado, cuja humana em relação ao trabalho penoso e desumanizante. O trabalho, como princí-
máxima "tempo é dinheiro" acaba por transformar a experiência do ócio numa prá- pio ontológico, continua sendo o eterno metabolismo social entre o homem, a natu-
tica sem qualquer indicativo de valor. No entanto, observando a nossa realidade atu- reza e a produção cultural. Porém, é preciso que o trabalho deixe de ser fonte de
al, veremos que, embora espremido entre outras obrigações e atividades, com aspec- alienação para se transformar em fonte de realização humana, mudança essa que
to fugaz e cada vez mais esporádico, o ócio continua a se manifestar entre nós. Isso pode abrir ao ócio e ao tempo livre em geral uma gama enorme de possibilidades
porque, segundo Heller (2000), as diferentes esferas da vida cotidiana - a organiza- para a promoção e o enriquecimento humanos. E se experiências como o ócio já não
ção do trabalho e da vida privada, o lazer e o descanso, a atividade social sistematiza- correspondem à realidade de hoje é porque a cultura é dinâmica mesmo e as necessi-
da, o intercâmbio e a purificação - são heterogéneas e hierárquicas, variando com a dades humanas já ultrapassaram a própria capacidade de reação que o ócio, diante
estrutura social. Ou seja, determinadas esferas da cotidianidade podem ser valoriza- dos modos de vida constituídos, ainda pode demonstrar. De fato, não é de uma socieda-
das ou desvalorizadas de acordo com a situação geral da sociedade ou conforme a de baseada no ócio que precisamos, mas de uma forma de organização social em que
penetração da ideologia sobre o modo de ser e viver de indivíduos e grupos. Parece liberdade e necessidade sejam conjugados não segundo um arranjo funcionalista em
ser isso o que acontece com a manifestação do ócio hoje, mas em que medida ele vem que o tempo livre subsiste como manutenção do trabalho e reprodução social, muito
se materializando efetivamente em nossa sociedade? • menos acreditando que é possível resgatar a criatividade proporcionada pelo ócio

[Óciol 171
num trabalho que aliena e brutaliza, mas quando trabalho e tempo livre responde- antigo do Brasil nesse género. Eles ainda se subdividem em parques locais, regionais
rem às reais necessidades e interesses de todos.
e destinos:
• Os locais podem estar localizados em praças, praias e shoppings, ou seja, em
Luciana Marcassa locais de grande circulação de pessoas. Nesses tipos de parques, normalmente, há
Bibliografia
um tempo de permanência curta dos visitantes entre l e 5 horas aproximadamente.
DE MASI, Domenico. A economia do ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2001.
Sua área é limitada e normalmente são fechados. Ex: O parque da Xuxa, em São
HELLER, Agnes. Cotidiano e história. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
Paulo, localizado dentro de um shopping.
LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Editora da UNESP; Hucitec, 1999.
• Os regionais geralmente são afastados dos centros urbanos e recebem não
MARCASSA, Luciana. A invenção do lazer: educação, cultura e tempo livre na cidade de São só a população local, mas visitantes de regiões adjacentes, principalmente nos finais
Paulo (1888-1935). Goiânia: Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, 2002. (dis-
sertação de mestrado). de semana e feriados. Possuem um número maior de atrações e, por isso, o tempo de
permanência dos visitantes é maior que nos parques locais, podendo chegar até a
MUNNÉ, Frederic. Psicossociología dei tiempo libre: un enfoque crítico. México: Tríllas, 1980.
um dia. São normalmente ao ar livre, a extensão de sua área é média. No Brasil, o
THOMPSON, Edward Palmer. Tempo, disciplina do trabalho e o capitalismo industrial. In: Costumes
em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Hopi Hari e o Wet and Wild, em Vinhedo/SP, são exemplos.
WERNECK, Christianne Luce Gomes. Lazer, trabalho e educação. Belo Horizonte: Editora da UFMG;
• Os parques denominados destinos ocupam mais do que um dia do visitante
CELAR.2000. e possuem um número maior de atrações do que os regionais. Atraem visitantes de
locais com distâncias maiores que 160 quilómetros ou duas horas de distância. Tendo
em vista o tempo maior de permanência de seus visitantes, esse tipo de empreendi-
mento depende dos meios de hospedagem. Por isso é comum os parque se localizarem
PARQUES próximos a redes hoteleiras ou mesmo como partes de resorts. Os parques de Walt
Disney, em Orlando, são exemplos (SALOMÃO,2000; WERNER; BOITEUAX, 2002).
São áreas extensas e delimitadas, podendo ter áreas verdes, com finalidade lúdica, educa- A Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR), órgão do governo federal, apre-
cional e cultural. Tendo em vista a principal finalidade, a vivência do lúdico, os parques sentou - em um de seus estudos - uma classificação de Parques Temáticos, dividin-
têm sido denominados genericamente de "parques de diversões", por possuírem dife- do-os em específicos, aquáticos e parques de diversões. Nesse estudo, ao caracterizar
rentes equipamentos denominados "atrações", que variam desde os tradicionais "roda os parques brasileiros, aponta que "os parques temáticos ou de diversão fixos se utili-
gigante", "carrossel" e "montanha russa", até os equipamentos em que são utilizadas zam de temas diferenciados na ambientação física de suas atrações e têm como um de
modernas tecnologias mecânicas, elétricas, eletrônicas e informatizadas. seus objetivos mercadológicos o estímulo 'a atividade turística (1998, p. 160)." Essa de-
Não existe um consenso entre os autores nem entre as diversas organizações finição se aplica aos parques de entretenimento com temas e personagens específicos.
sobre a classificação quanto aos tipos de parques. A Associação Brasileira de Parques Salomão (2000, p. 80) critica a classificação da EMBRATUR, esclarecendo
de Diversões (ADIBRA) classifica os parques em fixos, aqueles com sedes perma- que há uma utilização equivocada do nome "Parque Temático" como rótulo geral
nentes, e móveis, parques itinerantes, que não possui uma sede num único local. para a definição desse mercado, em substituição ao mais adequado e abrangente,
Os parques de diversão fixos ainda podem ser classificados em: "Parque de Diversões". Completa o autor que, "mesmo sendo colocado o adjetivo
'específico' para identificar aqueles que, na verdade, possuem um tema", é uma
• Aquáticos: parques contendo piscinas, escorregadores, toboáguas, bóias, en-
classificação errónea.
tre outras atrações com o tema "água". Exemplos no Brasil; Wet'n Wild em SP e
Salvador, Beach Park em Fortaleza. Ao esclarecer o conceito de parques temáticos, Werner e Boiteuax (2002) subli-
nham que estes podem ser subdivididos em parques que possuem "personagem de
• Secos: aqueles que não apresentam atrações aquáticas (apesar de hoje já se conhecimento público", como a Disney World (EUA) e o Parque da Mônica (SP e
encontrar alguns parques secos que tenham atrações molhadas e vice-versa, sendo es- RJ), e aqueles que são baseados em "personagem vivo de forte presença na mídia",
tes denominados parques mistos). O Playcenterem São Paulo, capital, é o parque mais como o Parque da Xuxa (SP) e o Beto Carrero (SC e SP).
172
Os parques também podem ser analisados dependendo de outros fatores, como Atualmente, a cadeia de parques Walt Disney é a maior e mais lucrativa do mundo.
exemplifica Salomão (2000): Outras empresas também são importantes naquele país, como a Premier Parks,
- segundo o mixàe atrações (tipos de "brinquedos" oferecidos); a Busch Entertaiment, a Sea World, dentre outras.
- indoors ou outdoors (fechados ou ao ar livre); No Brasil, a instalação de parques temáticos, aquáticos e de diversões tem
- associados a outros empreendimentos (shoppings, resortsetc.). sido denominada de "indústria do entretenimento" ou "indústria de parques".
Essa indústria é recente aqui e o Estado de São Paulo lidera a oferta de parques. O
Existe ainda um tipo de parque, normalmente fechado, denominado de Fami-
Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDS), e os fundos de
ly Entertainment Center (FEC) ou Centro de Entretenimento Familiar. É um con-
pensão têm sido as mais importantes fontes de financiamento desse setor (BRUNO;
ceito recente, que surgiu nas últimas décadas, reunindo em um mesmo espaço várias
FRANZINO, 1999).
atrações para que toda a família pudesse se divertir. Esses tipos de parque normal-
mente são menores do que os outros, são indoors e oferecem equipamentos como A ADIBRA, fundada em 1989 por um grupo de empresários, tem o objetivo de
jogos eletrônicos, espaço de minigolf, bump-karts, boliches automáticos, brincadei- criar condições para que a indústria de parques se organize, se profissionalize e cres-
ras e jogos para crianças. No Brasil, a Estação Plaza Show, em Curitiba/PR é um ça no Brasil. Possui sede em São Paulo, capital, conta com 180 membros e com o
exemplo. Mas a Playland é o maior FEC do Brasil, criado pelo grupo Playcenter e apoio da International Association ofAmusement Parks and Aííracftons(IAPPA),
localizado sempre dentro de shooping centers. Segundo Trigo (2002), existem hoje a mais importante entidade internacional, com sede nos Estados Unidos. Na época
cerca de 50 playlands no Brasil. de sua fundação só existia um grande parque de grande porte no país, o Playcenter.
Com o apoio da ADIBRA e das linhas de crédito criadas pelos órgãos citados, vários
O surgimento dos parques é antigo. O primeiro parque foi o Baken, em Copen-
projetos de parques foram viabilizados.
hague, Dinamarca, criado em 1697. Mas o Tívoli, surgido também em Copenhague,
em 1843, é considerado o mais antigo e famoso parque do mundo, apontam Chon; Atualmente, segundo dados da ADIBRA, existem no Brasil 11 parques temáti-
Sparrowe (2003). Mesmo com essa origem europeia, foi nos Estados Unidos que os cos, 22 aquáticos, 30 de diversões, 27 móveis e 105 FECs.
parques se desenvolveram. Vários pontos positivos e negativos podem ser atribuídos aos parques de di-
As feiras, grandes exposições (no final do século XIX) e o desenvolvimento das versão. Quanto aos positivos, podem ser destacados, segundo Bruno; Franzini (1999):
empresas de transporte (início do século XX), principalmente as de bondes elétricos, o desenvolvimento turístico, económico e social da localidade, a geração de empre-
fizeram com que os parques de diversões tivessem um crescimento significativo na- gos, o investimento em infra-estrutura básica, trazendo conforto ao turista e benefi-
quele país. ciando a população local, e, ainda, opções de lazer para a comunidade.
Mas o marco dos parques foi a inauguração, na Califórnia, da Disneylândia, Um ponto positivo colocado pelas autoras que pode ser questionado é a não
em 1955. Walt Disney criou o primeiro parque temático do mundo a partir de per- exigência, pelos empresários, de parques da qualificação profissional de seus funcio-
sonagens de desenhos animados. Ao se inspirar no Tívoli, Walt Disney criou um nários. Com o crescimento do número de cursos técnicos e de graduação em Turis-
parque com uma série de cenários contíguos, onde as pessoas circulariam em teatros mo no País, bem como o surgimento dos cursos de graduação em lazer, não haveria
de imersão. O empreendimento foi considerado um sucesso. Seu criador utilizou con- motivo para se dispensar mão-de-obra especializada.
ceitos de sociologia, paisagismo, engenharia, tecnologia de comunicações, dentre ou- Quanto aos aspectos negativos, podem ser citados, segundo as autoras: a ne-
tros. Muitos empresários fracassaram ao tentar copiar a Disneylândia e sofreram gran- cessidade de grande capital, o alto custo dos equipamentos, as variações climáticas e
des perdas monetárias, mostra Salomão (2000). de sazonalidade, a atuação de muitos empresários de parques que desrespeitam as
Em 1971, Walt Disney inaugurou em Orlando, a Disneyworld, um complexo leis de proteção ao meio ambiente e ignoram o EIA/Rima (estudo de impacto ambi-
que conta hoje com quatro parques temáticos, três parques aquáticos, resorts tema- ental). A interferência na cultura, modificando os hábitos e costumes e o cotidiano

J
tizados e outras diversificadas atividades de lazer. Nesses parques, Walt Disney corri- da população local, também deve ser considerada aspecto negativo da instalação de
giu os erros do parque anterior e incluiu, mais uma vez de forma pioneira, o conceito parques. A utilização de formatos de empreendimentos que foram bem-sucedidos no
de fibras ópticas e sistemas computadorizados de grande porte. exterior não significa, necessariamente, que terá sucesso no Brasil. É necessário,
Os parques também podem ser analisados dependendo de outros fatores, corno Atualmente, a cadeia de parques Walt Disney é a maior e mais lucrativa do mundo.
exemplifica Salomão (2000): Outras empresas também são importantes naquele país, como a Premier Parks,
- segundo o mixde atrações (tipos de "brinquedos" oferecidos); a Busch Entertaiment, a Sea World, dentre outras.
- indoors ou outdoors (fechados ou ao ar livre); No Brasil, a instalação de parques temáticos, aquáticos e de diversões tem
sido denominada de "indústria do entretenimento" ou "indústria de parques".
- associados a outros empreendimentos (shoppings, resortsetc.).
Essa indústria é recente aqui e o Estado de São Paulo lidera a oferta de parques. O
Existe ainda um tipo de parque, normalmente fechado, denominado de Fami- Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDS ), e os fundos de
ly Entertainment Center (FEC) ou Centro de Entretenimento Familiar. É um con- pensão têm sido as mais importantes fontes de financiamento desse setor (BRUNO;
ceito recente, que surgiu nas últimas décadas, reunindo em um mesmo espaço várias
FRANZINO, 1999).
atrações para que toda a família pudesse se divertir. Esses tipos de parque normal-
A ADIBRA, fundada em 1989 por um grupo de empresários, tem o objetivo de
mente são menores do que os outros, são indoors e oferecem equipamentos como
criar condições para que a indústria de parques se organize, se profissionalize e cres-
jogos eletrônicos, espaço de minigolf, bump-karts, boliches automáticos, brincadei-
ça no Brasil. Possui sede em São Paulo, capital, conta com 180 membros e com o
ras e jogos para crianças. No Brasil, a Estação Plaza Show, em Curitiba/PR é um
apoio da International Assodation ofAmusement Parks andAttractionsilAPPA),
exemplo. Mas a Playland é o maior FEC do Brasil, criado pelo grupo Playcenter e
a mais importante entidade internacional, com sede nos Estados Unidos. Na época
localizado sempre dentro de shooping centers. Segundo Trigo (2002), existem hoje
cerca de 50 playlands no Brasil. de sua fundação só existia um grande parque de grande porte no país, o Playcenter.
Com o apoio da ADIBRA e das linhas de crédito criadas pelos órgãos citados, vários
O surgimento dos parques é antigo. O primeiro parque foi o Baken, em Copen-
projetos de parques foram viabilizados.
hague, Dinamarca, criado em 1697. Mas o Tívoli, surgido também em Copenhague,
em 1843, é considerado o mais antigo e famoso parque do mundo, apontam Chon; Atualmente, segundo dados da ADIBRA, existem no Brasil 11 parques temáti-
Sparrowe (2003). Mesmo com essa origem europeia, foi nos Estados Unidos que os cos, 22 aquáticos, 30 de diversões, 27 móveis e 105 FECs.
parques se desenvolveram. Vários pontos positivos e negativos podem ser atribuídos aos parques de di-
As feiras, grandes exposições (no final do século XIX) e o desenvolvimento das versão. Quanto aos positivos, podem ser destacados, segundo Bruno; Franzini (1999):
empresas de transporte (início do século XX), principalmente as de bondes elétricos, o desenvolvimento turístico, económico e social da localidade, a geração de empre-
fizeram com que os parques de diversões tivessem um crescimento significativo na- gos, o investimento em infra-estrutura básica, trazendo conforto ao turista e benefi-
quele país. ciando a população local, e, ainda, opções de lazer para a comunidade.
Mas o marco dos parques foi a inauguração, na Califórnia, da Disneylândia, Um ponto positivo colocado pelas autoras que pode ser questionado é a não
em 1955. Walt Disney criou o primeiro parque temático do mundo a partir de per- exigência, pelos empresários, de parques da qualificação profissional de seus funcio-
sonagens de desenhos animados. Ao se inspirar no Tívoli, Walt Disney criou um nários. Com o crescimento do número de cursos técnicos e de graduação em Turis-
parque com uma série de cenários contíguos, onde as pessoas circulariam em teatros mo no País, bem como o surgimento dos cursos de graduação em lazer, não haveria
de imersão. O empreendimento foi considerado um sucesso. Seu criador utilizou con- motivo para se dispensar mão-de-obra especializada.
ceitos de sociologia, paisagismo, engenharia, tecnologia de comunicações, dentre ou- Quanto aos aspectos negativos, podem ser citados, segundo as autoras: a ne-
tros. Muitos empresários fracassaram ao tentar copiar a Disneylândia e sofreram gran- cessidade de grande capital, o alto custo dos equipamentos, as variações climáticas e
des perdas monetárias, mostra Salomão (2000). de sazonalidade, a atuação de muitos empresários de parques que desrespeitam as
Em 1971, Walt Disney inaugurou em Orlando, a Disneyworld, um complexo leis de proteção ao meio ambiente e ignoram o EIA/Rima (estudo de impacto ambi-
que conta hoje com quatro parques temáticos, três parques aquáticos, resorts tema- ental). A interferência na cultura, modificando os hábitos e costumes e o cotidiano
tizados e outras diversificadas atividades de lazer. Nesses parques, Walt Disney corri- da população local, também deve ser considerada aspecto negativo da instalação de
giu os erros do parque anterior e incluiu, mais uma vez de forma pioneira, o conceito parques. A utilização de formatos de empreendimentos que foram bem-sucedidos no
de fibras ópticas e sistemas computadorizados de grande porte. exterior não significa, necessariamente, que terá sucesso no Brasil. É necessário,
assim, adaptar tais empreendimentos à nossa realidade, à cultura local, como foi 0 Bibliografia
caso do Wet and Wildem Salvador, observam as autoras. BRUNO, P. L.; FRANZINI, R. X. G. Os parques temáticos e a indústria do entretenimento. In: ANSARAH,
É importante destacar, ainda, outros aspectos negativos, como a grande formação M.G.R. (Org.) Turismo: segmentação de mercado. São Paulo: Futura, 1999.
de lixo, de sucatas em que se transformam os equipamentos quando esses empreendi- BOITEUX, B.; WERNER, M. Promoção, entretenimento e planejamento turístico. Série Turismo,
mentos não dão certo e vão à falência, trazendo outras agressões ao meio ambiente. São Paulo: Aleph, 2002.
CHON, K.; SPARROWE, R. Hospitalidade: conceitos e aplicações. São Paulo: Thomson Learning, 2003.
Mesmo sendo empreendimentos privados, outro ponto a ser questionado é a forma
de cobrança de ingressos e a obtenção do lucro pelos empresários desse setor. Muitos EMBRATUR. Estudo Econômico-financeiro dos meios de hospedagem e parques temáticos no
Brasil. FADE-UFPE, Brasília: 1998.
parques brasileiros, além do ingresso de entrada, têm cobrado pela utilização de seus equi-
SALOMÃO, M. Parque de diversões no Brasil: entretenimento, consumo e negócios. Rio de Janeiro,
pamentos, principalmente quando a pessoa é estudante e, por lei, tem direito a 50% de
Mauad (Coleção Cultura e Consumo), 2000.
desconto na entrada. Diversos parques aquáticos, também, somente liberam o uso de bói-
TRIGO, L.G. Viagem na Memória: guia histórico das viagens e do turismo no Brasil. São Paulo,
as e colchões infláveis após o pagamento de taxas extras. Nesses, ainda, se cobra pelo uso
2. ed., Editora do SENAC, 2002.
de armários no vestiário. Outras reclamações dos visitantes dizem respeito ao preço do
www.adibra.com.br, acesso em 15/10/2003.
estacionamento e alimentação no local. Os preços tendem a ser elevados, principalmente
nos parques regionais, afastados dos centros urbanos, em que os visitantes não têm ou-
tras opções próximas e dependem desses serviços ao visitar o parque.
Salomão (2000, p. 67) aponta, ainda, alguns pontos criticados por alguns teóri-
PLANEJAMENTO
cos que vêem os parques corno "momentos de extrema fragilidade e vulnerabilidade
intelectual dos visitantes que, ao rebaixarem seu senso crítico, acabam por absorver De maneira geral, o ato de planejar faz parte da rotina diária. Planejamos as ações a
informações das mais variadas fontes sem o devido questionamento". Isso criaria, ser desenvolvidas ao longo do dia, da semana, do mês. Estamos, a cada momento,
segundo alguns teóricos, uma visão distorcida da realidade desde a infância precoce, planejando como realizar a próxima tarefa ou atividade, seja no ambiente residenci-
evidencia o autor. Os parques da Disney são os mais criticados, por constituírem uma al, profissional, político, afetivo e, até mesmo, nos momentos de lazer.
poderosa força do imperialismo cultural norte-americano que distorcem a realidade
Inicialmente, o termo planejamento indica a ideia de se fazer algo para que se
tanto histórico-temporal quanto geográfica dos Estados Unidos. Salomão (2000, p.
possa implantar e colher os resultados no futuro. Para tanto, precisamos compreen-
67) considera os parques da Disney como "uma doença social, maquiavelicamente
der a necessidade de intervenção em uma dada realidade, seja para ampliar, modifi-
criada com fins de domínio comercial e cultural". Mesmo nos Estados Unidos,
muitos acreditam que os parques podem provocar a distorção da realidade histó- car ou melhorar os resultados previstos.
rica através de suas atrações, que mostram "os fatos como deveriam ter sido" e não Considerando a produção de conhecimentos sobre o assunto, encontramos di-
como "realmente foram". Isso ocorreu no Estado de Virgínia, quando a população versas aplicações para o termo planejamento. Esse tema vem sendo estudado por
local repeliu a ideia da criação de um parque Disney que contaria a história da inúmeras áreas, tais como administração, economia, geografia e turismo, dentre ou-
guerra civil americana. A sociedade local não aprovou o projeto do parque, pois tras, cada uma analisando e entendendo o planejamento conforme lhe convém.
ficou temerosa que houvesse distorção dos fatos importantes dessa parte da histó- Ruschmann (1996, p.66) afirma que o "planejamento, de forma geral, consiste
ria (SALOMÃO, 2000). em um conjunto de atividades que envolvem a intenção de estabelecer condições
Esse debate relembra, segundo Salomão (2000), o grande debate que ocorreu favoráveis para alcançar objetivos propostos."
sobre os males da televisão. Talvez a presença de um profissional do lazer com for- Assim, o planejamento implica, fundamentalmente, a ideia inicial e continu-
mação universitária consciente desses aspectos e de muitos outros pudesse desen- ada de um projeto, sobre como ele ocorrerá, e sobre quais os impactos gerados a
volver o senso crítico e criativo dos visitantes, sem deixar de lado o prazer de usu- partir das iniciativas propostas, em termos de resultados concretos. O planejamento
fruir essa organização de lazer. é também fruto de uma ideia com base no cenário atual e no ideal que se pretende
Olívia C. F. Ribeiro alcançar.
Sua elaboração é complexa. Para planejar, é necessário ter um diagnóstico pre-
Já o planejamento tático compreende os mecanismos que serão necessários
ciso sobre as condições holísticas do ambiente. Sua orientação é influenciada por
para que sejam atingidos os objetivos propostos no planejamento estratégico. As ati-
diversas variáveis, como tempo, espaço geográfico, recursos, gestão.
vidades são organizadas para a execução em médios prazos. Na hierarquia organiza-
Autores da geografia apresentam o conceito de planejamento da paisagem (lan- cional, os planejamentos táticos ocorrem nos níveis de gerência ou coordenação, con-
dscape planning), que surgiu em 1949 na conferência da União Internacional para a forme o organograma institucional. Em geral, na administração, é mais comum
Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais-IUCN (TURNER, 1983; apud PIRES, encontrarmos profissionais com habilidades táticas do que estratégicas. O domínio
1993). Nesse aspecto da paisagem, os especialistas distinguiram escalas de abordagem, do cenário mais amplo é restrito a poucos decisores.
utilizando os termos planejamento visual (amenity planning), planejamento local e
O planejamento operacional acontece no nível hierárquico organizacional
planejamento de sítio para propriedades pequenas; e planejamento físico e planeja-
de supervisão. É onde está, geralmente, o maior número de funcionários-colabora-
mento paisagístico para regiões com forte conotação conservacionista. (PIRES, 1993).
dores da organização, seja no ramo de produção ou prestação de serviços. É o dia-a-
O planejamento sustentável ganhou maior relevância nas discussões acerca do
dia da empresa. Ocorre em prazos curtos, bastante reduzidos. É como planejar a or-
património natural e em menor escala, inicialmente, do património histórico-cultu-
dem de importância das atividades e realizá-las conforme sua urgência e necessidade.
ral. A preocupação com a preservação e conservação patrimonial fez com que algu-
A organização, o ordenamento e a execução das tarefas diárias acontecem a partir de
mas iniciativas fossem repensadas, no intuito de poder realizar uma exploração me-
um planejamento operacional.
lhor, mais consciente e duradoura desses recursos, tanto por parte do turismo como
pela iniciativa privada, pelo setor público e por demais envolvidos. O planejamento No campo da administração, muitas são as empresas que elaboram seus pla-
pode contribuir sobremaneira para evitar danos ambientais, buscando o equilíbrio nejamentos com base na chamada "qualidade total", um mecanismo de sobrevivên-
entre os recursos envolvidos, como o meio ambiente natural, o meio ambiente modi- cia das organizações. Os processos administrativos ocorrem, em muitos casos, com
ficado e os valores socioculturais da comunidade, garantindo a preservação do pa- base nessa teoria. Cabe lembrar cinco dimensões constituintes da qualidade:
trimónio em questão para as gerações seguintes. - qualidade: é a qualidade intrínseca do produto/serviço;
Há ainda outras aplicações para o termo planejamento nas diversas ciências. No - custo: é a preocupação com o custo para executar o produto/serviço e com o
campo da administração, o planejamento pode ser realizado em três níveis: estratégico, preço de venda;
tático e operacional. Cada um desses níveis tem uma amplitude diferenciada. - atendimento ou entrega: é a dimensão da qualidade total referente à entrega
O planejamento estratégico tem origem no contexto militar. Mas, antes disso, no prazo certo, no lugar certo e na quantidade certa (logística);
houve o conceito de planejamento de longo prazo, em que Fayol já descrevia a impor-
- moral: preocupação com a ambiência do ser humano, como ambiente de tra-
tância da variável tempo no processo de planejamento. Entretanto, o tempo não é o
balho dos funcionários;
único elemento que interfere no planejamento, pois outras variáveis também são con-
sideradas em sua composição. Assim, a expressão "planejamento estratégico" expres- - segurança: integridade física das pessoas, internas ou externas à organização,
sa melhor a necessidade de elaborar estratégias para o melhor aproveitamento dos tanto na execução do trabalho como na utilização dos produtos/serviços da organização.
recursos existentes, em virtude do resultado que se espera alcançar. No contexto mi- É comum na contemporaneidade ouvirmos falar sobre "qualidade total". As
litar, estratégia é um termo entendido como a aplicação de forças em larga escala organizações buscam continuamente aprimorar, aperfeiçoar e adaptar seus produ-
contra o inimigo (PETROCCHI, 1998). tos e serviços às necessidades dos clientes, demandas e exigências do mercado e da
Petrocchi (1998), considerando o conceito empresarial, define estratégia como legislação. No contexto da "qualidade total", existe uma forma de sistematizar essa
um conjunto harmonioso e integrado de objetivos que são de importância funda- problemática. Trata-se do ciclo PDCA, cujas iniciais representam: Plan, Do, Check,
mental para a sobrevivência satisfatória, e em longo prazo, de uma organização. Action. Também conhecido como ciclo de Shewhart ou ciclo de Deming, dado a expressi-
Em suma, o planejamento estratégico é elaborado no mais alto nível hierárqui- va atuação do estatístico W. Edwards Deming no campo da administração. Deming afir-
co organizacional, compreendendo, geralmente, as mais importantes decisões, defi- mava que 85% dos problemas organizacionais são de responsabilidade da administração,
nindo objetivos gerais e trabalhando com longos prazos. enquanto somente 15% são dos funcionários, já demonstrando a necessidade e impor-
tância do planejamento para o sucesso e a sobrevivência das organizações.
í [DICIONÁRIO CRITICO pó LAZER!
O ciclo de Deming funciona com quatro fases e oito etapas, podendo ser visua- POLÍTICAS PÚBLICAS
lizado conforme o quadro a seguir:
A expressão "políticas públicas" somente pode ser entendida ao fazermos uma in-
FASE ETAPAS DESCRIÇÃO OBJETIVO cursão pelo significado dado ao termo "política". A política, nos diversos enfoques
que pode ter, seja como ciência ou arte, teoria ou prática, no senso comum ou na
1 Identificar o problema Definir c reconhecer sua
importância linguagem dos especialistas, refere-se ao exercício de alguma forma de poder, com
2 Observação Pesquisar características de suas múltiplas consequências. Contudo, relacionar a palavra política apenas ao
(P) PLAN- PLANEJAR forma ampla exercício do poder não designa a totalidade de sua abrangência. É necessário refle-
3 Análise Descobrir as causas tir sobre o que é exercer poder. Em poucas palavras, poderíamos afirmar que é um
fundamentais
processo pelo qual um grupo de pessoas, cujas opiniões ou interesses são a princí-
4 Plano de Ação Estudar plano para bloquear as pio divergentes, toma decisões coletivas que se tornam regras obrigatórias para o
causas
grupo e se executam de comum acordo.
(D) DO -FAZER
5 Ação Bloquear as causas fundamentais
Essa definição traz elementos que requererem uma análise à parte para apre-
6 Verificação Checar se bloqueio foi efetivado endermos a ideia. Em primeiro lugar, pressupõe que a definição dos objetivos de um
(C) CHECK VERIFICAR
? 0 bloqueio foi feito? Sim, prosseguir, Não, voltar à grupo, ou de uma sociedade, apresenta uma diversidade de opiniões. Dessa forma, será
etapa 2.
pela mediação dos conflitos, das divergências, quando não há consenso, que a política
7 Padronização Para evitar a repetição do aparecerá. Em segundo lugar, a política se relaciona com a maneira que as decisões
(A)ACTION-ATUAR problema
coletivas são tomadas, que pode ser pela persuasão, pela negociação, pela imposição ou
Refletir sobre o processo.
Considerar anomalias pendentes pelo estabelecimento de um mecanismo que leve à tomada da decisão final. A persua-
8 Conclusão e planejar trabalho futuro. são é a possibilidade de convencer todos sobre os méritos das propostas; a negociação
(In: Petrocchi, 1998)
implica um acordo entre opiniões díspares, na qual uma das partes cede às demandas
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: 2001.
de seus adversários. Qualquer dessas alternativas de tomada de decisão coletiva é pou-
co edificante, pois subentende a decepção ou o sacrifício de princípios para obtenção
Em japonês, kaisen - melhoria contínua - é o objetivo maior da qualidade de vantagens políticas. A imposição implica um regime de exceção, quando as vontades
total, que ocorre com o ciclo PDCA. são exercidas pela coerção, pelo uso da força. Por fim, há o estabelecimento de um me-
Quando falamos de planejamento, não podemos desconsiderar, portanto, a im- canismo de tomada da decisão final que pode ser exercido pelo voto democrático, por
portância de prever os impactos causados com a utilização, apropriação e explora- assembleias populares ou, ainda, pela participação ativa da população em todas as ins-
ção dos recursos existentes, quer na esfera administrativa, laborai, geográfica, ambi- tâncias deliberativas, de um grupo ou de uma sociedade. Em terceiro lugar, uma vez
ental, turística, financeira, quer em todas possibilidades existentes. O planejamento adotada uma decisão, esta será considerada legítima pelo grupo em questão e ado-
deve buscar a sustentabilidade dos recursos, sejam ambientais, humanos, financei- tada como policy, programa de ação, distinguindo-se do termo politics, que em
ros ou outros, evitando sua extinção e garantindo a permanência e a perpetuação da geral é usado no sentido de política como dominação. Em quarto lugar, embora a
atividade na esfera que lhe for compatível. política seja inconcebível sem autoridade, pois na prática existe a necessidade de
impor as regras estabelecidas pelo grupo àqueles elementos que não as aceitam,
Daniel Braga Hubner fazendo-os as cumprir, essa faceta da política é detestável para as ideologias anar-
Fontes bibliográficas quistas e para algumas tendências do marxismo que pregam o fim da política ou o
de uma sociedade sem Estado.
PETROCCHI, Mário. Turismo: planejamento e gestão. Futura, São Paulo: 1998.
PIRES, Paulo dos Santos. Procedimentos para análise da paisagem na avaliação de impactos Dadas essas quatro características do exercício do poder ou da definição da
ambientais. In: Maia,2.ed.,PIAB, 1993. política, poderemos concluir que no mundo moderno o cenário principal desse
RUSCHMANN.DorisVandeMeene. Turismo e planejamento sustentável Campinas: Papirus, 1996. exercício seja o Estado, já que ele é a autoridade mais compreensiva que podemos
encontrar e, certamente, a instituição com maior capacidade de influenciar pela per- Assim, podemos conceituar política pública como toda atividade política que
suasão ou pela negociação, ou de estabelecer mecanismos de tomada de decisão fi- tem como objeto específico assegurar, mediante a intervenção do Estado, o funciona-
nal. Assim, muitos analistas relacionam a definição de política à ação do Estado. mento harmonioso da sociedade, suplantando conflitos e garantindo a manutenção do
Segundo Ribeiro (l998, p. 25),"em toda a sociedade há mecanismos estabe- sistema vigente. A princípio, entendeu-se que esta ação se dava prioritariamente direci-
lecidos, através dos quais as decisões públicas são formuladas e efetivadas. Na lin- onada as classes menos favorecidas da sociedade, contudo, a partir da forma interven-
guagem comum, diríamos que toda sociedade tem alguma espécie de governo [...]". cionista assumida pelo Estado, foi possível interpretá-las como políticas pensadas para
Claro que há diferentes tipos de governo e, consequentemente, de Estado no mun- atingir todas as camadas sociais. Obviamente, há modelos de Estado que tendem ao
do moderno. Podemos concluir, então, que o Estado moderno (sujeito ativo) nasce liberalismo e outros que tendem a um Estado mais coletivista e socializante.
da institucionalização do poder exercido sobre os cidadãos (sujeitos passivos). Além No Brasil, por se tratar de um país sob os moldes federativos, no qual há auto-
disso, o Estado moderno se estabeleceu como forma de romper e superar o Estado nomia política e ideológica entre as unidades da federação, as políticas públicas, às
absoluto (no qual quem mandava era o rei - soberano - que era obedecido pelos vezes, assumiram determinada direção ideológica na esfera nacional e outra nas es-
seus súditos).
feras estadual e municipal. Observando a história dessas políticas em território na-
O Estado moderno se estabelece numa sociedade dividida em classes. Nessa so- cional, veremos que já existiu, e talvez esteja presente hoje, Estado sob os moldes
ciedade, a classe que possuir maior poder financeiro, ideológico ou político proporá as liberal, neoliberal, social democrata e sob um modelo híbrido, que congrega formas
normas sociais. Mediante essa afirmação é possível pensar que há outras formas de distintas de democracia (representativa e participativa).
exercer o poder, além do político. Bobbio (1992,p.955) diz que "parece mais apropriado O entendimento do campo do lazer na qualidade de uma política pública, neces-
o critério de classificação das várias formas de poder que se baseia nos meios que serve sariamente, implica o enfrentamento das tensões causadas pela adoção de diferentes
o sujeito ativo para determinar o comportamento do sujeito passivo". modelos ideológicos de Estado que nem sempre ficaram transparentes. Outro ponto de
Com base nesse critério, Bobbio (1992) afirma que há três grandes classes de fundamental importância para quem vai se debruçar sobre os estudos de políticas pú-
um conceito amplo de poder: o poder económico, o poder ideológico e o poder polí- blicas de lazer no Brasil é tomar conhecimento de que, muitas vezes, há um delinea-
tico. O poder económico é exercido por quem detém os meios de produção, podendo mento teórico que sustenta a ação que não é condizente com a prática em questão.
através da posse desses bens determinar o comportamento de quem se encontra em As políticas públicas de lazer no Brasil podem ser consideradas como campo
condições menos favoráveis. O poder ideológico baseia-se na influência de ideias, de estudo (reflexão) ou como atividade exercida por autoridades ou agente social e
carregadas de valores, formuladas e difundidas por meio de certos processos. E o pelo Estado (intervenção). O lazer como política de intervenção, na realidade brasi-
poder político, que, no caso do Estado moderno, é exercido por aquela classe que leira, surgiu a partir do início do século XX, conforme afirmam Amaral (2001) e
conseguir deter os "aparelhos de estado", para usar uma expressão de Gramsci (1980). Marcassa (2002), quando se referem, respectivamente, à criação dos Jardins de Re-
Numa sociedade de desiguais, como a sociedade moderna, essas três formas de po- creio em Porto Alegre e dos Centros de Recreio em São Paulo.
der são usadas para mante-la.
Getúlio Vargas, na década de 1930, adotou a corrente mais ortodoxa do positi-
Entendendo que o Estado moderno é composto de diferentes instituições que vismo, criando o Estado Novo. O objetivo da sua política moderna era incorporar o
lhe dão forma, devemos pensar o que o Estado faz. Genericamente, podemos afirmar proletariado à sociedade, por meio de medidas de proteção ao trabalhador e sua famí-
que o Estado faz três tipos de coisas: elabora as leis, administra os negócios públicos, lia. Tal orientação teve rapidamente suas ações práticas no campo trabalhista da previ-
e aplica a lei a casos particulares. Temos, de forma simplificada, o funcionamento dência social e sindical, bem como alicerçou políticas de lazer. A orientação das políti-
dos três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. O Estado moderno, desde sua cas públicas de lazer, daquele período em diante, alicerçou-se no liberalismo.
concepção, tem servido a interesses de determinada classe social. Na sua criação, Na década de 1970, durante o regime militar, além de o lazer ganhar espaço,
esteve fortemente ligado ao liberalismo político, ou seja, podia intervir na sociedade como política de intervenção, ganha força também como disciplina académica. Po-
a fim de garantir limitações, por exemplo, da autoridade dos patrões sobre os empre- rém, foi após a abertura política da década de 1980 que o lazer aparece como prática
gados, em relação às práticas de manipulação predatória do mercado. A este tipo de e como campo de estudo com conotações emancipatórias. Neste período, pela pri-
ação do Estado moderno denominou-se "políticas públicas". meira vez, a Constituição brasileira (1988) considera em sua letra de lei o lazer como
E"? rr*T.->T^T.i f.—
uma política pública. Diz a carta no Capítulo II, Dos Direitos Sociais, no art. 6°, que ainda carece do desenvolvimento de estudos comparativos sobre os diferentes modelos
"são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, de gestão, dos investimentos públicos e sua aplicação, dos impactos sociais dessas polí-
a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desam- ticas, da coerência entre discurso e ação, da dimensão da representação individual do
parados, na forma desta Constituição" (BRASIL, 2002, p. 12, grifo nosso). No Título lazer e o impacto que pode ter sobre a construção coletiva dessas políticas.
VIII, Capítulo III, da Educação, da Cultura e do Desporto, na Seção III, do Desporto, o Por fim, cabe salientar que muitos textos divulgados, que se denominam estu-
lazer é tratado no art. 217, § 3°, da seguinte forma: "É dever do Estado fomentar dos de políticas públicas de lazer, não desmerecendo seu valor, são relatos de ex-
práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um observado: [...] periências de gestão, os quais não podemos caracterizar como análise científica.
O poder público incentivará o lazer, como forma de promoção social" (BRA- Silvia Cristina Franco Amaral
SIL, 2002, p. 132, grifo nosso).
A partir dessa atenção ao lazer, muitos governos (de diferentes esferas) dedica-
ram atenção especial à temática. A Frente Popular tem valorizado, principalmente Bibliografia
em seus discursos, o lazer como uma política pública de enorme relevância social, AMARAL, S. C. Políticas públicas de lazer e participação cidadã: entendendo o caso de Porto
contudo, como o modelo de Estado adotado é híbrido, ou seja, congrega duas formas Alegre. Tese (Doutorado), Campinas: Unicamp, 2003.
de democracia: representativa e participativa. Há uma acentuada valoração da parti- AMARAL, S.C. Espaços e vivências de lazer em Porto Alegre: da consolidação da ordem burguesa à busca
cipação da população no processo de concepção, operacionalização e acompanha- da modernidade urbana. CBCE. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 23, n. l,p. 109-123.

mento das políticas públicas e, assim, o que ocorre é que as demandas por políticas AZEVEDO, J.M.L.A Educação como política pública. Campinas: Autores Associados, 2001.
públicas de lazer, em geral, estão sempre em último lugar, quando aparecem. BOBEIO, N., MATTEUCI, N. e PASQUINO, G. Dicionário de política. 5a ed.: Brasília:UNB e SP: Im-

Além disso, com a abertura política, houve uma onda de denúncias contra o prensa Oficial, 2000, v. I-II.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de. outubro de 1988.
modelo de Estado Providência. Os "novos" políticos culparam os direcíonamentos
Obra Coletiva da Editora Saraiva com a colaboração de António Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina
dados as ações do Estado, durante os períodos anteriores, pela sua falência e apre-
Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. São Paulo: Saraiva, 2002.
sentaram como alternativa a adoção do modelo neoliberal. No campo analítico das GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
políticas públicas, autores como Afonso (2000) e Azevedo (2001) afirmam que o Es- . Maquiavel, a política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
tado demonstrou uma falsa expansão das políticas públicas sociais no momento que LAFARGUE.P. O direito à preguiçado Paulo: HUCITEC.Unesp, 1999.MARCASSA,Luciana.A in-
aparentam andar juntos neoliberalismo e Estado mínimo, contudo esses mesmos venção do lazer- educação, cultura e o tempo livre na cidade de São Paulo (1888-1935). Disser-
autores dizem que nunca o Estado foi tão forte e interventor. Em consequência, como tação (Mestrado). Goiânia: UFG, 2002.MARCELLINO,N. Lazer e esporte: políticas públicas. Campi-
em todos os setores das políticas públicas tal expansão não se traduziu num aumen- nas: São Paulo: Autores Associados, 2001.
to de investimento, mas sim no aumento do poder do Estado como regulador das MILLER.David.Httric/opédiaíie/pemamientopo/írico.Alianza, 1987.
práticas ditas descentralizadoras. O resultado é que há pouco investimento estatal e MORAES,R. Brasil, política. Estruturas, conjunturas e conjecturas.Campinas: IFCH.Unicamp, 1999.
muito controle sobre os negócios da iniciativa privada. No campo do lazer, o Estado ROJEK.C. Capitalism and leisure. New York, USA: TavistockPublication, 1985.
se desresponsabiliza sobre as políticas públicas diretas, contudo, ele estabelece leis STIGGER, M. P. Administração de parques públicos e democracia: um estudo de caso na área de
de incentivo fiscal, investimentos diretos em empreendimentos privados.Cresce o la- políticas públicas para um lazer numa perspectiva democrática. Rio de Janeiro: Mestrado em
zer como mercadoria de consumo e como entretenimento. Educação Física, Universidade Gama Filho, 1992.

Observando o terreno dos estudos sobre políticas públicas de lazer no Brasil,


podemos notar o crescimento dessas produções na década de 1990 e início do século
XXI. Muitas pesquisas foram realizadas, em especial, sobre a atuação de administra- POLÍTICA DE LAZER
ções municipais, na sua maioria sobre o modelo de Estado pautado na democracia
participativa (o que denominei modelo híbrido, anteriormente). No geral, esses estu- A combinação dos dois vocábulos, "política" e "lazer", conceitualmente, resulta im-
dos se detêm em uma análise do caráter ideológico das políticas. É um campo que possível já que o primeiro representa um conjunto de princípios e pressupostos os
quais, inexoravelmente, levam ao controle, enquanto o segundo tem na liberdade administrativa do local onde essa experiência de desenvolve determinará as altera-
uma de suas premissas essenciais. ções necessárias, tanto na sua concepção como na sua implementação.
Numa perspectiva filosófica, o termo política, quando identificado o seu sig- Considerando-se os limites de qualquer taxonomia ao tratar do lazer, para fins
nificado isoladamente, pode representar desde a doutrina de direito e da moral, pas- meramente didáticos, o setor público deverá ter uma política bastante distinta da
sando pela teoria do Estado, pela arte ou pela ciência do governo ou, ainda, pelo estu- iniciativa privada. Por sua vez, o chamado "terceiro setor" - no lazer representado
do dos comportamentos intersubjetivos (ABBAGNANO, 1998). pelos clubes social-recreativos ou mesmo pelo sistema "S" - SESC, SESI, SEST, etc. -,
Do ponto de vista político, o significado clássico e moderno de política é deri- embora de natureza privada, em maior ou menos escala, uma política de lazer pode-
vado do adjetivo originado de polis (politikós), pertinente à cidade, por extensão ao rá sofrer mudanças, sempre de acordo com a filosofia de trabalho e os objetivos e
urbano, civil, público, sociável e social (BOBEIO et ai, 1999). metas adotados. Assim também o Estado.de acordo com a sua orientação ideológica,
Quando analisado pela vertente da administração, campo do conhecimento no formulará princípios e diretrizes de ação que resultarão em modos distintos como a
qual habitualmente mais se aplica ao tratar do lazer, política pode ser entendida como experiência de lazer será vivenciada tanto nas cidades como no ambiente rural.
um processo de fundamental importância na tomada de decisão, seja no planeja- Principalmente a partir da década de 1980, tem se constatado uma preocupa-
mento, na organização, na direção, seja controle das ações voltadas para determina- ção crescente na formulação de políticas de lazer no Brasil, especialmente no setor
do objetivo a atingir.
público. Apesar de ainda incipiente, na maioria das vezes essas políticas de lazer são
No campo do lazer, as políticas são geradas para estabelecer padrões de deci- formuladas e não implementadas, representado muito mais uma"carta de intenções".
são, aplicando-os aos tipos de situações semelhantes ou mesmo orientando outras Quando são formulados, habitualmente não resistem aos mínimos critérios de pere-
situações consideradas singulares. nidade, particularmente quando da transição de governo - no caso do setor público
Uma política de lazer não nasce num "vácuo". Ela é fruto da compreensão e (mesmo quando um mesmo partido político se mantém no poder!) - ou de mudan-
assunção de determinada filosofia a qual interpreta a sociedade e as relações que ça de uma gestão para outra, caso de clubes social-recreativos.
nela se estabelecem. A partir desse marco filosófico que determinados princípios são Com raras exceções, na iniciativa privada, se existe uma política de lazer, não é
estabelecidos, visando gerar diretrizes orientadoras, as quais são expressas por meio divulgada, dada a própria natureza do "segredo de negócio". Os casos conhecidos
de regulamentos com a finalidade de se atingir determinados objetivos e metas pre- também sofrem dos males antes mencionados, de se "reinventar a roda" a cada mo-
estabelecidas.
mento, rechaçando-se as experiências anteriores sem o mínimo critério de avaliação
Portanto, políticas podem ser consideradas como guias para a ação e não a e controle das ações anteriores. A política de lazer na iniciativa privada, independen-
ação em si, assim como geram caminhos para atingir determinados objetivos, não temente do porte ou natureza do empreendimento, mantém tão-somente algumas
sendo objetivos em si. Logo, as políticas são maneiras de agir, baseadas em princí- diretrizes gerais, as quais, muitas vezes, longe de ser aplicadas, habitualmente não
pios para a tomada de decisões que resultam em ações que conduzirão com maior são adequadamente comunicadas aos níveis hierárquicos mais baixos, fragilizando-
êxito aos objetivos em vista (Jucius, SCHLENDER, 1972). se, dessa forma, a relação "empresa/cliente". Dada a crescente aproximação dos pro-
Quando aplicadas no campo do lazer, dada a tensão contraditória desses ter- cedimentos administrativos em todas as áreas de prestação de serviços, indepen-
mos já no início mencionada, compreende-se na atualidade que a aplicação dos me- dentemente da origem pública/privada, ainda é muito comum no Brasil encontrar
canismos propostos no quadro de formulação e implementação de políticas deve ter prefeituras, clubes, no sistema "S" e nos "negócios do ócio" (iniciativa privada) sem
a finalidade educativa na perspectiva humanista e emancipatória, particularmente saber claramente aonde se deseja chegar em termos de objetivos a curto, médio e
numa sociedade desigual como a nossa, em que ainda se sobrevaloriza o trabalho, as longo prazos, demonstrando um ativismo aprofundado, fazendo-se muito, planejan-
obrigações, a produtividade e o consumo, independentemente do locus em que essa do-se pouco e avaliando-se quase nada!
experiência lúdica é vivenciada.
A complexidade do construto lazer, sua abrangência e diversidade contribuem
Se a natureza dos elementos constituintes de uma política pode ser gene- para o não estreitamento da distância entre a formulação e a implementação de políti-
ralizada a qualquer ambiente em que o lazer ocorra, certamente a característica cas nesse campo da vivência humana. É, porém, a partir desse paradoxo (convivência
86 [DICIONÁRIO .CHÍTICO nr> r.av-FHl
entre o controles a liberdade) que urge aproximação do conhecimento da área, Já no campo dos projetos sociais, os reflexos do conhecimento sistematizado
na maioria das vezes gerado nas universidades com as intervenções propiciadas nessa área ainda são ténues. Isso acarreta a proposição de ações empreendidas, na
pelas inúmeras agências fomentadoras do lazer. maior parte das vezes e apesar das melhores intenções, sem uma análise criteriosa
das condições para a consecução mais eficaz dos objetivos almejados e sem preocu-
António Carlos Bramante pação com a utilização mais eficiente dos recursos destinados ao projeto. Além disso,
por transposição das técnicas aplicadas aos projetos de investimento, existe um viés
economicista em muitas das metodologias utilizadas para a condução dos projetos
Bibliografia na área social.
Algumas agências de cooperação e alguns autores procuraram desenvolver e
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
divulgar a metodologia de planejamento e gerência de projetos que fossem instru-
BOBEIO, Norberto et ai. Dicionário de política. 12. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1999.(vol.2). mentos úteis e facilmente aplicáveis a projetos sociais. Merecem destaque dois exem-
plos que, em certo sentido, se aproximam. De um lado, a GTZ, agência de cooperação
JUCIUS.Michael.SCHLENDER.William. Introdução à administração. São Paulo: Atlas, 1972.
internacional do governo alemão, desenvolveu o método ZOPP (das iniciais de Zie-
lorienterte Projektplanung, em alemão, que significa "planificação de projetos ori-
entada para objetivos"); quase ao mesmo tempo a USAID desenvolveu um instru-
PROJETO mento semelhante por nome Logical Framework (Estrutura Lógica). Ambos
oferecem conceitos e uma abordagem prática úteis para a formulação de projetos
Origina-se da palavra inglesa project, que significa projeto, plano, intento, empreen- sociais, contendo elementos e instrumental que também contribuem para a gerência
dimento. No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, projeto é entendido como da implementação e da avaliação. Tanto o ZOPP como o Logical Framework se auto-
"ideia que se forma para realizar algo no futuro". dassificam como instrumentos de gerência de projetos (DEUTSCHE, GESELLSCHAFT, 1993).

É um esforço temporário e único empreendido para alcançar determinado ob- O Marco Lógico é um instrumento muito útil para a elaboração, análise e ge-
jetivo. É um produto ou serviço único, não repetitivo e que envolve uma previsão, ao renciamento de projetos. É um método se construção coletiva dos principais parâ-
metros de um projeto - objetivos gerais, objetivo do projeto, resultados imediatos,
mesmo tempo, a um certo grau de incerteza na sua realização (PMBOX, 2000).
atividades, indicadores e premissas. O Marco Lógico baseia-se no método científico
Temporário significa que tem um início e um fim, ou seja, com duração prefi-
de pesquisa social, estruturando os projetos sobre uma cadeia de hipóteses sobre
xada, delimitada. Único, porque, mesmo tendo elementos repetitivos, não muda sua relações de causa e efeito envolvidas no enfrentamento da problemática em questão.
condição exclusiva por qualquer razão.
Cresce a cada dia o número de organizações de lazer (nas áreas de cultura,
Segundo o PMBOX (2000), um projeto termina quando seus objetivos propos- turismo, esporte etc.) que realizam sua ação e obtêm recurso por meio de projetos.
tos são alcançados, diferentemente das operações continuadas (não projetos) que Cresce também o número de instituições que financiam projetos de lazer com fins
são trabalhadas contínua e repetitivamente, sem previsão definida de término. É um sociais, oferecem capacitação e prestam assessoria na área. Por outro lado, o próprio
trabalho normalmente realizado por pessoas que vão consumir horas, estão limita- nível de exigência geral quanto à qualidade da ação é, hoje, maior do que nunca. É
das por prazo, custos e escopos e precisam ser planejadas, programadas e controla- notável também o interesse recente da opinião pública e da mídia sobre projetos so-
das sob a égide da eficiência. cioculturais. Por isso tudo, torna-se fundamental, para as atividades de lazer, inter-
Nas últimas quatro décadas, houve amplo desenvolvimento de metodologias venção organizada com melhores possibilidades de atingir seus objetivos.
que subsidiam o planejamento, a gestão e a avaliação de projetos de investimento Numa época em que os recursos destinados à área social são escassos e as
empresarial, que alcançou, inclusive, complexos modelos matemáticos. O PMBOX é demandas são, em contrapartida, elevadas, a exigência de uma gestão eficaz, eficiente e
uma dessas metodologias de gerenciamento de projetos considerada como a fórmu- efetiva dos projetos e programas sociais torna-se categórica. Para isso, no entanto,
la para o sucesso dos projetos mercadológicos. é necessário o desenvolvimento de uma cultura voltada para a elaboração e o
monitoramento.que compreenda tais processos não apenas como instrumentos de de- determinados previamente (PNUD). Monitores y evaluación orientados a Ia obtención de
finição de metas e acompanhamento de cronograma e fluxo de caixa, com vista à cap- resultados." (Manual para los administradores de programa. Nueva York, 1997, p. 99).
tação de recursos e posterior prestação de contas aos financiadores, mas sim como - "Projeto é um conjunto ordenado de recursos e ações para obter um propósito
excelentes ferramentas de aperfeiçoamento no processo de tomada de decisão da ges- definido. Esse propósito será atingido em um tempo e com um custo determinado." (OIT.
tão dos projetos. Nesse sentido, a atenção das agências financiadoras tem se voltado Guia básicapam lapreparaáón de perfiles de proyectos. (Buenos Aires, 1991,p. 6).
para a efetividade das ações, e não apenas para a eficiência e a eficácia no cumprimento - "Um projeto é uma tarefa inovadora que possui um objetivo definido, deve ser
das metas. Importa saber se, além de uma utilização eficiente dos recursos, as ações con- cumprida em um determinado período, em uma região concreta e para um grupo de
tribuíram para uma mudança positiva na situação-problema enfocada pelo projeto. beneficiários e procura resolver problemas específicos ou melhorar uma situação . A
Todo projeto tem como resultado a prestação de serviços específicos ou a pro- principal tarefa é capacitar as pessoas e as instituições para trabalhar com indepen-
dução de determinados bens. Portanto, quando se pensa em projeto, pensa-se tam- dência e resolver autonomamente os problemas surgidos ao terminar a fase da ajuda
bém em planejamento. Mas em que um projeto se diferencia de outros tipos de pla- externa. (GTZ: ZOOP resumido. Eschborn, s.f., p. 2).
nejamento, como o planejamento estratégico de uma organização? - "Um projeto é um conjunto autónomo de investimentos, atividades, políticas
Um projeto deve ser visto como o instrumento pelo qual a organização im- e decisões institucionais ou de outra natureza, desenhado para atingir um objetivo
plementa sua gestão estratégica. Portanto, as mudanças e os aprimoramentos pos- específico de desenvolvimento em um período determinado, em uma região concre-
síveis e idealizados se concretizam na concepção e na execução dos projetos. Em ta e para um grupo predefinido de beneficiários, que continua produzindo bens e/ou
última instância, o conjunto de projetos é a "cara" da organização e de seus colabo- cumprindo serviços após finalizada a ajuda externa, e cujos efeitos permanecem após
radores, ou seja, o projeto traz a identidade para todos que dele participa (ANSOFF; terminada sua execução."(MAE-SECIPI. Metodologia de Ia evaluación de Ia Co-
MCDONNELL, 1993). operadón Espanola. Madrid, 1998, p. 97).

Projetos, portanto, não existem isoladamente. Eles só fazem sentido à medida Patrícia Zingoni
que fazem parte de programas e/ou políticas mais amplas. Isto é, tanto no setor público
como no setor não governamental, podemos identificar três níveis de formulação das
Bibliografia
ações: a) o nível dos grandes objetivos estratégicos de ação (a política), b) um nível
ANSOFF, H. Igor, MCDONNELL, Edward J. Implantando a administração estratégica. 2. ed. São Pau-
intermediário em que as políticas são traduzidas em linhas mestras de ações temáticas
lo: Atlas, 1993.
e/ou setoriais (programas); e c) o nível das ações concretas, delimitadas no tempo, no
BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO. Evaluación: una herramienta de gestión
espaço e pelos recursos existentes que possam realizar os programas e as políticas, ou
para mejorar el desempeno de los proyectos. [s.I.]: BID/Oficina de Evaluación, 1997. Mimeo.
seja, os projetos. A grande vantagem dos projetos é o fato de eles colocarem em práticas
COHEN, Ernesto; FRANCO, Rolando. Avaliação de projetos sociais. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
as políticas e programas na forma de unidades de intervenção concreta.
DEUTSCHE, GESELLSCHAFT Fur & Technische Zusammenarbeit. Planejamento de projetos orien-
Por fim, citaremos algumas definições de projeto encontradas na literatura e tado por objetivos. Método ZOPP, F. W Bolay; tradução Markus Brose, Recife, 1993.
em alguns órgãos de cooperação técnica. São apenas uma parte de um universo bem
GUIA do Conjunto do Conhecimentos de Projetos (PMBOX Guide). Edição 2000. Project Ma-
mais amplo, mas que, de uma maneira geral, seguem o conceito da ONU, de 1984:
nagement Institute, Four Campus Boulevard, Newtown Square, PA 19073-3299 EUA.
- "Um projeto é um empreendimento planejado que consiste num conjunto de
atividades inter-relacionadas e coordenadas para alcançar objetivos específicos den-
tro dos limites de um orçamento e de um período de tempo dados" (ONU, apud
COHEN; FRANCO, 1999, p. 85).
QUALIDADE DE VIDA
Outras definições:
- "Projeto é uma intervenção durante um prazo determinado que pressupõe Expressão amplamente utilizada a partir da década de 1980, quando se intensifica-
um conjunto de atividades planejadas e interrelacionadas para atingir objetivos ram as pesquisas relacionadas à questão da pobreza, da exclusão ao consumo e da

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desigualdade social em todo o planeta. As demandas que suscitam tal intensificação da militância católica, em ações humanitárias localizadas, principalmente, em pon-
provêm, em parte, de iniciativas governamentais, em face da necessidade de funda- tos nevrálgicos de concentração da pobreza no mundo.
mentar e estabelecer prioridades para a implantação de programas de políticas pú- Em 1990, a ONU criou, por meio de uma comissão destinada a mapear a questão
blicas, mas há que se considerar a importante participação das organizações do ter- da desigualdade social no mundo, o índice de Desenvolvimento Humano (IDH), esta-
ceiro setor (ONGs), que, além de também usar e demandar pesquisas dessa natureza, belecendo variáveis fixas, que vêm sendo validadas até hoje. Esse índice trata com as se-
têm importante papel na divulgação do tema, fazendo-o chegar com mais frequência guintes variáveis: educação, longevidade e renda. Em cada uma dessas variáveis inci-
às mídias e, a partir daí, ele é redimensionado em variados sentidos (polissemia). dem alguns indicadores, que costumam variar em razão de aspectos culturais e regionais.
Na década de 1990 essa polissemia já permite vários usos para o termo: fala-se A complexidade, a relatividade e a amplitude dos fatores que se podem relacionar
em qualidade de vida quando se debate o problema da cidadania, de como ela é afe- à pesquisa no campo da qualidade de vida tornam recomendável que se trabalhem
tada pela pobreza e pela miséria, nesse caso em sintonia com o mote das pesquisas e sempre com equipes interdisciplinares, seja para o planejamento, seja para o trabalho
programas humanitários. Fala-se de qualidade de vida quando se discute os serviços e de campo e, fundamentalmente, para a análise dos dados e informações obtidos.
os equipamentos que uma cidade ou província disponibiliza aos seus habitantes. Rela- No Brasil, foi no rastro do processo de democratização da sociedade desenca-
ciona-se o tema a vida saudável, qualidade de alimentação e nutrição, acesso de deter- deado a partir do final da década de 1970 que o debate sobre a qualidade de vida se
minado grupo ou sociedade a certos bens de consumo ou, mesmo, a espaços e produtos intensificou. A regionalização e a municipalização dos atributos políticos e administra-
destinados ao lazer, ao turismo ou ao consumo de bens culturais. tivos também contribuiu para que algumas administrações municipais começassem a
subsidiar seus planos da ação com metas relacionadas à ampliação da qualidade de
Frequentemente o uso da expressão qualidade de vida é associado a grupos
vida. Das referências genéricas do IDH/ONU, pensado originalmente para pesquisas de
dotados de aptidões especiais, tangenciando o tema da inclusão social. Nesse caso, o
grande porte, relacionado a países e macro-regiões, deriva o índice de Desenvolvimen-
debate se concentra na criação de programas relacionados ora a equipamentos que
to Humano Estadual (IDH-E), desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Económicas e
tornem possível a utilização do espaço urbano por pessoas portadoras de deficiências,
Sociais (IPEA), em nível nacional, e o índice de Desenvolvimento Humano Municipal
ora à expansão do mercado de trabalho e à questão da responsabilidade social e ética
(IDH-M), desenvolvido em São Paulo (Polis) e em Minas Gerais (Fundação João Pi-
empresarial, ora, ainda, à busca de constituir legislação em favor da inclusão social.
nheiro - FJP/MG), que amplia e particulariza certos indicadores, tendo como referên-
No campo da pesquisa em ciências sociais, o tema da qualidade de vida traz cia a escassez ou abundância de dados previamente disponíveis, as necessidades de
consigo uma inesgotável discussão sobre os mais adequados indicadores e variáveis alcance das pesquisas ou de seus objetivos. Esses índices foram elaborados, sobretudo,
a ser investigados, mas pode-se falar de um consenso quanto à necessidade de esta- a partir de dados secundários disponibilizados pela Fundação Instituto Brasileiro de
belecer índices capazes de nortear os estudos e também quanto à importância de Geografia e Estatística (FIBGE), no intuito de possibilitar leituras mais minuciosas das
combinar métodos quantitativos com métodos qualitativos de análise, dada a com- condições de vida das populações em diferentes territorialidades urbanas. Destacam-
plexidade do tema. Ademais, é importante destacar que o tema da qualidade de vida se assim, para efeitos informativos, os trabalhos desenvolvidos em Curitiba, São Paulo e
envolve a lida com inevitáveis imprecisões relativas aos prazeres, aos aspectos sim- em Belo Horizonte, por adotarem conceitos e metodologias diferenciadas.
bólicos que se acoplam ao consumo e aos hábitos, à flexibilidade dos usos dos espa- Curitiba foi a primeira cidade brasileira a desenvolver essa experiência. Seu tra-
ços e objetos disponíveis e à adaptabilidade do ser humano às situações que se lhe balho intitulado Medição do Nível de Vida da População de Curitiba data de
acometem, seja na condição individual, seja na coletiva. 1985, elaborado com dados de 1980. Foi implementado mediante convénio da Secretaria
Historicamente, antes mesmo de o tema ganhar sua atual denominação, a abor- de Estado de Planejamento (SEPL), do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de
dagem académica do problema da qualidade de vida remonta aos estudos e ensaios Curitiba (1PPUC) e do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Económico e Social
do Padre Lebret, na década de 1960. Desde então, a ideia de trabalhar em linhas quan- (IPARDES). O método utilizado foi o Genebrino ou das Distâncias, elaborado pela ONU
titativas e qualitativas já se fazia presente: o autor falava em pesquisar o nível de e adaptado à realidade brasileira. A partir dessa metodologia desenvolveu-se o índice
vida, usando métodos quantitativos e os estilos de vida, bem como referências Sintético do Nível de Vida e os índices parciais das diferentes necessidades da popu-
qualitativas. Esses estudos ligam-se historicamente aos trabalhos das pastorais e lação (alimentação, habitação, saúde, educação, transporte coletivo, entre outras).
Em São Paulo o Núcleo de Seguridade e Assistência Social da Pontifícia Uni- social (população com mestrado e doutorado). Esses trabalhos desenvolvidos em
versidade Católica (PUC) de São Paulo, com a participação de consultores e agentes Belo Horizonte têm como diferencial o cálculo de indicadores específicos, tais como
populacionais, sob orientação da Diocese de São Paulo, desenvolveu o Mapa, de Ex- os relativos à garantia de segurança alimentar, de acesso à assistência jurídica, de
clusão/Inclusão Social da cidade, em 1996. Para a configuração do Mapa foram ela- acesso à previdência social e outros. Essas informações estão mapeadas para toda a
borados índices de Exclusão Social Interdistrital (IEXI) e índices de Discrepância cidade, representando um verdadeiro Atlas Social da Cidade.
Interdistrital (IDI), conforme a distribuição diferenciada de autonomia, qualidade
Os índices relativos à qualidade de vida têm sido muito úteis aos estudos do
de vida, desenvolvimento humano e equidade da população dos 96 distritos em que
lazer e se aproximam cada vez mais desse campo, à medida que se torna cada vez
a cidade de São Paulo está dividida desde 1990.
mais importante considerar indicadores referentes ao tempo-livre, ou à medida que
Finalmente, em Belo Horizonte, foram desenvolvidos dois trabalhos a partir o lazer vai sendo associado à plenitude da prática da cidadania.
de parceria da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte com a Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC Minas). O primeiro, denominado índice de Quali-
Euclides Guimarães
dade de Vida Urbano de Belo Horizonte (IQVU-BH), procurou dimensionar e Vera Lúcia Alves Batista Martins
qualificar os serviços urbanos, públicos e/ privados, disponibilizados às 81 unidades
de planejamento, conceituadas como os diferentes espaços em que se dividiu a capi-
tal mineira, para fins de planejamento. Foram selecionadas 10 variáveis (abasteci- Bibliografia
mento, assistência social, cultura, educação, esportes, habitação, infra-estrutura, FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Condições de vida dos municípios de Minas Gerais - 1970,1980 e
meio ambiente, saúde, serviços urbanos e segurança) e 72 indicadores, totalizando 1991. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1996.
5.382 informações, que compõem o Banco de Dados do índice. Esse instrumento MARTINS, Vera Lúcia A. B. O indisfarçável peso da exclusão social: Mapa de exclusão social de Belo
está sendo utilizado para monitorar as políticas públicas da PBH, tais como o orça- Horizonte- MG - Brasil: instrumento de gestão de políticas sociais. In: PRIMERAS JORNADAS DE PO-
LÍTICAS SOCIALES DEL MERCOSUR. Anais... Buenos Aires - Argentina, mayo de 2000.
mento participativo ou a bolsa escola. Possibilita comparar as necessidades e carên-
NAHAS, MARTINS et ai: O índice de qualidade de vida urbana de Belo Horizonte: um processo de
cias desses diversos espaços mencionados, dimensionando os recursos a serem inves-
geração de indicadores sociais. In: Cadernos de Ciências Sociais - PUCMinas. Belo Horizonte, v. 5,
tidos em cada local. Em decorrência de seu caráter de instrumento destinado a
n. 8, dez. 1997, p. 88-109.
monitoramento de políticas públicas, será calculado periodicamente. Até o momento NAHAS, MARTINS, V. L. A. B. O índice de qualidade de vida urbana para Belo Horizonte: a elaboração
foi calculado duas vezes: em 1994, com dados de 1992 e em 1999 com dados de 1996. de um novo instrumento de gestão municipal. In: 19".ENANPAD - Encontro Nacional de Pós-Gradu-
O segundo trabalho desenvolvido na capital mineira foi o Mapa de Exclusão/ ação em Administração. Anais... João Pessoa, Paraíba, 1995.
Inclusão Social de Belo Horizonte, para as mesmas UPs já mencionadas. Esse mapa NAHAS, MARTINS et. ai. Q mapa da exclusão social de Belo Horizonte: metodologia de construção de
:onsta de três instrumentos: o primeiro, índice de Vulnerabilidade Social (IVS) que, um instrumento de gestão urbana. In: Ciências Sociais- PUC Minas, v. 7, n. 10, jul. 2000.

J partir de cinco dimensões de cidadania (ambiental, cultural, económica, jurídica e PELIANO, Ana Maria T. M.: O mapa da fome: subsídios à formulação de uma política de segurança

iegurança de sobrevivência), analisa o processo de exclusão/inclusão social da cida- alimentar. Documento de Política, n. 14-15,17. Brasília: IPEA/APLAN, 1993.

le. Cada uma dessas dimensões foi subdividida em variáveis e estas em 11 indicado- Polis. Soo Paulo: como reconhecer um bom governo? O papel das administrações municipais na
melhoria da qualidade de vida. n. 21. São Paulo: Publicações Polis, 1995.
'es qualitativos e quantitativos, que dimensionam a situação social da Urbe Belo-
lorizontina. O segundo instrumento, denominado índice de Assistência Social (IAS) PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO- PNUD* Desarrollo humano:
informe 1992. Colômbia: Tercer Mundo, vários anos.
irocura mensurar as políticas sociais destinadas a mitigar as situações de maior
RODRIGUES, Maria Cecília P. O desenvolvimento social nas regiões brasileiras. Rio de Janeiro: Ciência
xclusão social. É calculado a partir de oito indicadores georreferenciados que repre-
Hoje. v. 13, n. 76, p. 39-45-set. 1991.
entam os atendimentos dos serviços de política pública da cidade. Já o terceiro ins-
SIMÕES; NAHAS, MARTINS, ESTEVES: O índice de qualidade de vida urbano de Belo Horizonte- IQVU-
rumento, denominado Representações Especiais, caracteriza-se como símbolo mar-
BH como instrumento de gestão municipal: produção e elaboração de novos indicadores. In: Encontro
ante dos processos de exclusão (trabalho infantil, analfabetismo da população, Nacional de Produtores e Usuários de Informações Sociais, Económicas e Territoriais e III Con-
loradores de rua e população moradora em domicílios improvisados) e inclusão ferência Nacional de Geografia e Cartografia, v., l- 27-31 de Maio/1996- IBGE- Rio de Janeiro- Brasil.

) nn T.Ay.F.pl
SLIWIANY, Regina, índice sintético do nível de vida. Instituto Paranense de Desenvolvimento Eco- das consciências e dos saberes sobre o corpo e seus cuidados, sobre as práticas cor-
nómico e Social. Curitiba: IPARDES, 1987. porais e sua importância para a sociedade da época. Com o objetivo de educar as
SLIWÍANY, Regina M. Estatística Social -como medir a qualidade de vida. Curitiba: Araucária Cultural, 1987. novas gerações sobre os melhores hábitos para o alcance da saúde do corpo, a me-
SPOSATI, Aldaíza. Mapa da exclusão/inclusão social da cidade de São Paulo. São Paulo, EDUC, 1996. dicina social penetra o ambiente escolar e promove a sua higienização, alterando
IPARDES. Fundação Edson Vieira. Instituto Paranaense de Desenvolvimento Económico e Social: Me- as feições e atribuições da escola tradicional existente até então. Isso lhe confere
dição do nível de vida da população de Curitiba em 1980 - Curitiba, Abril/1987. nova responsabilidade diante do desejado progresso social, ideal que passa a fun-
LEBRET. Manual de encuesta social. Madrid: Rialp, 1961. damentar a direção pedagógica das atividades ali realizadas, agora transformadas
KING, Desmond. O Estado e as estruturas sociais do bem estar em democracias industriais avançadas. em instrumentos para o alcance do vigor físico, o aumento da capacidade de tra-
Novos Estudos. CEBRAP, n. 22, out. 1988. balho, o aprimoramento da raça, a higiene das mentalidades e a superação do ar-
CROCKER, David: Qualidade de vida e desenvolvimento: o enfoque normativo de Senn e Nusbaumm. caico, da indolência e da decadência moral.
LtfflNova.n.31,1993.
Nesse projeto de formação e intervindo sobre a saúde biológica e social da
população, a recreação já aparece como importante instrumento pedagógico, cuja
orientação era disciplinar o corpo no sentido de que, no tempo livre, não se flexibili-
zasse com a preguiça. Ela se configura como estratégia de controle dos tempos, espa-
RECREAÇÃO ços e práticas realizadas na escola, sobretudo nos momentos vagos entre as ativida-
des obrigatórias. Segundo Costa (1999, p. 183) "a finalidade explícita deste controle
Embora não seja a pretensão deste texto enfocar o debate sobre a recreação sob o do tempo era de não deixar margem à ociosidade. O ócio induzia à vagabundagem, à
prisma exclusivo da Educação Física, quando se busca apanhar seu desenvolvimento capoeiragem e aos vícios prejudiciais ao desenvolvimento físico e moral". Observa-
histórico, a relação intrínseca que estabelece com essa área se revela notoriamente. se, então, que a recreação era uma forma de "educação física", cujo intento era de-
Desse modo, é possível afirmar que a recreação é prima próxima da Educação Física. marcar o corpo higienizado e o corpo relapso do indivíduo colonial, demarcação essa
Alguns autores chegam a dizer que, no Brasil, o desenvolvimento de práticas recrea- que deveria constituir a subjetividade burguesa em formação.
tivas foi responsável pela criação dos cursos de formação profissional em Educação Na verdade, buscava-se disciplinar o tempo de modo que todas as atividades es-
Física no País (WERNECK, 2000; MELO, 2003). Talvez por isso seja ela uma das ativida- colares seguissem um ritmo lógico de funcionamento, desde a duração e a frequência
des mais reconhecidas no campo, embora também uma das mais polémicas, confu- do regime alimentar, as horas de sono, as atividades intelectuais e até mesmo o recreio.
sas e ardilosas. Assim, para compreendê-la, torna-se fundamental"fazer um passeio Além disso, cada uma dessas atividades era rigorosamente organizada, pois não se ad-
pela História, buscando percebê-la nos diversos aspectos em que pode ser focaliza- mitia desperdícios ou perda de tempo. Na perspectiva do máximo proveito e conveni-
da, bem como dos significados que a ela foram atribuídos, configurando seu conteú- ência, à recreação cabia "estimular o corpo e o espírito mediante a escolha seleta das
do e sua forma, sua realização, seu sentido e seu lugar na sociedade. brincadeiras, exercícios e distrações" (COSTA, 1999, p. 183). Por meio de atividades lúdi-
No Brasil, é possível dizer que a recreação está intimamente relacionada à pró- cas, jogos e exercícios ginásticos, os limites entre trabalho e tempo livre, obrigação e
pria história da educação, da escola e, especialmente, do ensino público primário. diversão eram tecidos e revestidos pelas noções de utilidade e recompensa, que come-
Sua ocorrência, porém, pode ser observada ao longo de todo o século XIX, contexto çam a ser forjadas pela prática da recreação e acionadas já nas primeiras lições da edu-
em que aparece como componente de um modelo educativo que ficou conhecido cação infantil. É o que afirma, mais uma vez, Costa (1999, p. 184): "a recreação deveria
:omo médico-higienista. Tal modelo disseminou ideias e programas a respeito da servir à recuperação das energias gastas no trabalho. [...] O ócio se inseria no circuito
saúde, da aquisição de hábitos higiénicos, da atenção sobre a infância e do bem- da obrigação. Também ele tinha que ser disciplinado, e dele só deveriam usufruir os
:star físico e moral, desenvolvendo um projeto de controle corporal da população que se submetessem ao trabalho". Desse modo, a dimensão utilitária de tempo e a
Jrasileira que visava modificar os comportamentos e os modos de vida herdados organização adequada das atividades recreativas, quando são assimiladas pela esco-
Ia tradição colonial. Essa ação educativa/corretiva invade o cotidiano doméstico, a la e pelo pensamento educacional, indicam que a recreação responde a interesses
:scola, as relações sociais, familiares e culturais, realizando uma profunda reformulação político-ideológicos importantes, uma vez que produz uma distinção racional das
obrigações profissionais, sociais, familiares, escolares e os diversos tipos de diversão, a importância sobre o jogo e a ginástica como componentes fundamentais da for-
sendo estes últimos entendidos como instrumentos de compensação diante das novas mação da personalidade, da civilidade, da disciplina e da liberdade, uma vez que a
exigências do mundo do trabalho e da sociedade liberal e capitalista que se configurava disposição corporal era um antídoto eficiente contra a fadiga e a degradação física e
(MARCASSA.2002).
moral. À pedagogia cabia gerar uma nova forma de sociabilidade que permeasse toda
Assim, sob os preceitos da ordem, da disciplina e do comportamento saudá- a dimensão cultural. Sendo assim, tanto para jovens como para adultos, os exercícios
vel incorporados à escola, a recreação manifesta-se como coadjuvante do processo corporais e a recreação organizada desempenhavam papel moralizador e cívico, vis-
educativo para o alcance da melhor forma de recuperação das forças para o retor- to que mediavam a aquisição do gosto por atividades moderadas, arrefecendo as ener-
no ao trabalho, incluso aí o trabalho escolar, a diminuição da delinquência e a ocu- gias corpóreas e os anseios juvenis por conta da curiosidade provocada pela prática
pação adequada do tempo livre, fazendo-se protagonista da construção da harmo- da "Educação Physica", capaz de propiciar o hábito da higiene, do equilíbrio psicos-
nia e do progresso. E tamanho era o "dever civilizador" das atividades escolares social, do bom comportamento e do controle de si mesmo. Mas enquanto Azevedo
que ele acaba justificando não só a efervescência de movimentos políticos e sociais (1920), um dos maiores representantes do movimento escolanovista, prossegue na
pela instrução da população brasileira, como também reforçando, cada vez mais, a defesa da Ginástica Sueca como a forma ideal para o emprego do tempo livre e ocu-
prática da recreação como estratégia de controle do tempo livre, tanto dentro, como pação útil do corpo e da mente, Teixeira aposta nas finalidades da recreação, alegan-
fora da escola. do que a vivência de jogos e brincadeiras responde melhor às aspirações e interesses
Desse modo, se num primeiro momento da história da educação no Brasil a das crianças. Como efeitos esperados, os jogos de recreio deveriam moldar a perso-
recreação foi um importante recurso disciplinar destinado à educação infantil, pos- nalidade e o caráter infantil, bem como educá-las para que soubessem regular adequa-
teriormente, pode ser vista também como uma atividade responsável pela formação damente o curso de sua vida. Entretanto, conforme observa Werneck (2003, p. 25), por
moral e cívica de jovens e adultos. Essa mudança foi provocada pela emergência de meio das atividades recreativas, "o controle é dissimulado em um suposto clima de
certas tendências político-pedagógicas que ganharam o cenário educacional brasi- 'espontaneidade' e 'liberdade' proporcionado pela vivência do jogo que, como uma
leiro durante as três primeiras décadas do século XX. Representando a vitória do 'receita', colabora com o processo de reprodução cultural" (p.25). Nesse sentido, as
otimismo pedagógico sobre o entusiasmo pela educação, a chamada Escola Nova condutas de ensino, as experiências científicas e a recreação mostram-se organiza-
introduziu as ideias de uma escola renovada e estimulou a discussão sobre a quali- doras, disciplinadoras e benéficas à manutenção da vida cooperativa da classe e da
dade do ensino, reivindicando a especialização e a modernização das questões peda- "comunidade", indicando que o programa de atividades lúdicas escolares, neste mo-
gógicas. Porém, com base numa "neutralidade científica", submeteu a luta política mento, seguia uma perspectiva funcional que visava à modificação dos hábitos coti-
pela instrução ao âmbito técnico-instrumental e à qualificação didático-metodoló- dianos dentro e fora da escola. Resumindo-se num conjunto de jogos de regras e
gica da educação escolar. Aprofundando o debate sobre Tradição versus Modernida- envolvendo diversas outras atividades corporais, a recreação afirmava seu caráter
de e inserindo a lógica da ciência nas questões educacionais, o pensamento escola- instrumental, inculcando ideias, valores e saberes que engendravam a formação de
novista encarrega-se de combater os problemas atinentes às dificuldades da vida sujeitos adaptados às situações geradas pelas novas relações de trabalho, contribuin-
mediata como resposta às causas urgentes da estabilização e do progresso; seu obje- do para a consolidação da ordem burguesa e capitalista.
:ivo era colaborar na formação dos melhores hábitos mentais e morais comprometi- Observa-se, então, que a recreação na perspectiva escolanovista era um impor-
los com as demandas da sociedade em mudança. A "escola progressiva", nos termos tante recurso para a aquisição de hábitos e conhecimentos que visavam orientar crian-
lê Teixeira (1933, p. 1), é a escola em que as atividades se processam com o máximo ças, jovens e adultos no modo com "empregar utilmente o tempo de lazer e diversão"
lê oportunidades para isso; seu fim é o homem educado: "aquele que sabe ir e vir (TEIXEIRA, 1933, p. 65), canalizando suas energias, promovendo a disciplina e o con-
om segurança, pensar com clareza, querer com firmeza e executar com tenacidade, trole, desenvolvendo o gosto pelas atividades corporais e pelo comportamento sau-
' homem que perdeu tudo que era desordenado, informe, impreciso, secundário em dável, o que reforça, mais uma vez, as ideias de pragmatismo e instrumentalização
ua personalidade, para tê-la definida, nítida, disciplinada e lúcida".
historicamente vinculadas à prática da recreação no Brasil. E é com essa mesma co-
Sob a influência do pragmatismo norte-americano de John Dewey, a Es- notação que a recreação foi estendida aos primeiros equipamentos públicos de
ola Nova proclama a reformulação dos métodos de aprendizagem, renovando lazer, por meio dos recém-criados centros de recreio que se desenvolvem a partir da
anos de 1920 em todo o País, paralelamente às políticas de urbanização e moderni- entendida como instrumento de organização dos lazeres reforça saberes e práticas
zação das grandes cidades. A primeira iniciativa foi realizada em 1926, na cidade de que vão além do espírito lúdico, da espontaneidade, da manifestação dos interesses
Porto Alegre, e liderada por Frederico Gaelzer, para quem o Serviço de Recreação da criança ou da "bem-intencionada" educação física e moral. Ela denota interesses
Pública tinha como objetivo ocupar adequadamente as "horas de lazer" dos jovens, de classe, reproduz valores hegemónicos, forja subjetividades, inculca princípios, de-
evitando que eles se sujeitassem à delinquência e à ociosidade (GAELZER, 1979). De- sejos e necessidades que mantêm correspondência com os ideais da sociedade capi-
pois, pode-se observar iniciativa semelhante na capital paulista, com a criação, em talista. E não por acaso, é com essa mesma configuração que a recreação é integrada
1935, do Serviço Municipal de Jogos e Recreio, coordenado por Miranda (1984), para aos cursos de formação em Educação Física, compondo seu universo académico e
quem os centros de recreio, além de equacionar o problema higiénico, recreativo e seu campo profissional. Exemplo disso era a existência, até bem pouco tempo atrás,
educacional, eram necessários à ordem social e municipal, uma vez que a recreação de uma disciplina responsável pelas questões relacionadas à Educação Física, Re-
era capaz de promover a saúde física e mental do cidadão exausto nas metrópoles creação e Jogos. Acreditava-se, por todas essas relações historicamente construídas,
devido aos múltiplos contratempos provocados pela vida moderna. É durante a ges- que a recreação era propriedade da Educação Física, um conteúdo ou atividade a ser
tão de Miranda que são implantados os Parques de Jogos, com seus programas de desenvolvido sob a responsabilidade dela. Marinho (1981, p. 34), catedrático intelec-
Parques Infantis e Clubes de Menores Operários. No que se refere a este último, des- tual da área, destinou obras inteiras ao estudo das relações entre educação física e
taca-se a preocupação com a formação da força jovem de trabalho no sentido da sua recreação, concebendo esta última como "a atividade física ou mental a que o indiví-
preparação e integração ao mercado de trabalho cada vez mais industrializado e com- duo é naturalmente impelido para satisfazer a necessidades físicas, psíquicas ou so-
petitivo. É com esse propósito, então, que em 1943 foi criado o Serviço de Recreação ciais, de cuja realização lhe advém prazer", o que significa que sua conotação como
Operária do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Segundo Werneck (2003), atividade vem prevalecendo no campo.
nesse contexto, o aproveitamento adequado das "horas de lazer" do trabalhador tor- Depois dele, outros estudiosos também deixaram referências importantes so-
nava-se uma condição sem a qual os repousos assegurados por lei ao operário não bre a recreação para a área da Educação Física. É o caso de Teixeira e Figueiredo, que,
poderiam atingir seus objetivos. Nesse sentido, embora a não ocupação ou a utiliza- na década de 1970, dedicam-se à sistematização das questões concernentes à recre-
ção "inadequada" do tempo livre continuasse se configurando como um problema ação, contribuindo para a proliferação dos "manuais" ainda muito utilizados nesse
social ameaçador à lógica capitalista, nesse momento ela ganha significados bem campo. Localizados desde uma perspectiva compensatória e utilitarista do lazer
mais profundos do que aqueles pregados pelos médico-higienistas e pelos escolano- (MARCELLINO, 1987), afirmam ser função da recreação, além do emprego adequado do
vistas. Não mais como mero recurso disciplinar gerador de corpos e mentes saudá- tempo livre, a recuperação da força de trabalho, o que, por sua vez, resulta em bene-
veis, obedientes e controlados, nem como uma atividade útil para a organização e fícios para a própria indústria, pois que "o operário descansado, restaurado, saudá-
emprego apropriado do tempo livre; agora, o sentido que recai sobre a recreação vem vel, contente e alegre, sentir-se-á feliz e assim, produzirá muito mais e certamente
ao encontro da pretensão maior da sociedade do capital, qual seja, o controle absolu- mais barato" (TEIXEIRA E FIGUEIREDO, 1970, p. 58).
to de todas as dimensões da vida humana, dentro e fora do trabalho. Nessa perspec- É desse período a obra prima de Medeiros (1975, p. 131), na qual introduz as-
tiva, a recreação responde, como um conjunto de atividades operacionais, como con- pectos psicológicos à vivência da recreação. Segundo a autora, o que caracteriza as
teúdo a ser desenvolvido no tempo/espaço de lazer, à necessidade de reposição, atividades de recreação é a atitude ou disposição mental do executante, "marcadas
manutenção e preparação da força de trabalho, ou melhor, como fenómeno submeti- sempre pela livre escolha da pessoa que com elas preenche as suas horas vagas, vi-
do à lógica da política e da economia do trabalho. sando unicamente à alegria intrínseca a tais ocupações". Gaelzer (1979, p. 59) tam-
Para Sussekind, Marinho e Góes (1952, p. 17),"a organização dos lazeres é um bém destina parte de seus estudos ao tema da recreação, concebendo-a como "uma
desejo elementar e uma necessidade essencial da vida do homem que trabalha: con- experiência na qual o indivíduo participa por escolha, devido ao prazer e à satisfa-
tribui para o desenvolvimento físico, intelectual e social do trabalhador; tem impor- ção pessoal que obtém diretamente dela. Atividade recreativa é atividade que não
tância capital no bem estar, na saúde e na educação do trabalhador. A melhoria do seja conscientemente executada com o propósito de obter recompensa além da
nível educacional do trabalhador, sua maior integração social, seu equilíbrio bioló- mesma, proporcionando ao homem um escape para as suas forças físicas, criado-
gico, são, portanto, os três grandes objetivos da recreação". Como se vê, a recreação ras, e na qual ele participa por desejo íntimo e não por compulsão externa". Estas
duas autoras relacionam as dimensões da atitude e da subjetividade à prática da COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

recreação de forma inovadora para o período. GAELZER, Lenea. Lazer: bênção ou maldição? Porto Alegre: Sulina: URGS, 1979.
MARCASSA, Luciana. A invenção do lazer: educação, cultura e tempo livre na cidade de São
Daí em diante, outros autores surgiram, e a recreação foi ganhando novos sen-
Paulo (1888-1935). Goiânia: Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás. Dissertação
tidos e conotações, embora as modificações operadas na dinâmica social já exigis- (Mestrado), 2002.
sem um repensar do lugar ocupado por ela até então. É a partir da década de 1970 MARCELLINO, Nelson Carvalho. Lazer e educação. Campinas: Papirus, 1987.
também que, com a emergência dos estudos provenientes da sociologia do lazer, a MARINHO, Inezil Penna. Educação Física, recreação e jogos. 3. ed. São Paulo: Brasil Editora, 1981.
recreação perde importância diante do destaque dado a esse fenómeno. E, enquanto
MEDEIROS, Ethel Bauser. O lazer no planejamento urbano. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1975.
ao lazer foram associadas características e funções internamente articuladas às esfe-
MELO, Victor Andrade de. Lazer e educação física: problemas historicamente construídos, saídas pos-
ras da cultura, do trabalho e da vida cotidiana, a concepção de recreação que perma- síveis: um enfoque na questão da formação. IN: WERNECK, Christianne Luce Gomes e ISAYAMA, Hél-
neceu, como bem chama a atenção Werneck (2003), reforçou a ênfase sobre o seu der Ferreira. (Orgs). Lazer, recreação e educação física. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
caráter técnico e operacional prevalecente até os dias de hoje. Assim, ao contrário de MIRANDA, Nicanor. Organização das atividades de recreação. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.
apontar uma saída definitiva para a prática da recreação, o mais importante é pro- SUSSEKIND, Arnaldo, MARINHO, Inezil Penna; GÓES, Oswaldo. Manual de recreação: orientação
blematizar e ampliar a nossa compreensão sobre ela. dos lazeres do trabalhador. Rio de Janeiro: Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio/ Serviço de
Recreação e Assistência Cultural, 1952.
Nesse sentido, cabem algumas interrogações: Até que ponto é possível recupe-
rar o sentido lúdico e criativo contido nas origens etimológicas do termo recreação? TEIXEIRA, Anísio. Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação. São Paulo:
Editora Nacional, 1933.
Seria possível superar o enfoque técnico-instrumental que incide sobre a atividade
TEIXEIRA, Mauro Soares; FIGUEIREDO, Jarbas Sales de. Manual teórico-prático de recreação para
recreativa em si, mesmo sabendo que toda atividade (e a recreação não foge à regra)
todos. São Paulo: Obelisco, 1970.
promove e denota valores, concepções e interesses político-sociais? E ainda que com-
WERNECK, Christianne Luce Gomes. Lazer, trabalho e educação: relações históricas, questões
prometida com uma orientação política-ideológica crítica, em que medida é possível
contemporâneas. Belo Horizonte: CELAR: UFMG, 2000.
construir novas referências ou metodologias que levem em conta a experiência e a
. Recreação e lazer: apontamentos históricos no contexto da educação física. In: WERNE-
apropriação de práticas culturais de modo articulado aos saberes teórico-práticos CK, Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Orgs.). Lazer, recreação e educação física.
que as fundamentam? Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
Observando os diferentes contextos socioculturais, tudo indica que a cultura
lúdica integrante da construção de saberes, das formas de sociabilidade, das mani-
festações festivas advém não da recreação, mas dos jogos e brincadeiras que, em qual-
quer tempo e lugar, são expressões de desejos e necessidades humanas. Por isso, tal- RUA DE LAZER
vez seja necessário compreendermos que na atualidade a recreação se converteu e se
consolidou como um saber-instrumento que foi apropriado pela escola, pelo lazer, Evento de curta duração que, geralmente, varia de quatro a oito horas e constitui um
pela família, pela igreja, pelo esporte, enfim, pelas diferentes instituições sociais que espaço adaptado para a vivência de atividades relacionadas aos diferentes conteúdos
fazem dela uma manifestação com conteúdos, características e qualidades ajustáveis deste fenómeno histórico chamado lazer.
aos diferentes contextos e situações sociais. Cabe a nós refletirmos se é assim que a Apesar da escassa bibliografia existente sobre o tema, sabe-se que esse tipo de
recreação deve permanecer entre nós, ou quais as possibilidades que temos de cons- evento se faz presente na sociedade brasileira há pelo menos quatro décadas, desde a
truir novas e ricas experiências pedagógicas envolvendo a recreação. implementação da Campanha Ruas de Recreio, instituída pela Portaria ministeri-
al n° 3, de 6 de janeiro de 1958. Criada com o objetivo de promover atividades recre-
Luciana Marcassa ativas orientadas em ruas e praças dos centros urbanos, tal campanha passou a ser
Bibliografia largamente adotada em todo o País. A proposta tinha o intuito de divertir e relaxar os
AZEVEDO, Fernando de. Da educação physica: o que ela é, o que tem sido, o que deveria ser. 2. ed. participantes e privilegiava, para isso, as atividades físico-esportivas, visto que o con-
São Paulo: Melhoramentos, 1920. texto histórico da época apontava para uma forte associação entre aquele conteúdo,
a recuperação da força de trabalho do operariado e a manutenção da saúde, conside- campos e áreas verdes, em espaços privados de fins comerciais e residenciais, ou seja,
rada primordial para o desenvolvimento industrial de uma nação. As atividades, con- grande parte dos locais destinados à vivência do lazer é reservada, hoje, para o privi-
troladas por monitores quanto ao uso do tempo, do local e dos equipamentos utiliza- légio de poucos. É também inegável e latente a necessidade da formulação de políti-
dos, eram planejadas previamente, com base em um modelo único adotado para todas cas que caminhem no sentido da ampliação, qualificação e democratização dos es-
as Ruas de Recreio realizadas pelo órgão promotor, ou seja, não havia na época a paços existentes. Todavia, sabe-se também que "não é a aparelhagem que determina
preocupação de considerar as particularidades regionais, tampouco de inserir as co- a cultura e o lazer, e também não é ela que detém a capacidade de tornar a vida mais
munidades no processo organizacional do evento - os participantes se restringiam à humana" (WERNECK, STOPPA e ISAYAMA, 2001).
vivência das atividades oferecidas. A insuficiência de equipamentos de lazer não é necessariamente um indicador
Mais de quarenta anos depois, mesmo tendo passado por algumas modifica- da impossibilidade de vivência de seus conteúdos culturais. Uma Rua de Lazer é
ções, o modelo ainda é adotado com o objetivo de desenvolver eventos organizados um claro exemplo de como uma via pública destinada originalmente ao tráfego de
por órgãos públicos, empresas privadas, instituições de terceiro setor e empresas con- veículos e de pedestres pode ser utilizada como uma quadra de peteca, um ateliê, um
sideradas organizações mistas, como o Serviço Social do Comércio (SESC). palco ou tantos outros espaços que nossa criatividade permita construir. Da mesma
Considerando as diferentes áreas de interesse que integram o lazer, podemos forma, é perfeitamente possível adaptar outros locais existentes nas comunidades para
perceber o amplo leque de possibilidades que se abre quando da programação de que eles possam também constituir pontos de encontro e convívio humano, que facili-
atividades para uma Rua de Lazer. É importante que o respeito a essa diversidade se tem o desenvolvimento pessoal e social dos cidadãos por meio das práticas de lazer.
efetive mediante a inclusão de práticas variadas, de modo a estimular os participan- Outro aspecto importante a ser observado é o grau de envolvimento das comu-
tes a experimentar diferentes alternativas e a optar por aquelas que mais lhes agra- nidades solicitantes no processo de organização do evento. Com base nesse critério,
dam, buscando, assim, um atendimento integral de qualidade. Todavia, a diversifica- Oliveira (2003) aborda dois modelos bastante distintos: a"Rua de Lazer Tradicional"
ção de conteúdos tem implicações diretas na operacionalização do evento, e a "Rua de Lazer Solidária".
determinando, por exemplo, a quantidade de pessoal, a sua distribuição nas diferen- A Rua de Lazer Tradicional é semelhante ao modelo inicial da Campanha Ruas
tes atividades, o espaço mínimo necessário e o tipo de material que será utilizado. de Recreio no que diz respeito à restrição de participação das comunidades atendidas,
Para fins de organização, uma Rua de Lazer geralmente é subdividida em seto- que se limitam a vivenciar as atividades oferecidas sem, no entanto, se envolverem no
res, que podem ser entendidos como espaços específicos onde se concentra determi- processo de elaboração, que é de exclusiva responsabilidade dos órgãos executores. Esse
nada atividade. Os critérios que guiam essa divisão passam tanto pela predominân- modelo, apesar de rígido e pouco democrático, é ainda amplamente utilizado.
cia de interesses e aspirações que direcionam a escolha dos participantes por uma ou Elaborado como uma alternativa à forma tradicional, o segundo modelo - Rua
outra prática, quanto pelas necessidades relativas à infra-estrutura do evento. Al- de Lazer Solidária - situa-se em um contexto político muito diferente daquele em que
guns exemplos de setores são: brinquedos infláveis, atividades esportivas, cama elás- surgem os primeiros eventos nesses moldes. Esta proposta foi elaborada na Prefeitura
tica, atividades artísticas, jogos de mesa e salão, jogos populares, apresentações, água, Municipal de Belo Horizonte, em meio a uma administração democrática de governo,
lanche e som. No caso das chamadas "ações integradas", o número de setores é natu- preocupada com a valorização da participação popular nos processos decisórios. O
ralmente maior e a organização mais complexa. Muito comuns atualmente, elas reú- modelo vem sendo adotado no município desde 1998 e tem como diretriz central a
nem, além das atividades de lazer, outros serviços de diferentes naturezas, como cor- busca de um maior envolvimento das comunidades no processo de organização das
tes de cabelo, stands de confecção de documentos de identidade ou carteiras de Ruas de Lazer por elas solicitadas. Tal mudança de perspectiva está intimamente asso-
trabalho, distribuição de mudas de plantas, medição de pressão, etc., contando com a ciada à necessidade de se reconhecer o usuário de programas sociais como cidadão e à
participação de colaboradores diversos. associação da cidadania à efetiva participação dos sujeitos nos processos de elabora-
Uma importante característica das Ruas de Lazer é a adaptação temporária de ção, implementação e condução das políticas. Assim, as Ruas de Lazer Solidárias cons-
espaços. É verdade que o crescimento dos centros urbanos veio acompanhado de um tituem modelos mais flexíveis de organização, nos quais as comunidades são convida-
processo de especulação mobiliária e da consequente transformação de espaços pú- das a se tornarem parceiras do Poder Público, compartilhando as responsabilidades
blicos, que antes eram destinados especificamente à vivência do lazer como praças, pelo sucesso do evento mediante a distribuição e do desempenho de papéis. O principal
objetivo desse processo é promover a educação dos indivíduos para maior autonomia cão a respeito de seus direitos, de modo a contribuir efetivamente para o alcance de uma
em relação às práticas de lazer, estimulando a sua participação em vivências mais crí- sociedade mais justa. Nessa perspectiva, o lazer deixa de ser simples instrumento destina-
ticas, criativas e conscientes, mediante a formação de lideranças mobilizadoras. do ao descanso e ao divertimento e torna-se palco de atuação política, do qual emergem
Observando uma Rua de Lazer, podemos, a princípio, ter uma avaliação com- valores questionadores da sociedade e caminha-se no sentido de uma nova ordem. Assim,
pletamente positiva desse evento, visto que realmente é possível enxergar de forma as políticas de lazer não devem se restringir a políticas de atividades, mas contemplar
nítida no rosto dos participantes a alegria e a satisfação por estarem envolvidos nas também questões referentes aos espaços e equipamentos, à ordenação do tempo na soci-
atividades oferecidas, e isso, sem dúvida alguma, é um mérito inquestionável dessas edade pós-industrial, dentre outros condicionantes dessas práticas.
ações. No entanto, é preciso analisá-las com maior cautela. Em meio a políticas de lazer realmente comprometidas com a efetivação de
Sabe-se que o lazer é um direito social, instituído pela Constituição brasileira direitos, é possível trabalhar as Ruas de Lazer em outra perspectiva, associando-as,
desde 1988 (art. 217, parágrafo III). A partir desse fato, podemos entender a necessida- por exemplo, a programas de lazer contínuos. Dessa forma, elas não serão meros even-
de da formulação de políticas sociais que caminhem no sentido da afirmação desse tos descontextualizados - estarão situadas em ações preocupadas em promover o
direito, pois a sua vivência por parte dos indivíduos é fator condicionante da existência bem-estar social.
da cidadania, entendida aqui não como mera questão geográfica, mas como a concreti- Virna Carolina Carvalho Munhoz
zação dos direitos constitucionais - o que envolve, dentre outros aspectos, o acesso aos
bens produzidos por uma nação e a possibilidade da livre participação nos processos
de formulação das políticas que configuram diariamente o País. Bibliografia
MARCELLINO, Nelson Carvalho (Qrg.). Políticas públicassetoria is de lazer: o papel das prefeituras.
Dada a importância das políticas públicas sociais, acrescenta-se que elas de-
Campinas: Autores Associados, 1996.
vem ter como objetivos assegurar o bem-estar social por meio da melhoria da quali-
MELO, Marcelo Paula de. Políticas públicas de esporte/lazer em São Gonçalo/RJ: uma análise crítica da
dade de vida da população e conquistar crescentes níveis de integração, especial-
mente dos grupos socialmente excluídos. atuação da Secretaria Municipal de Esporte e Lazer (SEMEL). Licere: revista do Centro de Estudos
de Lazer e Recreação/EEF/UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n.l, p. 80-95,2001.
Logo, se observado o caráter efémero e esporádico das Ruas de Lazer, percebe- OLIVEIRA, Rita Márcia de. Ruas de lazer solidárias: ampliando perspectivas de participação. 2000.
remos que, mesmo na perspectiva solidária, elas têm ação muito limitada no que diz 32 f. Monografia (Curso de Especialização em Lazer) - Escola de Educação Física, Universidade Fede-
respeito ao alcance desses objetivos. É preciso que se criem estratégias de interven- ral de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000.
ção que tenham reflexos sociais significativos e permanentes na vida das pessoas. RIOS, Terezinha Azeredo. Formação para a cidadania: gesto de bem e beleza. Ciclo de Conferências
Apesar de reconhecermos as Ruas de Lazer como espaços de vivência lúdica, deve- da Constituinte Escolar, Belo Horizonte, n. l, p. 33-35, jan. 2000.
mos ter em mente que um único dia de alegria não é satisfatório, pois, quando as WERNECK, Christianne Luce G.; STOPPA, Edmur António; ISAYAMA, Hélder Ferreira. Lazer e mer-
atividades são encerradas e os materiais recolhidos, a vida das comunidades volta ao cado.Campinas: Papirus,2001.112 p.
que era antes e os problemas que as afetam não tiveram suas proporções diminuídas.
Portanto, esses eventos atuam hoje mais no sentido do assistencialismo e menos na
perspectiva da afirmação do lazer como direito social.
Não devemos ser radicais a ponto de afirmar que é necessário abolir as Ruas de SERVIÇOS DE LAZER
Lazer do cenário nacional. Conforme dito anteriormente, elas constituem espaços de
convivência, de reprodução e transformação das manifestações culturais, tendo, por- No mundo contemporâneo, tem aumentado a importância económica das atividades
tanto, o seu valor. Apenas é preciso conferir-lhes novos significados. denominadas genericamente como "serviços", que se caracterizam por oferecer pro-
As políticas públicas de lazer devem se preocupar com a oferta de programas con- dutos intangíveis, intransferíveis, não-estocáveis e por apresentarem contato direto
tínuos, que facilitem a vivência dos diferentes conteúdos desse fenómeno histórico não entre produtor e consumidor.
apenas durante um dia, mas ao longo de todo o ano, buscando a participação cidadã na As inúmeras atividades que se encaixam nessa definição podem ser agrupa-
formulação e no controle desses programas e, acima de tudo, conscientizando a popula- das em quatro categorias: serviços produtivos (bancos, seguradoras, imobiliárias,

06 [DICIONÁRIO r empo DO LAZER]


escritórios de arquitetura, engenharia, advocacia, contabilidade, publicidade etc.);
Portanto, a expansão da oferta de opções de lazer, que se destina a atender um con-
serviços distributivos (empresas de transporte e comunicações); serviços sociais (es-
junto muito diversificado de consumidores de práticas e espetáculos, responde a iniciati-
tabelecimentos de atenção à saúde, de educação, administração pública, estabelecimen- vas que se orientam por distintas finalidades e diferentes lógicas de organização.
tos religiosos etc.); e serviços pessoais (oficinas de reparação, salões de beleza, res-
Na sociedade "pós-industrial" ou "informacional", caracterizada pela circu-
taurantes, hotéis, agências de turismo, empresas de diversões, serviços domésticos
etc). lação de informações e pela produção e gestão do conhecimento, observa-se que a
necessidade das empresas de se inserirem numa economia que opera em rede, de um
Obviamente, os serviços de lazer - que abrangem incontáveis estabelecimen- lado, e as mudanças tecnológicas e na organização do trabalho, de outro, estabele-
tos, como boate, cinema, parque de diversões, locadora de filmes, academia, boliche, cem novos parâmetros para examinar as atividades económicas.
camping, pesque-pague, bingo, entre tantas opções - pertencem ao grupo dos servi-
Na era da globalização, os negócios do entretenimento têm sido revoluciona-
ços pessoais. Mas deve-se considerar que uma parcela da oferta de opções de lazer é
dos tanto pela introdução de inovações tecnológicas, como pela atuação de grandes
organizada por políticas públicas ou tem caráter semipúblico - rua de lazer, passeio
corporações - como o Grupo Disney, proprietário de parques temáticos, hotéis, emis-
ciclístico, jardim zoológico, programação no rádio e na televisão, jogo de futebol,
sora de televisão, empresa cinematográfica, equipes esportivas profissionais, dentre
festa junina, entre outras -, podendo, assim, ser incluída em serviços sociais.
outros empreendimentos, nos Estados Unidos -, que passam a ditar os rumos e a
Por outro lado, é preciso esclarecer, ainda, que o "setor turismo" deve ser estudado dinâmica da chamada "indústria do entretenimento".
separadamente. Conforme definição da Organização Mundial de Turismo (que também é
Embora a expressão "indústria do entretenimento" seja mais adequada para
adotada pela Embratur), o conjunto das atividades económicas que constituem esse setor
definir a produção de discos, filmes, livros, videogames, etc., tem sido aplicada à
incorpora segmentos de diferentes naturezas: estabelecimentos de hospedagem, empre-
produção de espetáculos em geral, inclusive os de teatro, dança e os esportivos. E,
sas de transporte, um leque de opções de diversão e uma variedade relacionada a serviços
adotando um sentido bem maleável do termo, pode-se incluir sob essa designação
de alimentação, ao comércio de mercadorias e a outras atividades conexas.
uma série de outros negócios, como os cassinos (que fazem parte da "indústria do
Embora seja precipitado falar no aparecimento de uma "sociedade do tempo
turismo") e a própria Internet.
livre", é inegável que vem crescendo o número de atividades económicas relaciona-
Empreendimentos tradicionais do campo do lazer, como as casas noturnas, as
das, de algum modo, ao lazer das pessoas. Nos países de alta renda per capito, à medi-
salas de cinema, as agências de viagem e os parques de diversões, dentre outros, pas-
da que se expandiu a indústria cultural, cresceram e se diversificaram os mercados de
saram por um processo intensivo de modernização, resultado de novas tecnologias,
bens e serviços destinados ao entretenimento individual ou familiar. O lazer passou,
de novas formas de comercialização e de novos relacionamentos com os clientes. Ao
então, a ser considerado uma área de negócios altamente lucrativa, abrindo novos cam-
mesmo tempo, surgiram ou se consolidaram empreendimentos em áreas inovado-
pos de investimento e novas oportunidades de trabalho. Nessa ótica, predominam os
ras, como as casas de jogos eletrônicos interativos, as academias de fitness, o aluguel
serviços mercantilizados e individualizados, ou seja, aqueles que as pessoas compram
de campos de futebol com grama sintética e o turismo de aventura. As empresas
individualmente nos variados mercados existentes, ainda que o consumo da prática ou
do espetáculo seja feito na companhia de um grande número de pessoas. líderes em cada um desses segmentos procuram se inserir de alguma forma na res-
trita esfera da economia globalizada. De qualquer modo, há ainda bastante espaço
Ao mesmo tempo, ganharam expressão as políticas públicas de lazer, que ofere- para empresas ou entidades que continuam utilizando procedimentos e tecnologias
cem serviços gratuitos à população e impedem o avanço absoluto da lógica do mer-
convencionais e atuam circunscritas num espaço regional.
cado sobre essa dimensão da vida social. Exemplos nesse sentido são os centros es-
Não por acaso, economistas e gestores de políticas públicas têm afirmado, ao
portivos comunitários, a organização de festividades abertas à coletividade, a
manutenção de praças e parques públicos. discutir alternativas de desenvolvimento numa economia voltada cada vez mais para
o crescimento dos serviços, que o lazer e o turismo devem ser vistos como atividades
Há, ainda, as atividades desenvolvidas pelo "terceiro setor", isto é, por entida- importantes para dinamizar o desenvolvimento local e para a geração de emprego e
des que se localizam numa zona intermediária entre o público e o privado. Aí se
renda em âmbito regional.
encontra uma oferta de entretenimento promovida por organizações sem fins lucra-
tivos - como clubes sociais, sindicatos, instituições religiosas, dentre outras. No Brasil, assim como ocorre nos países desenvolvidos, o crescimento dos
serviços de lazer tem se concentrado nas regiões metropolitanas e em alguns
! [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
[SERVIÇOS DE LAZER] 209
pólos turísticos. Nas grandes cidades localizam-se os maiores equipamentos públi- IPEA. Dinâmica do setor de serviços no Brasil: emprego e produto. Rio de Janeiro: Instituto de
cos de lazer, as principais instalações do Serviço Social do Comércio (Sesc) e de ou- Pesquisa Económica Aplicada, 2000. (Relatório de Pesquisa, 18).

tras instituições do terceiro setor, os clubes esportivos com melhor infra-estrutura, KON, Anita. Sobre as atividades de serviços: revendo conceitos e tipologias. Revista de Economia Políti-

as principais casas de espetáculo, a rede hoteleira mais moderna, os shopping cen- ca, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, abr./jun., 1999.

ters. Seria inviável listar todos os equipamentos existentes. TRIGO, Luiz Gonzaga G. Turismo e qualidade: tendências contemporâneas. Campinas: Papirus, 1993.

Nas cidades de menor porte, os serviços de lazer só ganham uma estrutura


empresarial mais sofisticada e expressiva quando há desenvolvimento turístico, ou
seja, quando há mercado. A exceção que confirma a regra e vale a pena ser menciona-
da diz respeito às festas de peão de boiadeiro, que misturam rodeio, apresentações SHOPPING CENTER
musicais e feira comercial e se transformaram em produções milionárias, como no
caso da que é realizada anualmente em Barretes, interior de São Paulo. Aglomerado de lojas, serviços públicos, espetáculos, restaurantes e outras atividades
comerciais e de lazer, num mesmo conjunto arquitetônico. Centro comercial.
As perspectivas dos negócios nos vários segmentos que compõem o ramo do
lazer dependem do andamento da economia nacional e dos rumos ditados pela polí- A partir das últimas décadas do século XX, os shopping centers constituem
tica económica. Na década de 1990, muitos empreendimentos milionários foram im- um importante exemplo do lazer aliado ao consumo que se manifesta de diversas
plementados por grupos nacionais, às vezes em associação com o capital estrangeiro, maneiras no cotidiano das cidades. Nesses espaços, os consumidores lidam com uma
mas a crise económica tem prejudicado a rentabilidade de tais empreendimentos. Foi o proposta urbana que promove seu próprio interior, tendo a segurança e o conforto
caso da Terra Encantada, um megaparque temático com equipamentos dos mais mo- como argumentos principais. Os shoppings centers, ou malls, como são mais co-
dernos, instalado na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. O parque foi inaugurado em 1998, nhecidos nos Estados Unidos, simulam a cidade ideal dentro de cápsulas de concreto,
depois de absorver investimentos em torno de R$ 235 milhões, mas acabou fechando ferro e vidro, representando uma espécie de resumo contemporâneo do sonho de
em 2002. Por outro lado, há exemplos de parques bem-sucedidos mesmo em meio às harmonia urbana. Geralmente, são concebidos para receber portadores de necessi-
dificuldades atuais da economia brasileira. O Play Center São Paulo, inaugurado em dades especiais, com destaque para aqueles que usam cadeira de rodas. Mundo afo-
1973 (é o mais antigo no género no País), recebe anualmente cerca de 5 milhões de ra, os shopping centers estão presentes, sempre com os mesmos elementos arquite-
visitantes e gera aproximadamente 1.500 empregos em época de alta temporada. tônicos e códigos fundamentais: butiques, praças, alamedas, lojas-âncoras e
À medida que aumenta a importância do lazer como atividade económica desti- estacionamento. Cinemas, teatros, parques de diversões, pistas de patinação e outras
nada a um mercado consumidor, seja nas grandes capitais ou nas cidades do inte- expressões do consumo do lazer também integram necessariamente o ambiente. É
rior, programas de incentivo ao desenvolvimento dessas atividades passam a assu- um fenómeno global que se manifesta em nações de diferentes continentes; Tailân-
mir papel relevante na condução de políticas governamentais e a exigir estudos dia, Portugal, França e Argentina são alguns dos inúmeros países que copiam a fór-
detalhados sobre seu potencial económico e ações estratégicas. Contudo, há dificulda- mula norte-americana dos malls. As cidades brasileiras também incorporaram de
des quanto à disponibilidade de informações adequadas e sistemáticas para delimitar e forma exponencial esse tipo de empreendimento no seu imaginário. A maior con-
mensurar com exatidão o valor adicionado, o volume de emprego e a contribuição tri- centração está no Estado de São Paulo; são quase cem estabelecimentos que geram
butária relacionados ao ramo do entretenimento e, em particular, ao turismo no Brasil. mais de 190 mil empregos.
Em 2003, o Brasil é o décimo país do mundo em quantidade de shoppings
Marcelo Weishaupt Proni construídos. O primeiro inaugurado foi o Iguatemi São Paulo, em 1966, seguido do
Conjunto Nacional Brasília, em 1971. Segundo a Associação Brasileira de Shopping
Bibliografia
Centers (ABRASCE), são considerados qualificados para filiação os empreendimen-
ÍRAMANTE, António Carlos. Qualidade no gerenciamento do lazer. In: BRUHNS, Heloísa (Org.) In- tos que satisfaçam os seguintes critérios: sejam constituídos por um conjunto pla-
rodução aos estudos do lazer. Campinas: Editora Unicamp, 1997. nejado de lojas, operando de forma integrada, sob administração única e centrali-
lASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. zada; sejam compostos de lojas destinadas à exploração de ramos diversificados

[DICIONÁRIO CRITICO jooLAZEaJ


ou especializados de comércio e prestação de serviços; estejam os locatários lojistas históricas ou monumentos reconhecidos, os shopping centers mantêm uma assep-
sujeitos a normas contratuais padronizadas, além de ficar estabelecido nos contratos sia que deixa um sentimento de coisa fake no ar. Trata-se de uma assepsia perversa,
de locação da maioria das lojas cláusula prevendo aluguel variável de acordo com o estabelecida para fortalecer a diferença entre a cidade aberta - supostamente feia e
faturamento mensal dos lojistas; possuam lojas-âncora, ou características estrutu- suja - e a cidade fechada - hipoteticamente harmoniosa e limpa. Assim, os jovens e
rais e mercadológicas especiais, que funcionem como força de atração e assegurem suas famílias vivem a fantasia de estarem garantindo sua segurança. Ali é lugar de
ao shopping center a permanente afluência e trânsito de consumidores essenciais namoro, de comer e passear com a família, de consumir algum objeto da moda vi-
ao desempenho do empreendimento; ofereçam estacionamento compatível com a gente ou, simplesmente, de flanar sozinho. Porém, é impossível manter os verdadei-
área de lojas e correspondente afluência de veículos ao shopping center, estejam sob ros códigos da cidade do lado de fora por muito tempo. Hoje já percebemos, em vári-
controle acionário e administrativo de pessoas ou grupo de comprovada idoneida- as cidades brasileiras, transgressões à sua ordem original, por meio de diversas
de e reconhecida capacidade empresarial. As lojas-âncora caracterizam-se pela gran- manifestações de violência, da polícia ou das gangues urbanas. Existe também o pro-
deza de suas dimensões e variedade de produtos. As lojas de departamentos e as de blema do excesso de carros e pessoas em alguns horários específicos. A cidade real
hipermercados são as preferidas no caso brasileiro. começa a entrar no templo do consumo.
A Indústria de Shopping Centers, que conta em 2003 com mais de 250 shoppin- Ricardo Ferreira Freitas
gs filiados à ABRASCE, dos quais 45% no interior do País, demonstra vitalidade, de-
sempenhando importante papel na economia, como geradora de mais de 450 mil
empregos diretos e com expressiva integração com a comunidade. As vendas dos
Bibliografia
shoppings em 2002 representaram 18% do faturamento de todo o varejo nacional, FREITAS,Ricardo F. Centres commeráaux: iles urbaines de Ia postmodernité.Paris: UHarmattan, 1996.
excluídos os setores automotivo e de derivados de petróleo. JAGUARIBE, Beatriz. Fins de século: cidade e cultura no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
O shopping center já faz parte do imaginário urbano, no qual a família pós- SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
industrial troca os lugares tradicionais de lazer, como a praça pública, pelas alame- ABRASCE. Disponível: www.abrasce.com.br
das dos malls, em nome da segurança para o carro e da paz para caminhar. O Rio de
Janeiro é um caso exemplar desse cenário. Apesar de a cidade ser cercada por opções
de lazer gratuitas, como as praias e os parques florestais, é intenso o crescimento dos
shopping centers. Por todos os lados, encontram-se centros comerciais de diversos TELEVISÃO
tamanhos. Em bairros como Botafogo, chegam a ser vizinhos. Nesse contexto, o lugar
que mais chama a atenção é a Barra da Tijuca. Bairro emergente que não existia O conceito de televisão já existia meio século antes de se tornar realidade, a exemplo
poucas décadas atrás, a Barra tem o maior número de shoppings por quilómetro do "telescópio elétrico" de Paul Nipkow, um disco explorador perfurado que divide a
quadrado. Entre condomínios fechados, centros empresariais, clubes e universidades imagem em linhas e que foi patenteado em 1884. Outra invenção alemã foi o tubo de
privadas pipocam malls genéricos e temáticos. Esse boom resulta num excesso de raios catódicos, um tubo de vácuo de vidro contendo um eletrodo que, quando aque-
espaços estandardizados, levando os jovens do bairro a lidar com outro Rio de Janei- cido, emite uma corrente de elétrons. Entre 1923 e 1931, o americano Vladimir
ro que nada tem a ver com os arcos da Lapa ou com as estritas ruas do centro. Desde Zworykin produziu o iconoscópio, a primeira câmara de televisão do mundo. Hoje,
o seu aparecimento no início da década de 1980, os shopping centers transforma- existe um conceito técnico que significa transmissão de imagens animadas por meio
ram-se numa das grandes opções de convivialidade dos jovens cariocas. Após os pi- de ondas eletromagnéticas.
oneiros Rio-Sul e BarraShopping, os adolescentes e jovens universitários incorpora- Com o passar dos anos, o conceito de televisão ganhou uma dimensão para
ram, de forma intensa, essa opção de vida. além desse aspecto linear. Para Bolano (1988), a televisão nos Estados Unidos, pas-
Em muitas cidades brasileiras, o shopping center é uma espécie de extensão sou a disputar com a Indústria do cinema a hegemonia da indústria cultural, trans-
da casa e da escola, recebendo jovens de outros bairros que entendem a visita ao formando-se no principal veículo publicitário em substituição ao rádio. Assim, acre-
shoppingcomo momento de entretenimento. Simulando espaços urbanos, situações dita-se que o predomínio da televisão, do vídeo, na indústria cultural é, na verdade,
uma tendência mundial no capitalismo monopolista. A informação e a cultura re- consciência crítica. No entanto, a televisão pode ser um instrumento libertador quando
presentam mercadorias na lógica capitalista cuja produção passa a ser um ramo que se constituir uma experiência integradora, unir opostos, resolver a dualidade radical
atrai os grandes capitais e se estrutura na forma moderna de oligopólio. Com isso, a que é a pessoa, permitindo que racionalidade e emotividade interajam de maneira lú-
relação histórica entre a indústria cultural e capitalismo monopolista encontra seu cida, que as mensagens do meio e as mensagens ao meio sejam vividas consciente-
elo de conexão na publicidade. Assim, a relação que se estabelece entre o público e a mente; quando unir matéria e espírito, consciente e inconsciente, conceito e sentimen-
televisão é no sentido de promover o consumo massivo, servindo a indústria como to, e a vivência emocional não impedir o exercício da racionalidade, e vice-versa.
elemento-chave no processo de crescimento da grande empresa. Preocupado com o efeito de transmissão, pois ela contribui para divulgar ideolo-
A televisão é o fenómeno social e cultural mais impressionante da história da gias e dirigir a consciência dos espectadores, Adorno (2000) aponta dois conceitos de
humanidade. É o maior instrumento de socialização que jamais existiu, pois nenhum formação cultural associados à televisão: televisão educativa - a serviço da forma-
outro meio de comunicação na história havia ocupado tantas horas da vida cotidia- ção cultural; e televisão deformativa - em relação à consciência das pessoas, devi-
na dos cidadãos,fascinando-os e penetrando no seu imaginário social (FERRÉs.1998). do a enorme quantidade de espectadores e de tempo gasto diante dela. Adorno enten-
A televisão consegue fazer uma síntese entre a magia da imagem, aquela advinda do de que o que é moderno na televisão é a técnica de transmissão, longe, no entanto, de
cinema, e o imediatismo do rádio, por isso a existência de uma força simbólica ou, compreender que seu conteúdo seja moderno. Entende que o conceito de informação
como diria Bourdieu, de um poder simbólico. Thompson (1998) explica que uma é mais apropriado à televisão do que o de formação. Acredita que se deve ensinar -
das conquistas técnicas da televisão é sua capacidade de utilizar grande quantidade desenvolver aptidões críticas - como ver televisão sem ser iludido pela ideologia,
de "deixas" simbólicas, tanto do tipo auditivo quanto visual, diferentemente do rádio pois televisão como ideologia significa promover uma falsa consciência e um oculta-
ou jornal, que se restringem à fala ou à escrita. mente da realidade, submetendo as pessoas a um conjunto de valores, como se fos-
Em crítica à televisão comercial, Kellner (2001), explicita que esta é predomi- sem dogmaticamente positivos.
nantemente regida pela estética do realismo representacional, de imagens e histórias John Condry (1995) sugere que a televisão rouba às crianças a oportunidade
que fabricam o real e tentam produzir um efeito de realidade. Nesse aspecto, a televi- de ser relacionar com as pessoas e de conhecer a si mesmas, pelo fato de passarem
são comercial é constituído como um instrumento de entretenimento, pois seus pro- demasiado tempo diante ela. Segundo esse autor, a televisão mente às crianças, apre-
dutores acreditam que o público se diverte mais com histórias, com narrativas que sentando-se como uma fonte confiável de informações sobre o mundo, além de vei-
contenham personagens, argumentos, convenções e mensagens familiares e reconhe- cular um grande número de coisas falsas e deformadas. Seu conteúdo é centrado na
cíveis, provocando assim, uma pobreza estética e afastando o público com outros violência é reforçada nos desenhos animados. Além disso, a televisão influencia as
gostos e valores estéticos. Mesmo assim, para Kellner (2001), a televisão e outras for- convicções, os valores e as condutas dos telespectadores. Apesar disso, Condry pon-
mas de cultura da mídia desempenham papel fundamental na reestruturação da iden- dera que o nível de instrução do telespectador, o seu ambiente social e o contexto
tidade contemporânea e na conformação de pensamentos e comportamentos. familiar são fatores que podem intervir na influência exercida pela televisão. Assim,
Ainda para Ferres (1998), é um reducionismo pensar a televisão como causa- entende que se a televisão exerce influência sobre os jovens é precisamente porque as
dora de todos os males individuais e sociais, ou pensar ingenuamente que ela repre- outras instituições que se ocupam com as crianças, funcionam mal. Em muitos lares,
senta uma culminância histórica na democratização e socialização da cultura, ou a televisão substituiu a contação de histórias, pois o tempo passado diante dela des-
que é uma diversão gratuita e ideologicamente neutra. Assim, entende-se que não só via as crianças da leitura. Considerando improvável que a televisão venha a se cons-
os discursos, a razão e a consciência são influenciados, como também influencia-se tituir num ambiente favorável à socialização das crianças, sugere que se tente me-
desde e respectivamente os relatos, as emoções e o inconsciente. A televisão sublimi- lhorar a qualidade dos programas que oferecemos aos nossos filhos, por entender
nar diz que sua influência não provém tanto de sua incidência sobre a razão quanto que a televisão não é uma fonte de informação sobre o mundo e, portanto, não é
por seu apelo à emotividade; de que não condiciona a liberdade mediante a coerção capaz de ensinar às crianças aquilo de que necessitam para se tornar cidadãos escla-
física, mas pela sedução. recidos. A televisão pode ser uma diversão, e o fato de nos divertirmos não é mau em
Nessa perspectiva, a televisão é um instrumento de alienação quando as emo- si. Pode ter também um papel de informação e isso, igualmente, é bom. Contudo,
ções e sensações impedem a pessoa de encontrar-se consigo mesma na reflexão e na conclui Condry, não consegue ser um instrumento de socialização confiável, e é isso
iue se deve reconhecer. A escola e a família devem desempenhar papel essencial no mais da venda dos direitos de televisionamento, o que garante à TV a ampliação dos
entido de reduzir a influência da televisão sobre as crianças. seus espaços de decisão sobre o esporte, como a imposição das fórmulas dos
Relativizando essas teorias hipodérmicas (WOLF, 2001), que atribuem efeitos campeonatos e dos horários dos jogos, por exemplo.
mediatos e diretos da televisão sobre os telespectadores, destacam-se os chamados Para Betti (1998, p. 151), a televisão pode se tornar uma ferramenta pedagógi-
:studos de recepção, que deslocam o foco das análises para o campo da audiência, a ca que a Educação Física mobiliza para a intervenção na vida: "A nossa janela de
im de examinar como o receptor constrói suas estruturas de percepção e torna-se vidro, de simples abertura que emoldura a contemplação de um mundo apresentado
íujeito da atribuição de sentidos/significados próprios à mensagem televisiva. Nes- pelas câmeras da TV, torna-se uma janela que se atravessa para nele intervir". Nesse
ie sentido, destacam-se os estudos socioculturais latino-americanos de comuni- aspecto, diante de uma realidade onde crianças e adolescentes dedicam muito tempo
:ação, notadamente na figura de Jesus Martin-Barbero, introdutor do conceito de às mídias, trocando inclusive a "bola", pela assistência da televisão ou os jogos
mediação, que, segundo Jacks (1999, p. 48-49),"pode ser entendida [...] como um eletrônicos, torna-se fundamental que os profissionais de Educação Física, no intuito
:onjunto de elementos que intervêm na estruturação, organização e reorganização de contribuir para a formação de um espectador crítico, inteligente e sensível, possam
ia percepção da realidade em que está inserido o receptor, tendo poder também para compreender sua dinâmica cultural e ressignificar esse instrumento tecnológico.
/alorizar implícita ou explicitamente esta realidade. As mediações produzem e re- Pesquisadores como Feres Neto (2001) expressam certo entusiasmo com as
produzem os significados sociais, sendo o 'espaço' que possibilita compreender as possibilidades de ampliação do entendimento sobre as práticas corporais a partir da
interações entre a produção e a recepção". (Grifo no original) expansão do acesso às modernas tecnologias comunicacionais. Na sua opinião, no-
Simplificadamente, Lopes (1996) define as mediações como múltiplos filtros vas vivências de esporte e lazer são oportunizadas pelos meios técnicos, ampliando
subjetivos e sociais, constituídos pela interação entre a cotidianeidade e a formação as condições de percepção e elevando o nível de informação sobre esse campo, por
cultural, por onde passam e são ressignificados quaisquer tipos de comunicação. meio da categoria da teleludicidade, isto é, uma nova forma de experimentar e com-
Martin-Barbero, todavia, alerta que essa importância atribuída ao receptor não preender os fenómenos corporais que vem se somar às manifestações esportivas tra-
deve levar ao falso entendimento de que emissor, mensagem e meio não têm mais dicionais. Mesmo reconhecendo as possibilidades de novos sentidos para a cultura
relevância. Deslocar o pólo para a recepção não deve, ingenuamente, desconsiderar de movimento que são abertos a partir da televisão, não é demais alertar para as
os sentidos primários da mensagem, nem os interesses que a perpassam e envolvem, consequências que essa mediação tecnológica pode significar para o lazer se confi-
mas sim que é possível propor uma nova interação entre emissor e receptor, em que gurar-se, como indústria do entretenimento, como substituição da experiência cul-
ambos tenham participação ativa e esclarecida de suas necessidades e desejos de tural lúdica, sensorial e estética (PIRES, 2002).
comunicação, isto é, um processo mais simétrico de negociação dos seus significa- Giovani De Lorenzi Pires
dos (MARTIN-BARBERO, 1995).
Sérgio Dorenski Dantas Ribeiro
Nessa perspectiva, Pierre Bourdieu (1997) afirma que os profissionais que li-
dam com a imagem devem lutar para que esse instrumento democrático não se tor-
ne um instrumento de opressão simbólica, justamente pela capacidade que tem a Bibliografia
televisão de atingir todo mundo, configurando-se como um monopólio de informa- ADORNO, T. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
ção, e nela perpassar uma grande demanda de interesses políticos e económicos. BETTI, Mauro. A janela de vidro; esporte, televisão e educação física. Campinas-SP, 1998.
O campo das manifestações da cultura de movimento, especialmente o das prá- BOLANO, César R. S. Mercado brasileiro de televisão. Aracaju: UFS, 1988.
ticas esportivas espetacularizadas, tornou-se um grande conteúdo cultural para a BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
televisão, que lhe dedica largas faixas de sua programação, tanto jornalística quanto CONDRY.John. Televisão: um perigo para a democracia. Lisboa: Gradiva, 1995.
de entretenimento e publicitária. Se, por um lado, por meio da televisão, o esporte FERES NETO, Alfredo. Virtualização do esporte e suas novas vivências eletrônicas: implicações para
ganha visibilidade e, com isso, possibilidades de financiamento para a melhoria do a Educação Física. Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, 12, Anais.... Caxambu, 21 a 25/out./
espetáculo esportivo, por outro, perde em autonomia, pois passa a depender cada vez 2001 (CD-ROM)
FERRES, Joan. Televisão subliminar: socializando através de comunicação despercebidas. Porto maneira, seu sentido principal prevalece sendo o de um tempo de não-trabalho,
Alegre: Artmed, 1998. embora nem todo tempo fora da esfera do trabalho seja um tempo disponível para o
JACKS, Nilda. Querendo: cultura regional como mediação simbólica - um estudo de recepção. lazer ou para o ócio. Os séculos XVIII e XIX foram importantes para o significado do
Porto Alegre: Universidade/UFRGS, 1999. tempo de trabalho e do tempo de não-trabalho, pois o desenvolvimento das indústri-
LOPES, Maria Immacolata V. Pesquisas de recepção e educação para os meios. Comunicação & Edu- as nesse período altera os "usos" do tempo. A partir da chamada Revolução Industri-
cação, ano II, n. 6, p. 35-40, maio/ago. 1996. al, exige-se maior sincronização e controle do tempo, tanto no trabalho como fora
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: EDUSC.2001. dele. Antes das sociedades industriais, o limite entre tempo de trabalho e tempo de
MARTIN-BARBERO, Jesus.. América Latina e os anos recentes: o estudo da recepção em comunica- não-trabalho era ténue, uma vez que os homens eram mais autónomos em relação
ção social. In: SOUSA, Mauro Wilton (Org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: ECA/ ao uso de seu tempo. No campo, o camponês orientava - e em alguns lugares ainda
USP, Brasiliense, 1995. pode orientar - o tempo de suas atividades pela natureza, pela posição do Sol, pelo
PIRES, Giovani De Lorenzi. A mediação tecnológica do esporte como substituição da experiência for- canto do galo e o ritmo de trabalho variava de pessoa para pessoa. Com o desenvolvi-
mativa. Corpoconsciência, n. 9, p. 23-39, mai. 2002. mento das indústrias e do capitalismo, o tempo do homem passa a ser medido pelo
THOMPSON, John B. A Mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998. dinheiro e o tempo dominante passa a ser o tempo das máquinas. Assim, os donos das
máquinas passam a ser vistos como os donos do tempo. Com o movimento progressivo
da sincronização do trabalho, houve um processo de estruturação do tempo industrial
que implica, conforme sugere Pronovost (1996), a introdução de três aspectos maiores:
a regulação do trabalho, a divisão do trabalho e a disciplina do tempo de trabalho.
TEMPO LIVRE
O uso do tempo no campo e no meio rural sempre foi incomparável com o uso
A express ao tempo livre corresponde, em inglês, afree time, em francês, diz- se temps do tempo nas fábricas e no meio urbano. No campo, o tempo de trabalho é alterna-
libre; em espanhol, tiempo libre; e, em alemão, usa-se a expressão Freizeit. do com o tempo de não-trabalho e o domingo é o dia estabelecido para o repouso,
O ser humano vive no espaço e no tempo e é na relação dessas categorias que com exceção das épocas de colheita. Este tempo vivido no campo vai sendo histori-
de estabelece suas relações sociais. A história da humanidade é marcada pela histó- camente substituído pelo tempo calculado, mensurável, previsto, linear e que, por-
ria do tempo e das maneiras de medir o tempo. Por isso, as formas de organizar e tanto, pode ser gasto, desperdiçado, perdido ou ganho. A difusão e a popularização
medir o tempo revelam a organização dos grupos sociais. As sociedades humanas do relógio se davam exatamente no momento em que a Revolução Industrial exigia
sempre se organizaram em "tempos sociais", ou seja, em tempos que determinam as uma maior sincronização no trabalho. Além da máquina à vapor, o relógio também
itividades sociais: o tempo para o trabalho, o tempo para a família, o tempo da edu- pode ser visto como uma "máquina" típica da Revolução Industrial. Os relógios ser-
:ação, o tempo para a religiosidade, etc. A vida em coletividade é regida pela articula- vem, então, para harmonizar os comportamentos humanos. Segundo Elias (1998), à
ção desses tempos sociais, enquanto cada indivíduo percebe e controla o tempo in- função de orientação do relógio, soma-se a de instrumento de regulação da conduta
:ernamente. Hoje, estamos acostumados a viver com base nos símbolos do calendário e da sensibilidade humanas. As ações humanas são influenciadas pela mensagem
: do relógio e a medir nossas atividades pelo segundo, minuto, hora, dia, semana, passada pelo relógio: o atraso, a pontualidade ou o adiamento, por exemplo. Nessa
nês e ano, de tal forma que mal podemos imaginar como os homens de épocas ante- ideologia de valorização do tempo útil mensurável, que se acentua com o desenvolvi-
pores puderam existir sem a ajuda desses elementos. Quanto maior é o desenvolvi- mento do capitalismo e a ética puritana, o tempo de não fazer nada (ócio) ou de lazer
nento tecnológico de uma sociedade, mais indispensáveis são os instrumentos de não era bem aceito. O tempo livre - no sentido de ser o tempo liberado do trabalho -
'adronização e medição do tempo. O tempo pode ser visto como uma instituição era considerado devorador do tempo-dinheiro. O tempo, por mais abstrato que seja,
:ocial de caráter coercitivo (EuAS, 1998) já que toda a existência humana é abarcada era propagado como mercadoria valiosa e não podia ser desperdiçado. Porque o tem-
>elo sistema de autodisciplina exercido pelo tempo. po era mensurável, ele poderia ser trocado por tudo, até por dinheiro. Desde o final
A compreensão do tempo livre, visto como um dos tempos sociais, sempre do século XVIII, a desaparição progressiva da ociosidade foi anunciada. O Iluminis-
:steve vinculada aos significados do trabalho e do tempo de trabalho e, dessa mo impôs a valorização da atividade e a exaltação do trabalho produtivo, recusando
T
o ócio - no sentido de desperdiçar o tempo de forma improdutiva. Ainda hoje, a pre- advém de quê? Em outras palavras, pode-se perguntar: o que é que tem no tempo
guiça é um dos "pecados capitais". No entanto, o tempo livre de ociosidade era con- livre de verdadeiramente libertador?
denado apenas para a classe de trabalhadores, pois os setores dominantes das socie- A tese que alguns autores defendem (ADORNO, 1995; FROMM, 1963; MÉSZÂROS, 1989;
dades industriais viam nesse tempo a possibilidade de libertação, criação e alegria. O ANTUNES, 1999; PADILHA, 2000) é a de que a lógica do capital rege não apenas o tempo
que marcava a classe dominante e a distinguia dos trabalhadores assalariados era, de trabalho, mas também o tempo de não-trabalho e que, dessa forma, não há nada
dentre outras coisas, o fato de ela poder dispor de seu tempo livremente. Dessa for- naturalmentelivre no tempo fora do trabalho. Pensar o tempo livre (e as atividades
ma, é possível afirmar que a disponibilidade de tempo é um marcador social que de lazer) como um tempo que possui automaticamente as qualidades de alegria, li-
pode dar prestígio ao homem. Veblen (1988) chamou de classe ociosa as classes no- berdade, felicidade e descanso é reforçar uma concepção conservadora (como a fun-
bres, as classes sacerdotais, as classes altas que ocupavam seu tempo em ocupações cionalista, por exemplo) da sociedade considerando-a harmoniosa, equilibrada e for-
não industriais. As tarefas de subsistência, os trabalhos manuais e na indústria eram necedora de remédios para os eventuais males sociais; uma concepção de sociedade
reservados a uma classe inferior. Para Veblen (1988), o ócio não é indolência, mas um que vê a "cura" da alienação e do cansaço do trabalho no tempo de lazer. Isso não
tempo gasto em atividade não produtiva, o que demonstra a capacidade e a possibi- quer dizer, no entanto, que o tempo livre não seja um tempo em que se encontram
lidade de viver uma vida inativa e de gastar seu tempo com atividades que não visem mais brechas de autonomia que no tempo de trabalho. O tempo livre pode ser um
à obtenção de dinheiro. tempo de alienação e consumismo, mas também pode ser um tempo de reflexão e
Grande parte dos autores que estudam lazer atribui ao tempo livre a ideia de praxis. É preciso lembrar, no entanto, que as formas de ocupações e usos do tem-
um tempo em que não se faz nada por obrigação; é, então, um tempo liberto das po livre são variadas entre as distintas classes sociais e entre frações de uma mes-
obrigações no qual se pode optar por fazer alguma atividade prazerosa, descansar ou ma classe, lembrança esta que nos atenta para os riscos de se pensar uma socieda-
simplesmente não fazer nada. O lazer seria uma esfera desse tempo livre - ou tempo de homogénea em que todos são iguais e em que todos têm oportunidades iguais,
liberado - que implicaria em realização de atividades, enquanto ao ócio associa-se seja de trabalho, seja de vivência do tempo livre. Numa abordagem crítica da socie-
comumente a ideia de não fazer nada, de contemplação e preguiça. A opção e a esco- dade ela é apreendida como contraditória, o que faz com que o tempo livre, como
lha são características típicas desse tempo livre. Alguns autores (Marcellino, 1990) um fenómeno social, também seja cheio de contradições.
preferem tratar desse tempo considerando-se um tempo disponível em que não se Abusca de uma redução da jornada de trabalhotem sido uma"luta" travada
busque nenhum objetivo financeiro, mas apenas a satisfação pessoal, seja pela práti- por trabalhadores de várias épocas e lugares, em alguns momentos priorizando o
ca de lazer, seja pela contemplação no ócio. aumento do tempo livre e, em outros, priorizando soluções para o desemprego. Para
A problematização que pode ser feita em torno da expressão tempo livre é que Marx (1989), o "reino da liberdade" só poderia ser alcançado com a redução da jor-
tempo algum pode ser verdadeiramente livre das coações, da lógica do capital ou de nada de trabalho, o que inspirou outros autores (GORZ, 1993) a pensar na necessidade
normas sociais (ADORNO, 1995; FROMM, 1963; MARCELLINO, 1990; PADILHA, 2000). Na ver- de redução da jornada de trabalho para liberar o tempo dos trabalhadores, o qual
dade, quando se pensa na palavra "livre" para qualificar um tempo, o que está sendo deveria ser gradativamente autogerido com atividades autoterminadas. Para isso, a
pensado como seu oposto, o que precisa ser liberado? Quais seriam as "oposições" à redução da jornada de trabalho não poderia ser acompanhada de uma redução de
liberdade? O trabalho é visto - sobretudo no capitalismo - como a principal obriga- salário. A meta dos sindicatos passaria a ser, então, não mais a luta pelo pleno empre-
ção, a principal oposição à liberdade, a qual só poderia ser vivenciada pelo trabalha- go, mas a luta pela redução radical da jornada de trabalho sem redução de salários.
dor num tempo fora do trabalho. Isso porque, em grande medida, sob a lógica do No entanto, o que falta nesse tipo de abordagem é um ataque mais incisivo aos limi-
capital, o trabalho é momento de prevalência da heteronomia, da imposição de fora tes impostos pelo capitalismo à emancipação humana, de forma a pensar que a
para dentro de como ocupar seu tempo, do que se deve fazer ou não fazer; o trabalho redução do tempo de trabalho "estranhado" não elimina o estranhamento do traba-
é, para os trabalhadores, fonte de alienação ou de "estranhamento", para usar um lho. O tempo que resta continua sendo regido pela lógica do capital, ou seja, o tempo
termo marxiano. Dessa forma, o tempo de não-trabalho é visto como um tempo de disponível ampliado continua sendo regido pelos interesses do capital. Então, vale
liberdade, de liberação das amarras presentes no trabalho, é um tempo de autono- perguntar: Qual é o elemento revolucionário necessariamente implícito na redução
mia em oposição a heteronomia do trabalho. Mas este valor atribuído ao tempo livre da jornada e do tempo de trabalho? Não seria necessário, junto com a redução do
tempo de trabalho, eliminar a dimensão abstraia do trabalho e a expropriação da A ação do terceiro setor é definida como um conjunto de iniciativas particula-
mais-valia para que o tempo disponível também seja vivido de forma autónoma? res sem fins económicos e com sentido público. Incluem-se nessa denominação as
organizações, que vão desde fundações, com estruturas formais rígidas e uma rela-
Valquíria Padilha ção de proximidade com o Estado e com grandes empresas, a movimentos sociais
pouco ou muito estruturados, englobando grupos ambientais, culturais, religiosos e
Bibliografia associações de moradores que constróem estratégias que buscam melhorias para uma
comunidade ou grupo específico da população. Uma de suas características é sua ex-
ADORNO, T. Palavras e sinais. Modelos críticos 2, Petrópolis: Vozes, 1995.
trema heterogeneidade, o que repercute na ausência de consenso quanto à abrangência
ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São de seu conceito (TEODÓSIO; RESENDE, 1999; FERNADEZ, 1994; VOIGT, 2001; dentre outros).
Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
O nível de organização de uma sociedade guarda relação direta com o tercei-
ELIAS, N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ro setor. A ação pública da sociedade civil é capaz de mobilizar recursos, sinergizar
FROMM, E. Psicanálise da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.
iniciativas, promover parcerias em prol do desenvolvimento humano e social sus-
GORZ, A.. Bâtir Ia civilisation du temps libere. Lê Monde Diplomatique, Paris, mar. 1993.
tentável. O olhar da sociedade civil detecta problemas, identifica oportunidades e
MARCELLINO, N.C. Lazer e educação. Campinas: Papirus, 1990.
vantagens colaborativas, descobre potencialidades e soluções inovadoras em lugares
MARX, K. O capital, v. l, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, Livro I.
em que o olhar do Estado não penetra e ao mercado não interessa, porque não gera
MÉSZÁROS, I. Produção destrutiva e estado capitalista. São Paulo: Cadernos Ensaio, 1989. (Série lucro. A quantidade, a qualidade, a força e o conhecimento acumulado dessas organi-
Pequeno Formato, v. 5).
zações formam o capital social de uma nação, não contabilizado nos cálculos de seu
MOTHÉ, D. L' utopie du temps libre. Paris: Esprit, 1997.
Produto Interno Bruto (PIB) (FRANCO, 2000).
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O fortalecimento do terceiro setor tem relação direta com o surgimento de inú-
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meros desequilíbrios e desigualdades advindos do processo de desenvolvimento en-
SUE, R. De Ia sociologie du loisir à Ia sociologie dês temps sociaux. Sociétés - Revue dês Sciences tre as nações. A globalização vem ocupando-se apenas dos aspectos económicos e
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está deixando à mostra problemas sociais sérios que necessitam ser abordados com
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urgência, como a preservação do meio ambiente, mudanças nos processos de produ-
vuelta y consciência de clase. [s. L): Editorial Crítica, 1979.
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VEBLEN, T. A teoria da classe ociosa: um estudo económico das instituições. São Paulo: Nova
Cultural, 1988. (Os Economistas).
mo, a habitação, valores como a paz e a ética. Existe o reconhecimento na sociedade
da importância de promover o desenvolvimento sustentado que, além do tradicional
enfoque económico, direcione esforços no atendimento às necessidades humanas e
que todas as políticas públicas e ações governamentais procurem ir além dos pro-
cessos de produção e consumo, vitais para a questão ambiental, mas que priorize
TERCEIRO SETOR
também o desenvolvimento social.
São três os setores capazes de estabelecer mudanças na realidade social. O primeiro Uma tendência bastante significativa para enfrentar os problemas sociais emer-
setor é o Estado, responsável pelo controle coletivo e pela melhoria das condições de gentes é a ascensão de organizações não-governamentais (ONGs) que se apresentam
vida. O segundo é o mercado que corresponde aos interesses privados, cuja competi- como um dos fenómenos mais notáveis nesse final do século XX e começo do novo
ção, por mais eficaz e racional, visa ao lucro como resultado. E o terceiro é a socieda- milénio. Esse fenómeno também passou a ocorrer no Brasil, com o início da organi-
de civil, formada por comunidades locais, linguísticas, étnicas, profissionais, religio- zação da sociedade que começou a querer fiscalizar e participar das decisões públi-
sas, ou seja, pessoas em situações semelhantes e que partilham características cas, num processo de ampliação da cidadania. Hoje, no Brasil, somam-se, aproxima-
importantes, como a confiança, a solidariedade, a fé, a amizade, gerando cooperação damente 250 mil organizações aluando nos mais diferentes setores, com ênfase
e unindo pessoas em sentido coletivo com o mesmo objetivo. principalmente na área social. Em todos os níveis, tanto local quanto de caráter
global, surgem organizações de cidadãos em torno dos impactos sociais e ambien- sociedade que se mostra cada vez mais multifacetada e tem como atributos centrais
tais, das políticas e das tecnologias industriais existentes (FERRAREZI, 2000). a capacidade de articulação e de negociação, diferentemente da gestão privada, que
Incapaz de resolver sozinho os problemas sociais, o governo tem procurado se caracteriza pela agressividade e competitividade no alcance de metas do empre-
criar novas alternativas mediante parcerias com instituições da sociedade civil, endimento (TEODÓSIO; RESENDE, 1999).
principalmente do terceiro setor, na busca de soluções para o déficit social. Com A profissionalização de prestadores de serviços na área social está se tornando,
isso, o número de ONGs, com ações voltadas diretamente para a área social, tem assim, uma necessidade, tendo em vista a manutenção da qualidade dos serviços e a
aumentado de forma incontestável e, com certeza, passará a ser uma alternativa de sistematização das ações, o que dificilmente ocorre com o trabalho voluntariado. As
trabalho para as pessoas que estão excluídas do mercado formal pela globalização e áreas relacionadas à manutenção da saúde, à preservação do meio ambiente, à ques-
pelos avanços tecnológicos. Nesse terceiro setor tem-se verificado o surgimento de tão da moradia, do lazer, da educação de crianças e adolescentes e o atendimento ao
uma ação comunitária forte, atuante e mobilizadora, capaz de prover o cidadão dos idoso sobressaem como prioridades no atendimento às comunidades e organizações
serviços sociais básicos. sociais e, portanto, na profissionalização do terceiro setor.
Muitas ações propostas pelo terceiro setor foram e estão sendo incorporadas A prática do lazer pode ser um importante instrumento de intervenção social
por governos e empresas privadas, que hoje têm, em suas metas, a promoção de pes- para gerar mudanças com objetivo de considerar o conjunto de condições básicas
quisa para o desenvolvimento de tecnologia de recursos renováveis e eficiência ener- para a melhoria da qualidade de vida, destacando-se o processo educativo conscien-
gética, de práticas empresariais socialmente responsáveis e de implantação da ges- tizador, a valorização e o fortalecimento das iniciativas comunitárias e a formação
tão ambiental, dentre outras iniciativas. de agentes de mobilização social. O profissional da área de lazer que atua com desen-
Com a participação do Estado e do mercado na destinação de recursos finan- volvimento social, mobilização comunitária, organização de grupos de interesses co-
ceiros, tecnológicos e humanos, o terceiro setor vem ganhando espaço para uma atua- letivos, associações, cooperativas deverá ter competência para diagnosticar e anali-
ção mais efetiva, principalmente na área social. A parceria, principalmente com o sar a conjuntura social da comunidade, definir e redefinir diretrizes de ação frente a
setor público, tem resultado em alterações de políticas públicas com a incorporação conjunturas específicas, elaborar, executar e avaliar programas e projetos de interesse
de suas demandas e a participação na gestão de programas e projetos. A participação da comunidade que visem a melhoria da qualidade de vida. Esse campo de ação requer
do setor de mercado está dando um caráter mais transparente às ações, com acom- um profissional com ampla capacidade para atuar com as relações interpessoais, que
panhamento das atividades realizadas e avaliação dos resultados. saiba trabalhar em grupo, tenha criatividade, iniciativa e espírito crítico.

O maior desafio é firmar uma ética da solidariedade e uma prática de co-res- Essa é uma área que apresenta uma multiplicidade de campos de ação, que
ponsabilidade entre as políticas públicas do primeiro setor, o dinamismo e os recur- envolve diretamente mudanças sociais e requer um profissional capaz de promo-
sos materiais, humanos t técnicos do segundo, e o espírito de luta, a sensibilidade e a ver a integração e facilitar os processos de inclusão social, desenvolver atividades
criatividade do terceiro setor em prol do desenvolvimento humano e socialmente de geração de emprego e renda ou ainda ter a capacidade de fomentar o bom apro-
sustentado. O papel proativo do terceiro setor deve estar a serviço da redefinição do veitamento do tempo livre transformando o ócio em produção criativa por meio
desenho das políticas públicas governamentais, procurando transformá-las em po- de práticas físico-desportivas, artístico-culturais, recreação, entretenimento e fol-
líticas de parceria entre Estado, mercado e sociedade civil em todos os níveis, com a clore. Portanto, o mercado de trabalho está demandando um profissional que dê
incorporação das organizações de cidadãos em suas fases de elaboração, execução, um caráter mais sistemático a programas sociais a partir de uma intervenção pla-
monitoramento, fiscalização e avaliação. nejada, integrada e sustentada, quer no setor público, iniciativa privada, quer no
terceiro setor. Diante desse quadro, o profissional da área de lazer que queira atuar
O campo da gestão é considerado um dos espaços centrais para o avanço das
no terceiro setor tem um amplo mercado de trabalho que, no entanto, ainda não
organizações do terceiro setor que incorporaram a noção de bem público e de cida-
está totalmente delimitado, pois depende da consciência social e cidadã de gover-
dania à formação, implementação e avaliação de suas ações, conciliando a visão dos
nos, empresários e população em geral.
mecanismos de mercado, da política, do social e do constitucional. A gestão social
empreendida pelo terceiro setor trabalha para a construção da cidadania em uma Cássio Avelino Soares Pereira

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9.790/99 como alternativa para o terceiro setor. Brasília: Comunidade Solidária, 2000.
se de todas as formas pré-humanas. É por demais conhecida aquela passagem de
FRANCO, Augusto de. O que está por trás da nova lei do terceiro setor. In: OSCIP. Organização da O Capital, em que Marx diferencia o pior arquiteto da melhor abelha: arquiteto
sociedade civil de interesse público: a lei 9.790/99 como alternativa para o terceiro setor. FER-
RAREZI, Elizabete. Brasília: Comunidade Solidária, 2000.
"obtém um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e,
portanto, idealmente. Ele não apenas efetiva uma transformação da forma da maté-
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (2000). Educação profissional: referências curriculares nacionais
da educação profissional de nível técnico l lazer e desenvolvimento social. Brasília: MEC, 36 p.
ria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objeto, que ele sabe que
determina, como lei, espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar
OFFE, Claus. Reforma do Estado. In: NABUCO,Maria Regina; NETO, António Carvalho (Orgs.)Relações
de trabalho contemporâneas. Belo Horizonte: IRT - Instituto de Relações do Trabalho da Pontifícia sua vontade" (MARX, 1983, p. 149-150).
Universidade Católica de Minas Gerais, 1999. Em outras palavras, o ser social, dotado de consciência, tem previamente con-
PEREIRA.CássioA.S.As organizações do terceiro setor no desenvolvimento das políticas de turismo e cebida a configuração que quer imprimir ao objeto do trabalho no ato de sua realiza-
de lazer. In: Turismo em análise. São Paulo: USP/ECA, v. 15, n. 2, nov. 2004.
ção. No trabalho, o momento distinguidor, essencialmente separatório.é constituído
PEREIRA, Cássio Avelino S. Turismo e lazer: tendências para o terceiro milénio. In: Licere. Belo Horizon- pelo ato consciente que, no ser social, deixa de ser um mero epifenômeno da repro-
te: Centro de Estudos de Lazer e Recreação (GELAR). Escola de Educação Física da UFMG, v. 3, n. l, 2002.
dução biológica. Ao pensar e refletir, ao externar sua consciência, o ser social se hu-
PUTNAM, Robert. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. maniza e se diferencia das formas anteriores do ser social.
REVISTA EXAME. Guia de Boa Cidadania Corporativa. São Paulo. Edição 754,2001. Foi isso que permitiu a Lukács (1978,p.8) fazer esta síntese: "O trabalho é um
REVISTA IBEROAMERICANA DO TERCEIRO SETOR. Projeto Cultural do Instituto Yacare. Brasí- ato de por consciente e, portanto, pressupõe um conhecimento concreto, ainda que
lia: Edição única, 2002. jamais perfeito, de determinadas finalidades e de determinados meios".
SEMINÁRIO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. Filantropia: marco legal e a universalização O trabalho mostra-se, então, como momento fundante de realização do ser so-
de direitos. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002.
cial, condição para sua existência; é, por isso, ponto de partida para a humaniza-
TEODÓSIO, Armindo dos Santos de Sousa; RESENDE, Graziele Andrade. Desvendando o Terceiro Se- ção do ser social. Não foi outro o sentido dado por Marx ao afirmar: "Como criador
tor: trabalho e gestão em organizações não-governamentais. In: Relações de trabalho contemporâ-
de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existên-
neas. Maria Regina Nabuco e António Carvalho Neto (orgs.). Belo Horizonte: IRT - Instituto de Rela-
ções do Trabalho da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1999. cia do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, eterna necessi-
VOIGT, Léo. Proteção social no Brasil: política públicas e terceiro setor. In: Seminário O poder públi- dade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida
co e o terceiro setor. Belo Horizonte: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 2001. humana". (MARX, 1983, p. 50)
VOLPI, Mário. O desafio do relacionamento entre o poder público e sociedade. In: Seminário O poder Por meio do processo de trabalho, com seu desenvolvimento na história huma-
público e o terc eiró setor. Belo Horizonte: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 2001. na, "tem lugar uma dupla transformação. Por um lado, o próprio homem que traba-
lha é transformado pelo seu trabalho; ele atua sobre a natureza;'desenvolve .as potên-
cias nela ocultas' e subordina as forças da natureza 'ao seu próprio poder'. Por outro
lado, os objetos e as forças da natureza são transformados ,em meios, em objetos de
trabalho, em matérias-primas etc". (LuKAcs, 1978, p. 16)
Á n-tn f^r,f*r:^^ .
estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa de maneira que quanto
Esse processo de transformação recíproca faz com que o trabalho social se con-
mais o trabalhador produz tanto menos tem para consumir, que quanto mais valo-
verta em elemento central do desenvolvimento da sociabilidade humana.
res cria, tanto mais se torna sem valor e sem dignidade, que tanto melhor formado
Agora precisamos introduzir outro elemento analítico importante. Quando se
o seu produto, tanto mais deformado o trabalhador, que tanto mais civilizado o
estuda o trabalho humano, é fundamental resgatar a distinção feita por Marx entre
seu objeto, tanto mais bárbaro o trabalhador, que quanto mais poderoso o traba-
trabalho concreto e trabalho abstraio. Em suas palavras, "todo trabalho é, por um
lho, tanto mais impotente se torna o trabalhador, que quanto mais rico de espírito
lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa quali- o trabalho, tanto mais o trabalhador se torna pobre de espírito e servo da nature-
dade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstraio gera o valor das mer- za". (MARX. In: FERNANDES, 1983, p. 152).
cadorias. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho do homem
Desse processo de trabalho na sociedade capitalista tem-se como resultante a des-
sob forma especificamente adequada a um fim, e nessa qualidade de trabalho con-
realização do ser social. Desenvolve-se um trabalho que se desefetiva em seu processo de
creto útil, produz valores de uso" (Marx, 1983, p. 53).
trabalho. O resultado do processo de trabalho, o produto, aparece ao trabalhador como
De um lado, tem-se o caráter útil do trabalho, intercâmbio metabólico entre um ser alheio e estranho ao produtor. Tem-se, então, que essa realização efetiva do traba-
os homens e a natureza, condição para a produção de coisas socialmente úteis e lho aparece como desefetivação do trabalhador. (MARX. In: FERNANDES, 1983, p. 149).
necessárias. Trata-se, aqui, do momento em que se efetiva o trabalho concreto, o Esse processo de alienação do trabalho (que Marx também denomina estranha-
trabalho em sua dimensão essencialmente qualitativa. mento) não se efetiva apenas no resultado - a perda do objeto -, mas abrange também
Deixando de lado o caráter útil do trabalho, sua dimensão concreta, resta-lhe o próprio ato de produção, que é o efeito da atividade produtiva já alienada.
ser apenas ser dispêndio de força humana produtiva, física ou intelectual, soci- Se o produto é o resultado da atividade produtiva, resulta que esta encontra-se
almente determinada. Aqui aparece a dimensão abstraía do trabalho, o trabalho também estranha ao trabalhador. Nas palavras de Marx: "no estranhamento do obje-
abstraio, no qual desaparecem as diferentes formas de trabalho concreto, que, se- to do trabalho só se resume o estranhamento, a alienação na atividade mesma do
gundo Marx, reduzem-se a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abs- trabalho" (MARX. In: FERNANDES, 1983, p. 152-153).
traio. Neste último caso, trata-se de uma produção voltada para o mundo das mer- O que significa dizer que, sob o capitalismo, o trabalhador não se satisfaz no
cadorias e da valorização do capital. O trabalho encontra-se envolto em relações trabalho, mas se degrada; não se reconhece, mas se nega."Daí que o trabalhador só
capitalistas que alteram em grande medida seu sentido histórico original. se sinta junto a si fora do trabalho e fora de si no trabalho. Sente-se em casa quan-
Se podemos considerar o trabalho como um momento fundante da sociabilida- do não trabalha e quando trabalha não se sente em casa. O seu trabalho não é,
de humana, como ponto de partida do processo de seu processo de humanização, tam- portanto, voluntário, mas compulsório, trabalho forçado. Por conseguinte, não é a
bém é verdade que na sociedade capitalista o trabalho torna-se assalariado, assumindo satisfação de uma necessidade, mas somente um meio para satisfazer necessida-
a forma de trabalho alienado. Aquilo que era uma finalidade básica do ser social - a des fora dele" (MARX. In: FERNANDES, 1983, p. 153).
busca sua realização produtiva e reprodutiva no t pelo trabalho - transfigura-se e trans- Em seus Extraías de Leitura sobre]. MUI, onde pela primeira vez apresenta
forma-se. O processo de trabalho se converte em meio de subsistência, sendo que a o significado da alienação, Marx afirma: "Meu trabalho seria livre projeção exterior
força de trabalho torna-se, como tudo, uma mercadoria especial, cuja finalidade vem a de minha vida, portanto desfrute de vida. Sob o pressuposto da propriedade privada
ser a criação de novas mercadorias objetivando a valorização do capital. (em troca) é estranhamento de minha vida, posto que trabalho para viver, para con-
Desfigurado em seu sentido primeiro, de criação de coisas úteis, o trabalho torna- seguir os meios de vida. Meu trabalho não é vida". (MARX, 1978, p. 293).
se meio, e não"primeira necessidade" de realização humana. Na formulação oferecida por O trabalho como atividade vital, verdadeira, sofre um enorme processo de re-
Marx, constata-se que "o trabalhador decai a uma mercadoria", torna-se"um ser estranho dução: "Uma vez pressuposta a propriedade privada, minha individualidade se torna
a ele, um meio da sua existência individual". (MARX. In: FERNANDES, 1983, p. 147 e 158). estranhada a tal ponto, que esta atividade se torna odiosa, um suplício e, mais que
Como expressão da realidade capitalista, da sociedade regida pelo valor de atividade, aparência dela; por consequência, é também uma atividade puramente
troca, tem-se a dialética da riqueza e miséria, da acumulação e privação, do possui- imposta e o único que me obriga a realizá-la é uma necessidade extrínseca e aciden-
dor e do despossuído. Ainda conforme Marx, "segundo leis da Economia Política o tal, não a necessidade interna e necessária" (1978, p. 299).
Desse modo a alienação como expressão de uma relação social fundada na pro-
priedade privada e no dinheiro apresenta-se como "abstração da natureza específica, uma relação entre coisas. "A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma ma-
pessoal" do ser social que "atua como homem que se perdeu a si mesmo, desumaniza- terial da igual objetividade de valor dos produtos de trabalho; a medida do dispêndio
do"(1978, p. 278). O trabalhador, diz Marx, sente-se livremente ativo em suas funções de forças de trabalho do homem, por meio de sua duração, assume a forma da gran-
animais (comer, beber, procriar etc.) e em suas funções humanas sente-se como um deza de valor dos produtos de trabalho; finalmente, as relações entre os produtores,
animal. O que é próprio da animalidade se torna humano e o que é próprio da humani- em que aquelas características sociais de seus trabalhos são ativadas, assumem a
dade torna-se animal. (MARX, 1983, p. 154).
forma de uma relação social entre os produtos de trabalho" (MARX, 1983, p. 71).
Alienado e estranhado diante do produto do seu trabalho e do próprio ato de Portanto, tem-se a prevalência da dimensão abstraía do trabalho, subordinando
produção da vida material, o ser social torna-se um ser estranho diante dele mesmo: e reduzindo sua dimensão concreta, de trabalho útil. Disso resulta o que Marx deno-
o homem estranha-se em relação ao próprio homem. Torna-se estranho em relação minou de o caráter misterioso ou fetichizado da mercadoria: ela encobre as dimen-
ao género humano. (MARX, 1983, p. 158).
sões sociais do próprio trabalho, mostrando-as como inerentes aos produtos do tra-
Não se verifica o momento de identidade entre o indivíduo e o género humano, balho. Mascaram-se as relações sociais existentes entre os trabalhos individuais e o
mas o seu contrário, visto que nas sociedades regidas pelo capital "o valor de uso (o trabalho total, apresentando-as como relações entre objetos coisificados: "Não é mais
produto do trabalho concreto) não serve para a satisfação das necessidades. Ao in- nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui
verso, sua essência consiste em satisfazer as necessidades do não-possuidor. Ao tra- assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas" (MARX, 1983, p. 71). Na
balhador torna-se indiferente o tipo de valor de uso por ele produzido, não tendo vigência do valor de troca, o vínculo social entre as pessoas se transforma em uma
com ele nenhuma relação. O que desenvolve para satisfazer suas necessidades é, ao relação social entre coisas: a capacidade pessoal transfigura-se em capacidade das
contrário, expressão do trabalho abstraio: trabalha unicamente para manter-se, para coisas. Trata-se, portanto, de uma relação reificada entre os seres sociais.
satisfazer as meras necessidades 'necessárias'." (HELLER, 1986, p. 54). A racionalização própria da grande indústria capitalista moderna tende, ao ser
Na concretude do capitalismo, tem-se, portanto, que "tudo é'reificado'e as rela- movida pela lógica do capital, a eliminar as propriedades qualitativas do trabalha-
ções ontológicas fundamentais são postas de cabeça para baixo. O indivíduo, con- dor, pela decomposição cada vez maior do processo de trabalho em operações parciais,
frontado com meros objetos (coisas, mercadorias), quando seu 'corpo inorgânico' - operando-se uma ruptura entre o elemento que produz e o produto desse trabalho.
'natureza trabalhada' e capacidade produtiva externalizada - foi dele alienado. Não Este, reduzido a um nível de especialização, que acentua a atividade mecanicamente
tem consciência de um'ser pertencente a uma espécie'..., em outras palavras, conver- repetida. E essa decomposição moderna do processo de trabalho, de inspiração taylo-
te-se um ser cuja essência não coincide diretamente com a sua individualidade". rista,"penetra até a'alma' do trabalhador". (LUKÁCS, 1975, p. 129)
(MÉszAROS,1981,p.76)
Portanto, podemos dizer que, se por um lado, o trabalho é uma atividade hu-
A atividade produtiva, dominada pela fragmentação e isolamento capitalista, mana central na história humana, em seu processo de sociabilidade, posteriormente,
no qual os homens são atomizados, não realiza adequadamente a função de media- com o advento do capitalismo, deu-se uma transformação essencial, que alterou e
ção entre o homem e a natureza, reificando e coisificando o homem e suas relações. complexificou o trabalho humano. Marx utilizou de dois termos distintos (em in-
Em lugar da consciência de ser social livre e emancipado, tem-se o culto da privaci- glês) para melhor caracterizar essa dimensão ampla do trabalho: work e labour.
dade, a idealização do indivíduo tomado abstratamente. (Mészáros.p. 76-77) O primeiro termo (work) é mais dotado de positividade, sendo por isso uma expres-
Operou-se, portanto, uma metamorfose básica no universo do trabalho huma- são mais aproximada da dimensão concreta do trabalho, que cria valores socialmen-
no sob as relações de produção capitalistas. Ao invés do trabalho como atividade te úteis e necessários. O segundo termo (labour) expressa a dimensão cotidiana do
vital, momento de identidade entre o indivíduo e o ser genérico, tem-se uma forma trabalho sob a vigência do capitalismo, mais aproximada à dimensão abstrata do
de objetivação do trabalho em que as relações sociais estabelecidas entre os pro- trabalho, ao trabalho alienado e desprovido de sentido humano e social.
dutores assumem, conforme disse Marx, a forma de relação entre os produtos do O trabalho entendido como work seria expressão de uma atividade genérico-
trabalho. A relação social estabelecida entre os seres sociais adquire a forma de social, voltada para a produção social de valores de uso, sendo, por isso, o momento
da predominância do trabalho concreto. Em contrapartida, ao usar o termo labour, a
230 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]
ênfase está voltada para as atividades estranhadas e fetichizadas, que configuram o
trabalho assalariado. Os autores e as autoras
A desconsideração dessa dupla dimensão presente no mundo do trabalho,
que lhe dá complexidade, vem permitindo que muitos autores entendam equivo-
cadamente a crise da sociedade do trabalho abstrato como expressão da crise da Ana De Pellegrin - Bacharel licenciada em Educação Física, Mestre em Educação Físi-
sociedade do trabalho concreto e, desse modo, defendam equivocadamente o fim ca, área de concentração Estudos do lazer, pela Unicamp. Atualmente está cursando o Doutorado
do trabalho.
em Educação também na Unicamp, área de concentração História, Filosofia e Educação. Possui arti-
gos publicados sobre as relações entre Lazer e espaço e entre Lazer, educação e educação física.
E-mail: adpellegrin@uol.com.br
Fontes bibliográficas Ricardo Antunes
Ana Elvira Wuo - Atriz, clown, pesquisadora do LUME - Núcleo Interdisciplinar de Pes-
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Boitempo R. Os sentidos
Editorial, 1999. do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: quisas Teatrais (Unicamp) de 1993 a 1998. Bacharel em Artes Cénicas (Unicamp), Mestre em Estudos
do Lazer e Doutoranda em Pedagogia do Movimento - Estudos da Corporeidade, pela Faculdade de
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho?São Paulo: Cortez/Unicamp, l995. Educação Física da Universidade Estadual de Campinas-SP. Trabalha atualmente com técnicas de for-
HELLER, A. Sociologia de Ia vida cotidiana. Barcelona: Península, 1977. mação de clowns e atores em universidades do Brasil e exterior. E-mail: aewuo@itelefonica.com.br
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Antonia Marisa Canton - Diretora pela ECA/USP - Ciências da Comunicação com ênfa-
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ção Getúlio Vargas e SENAC. Professora e palestrante convidada em várias Universidades no Brasil.
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Barcelona: La Coisificación
Grijalbo, 1975. y Ia conciencia dei proletariado. In: Historia y Conciencia de Clase. Diretora da Canton Eventos e Cultura. E-mail: canton_eventos@uol.com.br

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António Carlos Bramante - Professor de Educação Física (São Carlos, SP), mestre em
MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. In: Marx. Extractos de Lectura -James MUI. Obras Educação (West Chester State University/USA) e Doutor em Filosofia/Estudos do Lazer e Administra-
na: MARX
de y ENGELS,
Grijalbo, 1978. Orne. Manuscritos de Paris y Anuários Franco-Alemanes - 1844. Barcelo- ção de Parques Públicos (Penn State University/USA). Professor Voluntário da FEF/Unicamp no Depar-
tamento de Estudos do Lazer. Professor no Curso de Turismo da Universidade de Sorocaba. Consultor
MARX/ENGELS. História. In: FERNANDES, Florestan (Org.). São Paulo: Ed. Atiça, 1983. em formulação e implementação de políticas de lazer no setor público e iniciativa privada. Autor de
inúmeras publicações sobre o lazer no Brasil e no exterior. E-mail: bramante@uol.com.br
MÉSZAROS,/. Marx: A teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

Cássia Hack - Licenciada em Educação Física e especialista em Educação Física Escolar


pela UFMT. Professora na Escola Estadual "Onze de Março" em Cáceres/MT. Aluna do Curso de Mestra-
do em Educação Física/Centro de Desportos/UFSC. Membro do Grupo de Estudos Observatório da
Mídia Esportiva - NEPEF/CDS/UFSC. E-mail: cassiah@terra.com.br

Cássio Avelino Soares Pereira - Mestre em Ciência Política pela UFMG. Diretor do
Centro de Pesquisa e Planejamento do Turismo - CPTUR. Contato: (38) 3221-7876. E-mail:
cassioavelino@hotmail.com.br

Christianne Luce Gomes - Licenciada e Mestre em Educação Física, Especialista em


Lazer e Doutora em Educação. Docente da UFMG (Cursos de Educação Física e Turismo). Coordena-
dora Pedagógica do Centro de Estudos de Lazer e Recreação (CELAR/DEF/UFMG). Editora da Re-
vista Licere. Autora do livro Lazer, trabalho e educação (Editora UFMG). Co-autora do livro Lazer
e mercado (Editora Papirus) e Organizadora do livro Lazer, recreação e educação física (Autênti-
ca Editora). E-mail: chris@eef.ufmg.br
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fDícioNAwo CRÍTICO DO LAZER]
Cristiane Queiroz de Souza Assunção - Licenciada em Educação Física pela UFMG. artigos sobre psicologia do lazer e do livro Dinâmica Lúdica - novos olhares (Editora Manole).
Professora do Centro Pedagógico da UFMG. Co-autora de artigos sobre o lazer, publicados em E-mail: schwartz@rc.unesp.br
Coletâneas do Encontro Nacional d,--. Recreação e Lazer e do Seminário O lazer em debate. E-
mail: crisq@uai.corn.br Hélder Ferreira Isayama - Professor e coordenador administrativo do Centro de Estudos
de Lazer e Recreação (GELAR) do Departamento de Educação Física da UFMG. Licenciado, Mestre e
Daniel Braga Hiibner - Bacharel em Turismo pelo Centro Universitário Newton Paiva. Doutor em Educação Física. Editor da Revista Licere. Co-autor dos livros Lazer ó- empresa (Papirus,
Especialista em Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor do Curso de Administra- 1999), Lazer e mercado (Papirus, 2001), Repertório de atividades de recreação e lazer (Papirus,
ção Hoteleira da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte. Membro do Centro de Estudos de Lazer e 2002). Organizador do livro Lazer, recreação e educação física (Autêntica, 2003). E-mail:
Recreação - CELAR/UFMG. E-mail: daniel@plusmail.com.br helderisayama@yahoo.com.br

Denise da Costa Oliveira Siqueira - Professora dos Cursos de Pós-Graduação e de Heloísa Turini Bruhns - Professora livre docente do Departamento de Estudos do Lazer-
graduação em Comunicação da UERJ. Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Mestre em FEF/Unicamp. Autora dos livros: O corpo parceiro e o corpo adversário e Futebol, carnaval e capo-
Ciência da Informação (ECO/UFRJ). Especialista em Sociologia Urbana (IFCH/UERJ) e graduada em eira (Papirus). Organizadora dos livros: Conversando sobre o corpo; Viagens à Natureza e Olha-
Comunicação (FCS/UERJ). Pesquisa o universo da comunicação e da arte, especialmente as artes céni- res Contemporâneos sobre o turismo (Papirus); Introdução aos Estudos do Lazer (Unicamp);
cas. E-mail: dcos@uerj.br Lazer e Ciências Sociais (Chronos); Temas sobre Lazer, O corpo e o lúdico, Enfoques contempo-
râneos sobre o lúdico e Representações do lúdico (Autores Associados), Turismo, Lazer e Nature-
za (Manole). E-mail: luabola@uol.com.br
Edmur António Stoppa - Graduado em Educação Física pela Unisa. Mestre e doutorando
em Educação Física, na área do lazer, pela Unicamp. Professor do Centro Universitário Claretiano, das
Faculdades Integradas de Guarulhos e membro do Grupo de Pesquisa de Lazer da Facef/Unimep. Autor Janete da Silva Oliveira - Mestranda em Comunicação Social pela Universidade do Esta-
do livro Acampamentos de Férias e co-autor dos livros Lazer e mercado e repertório de atividades do do Rio de Janeiro. Graduada em Ciências e Económicas e também em Relações Públicas. Especialis-
de recreação e lazer, todos pela Editora Papirus. E-mail: stoppa@osite.com.br ta em Pesquisa de Mercado e Opinião Pública pela mesma instituição. E-mail: jan@uerj.br

Euclides Guimarães - Sociólogo pela UFMG e Mestre em Comunicação e Cultura pela João Luís de Araújo Maia - Doutor em Sociologia - Universite de Paris V (Rene Descar-
UFRJ. Professor da PUC-Minas nos cursos da área de Comunicação, lecionando as disciplinas de Histó- tes) em 1993. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e realiza o
ria da Arte e Sociologia da Comunicação. Trabalha com Teorias Contemporâneas em Cursos de Pós- Pós-Doutorado no PACC da UFRJ. Coordena projeto de pesquisa sobre questões relacionadas à cidade
graduação. Professor colaborador do Curso de Especialização em Lazer da UFMG. E-mail: e à comunidade. Líder de grupo de pesquisa no CNPq - Grupo CAC: comunicação, arte e cidade. É
euclides@pucminas.br editor da revista Logos e da Revista Contemporânea, ambas do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da UERJ. Atua na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação. E-mail:
jmaia@msm.com.br
Fernanda Pizzi - Produtora editorial (graduada na Escola de Comunicação da UFRJ). Mes-
tranda em "Novas Tecnologias e Cultura" do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ.
Integrante do "Núcleo de Pesquisa sobre Ciberculturas"(CiberIDEA - UFRJ). E-mail: ferpizzi@rio.com.br José Alfredo Oliveira Debortoli - Professor na Escola de Educação Física, Fisioterapia
e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorado em Educação - PUC Rio.
Autor de publicações sobre a infância, a brincadeira e o ensino de educação física para crianças.
Giovani De Lorenzi Pires - Licenciado e Mestre em Educação Física pela UFSM e Dou-
E-mail: dbortoli@eef.ufmg.br
tor em Educação Física/Ciências do Esporte pela Unicamp. Professor adjunto do Departamento de Edu-
cação Física da UFSC e coordenador do Grupo de Estudos Observatório da Mídia Esportiva/NEPEF/
UFSC. E-mail: giovanipires@cds.ufsc.br Luciana Marcassa - Graduada em Educação Física pela Unicamp, Mestre em Educação
pela UFG, Professora da Faculdade de Educação Física da UFG, Pesquisadora vinculada ao GTT/Lazer
do CBCE com interesse na área de teoria e história do lazer. E-mail: lu.marcassa@uol.com.br
Gisele Maria Schwartz - Licenciada em Educação Física (EEFUSP). Mestre em Educa-
ção Física (FEF/Unicamp) e Doutora em Psicologia da Educação e do Desenvolvimento Humano
(IPUSP). Coordena o LEL - Laboratório de Estudos do Lazer, do DEF/IB/UNESP - Rio Claro. Profes- Marcelo Weishaupt Proni - Economista, mestre em Ciências Económicas pela Uni-
sora nos cursos de graduação em Educação Física e pós-graduação em Ciências da Motricidade na camp e doutor em Educação Física na Unicamp. É autor do livro A metamorfose do futebol
Unesp - Rio Claro, na linha de pesquisa Estados Emocionais e Movimento. É autora de diversos (lE/Unicamp, 2000) Co-organizador do livro Esporte: história e sociedade (Autores Associados,
2002) e coorganizador do livro Trabalho, mercado e sociedade: o Brasil nos anos 90 (Ed. Unesp, Atua na formação de educadoras de creches e professores das escolas indígenas há 10 anos.
2003). Atualmente, é professor do Instituto de Economia da Unicamp. E-mail: mwproni@eco.unicamp.br E-mail: roget@uai.com.br

Maria Cristina Rosa - Licenciada em Educação Física (UFV).Mestre em Educação Física/ Ronaldo Helal - Professor da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado
Área Estudos do Lazer, Doutoranda em Educação (UNICAMP). Organizadora do Livro Festa, Lazer e do Rio de Janeiro. Doutor em Sociologia pela New York University. Co-autor de A Invenção do País do
Cultura (Papirus) e autora de outras publicações sobre o lazer. Professora da Universidade Federal de Futebol: mídia, raça e ic/oiatria(Mauad,2001),co-organizadorde A Sociedade na Tela do Cinema:
Ouro Preto (UFOP). Email: mariacristinarosa@bol.com.br imagem e comunicação (E-Papers, 2002); autor de Passes e Impasses: futebol e cultura de massa no
Brasil (Vozes, 1997) e de O que é sociologia do esporre (Brasiliense, 1990). E-mail: rhelal@uerj.br
Maria Inês Galvão Souza - Mestre em Ciência da Arte, Licenciada em Educação Física.
Professora do Curso de Bacharelado em Dança/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coreógrafa Sérgio Dorenski Dantas Ribeiro - Licenciado em Educação Física pela UFS. Professor
e intérprete da Companhia de Dança Helenita Sá Earp. Coordenador do Núcleo Dança, Cultura e do Departamento de Educação Física da UFS e aluno do Curso de Mestrado em Educação Física do
Sociedade do Grupo de Pesquisa Lazer e Minorias Sociais (www.lazer.eefd.ufrj.br). E-mail: Centro de Desportos/UFSC. Membro do Grupo de Estudos Observatório da Mídia Esportiva - NEPEF/
inesgalvao@bighost.com.br
UFSC. E-mail: dorenski@bol.com.br

Olívia Cristina Ferreira Ribeiro - Licenciada em Educação Física pela Unesp - Uni- Silvana Vilodre Goellner - Doutora em Educação. Professora na Graduação e Pós-Gra-
versidade Estadual Paulista - Rio Claro/SP. Especialista em Lazer e Recreação e Mestre em Estudos do duação do Curso de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora do
Lazer pela Unicamp - Universidade Estadual de Campinas. Docente na Universidade Anhembi-Mo- Centro de Memória do Esporte da ESEF/UFRGS e Pesquisadora do CNPq. Atualmente coordena o Gru-
rumbi/SP nos cursos de Graduação em Lazer e Indústria do Entretenimento, Hotelaria e Turismo. Do- po de Estudos sobre Cultura e Corpo (GRECCO). Entre suas publicações destaca-se Bela, maternal e
cente no SENAC/SP na Graduação em Turismo e Hotelaria e nos cursos de Pós-Graduação em Lazer e feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica (Editora Unijuí, 2003) e Corpo, gé-
Administração Hoteleira. E-mail: oliviarib@uol.com.br nero e sexualidade, livro organizado juntamente com Guacira Louro e Jane Neckel (Vozes, 2003).
E-mail:goellner@terra.com.br
Patrícia Zingoni - Mestre em Educação pela Universidade São Marcos/SP. Assessora de
Gerência de Projetos Especiais da Prefeitura de Belo Horizonte. Coordenadora Pedagógica do Projeto Silvia Cristina Franco Amaral - Professora do Departamento de Educação Motora -
Criança Esperança em Belo Horizonte. Membro do Centro de Estudos de Lazer e Recreação - Celar/ Faculdade de Educação Física - Unicamp. Doutora em Educação Física - Estudos do Lazer - Faculda-
UFMG. E-mail: zingoni@terra.com.br de de Educação Física da Unicamp com estudos realizados na área de Políticas Públicas de Lazer. Auto-
ra de artigos em periódicos científicos nacionais e internacionais. E-mail: scfa@omega.fef.unicamp.br
Ricardo Antunes - Professor Titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp. Publi-
cou os livros: Os Sentidos do Trabalho (Boitempo); Adeus ao trabalho?(Cortez l Editora Unicamp, Valquíria Padilha - Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp - Doutorado "sanduíche"
publicado também na Itália, Espanha, Argentina, Venezuela e Colômbia); A rebeldia do trabalho (Edi- realizado na Université de Bourgogne, Dijon, França. Mestre em Sociologia pela Unicamp. Especialis-
tora da Unicamp); O novo sindicalismo no Brasil (Editora Pontes); Classe Operária, Sindicatos e ta em Recreação e Lazer pela Unicamp. Autora do livro Tempo livre e capitalismo: um par imperfei-
Partido no Brasil (Editora Cortez.); O que é sindicalismo? (Brasiliense), dentre outros. Coordena a to, Campinas: Alínea, 2000. Endereço eletrônico: valpadilha@terra.com.br
Coleção Mundo do Trabalho (Boitempo) e colabora em revistas e jornais nacionais e estrangeiros.
Email: rantunes@unicamp.br
Vânia de Fátima Noronha Alves - Graduada em Educação Física (UFMG). Especialis-
ta em Lazer (UFMG) e em Educação Física escolar (PUCMG). Mestre em Educação (UFMG). Douto-
Ricardo Ferreira Freitas - Doutor em Sociologia pela Universidade Paris V/Sorbonne, randa em Educação (USP). Professora de Lazer e Recreação no Curso de Turismo e Gestão em Hotela-
Mestre em Comunicação pela UFRJ e graduado em Relações Públicas pela UERJ. Professor adjunto da ria da FACE/FUMEC. Autora do livro O corpo lúdico Maxacali: segredos de um "programa de
Faculdade de Comunicação Social da UERJ. Autor do livro Centres commerciaux: iles urbaines de Ia índio (FUMEC-FACE, C/ Arte). E-mail: vanialnoronha@hotmail.com
postmodernité, editado pela L'Harmattan, Paris. Organizador da coletânea Desafios contemporâne-
os em comunicação, editada pela Summus, São Paulo. Email: rfreitas@uerj.br
Vera Lúcia Alves Batista Martins - Graduada em Sociologia e Política e em Adminis-
tração Pública pela UFMG. Mestre em Administração (CEPEAD/UFMG). Especialista em: Desenvolvi-
Rogério Correia da Silva - Professor do ensino fundamental. Mestre em Educação mento Económico (CEPAL/ILPES); Administração (Fundação João Pinheiro/Universidade de Colum-
(UFMG) e Brincante, pesquisou sobre a presença da televisão nas brincadeiras de crianças. bia); Ecologia Urbana (PUC-Minas/Universidade de Bolonha); Política Social (UNB) e Relações
Internacionais (PUC-Minas). Professora Adjunta dos Cursos de Relações Internacionais e de Tu-
rismo na PUC-Minas. Autora de artigos sobre qualidade de vida, exclusão social e política social.
E-mail: velumar@globo.com

Victor Andrade de Melo - Pós-Doutorado em Estudos Culturais. Doutorado em Educa-


ção Física (área: Educação Física e Cultura). Mestre em Educação Física (área: Estudos do Lazer). Pro-
fessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Teoria do Lazer). Coordenador do Grupo de Pesquisa
Lazer e Minorias Sociais (ww.lazer.eefd.ufrj.br). Autor dos livros Introdução ao Lazer(Manole, 1993)
e Lazer e Minorias Sociais (Ibrasa, 2003). E-mail: victor@bighost.com.br

Virna Carolina Carvalho Munhoz - Graduada em Educação Física e Pós-Graduada


em Lazer pela UFMG. Mestranda em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro/MG. Analis-
ta de Políticas Públicas da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Endereço: Av. Álvares Cabral, 200/5°
andar, Centro, Belo Horizonte, MG. CEP: 30170-000. E-mail: virnamunhoz@yahoo.com.br

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