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ISSN 1516-9162

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REVISTA DA ASSOCIAÇÃO ISSN 1516-9162
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 41-42, jul. 2011/jun. 2012

Título deste número:


Psicanálise: invenção e intervenção

Editores:
Maria Ângela Bulhões e Sandra Djambolakdjan Torossian

Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Gláucia Escalier Braga,
Maria Ângela Bulhões, Marisa Terezinha Garcia de Oliveira, Otávio Augusto W. Nunes,
Rosana de Souza Coelho e Sandra Djambolskdjan Torossian.

Colaboradores deste número:


Álvaro B. Olmedo, Comissão de Aperiódicos, Edson Sousa,
Isadora Braga Seganfredo e Maria Lúcia Stein

Editoração:
Jaqueline M. Nascente

Consultoria linguística:
Dino del Pino

Capa:
Clóvis Borba

Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem
por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém estudos
teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas
e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa,
a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições
científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRE


Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RS
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Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação


Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -

Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psi-
cologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em maio 2013. Tiragem 500 exemplares.
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EDITORIAL .............................. 07 Oficinas em saúde mental: costuras


entre o real,
TEXTOS simbólico e imaginário ..................... 86
As fórmulas da sexuação e a Workshops in mental health: seams
psicanálise em extensão ................. 09 between real, symbolic and imaginary
The sexualization formulas and Andréa M. C. Guerra
psychoanalysis in extension
Jaime Alberto Betts Entre .................................................. 101
Between
O colonialismo .......................... 22 Simone Moschen
The colonialism
Hugo D. Ruda SÓ. SÓ
Uma experiência de inscrição,
Psicanálise implicada: vicissitudes de sustentação de um devir,
das práticas clinicopolíticas ........... 29 no ato de trilhar corda
Implicated psychoanalysis: vicissitudes numa manhã na
of clinical political practices Casa dos Cata-Ventos .................... 111
Miriam Debieux Rosa An experience of inscription, support for
a becoming, in the act of jump rope in
Saber e trabalho na vida a Casa dos Cata-Ventos morning
secreta das palavras ....................... 41 Renata Maria Conte de Almeida
Knowledge and work in the secret life of words
Admardo Bonifácio Gomes Júnior Construções da clínica
Daisy Moreira Cunha em um CAPS .................................... 118
Yves Schwartz Clinical construtions in a CAPS
Ester Luiza Trevisan
Entre conversas e descobertas:
dispositivos de intervenção A histerização do discurso
diante das urgências de uma na enfermaria psiquiátrica .............. 128
escola de São Paulo ....................... 54 The hysterization of the speach
Amidst conversations and discoveries: at the psychiatric nursery
intervention strategies vis-à-vis the Luciane Loss Jardim
urgencies of a school in São Paulo
Ana Paula Musatti Braga Com a palavra, os analistas:
Viviani S. C. Catroli a psicanálise nos CAPS .................. 139
Miriam Debieux Rosa Now with the speech, the analysts:
psychoanalysis in CAPS
Psicanálise e o SUS: uma experiência Volnei Antonio Dassoler
em saúde pública ............................. 71
Psychoanalysis and the SUS an Quando a escuta
experience in public health se faz morada ................................... 153
Sandra Luiza de Souza Alencar When listening becomes adress
Lívia Zanchet
Intervenções clínicas em contextos de RECORDAR, REPETIR,
exclusão: reassentamento, ELABORAR
um lugar a construir ........................ 164 Psicanálise e ideologia ................... 216
Clinical interventions in the contexts of exclusion: Psychoanalysis and ideology
resettlement: a place to build Abrão Slavutzky
Janete Nunes Soares Ernildo Stein
Luciane Susin Hélio Pellegrino
Marisa Batista Warpechowski

Q"swg"tgvqtpc"pc"enîpkec"fc" VARIAÇÕES
atenção primária à saúde? ............ 173 Sobre o fazer clínico diante
What returns in clinic of primary health care? dos distúrbios de linguagem:
Eliana Mello o tempo e as condições para a
enunciação ...................................... 236
A violência nossa de cada dia: On the “clinical act” on language disorders:
o racismo à brasileira ...................... 183 the time and the conditions for the enunciation
Our daily violence: racism in a brazillian way Sonia Luiza Dalpiaz
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi
O superego da criança e a crueldade
Poder e violência no na escola .......................................... 249
discurso capitalista ......................... 194 The superego of the child and
Power and violence in the capitalist discourse
the cruelty at school
Rosana de Souza Coelho Alba Flesler
Políticas reparatórias e reconceituação Política, cultura e mercado num
do dano em mundo sem valores: diálogos entre
delitos de lesa-humanidade: psicanálise e estética ...................... 256
análise de um caso .......................... 203 Politics, culture and market in a world
Repairing politics and re-conceptualization of
without values: Dialogs between
damages in crimes against humanity:
Psychoanalysis and aesthetic
analysis of a case
Paulo Endo
Fabiana Rousseaux

ENTREVISTA
Psicanálise e seus litorais ............. 210
Psychoanalysis and its littorals
Maria Cristina Kupfer
EDITORIAL

F reud sustentava que “toda psicologia individual é, ao mesmo tempo e desde


um princípio, psicologia social”; assim, já no seu começo a psicanálise
rompeu a fronteira estabelecida entre indivíduo e sociedade. Tendo então
sido fruto de inúmeros debates, tal afirmação continua reverberando nos vá-
rios espaços de trabalho institucionais e pode ser retomada a cada texto aqui
publicado como um guia de leitura.
A psicanálise sempre foi foco de polêmicas e tensões quando colocada
na pauta das leituras do social. É frequentemente acusada de ser uma prática
burguesa e individualista. Não obstante, são inúmeros os psicanalistas que,
inseridos em diversas organizações, sustentam sua prática na ética psicana-
lítica, rompendo com o pensamento dualista e dicotômico do mundo.
Uma das contribuições fundamentais da psicanálise é saber-se aberta
e, por isso mesmo, sem intenções de dar conta de todas as possibilidades
analíticas do campo social e institucional. É justamente nesse ponto de abertura
que se faz tocar por outros campos do conhecimento. As interrogações sobre
essas práticas inauguram alguns dos textos aqui publicados, os quais são fruto
da estreita relação entre a APPOA e o Instituto APPOA – clínica, intervenção
e pesquisa em psicanálise.
Os autores norteiam-se, a exemplo de Freud, por essa tradição de aber-
tura, ou seja, ao serem interrogados por outros campos, produzem torções nos
litorais da psicanálise. As tensões-torções decorrentes de diversas inquietações
enlaçam os textos apresentados. Eles têm em comum a interrogação sobre a
possibilidade de inscrever, nas práticas sociais e políticas, as questões que a

7
EDITORIAL

clínica do sujeito e o reconhecimento da hipótese do inconsciente colocam à


psicanálise. Pensamos que se trata de um começo de produção teórica, um
tempo que se poderia aproximar aos tempos de ver e compreender propostos
por Lacan.
Em 1967, Lacan propôs dois novos termos: psicanálise em intensão e
psicanálise em extensão. A leitura destes foi, por vezes, realizada numa lógica
de separação, de oposição. A prática psicanalítica, pelo contrário, indica a
necessidade de uma leitura moebiana desses conceitos. Não será essa leitura
que nos permitirá avançar para além de uma compreensão dicotômica entre
textos metapsicológicos e culturais de Freud? Assim como entre indivíduo e
sociedade? Psicanálise em intensão e em extensão? Não é demais lembrar que
Lacan, ao nomear a intensão e a extensão, refere-se à formação do analista e
ressalta que a extensão diz respeito à função presentificadora da psicanálise
no mundo e a intensão “não faz mais do que preparar operadores para ela”.
Assim, pela via da intensão ∞ extensão, convidamos os leitores a se
aventurarem pelo percurso de reflexões de nossos colegas e desejamos uma
boa leitura e inspiração para novas produções!

8
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 9-21, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS
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C"RUKECPıNKUG"GO"GZVGPU’Q3
Jaime Alberto Betts2

Tguwoq< Esse texto aborda a psicanálise em extensão. O autor trabalha os quatro


discursos de Lacan, as fórmulas da sexuação e a patologia das comunidades cul-
turais para melhor situar a clínica da psicanálise em extensão e a ética do desejo.
Rcncxtcu/ejcxg< psicanálise em extensão, laço social, instituições, ética do desejo.

VJG"UGZWCNK\CVKQP"HQTOWNCU"
CPF"RU[EJQCPCN[UKU"KP"GZVGPUKQP
Cduvtcev<"This paper discusses psychoanalysis in extensión. The author appro-
aches Lacan’s four discourses, the formulas of sexualization and the pathology
of cultural communities to better situate clinical psychoanalysis in extensión and
ethics of desire.
Mg{yqtfu< psychoanalysis in extension, social bond, institutions, ethics of desire.

A psicanálise está à altura de falar o que quer que seja a respeito da vida da
instituição, de contribuir para a vida coletiva, inclusive para o político?
Jean-Pierre Lebrun (2009)
... podemos esperar que, um dia, alguém se aventure a se empenhar na
elaboração de uma patologia das comunidades culturais.
Sigmund Freud (1929 – Mal-estar na civilização)

1
Trabalho apresentado na Jornada Clínica da APPOA – Ainda mais Sobre o Gozo, em novembro
de 2012, resultado do trabalho de cartel realizado pela Linha de Trabalho O Desejo do Analista
nas Práticas Institucionais do Instituto APPOA.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Instituto
APPOA; Co-autor dos livros Sob o véu transparente – recortes do processo criativo com Claudia
Stern. Porto Alegre: Território das Artes, 2005; e (Re)velações do olhar – recortes do processo
criativo com Liana Timm. Porto Alegre: Território das Artes, 2005. E-mail: jaimebetts@gmail.com
9
Jaime Alberto Betts

O que as fórmulas da sexuação, propostas por Lacan ([1972-1973] 1982),


têm a ver com a psicanálise em extensão?
Partindo do título do trabalho, vamos iniciar colocando a questão: o que
é a psicanálise em intensão e em extensão?
Lacan fala, na Proposição de 9 de outubro ([1967] 2003, p. 251), de dois
momentos da psicanálise. São dois momentos na junção entre a “psicanálise
em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como
presentificadora da psicanálise no mundo e a psicanálise em intensão, ou
seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela”.
O que é presentificar a psicanálise no mundo? A psicanálise em inten-
são presentifica a psicanálise através da clínica individual do sujeito, ou seja,
preparando operadores para ela, lembrando aqui a afirmação de Lacan de que
toda análise que chega a seu fim, forma um analista, seja ele praticante ou não.
A psicanálise em extensão pode presentificar a psicanálise no mundo
de diferentes maneiras: seja como conhecimento e campo de pesquisa na
universidade, por exemplo, seja como campo da clínica ampliada, em que faz
clínica, pesquisa e intervenção em diferentes âmbitos do laço social, como
nas instituições, em equipes de trabalho, na política, em comunidades e nos
laços conjugais e familiares.
Segundo Rinaldi (2010), a psicanálise em extensão vai além da trans-
missão da psicanálise por via das instituições de formação de analistas, seja
pelo ensino ou pelo testemunho que os analistas aí podem dar de seu percurso,
mas também pela prática da psicanálise no âmbito das instituições públicas
de assistência.
No mesmo escrito, Lacan ([1967] 2003, p. 255) diz que o que deve pre-
dispor o psicanalista é “a prevalência, manifesta onde quer que seja – tanto
na psicanálise em extensão como na psicanálise em intensão –, daquilo que
chamarei de saber textual...”. Segue: “Em todos os objetos que a linguagem
propõe não apenas ao saber, mas que inicialmente trouxe ao mundo da re-
alidade, da realidade da exploração inter-humana, não se pode dizer que o
psicanalista seja perito. Isso seria bom, mas, na verdade, é muito pouco”.
A tendência de reduzir a psicanálise à psicanálise em intensão será uma
das formas de resistência à psicanálise?
O que deve predispor o psicanalista é a prevalência do saber textual onde
quer que se manifeste. O inconsciente é um saber textual, insabido. Presen-
tificar a psicanálise no mundo é presentificar a ética do desejo no laço social.
Aqui se coloca a questão de como fazer. Como operar a prevalência do
saber textual-ética do desejo na psicanálise em extensão? Segundo Lebrun
(2009, p.79), o desafio do psicanalista é analisar “uma nova distribuição de
gozos”, imposto pela mutação em curso no laço social.
10
10
As fórmulas da sexuação...

Q"swg"guvtwvwtc"q"ncèq"uqekcnA

O que institui o laço social entre os seres humanos? Freud, em Totem


e tabu ([1913] 1976), propõe o mito da horda primitiva como explicação para
a instituição da kultur/civilização se sobrepondo à natureza. Nesse mito, havia
um pai primevo da horda, tirânico e cruel, possuidor de todas as mulheres e
detentor do gozo absoluto. Tomados de ódio, os filhos desse pai se revoltam
e, entre irmãos, decidem matá-lo. Tendo feito isso, devoram o corpo do pai
assassinado, na tentativa de incorporar sua potência. Os irmãos são tomados
pela ambivalência entre o ódio que levou ao assassinato e o amor àquele
pai poderoso que poderia protegê-los. A culpa resultante leva ao recalque do
assassinato e institui a ordem social em que fica terminantemente proibido a
qualquer um deles ocupar o lugar do pai da pré-história.
Na sequência da narrativa freudiana, os irmãos instauram o totem como
primeiro representante simbólico do pai morto e periodicamente o animal totê-
mico é sacrificado e comido. Constitui-se, desse modo, a aliança fraterna – laço
social – de aceitação de um gozo limitado para cada um, o que fortalece os
vínculos amorosos, diminui a rivalidade e intensifica o respeito à lei paterna.
Institui-se assim o laço social civilizatório, sempre frágil, coibindo a satisfação
imediata e irrestrita das pulsões sexuais e da violência assassina do homem.
Freud também refere que, nesse mito, a morte e seu reconhecimento
são origem da moral e da religião, em que o sentimento de desamparo leva
à nostalgia do pai todo-poderoso não-castrado, que a comunidade de irmãos
reverencia e cultua na figura do totem, num ser superior divino, na moral e nos
bons costumes, bem como nas figuras de autoridade.
O destino do ato violento funda a lei primordial, que proíbe encarnar o
poder arbitrário e o acesso ao gozo sem limites, bem como institui o laço social,
em que o incesto e o assassinato são interditados e a exogamia é prescrita.
Freud sempre sustentou, diante das críticas, que seu texto Totem e tabu
recebeu, que o assassinato do pai da horda e o canibalismo são os atos de
fundação do simbólico e da cultura.

Q"okvq"fq"rck"fc"jqtfc"rtkokvkxc"g"c"vgqtkc"fqu"6"fkuewtuqu"fg"Ncecp

Com o retorno a Freud, promovido por Lacan, a interpretação do mito


freudiano ganha todo seu fundamento e alcance. Valendo-se dos recursos da
linguística estruturalista, Lacan indica que o mito da horda primitiva assinala
em seus mitemas as leis estruturais da linguagem, que constituem tanto o
sujeito quanto o laço social em suas diferentes formas.

11
Jaime Alberto Betts

Cabe ressaltar que as leis da linguagem implicam o imperativo da cas-


tração. Implicam uma divisão operante entre S1 e S2 – sendo S1 o significante
mestre que ex-siste ao conjunto e representa o sujeito diante de S2, o conjunto
de significantes que virão significar S1 no ‘só depois’. Entre S1 e S2 opera a
instância da letra, que divide o sujeito e escreve um saber textual da presença
real de um vazio, impossível de simbolizar, assim como a presença da falta de
objeto, ou seja, a presença do ‘objeto a’ que causa o desejo.
Aqui podemos tomar duas formulações de Lacan. A primeira, do
seminário O avesso da psicanálise ([1969-1979] 1992), em que formula a
teoria dos quatro discursos. Lacan propõe o conceito de discurso como a
estrutura que organiza o laço social, pois articula o campo do sujeito com o
campo do Outro.
O conceito de discurso, estrito senso, trata da realidade social da comu-
nicação e da mutação que aí sofrem os elementos da cadeia signifi-cante.

Um discurso é uma organização pela linguagem da comunicação


específica das relações do sujeito aos significantes e aos objetos,
as quais são determinantes para o indivíduo e regulam as formas
do laço social. O discurso determina as diversas formas que poderá
assumir a relação do sujeito com seu desejo, com seu fantasma,
com o objeto que tenta reencontrar e com os ideais que o orientam.
(Chemama, 1995, p. 47-48).

A teoria dos discursos se “interessa pelo que produz o sujeito e produz,


com ele, a ordem social na qual se inscreve.” (Chemama, 1995, p.50).
A estrutura topológica do tetraedro, que orienta as relações entre os
quatro lugares do discurso (sujeito e verdade no campo do sujeito, o outro
e a produção no campo do Outro), permite perguntar: quem ocupa o lugar
de agente do discurso e que verdade o impulsiona, a que outro agente e a
verdade se dirigem, qual é a produção desse discurso, e como a produção
retorna sobre o agente? (fig. 1)

Figura 1: os lugares na estrutura dos quatro discursos de Lacan

12
12
As fórmulas da sexuação...

Nesse sentido, o discurso do mestre é a estrutura que funda o laço social


e articula a constituição do sujeito – trata-se de uma formulação estrutural do
mito do pai da horda primitiva. No discurso do mestre, o S1 está na posição
de agente, o sujeito no lugar da verdade recalcada do agente, ambos intervêm
sobre o S2 na posição do outro, e têm como produto, simultaneamente, de um
lado, uma perda de gozo (perda do gozo do Outro, gozo absoluto suposto ao
pai da horda primitiva, ou do significante mestre personificado como amo), e de
outro, um plus-de-gozo, que é a possibilidade de um gozo limitado, de poder
gozar falicamente na linguagem a partir do objeto que falta e causa o desejar
(objeto a). Essa produção, por sua vez retorna sobre o agente, permitindo, pela
perda de gozo da produção, a distinção entre o significante mestre (S1) como
agente do discurso e sua encarnação imaginária na figura do amo. Lacan cria
o neologismo ‘ex-timo’ para designar esse objeto que é, ao mesmo tempo, o
mais íntimo e o mais estranho ao sujeito, constituindo o ponto de articulação
entre a psicanálise em intensão e em extensão.

Cu"hôtowncu"fc"nôikec"fc"ugzwcèçq

A segunda formulação que tomaremos é feita por Lacan no seminário


seguinte – Mais, ainda ([1972-1973] 1982) – em que ele expõe as fórmulas
da lógica da sexuação. Faz algumas precisões fundamentais em relação às
posições de Freud a respeito da sexualidade masculina e da sexualidade
feminina, em função dos destinos do complexo de castração em relação à
primazia do falo.
Propõe duas lógicas suplementares, uma para o lado masculino e outra
para o lado feminino (fig. 2).

Figura 2: as fórmulas da lógica da sexuação de Lacan

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Jaime Alberto Betts

É importante ressaltar dois aspectos. Primeiro, que são lógicas suple-


mentares e não complementares – masculino e feminino não completam um
ao outro, não formam Um. Segundo, que as duas lógicas são indissociáveis
uma da outra em sua suplementaridade, muito embora seja comum presenciar
o funcionamento dissociado das mesmas.
Do lado masculino, podemos fazer uma leitura do mito freudiano do pai
da horda primitiva como a estrutura da divisão operante na linguagem, em
que a diferença de lugares entre S1 e S2 designa respectivamente o lugar
do ‘existe Um não submetido à castração’ e o conjunto resultante de ‘todos
submetidos à castração’, em que a exceção faz a regra do conjunto. S1 é o
significante que fica fora para dar consistência e possibilidade de significação
ao conjunto do ‘todos submetidos à castração’ e com acesso à significação
e ao gozo fálicos. O sujeito masculino vai buscar do lado feminino o objeto a
que causa seu desejar.
Do lado feminino, Lacan se propõe ir além do limite freudiano da rocha
da castração. Ele parte do desdobramento, dos quantificadores aristotélicos,
e propõe que ‘não existe um, não submetido à castração’, o que implica que
o sujeito sexuado na lógica feminina esteja ‘não todo na castração’. Isso traz
algumas consequências. Por não haver a exceção do Um, não há conjunto
fechado e, portanto, o sujeito deve ser levado em conta um a um, cada um
e cada uma em sua singularidade. Entretanto, seu lugar é duplo, ou melhor,
opera com duas lógicas distintas simultâneas: por um lado está na castração,
ou seja, está na lógica estabelecida pelo ‘existe Um não submetido à castra-
ção’, o que constitui sua condição de ser falante, submetido, como todos, à
castração e ao gozo fálico. Mas, por outro lado, está ‘não todo na castração’.
Ao formular a lógica do ‘não todo na castração’, Lacan propõe do lado
feminino uma lógica que vai além da rocha da castração, ou seja, além dos
limites fálicos da linguagem. O falo simbólico, inscrito por Lacan do lado
masculino, é o significante da falta, resultado da operação de castração que
incide sobre o falo imaginário do lado do sujeito. Do lado feminino, inscreve
o S(A) – significante da falta no Outro –, indicando o vazio do real impossível
de simbolizar, ou seja a castração do lado do Outro, indicando também que A
mulher não existe. Isto é, que a mulher é uma a uma. Ou, ainda, que o sujeito,
do lado feminino, deve ser levado em conta, escutado, em sua singularidade.
Do lado feminino, como A mulher não existe, o sujeito se liga ao real de duas
formas, buscando do lado feminino o significante da falta no outro e do lado
masculino o falo simbólico, o significante da falta resultante da castração.
Além da rocha da castração há um gozo Outro, feminino, que o sujeito
pode experimentar, mas que é impossível articular pela linguagem. A lógica do
14
14
As fórmulas da sexuação...

‘não todo na castração’ abre-se para o real, o que é de fundamental importância,


mas que não deixa de ter consequências do lado do sintoma, como veremos
mais adiante em relação ao laço social que organiza.

Cu"hôtowncu"fc"ugzwcèçq."c"rcvqnqikc"fcu"eqowpkfcfgu"ewnvwtcku"g"c"
enîpkec"fc"rukecpânkug"go"gzvgpuçq5

Jean-Pierre Lebrun, em sua obra Clínica da instituição: o que a psica-


nálise contribui para a vida coletiva (2009), propõe uma clínica das instituições
fazendo uso da ferramenta conceitual das fórmulas lógicas da sexuação ela-
boradas por Lacan no seminário Mais, ainda ([1972-1973] 1982). Nessa obra,
Lebrun demonstra como as mesmas articulam as instituições, seus modos de
funcionamento e as formas de relacionamento que determinam entre seus
integrantes, bem como o laço que estabelecem com as pessoas que procu-
ram seus serviços ou produtos. Lebrun faz aqui uma verdadeira contribuição
na direção do que Freud afirmou em Mal-estar na civilização ([1929] 1976), a
respeito de esperar que algum dia alguém se empenhasse na elaboração de
uma patologia das comunidades culturais.
Lebrun propõe uma leitura da mutação do laço social a partir da moder-
nidade baseada nessas fórmulas de Lacan, com a consequente formação de
novas patologias das comunidades culturais. Essas patologias do laço social
(tradicionais ou novas) decorrem respectivamente das vicissitudes do complexo
de castração segundo se deem de forma predominante do lado da lógica de
sexuação masculina ou na lógica da sexuação feminina.
A mutação contemporânea do laço social se caracteriza pela pulveri-
zação das tradições e é provocada pelo deslocamento de sua organização
predominante no passado em torno do ‘Existe Um’ da sexuação masculina e
um laço social relativamente consistente dos sujeitos submetidos à castração
(incompletos), para o lado feminino de predominância do ‘Não há Um’. Esse
deslocamento produz um laço social relativamente inconsistente de sujeitos
“não todo” submetidos à castração, e por isso tendendo para uma completude
imaginaria.
Nas instituições organizadas predominantemente pela lógica do lado
masculino, o laço social se caracteriza por uma hierarquia mais ou menos
vertical, que ordena a organização do trabalho e as possibilidades de laço

3
Este subtítulo é uma ampliação de ideias propostas em Betts, 2011.

15
Jaime Alberto Betts

social decorrentes da mesma, como é o caso da igreja e do exército – tão bem


analisadas por Freud em Psicologia das massas e Análise do eu ([1921] 1976)
– assim como as corporações empresariais. Nessas instituições, a autoridade
ocupa o lugar da exceção, seja na figura de deus, de sacerdote, do comandante
militar – cujas ordens a tropa desafia à morte para cumpri-las – ou do chefe
nas empresas – ‘manda quem pode e obedece quem tem juízo’. Nas equipes
de saúde mental, geralmente chefiadas por um médico, o gozo estabelecido
pelo discurso médico tende a se perpetuar sem maiores questionamentos,
ou levando a práticas dissociadas dos profissionais de diferentes disciplinas.
Aqui se apresenta o sintoma que a lógica masculina costuma engendrar.
No sintoma do lado masculino, a tendência é do sujeito no lugar de exceção,
no lugar do ‘um não submetido à castração’, se identificar ao falo do poder
e se achar no direito de cometer toda sorte de excessos do poder, como
autoritarismos, arbitrariedades, abusos da pequena autoridade ou atos de
tirania, traduzíveis pelas expressões “eu sou a lei”, também caracterizado no
conhecido bordão “para os amigos tudo, para os inimigos, a lei”. A lógica do
lado masculino também pode se caracterizar pelos excessos burocráticos e
apego às certezas instituídas de qualquer natureza que sejam.
Na patologia do laço social organizado do lado masculino também te-
mos os efeitos imaginários de grupo e das massas. Em Função e campo da
palavra e da linguagem, Lacan ([1953] 1998, p. 285) fala das subjetividades
coletivas da igreja e do exército, referindo o efeito imaginário de identificação
ao líder, que é tomado como objeto de identificação e introjetado no ideal de
eu, permitindo com isso a identificação imaginária entre os ‘eus’, constituindo a
subjetividade coletiva dos grupos ou das massas. Cabe ressaltar aqui que não
existe sujeito coletivo, ou seja, que o lugar de enunciação é sempre singular,
mas o agenciamento das resistências comumente é coletivo (Leclaire, apud
Lebrun, 2009, p. 80).
Surge também uma dificuldade comum na leitura da fórmula da lógica
masculina, que encontra seus exemplos nas realidades referidas acima. É
tendência de se tomar o lugar de ‘existe Um’ de modo imaginário, ou seja, é
tomar como amo aquele que ocupa contingencialmente o lugar de sustentar
a ex-sistência do significante mestre. É encarnar imaginariamente o S1 em
alguém ou em alguma coisa, ao invés de entender esse lugar como uma fun-
ção simbólica, como um operador lógico que cabe àquele que ocupa o lugar
de exceção a função de exercer.
O lugar da exceção é simbólico e, como se sabe, o símbolo é a morte da
coisa. Cabe esperar que quem ocupa o lugar da exceção tenha bem operada
a divisão subjetiva resultante da castração, que incide sobre o falo imaginário,
16
16
As fórmulas da sexuação...

bem como para os sujeitos que compõem o lugar conjunto formado pelo lugar
de exceção. A esse respeito, observe-se que, nas fórmulas da sexuação, Lacan
escreve F, significante do falo simbólico, e não o (-ϕ), falo imaginário. Ou seja,
o F indica a borda do simbólico com o real, a falta de objeto que se procura
frequentemente recobrir com o falo imaginário do poder.
Aqui nos aproximamos do tema do desejo do analista. Trata-se do desejo
que sustenta o analista em seu ato. É o desejo de que surja a diferença, de
que o impossível seja reconhecido. Na psicanálise em extensão, é o desejo
que o impossível – ‘que não cessa de não se escrever’ – e a diferença de lu-
gares que produz possa ser reconhecida pelos sujeitos que compõem o laço
social em questão. A diferença é produzida pelo real que ‘não cessa de não
se escrever’, fazendo hiato entre S1 e S2. Ou seja, mesmo alguém ocupando
o lugar de exceção ao conjunto, esse lugar é ocupado pontualmente, tem um
mandato e depois é substituído. Mesmo ocupando esse lugar diferenciado,
quem o ocupa está também submetido à lei da castração, como os demais.
O lugar diferenciado do ‘existe um’ é o lugar do pai simbólico, do pai morto.
Lacan refere que este é o lugar do Nome-do-Pai, o significante operador da
lei da castração que interdita o desejo do Outro materno, tornando possível
ao sujeito uma significação fálica, e do lado feminino acrescenta-se a possibi-
lidade lógica de um gozo Outro, especificamente feminino, além da castração.
O problema é que em função do desamparo, referido por Freud em
Totem e tabu, resta a esperança de que haja um todo poderoso que possa
proteger ou que se deva temer. A tendência que insiste é imaginária, isto é,
de afirmar ou ter a esperança de que quem ocupa o lugar do ‘existe Um’ não
esteja submetido à castração; de que ocupar esse lugar diferenciado, exercer
a função do significante mestre, é encarnar o lugar do amo, detentor do falo,
representante do pai tirano (ameaçador ou protetor) do mito da horda primi-
tiva. Assim, podemos entender a servidão voluntária – descrita por La Boétie
(1986) como um discurso já no século XVI – como a esperança neurótica de
que se alguém temê-lo e servi-lo bem, o ser poderoso estará velando por ele,
protegendo-o de todo mal.
Nesse sentido, no seminário da Angústia, Lacan ([1962-1963] 2005)
refere que a castração é mais facilmente suportada pelo sujeito em relação
a si mesmo que suportar a operação de castração na segunda volta do oito
interior, em que se defronta com a castração do Outro.
As instituições organizadas predominantemente na lógica do lado
feminino surgem com os ideais da modernidade, inaugurada pelos ideais da
Revolução Francesa de liberdade, igualdade, fraternidade, e com seu des-
dobramento com a invenção da democracia no Novo Mundo, promovendo a
horizontalidade nas organizações, a igualdade diante da lei e o individualismo.
17
Jaime Alberto Betts

O laço social estabelecido predominantemente pela lógica da sexuação


feminina apresenta, por sua vez, outras vicissitudes do complexo de castração.
Num contexto de progressivo predomínio da lógica feminina do ‘não todo’,
o exercício da autoridade tende a ficar enfraquecido pelo aspecto estrutural
de que não há o ‘Um que não está submetido à lei da castração’. A patologia
da comunidade cultural se dá na medida em que se desliza do ‘não todo na
castração’ para um ‘todo não na castração’, com a recusa de qualquer diferen-
ciação de lugares. Ou seja, trata-se de uma forma de evitação da castração
do lado da lógica feminina. Com isso, a igualdade imaginária se expande e a
tendência é de que nenhuma diferenciação de lugares seja tolerada. A busca
é de decisões tomadas por unanimidade entre iguais, sendo que ninguém está
autorizado a propor um projeto e levá-lo adiante, ou que alguém possa bater
o martelo e tomar uma decisão, porque isso implicaria se diferenciar de algum
modo. Ou seja, a cada reunião tudo pode voltar a ser questionado por quem
quer que seja, levando no extremo, pela falta de um limite, a uma impossibi-
lidade de chegar a uma decisão, cristalizando uma “paralisia holofrásica da
decisão” (Lebrun, 2009, p. 102) na realização dos objetivos da instituição. A
miragem da completude em direção à qual desliza o imaginário do ‘todo não
na castração’ é traduzível pelo bordão do marketing da sociedade de consumo
de ‘sua plena satisfação ou seu dinheiro de volta’.

Övkec"fq"fguglq."rqnîvkec"g"rukecpânkug"go"gzvgpuçq

Rinaldi (1999), ao retomar o texto Totem e tabu, propõe que o mito da


horda primitiva possa ser considerado um mito político, em que o lugar do
poder absoluto daquele que detém o gozo é um lugar vazio, fundando um
pacto simbólico, instituindo o laço social, conforme dissemos acima, mas
também um pacto político. Ela propõe ainda que a partir da lei primordial,
puramente simbólica, se derivam os “jogos e arranjos simbólico-imaginários
que governam as relações entre os homens, sempre contingenciais, mas que,
ao cristalizarem-se, recalcam a sua origem”.
No seminário da Ética, Lacan ([1959-1960] 1988) opõe a ética do de-
sejo à moral do poder ou do que ele chama de serviço dos bens. A ética do
desejo implica o imperativo da castração, em que o sujeito está suficiente-
mente alertado de que no horizonte do desejo não há nenhum bem, apenas
uma falta de objeto.
Se a ética do desejo se referencia, portanto, ao impossível, a política é o
campo do exercício do poder, em que através do serviço dos bens se administra
a ilusão da existência de bens que poderiam satisfazer o desejo. Fica evidente
que isso traz consigo a rivalidade e a disputa, como é tragicamente visível nos
18
18
As fórmulas da sexuação...

conflitos armados ao redor do mundo, ou em muitas separações litigiosas do


laço conjugal, em que as partes brigam à morte, ao ponto de disputarem quem
fica com o número ímpar de talheres, onde a solução salomônica seria cortar
o garfo-falo em questão ao meio.
Lacan enfatiza que o poder em nenhuma circunstância está interessado
no desejo, o que faz muitos pensarem que é impossível sustentar a ética do
desejo fora da psicanálise em intensão.
Rinaldi (1999) pondera, no entanto, que, se considerarmos que a origem
do laço social e do pacto político que institui, se dá na lei primordial simbólica
(e real, real pela morte da coisa, lugar vazio), a política pode ser pensada como
o “campo de possibilidades de acesso – através da palavra, da troca simbólica
e da negociação – a um gozo que será sempre parcial e contingente”.
Lebrun, por sua vez, aponta que “somente existe antagonismo entre
ética do serviço dos bens e ética do desejo quando, em nome do bem, o
que esperamos é comandar o desejo” (2009, p. 71). O autor ressalta que as
instituições sempre têm critérios, em seu funcionamento, que pertencem à ética
do serviço dos bens, como, por exemplo, a cura e a preocupação pedagógica.
Entendemos que o serviço dos bens sempre estará presente nas instituições
e laço social, e que se torna um problema na medida em participar da ordem
instituída silencie o sujeito desejante.
O ato analítico no âmbito da psicanálise em extensão é o de apontar,
em contexto transferencial – numa situação de supervisão de equipe, por
exemplo –, o impossível que a diferença de lugares indica e que resulta do
vazio (divisão) operante na linguagem e da falta de objeto e perda de gozo
que opera: a castração que cabe a cada sujeito suportar.
Nesse sentido, a questão fundamental da vida de um sujeito nos dife-
rentes laços sociais de que participa não é da ordem da utilidade ou da moral
do serviço dos bens, mas se sua ação está em conformidade com seu desejo.
Isso se contrapõe à política, particularmente quando ela passa do cam-
po do contingente (do ‘para de não se escrever’) e se inscreve no campo do
necessário (‘não para de se escrever’), ou seja, como “sintoma das relações
sociais que vêm recalcar o movimento desejante, através das cristalizações
imaginárias, do engessamento burocrático e da moralizante luta pelo poder”
(Rinaldi, 1999).
No ato analítico, na psicanálise em extensão, trata-se de apontar o im-
possível em jogo no laço social, seja no de psicanalisar, seja no de governar,
no de educar, ou no de dois fazerem Um no amor.
Remontar a política ao seu fundamento simbólico é exercê-la como prá-
tica do impossível, o que significa na prática explorar o possível sem soldá-lo
ao necessário, e aceitar que o resultado será sempre contingente, limitado,
19
Jaime Alberto Betts

insatisfatório quando comparado ao ideal.


Lebrun (2009, p. 78) se pergunta: o que seria uma boa instituição? Duas
respostas. A primeira: é “uma instituição – quer favoreça a posição do Um,
quer aquela do Outro – que testemunharia em seu funcionamento o lugar do
terceiro”. A segunda resposta: “é aquela onde cada um, no lugar que esteja,
assume seu desejo em sua solidão, em sua solidão com o outro, sabendo que
esse ponto é de fato assintomático”.
Dispensar o pai mediante a condição de servir-se dele, como diz Lacan,
no laço social implica que “a pertinência do lugar do ao-menos-um seja identi-
ficada e reconhecida por cada um – ao um-por-um – para que ele disponha da
legitimidade que lhe é indispensável para poder funcionar” (Lebrun, 2009, p.
216). Ou seja, é possível funcionar institucionalmente sem que um chefe diga
aos demais o que têm que fazer desde que cada um reconheça a diferença
dos lugares que sua presença indica e situa (Lebrun, 2009, p.107).
O autor segue dizendo que, na modernidade, a terceiridade do lugar do
‘existe-um’ “não é mais dada de saída como uma aquisição, ela está a cargo
de cada um, e cabe a este ou esta que ocupa o lugar de exceção tornar sua
necessidade sensível junto a quem ele ou ela se dirige” (Lebrun, 2009, p.
218-219). Trata-se de que quem ocupa o lugar do ‘existe-um’ reconheça e
seja reconhecido pelos demais que está a serviço de uma lei que ultrapassa
a todos e que ele próprio se reconhece também submetido à mesma.
Cabe ao psicanalista, na clínica em extensão, trabalhar os dois lados.
Segundo Lebrun (2009, p.108), “o que constitui a ossatura da vida institucional
é esse corte entre os lugares S1-S2 e não unicamente o S1, como frequente-
mente pensam aqueles que vêm ocupar a posição dele”, bem como pensam
aqueles que referendam a ocultação do vazio que caracteriza esse lugar de
exceção pela sua ocupação por um líder, assim como por parte daqueles que se
opõem que o lugar diferenciado seja ocupado por alguém circunstancialmente.
A lógica do ‘não todo’ implica reconhecer que é o vazio que nos governa,
vazio introduzido pela linguagem, que organiza a irredutível diferença de lugares
e a falta que causa o desejar, tanto do lado masculino, quanto do lado feminino.
Nesse sentido, seja na predominância da lógica de sexuação masculina,
seja na predominância da lógica da sexuação feminina, a função do discurso
do analista, tanto na análise pessoal, quanto na clínica das instituições ou in-
tervenções psicanalíticas no laço social, é a de fazer reconhecer pelos sujeitos
implicados o impossível – o real, como vazio e como objeto a – que constitui
o ‘buraco angular’ que institui lugares diferenciados no laço social e causa a
divisão do sujeito.

20
20
As fórmulas da sexuação...

REFERÊNCIAS

BETTS, Jaime A. Estruturas coletivas, suas lógicas e modos de subjetivação: instrumen-


tos para uma clínica psicanalítica da instituição. Correio da APPOA. ISSN 1983-5337.
Porto Alegre, n. 200, abril 2011.
CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu [1913]. In: ______. Obras completas. Vol. XIV, ESB.
Rio de Janeiro: Imago, 1976.
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Vol. XVIII, ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
______. Mal-estar na civilização [1929]. In: ______. Obras completas. Vol. XXI, ESB.
Rio de Janeiro: Imago, 1976.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1988.
______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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Jorge Zahar Ed., 1998.
______. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro:
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______. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1982.
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LEBRUN, Jean-Pierre. Clínica da instituição: o que a psicanálise contribui para a vida
coletiva. Porto Alegre: CMC Ed., 2009.
RINALDI, Doris. Ética e política: questões para a psicanálise hoje. Homepage da In-
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________. O desejo do psicanalista no campo da saúde mental – problemas e impas-
ses da inserção da psicanálise em um hospital universitário. In: PIMENTAL, Adelma
et al. (Org.). Itinerários de pesquisa em psicologia. Belém: Amazônia Editora, 2010,
v., p. 17-32.

Recebido em 22/10/2012
Aceito em 30/11/2012
Revisado por Gláucia Escalier Braga

21
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 22-28, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS

Q"EQNQPKCNKUOQ3

Hugo D. Ruda2

Tguwoq< O artigo propõe encarar o discurso desde a lógica que preside a posição
psicanalítica, a qual surge da escuta de um discurso em continuidade. Ao perder
suas teorizações semiotizantes, tal discurso pode abordar o sujeito em relação ao
coletivo, ali onde se implicam seu corpo, seu gozo e seu desejo, lugar constituinte
de sua experiência e de seu devir ético, poiético e político.
Rcncxtcu/ejcxg< colonialismo, posição do analista, discurso, política.

VJG"EQNQPKCNKUO
Cduvtcev< The paper proposes confront the speech from the logic of the psychoa-
nalytic position, which comes from in the listening to speech in continuity. By losing
their theorizing imbued with meanings, such discourse can approach the subject
in relation to the collective, precisely where your body, your enjoyment and your
desire are implicated, constituent place of your experience and your becoming
ethical, political and poietic.
Mg{yqtfu< colonialism, position of the analyst, discourse, political.

“O mundo tal como é não necessita a poesia, mas


tal como é, ou seja, insuportável”.
Henri Meschonnic
1
Trabalho apresentado no V Congresso Internacional da Convergência: O ato analítico: suas
incidências clínicas, políticas e sociais, em Porto Alegre, junho de 2011.
2
Psicanalista. Membro da Escuela Psicoanalítica Argentina.E-mail: hugoruda@gmail.com
22 Traduzido por Paulo Gleich.
22
O colonialismo

C omeço com uma citação tomada do livro La poesía como crítica del sentido,
de Henri Meschonnic (2007), para introduzir um escritor, linguista e tradutor
francês que subverteu a teoria positivista da tradução a partir de seu trabalho
com a Bíblia hebraica. Ao propor que não há nela nem prosa, nem poesia, mas
canto, rompe com a política do signo, destitui a métrica e promove o ritmo,
propondo-nos, assim, um modo de encarar o discurso que vai nos guiar em
nossa exposição.
O disparador a partir do qual decidi abordar o tema foi uma referência de
Lacan ([1970] 1997), da lição de 18 de fevereiro do seminário XVII O avesso
da psicanálise. Ali, conta que depois da guerra tomou em análise três médicos
oriundos de Togo (colônia francesa). Diz:

Eu não pude encontrar em suas análises marcas dos usos e crenças


tribais, que não haviam esquecido, que conheciam, mas do ponto de
vista da etnografia… seu inconsciente funcionava segundo as boas
regras do Édipo. Era o inconsciente que lhes havia sido vendido ao
mesmo tempo que as leis da colonização, forma exótica, regressi-
va do discurso do Mestre, aspecto do capitalismo que se chamou
imperialismo. Em nome da ciência lhes havia sido expropriada sua
infância (Lacan, [1970] 1997, p.78).

Lacan faz notar que é a ciência, a etnografia, que tomou o relevo das
recordações de infância, sendo ela a encarregada de realizar o ideal colonia-
lista, consistente neste caso não apenas, nem necessariamente, na ocupação
territorial, nem na apropriação do produto do trabalho do colonizado, mas em
conquistar a posição de transformar seu próprio ideal, o do colonizador, em
ideal de todos, deixando para aqueles que não participam dele a condição de
“selvagem”.
Vou tentar comentar esse parágrafo de Lacan e acrescentar alguns
exemplos, tanto de minha clínica como de acontecimentos conhecidos por
todos, partindo da premissa de que não há temas psicanalíticos, mas escuta
psicanalítica, o que implica que entre as condições de uma análise em inten-
são e a presença de um analista fora do dispositivo analítico existe, por meio
do seu ato, uma lógica que se especifica por eludir as condições binárias
próprias do algoritmo científico, com sua política do signo pela qual o conhe-
cimento se divide em unidades mínimas e opera por pares antitéticos. Sujeito-
objeto, indivíduo-sociedade, poesia-prosa, escrita-oralidade, racional-emotivo,
civilização-barbárie. Suas pequenas unidades: palavra, fonema, significante-
significado, semantema, mitema, etc.

23
Hugo D. Ruda

Contrariamente, a lógica que preside à posição psicanalítica surge da


escuta de um discurso em continuidade, de modo a poder captar suas es-
cansões, seu ritmo, seu sabor (taam*) – como diz Henri Meschonnic –, suas
pontuações, suas rupturas, etc.
A partir dessa perspectiva, o discurso, ao perder suas teorizações se-
miotizantes, pode abordar o sujeito em relação ao coletivo, enquanto é ali onde
se implicam o corpo, seus gozos, seu desejo e sua indeterminação mesma,
não como uma especialidade das “ciências humanas”, mas como o lugar cons-
tituinte da experiência do sujeito em seu devir ético, poiético e político. Dirá
Meschonnic (2007) que não há lugar ali para que as palavras se comentem a
si mesmas, a estupidez, desde o princípio, triunfa e conclui.
Tomarei “a realidade” como um texto a ser interpretado, ainda em condi-
ções diferentes de como o texto de um analisante é oferecido em transferência
à análise.
Voltando a nossos doutores-analisantes de Togo, diria que Lacan situa
o colonialismo não apenas a partir de uma perspectiva social e política, mas
clínica, o que lhe permite advertir que no colonialismo se trata de uma obedi-
ência inadvertida, da qual resultam capazes nossas categorias mentais.
Nesse aspecto, o da obediência, surge o que me interroga, dado o
contexto colonial no qual se desenvolve nossa prática, tanto do ponto de vista
social, político e clínico. Refiro-me à aderência àqueles significantes que coa-
gulam o sujeito e dos quais a palavra proferida em uma análise deve livrá-lo.
Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem e se ordena em
discurso em uma análise, é a este discurso e a suas condições de produção
a que quero me referir. Tirarei proveito da distinção entre linguagem e discur-
so. Para isso, poremos do lado da linguagem as categorias tradicionais da
linguística, semântica, sintaxe, retórica, dialética, metáfora, metonímia, etc.
Do lado do discurso o ritmo, caracterizado por Meschonnic (2007) como
“a organização contínua da linguagem por um sujeito, de tal maneira que esta
organização transforma as regras de jogo pela parte que ele joga e que é o
único a jogar. Desse modo, só há travessia do sujeito quando uma linguagem
inteira é Eu. A voz restabelece a corporalidade, a gestualidade no modo de
significar. O discurso já não é, ali, uma escolha da língua nem operadores
lógicos, mas a atividade de um homem que realmente está falando”. Para
Heráclito, o ritmo consistia na organização do que está em movimento, oposto
à estrutura, que organiza o imóvel.

* “Sabor” em hebraico. (N.T.)


24
24
O colonialismo

Em nosso caso, me importa, como sempre, a posição do analista.


Perguntar-me o que permitiu a Lacan ([1970] 1997) não ficar escutando como-
damente em um discurso “as boas regras do Édipo”? Há ali muito mais para
pensar que em sua genialidade. Há uma posição política que, em primeiro lugar,
é a do analista capaz de pôr seu saber de lado. Em uma palavra, ele mesmo
deve ser dotado de uma escuta não colonizada, emancipada. Evidentemente
que, assim como não há analista todo o tempo, tampouco a emancipação é
um estado da alma, que alguns têm e outros não. Gostaria de chamar esse
analista, capaz de interrogar permanentemente seu saber, como o faz Jacques
Nassif (2011), o “analista implicado”. O outro, coagulado em seu saber refe-
rencial, tomado como “o que é”, gostaria de chamar o “analista colonizado”.
Essa questão da colonização se diferencia das operações de alienação-
separação, próprias da constituição do sujeito pelas características que o
Outro adota. Assim como nos foi explicado na mesa inaugural deste congres-
so, a respeito do capital financeiro e seu modo de parasitar o pensamento do
sujeito de nossa época, ao construir seus ideais de “felicidade e progresso”,
esse Outro só goza desse sujeito tornando-o mero objeto em uma operação
de acumulação voraz.
Proponho que quem se oferece para ocupar o lugar do analista é funda-
mental que esteja advertido desses fenômenos do colonialismo. Em particular
daqueles que podem afetar nossa maneira de nos situarmos frente à própria
doutrina psicanalítica, tornando-se ela mesma produtora de um saber já sa-
bido, tomado como o único saber possível, ao qual estamos tediosamente
acostumados, mais do que gostaríamos.
Vou passar a relatar alguns recortes tomados de diferentes discursos
que me serão necessários para encurtar caminho.
Há vários anos, tomei em análise um senhor, recém-casado com uma
bela e enamorada mulher, médica, que, como consequência de uma desa-
vença – por supor que ele havia estado com uma prostituta –, negava-se a
ter relações sexuais praticamente desde a lua-de-mel. Não obstante, estava
obstinada em ter um filho com seu esposo por meio de uma fertilização in vi-
tro, realizada com esperma de seu marido. Este se prestou e assim realizam
várias tentativas frustradas. Pouco tempo depois, o paciente teve um acidente
fatal, realizando um esporte no qual, apesar do alto risco, ele se considerava
expert. Depois de morto, a ciência teve sucesso e nasceu um menino. O mi-
lagre da santa concepção da Virgem Maria foi possível graças à ciência. Um
ano depois, a mãe-virgem morreu em um acidente automobilístico, dirigindo
em estado de embriaguez.
Por razões, desta vez ligadas à ciência econômica, falhou a voz da

25
Hugo D. Ruda

ministra de trabalho da Itália enquanto informava publicamente cortes nas


aposentadorias, no preciso momento de dizer que com isso se rompia a li-
gação entre gerações. O Gerente-Presidente Monti continuou, sem que sua
voz tremesse. Certamente não houve nenhum analista que fizesse a ministra
escutar essa falha, graças a que, pôde seguir em seu cargo, convencida de
estar falando de irrefutáveis questões de números.
No ano passado, durante uma manifestação em Tel-Aviv, uma multidão
gritava “para o governo somos apenas um número”. Estariam advertidos das
ressonâncias das quais esse grito era portador aqueles descendentes de avôs
portadores do ignominioso número que os nazistas tatuaram em seus braços?
Na capital do império do número, os “indignados” de Wall Street se no-
mearam “somos 99%”, dando mostras de que até para se indignar não podem
deixar de se pensar mais que como percentagens de um Todo.
Uma questão de obediência. Na biografia da “jovem homossexual” de
Freud ([1920] 1986) há esclarecimentos dos quais tomamos conhecimento
ao ser publicada a biografia da paciente, que põem o tema da obediência
novamente sobre o tapete. O pai da jovem, o qual havia acumulado uma
grande fortuna, queria ser reconhecido pela sociedade aristocrática de sua
época (igual a Freud, pelos gentios universitários). Como sua origem judaica
o impedia (Freud acreditava igual), um casamento “conveniente” de sua filha
poderia habilitá-lo. Claro que a cocote não entrava nesses planos. O sonho
de engano, que a jovem trama com sua amante, em um bar da esquina da
rua onde se encontrava seu próprio consultório, poderia ter servido a Freud
como interpretação da posição que fazia impossível sua escuta. Tampouco
houve um analista que o pudesse advertir, com respeito ao que os clássicos
chamavam “seus pontos cegos”. E Lacan ainda não havia dito que as resis-
tências são do analista.
Em oposição a esses discursos, o presidente da Bolívia, Evo Morales,
ao se referir à experiência política pela qual a América Latina está passando,
negou-se a usar a palavra “socialismo”, para dizer que se trata do inominável
de uma situação inédita. Na mesma linha, em oposição ao conceito tecno-
crático de “gestão”, o vice-presidente García Linera definiu a política como “o
sentimento de tensão que nunca cessa, o estremecimento abismal de que
sempre há algo a escolher entre forças contrapostas e que essa inconclusão
dramática é finalmente a que preside as grandes construções históricas”.
Em certa sintonia com a fala de Linares, Lacan, depois de nos dizer que
renuncie quem não tenha em seu horizonte a subjetividade de sua época…
acrescenta que “o analista deve saber de sua função de intérprete na discórdia
das linguagens. Pois como poderia fazer de sua vida o eixo de tantas vidas
26
26
O colonialismo

quem não soubesse nada da dialética que o lança com essas vidas em um
movimento simbólico?” Sublinho “discórdia das linguagens”.
Parece que demos volta no sentido do título de nosso congresso. Esta-
mos interrogando as incidências do social, do político e do clínico no momento
do ato analítico. Assim mesmo, fomos levados a interrogar-nos mais uma vez
pelo saber do analista e por sua formação, o que, por sua vez, nos obriga a
perguntarmos por nosso trabalho de escola, por nosso trabalho institucional,
pelo que às vezes é um pouco vagamente chamado transferência de trabalho
e finalmente pela comunidade de experiência, que em outras oportunidades
gostamos de chamar, com Blanchot, “a comunidade dos que não têm comu-
nidade” (Blanchot, 1972).
Precisamente, é Maurice Blanchot quem nos propõe uma versão da
transferência que tem pelo menos a utilidade de não cair na oposição binária
indivíduo-sociedade. Diz: “A fala analítica se sustenta na possibilidade que a
palavra tem de viajar através dos corpos e dos tempos, capacidade de dissemi-
nação entre falantes, que Freud chamou transferência” (Blanchot, 1972, p.51).
Voltando a nossas escolas, nos perguntamos que lugar ocupa nelas a
obediência como fator de coesão institucional. Claro que tal obediência não
tem por que ser especialmente a uma pessoa, pode sê-lo, como vimos, aos
paradigmas de uma teoria que não é interrogada. Império do que Lacan cha-
ma, em L’Étourdit (1973), o thombreo (unindo teoria e homem), tributário do
para todos, precursor, como diz ali, da ideia de raça, cultor dos universais e
impossibilitador de qualquer singularidade que seja invenção.
Primo, ao descrever a tediosa e resignada obediência dos soldados do
lager, os chamou “o produto de uma escola”.
Pensamos a comunidade de experiência como um instrumento político
para buscar uma saída “à universalização do sujeito da ciência, do fenômeno
fundamental cuja erupção o campo de concentração pôs em evidência, quem
não vê no nazismo só o papel de um reativo precursor” (Lacan, 2003, p.22-23).
Já a partir do título, este congresso rompe com a divisão abstrata entre
o social e o político, interrogando a política dos analistas a respeito.
Isso impõe uma decisão. Ou a psicanálise tenta situar-se no acordo das
ciências com seu lado mais semiotizante, ou opta, como nos propõe Lacan em
L’Insu, por apostar em produzir um despertar ligado aos efeitos de verdade
que uma interpretação porta por ser poética, ou seja, por ser capaz de afetar
os corpos. Isso não significa atirar pela janela nenhum aspecto fundamental
da obra de nossos mestres, mas voltar a fazer, como Lacan fez seu jardim à
francesa, nosso próprio jardim para sustentar a vitalidade da psicanálise. E
isso será assim se nós, os analistas-analisantes, pudermos estar à altura das
encruzilhadas em que nossa época nos coloca.
27
Hugo D. Ruda

REFERÊNCIAS

BLANCHOT, Maurice. La palabra analítica. Paris: Ed Gallimard, 1972.


FREUD, Sigmund [1920]. A Psicogênese de um caso de homosexualismo em uma
mulher. In: _____ . Obras Completas. Edição Standard Brasileira. v. XVIII. Rio de
Janeiro: Imago, 1986.
LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967. In: Outros Escritos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003.
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Recebido em 08/08/2012
Aceito em 10/10/2012
Revisado por Sandra Djambolakdjian Torossian

28
28
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 29-40, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS RUKECPıNKUG"KORNKECFC<"
xkekuukvwfgu"fcu"rtâvkecu"
enkpkeqrqnîvkecu

Miriam Debieux Rosa1

Tguwoq< Este trabalho apresenta a prática psicanalítica clinicopolítica e seu campo


epistemológico teórico-clínico de articulação entre psicanálise, sociedade e política.
Essa prática lança desafios e exige estratégias em dois âmbitos: do sujeito e das
práticas sociais. A escuta de sujeitos em contextos sociais violentos nos permitiu
traçar coordenadas da clínica do traumático e suas estratégias e dispositivos. A
direção possível de tratamento, sua ética e política baseiam-se em: restituir um
campo mínimo de significantes referidos ao campo do Outro; articular o privado ao
singular que promove a articulação ao laço social; romper com o discurso violento
que se apresenta como simbólico e marcar a supressão de qualquer participação
nesse gozo.
Rcncxtcu/ejcxg< prática psicanalítica, trauma, psicanálise, angústia, luto.

KORNKECVGF"RU[EJQCPCN[UKU<"
xkekuukvwfgu"qh"enkpkecn"rqnkvkecn"rtcevkegu
Cduvtcev< This paper presents the clinical-political psychoanalytical practice and
its clinical-theoretical epistemological field of articulation between psychoanalysis,
society and politics. This practice throws challenges and demands strategies in
two areas: of the individual and of the social practices. We also present the coor-
dinates of the clinic of the traumatic and its strategies and devices. The possible
direction of treatment, its ethics and politics are based on: restoring a minimum
field of significants referred to the field of the Other; articulating the private turned
to the singular, which promotes the articulation to the social bond; breaking with the
violent discourse that presents itself as symbolic and mark the supression of any
participation in this enjoyment.
Mg{yqtfu< practice of psychoanalysis, trauma, psychoanalysis, anxiety, grief.

1
Psicanalista; Professora dos programas de pós-graduação em Psicologia Social (PUC-SP) e
em Psicologia Clínica (IP-USP); Coordenadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade e Projeto
Migração e Cultura do IP-USP. E-mail: debieux@terra.com.br

29
Miriam Debieux Rosa

A s experiências de atendimento psicanalítico em comunidades marcadas


pela exclusão social e política e a escuta dos sujeitos afetados diretamen-
te por situações sociais críticas lançam desafios e exigem problematizações
teórico-conceituais necessárias para desvendar o enredamento do sujeito nas
artimanhas do poder, assim como para apontar as especificidades dessa que
chamamos de prática psicanalítica clinicopolítica.
A articulação entre sujeito e enlaçamento social e político lança-nos na
discussão da relação entre psicanálise dita em extensão ou psicanálise aplicada
fora da clínica, dado que se beneficia também das contribuições dos autores
da sociologia e da política. No entanto, a perspectiva que apresentamos neste
trabalho é de que nos mantemos na esfera da clínica, pois política e sociedade
são termos que relançam e explicitam a articulação da constituição subjetiva
com o desejo, o gozo e a dimensão dos laços sociais como laços discursivos.
Assim, entendemos essa prática não tanto como psicanálise aplicada, mas
como psicanálise implicada, ou seja, aquela constituída pela escuta dos su-
jeitos situados precariamente no campo social que permite teorizações sobre
os modos como são capturados e enredados pela maquinaria do poder. Tal
teorização também constrói ou realça táticas clínicas junto a esses sujeitos,
que remetem tanto à sua posição desejante no laço com o outro, como às
modalidades de resistência aos processos de alienação social.
Nossa prática psicanalítica tem elegido escutar as vidas secas (Rosa,
2002) – pessoas vivendo em situação de miserabilidade, adolescentes em
conflito com a lei, pessoas que passam por experiências desenraizantes – imi-
grantes, migrantes não documentados, refugiados. São trabalhos que rompem
o silenciamento mortífero desses que se veem assujeitados a discursos que
lhes vedam a condição de sujeitos. Entre outros, refiro-me a alguns estudos
sobre a imigração japonesa (Carignato, 2002); deslocamentos migratórios,
que lançam o sujeito em uma errância sem fim (Rosa; Carignato; Berta, 2006);
violência doméstica (Cerruti, 2007); impasses dos sujeitos em situação de
guerra, a particularidade do luto e angústia promovidos pelo desaparecimento
das pessoas contrárias à ditadura na Argentina (Berta, 2007); produção do
luto impedido em situações atendidas por Alencar (2011), na periferia de S.
Paulo; os militantes sem terra ameaçados de morte (Domingues, 2011); os
sujeitos diante dos racismos, os adolescentes com dificuldades de inscrição
no campo social (Carmo, 2011; Vicentin, 2010); a guerra aos ditos drogados
(Alencar, 2011), entre outros temas que têm ocupado nosso grupo de trabalho.
As especificidades dessa prática nos remetem a articulações em dois
âmbitos: junto ao sujeito e junto às instituições e discursos sociais. O enreda-
mento nos processos de constituição e de destituição do sujeito ao discurso
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30
Psicanálise implicada...

ideológico pode ser elucidado tanto diretamente na abordagem clínica estrito


senso, que encontra seus limites nesses contextos, como pela intervenção
no plano discursivo e pela via da historização dos laços sociais em dados
grupos sociais. As intervenções, nesses casos, visam criar condições de
alterações do campo simbólico – subjetivo, social e político. É nessa medida
que a psicanálise pode comparecer com elementos para favorecer modos de
resistência à instrumentalização social do gozo e à manipulação da vida e da
morte no campo social – um terrorismo do ponto de vista do poder soberano.
Diz Lacan, em A ciência e a verdade: “Por nossa posição de sujeito sempre
somos responsáveis. Que chamem a isto como quiserem, terrorismo” (1966,
p.873). Tais práticas levantam questões metodológicas (individuais e-ou cole-
tivas), armadilhas (intervir em nome do bem do outro) e impasses quanto ao
desejo do analista.
A abordagem psicanalítica clinicopolítica do lado das instituições e
práticas sociais (educacionais, saúde, jurídicas) dá destaque à alienação do
sujeito aos discursos hegemônicos, de modo a visar ao avesso dos mecanis-
mos de individualização, criminalização e patologização por eles produzidos.
Propõe-se a sinalizar e intervir nas formas sutis de preconceitos de classe,
de raça ou de gênero, presentes nesses mecanismos, que se efetivam de
vários modos, inclusive através de práticas ditas científicas, que desvinculam
os acontecimentos da história pessoal, familiar, institucional, social e política
dos implicados na cena. Difere de uma abordagem de diagnósticos autoexpli-
cativos, posição que se dá externamente à cena institucional em que o sujeito
fica abstratamente suspenso da trajetória institucional, do contexto social e
histórico, e seu comportamento pode ser imaginarizado como destituído de
sentido, e desde aí remetido ao campo do orgânico, portador de patologias
(Vicentin; Gramkow; Rosa, 2010).
A prática clinicopolítica nesse âmbito relança as demandas institucio-
nais, em geral focadas naqueles indivíduos que desorganizam ou atacam as
normas institucionais. Essas são relançadas para diagnosticar, não o indivíduo,
mas os laços sociais que atualizam os processos de exclusão em curso, e
buscar reverter e inverter a direção das práticas, de modo a permitir a todos
a elaboração de seu lugar na cena social. A direção de tratamento proposta
junto às instituições parte da demanda e do sintoma referidos à instituição e
seus efeitos no sujeito, em um posicionamento implicado na cena, na qual o
que está em jogo são os lugares do sujeito no discurso, na relação do sujeito
com a instituição, com o instituído e o instituinte. Elucida as trajetórias institu-
cionais e efeitos, seja de ofertar um lugar simbólico, seja de induzir identidades
imaginárias – nestas últimas, em lugar das histórias que podem ser contadas,
produz-se silêncio e impedimento.
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Miriam Debieux Rosa

A trajetória usual do trabalho analítico escuta o sujeito em sofrimento e


o conduz ao confronto com sua equivocação quando, referido ao significante
e ao campo do real, pode situar-se no simbólico em relação ao enigma que o
constitui. No entanto, muitas vezes, pelo efeito da alienação e silenciamento
promovidos pelas situações acima referidas e pelos impasses no confronto
com o discurso hegemônico, o trabalho necessita de estratégias de enfrenta-
mento, mesmo porque dificilmente os sujeitos procuram ou têm acesso aos
modos tradicionais da clínica. Nessa medida que acrescentamos, à clinica, o
aspecto político.
O campo das práticas psicanalíticas clinicopolíticas nos põe em conta-
to com situações clínicas que, se não lhes são exclusivas, se destacam. Ou
seja, nessas circunstâncias encontramos sujeitos sob o efeito disruptivo da
exposição à manifestação violenta da face obscena do Outro e impactados
pela angústia em sua dimensão traumática, que muitas vezes é impeditivo da
construção de sua demanda ao atendimento clínico.

C"enîpkec"fq"vtcwoâvkeq

A prática clinicopolítica do lado do sujeito depara-se com a questão


da angústia e do luto em sua face política, ou seja, a produção sociopolítica
da angústia e o impedimento dos processos subjetivos do luto. Trata-se dos
casos em que o sujeito não construiu uma resposta metafórica, um sintoma
através do qual possa falar de seu sofrimento e endereçar uma demanda.
Através dos atendimentos, avançamos na formulação sobre as intervenções
psicanalíticas nas situações de falta de endereçamento ao Outro, articulada
às dimensões de trauma e luto; muitas vezes, luto impedido ou negado às
pessoas que sofrem as diversas modalidades de violências e rupturas (Rosa
et al. 2002, 2006, 2012).
Em situações de violência pode haver a suspensão do luto e uma
posição melancólica em que o sujeito não nomeia a dor eternizada, que não
passa. A angústia surge justamente quando não há distância entre a deman-
da inconsciente e a resposta do Outro, quando se perde a distância entre o
enunciado e a enunciação. Nessa distância que se produziria a condição do
desejo, ou seja, quando a metonímia atravessa a ficção de sujeito construída,
mas desconstruída e reinventada, mantendo o deslizamento significante do
discurso e marcando a condição errante e nômade do desejo. A ficção do
sujeito, metáfora e nível sincrônico do discurso, alude ao ponto de basta que
circunscreve, revela e veda a verdade do sujeito. Ambos são concomitantes
e compõem a historicização do sujeito. As situações de violência favorecem
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Psicanálise implicada...

dissociações nesse processo. De um lado, um movimento contínuo sem ponto


de báscula, que pode resultar no desenraizamento do sujeito e numa errância
sem fim; ou, de outro lado, a identidade cristalizada alienante que retira o sujeito
de sua condição desejante (Rosa; Carignato; Berta, 2006).
O excesso de consistência do acontecimento ou, dito de outro modo,
o embate com a violência obscena do Outro, lança o sujeito na condição de
“não poder não recordar”, modo como Agamben (2002) descreve a condição
de pessoas nos campos de concentração. Trata-se de um impedimento do
esquecimento, do recalque necessário para separar-se do acontecimento.
Pudemos identificar nos sujeitos que se confrontam com essa dimensão do
Outro uma perda do laço identificatório com o semelhante, um abalo narcísico
que o lança à angústia e ao desamparo discursivo, que desarticulam sua ficção
fantasmática e promovem um sem-lugar no discurso, impossibilitando-os do
contorno simbólico do sintoma e de construir uma demanda. A angústia, nesses
casos, apresenta-se não como manifestação sintomática (caso da angústia
neurótica em Freud), tampouco como fuga, mas como um tempo no qual o
sujeito custa a se localizar e que, por essa razão, é vinculado ao sentimento de
estranheza, o unheimlich freudiano (2006).
Esse tempo, no qual o sujeito custa a se localizar, tem efeitos em sua
posição subjetiva e no laço social. Tais condições se traduzem num
silenciamento: silenciado sob o signo da morte, o sujeito é fadado a vagar
sem pouso, sendo-lhe vedada a experiência compartilhada, a posição de
passador da cultura. E, muitas vezes, no lugar do significante que possibilite
apresentar a ausência do Outro, assim como o excesso de presença, sob
um véu, apresentam-se imagens ao modo da loucura individual ou coletiva
(Lacan, 1958/59).
Esse silêncio, a dor e a falta de demanda são as vicissitudes do
psicanalista nessa clínica. Se não há demanda, se a dor é presumida pelos
fatos e pelo vazio do silêncio, o que sustenta a posição do analista? Que
direção dar a essa clínica?

Woc"fktgèçq"rquuîxgn"fg"vtcvcogpvq"gvkec"g"rqnîvkec

As vicissitudes da prática psicanalítica nos remetem à formulação de uma


direção possível de tratamento, que leve em conta que, nas situações sociais
críticas, para tratar o trauma provocado pela intervenção do Outro totalitário,
que pretende apagar todas as marcas da subjetividade e reduzir os homens
a restos. Nessas circunstâncias, é necessário um trabalho que finque suas
bases na reconstituição do laço social, norteadora do funcionamento do campo
social. Essas estratégias visam restituir um campo mínimo de significantes,
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Miriam Debieux Rosa

referidos ao campo do Outro, para que possam circular, o que permite ao sujeito
localizar-se e poder dar valor e sentido à sua experiência de dor, articulando
um apelo que o retire do silenciamento.
Ou seja, visa-se à transformação do trauma em experiência comparti-
lhada e na construção da posição de testemunha, transmissor da cultura. Além
disso, usamos as estratégias que levam em consideração as precondições
sociopolíticas e subjetivas necessárias para a elaboração do luto, para fazer
valer a dimensão do desejo, melhor defesa contra o gozo mortífero.
Os casos de Isac e Nahib (nomes fictícios de pessoas atendidas por
Christian Haritçalde, da equipe do projeto Migração e Cultura, da USP2) nos
introduz às nossas considerações. De volta ao lar, depois do trabalho, Isac
e o irmão, africanos do Congo, encontraram sua casa, com os pais e outros
irmãos, incendiada por rebeldes. Em pânico, os irmãos fogem, cada um em
uma direção, para garantir chances de sobrevivência para pelo menos um
deles. Isac pega um navio e vem para o Brasil, e aqui é abrigado na Casa do
Migrante. Tem insônia e crises de angústia com as imagens da casa incendiada.
Considera que seu maior sofrimento é não saber o destino ou paradeiro do
irmão e não ter como ou onde procurá-lo. Nahib quer morrer e tenta se matar.
Depois de assassinados seus pais, por questões políticas em Angola, foge
e, ao chegar ao Brasil, tem a notícia de que as duas irmãs que ficaram foram
também assassinadas.
Como abordar a questão da angústia e do luto, tanto considerando a
produção sociopolítica da angústia, como o impedimento político do processa-
mento subjetivo das situações traumáticas? Os sujeitos sob o efeito destrutivo
de situações traumáticas podem desarticular sua ficção fantasmática e perder
o laço identificatório dos semelhantes para com eles – estes tendem a recuar
diante do terror – com o que perdem a sua solidariedade e são lançados fora da
política. Tais condições promovem um sem lugar no discurso, impossibilitando

2
Trata-se de trabalho de extensão universitária desenvolvida no Instituto de Psicologia da Uni-
versidade de São Paulo e teve seu início em 2004, a partir do pós-doutorado “História, Clínica
e a Cultura em Psicanálise”, de Taeco Toma Carignato. Faz parte das atividades do Laboratório
Psicanálise e Sociedade do IP-USP e do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Curso de Pós-gra-
duação de Psicologia Social da PUC-SP. A Casa do Migrante visa acolher migrantes brasileiros
recém-chegados; imigrantes e refugiados, indivíduos envolvidos no drama mundial da mobilidade
humana, sem distinção de sexo, etnia, cor, credo, nacionalidade ou qualquer outra forma passível
de discriminação. Trata-se de um trabalho da Missão Escalabriniana junto aos migrantes. As inter-
venções são realizadas por estagiários e supervisionadas por psicanalistas e coordenadas por mim.
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Psicanálise implicada...

os sujeitos de construírem uma demanda. Isso se traduz num silenciamento,


sob o signo da solidão e da morte. O que está em jogo é a potência enlouque-
cedora do traumático, pois, segundo Pujó, o encontro com uma mesmidade,
sem maior deslocamento, nem metaforização, desnuda a incoercível resistência
do trauma à sua tramitação. As condições de degradação põem em destaque
a necessidade vital de velamento do caráter mortificante do impacto pulsional,
ou seja, “a necessidade de faltar ao Outro ali onde o sujeito experimenta-se
gozado” (Pujó, 2000, p.29). Nas guerras, com ou sem nome, trava-se outra
guerra, entre a resistência do sujeito e a resistência do trauma e sua insistência
em enlouquecer o sujeito de sua completude.

Fcu"ctvkocpjcu"fq"rqfgt"ä"cnkgpcèçq"guvtwvwtcn"cq"fkuewtuq"fq"Qwvtq

A prática clinicopolítica, nessas circunstâncias, encontra um primeiro


desafio: é fundamental separar o enredamento da alienação estrutural ao
discurso do Outro das artimanhas ideológicas do poder.
A perspectiva do inconsciente como discurso do Outro, tesouro dos
significantes, nesses casos, perde sua eficácia para ganhar destaque como
modalidade de poder sobre o sujeito ¯ há efeitos alienantes, por vezes trágicos,
do modo como o discurso social e político, carregado de interesses e sede
de poder, se traveste de discurso do Outro, para capturar o sujeito em suas
malhas, seja na constituição subjetiva, seja nas circunstâncias que promovem
certa destituição subjetiva. O sujeito é instado a se equivocar e tomar esse
discurso totalitário como referência ao Outro, ao campo da linguagem. Por
essa estratégia de manipulação, esse discurso busca confundir a dimensão
do impossível (referida à castração), com a dimensão do proibido (referido à
lei). Tal discurso, por vezes convertido em práticas sociais, apresenta um Outro
consistente e-ou não-castrado, regido por uma voracidade, por vezes de uma
violência obscena, e interessado na manutenção sociopolítica. Apresentado
como hegemônico e universalizado, desarvora o sujeito quanto a seu lugar
discursivo, destacado que se torna da sua história pessoal, familiar ou socio-
cultural e política. Incide sobre o sujeito e sua trajetória, na cena familiar e na
cena social – sobre seu luto, seu enlace em novos grupos e sua reorganização
subjetiva, seu embate com a lei.
O trabalho analítico nessa direção é baseado na escuta clínica, mas
ocorre na diversidade das intervenções: em atividades grupais sobre várias
temáticas, em oficinas, em escutas singulares, nas intervenções institucionais,
na articulação de redes de atenção e na publicização dos acontecimentos e
conflitos nas instituições e na vida social. Põe à prova o desejo do analista e

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Miriam Debieux Rosa

seus ideais de análise baseado nas estratégias convencionais, o que pode


ser fundamental na formação de um analista!
A oferta de uma escuta que “supõe romper barreiras e resgatar a expe-
riência compartilhada com o outro, deve ser uma escuta como testemunho e
resgate da memória” (Rosa, 2002, p.47). Escuta em que se utiliza a presença
e a palavra. Presença em que o analista é convocado a suportar e servir de
mola ao relançamento das significações. Nesse sentido, ressaltamos que a
“presença da palavra” se suporta pela “presença do analista”.
A clínica do traumático convoca o analista a tensionar um espaço entre
enunciado e enunciação, abrindo espaço para a fala, a dizer “diga mais” e,
a partir daí, podem se instalar as condições necessárias para a localização
subjetiva. Pois existe uma diferença fundamental entre o silêncio mortífero e o
silêncio sintomático. Sintomatizar o silêncio – cavado na angústia, no instan-
te perpétuo, no estado melancólico – é a isso que apontamos nesse tipo de
intervenções clínicas. No entanto, essa é uma meta e não ponto de partida.
Meta que pode ser constituída de intervenções a partir do ponto em que esse
sujeito está localizado – algumas vezes falamos com ele, outras acompa-
nhamos nas trajetórias pela cidade, outras procuramos com ele seus pares e
apoios afetivos – são estratégias que provocam o rompimento da alienação e
redesenham uma ficção de si mesmo e do outro, para apoio na produção de
um lugar discursivo.

Fq"vtcwoc"ä"gzrgtkgpekc"eqorctvknjcfc

Isac viu-se diante de um impasse que exigiu uma resposta em face do


horror que a ele se apresentou: salvou sua vida com a fuga do país. A escolha
de Isac precipitou-o em um para aquém da fantasia ou da culpa. Paralisado
na perenidade traumática, fica sem lugar de onde poder falar. Parte do país,
mas não se parte, não se divide, não se separa. No silêncio mortífero do exílio
fica reduzido a ser passa dor, mensageiro da morte e do fracasso. Mais ainda,
perde o laço identificatório dos semelhantes para com ele, sua solidariedade,
pois tendem a recuar diante do horror, tal, como veremos, foi abordado por
Agamben (2002) através da figura do “mulçumano”.
Em seu livro Lo que queda de Auschwitz, Agamben (2002) apresenta
a figura do “mulçumano” – nome que designava os mortos-vivos nos campos
de concentração, emblemática do estado limite a que chegaram algumas
pessoas e que pode expressar uma alegoria da condição de exclusão. Consi-
deramos (Rosa; Poli, 2009) que a condição desse muçulmano, de “não poder
não recordar”, faz pensar em um impedimento do esquecimento, do recalque
necessário para separar-se do acontecimento. O excesso de consistência do
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Psicanálise implicada...

acontecimento lança o sujeito em um monótono e desesperançoso presente,


lança o sujeito aparentemente fora da política e retira-o da experiência com-
partilhada que escreveria a história do sujeito e da comunidade.
Para recompor um lugar discursivo, para que se faça laço social, é pre-
ciso se partir – romper com o lugar alienado instituído pelo discurso ideológico.
Condição essa necessária para reconstruir a história perdida na memória,
reconstrução que já implica uma deformação, permitindo o luto e uma resposta
reinterpretando o passado, construindo uma narrativa ficcional que o situe no
laço social. Consideramos que, concebidos assim, os recursos aos signifi-
cantes advindos e articulados à experiência constituem pressupostos éticos
que transcendem o campo ideológico, dizendo respeito antes ao domínio da
política (o laço com os outros) e da cultura (a relação ao Outro).
Esse trabalho tem sua eficácia na articulação entre o privado, transfor-
mado em patológico ou criminalizado, e a eficácia da circulação significante, no
público, no coletivo, ou, mais precisamente, no laço social, na aposta pública
de que é possível, no laço, um outro lugar para o sujeito.
Passar por acontecimentos em relação aos quais não se tem a menor
possibilidade de reconhecimento, pois sucedem ao largo do imaginável ou
imaginarizável, leva a novo impasse ético e clínico. É um impasse que impli-
ca não a responsabilização do sujeito, mas o rompimento com esse campo
simbólico; não o assentimento subjetivo de sua participação, mas a supressão
de qualquer participação nesse gozo. A partir dessas considerações, pode-
se conceber um trabalho clínico que possibilite a construção da posição de
testemunha, transmissora da cultura, como diz Hassoun, que componha a
trama ficcional pela elaboração não toda do luto impossível de significar, na
transformação do trauma em experiência compartilhada.
Restituir um campo mínimo de significantes que possam circular, refe-
ridos ao campo do Outro, permite ao sujeito localizar-se e poder dar valor e
sentido à sua experiência, articulando um apelo que o retire do silenciamento.
Está em jogo não somente a reconstituição narcísica de sua imagem, mas
também a recomposição do lugar a partir do qual se vê amável para o Outro
(ideal do eu), reafirmando uma posição que lhe permita localizar-se no mundo
e estabelecer laços sociais, inclusive os analíticos.
As dimensões públicas e coletivas dessa prática, que se traduzem de
modos diferentes em cada caso, costumam supor uma elaboração coletiva do
trauma. Parece ser, por meio da recuperação da história social e política, mas
também da explicitação das distorções do campo imaginário/simbólico, social e
político, que o sujeito se situa em uma história, reconstituindo o campo ficcional.
A base teórica dessa dimensão está presente em Lacan – em trabalho

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Miriam Debieux Rosa

sobre Hamlet, oferece a base teórica para tratar da perda que, rejeitada no
simbólico, reaparece no real. Lacan destaca a dimensão ritual e coletiva como
precondição à elaboração individual do luto. Diz: “Os ritos são a intervenção
maciça de todo jogo simbólico – uma satisfação dada ao que se produz de
desordem em razão da insuficiência dos significantes para fazer face ao buraco
criado na existência” (Lacan, 2002, p.100).
Essa constatação pode ser traduzida em estratégia clínica: para tratar
o trauma provocado pela intervenção do Outro totalitário, que tenta apagar
todas as marcas da subjetividade, é necessária uma elaboração que finque
suas bases na reconstituição das leis que norteiam o funcionamento do campo
social. Essa é a razão pela qual sustentamos que o fenômeno social traumático
deve ser inscrito e elaborado no nível coletivo, sem desmerecer as respostas
singulares.
A prática clinicopolítica e a clínica do traumático lançam desafios e
exigem intervenções não convencionais. A publicização pode favorecer a
desidentificação do sujeito à vertente imaginária do acontecimento, travestida
de simbólica, para que prevaleça demarcar a dimensão histórica e cultural
dos fatos sociais e políticos. Nesse processo é fundamental a possibilidade
de oferecer um reencontro com o Outro receptivo à escuta, disponível para
oferecer um campo de saber capaz de desestabilizar e colocar entre aspas a
série de identificações que desqualificam e aprisionam o sujeito fora do campo
social. Nossa aposta está na recuperação da polissemia da palavra, para que
ela não seja apenas instrumento de gozo.
As estratégias de intervenção apresentadas neste artigo foram modos
de enlaçar uma palavra perdida, à deriva, - que na infância é confrontada à
angustia das origens e, na adolescência, com a possibilidade do encontro
com o sexual -, através da composição de uma trama ficcional que pudesse
os proteger da difícil presença do real. Desse ângulo, há situações em que o
espaço público, seja na rua ou nas instituições, é o lugar privilegiado de um
trabalho analítico onde se pode autenticar outra posição para o sujeito.
Fica evidente a articulação à ética da psicanálise. Com Zizek, considera-
mos que, “É preciso arriscar e decidir.... Não busque apoio em nenhuma forma
de Outro maiúsculo – mesmo que esse Outro maiúsculo seja totalmente vazio.
É preciso arriscar o ato sem garantias. Nesse sentido, o fundamento supremo
da ética é político” (Zizek, 2005, p.201). Nessa afirmação, o autor subverte a
relação que empalidece a política em face da ética ou que afirma a ética como
fundamento da política. Ele ainda diz que, em Lacan, a ética despolitizada é
uma traição ética, porque significa confiança em alguma imagem do grande
Outro. Mas o ato lacaniano é, precisamente, o ato em que se presume que
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Psicanálise implicada...

não existe grande Outro. É nessa dimensão que a escuta psicanalítica pode
contribuir para emergência de um sujeito que se separa dessa ordenação,
para comparecer como questionamento a essa ordem e se movimenta, criando
ações de transformação; nessa dimensão, é reconhecendo-se como falta-a-
ser que a alteridade, a diferença, não é significada como ameaça, mas como
encontro, com o qual se faz o novo.

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Recebido em 09/11/2012
Aceito em 10/12/2012
Revisado por Gláucia Escalier Braga

40
40
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 41-53, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS UCDGT"G"VTCDCNJQ"PC"XKFC"
UGETGVC"FCU"RCNCXTCU
Admardo Bonifácio Gomes Júnior1
Daisy Moreira Cunha2
Yves Schwartz3

Tguwoq< Este artigo busca pensar a relação entre trabalho e saber a partir do filme
A vida secreta das palavras, de Isabel Coixet, 2005. O conceito ergológico de uso
de si e a noção psicanalítica de saber fazer com o sintoma são aqui articulados
como forma de pensarmos as possibilidades de um ganho de saber com o trabalho
na vida secreta das palavras.
Rcncxtcu/ejcxg< trabalho, saber, uso de si, sintoma.

MPQYNGFIG"CPF"YQTM"KP"VJG"UGETGV"NKHG"QH"YQTFU
Cduvtcev<"This paper seeks to reflect on the relationship between work and kno-
wledge from the film The Secret Life of Words, Isabel Coixet, 2005. The ergologic
concept of the use of onself and the psychoanalytic notion of know-how to deal
with the symptom are articulated in this study as a way of thinking about the pos-
sibilities of some knowledge gain with the work in the secret life of words.
Mg{yqtfu< work, knowledge, use of onself, symptom.

1
Professor da Faculdade de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Minas Gerais; Dou-
torando em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Ergologia pelo Instituto
de Ergologia da Universidade Aix-Marseille. E-mail: admardo.junior@uol.com.br
2
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais; Doutora em Filosofia pela Universidade Aix-Marseille. E-mail. daisy-
cunha@uol.com.br
3
Professor emérito de Filosofia do Instituto de Ergologia da Universidade Aix-Marseille; Presidente
da Sociedade Internacional de Ergologia. E-mail: yves.schwartz@univ-amu.fr

41
Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz

O que é o trabalho? Até que ponto a concepção que temos dele não porta,
ela mesma, poderosos preconceitos que operam profundos processos
de exclusão? Não seria a separação da dimensão do trabalho stricto sensu
daquela do ato mesmo de viver, do trabalho da vida, uma potente forma de
exclusão? O que a não separação entre trabalho e vida pode operar como
ganho de saber?
As experiências do lar, da escola e do trabalho fazem circular valores,
nesses campos, que os tornam inseparáveis. Dos primeiros aprendizados no
lar, do tempo de escola àquele do trabalho, os traços, as linhas, as marcas de
nossas vivências, com maior ou menor violência, vão compondo a experiência
de vida de cada um de nós. As palavras aí, como a psicanálise nos ensina,
criam sua vida secreta. Nossos sintomas não prescindem do que fazemos
com as palavras, que dão vida a nossas vivências e experiências. São elas
que lhes dão a estrutura. A saída aí, sempre singular, parece incluir um sa-
voir y faire com o sintoma, que guarda suas relações com savoir-faire que o
trabalho comporta, um saber fazer aí com nosso modo sintomático de viver.
Nossa atividade na vida que chamamos “trabalho” é sempre investida nesse
saber fazer aí com isso.

Fq"hknog."cniq"uqdtg"q"vtcdcnjq"g"c"xkfc

“No fundo, há tão poucas coisas. Milhões e milhões de toneladas de


água, rochas e gás. Afeto. Sangue. Cem minutos. Mil anos. Cinzas. Luz. Agora.
Agora mesmo. Um tempo atrás. Disse-lhes antes, não foi? Há muito poucas
coisas: silêncio e palavras”. Essas palavras narradas por uma voz de criança
iniciam a película A vida secreta das palavras (Isabel Coixet, 2005).
O filme da diretora Isabel Coixet conta a história de Hanna (Sarah Polley),
uma mulher de 30 anos, parcialmente surda, solitária, silenciosa e fechada
em seu mundo. Empregada exemplar em uma fábrica têxtil, certo dia, no fim
da jornada de trabalho é advertida por um colega para ligar seu aparelho de
surdez, pois está sendo chamada pelo serviço de alto-falante da fábrica para
comparecer à diretoria. Lá é convencida pelo diretor a tirar um mês de férias.
Há pressão do sindicato e dos colegas contra seu padrão excessivamente
adequado à produção. Seguindo a sugestão de seu chefe, ela segue de férias
para um pequeno povoado costeiro. Antes de sua partida, vemos Hanna em
casa, comendo os mesmos nuggets, arroz e meia maçã de sua refeição diária.
Na bagagem para a viagem, ela coloca vários sabonetes, todos iguais, como
elementos que compõem sua rotina.
No local das férias ela escuta da conversa de um desconhecido ao
telefone que estão precisando de enfermeira para cuidar de um trabalhador
42
42
Saber e trabalho na vida secreta das palavras

acidentado em uma plataforma petrolífera. Decidida do que fazer com o vazio


do tempo das férias, ela se oferece para realizar o trabalho. Hanna se expressa
pouco, mesmo seu rosto tem sempre a mesma expressão séria, entristecida e
concentrada. As poucas palavras que fala denotam uma objetividade quase
constrangedora. Aos poucos descobrimos que Hanna é enfermeira, trabalhou
com queimados e que é estrangeira. Mas há muito mais a descobrir.
Na plataforma de petróleo, desativada devido a recente acidente, ela en-
contra seu paciente, Josef (Tim Robbins), um homem que sofreu uma série de
queimaduras que o deixaram temporariamente cego e bastante comprometido
para remoção até o hospital. No primeiro contato dos dois, Josef, cego, procura
com as palavras se aproximar de Hanna e criar alguma imagem da mulher
que dele cuida, não sem tentar estabelecer com Hanna alguma intimidade. Os
contatos entre os dois personagens são estabelecidos pelos cuidados de enfer-
magem prestados por Hanna e pelas constantes questões que Josef faz sobre
a vida e o cotidiano de Hanna. Ela se restringe às obrigações de enfermeira,
sem respostas, sem intimidade, sem nem mesmo dizer seu nome, que Josef
tentara adivinhar e acaba por nomeá-la Cora. Era o nome de uma freira que
cuidou de um jovem e que, diante da morte deste, ela descobre que o amava.
Um encontro delicado e belo começa a se estabelecer entre estes dois
personagens, quando a cegueira temporária de Josef, que lhe impõe a neces-
sidade de recriar as imagens de seu mundo com palavras, se depara com o
mundo particular de Hanna, um meio mantido sob controle, como que ao alcan-
ce do botão de seu aparelho de surdez. Nesse encontro entre a audição, agora
necessária para Hanna, e a fala como único recurso para Josef, imobilizado e
cego, as palavras ganham uma inigualável força vital, desvelando segredos.
Aos poucos, as frases engraçadas, brincadeiras e piadas que Josef cria no
contato com Hanna vão fazendo sua expressão facial mudar, pequenos sorri-
sos se esboçam e algumas confissões tomam o lugar do silêncio e da defesa.
Os então habitantes da plataforma de petróleo são Hanna e Josef, um
ganso que se chama Lisa, e mais seis homens: Simon, Abdul, Dimitri, Martin,
Scott e Liam. A singular história de cada um desses habitantes vai saindo da
boca, aos poucos, desses portadores da vida secreta das palavras. Persona-
gens que escolheram um trabalho que lhes preserva a solidão como forma de
viver em paz. Simon é um exímio cozinheiro, diz que, para suportar o tédio do
local e não ficar louco, cozinha pratos de diferentes nacionalidades ao som
das músicas de cada país. Martin é oceanógrafo e gosta de jogar basquete
sozinho. Seu trabalho é medir o número de ondas que se chocam contra a
plataforma todo dia, a força do mar. Scott e Liam cuidam da casa de máquinas;
eles têm, cada um, sua família e filhos e vivem ali, na plataforma, uma relação
amorosa. Abdul trata da limpeza. Delicadamente, Hanna se integra àqueles
43
Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz

habitantes exatamente por se sentir confortável em meio a seus inabituais mas


familiares silêncios e palavras, repletos de solidão e lembranças.
Dimitri, o encarregado geral, é quem um dia relata, a pedido de Hanna, o
acidente que feriu Josef e matou o melhor amigo deste. As palavras de Dimitri
sobre a morte do amigo de Josef são:

Esse homem queria se matar. Se lançou às chamas. Josef tentou


salvá-lo, mas... tudo aconteceu muito rápido. Todos vimos ele se jo-
gando às chamas. Não dissemos à companhia tudo o que se passou.
Deixamos que pensassem que foi um acidente. Esse homem deixou
uma mulher e dois filhos. Por que dizer a verdade? Deixamos que
pensassem que morreu acidentalmente. Isso deixaria dinheiro para
a família. E... no fundo... tudo é um acidente.

O filme segue. Haveria muito mais para contar... mas ficaremos por aqui.

Vtcdcnjq"g"wuq"fg"uk

O termo “uso de si” é apresentado no artigo Trabalho e uso de si


(Schwartz, 2000). A escolha das palavras para intitular este artigo já nos dá
importante indicação do conteúdo das ideias que serão apresentadas. Esse
título faz a conjunção de duas noções centrais para a démarche ergológica4,
“trabalho” e “uso de si”. Essa conjunção já nos conduz a pensar no nexo que
se estabelecerá entre o trabalho e a expressão “uso de si”, de conotação enig-
mática, que causa estranhamento por tomar o “si” por objeto de um “uso”. Um
estranhamento que se intensifica pela suposta clareza denotativa dos termos
“uso” e “si” quando tomados separadamente.
A problemática sobre a qual a tese do texto será erigida aparece em sua
primeira linha: “O trabalho é um lugar adequado para se abordar o problema

4
Démarche de análise da atividade de trabalho desenvolvida pelo Departamento de Ergologia
da Universidade de Provence (www.ergologie.com). Seguindo a tradição de George Canguilhem
na epistemologia francesa, o ergológico é apreendido em relação ao epistêmico. Se o esforço
epistêmico corresponde à exigência de trabalho de construir, precisar e complexificar os conceitos,
libertando-os de sua aderência local às normas e valores da dimensão histórica dos fenômenos,
da vida em geral, o esforço ergológico num movimento inverso, busca aproximar os conceitos
de suas aderências locais e sempre singulares para fazê-los avançar assim como desenvolver a
atividade em questão. Na ergologia, o trabalho é analisado como atividade humana implicando
sempre um “uso de si”, por si e pelo outro, noção esta que busca operar com o mais singular das
atividades humanas.
44
44
Saber e trabalho na vida secreta das palavras

da subjetividade?” É sobre essa questão que será desenvolvida a argumen-


tação do texto que:

[...] enfoca o trabalho como lugar de debate, um espaço de possíveis


sempre a negociar onde não existe execução, mas uso, e o indivíduo
no seu todo é convocado na atividade. Assim, o trabalho envolve
sempre uso de si. Há uso de si pelos outros, já que o trabalho é, em
parte, heterodeterminado por meio de normas, prescrições e valores
constituídos historicamente. Porém, há também uso de si por si, já
que os trabalhadores renormalizam as prescrições, e criam estraté-
gias singulares para enfrentar os desafios de seu meio (Schwartz,
2000, p.34).

O termo “uso” é tomado para marcar essa dimensão de uma “demanda


específica e incontornável feita a uma entidade que se supõe de algum modo
uma livre disposição de um capital pessoal” (Schwartz, 2000, p.41). Para
nomear essa entidade, a escolha do “si” é justificada pela tentativa de evitar
outros termos como “sujeito” e “subjetividade”, já bastante “codificados” por
outros campos, como a filosofia, a psicologia e a psicanálise. O termo deveria
ser novo, causar certo desconforto, não acomodar rapidamente o entendimento
do que se destacava nos quadros conceituais já existentes. Mas, por outro
lado, deveria preservar a herança de George Canguilhem no entendimento
da dinâmica da vida.
Se o texto, ao cunhar o conceito de “uso de si”, busca deslocar a noção
de subjetividade, reivindicando a potência do campo do trabalho humano como
lugar para abordá-la, também o faz buscando deslocar a própria ideia de traba-
lho, propondo a noção de “atividades industriosas”. O industrioso aqui denota
o engenhoso, a indústria no sentido de astúcia em se fazer algo. Esse termo
é utilizado prenunciando outra referência que não aquela dos estereótipos das
ideias associadas ao trabalho: “o lugar do mecânico e do repetitivo”; quando a
“seriação das coisas” e a “codificação dos procedimentos” postulam a “indife-
renciação dos seres”; “trabalho que constrange”, “operador de embrutecimento,
de escravidão e de despersonalização”. Pois se há estereótipos das ideias
associadas ao trabalho, eles não estão disjuntos de outros estereótipos que
dissociam o campo da subjetividade daquele da produção social, na crença
de que este último não pode exprimir “senão parcialmente os traços de sua
presença” (Schwartz, 2000, p.35).
O “uso de si” está presente na cena do trabalho como espaço de uma
tensão, sempre problemática, de possíveis a se negociar. Ele inclui o uso que

45
Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz

é feito do sujeito e aquele que ele faz de si mesmo. O trabalho é sempre um


lugar de debate, no qual, sob o ponto de vista ergológico, não há propriamente
execução, realização de algo, mas uso, aplicação, emprego, prática, hábitos e
costumes. Há assim duas dimensões intercambiantes e inseparáveis: “o uso
pelos outros” – identificáveis na dimensão de heterodeterminação do trabalho
presente nas normas, prescrições e valores constituídos historicamente; e “o
uso por si” – presente nas renormalizações que o sujeito faz das prescrições da
tarefa e na criação de estratégias singulares de enfrentamento das situações
de trabalho. “A maneira como se organiza a relação entre os dois sentidos do
“uso” importa muito para a investigação sobre o sujeito” (Schwartz, 2000, p.42).

Q"vtcdcnjq"g"q"ucxqkt"{"hcktg"fc"xkfc"eqvkfkcpc

Queremos aqui pensar o que pode haver de ordinário no próprio saber


fazer com o sintoma no campo do trabalho. Freud ([1901] 1976) nos deixou o
legado de uma Psicopatologia da vida cotidiana, título que expõe um paradoxo,
pois não se espera dos fenômenos patológicos da vida psíquica uma presença
no cotidiano. De certa forma, o que Freud faz neste texto é demonstrar a ativi-
dade do sintoma no coração da prática cotidiana da vida social, interrogando
a “normalidade” cotidiana no e pelo registro do sintoma (Assoun, 2009). Não
podemos também pensar em um savoir y faire da vida cotidiana quando tra-
zemos a dimensão do uso de si no trabalho da vida?
É remarcável nas histórias de vidas, assim como nos relatos de casos de
analisantes, a frequência com que as saídas dos impasses da vida acontecem
pela via de um saber fazer com o amor e o trabalho, como novos destinos às
pulsões outrora fixadas ao sintoma, como novas rotinas inventivas. Por outro
lado, é também frequente o amor e o trabalho como foco das idealizações e
recalques próprios à estrutura e manutenção do sintoma como um problema,
como uma rotina mortificada, sem invenção. Esses campos, o amor e o trabalho,
que enlaçam nossa vida íntima e social, parecem mesmo férteis ao cultivo de
formas, deslocadas em seu objetivo, de satisfação da pulsão. Mas se o campo
do amor nos permite certa configuração do domínio da sexualidade, nos parece
que é principalmente pelo trabalho que a dessexualização da pulsão encontra
a via preferencial de um objetivo sublimatório da pulsão.
É Freud ([1930] 1976, p.99) quem nos afirma em uma nota, em O mal-
estar na civilização:

Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo


tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho,

46
46
Saber e trabalho na vida secreta das palavras

pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da


realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica
oferece de deslocar uma grande quantidade de compo-nentes libi-
dinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para
o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele
vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em
segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à
preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade
profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente
escolhida, isto é, se, por meio de sublimação, tornar possível o uso
de inclinações existentes, de moções pulsionais5 persistentes ou
constitucionalmente reforçados.

O trabalho para Freud tem um valor indispensável em afirmar e justificar


para cada um sua existência na sociedade. Freud deixa claro também que o
trabalho como fonte de satisfação inclui uma “livre escolha”. Essa liberdade
de escolha inclui o uso de algo de si que já está lá, que persiste, que se impõe
como uma inclinação, como algo constitucional. Institui-se sobre o constituído
das moções pulsionais. A satisfação no trabalho acontece então pela sublima-
ção, por certo uso das moções pulsionais.
Na sublimação, encontramos uma satisfação da pulsão parcial, mas de
forma inibida e-ou desviada quanto a seu objetivo. Se, por um lado, a pulsão
na sublimação está investida na criação de objetos com forte valorização so-
cial, ou seja, em ligação com o processo de civilização, por outro, está inibida
quanto a seu caráter exclusivamente sexual, agressivo e disruptivo da dimensão
social. A sublimação difere da idealização; nesta estamos mais próximos da
função do recalcamento na causação da neurose. No seminário De um Outro
ao outro, Lacan ([1968-1969] 2008, p.209), ao retomar esse mesmo ponto da
argumentação de Freud, destaca que na sublimação:

[...] ao contrário da interferência censora que caracteriza a Verdrän-


gung [o recalcamento], e, numa palavra, do princípio que cria obstá-
culos à emergência do trabalho, a sublimação como tal, propriamente
falando, é uma modalidade de satisfação da pulsão.

5
Optamos aqui pela expressão, traduzida do texto em francês, motions pulsionnelles que denota
melhor o que está em jogo, que a expressão em português “impulsos instintivos”.

47
Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz

Parece haver na sublimação um saber em questão que seria da ordem


daquilo que o sujeito adquire da satisfação do que faz com a pulsão. Uma
sublime ação com a pulsão. Lacan enfatiza esse fazer “com” na sublimação,
afirmando que esta “caracteriza-se por um mit dem Trieb, com a pulsão” (p.209)
e retoma a formulação de Aristóteles: “Não se deve dizer que a alma pensa,
mas que o homem pensa com sua alma” e afirma que “é cativante reencontrá-
la aqui na pluma de Freud. Alguma coisa se satisfaz com a pulsão” (Lacan,
[1968-1969] 2008, p.215).
É nesse seminário ainda que Lacan nos fala do savoir y faire. Ele o in-
troduz para responder à questão: “A que satisfação pode responder o próprio
saber?” (p. 202). Lacan aproxima o saber fazer aí do savoir-faire e o distancia
deste, ao mesmo tempo, com um savoir y être. Nesse seminário em francês
encontramos a seguinte frase: “Ce savoir y faire est un peu trop proche encore
du savoir-faire, sur lequel il a pu y avoir tout à l’heure un malentendu que j’ai
favorisé d’ailleurs, histoire de vous attraper là où il faut, au ventre.C’est plutôt
savoir y être”. Um saber fazer aí, que se aproxima do saber-fazer, mas que
é mais um saber estar aí. Curiosamente, essa riqueza das expressões esco-
lhidas por Lacan parece perder sua força pela forma escolhida na tradução
brasileira: “Esse saber haver-se ainda é meio próximo demais do savoir-faire,
sobre o qual pode ter havido um mal-entendido agora há pouco, o qual aliás
favoreci, para agarrar vocês por onde convém, pelo ventre. Trata-se mais de
um saber haver-se” (Lacan, [1968-1969] 2008, p.202). Lacan nos afirma que
o que a descoberta freudiana avança é que “on peut y être sans savoir qu’on y
est”, ou seja, “podemos estar nisso sem saber que estamos” (p. 203). E, mais
ainda, que quando nos enganamos é exatamente em nossa certeza de nos
proteger de aí estar (y être), julgando-nos noutro lugar, noutro saber.
É no seminário L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (1976-
1977), primeiro em sua aula do dia 16/11/1976 e depois no dia 15/02/1977,
que Lacan vai retomar o savoir y faire, relacionando-o ao sintoma, um saber
fazer com o sintoma. Das duas lições, podemos tomar a noção de “saber fazer
aí com” (savoir y faire avec), e depreender dela a questão do que se pode
conhecer em uma análise, ou seja, as relações entre saber e sintoma. Lacan
localiza o conhecimento no sintoma: “[...] a saber que o sintoma, tomado nes-
te sentido, é o que se conhece, e inclusive o que se conhece melhor. Assim
‘conhecer’ seu sintoma quer dizer saber fazer com, saber desembrulhá-lo,
manipulá-lo” (Lacan, 1976-1977). O processo de uma análise conduz o sujeito
a uma mudança de posição frente ao sofrimento. Há, nesse percurso, uma
reintegração de algo que o sujeito não queria saber, e que inclui a satisfação
obtida com o sintoma.
48
48
Saber e trabalho na vida secreta das palavras

Se convocarmos a psicanálise para pensar o trabalho como “uso de


si”, as dimensões do trabalho do sonho, do trabalho do luto, do trabalho da
rememoração e da elaboração, somos levados a reconhecer que essas são
importantes dimensões que colocam a vida a se pensar e a se conhecer. São
dimensões que Freud aponta como sendo do trabalho inconsciente. É o traba-
lho do aparelho psíquico. A dimensão do trabalho stricto sensu, para ganhar o
sustento da vida, com todas as possibilidades, necessidades, contingências e
impossibilidades que essa atividade social atualiza, faz uso dessas dimensões
“subjetivas” do trabalho sobre si mesmo. Há um fazer, um uso, de si e por si que
não é sem o outro. O que desse uso nos possibilita obter um ganho de saber?
Se pensarmos na báscula do sintoma, como problema e como solução,
a via de saída por um bom uso de si no trabalho parece incluir sempre um
saber fazer “ordinário” com o sintoma, que pode guardar relações com o sa-
voir y faire, que Lacan localiza no final de uma análise com a produção de um
sinthoma6. É claro que não queremos reduzir o savoir y faire a sublimações
ordinárias que possibilitariam uma salutar localização do campo profissional
na dinâmica pulsional do sujeito. Mas, por outro lado, nos parece importante,
também, não idealizar o que se pode aí fazer a ponto de inibir, no âmbito da
transferência de trabalho7 analítico, o reconhecimento de possíveis saídas
ordinárias com o sinthoma.
No artigo escrito por Morel (1999) sobre a função do sintoma, essa
autora nos afirma que “todo neurótico tem ao menos um sintoma que assume
a função de sinthoma”. Ou seja, um sintoma que vai manter, mesmo que por
vezes precariamente, a amarração dos registros do real, simbólico e imaginário;
uma função de suplência que é diferente na neurose e na psicose. Nesta última
estrutura, se existir um sinthoma como algo que mantenha juntos o simbólico,
o imaginário e o real, esse sinthoma não estará articulado ao significante do
Nome-do-pai, mas justamente ele suprirá a foraclusão do Nome-do-pai, esta
falta no simbólico.

6
Com o conceito de sinthoma, Lacan faz trabalhar no seminário O sinthoma ao mesmo tempo
a grafia antiga no francês da palavra sintoma, sua homofonia em francês saint homme (santo
homem), assim como o sin, que em inglês significa pecado, para pensar a função do sintoma na
estrutura que enlaça os registros do real, simbólico e imaginário. Como nos afirma Miller (2011,
p. 82), Lacan inventa esse conceito para pensar o caso de James Joyce, assim como Freud, no
caso Schreber, um caso sem análise, sem decifração do inconsciente, sem a prática da associação
livre. Lacan afirma que Joyce era desabonado do inconsciente.
7
“O ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito ao outro pelas vias de uma trans-
ferência de trabalho”. Lacan, J. Ato de fundação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 242.
49
Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz

Com a leitura do seminário De um Outro ao outro, de Lacan ([1968-1969]


2008), é justo afirmar que não é o trabalho que dá acesso ao saber, porque
o saber se adquire ao preço da renúncia ao gozo. Não é porque o trabalho
pode implicar essa renúncia que toda renúncia ao gozo se fará pelo trabalho.
A dimensão sintomática do trabalho deve ser tomada aqui como uma verdade
inconsciente a trabalho, que só pela renúncia ao gozo que lhe é inerente se
acessa um ganho de saber. Que o trabalho não contenha em si o acesso ao
saber, a neurose obsessiva nos dá prova. Na obsessão, o sujeito necessita do
trabalho forçado. O trabalho aí é meio de gozo. Trabalha-se para não saber.
O sintoma indica uma verdade a trabalho no inconsciente.
O saber no trabalho, para Lacan, está do lado do que é inconsciente
e se repete. Só há ganho de saber com um novo uso disso que se repete. O
saber aí provém do uso, provém de algo que se faz com isso de mais genu-
íno que se repete no sintoma. Segundo Miller (2009, p.143-144), “[...] saber
fazer alguma coisa com seu ser de sinthoma” (p. 143) não é decifrá-lo, pois,
“o sinthoma, como o mais singular, é indecifrável” (p. 144), não é da ordem
da cifra, daquilo que se troca, e sim da ordem do uso; um “uso do sinthoma”
(p. 144). “Em psicanálise, a forma tomada por essa troca é a interpretação”
(p. 144). E segue: “O termo uso visa precisamente alguma coisa diferente da
interpretação, outro modo operatório” (p.144).

Ucdgt"g"vtcdcnjq"pc"xkfc"ugetgvc"fcu"rcncxtcu

É A vida secreta das palavras um filme que nos permite refletir sobre o
saber na relação homem-trabalho? Parece-nos que se pensarmos o trabalho
como “uso de si”, ele é inteiramente uma reflexão sobre muita coisa do que se
passa nessa relação. É um filme no qual fica claro que as escolhas que cada
pessoa faz ali, no campo do trabalho, diz muito sobre a dimensão “subjetiva”
de cada uma delas. A diretora Isabel Coixet soube trazer para a história toda a
dramática do uso que cada personagem faz ali, de si, na relação com o trabalho.
No filme, trabalho e vida não se separam, eles estão na mesma plataforma.
Depois que descobrimos alguns dos segredos das palavras que contam
a história de Hanna, entendemos melhor o uso que a personagem parece fazer
de si na fábrica têxtil. O trabalho ali é o da contenção, na repetição de uma
rotina sem muita invenção. A mesma comida todos os dias, o mesmo trabalho
repetitivo, quatro anos sem aparente interrupção. Tudo isso indica cumprir uma
função. Seu modo sintomático de viver busca amarrar registros por demais
disjuntos pelos traumas vividos.
A vida secreta das palavras de Hanna, na fábrica, segue seu rumo,
50
50
Saber e trabalho na vida secreta das palavras

organizado de forma a “conter”. Manter dentro de si. Sob certo uso. Sem risco
de transbordar e inundar a vida de lágrimas. Mas eis que algo interrompe sua
surdez, também controlada. O eventual, a contingência, o inesperado, o aci-
dental: as férias forçadas que a conduzem ao litoral. No ônibus, a caminho das
férias, podemos ver Hanna bordando um pedaço de pano. Nesse novo lugar,
o trabalho de bordado é dispensado numa lixeira. Prenúncio de um novo uso
de si? Do uso de “conter” para o uso de “contar” a vida secreta das palavras?
Sou enfermeira, diz Hanna, ao seu vizinho de mesa de quem ela escutava a
conversa. É surpreendente a forma decidida com que Hanna se apresenta.
Naquele momento as palavras servem para “contar” algo de muito importante
da sua história. Sou enfermeira. Um significante que a nomeia. Uma palavra que
a identifica, e cujo emprego acaba por expô-la ao trabalho de contar sua vida.
O trabalho de enfermeira reenvia Hanna à sua vida no ponto em que
ela foi paralisada. Quando ela brutalmente foi obrigada a se conter. Uma for-
mação interrompida pela guerra. Uma escolha impedida. Um projeto de uso
de si violentamente abortado. Retomar essa atividade, esse uso de seu corpo
na função de cuidar do outro, parece ir aos poucos permitindo fazer conviver
experiências incomunicáveis: o antes e o depois das atrocidades vividas. Nesse
trabalho, um novo uso do corpo que lhe exige reordenar as palavras às novas
experiências do encontro com alguém que lhe demanda cuidado e afeto. Um
encontro no qual o amor e a confiança permitem que ela possa dizer afinal algo
de seu trabalho e de si. Uma manhã, Hanna ao limpar o corpo de Josef relata:

Quando estudava em Dubrovnik, sempre temia o momento de limpar


os pacientes. Sentia-me desconfortável... pensando que eles estavam
com vergonha. Mas percebi que as pessoas gostam de estar limpas.
Não importa como você os limpa... ou quem limpa, eles gostam de
estar nas suas mãos. Gostam de te confiar o seu corpo. Como se
dissessem: É apenas o meu corpo. Só um corpo. Você nunca vai
saber o que penso realmente, quem sou.

Essa é a frase que desencadeia a sequência de palavras que descorti-


nam algumas das doses do horror guardadas em segredo pela personagem.
Na cena, Hanna diz dos cortes e cicatrizes que levaram à morte aquela que
vivia com ela e era sua melhor “amiga”. E ela desnuda seu corpo para que seu
paciente cego possa tocar e sentir as cicatrizes que o marcam. A última palavra
dita nessa sequência responde à pergunta de Josef: Como se chamava a tua
amiga? Hanna, ela responde. Só então Josef pôde saber seu nome. Nesse
ato, corpo, história e nome se enlaçam. Amor e trabalho nesse momento pa-

51
Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz

recem cumprir mais um passo no caminho da sublimação da pulsão de morte


contida e contada nesse corpo.
Mais um passo em saber fazer aí com o sintoma começa a ser produzido,
a um só e mesmo tempo em que o saber-fazer de sua escolha profissional de
enfermeira o reconvoca em seu uso de si no trabalho.
Lembremos de Freud, acima citado, da ênfase concedida ao trabalho,
da livre escolha, do uso das moções pulsionais, do que a sublimação nesse
domínio pode operar. Lembremos de Lacan, para entender que o saber que aí
se produz não é da ordem da troca, do sentido, do pensamento, da interpreta-
ção. Ele é uso, é emprego, é fazer com. Não é que não possa ser aprendido,
mas é que não se deixa apreender no formalismo do ensino, nos programas
disciplinares, nas prescrições do trabalho, nas sugestões terapêuticas, etc.
Não é um saber da racionalidade orientada pelos conceitos, mas pela dialé-
tica destes com a atividade da vida (Schwartz, 2003, p.32). É um saber que
permite lidar com o fato de que na vida secreta das palavras, como disse o
encarregado Dimitri, “tudo é um acidente”. Aberto às contingências, às múlti-
plas causalidades, às arbitragens, às variações de possibilidades de ordenar
as palavras e com elas ampliar os sentidos de seu uso.
Ao final do filme, a voz de criança que narrava parte da vida de Hanna
a acompanhava, e a acolhia, pode se dizer mais ausente. Essa presença ima-
ginária que ajudava Hanna a se enlaçar é substituída pela presença real de
uma família que ela pode constituir. O amor dedicado ao marido, às crianças,
e o trabalho de cuidar contido no lar parecem fazer prosseguir a pulsão por
um destino mais sublime.

REFERÊNCIAS

ASSOUN, P.-L. Dictionnaire des oeuvres psychanalytiques. Paris: PUF, 2009.


FREUD, S. A psicopatologia da vida cotidiana [1901]. In:______. Edição standard bra-
sileira das obras completas, v. VI. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.13-332.
FREUD, S. O mal-estar na civilização [1930]. In:______. Edição standard brasileira das
obras completas, v..XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 75-171.
LACAN, J. O seminário, livro 16: de um outro ao Outro [1968-1969]. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2008.
______. O seminário, livro 24: lo no sabido que sabe de la una-equivocación se ampara
en la morra [1976-1977] In: ______. Obras completas de Lacan em cd-rom.
MILLER, J-A. Perspectivas do seminário 23 de Lacan. O sinthoma. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2009.

52
52
Saber e trabalho na vida secreta das palavras

MOREL, G. A função do sintoma. Revista de Psicanálise, Bahia, n. 11, p.4-27. 1999.


SCHWARTZ, Y. Trabalho e uso de si. Pro-Posições, v.1, nº5 (32), julho, 2000.
______. Trabalho e saber. Trabalho e educação. Publicação da Faculdade de Educação
da UFMG, Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Educação, v.12, nº 1, jan/jun. 2003.

Recebido em 11/03/2013
Aceito em 17/03/2013
Revisado por: Otávio Augusto Winck Nunes

53
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 54-70, jul. 2011/jun. 2012

GPVTG"EQPXGTUCU"G"
TEXTOS
FGUEQDGTVCU<"fkurqukvkxqu"fg"
kpvgtxgpèçq"fkcpvg"fcu"wtigpekcu"
fg"woc"gueqnc"fg"Uçq"Rcwnq
Ana Paula Musatti Braga1, Viviani S. C.
Catroli2 e Miriam Debieux Rosa3

Tguwoq< Este artigo pretende relatar dois dispositivos de intervenção, Oficina de


Descobertas e Grupo de Conversa, realizados dentro de uma escola pública de ensino
fundamental da cidade de São Paulo. Ambos os dispositivos se inscrevem no campo
das práticas que convencionamos chamar clinicopolíticas, na medida em que se cons-
tituem como estratégias de intervenção, grupais, orientadas pela teoria psicanalítica
implicada com o contexto social no qual se inserem. Para fins deste artigo, trataremos
de descrever, a partir de alguns fragmentos de caso, os dois dispositivos e o campo
metodológico adotado.
Rcncxtcu/ejcxg< psicanálise, educação, psicanálise-instituições, infância, adolescência.

COKFUV"EQPXGTUCVKQPU"CPF"FKUEQXGTKGU<"
kpvgtxgpvkqp"uvtcvgikgu"xku/ä/xku"vjg"wtigpekgu"qh"c"uejqqn"kp"Uçq"Rcwnq"
Cduvtcev<"This paper intends to report two intervention devices: the Workshop of Findings
and the Chat Group, performed in a public secondary school in the city of Sao Paulo.
Both devices belong in the field of clinical practices that we opted to call clinical-political,
in that they constitute group intervention strategies guided by the psychoanalytic the-
ory implicated in the social context where they operate. For purposes of this article,
we describe, based on a few fragments of a case, both devices and the methodology
framework adopted.
Mg{yqtfu< psychoanalisis and education, psychoanalysis-institutions, childhood,
adolescence.

1
Doutoranda em Psicologia Clínica pela USP; Membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade
da USP. E-mail: ana.musattibraga@ajato.com.br
2
Doutora em Psicologia Social, PUC-SP; Doutora em Sciences de l’Education, Paris VIII; Pes-
quisadora “Sujeitos, Sociedade e Política em Psicanálise”. USP-São Paulo. Chargée d’études
à l’INED, França. Endereço residencial: 32, Rue Sainte Marthe – 75010, Paris-França. E-mail:
vivianisc@gmail.com
3
Professora do Programa de Psicologia Clínica da USP; Coordenadora do Laboratório Psicanálise
e Sociedade e do Projeto Migração e Cultura; Profª. Titular do Programa de Pós-Graduação da
Psicologia Social da PUC-SP; Coordenadora do Núcleo Psicanálise e Política. E-mail: debieux@
terra.com.br
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54
Entre conversas e descobertas...

E ste artigo apresenta e fundamenta metodologia de intervenção e dispositivos


que se inscrevem no campo da prática psicanalítica que convencionamos
denominar clinicopolítica, caracterizada por sua implicação com o contexto de
produção dos fenômenos sociais e subjetivos. Trata-se de intervenção no laço
social que desloca o foco dos indivíduos e sua normatização para incidir nas
modalidades de discursos produzidos na cena institucional, visando à produ-
ção de novos lugares para os sujeitos. A metodologia utilizada lança mão de
dispositivos grupais para destituir significados e identidades e produzir novas
articulações, assim revitalizando a polissemia da palavra no terreno coletivo.
As estratégias são contextualizadas nas instituições e criadas a partir das
demandas e resistências.
Serão apresentados dois dispositivos, a Oficina de Descobertas e o
Grupo de Conversa, realizados em uma escola pública de ensino fundamen-
tal da cidade de São Paulo. A escola pública em questão atende cerca de
oitocentos alunos e é bastante heterogênea do ponto de vista social, cultural
e socioeconômico. Em 2003, contando com o apoio da direção, de um grupo
de educadores e da comunidade de pais, realizou-se um mapeamento da si-
tuação crítica em que esta se encontrava: alta evasão escolar, frequente falta
de professores, indisciplina, falta de interesse dos alunos e baixos índices de
aprendizagem. Como tentativa de modificar esse quadro, a comunidade da
escola, através do seu Conselho de Escola, formulou, no ano seguinte, um
novo Projeto Político Pedagógico ancorado na prática de transmissão do saber
não mais baseada na docência expositiva e solitária, mas numa prática ou
experiência pedagógica compartilhada e solidária.
Nesse mesmo período, quatro psicanalistas voluntárias constituíram um
Grupo de Estratégias em Educação4, cuja intenção era colaborar, inicialmente,
na inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais. Rapidamente,
porém, ficou evidente que não se tratava de incluir alunos específicos, mas de
auxiliar na criação de um campo em que pudessem ser incluídas as questões
que esses alunos despertavam no seio da escola: seus ritmos não usuais, as
limitações dos seus corpos, suas dificuldades de aprendizagem. Tratou-se de
tornar possível que cada um significasse seu temor do fracasso, os limites do
corpo, a angústia de aprender, o desamparo e o medo.

4
O Grupo de Estratégias constituiu-se inicialmente com Ana Paula Musatti Braga, Simone Camargo
Silva, Larissa Patti Gomes e Evelyn Madeira. Posteriormente, integraram-se também a esse grupo
Raquel Foresti, Viviani S.C. Catroli e Helena CantoGusso.

55
Ana Paula Musatti Braga, Viviani S. C. Catroli e Miriam Debieux Rosa

O trabalho desse Grupo de Estratégias rapidamente se ampliou, criando


dispositivos de intervenção que visavam tratar, de modo coletivo, questões
enunciadas ou manifestadas por alguns estudantes. Dentre eles, destacamos
a Oficina de Descobertas e os Grupos de Conversa – dispositivos grupais
construídos a partir da orientação psicanalítica.

Q"vtcdcnjq"eqo"qu"itwrqu."uwcu"rquukdknkfcfgu"g"korcuugu

Freud começa seu trabalho Psicologia de grupo e análise do ego ([1921]


1996) afirmando que toda psicologia é social, deslocando a oposição indivíduo
x social para a tensão entre processos narcísicos e sociais. Passa a desenvol-
ver trabalho que desvenda os mecanismos presentes nas massas, grupos e
instituições. Nesse artigo, Freud irá afirmar ainda que todo laço social é laço
de amor. Ressalta, no entanto, que toda identificação via amor carrega em si
a ambivalência de sentimentos, trazendo também a agressividade advinda da
renúncia pulsional necessária à entrada do sujeito na civilização. Não haveria
laço sem mal-estar, já que o homem carrega em si toda a agressividade pela
frustração de ter aberto mão da satisfação da pulsão sexual.
Freud ([1921] 1996) propõe-se, então, a analisar dois tipos de grupos
e as formas de os indivíduos a eles se ligarem: a igreja e o exército. Temos,
então, dois processos que se sucedem na formação dos grupos: a substituição
do ideal do eu pelo objeto, no caso, o líder, ou um princípio, e a identificação
com outros indivíduos que passaram, individualmente, pelo mesmo processo
de substituição anterior. O ponto-pivô do sistema de Freud é que, para se
garantir a consistência do grupo, o líder, o Um, não poderá ser equivocado
em sua função. Essa função do Um só se sustenta porque está ancorada num
ponto de exterioridade que reúne o grupo e impede sua dissolução. Esse ponto
externo é aquele que deverá ser combatido, o inimigo-comum. Temos então,
de um lado, o amor ao líder; do outro, o ódio ao diferente.
O que inquieta, na teoria elaborada por Freud, é que o grupo só po-
deria se manter quando ancorado num ponto de exterioridade, que deveria
ser o objeto sobre o qual recairia toda violência. Ou seja, a coesão do grupo
depende de que se eleja um objeto exterior, alvo da violência. Porém, caso o
objeto exterior seja exterminado, não é certo que o grupo se mantenha. É o
que Freud ([1921] 1996) vai chamar de narcisismo das pequenas diferenças.
Será no trabalho de dois psiquiatras ingleses, Bion e Rickman, que
Lacan achará inspiração para pensar os grupos para além daquele proposto
por Freud, assentado na identificação ao Um. Esses autores apresentam uma
experiência de grupo em um hospital militar, que, aos olhos de Lacan, carrega
a riqueza da criação de um novo método de terapêutica aplicada ao grupo.
56
56
Entre conversas e descobertas...

Ora, o que Bion percebe é o mesmo que Freud em Psicologia dos grupos e
análise do ego ([1921]1996), ou seja, que o grupo se mantém organizado em
torno da figura do líder e que, quando essa função do líder é equivocada, as
massas se dispersam, a civilização entra em pane.
Mas haveria uma forma de enlaçar quando o Outro não assegura e esta-
belece o sentido? É assim que Lacan ([1947] 2003), em seu texto A psiquiatria
inglesa e a guerra, de 1947, irá descobrir nos pequenos grupos criados por
Bion, na Inglaterra do após Segunda Guerra, a saída para o problema dos
grupos artificiais de Freud e o perigo do coletivo fundado na função do Um.
Essa discussão nos é cara por dois aspectos. Primeiramente, para pensar a
possibilidade de uma clínica dos grupos pautada na desidentificação ao Um,
que seria ultrapassar o laço empreendido pelo discurso do Mestre, em direção
ao laço proposto pelo discurso do Analista. Isso daria ao sujeito a possibili-
dade de se descolar dos significantes-mestres que o marcaram em sua his-
tória, possibilitando seu movimento desejante num espaço de intervalo entre
sentidos. Em segundo lugar, se concordamos que vivemos numa sociedade
caracterizada pela saída de cena progressiva do Outro da posição de mestre,
urge pensarmos numa alternativa coletiva que não seja o pânico das massas
ao perceberem que o piloto sumiu!
O que há de tão inovador nos grupos terapêuticos de Bion (1965)? A
inclusão de um princípio capaz de diferenciar a massa do grupo. Bion decide
criar três tipos de atividades terapêuticas que eram o reflexo da sociedade,
nessa época de pós-guerra, dividida entre militares e civis. Ele irá incluir, além
dessas duas categorias de atividades, civis e militares, uma a mais, que daria
conta da expressão da impotência neurótica dos doentes (Bion, 1965, p.6).
Ele aponta um elemento terceiro que poderia, ao invés de algo da segregação,
descompletar um todo, ser seu ponto de exterioridade, impedindo assim que
a função identitária imprimisse seu modo de laço segregatório. Esse ponto
de exterioridade é o que permitirá o avanço do tratamento em grupo. Nas
palavras de Barros (2008),

Este traço permite que um pequeno grupo não seja universal,


devendo-se lembrar que o fato de o grupo ser pequeno não quer
dizer que ele não seja universal. É o fato de haver uma dimensão
que descompleta o somatório que assegura que este não seja
universal. Dito de outro modo, a dimensão sintomática racha com
a inteireza do somatório entre militares e civis. [...] Reintroduzir a
dimensão sintomática nessa grande divisão da humanidade entre
civis e militares corresponde a combater o supereu como imperativo

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Ana Paula Musatti Braga, Viviani S. C. Catroli e Miriam Debieux Rosa

de gozo, como um “goza!” sem sentido. Trata-se aqui do imperativo


superegoico no momento em que o Outro não responde, ou seja,
quando uma utopia universal não responde (Barros, 2008, p. 66).

Sabe-se que os pequenos grupos sem líder, de Bion, são a origem da


inspiração dos pequenos grupos de trabalho de Lacan, os cartéis. Lacan no
Ato de fundação da Escola Freudiana de Paris (1964) irá falar de um trabalho
que deve restaurar a relha cortante (Lacan, [1964] 2003, p.235) da verdade,
introduzida por Freud, que denuncie também seus desvios e degradações.
Para a execução desse trabalho, nos diz Lacan ([1964] 2003): “adotaremos
o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo. Cada um deles
[...] se comporá de no mínimo três pessoas e no máximo cinco, sendo quatro
a justa medida. MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino
a ser reservado ao trabalho de cada um” (Lacan, [1964] 2003, p. 235).
Concordamos com essa forma de conceber o trabalho do psicanalista
nos grupos: ele terá esse papel do mais um, de agente revelador das falhas
da lógica das identificações, tão importantes ao imaginário social e sua política
de atribuição de lugares a serem ocupados pelo sujeito. De acordo com Miller
(1986), o psicanalista no grupo deverá vir como sujeito dividido, questionador,
como agente provocador, como um ponto de exterioridade no grupo (Carmo,
2011).
Pierre-Gilles Gueguen (2001), em artigo intitulado L’intime,
l’extimeetlapsychanalyse, se debruça sobre a função do êxtimo em psicaná-
lise. Segundo ele, o êxtimo viria para romper com o íntimo, que aparece na
análise sob a forma do testemunho individual, criando uma brecha na série
de identificações que designam um lugar para o sujeito, saber do qual ele
padece. Vemos como o ponto de exterioridade encontra-se inscrito no interior
do próprio grupo, é ele que impede que o grupo caia na armadilha identifica-
tória ao líder, que, como sabemos, conduziu a humanidade para caminhos
deveras sombrios. Assim, não haveria um grupo situado em seu exterior, que
deveria ser segregado e eliminado, como no caso do narcisismo das pequenas
diferenças de Freud. Sairíamos, com Bion, da segregação própria aos grupos
identitários, e passaríamos ao plano da singularização de cada sujeito, que
poderá agora se situar em função de seu próprio sintoma (Barros, 2008). Fugir
da identificação universalizante, quebrá-la, é esse todo o desafio da psicanálise
no social, para transformar o impasse da situação na força viva da intervenção
(Lacan, [1947] 2003).

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Entre conversas e descobertas...

Q"Pcuekogpvq"fc"Qhkekpc"fg"Fgueqdgtvcu

“Quando eu estava na barriga da minha mãe, ela estava no México


dançando Hula-Hula” (aluno de sete anos).
“Minha mãe teve um namorado com o mesmo nome do meu pai;
daí brigaram, conheceu meu pai e eu nasci” (aluna de sete anos).
“A gente nasce, daí cresce, vira adolescente, aí vai ficando velhinho,
velhinho... e quando é bem velhinho morre. Sabe, meu avô morreu”
(aluno de seis anos).

Em 2006, estudantes da primeira série do Ensino Fundamental, entre


seis e sete anos, despertaram preocupação nos adultos, pois tinham com-
portamentos que lhes pareciam por demais erotizados: com frequência me-
xiam no corpo das meninas ou imitavam uma relação sexual com riqueza de
detalhes. Na mesma classe, uma aluna com síndrome de Down que, por ser
alguns anos mais velha tinha seu corpo mais desenvolvido que o das outras
meninas, expunha com frequência seu corpo, levantando sua blusa na classe
e no recreio, atendendo à curiosidade daqueles que a observavam.
O procedimento mais comum, nesses casos, seria convocar as famílias
e indagar sobre seus hábitos. O psicólogo da escola tentaria promover um
“aconselhamento dos comportamentos ditos saudáveis”, ou iria sugerir um
atendimento psicológico individualizado para esses alunos. Esses modos de
encaminhar as situações em que a sexualidade infantil se manifesta no am-
biente escolar tomam como razão explicativa o efeito de um ambiente familiar
desregulado ou, ainda, ligado a hábitos de determinada classe social. O risco
desse tipo de redução simplista é o da produção de diagnósticos psicológi-
cos equivocados e encaminhamentos prematuros e desnecessários. Rosa
(2007) nos alerta para os riscos dessas conduções: “A resistência à escuta
do discurso de tais pessoas manifesta-se, do lado do psicanalista, sob vários
efeitos. Um deles é o de ficar exclusivamente sob o peso da situação social.
A complexidade da situação social dificulta a relação intersubjetiva necessária
ao atendimento clínico” (Rosa, 2007, p. 188).
Em relação à outra aluna, uma constante dificuldade em acolher a
sexualidade nos casos de inclusão já tem sido apontada como algo bastante
frequente. De acordo com Prioste, “As manifestações da sexualidade da pessoa
com deficiência intelectual são interpretadas como desvio de conduta, ao invés de
serem percebidas como curiosidade e desejo de saber” (Prioste, 2010, p. 14).
Em ambos os casos, seja com uma hipótese de causalidade atribuída
aos comportamentos familiares e sociais, seja pela prevalência do viés biológico

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Ana Paula Musatti Braga, Viviani S. C. Catroli e Miriam Debieux Rosa

constitutivo, os ditos “desvios” e “excessos” da sexualidade recaem sobre os


próprios alunos e, com isso, as intervenções se restringem ao âmbito individual
e-ou familiar. Levar em conta a realidade social de cada família e a organização
espacial a que estão sujeitos, no caso, alunos que vivem em casas de apenas
um cômodo e usam banheiros coletivos, é algo fundamental que deve ser
considerado em nosso trabalho. Nossa intenção, ao considerar as peculiari-
dades das organizações familiares dos alunos, deve-se à preocupação de nos
descentralizar de toda possível interpretação amparada na imagem ideal da
“típica família burguesa brasileira”, e suas noções de intimidade, privacidade
e de laços conjugais. Se alguns alunos, por questões de moradia, não tinham
como não dormir num espaço reservado dos pais, tornando-se testemunhas
da vida conjugal deles, isso deveria estar incluído em nossa intervenção: não
para apontar qualquer tipo de causalidade ou estereótipo, atribuindo-lhes o
estigma de uma sexualidade exacerbada ou inadequada, mas para garantir um
espaço, dentro da escola, em que os efeitos dessa proximidade intergeracio-
nal pudessem ganhar expressão. Conforme Dolto, essas crianças deveriam,
ainda mais que as outras, ser “esclarecidas sobre o sentido real e a validade
da sensualidade e da sexualidade” (Dolto, 1999, p.95).
Foram os atos desses alunos da primeira série, em que o corpo e o
erotismo se fizeram presentes, que, pelas suas ressonâncias, nos fizeram
atentar para a imensidão de questões que todos os alunos, recém-chegados
da Educação Infantil, estavam vivendo. A chave da intervenção clinicopolítica,
nesse caso, foi entender esses atos disparadores como oportunidades mais do
que bem-vindas para a criação de um dispositivo de intervenção. Empregamos
aqui a lógica freudiana de que o ato falho é sempre um ato bem-sucedido,
que busca significação.
Assim, diante dessa situação, era necessário criar uma estratégia de
intervenção capaz de retirar desses alunos essa marca de “inadequação” e de
“imoralidade”, e de recuperar a potencialidade dessas questões colocadas em
ato. A Oficina de Descobertas5 foi um espaço de circulação da palavra, para
que ela pudesse ressoar, oferecendo a cada criança a possibilidade de pensar
o momento que vivia: suas interrogações sobre o crescimento, o nascimento
e a morte. Esse dispositivo, povoado por conversas, pela criação de jogos

5
Sobre a Oficina de Descobertas, ver também artigo “Quem pergunta quer saber: oficina de
descobertas numa escola pública de São Paulo” de autoria de BRAGA, Ana Paula M. O infantil.
Correio APPOA, Porto Alegre, maio 2011.
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60
Entre conversas e descobertas...

em grupo e desenhos, tinha como objetivo deslocar o embaraço individual da


sexualidade infantil para o plano coletivo do grupo. Desde o ano de 2006 até
2010 realizamos essa Oficina com todos os alunos da primeira série da esco-
la. Para viabilizá-la, estabelecemos alguns contornos, tais como um mínimo
de dois meses de trabalho, com um encontro semanal, em grupos que não
ultrapassassem vinte alunos.

Qhkekpc"fg"Fgueqdgtvcu<"
guvtcvgikc"eqngvkxc"rctc"woc"guewvc"fq"ukpiwnct"

“Meus pais pediram para eu te perguntar se você sabe a idade da


gente para ficar falando dessas coisas” (aluna de sete anos).

Dolto (1997) nos lembra que as questões sobre a origem, o nascimento,


o desejo, a sexualidade deveriam ser abordadas na escola, desde o mater-
nal, sempre que as crianças trouxessem essas indagações. A proposta de
Orientação Sexual para as séries iniciais do Ensino Fundamental fixada nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) incentiva o trabalho dos educado-
res sobre as questões da sexualidade de maneira não-diretiva e sempre que
houver situações disparadoras. A premissa fundamental desse documento é a
de que “as curiosidades das crianças a respeito da sexualidade são questões
muito significativas para subjetividade na medida em que se relacionam com
o conhecimento das origens de cada um e com o desejo de saber” (PCN,
vol.10, p.77).
Vale esclarecer, no entanto, que, embora esses sejam Parâmetros Na-
cionais, o que se observa entre os professores é uma imensa dificuldade em
fazer esse trabalho, principalmente com essa faixa etária. Com os alunos mais
velhos, geralmente trabalham as questões reprodutivas, visando unicamente à
diminuição das taxas de gravidez na adolescência e de doenças sexualmente
transmissíveis. Com as crianças pequenas, entendem a necessidade de traba-
lhar sobre o corpo, a origem e o desenvolvimento; mas fazem-no de um modo
absolutamente fisiológico (limitam-se a mostrar filmes sobre a fecundação e
esquemas detalhados dos aparelhos genitais) ou enfatizando a semelhança
do ser humano com os outros mamíferos (com filmes ou figuras de animais).
Entendemos que, tanto num caso como no outro, o que se transmite à criança é
somente a dimensão instintiva, e o que fica suprimido é justamente a dimensão
pulsional e desejante, característica das relações humanas.
E isso não é ao acaso; falar do sexo remete ao corpo, à morte e ao
gozo; ou seja, remete ao real, ao que “se funda por não ter sentido, por excluir

61
Ana Paula Musatti Braga, Viviani S. C. Catroli e Miriam Debieux Rosa

o sentido ou, mais exatamente, por decantar ao ser excluído dele” (Lacan,
[1975] 2007, p.63).
Ao tratar a sexualidade pela via da necessidade, do orgânico e do bioló-
gico, os educadores buscam se proteger do que é imprevisível, imponderável,
inominável e que só se pode tocar pelas bordas. Pensamos que tratar o sexual
pela via do biológico escamoteia o que parece insuportável de ser enunciado,
a saber, que em relação ao sexual há muitas informações, mas não há um
saber; a sexualidade escapa à norma e a uma referência a priori, apontando
sempre para o inominável, da mesma forma que a morte.
Falar, desenhar e conversar sobre o corpo das mulheres, dos homens,
papais e mamães, meninos e meninas foi algo que permeou muitos encontros
dessa Oficina. Tal estratégia visava operar uma passagem do plano imaginário
ao simbólico, deslocando as inadequações e respostas morais para o desejo
de saber. Com isso, as encenações sexuais rapidamente cederam lugar a
indagações como:

“E quando duas mulheres namoram, nasce nenê?” (aluna de seis


anos).
“Minha vizinha teve um nenê que morreu dentro da barriga, como
isso acontece?” (aluna de sete anos).
“Como nasceu a primeira pessoa?” (aluno de sete anos).
“Se fica fazendo sexo mais tempo é que nasce mais filhos?” (aluna
de sete anos).
“Do que é que a gente foi feito?” (aluno de sete anos).
“Por onde as meninas fazem cocô? É igual aos meninos?” (aluno
de seis anos).

Trazer algumas explicações sobre as relações sexuais, sobre os be-


bezinhos dentro da barriga, sobre as diferenças do corpo dos homens e das
mulheres, na medida em que as perguntas assim o exigiam, não significava
acreditar que isso fosse dar conta de como cada um se enreda na trama fa-
miliar; mas, sim, respeitar a convocação do enigma do sexual.

“Dizem que sou igual ao meu avô que eu nem conheci. Como isso
acontece?” (aluno de sete anos).
“Por que nasce parecido com o pai ou com a mãe? Eu sou parecido
com meu pai e meu irmão com minha mãe!” (aluno de sete anos).
“Por que às vezes nasce menino e às vezes nasce menina? E gê-
meos?” (aluna de sete anos).
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62
Entre conversas e descobertas...

Ao trazer para um espaço coletivo as falas, as perguntas, os interesses


dos diversos alunos da primeira série, partimos de uma premissa básica: a de
que os considerávamos todos e cada um, no laço social, e que o grupo que
compunham não era uma reunião de indivíduos. “O inconsciente freudiano é
incompatível com a ilusão do individual, da autonomia e da independência no
homem, uma vez que afirma a dependência simbólica do desejo do Outro”
(Rosa, 2004, p.338).
Tornou-se imprescindível realizar paralelamente um trabalho junto aos
pais: em alguns momentos marcávamos reuniões com os familiares de todos
os alunos do primeiro ano, conjuntamente; em outros, fosse pela urgência ou
pelo pedido de algo mais reservado, recebíamos somente os pais ou respon-
sáveis de uma criança e, na presença desta, buscávamos trabalhar e localizar
o que tinha sido despertado naquela família.
Sustentar junto aos pais dos alunos que compunham a Oficina de Des-
cobertas que, ao estarem no grupo, as questões que surgiam ali já diziam
respeito aos seus filhos, demarcava claramente nossa concepção de que a
relação com a escola não pode ser pensada a partir dos alunos destacados
da relação com o outro, indivíduos dissociados de sua dimensão pulsional.
Muitos pais, impregnados de um imaginário social que supunha ser
pertinente o trabalho das Oficinas somente para alguns alunos – aqueles que
seriam carentes não só de bens, como também, de informação –, exigiam que
seus filhos fossem poupados e protegidos do conteúdo dessas conversas; como
se pudessem ficar à parte do encontro com os outros, buscando transformar
esses acontecimentos e encontros em produtos a serem consumidos, sem
história e sem desejo, inócuos e previsíveis.
“Tudo bem pras pessoas que não têm informação, você fazer essa
Oficina; mas para o meu filho, eu não quero, ele não precisa. Eu tenho infor-
mação, eu conto na hora que achar importante” (mãe de aluno de sete anos).
Assim, acreditavam poder escolher, controlar e calcular o momento em
que cada questão seria pertinente a seus filhos. A nossa intervenção, apostando
na capacidade transgressora da psicanálise, intervindo e subvertendo esses
modos de enlaçamento contemporâneo, que convocam o indivíduo no lugar do
sujeito, sustentava a busca pelo singular – entendido como o que só pode ser
formulado levando-se em conta a relação e o laço com o outro, que não pode
e não deve ser confundido com o individual. Pensamos, com Lacadée, que

A esperança – da conversação – reside sempre no elemento de


novidade que cada criança traz consigo. Parte da esperança e da
ilusão que ela deve fazer compartilhar, sabendo acolher e lhe dando

63
Ana Paula Musatti Braga, Viviani S. C. Catroli e Miriam Debieux Rosa

seu devido lugar. Saber acolher é atribuir-lhe um lugar, de onde ela


terá a possibilidade de entrar num discurso, em uma tomada de
enunciação. Dar-lhe a palavra a partir do que se é, a partir de sua
singularidade, e da parte de novidade que traz em si. A prática da
conversação dá a chance ao discurso de cada um” (Lacadée, 2008,
p. 20, tradução nossa).6

Vejamos agora como essa conversação se deu com os adolescentes.

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gpvtg"c"gueqnc."c"fgocpfc"g"qu"uwlgkvqu"cfqnguegpvgu

Os Grupos de Conversa foram criados como resposta a outra situação


de urgência: um dos alunos foi pego pela polícia furtando de uma casa em
frente à escola. Algumas reuniões foram realizadas com os adolescentes da
escola na tentativa de deslocar esse episódio de uma problemática individual
e inscrevê-lo num contexto coletivo. Os adolescentes puderam apontar algu-
mas situações em que se viam, ou viam outros alunos, colocando-se numa
situação de risco. Os Grupos de Conversa, de orientação psicanalítica, foram
criados como um espaço para a palavra adolescente. Essa estratégia clínica,
destinada aos adolescentes, permitiu-nos intervir e antecipar situações de
desamparo ou de deriva iminente. Após a criação desses grupos, fizemos
a descoberta de sua proximidade ética e metodológica com o trabalho do
Centro Interdisciplinar sobre a Infância (CIEN)7. Foi no trabalho do CIEN que
buscamos, après coup, as ferramentas para teorização de nossa experiência
clínica com os adolescentes.

6
Do original consultado: L’espoir – de la conversation – réside toujours dans l’élément de nouve-
auté que chaque enfant apporte avec lui. Part d’espoir et d’illusion qu’il lui faut faire partager en
sachant accueillir et lui donner sa place. Savoir l’accueillir, c’est lui donner une place d’où il aura
la possibilité d’entrer dans une discours, dans une prise d’énonciation. C’est lui donner la parole
à partir de ce qu’il est, à partir de sa singularité, et de la part de nouveauté qu’il porte en lui. La
practique de la conversation donne chance de discours à chacun.” LACADÉE, P. (2008) De la
norme de la conservation au détail de la conversation. In: Comment se faire entendre à l´école?.
CRDP, Aquitaine. p.20.
7
O CIEN foi criado na França, em 1996, por Jacques-Alain Miller, com a proposta de abordar de
forma interdisciplinar as dificuldades encontradas pelas crianças e pelos adolescentes no laço
social, utilizando de forma privilegiada a prática da conversação. Desde a década de noventa
existem experiências em inúmeros países sob a forma de “laboratórios de investigação”, com
estilos bastante diversos. No Brasil, existem laboratórios no Rio de Janeiro e Belo Horizonte há
alguns anos e, mais recentemente, no Maranhão e em Recife.
64
64
Entre conversas e descobertas...

O objetivo de nossos Grupos de Conversa foi o de permitir, ao sujeito


adolescente, o encontro com um Outro receptivo e pronto a lhe fornecer um
saber-Outro, não-fechado, capaz de desestabilizar as identificações que o apri-
sionam e de acompanhá-lo para além de todo saber constituído como verdade.
Possibilitar ao sujeito adolescente um reencontro com uma palavra prenhe de
sentido é lhe dar garantias de uma existência como pertencimento, graças ao
enlaçamento de sua palavra perdida numa trama ficcional coletiva. Para isso,
buscamos nos apoiar no trabalho de Lacan e sua teorização sobre os pequenos
grupos, principalmente no que concerne ao lugar que pudemos ocupar como
coordenadores, trabalhando pela desidentificação aos significantes-mestres
fixos do discurso social.
A demanda dessa escola nos chegou sob a forma de uma pergunta
enunciada por sua diretora: “O que se passa com alguns desses meninos, pois
temos a sensação de que nossa palavra os atravessa sem deixar marcas, sem
produzir efeitos?” Não se tratava, como podemos observar, de um problema
de evasão escolar ou de violência dos alunos, mesmo se isso fizesse parte
também do cotidiano da escola. Tratava-se de uma questão que tocava no
âmago da estrutura do sujeito, que em nossos dias enfrenta algumas torções;
problema de uma palavra que não consegue fazer marca no corpo.
A angústia da diretora é a evidência de que o saber escolar é não-todo,
e esse furo, sua insistência, é sentido como insuportável pela equipe peda-
gógica. É isso o que é colocado em cena pelo comportamento resistente dos
adolescentes. O corpo adolescente resiste a fazer semblante da completude
imaginária do discurso normativo escolar e, assim, a palavra dos responsáveis
pela instituição escolar ecoa no vazio. A autoridade falha, as tentativas de
escuta não produzem grandes efeitos. Os adolescentes oscilam entre o fala-
tório e o emudecimento. Se podemos pensar que o que sustentava o sujeito
adolescente dentro da escola, nos tempos de Freud, era a relação intrínseca
produzida pelo ideal do eu, chegamos ao ponto de partida que nos permitirá
entender algumas das razões pelas quais a palavra emitida pela instituição
escolar nos dias de hoje atravessa o corpo adolescente sem produzir qualquer
marca ou traço.
A adolescência é o tempo do sujeito que pressupõe o fim do complexo
de Édipo e a construção do fantasma que lhe permitirá representar, simbo-
licamente, o impossível da satisfação. É por isso que o adolescente deverá
“fazer cair” a cena familiar, na qual a satisfação será sempre da ordem de uma
promessa impossível, para aceder ao espaço social e se aventurar em busca
do amor capaz de fazer suplência a essa falta do objeto. A escola, lugar encar-
regado de fomentar no adolescente o interesse pelo mundo, deverá ajudá-lo

65
Ana Paula Musatti Braga, Viviani S. C. Catroli e Miriam Debieux Rosa

a construir as ferramentas necessárias para seguir adiante, tendo a figura


do educador – que o aluno deverá tomar como seu ideal de eu – como pilar
central dessa fase de transição. No entanto, em nossos dias, esse processo
encontra-se comprome-tido; haveria um curto-circuito dos ideais exercidos pela
função Nome-do-pai e, paradoxalmente, a recrudescência dos agrupamentos
identificatórios segregacionistas. Esse aspecto leva-nos em direção às ques-
tões de grupo trabalhadas no fragmento clínico que traremos logo a seguir.
Os Grupos de Conversa foram realizados num espaço insólito da insti-
tuição escolar. Trata-se de uma oca, uma Opy-Guasu, um espaço consagrado
do povo guarani. Uma espécie de reduto da palavra, construído pelos próprios
guaranis juntamente com os alunos, que se situa fisicamente no jardim da
escola; num entre a instituição e a rua. Esses grupos ocorriam semanalmente,
no horário das aulas, podendo se estender por alguns meses ou por até dois
anos; tinham composição bem variada, em função do número de alunos, seus
horários, de algumas resistências e outras desistências.

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qu"ghgkvqu"uwdlgvkxqu"fg"wo"ncèq"rgnc"xkc"ugitgicvôtkc"fc"kfgpvkhkecèçq

Roberto, um adolescente de aproximadamente 15 anos pede-nos para


participar de um Grupo de Conversa composto apenas por meninas. Ele
havia participado de alguns encontros desse mesmo grupo no ano anterior e
gostaria, novamente, de fazer parte. Decide expor sua vontade de integrar o
grupo às meninas. Roberto havia sido reprovado no ano anterior e chega ao
grupo de meninas dizendo que queria um lugar onde ele pudesse conversar
e não apenas falar besteiras, o que ele dizia que sempre acontecia, já que os
meninos de sua classe eram todos mais novos do que ele. Perguntamos se
ele tinha conseguido cumprir as tarefas necessárias a sua aprovação e con-
sequente saída da escola, ao que ele responde que sim, e que por isso não

8
Este caso clínico foi anteriormente trabalhado no artigo “O laço social na adolescência: a violência
como ficção de uma vida desqualificada”, de autoria de Catroli, Viviani S.C. e Rosa, Miriam D.,
enviado à revista Estilos da Clínica. No entanto, neste artigo, as análises feitas sobre o material
clínico em questão eram utilizadas para divulgar as teses defendidas no doutorado de Catroli,
Viviani, S.C. (2011), a saber, que quando os sujeitos adolescentes se encontram diante da violenta
desqualificação de suas vidas e da falta de perspectivas de inscrição em um laço indicador de
participação fálica no social, podem fazer da violência sua própria forma de ficção de si.
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Entre conversas e descobertas...

entende o porquê de ter sido reprovado. Nesse momento, o grupo o interpela


e pergunta se ele tinha feito mesmo todos os trabalhos. Ao que ele responde
sim, mas diz que não com sua própria letra. Ele diz que tomou de empréstimo
a letra de outra pessoa. No caso, a letra de seu pai, que foi quem fez suas
tarefas escolares.
Roberto, ao escrever com a mão de seu pai, encontra-se apartado do que
lhe acontece em sua existência; é um sujeito não-responsável por aquilo que
lhe acontece. Não entende o que lhe acontece, pois não foi o responsável por
seu destino. Perguntamos-lhe sobre sua responsabilidade, e não sua culpa, por
sua reprovação, o que o distanciou dos amigos com os quais podia conversar.
Ele acaba nos dizendo que compreende o que lhe aconteceu e, ao nos dizer
de seu ato – tomar de empréstimo a letra de seu pai -, ele se reconhece como
ator de sua reprovação, e nos diz que, de fato, “viajou”. Perguntamos que tipo
de “viagem” foi essa. Ele começa a nos contar a história de uma viagem com
sua mãe pelo Afeganistão, no centro de uma zona de guerra, onde, segundo
ele, seria o único lugar pra onde os pobres têm direito a viajar nas férias.
A construção dessa ficção se assemelhava a uma narrativa fantástica,
construída numa métrica precisa, até mesmo musical, que nos embalou por
alguns minutos. Roberto aparece como sujeito da história que estava sendo
narrada. Entretanto o narrador, este, desaparecia ao fazer de seu poema de
exílio uma saída de segurança para sua angústia. O sujeito que viajou para
o Afeganistão era um sujeito exilado por sua própria história. O que será que
aconteceu com Roberto, que, quando questionado sobre sua responsabilidade
sobre os rumos de sua vida, “viaja”, ou melhor, busca exílio em sua história
de guerra e de tiros? Roberto era aquele que ocupava, no imaginário escolar
e no imaginário social, um lugar de resto, do refugo. A saída para falar de seu
desejo será pela via da construção de uma ficção socialmente desqualificada,
que terá na violência urbana contemporânea sua linha de narração.
Após Roberto contar sua história, o restante do grupo, apenas meninas,
decide por acolhê-lo. No entanto, no encontro seguinte, Roberto chega acom-
panhado de um amigo. E, depois, leva outro amigo, o que será o motivo de
sua expulsão do grupo, pois as meninas do grupo acabam se reposicionando
diante do que chamaram uma invasão de meninos que não tinham nada a
dizer, mas que queriam apenas espionar suas histórias. O grupo não se mostra
capaz de sustentar a presença barulhenta desses meninos. Propusemo-nos,
então, a acolher os meninos em outro grupo, um grupo que porta como marca
de nascença a aderência ao significante não-confiáveis.
Após duas primeiras conversas atribuladas com esse grupo, cinco no-
vos meninos entram no grupo, todos eles um pouco mais novos que aqueles

67
Ana Paula Musatti Braga, Viviani S. C. Catroli e Miriam Debieux Rosa

iniciais. Nossos encontros semanais aconteciam no mesmo espaço da oca,


no jardim da escola. Cerca de duas semanas após o início do grupo, esses
meninos começaram a “catar” algumas pedras e paus que ficavam no chão
do jardim e a trazê-los para o grupo, arremessando-os contra o muro e contra
as paredes da escola. Essas pedras faziam parte da oca. Normalmente, eles
ocupavam parte de nosso tempo arremessando as pedras, enquanto passá-
vamos parte de nosso tempo esperando e pedindo para que deixassem as
pedras do lado de fora para iniciarmos nossa conversa. Uma vez do lado de
dentro, iniciado o grupo, as pedras continuavam a interromper as falas e se
espatifavam nas paredes da oca.
As pedras não cessavam. Mas dessa vez, ao invés de esperar que
eles desistissem de lançá-las ou de pedir-lhes que as deixassem de lado,
autorizamos a entrada das pedras no grupo; que levassem as pedras para
a conversação. Ao que eles nos dizem, nós entraremos com as pedras, mas
prometemos não tacá-las! Dizemos, ok, então nós temos um trato. O grupo
transcorre tranquilamente com assuntos cotidianos, futebol, o trabalho de
alguns no clube de tênis, o que eles gostariam de ser quando crescerem.
Foi quando percebermos que as pedras não cessaram; elas vinham de fora,
estavam sendo lançadas por alguém de fora da oca. O menino que nos fez a
promessa de não lançar as pedras alerta-nos, dizendo: e agora, o que fazemos?
(já que dessa vez eles não poderiam responder com suas pedras, pois tínhamos
um trato). Estamos tentando conversar, mas eles não nos deixam em paz!
As pedras que pegavam pelo caminho, antes de entrarem na oca, ti-
nham sua função: eram a forma que encontraram de se defenderem do efeito
devastador produzido pelo olhar do Outro, que entrava pelos furinhos da oca.
Esse grupo tinha se constituído a partir da exclusão, como um grupo que não
poderia fazer parte de outro. Grupo dos não-confiáveis. No entanto, mais do que
não-incluídos no grupo das meninas, esses meninos já estavam anteriormente
aderidos, colados, ao lugar de resto na instituição escolar, nomeados como os
piores. As pedras que chegavam de fora eram para que não se esquecessem
do lugar que ocupavam, lugar de resto. As pedras eram lançadas pelos mais
novos da escola, que tinham aquele horário como seu horário de recreio, e
que usavam esse tempo lançando seus olhinhos pelas frestas e pelos buracos
criados da parede da oca. A cada pedaço de barro tirado da parede, uma pedra,
um furo que permitia a entrada do olhar do Outro. Os meninos resistiam, com
pedras, a serem adivinhados pelo olhar do Outro. As meninas lançaram como
uma pedra o significante não-confiável e esse ato retornava, a cada semana,
nas mãos dos pequenos que os cercavam de fora. Ao ocuparem o espaço da
oca, transformado em lugar de palavra, esses meninos tentavam sair do lugar
68
68
Entre conversas e descobertas...

que se havia instituído para eles, de resto-mudo; mas, ao tentarem sair dessa
posição, foram alvo de mais hostilidade.
Observa-se a reprodução da invasão do espaço do outro – do furto que
gerou a demanda da escola – que é encenada às avessas, na escola. Cria-se
um espaço para a palavra, mas o lugar de dejeto é afirmado e, literalmente,
vai atrás desses adolescentes. Mas com uma diferença, pois dessa vez os
psicanalistas estão presentes e são convidados a testemunhar. No último
encontro do semestre com esse grupo, todos os meninos mais novos, que
desestabilizavam a fala dos mais velhos, vão embora. Apenas depois que to-
dos partiram é que foi possível para esses três meninos sustentarem sua fala.
Eles dizem, “ainda temos 5 minutos, o que vamos fazer?”. A sugestão é: “nós
vamos limpar a oca e catar essas pedras”. Limpamos o espaço, conversamos,
e a porta da oca é esquecida aberta. Um dos meninos, que a cada encontro
insistia em tentar esconder o cadeado da porta, avisa-nos desse esquecimento
e fecha a oca, dizendo: “é uma pena que essa porta não fique sempre aberta”.
Nessa fala, um voto, um desejo é pronunciado. O caminho da palavra se abriu
apenas quando tudo o que excedia e que levava a uma experiência de puro
gozo pôde abandonar o grupo.
Nosso objetivo, nesses Grupos de Conversa, foi oferecer aos adoles-
centes a possibilidade de um reencontro com um Outro receptivo à escuta,
disponível para lhes oferecer um campo de saber capaz de desestabilizar, e
de colocar entre aspas, a série de identificações que os desqualificam e os
aprisionam fora do campo social. Nossa aposta foi a de criar garantias para o
sentido da palavra adolescente, para que ela não seja apenas instrumento de
gozo, e garantias de uma existência enquanto pertencimento não-desqualifi-
cado no campo social, como forma de evitar seja a passagem ao ato, sejam
os actingouts, graças a uma aposta na palavra.
As estratégias de intervenção apresentadas neste artigo foram modos
de enlaçar uma palavra perdida, à deriva – que na infância é confrontada com
a angústia das origens, e na adolescência com a possibilidade do encontro
com o sexual – através da composição de uma trama ficcional que pudesse
protegê-los da difícil presença do real.

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Recebido em 21/09/2012
Aceito em 19/10/2012
Revisado por Renata Almeida

70
70
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 71-85, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS RUKECPıNKUG"G"Q"UWU<"
woc"gzrgtkgpekc"go"
ucûfg"rûdnkec3

Sandra Luzia de Souza Alencar2

Tguwoq<"A partir de uma experiência desenvolvida durante dois anos (2003–2004)


em uma região da periferia de São Paulo, objetivamos descrever aspectos dessa
experiência e, simultaneamente, problematizar o fazer do psicanalista na saúde
pública, em um serviço de saúde mental. Também é nosso objetivo problematizar o
que constitui uma intervenção orientada pelas noções de saúde pública e coletiva
nesse campo de saberes, ações e práticas.
Rcncxtcu/ejcxg<"psicanálise, saúde pública, violência.

RU[EJQCPCN[UKU"CPF"UWU<"CP"GZRGTKGPEG"KP"RWDNKE"JGCNVJ
Cduvtcev< From an experience developed during two years (2003-2004) in a region
on the outskirts of São Paulo, we objectify to describe aspects of that experience
and, simultaneously, to problematize the practices of the psychoanalyst in public
health, in a mental health service. It is also our objective to problematize what
constitutes an intervention guided by notions of public health and coletive health
in this field of knowledge, actions and practices.
Mg{yqtmu<"psychoanalysis, public health, violence.

1
Este texto tem como referência a pesquisa desenvolvida pela autora, em nível de doutorado, cuja
tese foi intitulada A experiência do luto em situação de violência: entre duas mortes. Programa
de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2011.
2
Mestre e doutora em Psicologia Social pela PUC–SP; Membro do Núcleo de Pesquisa em
Psicanálise e Política da PUC – SP; Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.
E-mail: sandra.lsalencar@gmail.com
71
Sandra Luiza de Souza Alencar

Kpvtqfwèçq

A partir de uma experiência desenvolvida durante dois anos (2003–2004) em


uma região da periferia de São Paulo, objetivamos neste artigo descrever
aspectos dessa experiência e, simultaneamente, problematizar o fazer do
psicanalista na saúde pública, em um serviço de saúde mental, assim como
o que constitui uma intervenção orientada pelas noções de saúde pública e
coletiva neste campo de saberes, ações e práticas.
O ponto de partida é a crítica à importação, para a saúde pública, de um
fazer clínico do âmbito privado de atendimento individual. Nessa observação
crítica não se localiza apenas o trabalho de psicanalistas, mas de indistintas
orientações teóricas dos trabalhadores das diversas formações que atuam
nos serviços de saúde mental.
É importante também ressaltar que a crítica não destaca os atendimentos
individuais como critério para a noção de importação. Pois, comumente, nas
instituições e serviços de saúde mental, a perspectiva de um trabalho de saúde
pública de caráter progressista e pautado nos princípios da Reforma Psiquiátri-
ca tem como referência o trabalho em grupo. Em desacordo com esse critério
de avaliação, o que marcamos é que o trabalho em grupo ou individual pode
estar regido pela mesma concepção individualista. Nesse sentido, a oferta de
atendimento em grupo não se constitui em garantia de progressismo da ação.
Os atendimentos, em grupo ou individuais, podem ser igualmente alie-
nantes e cronificantes, a depender da orientação eticopolítica que os rege.
Assim, as reflexões apresentadas neste texto não se norteiam pelo grupa-
lismo, mas procuraremos apresentar a complexidade das situações e, em
consequência destas, a necessidade de complexidade das respostas, sem,
com isso, ter garantias.

Htciogpvq"Enîpkeq

A vinheta de um caso clínico pode auxiliar nesta formulação que estamos


procurando realizar. Uma mulher a qual nomeamos Flor procura o serviço de
saúde mental. A procura é motivada por seus sintomas: está sufocada, não
consegue respirar, não fala com as colegas no trabalho. O significado que
dá a sua situação é de que está em depressão; recebeu este diagnóstico de
um psiquiatra. Na primeira entrevista, ela conta que há um mês perdeu, por
assassinato, seu filho, mas não chorou e não consegue chorar. O contexto da
morte do filho é o que vai assumir o espaço da sessão, subsumindo a morte e,
com ela, a perda. Assim, não conversar, não respirar, estar sufocada, associa-
se a não chorar. Acompanhando seu relato, interpretamos que é chorar que
72
72
Psicanálise e o SUS...

está impedindo e impede respirar, conversar, contar a vida e morte do filho.


Flor está impedida de chorar a morte do filho e não pode fazer o luto; assim,
seu luto está impedido.
Flor se detém na descrição das cenas que se relacionam com a morte
do filho. Diz Flor: “Ele não dormiu em casa, quando passei em casa para me
trocar para ir para o meu outro emprego [Flor trabalha em dois empregos,
em um deles faz plantões noturnos] fiquei sabendo. Aí quando cheguei lá [na
instituição onde trabalha] fiquei ligando para o telefone celular dele, mas ele
não atendia... Eu fiquei ligando... aí uma mulher atendeu e ela me perguntou
se eu conhecia o dono daquele telefone, porque ele estava morto, caído lá
no chão. Eu dei um grito e caí. As pessoas lá no... (local de trabalho) vieram
correndo, me ajudaram a levantar”.
Após ter a notícia da morte do filho, Flor foi com o marido ao local indica-
do. O filho estava ali, diz Flor: “Estava ali, jogado no chão, morto, morto como
um cachorro!” Essa é uma cena que vai se repetir no discurso dessa mulher.
Foram cerca de oito encontros com Flor. Neles, deteve-se a narrar as
circunstâncias em que o filho morreu: encontrado no chão, numa rua em uma
favela, com o corpo marcado por agressões. Essa cena a faz associar o filho
morto a uma condição não humana – “Estava ali, jogado no chão, morto, morto
como um cachorro!” –, o que constitui o insuportável para Flor, mais do que
a própria morte. Algo entre seus sintomas assume destaque para Flor: não
consegue chorar. Ao descrever os sintomas, embora não o verbalize, sua fala
destaca o estranhamento de viver silenciosamente a morte do filho. Uma morte
seca, tomando aqui a referência de Allouch (2004). Indago sobre sua relação
religiosa. Flor é católica, mas não encomendou missa, também não cuidou da
sepultura, não foi ao enterro.
Às circunstâncias da morte são atribuídos valores morais que recobrem
a própria morte e, com isso, passa a ser negado o direito da família e a ne-
cessidade legal de averiguação e de responsabilização da autoria do crime.
Na noção de responsabilização e de autoria, referimo-nos não apenas a um
indivíduo, mas a um sistema político e social que produz uma sociedade vio-
lenta, revelada pela própria desigualdade das condições de vida e de morte.
As circunstâncias da morte são transformadas em justificativas e, dessa forma,
estão dadas condições para a negação da necessidade de funcionamento das
instâncias legais, o que produz como corolário a naturalização de uma realidade
na qual determinadas vidas e vidas determinadas são perdidas.
Mas a justificativa encobre a perda. E isso não é indiferente a Flor. Ao
ir à delegacia de polícia, já que queria saber quem matou seu filho, em nome
de quê ou de quem ele foi assassinado – posição legítima no Estado de direito

73
Sandra Luiza de Souza Alencar

brasileiro –, tem negado esse direito. Na delegacia, o que Flor escuta é que
ela não deve querer saber, não deve buscar informação; essas são as pala-
vras que recebe da autoridade policial: “Nestes casos é melhor não mexer, é
melhor deixar isso para lá.” Quais casos, porém, são esses a que se refere o
policial? O que ele sabia sobre o filho dessa mulher?
O que escutamos é que as palavras proferidas pela autoridade da
instituição pública se constituíram em ordenamento: Flor devia silenciar. Com
essas palavras e de “onde” elas são proferidas constituem-se os sintomas de
Flor; os sintomas mostram sua articulação com o campo social, referido, por
sua vez, ao campo do Outro. Flor está proibida de chorar a morte de seu filho
e seu luto se torna impedido.
Uma morte que não pode ser chorada nos fez associar o caso de Flor
com Antígona, tragédia de Sófocles ([441 a.C.] 2003). Tal como Antígona, Flor
também recebeu uma proibição proferida pela autoridade legal. Antígona foi
proibida, por um decreto real, de realizar o luto pela morte do irmão, pois ele
foi considerado inimigo da cidade de Tebas:

[...] Polinices – que voltou do exílio jurando destruir a ferro e fogo a


terra onde nascera – e conduziu seu próprio povo à escravidão, esse
ficará como os que lutavam a seu lado – cara ao sol, sem sepultura.
Ninguém poderá enterrá-lo, velar-lhe o corpo, chorar por ele, prestar-
lhe enfim qualquer atenção póstuma. Que fique exposto à voracidade
dos cães e dos abutres, se é que esses quererão se alimentar em
sua carcaça odienta (Sófocles [441 a. C.] 2003, p. 14).

As circunstâncias da morte impedem que se disponibilizem, assim


como em Antígona, os recursos culturais com os quais se recobre um corpo
e possa se entrar em luto. Inferimos que o caso de Flor, em sua associação
com Antígona, revela o político que há no luto.

Q"ogvqfq"rukecpcnîvkeq"enkpkeqrqnîvkeq"g"uwc"ctvkewncèçq"eqo"q"UWU

Quais as consequências que se dão para o que se escuta e aparece


como sintoma no espaço de um serviço público de saúde mental?
O atendimento de Flor transcorreu em sessões individuais. E até esse
ponto de descrição do caso, podemos dizer que há uma intervenção clínica,
mas, tal como descrita, que essa intervenção poderia ter se passado em um
espaço privado de atendimento psicológico e-ou psicanalítico. A qualidade do
atendimento público está em reproduzir o mais próximo possível, no espaço
74
74
Psicanálise e o SUS...

público, as condições de atendimento do espaço privado? Caso Flor possuísse


recursos financeiros, o melhor seria buscar um atendimento privado?
Rosa (2004) aborda e delimita a noção de sintoma que guia a prática
psicanalítica, apontando que Freud se volta para as questões da cultura e da
sociedade tendo como base e referência a experiência clínica:

Freud considerou impróprias as categorias de racionalidade e ob-


jetividade para a compreensão do homem, uma vez que este vive
através do mundo simbólico da linguagem. Inventou, então, um pro-
cedimento para desvelar o sentido da palavra do homem, dar-lhe voz.
O tratamento psicanalítico destaca a escuta do inconsciente, opera
na transferência, com as associações do sujeito; escuta os efeitos
do inconsciente, tanto no sujeito, como nos laços que produz, para
a produção do saber inconsciente na transferência. Freud inventou
um procedimento para que a verdade falasse: revelar os processos
inconscientes que produzem os sintomas (realização do desejo),
sustentados por uma fantasia, propondo, portanto, a reconstrução
da fantasia inconsciente. Freud construiu conhecimento a partir dos
impasses da clínica, formulando seu método – como quando cha-
mou os efeitos de amor na relação terapêutica de transferência – e
reformulando toda a sua própria teoria diante de novos impasses. O
método é a escuta e a interpretação do sujeito do desejo, em que o
saber está no sujeito, um saber que ele não sabe que tem e que pro-
duz na relação, que será chamada de transferencial. Nessa medida,
o psicanalista escuta o sofrimento e descobre que não deve eliminá-
lo, mas criar uma nova posição diante do seu sentido. O sintoma é
realização do desejo, o lugar da verdade do sujeito, uma mensagem,
um enigma a ser decifrado; nele está o cerne da subjetividade (Rosa,
2004, p. 340-341).

Indagar sobre sentidos que os sintomas portam, a quem estão endere-


çados, quais os mecanismos de suas formações, se se trata de eliminá-los,
curá-los ou, antes, reconhecê-los como constituídos de verdades que singulari-
zam cada indivíduo, sem deixar de considerar sua dimensão, que ultrapassa o
princípio do prazer e se rege por um além do princípio do prazer, são questões
que foram formuladas por Freud e estão na própria origem da psicanálise.
Questões que, longe de terem sido superadas, chegam aos nossos dias com
atualidade e não somente ocupam as reflexões e indagações dos psicanalis-
tas, bem como constituem campo de disputa que não é sem corte ideológico.

75
Sandra Luiza de Souza Alencar

Considerar os sintomas como portando sentidos, tal como os sonhos, os


atos falhos, os chistes, constitui o solo que a psicanálise constrói. A psicaná-
lise funda um modo próprio de abordar e desvelar o pathos humano, em sua
vertente de paixões e sofrimento e, nesse sentido, ainda carrega seu germe
de “peste”. Assim, o modo de escutar e abordar os sintomas não perdeu seu
lugar de radicalidade e de desafio na prática com as quais os psicanalistas
necessitam enfrentar-se no espaço da clínica, seja pública ou privada, e do
debate acadêmico. Aprender, ainda com Freud, que os sintomas portam sen-
tidos e verdades, que são solução de compromisso, portanto, que estão na
articulação com os laços sociais nos quais os indivíduos se constituem e vivem,
representa uma posição em disputa e que muitas vezes é difícil sustentar.
As manifestações psicopatológicas dos indivíduos incomodam, descon-
certam, quebram a harmonia, “travam a marcha”, acompanharemos Lacan
([1969-1970] 1992) dizer; têm efeito de greve ao ordenamento de funciona-
mento social, mas também fazem sofrer em sua produção como recurso de
existência, de sobrevivência, de negação-afirmação de verdades.
Apropriar-se da dupla dimensão do sintoma e posicionar-se em acordo
com essa apropriação faz enfrentamento com as abordagens hegemônicas no
campo social. A psiquiatria, hegemônica no campo de saberes sobre o pathos,
o observa e aborda segundo sua escala de normatividade; nesse campo, os
sintomas são tratados como algo externo a ser eliminado. Podemos concluir,
com efeito, que não há espaço para a pergunta sobre de que forma o indivíduo
nele está implicado. Trabalhar no sentido de eliminação dos sintomas pode ter
o efeito apenas de manter a marcha.
O caso de Flor não se constituía em caso isolado, mas em um caso em-
blemático. A morte de jovens em circunstâncias violentas assumia proporções
elevadas, constituindo, nos anos referidos acima, a morte por homicídio, na
primeira causa de mortalidade de pessoas entre 15 a 34 anos3.
Esse caso aponta a complexidade de questões que a ação na saúde
pública coloca para os trabalhadores da saúde mental, e como a psicanálise
pode ser um diferencial na compreensão da intervenção para além da inter-
venção clínica estrito senso.
Se apontamos os dados de morte por homicídio, e isso se constitui em
uma questão declaradamente social, o sofrimento psíquico pela perda, com as

3
Segundo dados do relatório do Programa de Aperfeiçoamento de Informações de Mortalidade
(PRO AIM), de 1996 a 2005, a região de São Mateus registrou 2.233 óbitos em decorrência de
homicídios. Destes, 1.709 foram de pessoas na faixa etária entre 15 e 34 anos.
76
76
Psicanálise e o SUS...

questões que interpretamos do impedimento do luto de Flor, não é tão explícita.


O que trazemos aqui, com o suporte teórico da psicanálise, é a política no
sofrimento e de como este, ao ser escutado, pode revelar as determinações
sociais e políticas que o produzem.
Com as questões até aqui levantadas, indagamos: qual a particularidade
de esse atendimento ocorrer no espaço de um serviço público de saúde? O
que caracteriza uma intervenção orientada pelas diretrizes da saúde pública?
Nosso ponto de partida é o de que a clínica na instituição não se des-
cola do acontecer no território, mas, pelo contrário, no singular da clínica é
possível – talvez pudéssemos dizer: necessário – escutar o território, dizer a
dupla face do território: lugar geográfico e psíquico.
Podemos sustentar essa reflexão tomando como base a noção de que só
há sujeito no laço social. Ou seja, não há um sujeito autor de si mesmo. Aliás,
o si mesmo, o que remete à noção de mônada, é noção que a psicanálise não
compartilha, e aponta sua falácia. Contrária a essa perspectiva, a psicanálise
se volta para a história, história que não é linear, remetida ao tempo de vida
do indivíduo, mas que o sobredetermina, embora dela ele se faça sujeito e a
constitua e transforme.
O caso de Flor adquiria significação não apenas por a ele se seguirem
muitos outros casos, mas porque, a partir do atendimento de Flor, o que foi
se colocando foram questões sobre o processo de luto e o campo simbólico
e coletivo que operam para a elaboração do luto.
Nossas reflexões e práticas, orientadas pelos trabalhos de Rosa (2002;
2004), em que a autora destaca a articulação entre a subjetividade e o campo
social e cultural de que partem as mensagens e significantes que atribuem
lugares e posições sociais aos sujeitos, voltaram-se para o campo social de
onde partiam as proibições em que se detinha o luto de Flor. Essas reflexões
marcavam uma orientação de trabalho que dava uma volta, num sentido es-
piralado, a partir do que se apresentava no espaço de escuta daquele serviço
de saúde mental.
A análise política que enfatiza a atribuição e a ocupação de lugares so-
ciais, a partir da qual é possível observar e interpretar o que é produzido pelos
sujeitos como resultado dessa articulação, constitui a base do que nosso grupo
psicanalítico – Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Política (PUC-SP) e Labo-
ratório de Psicanálise e Sociedade (USP) – denomina método clinicopolítico4.

4
A tese que constitui base para as questões abordadas neste artigo, já anteriormente referida, foi
orientada pela Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa, coordenadora desses dois espaços de pesquisa,
estudo e extensão.
77
Sandra Luiza de Souza Alencar

Ao tomar o campo social como produtor de significantes com os quais


se tecem os sintomas enunciados pelos sujeitos em suas queixas do que so-
frem numa operação de alienação aos mecanismos que estão em operação
nessa relação com o Outro, os atendimentos clínicos, individuais ou em grupo,
apontavam a direção da intervenção para o campo social e simbólico. Assim,
ocupar a praça, a rua, o encontro, por meio de reuniões e seminários, com
outros setores (cultura, educação, assistência, movimento popular, conselhos
tutelares e outros) constituíram nossas ações e intervenções.
Se delimitamos o referencial teórico-metodológico psicanalítico como
orientador de nossas reflexões e intervenções, tomando o espaço de um
serviço público de saúde, essas reflexões não desconsideravam as diretrizes
do Sistema único de Saúde, Lei 8080/90, que em suas Disposições Gerais
estabelece:

Art. 3º – A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes,


entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio
ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e
o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da
população expressam a organização social e econômica do País
(Brasil, Lei 8.080/1990).

Tomar o SUS em consideração, como lei que regula e orienta as ações


da saúde pública, implica necessariamente uma perspectiva de saúde que
busca reconhecer os fatores produtores do sofrimento e orientar a ação inte-
grada numa rede que inclua os diversos setores de circulação dos sujeitos, aí
considerada a política como eixo que determina, orienta e articula os setores
e os sujeitos.
Constitui princípio e diretriz do SUS: integralidade da ação, regionaliza-
ção e hierarquização da rede de serviços, participação da comunidade, organi-
zação dos serviços de modo a evitar duplicidade de ações, tal como é possível
acompanhar nos incisos do Capítulo II – Dos Princípios e Diretrizes do SUS:
I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os
níveis de assistência;
II – integralidade de assistência, entendida como um conjunto ar-
ticulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos,
individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis
de complexidade do sistema;
III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua inte-
gridade física e moral;

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78
Psicanálise e o SUS...

IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios


de qualquer espécie;
V – direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;
VI – divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de
saúde e sua utilização pelo usuário;
VII – utilização da epidemiologia para o estabelecimento de priorida-
des, a alocação de recursos e a orientação programática;
VIII – participação da comunidade;
IX – descentralização político-administrativa, com direção única em
cada esfera de governo:
a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;
b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;
X – integração, em nível executivo, das ações de saúde, meio am-
biente e saneamento básico;
XI – conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e
humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municí-
pios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população;
XII – capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de
assistência; e
XIII – organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade
de meios para fins idênticos (Brasil, Lei 8.080/1990).

A partir da demanda de tratamento a um serviço de saúde mental,


evidenciamos questões e problemáticas, forjadas na realidade social vivida
pela população, que ultrapassam uma formação sintomática individual e
isolada, passíveis de serem tomadas fora dos laços sociais. Assim, a ele-
vada demanda motivada por situações de violência indica sua origem na
organização e dinâmica da região. Além disso, a elevadíssima demanda
de atendimento a crianças, feita pelas escolas, sinalizava o envolvimento
de pelo menos dois setores: saúde e educação. Todavia, eram recorrentes
encaminhamentos feitos pelo Conselho Tutelar, o que corrobora a dimensão
coletiva e complexa da situação.
Referenciando-nos nas queixas e demandas, constituímos duas grandes
áreas de intervenção: a das questões ligadas aos problemas da violência e a
das questões relacionadas com a demanda escolar. A título de apresentação
das atividades que foram desenvolvidas, seguiremos uma descrição linear,
pontuando as ações.

79
Sandra Luiza de Souza Alencar

Ctvkewncèçq"fc"tgfg"fg"ucûfg"ogpvcn<"
eqpvtcrqukèçq"ä"htciogpvcèçq

Com essas questões teóricas e da política de saúde delineadas, pas-


samos a relatar as ações desenvolvidas no período de 2003 e 2004, a partir
de um serviço público de saúde:
Articulação intersetorial: tendo como ponto de partida a escuta clínica,
em grupo e individual, as questões que foram se apresentando, dadas sua
recorrência e composição, que apontavam sua articulação com o laço social e
a forma de organização desse laço naquela região, apresentamos as questões
que nos chegavam nos atendimentos na reunião semanal de equipe. A partir
das reflexões nessa reunião, elaboramos como proposta uma reunião para a
qual convidaríamos todos os setores que localizávamos como envolvidos com
os casos de violência ou que sofriam seu impacto: escolas, conselho tutelar,
delegacia de polícia, conselho de segurança da região, fórum da criança e do
adolescente da região, organizações não-governamentais que atuam na área
da violência, etc. Elaboramos uma carta-convite e a enviamos por diversos
meios: e-mail, rede de comunicação interna da coordenadoria de saúde que
respondia pelo serviço e pessoalmente, visitando algumas das instituições,
como foi o caso do Distrito Policial da região, pois avaliávamos a resistência
de participação que esse setor manifestaria e pelo lugar e função que essa
instituição ocupa, sobretudo nos casos de violência.
Primeira reunião intersetorial: compareceram para a primeira reunião
cerca de vinte instituições de caráter público e privado. Explicamos o motivo
pelo qual a propuséramos. E a essa explicação seguiu-se uma sucessão de
relatos, que assumiram um caráter de desabafo, feitos pelas pessoas que
vieram na qualidade de representantes das instituições e movimentos sociais.
Com isso, aquela reunião se constituiu em um espaço para as pessoas nar-
rarem suas vivências e comentarem as dos outros, o que criou um corte na
solidão e homogeneidade cotidianas com as quais viviam aquelas situações
críticas. Como resultado, formou-se um quadro da situação, tendo sido possível
observar a extensão do problema. Esses encontros passaram a ser regulares
e entraram para o calendário do serviço.
Constituição de um fórum: com a regularidade dos encontros, dos quais
participavam entidades e instituições públicas e privadas, e que contou com
apoio da coordenadoria de saúde da região, o grupo se nomeou Fórum Provisó-
rio pela Cultura da Paz e apontou para a construção de um seminário regional.
Como tarefas desenvolvidas pelos participantes do Fórum Provisório,
citamos: relatório das reuniões e seu envio para as instituições participantes
80
80
Psicanálise e o SUS...

e para aquelas que não compareciam ou não vinham regularmente para as


reuniões; elaboração de um manifesto de constituição do Fórum Provisório,
com distribuição em espaços diversos: feiras, atividades culturais e políticas,
etc. Esse manifesto cumpria duplo objetivo: convidar a população para as reu-
niões do Fórum e dar voz para a situação vivida em decorrência da violência
na região; organização de seminários de articulação dos setores, com objeti-
vos de discussão teórica e política da situação e cobrança de envolvimento e
ações do poder público local.
I Seminário Costurando a Rede: ações integradas no combate à violên-
cia, caminhando para a construção de uma cultura de paz: no dia 26 de junho
de 2003 realizamos o I Seminário Costurando a Rede: ações integradas no
combate à violência, caminhando para a construção de uma cultura de paz,
na Subprefeitura de São Mateus5. Participaram desse seminário mais de cem
pessoas, grande parte das quais representando os serviços de diversos setores.
Como tarefa do seminário foram produzidas propostas de formas de
articulação e tratamento ao problema da violência. Uma das propostas foi a
realização de uma caminhada de denúncia e enlaçamento das pessoas que
haviam vivido violência ou perdas em decorrência de violência. Nesse semi-
nário se oficializou o Fórum pela Cultura da Paz, que até então tinha caráter
provisório.
Funcionamento do Fórum: a partir do seminário, as reuniões se deslo-
caram do serviço de saúde para a subprefeitura e seus encontros passaram a
ser mensais. A mudança de lugar representou o reconhecimento e afirmação
do Fórum como um espaço de ação dos diversos setores.
Em seu percurso, o Fórum foi se constituindo em polo aglutinador dos
diversos setores, representando um espaço orientador para os profissionais e
também de demanda, ao qual os setores governamentais e não governamentais
recorriam a fim de apresentar questões e problemas que estavam enfrentando.
Isso levava à construção conjunta de propostas e de ações.
Primeira caminhada pela vida em São Mateus: uma das tarefas do Fórum
foi a organização da Primeira Caminhada pela Vida em São Mateus, realizada
no dia 04 de dezembro de 2003. Foram marcados três pontos de encontros,
de onde as pessoas seguiriam em caminhada até um ponto central. Esses

5
A mesa foi composta por dois psicanalistas, Emilia Estivalet Bróide e Jorge Bróide; pelo coor-
denador do Conselho de Segurança da região; pelo subprefeito de São Mateus Franco Torresi; e
por dois representantes do Fórum, Jefferson Ramos da Silva (professor de uma escola estadual)
e Wilma Lopes (da coordenadoria de saúde de São Mateus).

81
Sandra Luiza de Souza Alencar

três pontos correspondiam aos três distritos que compõem a região. O ponto
de encontro foi uma praça localizada na avenida central da região, Mateo Bei.
Nesse ponto realizamos um ato público seguido de um ato ecumênico.
Uma professora que promovera um concurso de redação organizou um
painel com os textos produzidos pelos alunos.
No final do ato ecumênico, flores que haviam sido trazidas foram “plan-
tadas” na praça.
Formação dos membros Fórum: Em 2004, as atividades do Fórum inclu-
íram leituras de textos, projeção de documentários tendo como tema central a
violência nas escolas e sua articulação com a região e a sociedade em geral;
Descentralização: passamos a realizar reuniões em serviços que
solicitavam algum apoio para organizar e encaminhar situações críticas em
consequência de violências.
Rede de proteção: a partir das reuniões do Fórum foram se constituindo
alguns grupos de trabalho que se juntavam em torno de um problema concre-
to de uma escola ou que estava sendo enfrentado pelo conselho tutelar, por
exemplo. Tomávamos o problema concreto e reuníamos todos os envolvidos:
escolas, serviço social e de psicologia da Vara da Infância de cobertura da
região. Ou diretora de uma escola, conselho tutelar, psicóloga da Unidade
Básica de Saúde.
Esses espaços articulavam os setores e suas ações para avançar e
amadurecer as experiências intersetoriais.
Grupo de educadores na Unidade Básica de Saúde: a partir das deman-
das de atendimento que chegavam das escolas, convidamos representantes
dessas escolas para uma reunião. Compareceram vários educadores que
portavam a expectativa de conseguirem atendimento para as crianças, visto
que era uma queixa da região a carência de profissionais de saúde mental.
Dada a expectativa dos educadores, a primeira reunião iniciou em um
contexto de impasse. Mas, a partir da fala de um educador, coordenador pe-
dagógico da escola, em que relata a morte de um ex-aluno da escola, assassi-
nado com 14 anos, produz-se um corte na sequência de falas, e a negativa de
atendimento foi sobreposta pela proposta de continuidade daquele encontro.
Os encontros com os educadores se seguiram em 2003 e 2004. Esse
trabalho teve desdobramentos, tais como um espaço de vídeo na unidade de
saúde, onde se reuniam estudantes, pais, educadores e os trabalhadores da
equipe de saúde mental.
Alguns educadores também estavam na fundação e constituição do
Fórum, visto que as atividades também se davam paralelamente.
Também, como desdobramento dos encontros mensais com educado-
82
82
Psicanálise e o SUS...

res, a partir da demanda dos pais e deles (educadores) pelo atendimento das
crianças, constituímos grupos que tiveram como coordenadores as psicólogas
do serviço de saúde e os educadores. O objetivo desses grupos, para os quais
predeterminamos oito encontros, era o de conhecer e dialogar com as queixas
e demandas dos pais e educadores. Inferimos que a experiência teve efeitos
de deslocamentos no posicionamento subjetivo na relação entre educadores
e familiares dos alunos. Como elemento que concorria para produzir deslo-
camento, apontamos o espaço do encontro, uma Unidade Básica de Saúde.
Nesse espaço, a palavra e a escuta estavam mediadas por outras referências
que as cristalizadas relações de hierarquia e culpabilizações por fracassos
escolares das crianças e adolescentes. Essa última questão extrapola nossa
condição de abordagem no espaço de trabalho deste texto.
II Seminário Costurando a Rede: realizado no dia 29 de junho de 2004,
na subprefeitura de São Mateus, no qual foi deliberada a realização da Segunda
Caminhada pela Vida em São Mateus.
Finalização das atividades: o segundo semestre daquele ano foi marcado
por várias questões de dimensões mais amplas. Uma delas foram as eleições
para a prefeitura da cidade de São Paulo, um processo cujas proporções
também envolve o funcionamento das instituições. Esse aspecto se destaca
entre os elementos que inviabilizaram a realização da Segunda Caminhada
pela Vida e levaram ao encerramento das atividades tal como vinham sendo
desenvolvidas.
O governo do Partido dos Trabalhadores, representado por Marta Su-
plicy, perdeu as eleições, e o prefeito que assumiu, José Serra, do PSDB, em
cinco meses de governo, apresentou um projeto de privatização das unidades
públicas de saúde, que passaram a ser gerenciadas por entidades terceirizadas,
com autonomia de gestão. Isso levou ao aprofundamento da fragmentação
das ações de saúde.
Resistências políticas e subversão dos sujeitos: A região na qual foram
desenvolvidas as atividades aqui descritas é uma região com larga história
de luta e participação de seus moradores em ações que concorreram para a
construção e criação de melhores condições de vida no bairro.
As práticas e ações desenvolvidas, conforme relatadas neste espaço
do texto, relacionam-se com a história da região.

Eqpenwuçq

Na tentativa de formular uma forma de intervenção do psicanalista em


um serviço público de saúde, reafirmamos esse lugar como o de escuta. Nesse

83
Sandra Luiza de Souza Alencar

espaço, a experiência clínica se constitui em direção da ação, a qual se volta


para o campo social em que os sujeitos se singularizam em suas articulações
no laço social. Os atendimentos clínicos não são sem relação com as outras
ações que se desencadeiam e se formulam a partir do que se apresenta como
queixa ou demanda em um serviço público de saúde mental. Nessa direção,
o que se escuta na clínica diz, não de sintomas individuais, mas de posições
singulares que se articulam a dimensões familiares, culturais, sociais e políti-
cas. Nesse ponto, o trabalho do psicanalista é o de sustentar a escuta do que
muitas vezes aparece como real demais e produz impotência, desânimo e,
como resultado, conformismos e silêncios, que muitas vezes são interpretados
como ineficiências e incapacidades dos sujeitos.
Em O jovem e o adolescente na cena social: a relação de identificação,
ato e inserção no grupo social, Rosa (2010) marca uma direção de intervenção
que deve se dar com base no reconhecimento do sofrimento psíquico, no que
ele se constitui de elementos da exploração econômico-social. Nesse sentido,
ela destaca o sofrimento como efeito da desigualdade e aposta numa prática
que possa ser emancipadora das amarras de servidão subjetiva e social:

O campo social é um campo de forças e interesses antagônico,


complexo e conflituoso [...] No entanto, ao se lidar com esse con-
texto, observa-se a fragmentação e a oposição entre discursos que
se rivalizam pelo poder sobre a criança, o adolescente, a família;
promovem-se, por vezes, relações inconscientes ou segmentam-
se as práticas de intervenção social, seja no campo da saúde, da
educação ou no campo jurídico. O conhecimento sobre os indivíduos
ignora o contexto de vida do jovem e impõe patologias, retirando do
sujeito a efetividade de seu discurso e de sua denúncia. [...] Cuidar do
sofrimento psíquico deslocado dos impactos do sofrimento social, da
exploração social, cria uma série de distorções que possibilitam que
políticas gestadas com objetivos progressistas sejam transformadas
em práticas opressivas. E os discursos da saúde podem associar-
-se aos da justiça para calar o pathos, práticas e discursos sociais
tornam-se violentos [...] (Rosa, 2010, p. 12).

Ocupando o lugar de mediador que atua para a circulação da palavra,


nas reuniões e outras atividades, a posição que ocupávamos era a de escuta
e de acompanhamento das formulações das propostas e possibilidades dos
setores. Com isso, teceu-se um conjunto de práticas entrelaçadas com os
atendimentos psicológicos individuais e grupais, criando a conexão entre
atendimento individual e práticas intersetoriais.
84
84
Psicanálise e o SUS...

O que denominamos de método psicanalítico clinicopolítico é uma posi-


ção do psicanalista articulado com as coordenadas de seu tempo, aí implicado,
e não como espectador dos laços sociais.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, Sandra Luzia de Souza. A experiência do luto em situação de violência: entre


duas mortes. 2011. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Faculdade de Psicologia,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2011.
ALLOUCH, Jean. Erótica do luto no tempo da morte seca. Rio de Janeiro: Companhia
de Freud, 2004.
BRASIL. Lei 8080/90. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recu-
peração da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e
dá outras providências. 19 de Setembro de 1990. Disponível em: http://portal.saude.
gov.br/portal/arqui vos/pdf/lei8080.pdf. Acesso em: 26 jan. 2013.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
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Psicanálise, São Paulo, n. 2, p. 42-47, 2002.
______. A pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos: metodologia e
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______. O jovem e o adolescente na cena social: a relação identificação, ato e inserção
no grupo social. In: Políticas públicas em debate. Seminário Juventudes: presente e
devir, Fundap, 2010.
SÓFOCLES. Antígona [(441 a.C.]. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

Recebido em 04/10/2012
Aceito em 08/11/2012
Revisado por Rosana de Souza Coelho

85
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 86-100, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS QHKEKPCU"GO"UCðFG"OGPVCN<"
equvwtcu"gpvtg"q"tgcn."
ukodônkeq"g"kocikpâtkq3

Andréa M. C. Guerra2

Tguwoq< O texto discute as oficinas realizadas em saúde mental, partindo de três


aportes: a ideia de profanação, a de interdisciplinaridade em ato e a de desinser-
ção. Discute as oficinas e seu potencial de mobilização subjetiva, política e social,
enquanto instrumento de intervenção clínica. Conclui por um ponto minimal: o
pacto em torno de uma política dos corpos, dos objetos e das palavras, orientada
por uma ética que suporta o mal-estar de todos, a desinserção de cada um e,
sobretudo, a falta central na estrutura do saber que essa ética política engendra.
Rcncxtcu/ejcxg< psicose, oficinas, reforma psiquiátrica brasileira.

YQTMUJQRU"KP"OGPVCN"JGCNVJ<"
ugcou"dgvyggp"tgcn."u{odqnke"cpf"kocikpct{
Cduvtcev< This paper discusses the workshops in mental health from three con-
tributions: the idea of profanation, of interdisciplinarity in act and of detachment.
Discusses the workshops and their potential of subjective, political and social
mobilization, as a tool for clinical intervention. Concludes with a minimal point: the
pact around a policy of bodies, objects and words, guided by an ethic that supports
the malaise of all, the detachment of each one and, above all, the central lack in
the structure of knowledge that this ethics policy engenders.
Mg{yqtfu< psychosis, workshops, Brazilian psychiatric reform.

1
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais, em
Porto Alegre, setembro de 2011.
2
Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
e Rennes II-França; Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal
de Minas Gerais – UFMG (Belo Horizonte). E-mail: aguerra@uai.com.br
86
86
Oficinas em saúde mental...

A vinda a Porto Alegre é sempre motivo de grande entusiasmo de minha parte.


Aqui encontro colegas psicanalistas que presentificam a psicanálise no
mundo e não se omitem da tarefa política que nos compete, muito pelo con-
trário. Não à toa, no folder, o argumento dessa Jornada sobre Psicanálise e
Intervenções Sociais, nos convida ao trabalho nos seguintes termos:

Nas instituições e espaços inter-institucionais, inserimo-nos em um


processo de construção coletiva, nos quais encontramos formações
discursivas diversas e em tensionamento constante. Torna-se ne-
cessário encontrar um ponto mínimo, algo de um projeto comum
que reúna os diferentes saberes. Buscamos inscrever nas práticas
sociais as questões que a clínica do sujeito coloca à psicanálise.
[...] Que significantes encontramos nestes contextos que justificam
a presença da escuta e da intervenção da psicanálise? Quais as
incidências subjetivas, sociais e políticas do ato analítico?.

Ponto mínimo ou projeto comum entre os diferentes saberes. É sobre


esse ponto mínimo que a jornada nos propõe pensar. A mim, chegou o argu-
mento para pensá-lo a partir do tema das oficinas em saúde mental.

1.
Parto, portanto, de um pressuposto: o de que temos a liberdade de
conferir novos usos aos objetos, profaná-los ou desativar os dispositivos de
poder que os indisponibilizaram, devolvendo ao uso comum os espaços con-
fiscados (Agamben, 2007). Profanar é restituir à propriedade e ao uso comum
dos homens os objetos sacralizados. E a clínica com as psicoses nos ensina
que os objetos se dispõem aos homens para seu uso, e não o contrário. As-
sim, um carrinho de compras transforma-se em uma parede, numa moradia
de rua improvisada por um psicótico, por exemplo, ou em um apoio para a
bicicleta sem rodas em outra situação. Um carrinho de compras pode servir
a diferentes finalidades, assim como uma palavra. As palavras e as coisas
podem ser refuncionalizadas.
A atitude profanadora na psicose nos ensina que os objetos materiais
estão referidos a outra lógica no mundo. Eles não se inscrevem apenas numa
série produtiva e repetitiva que os agrega segundo a dinâmica do sistema
capitalista. Os valores atribuídos aos objetos, inclusive, modificam-se, se eles
alteram sua inscrição no circuito do consumo. Uma cadeira desenhada por
famoso designer, que perde sua trança de assento, torna-se mais útil como
varal de roupas. O ato criador (científico e/ou social) está ligado à realização

87
Andréia M. C. Guerra

simples de uma dinâmica combinatória complexa. Dessa maneira, objetos


lançados pelo mercado podem nos servir para uso não previsto pelo mercado
(Garcia, 2011).

2.
Avanço com a proposta de uma interdisciplinaridade em ato na prática
feita por vários, ou seja, que se realiza nas decisões e intervenções cotidianas,
suportando o peso da experiência de limite de cada saber, no arranjo que torna
possível o desejo nas mais diferentes invenções subjetivas. Ela se realiza em
ato, portanto, pois presentifica em cada espaço institucional a impossibilidade
de qualquer saber apreender a realidade toda da experiência. Nesse sentido,
abrimo-nos ao encontro com o imponderável e recolhemos, efeito desse en-
contro, o sujeito que se busca ali produzir, ou seja, a maneira como a causa
do desejo toma forma para cada um. Entendamos melhor a proposta.
A interdisciplinaridade, historicamente, está associada à complexidade
do fenômeno humano e ao desejo de absorvê-lo todo, sabê-lo todo. Quando
a psicanálise se faz parceira de outros saberes, ela parte da certeza dessa
impossível apreensão toda. Lacan, na década de 50, pensa a estrutura da
linguagem, ou o inconsciente estruturado como linguagem, lidando exata-
mente com a permutação dos elementos na estrutura a partir de uma falta
central, que permite o acionamento da língua. O Nome-do-Pai é o responsável
pela inscrição desse ponto zero de significação, espaço vazio que permite à
linguagem e à cultura se ordenarem (Lacan, [1957] 1998). Como no jogo do
Resta Um, é necessário retirar uma peça para que o jogo possa funcionar
em suas jogadas possíveis, que, pouco a pouco, vão tornando outros lances
impossíveis de serem realizados, firmando assim um campo de possibilidades
e outro de impossibilidades.
Na medida em que avança em seu ensino, Lacan – assim como acon-
teceu com Freud – vai destacando esse campo de impossibilidade, não como
elemento que faz parar, mas antes como elemento que agencia novos cami-
nhos. Ele chama essa dimensão da realidade de real, dimensão que comporta,
de certa maneira, o dado bruto (Miller, 2002). Apercebe-se, então, de que
todo o aparato de saber que construímos busca dar conta dessa verdade real
de nosso ser, que é, por estrutura, inapreensível (Lacan, [1971-1972] 2011).
Assim, aproximarmo-nos da estrutura da verdade exige, sempre, um quantum
de ficção 666a ficção que inventamos como tela para ler o mundo.
O saber das disciplinas, ditas científicas, não foge a essa lógica. Os
conceitos, tanto quanto as palavras, são aparatos que criamos e com os quais
pactuamos, utilizamo-los para ler a realidade factual e domesticar a comichão
88
88
Oficinas em saúde mental...

(pulsão) que anima cada um, tornando a convivência entre os homens possí-
vel. É porque há um ponto que não apreendemos que produzimos um saber
sempre parcial sobre ele. Nesse ponto de seu ensino, Lacan começa a pensar
em furos, ali onde pensava em falta. Quando se fala de falta, há a referência
a lugares. A falta implica uma ausência que se inscreve num lugar. Pode-se
faltar, mas há sempre termos que venham ali se substituir. Daí a falta ser coe-
rente com a ideia de combinatória e de permutação, de linearidade, de cadeia
de significantes, de metáfora. Passando para essa outra topologia, a do furo,
verificamos que, ao contrário, ela comporta o desaparecimento da ordem dos
lugares, da ordem da combinatória, evidencia o suplemento inventado pelo
sujeito para compor a realidade, sempre psíquica.
Lacan concebia a realidade como o resultado da amarração entre três
registros: o real, ou aquilo que é da ordem do dado, que tem um certo valor
bruto; o imaginário, ou aquilo que é representado enquanto imagem; e o sim-
bólico, ou o que é estruturado e articulado como linguagem (Miller, 2002). O
furo seria o efeito da ação de um registro sobre o outro. Como não funcionam
dentro da mesma lógica, ao atravessarem um sobre o outro, o efeito seria um
furo central em cada um dos registros.

Na medida em que essa falta se formaliza e ganha o nome de objeto


a, ela ganha dupla função, de causa e de resto, excedente, destacando a im-
possibilidade da complementaridade ou, em outros termos, a inexistência da
relação sexual. A mulher encarna, em seu gozo suplementar, essa dimensão.

Por ser não-toda, ela [mulher] tem, em relação ao que designa de


gozo, a função fálica, um gozo suplementar. [...] eu disse suplementar.
Se tivesse dito complementar, aonde é que estaríamos! Recairíamos
no todo (Lacan, [1972-1973] 1982, p. 99).

A não relação sexual implica, então, um furo. O todo é exatamente


a figura que o círculo, na geometria clássica, representa. A psicanálise, por
seu turno, opera com outras figuras geométricas, que suplantam a geometria
clássica, operando com a topologia de superfícies e dos nós para pensar o

89
Andréia M. C. Guerra

sujeito desejante. Nessas figuras, a torção, o reviramento ou o furo implicam


outra forma de abordar o falasser e sua presença no mundo.
Assim, seja no toro, seja no nó borromeano, o valor do furo reinscreve a
falta na estrutura. O objeto a ganha, então, seu lugar no centro do nó borrome-
ano, cernido (ou currado) pelo atravessamento de um registro sobre o outro.
Essa passagem desloca a falta para o furo que, transestrutural, implica o efeito
do atravessamento de um registro no outro. Como no nó borromeano, o furo
é posição própria ao resto, ao que resta da forma como a amarração do nó
pode se escrever. “É porquanto o sinthoma faz um falso-furo com o simbólico
que há uma práxis qualquer” (Lacan, [1975-1976] 2007, p. 114).
Diante dessa perspectiva lacaniana, entendemos a interdisciplinaridade
na prática feita por vários como a incidência de uma disciplina sobre a outra,
a partir do furo de qualquer saber, sustentado pela não relação sexual. Há
uma impossibilidade de qualquer saber em apreender a realidade toda. Assim,
apostamos não na complementação entre os saberes, mas nas intervenções
suplementares que se estabelecem de uns sobre os outros, transformando-
os, a partir de uma ética que suporta esse furo central. Seria uma espécie
de transdisciplinaridade indisciplinada, o que realizamos na prática feita por
vários em saúde mental.
Esse efeito de furo, por seu turno, não impede que uma práxis se estabe-
leça entre várias disciplinas. Assim, psicanálise, saúde pública, enfermagem,
medicina, terapia ocupacional, assistência social, não se digladiam em campo.
Antes constatam, com seu saber, os limites de sua própria disciplina (e das
demais) em responder pelo que é o essencialmente humano. Daí poderem
inventar saídas, eventualmente pouco ortodoxas ou tradicionais, para os ca-
sos atendidos. Com suplementos mais que com complementos, contamos,
nessa operação, com o fora do corpo que o significante falo permite organizar
no fundamento do laço social e com o fora da linguagem, que o real veicula
como substrato sobre o qual a linguagem organizará um campo possível de
convivência entre os homens.
Na clínica com as psicoses, aprendemos a fazer assim. Dona Aparecida,
cozinheira de nosso CAPS3 em Juiz de Fora, onde iniciei minha prática em
saúde mental, exemplifica essa interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade
em ato. Gilson, que há 20 anos havia esfaqueado a noiva, é hoje um senhor

3
Centro de Atenção Psico-social.
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90
Oficinas em saúde mental...

magrinho, fraquinho e muito doido. O CAPS, na figura de seus diferentes


saberes: psiquiatria, psicanálise, enfermagem, ainda lia Gilson como o as-
sassino, ao que ele respondia em ato, batendo nas estagiárias, ameaçando
funcionários, brigando com usuários. Até certo dia em que entra enlouquecido
na cozinha e pega uma faca, dizendo que “vai matar, vai matar”. Os saberes,
com seu ponto de impossibilidade, se postam lado a lado e de pé, tensos, na
soleira da porta da cozinha, enquanto Dona Aparecida servia o almoço, e os
demais usuários almoçavam tranquilamente na sala ao lado. Cada saber bus-
cava uma solução em seu campo quando Dona Aparecida atravessou todos
eles e os atou, profanando e realizando em ato o corte que resolveu a tensa
situação. “Gilson, você quer almoçar?” – “Hein?” – “Você quer almoçar?” –
“Claro!” – “Então me dá a faca pra eu cortar seu bife, anda”. – “Tá aqui, Dona
Aparecida, me desculpe...”.

3.
Retomo, como terceiro aspecto, a desinserção. O que chamamos de
desinserção não equivale à exclusão (social), nem à desadaptação (moral).
Há, no nascimento do sujeito enquanto ser de linguagem, uma desinserção
originária, estrutural. Primeiro, temos corpo e nome disjuntos; depois, dupla
perda, do ser e do sentido, como condição para nomeação e assunção do
sujeito ao campo do Outro ou da linguagem. Essa primeira identificação, que
comporta a inscrição do significante no sujeito, é o que há de mais apagado
do primeiro encontro com o objeto. Ela denuncia uma perda originária, ponto a
partir do qual inconsciente e desejo se estruturam. É sobre o apagamento desse
traço que, por sua vez, o sujeito poderá falar de si. “O sujeito está, se permitem
dizê-lo, em uma exclusão interna a seu objeto” (Lacan, [1965] 1998, p. 825).
A “exclusão” ou desinserção, assim, em psicanálise, é lógica e necessá-
ria para que, do vazio que dela se instala, o sintoma possa advir como amar-
ração possível do sujeito ao campo do Outro. O sintoma, nessa perspectiva,
é menos a proliferação do mal-estar que seu tratamento possível no laço
civilizatório. Ele é a consequência lógica e estrutural da constituição do sujeito,
e não um mal a ser extirpado. Se o sujeito “encontra sua morada num ponto
situado no Outro” (Lacan, [1962-1963]s/d, p. 58), fato é que o faz às custas
do sintoma, do que perde de gozo e de sentido ao se inscrever na linguagem.
E essa perda nunca se recupera, ela é o preço da entrada na civilização. É o
real em jogo no processo civilizatório.
Sabemos que o desejo do mestre, da civilização, é o de que tudo funcione
por homogeneização, sem falhas. Por outro lado, sabemos também, desde o
texto sobre o mal-estar, de Freud ([1929] 1976), que a psicanálise sabe que

91
Andréia M. C. Guerra

a falha é irredutível, que o gozo não se erradica e que a singularidade não


faz norma. A contribuição da psicanálise à coisa pública é exatamente a de
mostrar que o gozo não se estanca, mas pode se tornar possível e domesti-
cado via sintoma. Encontrarmos formas de suportar o que faz exceção seria,
hoje, uma das maneiras de contribuir com o pacto civilizatório. Resgatar a
dimensão subjetiva presente nas singulares modalidades de desinserção e
as vias que permitem, a partir do sintoma de cada um, retomar sua inscrição
na trama social, seria sua pragmática (Miller, 2003). Nesse sentido, contra a
ideia de precariedades de diferentes ordens por parte dos sujeitos em lidar
com o mal-estar na civilização, a psicanálise opera de forma que os sujeitos
aprendam, no seu estilo, a saber-fazer com isso (Guerra; Generoso, 2012).
Jacques-Alain Miller ([2004-2005] s/d), trabalhando sobre o final do
ensino de Lacan, introduz o sintoma como real no vínculo social, permitindo
tratar a desinserção como um dos nomes do real de nossa época. Nesse
sentido, quanto mais faça obstáculo à existência subjetiva e ao desejo, mais
insuportável será um sintoma – motivo pelo qual ele se torna um elemento
central e operatório no trato com a desinserção.
Sob a ótica da psicanálise, portanto, o fora-da-norma não se apresenta
como “desadaptação” ou “desvio”. Ao contrário, é acolhido, e ganha seu valor
central na forma de resistência, invenção subjetiva, singularíssima. Se não
há satisfação plena e se não há norma universal, resta a cada um inventar
uma solução particular, que se apoie sobre seu sintoma. A solução de cada
um pode ser mais ou menos típica, mais ou menos apoiada sobre a tradição
e as regras comuns. Ou pode, ao contrário, desejar realçar a ruptura ou uma
certa clandestinidade (Laurent, 2006).
Assim, a psicanálise não pode determinar sua direção e seu fim em
termos de adaptação da singularidade às normas. Ela aborda, ao contrário,
a impotência do sujeito em alcançar a satisfação plena, o que se denomina
castração. E, em seu percurso, busca conseguir que cada sujeito encontre
certo acordo de convivência consigo mesmo e com a civilização. No um-a-um,
podem-se abrir novas vias que permitam aos sujeitos extrair o necessário saber-
fazer com seu sintoma para ultrapassar os obstáculos e as consequências
subjetivas da desinserção.
Assim, contando com a dimensão do inconsciente, a psicanálise rein-
terpreta a experiência da loucura fora do eixo razão-desrazão. Em sua ótica,
a desinserção se coloca para todos. A psicose, termo técnico que designa a
loucura, é efeito de um posicionamento de rejeição radical do sujeito diante da
linguagem, diante da impossível síntese, ou interseção, entre sujeito e Outro.
Nesse sentido, leva ao extremo a experiência da desinserção, fazendo-se
paradigma de seus modos de solução. O psicótico é o sujeito, por excelência,
92
92
Oficinas em saúde mental...

que aprendeu a lidar, a saber fazer com seu sintoma, seja através do delírio, da
arte, da escrita ou de outro recurso. Ele nos mostra o uso possível do sintoma
na radicalidade da vivência do desamparo em relação ao Outro.
O tratamento construído pelo psicótico para trabalhar essa disjunção
com o corpo e com o Outro é a direção seguida para lidar com sua desinserção
originária. Com isso, seu estilo ganha um valor central na clínica. Além disso,
a singularidade de sua história e da lógica que constrói em decorrência dessa
posição face à linguagem demarcam a estrutura de sua posição subjetiva e
de seu pacto com a civilização. Não há o que adaptar ou incluir, mas antes
o que suportar desse embaraço da experiência da loucura com a civilização,
estabelecida a cada caso.
Para ilustrar a desinserção, trago Maria das Flores, usuária de um serviço
de Santo André (SP). Com ela, aprendemos que uma casa pode ser habitada
de maneiras muito diferentes daquelas dispostas no espaço arquitetônico tra-
dicional das moradias com paredes, portas, janelas e seus cômodos. Quando
hipotetizamos que apropriar-se de uma casa perfaz uma ação sociossimbólica
na qualidade de reparação ou invenção do ponto de ruptura do sujeito com o
Outro ou com o corpo, fazemo-lo em função de situações inusitadas como a
que ela nos fez conhecer.
Maria vive na cidade de Santo André-SP e, ao apresentar seu espaço de
moradia, visita conosco nada menos que dez referências: barracões na estação
da cidade, três casas de amigos e uma de familiar (irmã), quatro bares, um
hospital, além de ruelas das duas favelas contíguas por onde circula, sem contar
a farmácia na qual se maquia. Ela dorme a cada dia em um desses espaços,
havendo a preferência pelas casas nas favelas – salvo a da irmã, com quem
não conversa mais. Já dormiu muitas vezes na rua com mendigos ou noias,
correndo risco de vida e presenciando tiroteios. Nos bares, algumas vezes
ajuda com a limpeza em troca de abrigo ou comida, mas nunca se prostituiu,
como a convidaram a fazer alguns dos donos desses bares.
Além disso, ela diz realizar o roteiro de visita às suas “moradias” todos os
dias. E, ao se referir a uma internação hospitalar por conta de uma pneumonia,
relata que ali se “hospedou”: “Estava hospedada por alguns dias. Precisava
me tratar de uma pneumonia e fiquei hospedada. Fiquei amiga de todo mundo,
me trataram muito bem”.
Quanto à relação com a família, ela não fala nem com um irmão, nem
com uma irmã, mas ainda se relaciona com a mãe. Entretanto, mesmo com
essa, não estabelece diálogos ou um laço de afeto, pois, segundo ela, ela tem
problemas, não fala direito. Ninguém consegue conversar bem com ela. A mãe
sempre foi assim. Do pai, não tem notícias: eu não tenho pai. Não sou irmã de
sangue das minhas irmãs. Meu pai não ficou com a minha mãe. Eu o vi uma
93
Andréia M. C. Guerra

vez, mas era criança e, por isso, nem me lembro. De fato, M. é mais branca
que a mãe e as irmãs, com quem não se parece muito. Foi casada e teve um
filho, tendo perdido sua guarda para o pai do menino. A cada relacionamento
posterior, perdia um vínculo com as coisas do mundo, tendo seu apartamento
sido ocupado pelo último namorado, com quem permanece até hoje.
Esse laço aparentemente bambo, solto, frágil, parece sinalizar para
uma resposta possível, construída por Maria, em sua posição na relação com
o Outro. O Outro a espolia, a rouba, não a deseja, perde a paciência com ela.
Ela atrapalha. Como resposta, nos parece, Maria não se compromete com
ninguém, não se fixa, não pede nada, apenas aceita o que lhe dão, pois não
quer ter que dar nada em troca. Sua resposta é a errância em relação ao Outro,
com esparsos pontos de fixação. Na falta de um espaço simbólico no campo
do Outro, no qual pudesse se alojar, Maria responde com sua falta de lugar,
sua dispersão. A cada endereço, um ponto.
Poderíamos, diante dos modelos de moradia que conhecemos, dizer que
ela não consegue habitar. Se, porém, observamo-la mais de perto, verificamos
que ela forja, a sua maneira, uma proteção ao olhar do Outro, uma espécie
de intimidade bem particular. Revejamos sua estratégia de ocupação. A cada
casa, das três por onde circula, ela deixa parte das, mas nunca todas, suas
roupas. Não as recolhe. Dorme, no improviso, sem avisar a ninguém onde se
encontra. Se lhe fecham a porta, como aconteceu com uma irmã e uma das
donas dessas três casas, ela se vira. Daí em diante, porém, essas pessoas
deixam o campo das confiáveis e passam para o outro lado, das espoliadoras.
Não é mais sua família de coração, aquela eleita e amada por ela. O saber
fazer com a habitação que Maria inventa orienta-se pelas pessoas e espaços
que elege. E, a partir da relação que estabelece com elas, fixa seus pontos de
moradia através das roupas e outros pertences que deixa ali sob os cuidados
do outro, resguardados. Parece-nos que, a partir de seus desacertos pela via
da normalidade moral, Maria inventa um jeito muito próprio de habitar seus
espaços. Até então, ela tem criado um espaço de intimidade resguardada do
Outro, espaço de “exclusão interna”, tornando-se hóspede do outro. E tem se
virado muito bem com ele a seu modo...

4.
E discuto finalmente as oficinas e seu potencial de mobilização subjetiva,
política e social, enquanto instrumento de intervenção clínica, produzindo seus
efeitos diretamente recolhidos pelos oficineiros e técnicos da saúde mental.
Nesse quarto e último aspecto, retomo a discussão com a qual iniciei a
abordagem do tema, ao descobrir certa “densidade simbólica diferenciada”
no trabalho das oficinas. E avanço tentando pensar os diferentes registros
94
94
Oficinas em saúde mental...

da realidade psíquica: real, simbólico e imaginário, nessa costura em que a


desinserção se apresenta como elemento operatório e a interdisciplinaridade
em ato, na prática feita por vários, o solo fértil para um trabalho que suporta a
singularidade do cada um no contexto do “para todos” das políticas públi-cas.
Na época de minha prática e pesquisa sobre as oficinas, parti das
seguintes questões que, acredito, ainda animam o trabalho de oficineiros em
saúde mental:
1) Como podíamos articular a demanda “oficial” do serviço público por
ocupação através das oficinas com a demanda pessoal que nem sempre existe
6de cada paciente por atividades?
2) Como recolher no estilo e no texto do sujeito elementos para pensar
sua inserção em uma oficina?
3) Vimos, em particular no caso do psicótico, que sua relação com o
trabalho, com a produção e com a própria sociabilidade, nem sempre encontra
respaldo no universo simbólico que rege o funcionamento das normas sociais.
Somos todos desinseridos. Por que, então, tentar inseri-lo nesse campo norma-
tivo, seja pela via do trabalho, da atividade, da arte ou da reabilitação social?
4) Como inserir e suportar a diferença e a singularidade no campo social?
5) Em que as oficinas nos serviços substitutivos difeririam das antigas
experiências artísticas e das terapêuticas ocupacionais que há tempos habi-
tavam os hospícios?
6) E mais, o que se entende por trabalho de uma oficina? O que faz
uma oficina funcionar para alguns de seus participantes?
7) Como compatibilizar a especificidade da inscrição do louco no simbóli-
co (ou seja, o fato de se inscrever na cultura sem partilhar de sua ordem formal,
comungada pelos demais) com a demanda assistencial pela normatização de
seu comportamento, muitas vezes desvio do uso da atividade?
8) Entre uma intencionalidade sociopolítica e outra clínica, onde situar
as oficinas?
A estrutura dessa relação, me parece, radica numa topologia marcada
pela torção, menos que pela intersecção, exclusão ou incompatibilidade.
Pois bem, nosso achado se resumiu em uma expressão, recolhida de uma
oficineira: “aqui encontramos uma certa ‘densidade simbólica diferenciada’”.
Do que ela estaria falando? Partamos da lógica que articula a presença da
psicose em relação à linguagem. Mesmo inserido na cultura, na linguagem e
no cotidiano, o psicótico não se encontra submetido às mesmas normas de
funcionamento da linguagem que a maioria de nós, neuróticos, por conta de
sua constituição. Ao contrário, caracteriza-se justamente por não se inscrever
nessa norma simbólica, contando com aqueles recursos que a normatizam e

95
Andréia M. C. Guerra

que permitem a equivalência e a inscrição num registro sexual, estabelecen-


do um ponto comum para o circuito de trocas sociossimbólicas. O psicótico
constrói uma via particular para lidar com a linguagem e a cultura, na qual a
dialética simbólica é substituída pela literalidade das coisas (Freud, [1915] 1976;
Lacan, [1957-1958] 1998), num trabalho incessante de tentar pôr ordem ao
caos interno que nele se instala. O trabalho aí seria uma “maneira de operar
conversões; maneira que civiliza o gozo fazendo-o suportável” (Soler, 1990,
p. 16). Estamos falando do excesso do próprio psicótico, que não cessa de
produzir psiquicamente, na tentativa de fazer uma inscrição no Outro da cultura,
extraindo dele o seu lugar no circuito simbólico, amparado pelo imaginário,
face ao tratamento possível do real.
As oficinas são construídas a partir do chamado à participação e à pro-
dução na cultura, abrindo para o portador de sofrimento mental a possibilidade
de reinscrever-se nas relações pessoais, de circulação, de trocas, de trabalho,
enfim, do cotidiano. Possuem um viés clínico, um viés sociabilizante e um viés
político, ao mesmo tempo.
Seu operador central seria uma certa densidade simbólica diferenciada,
entendida enquanto densidade que particulariza e diferencia o uso da atividade
nas oficinas das demais intervenções, coletivas ou não, dos serviços abertos,
qual seja, há uma materialidade do produto ao final. Esse objeto-produto possui
ao menos quatro características que o especificam simbolicamente:
• 1. está referido ao objeto perdido que funda a humanidade do sujeito;
• 2. possui uma materialidade concreta;
• 3. é endereçado ao Outro social, sobre um fundo de linguagem;
• 4. apresenta-se no circuito de trocas com valor social, econômico e
simbólico, ao mesmo tempo.
Sua ética, portanto, seria regida pela tensão entre clínica e política,
entre objeto e produto. A face do objeto, desde sempre perdido, objeto a, no
aparelho psíquico, seria o interior-exterior (ex-timo) em relação a sua outra face,
concernente ao equivalente do produto buscado no circuito das trocas sociais.
Assim, enquanto, ao falar, o neurótico produz mais de gozo ou objeto a,
objeto-resto; ao criar coisas concretas, talvez o psicótico estivesse extraindo
do ventre do Outro objetos reais, que, permitindo-lhe produzir um resto nessa
operação – um objeto inédito – talvez lhe conferisse uma densidade simbólica
sobre sua corporalidade real, fixando-o numa imagem. Com essa operação,
desloca ou separa o psicótico da posição de objeto do gozo do Outro, ao criar
um objeto exnihilo, endereçado ao social, via oficineiro ou qualquer outra
pessoa ou instituição. Em outras palavras, ao extrair da própria realidade um
produto concreto inédito, o psicótico, de um lado produziria um esvaziamento
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96
Oficinas em saúde mental...

no Outro absoluto que o aterroriza, e, de outro, poderia deixar o lugar de objeto


de seu gozo para ocupar o lugar de autor, produtor de um objeto com consis-
tência simbólica e, ao mesmo tempo, com materialidade social e econômica.
Para mostrar essa função, trazemos Victor e nossa rotina de trabalho
com seus impasses sempre aparentemente insuperáveis, ou seja, excertos
de uma experiência de oficina em saúde mental. Victor, hoje, está com 54
anos. Vivia, em sua juventude, em relação de radical exterioridade com a
linguagem. Aos 26 anos, quando sua psicose se desencadeia, fala que: “A
voz simplesmente não saía [...] perdi a voz [...]delirava com as palavras, eu
não sabia escolher o que eu ia falar”. Filho de um pai cigano, que se mudava
constantemente com a família, tentava recolher dele insígnias para se inscrever
no campo do Outro, por exemplo, recolhendo palavras dos jornais em que o
pai trazia compras embrulhadas.
Ele demonstra uma relação muito própria com a palavra desde crian-
ça. Antes mesmo de saber ler e escrever, já era encantado pelas letras e as
copiava de forma a desenhá-las no papel, mesmo sem saber seu significado.
Ele via as propagandas afixadas nas ruas e queria saber o que elas diziam. A
primeira palavra que aprende a escrever sozinho aos 4 anos de idade: “casa”,
ele a escreve na parede onde morava e é obrigado a apagá-la pela avó brava.
Veremos que suas tentativas de tratamento para as rupturas com a
realidade foram muitas, sendo sempre permeadas pela escrita. Escreve as
palavras ou frases que se fixam em sua mente e também os conteúdos das
vozes que ouve. Ora rasga, ora conserva grande parte da escrita que vem
dessa exterioridade que lhe é, a princípio, totalmente estrangeira, pois não sabe
se ela está certa, bem como se as pessoas poderão entender o sentido dela.
Foge várias vezes de casa, vive na rua, na errância, e entra no mundo
das drogas quando se afasta do pai. Mas sempre retorna à família. Do pai
cigano ao movimento de fincar raízes, vemos seu movimento na tentativa de
se alojar na linguagem, de localizar-se simbolicamente no campo do Outro,
de tratar, enfim, sua desinserção.
Em torno dos 40 anos comete um homicídio contra o ex-cunhado, jun-
tamente com a namorada. É internado em hospital psiquiátrico e cumpre três
anos de medida de segurança. Ao sair, morando na capital mineira há nove
anos, insere-se na rede de serviços substitutivos ao manicômio. É quando
começa a participar de uma oficina, escrevendo para o jornal do CAPS, onde
faz tratamento desde 2006. Ele ganhou o codinome Voa-Voa4 com o qual as-
sina seus escritos, que são endereçados a três seções do jornal: Loucomotivo,
Informeação e Atualidades. Podemos dizer que, para Victor, uma das funções
do CAPS é ser um lugar no qual pode publicar seus escritos, podendo ende-

97
Andréia M. C. Guerra

reçá-los aos outros, tal como ao dar os jornais para a irmã que os coleciona.
Além disso, destaca-se, nessa nomeação Voa-Voa, um elemento de
apaziguamento do gozo, um tratamento do real, que o avassala, pelo simbólico
do nome. Voa-Voa condensa, aos moldes de uma metáfora, um nome pró-
prio, cuja assinatura deixa sua marca de autoria no Outro. Ao mesmo tempo,
nomeia sua ausência de “raízes”, fazendo as vezes de uma vetorialização de
sua posição subjetiva. Além disso, tornar-se aquele que escreve para o jornal
do CAPS o aloca a um semblante, a um lugar social, cuja imagem costura,
com seu codinome, um espaço no campo público.
Como se vê, temos aqui a tal densidade simbólica diferenciada, cuja
especificidade situa-se exatamente no fato de não vir sozinha, mas antes
incluir os outros dois registros da realidade: o real e o imaginário. A diferença
dessa densidade simbólica, a nosso ver, reside no fato de permitir uma costura
entre o simbólico do codinome, o semblante do escritor e o endereçamento do
produto-objeto escrito no campo do Outro. Trata-se de elementos fundamentais
para o apaziguamento e para a fixação desse sujeito em um ponto do Outro,
tratando o real indomesticado de Victor.

5. Concluindo

A inscrição cultural dos psicóticos sempre foi negativa. Essa prática


possibilita desfazer politicamente, culturalmente, esse lugar do louco como
elemento desqualificado. Trata-se de uma clínica positiva. O louco, dentro
dessa formulação, é um batalhador, é um sujeito que trabalha para lidar com
a dispersão do gozo, com as dificuldades pulsionais. Com a atividade de
produção nas oficinas, atividades de circunscrição de gozo, o psicótico pode
produzir sentidos históricos a sua produção, a partir de fragmentos de coisas
e imagens, inscrevendo-se na linguagem ou inventando uma possibilidade de
circunscrição de gozo. As oficinas, então, configuram-se enquanto formas de
cifrar o gozo ou “significantizar” o real, permitindo a construção de uma outra
superfície para localização desse gozo. É uma separação para que o sujeito
possa se inscrever no laço social e, no entanto, um laço para que ele não seja
deixado cair.
Retomando, finalmente, o ponto mínimo ou projeto comum, que nos

4
VOA-VOA: refere-se às iniciais do nome de Victor de Oliveira Alves (pseudônimo adotado no
texto para evitar sua identificação), sendo tal codinome sugerido pelo coordenador da oficina de
Jornal do CAPS.
98
98
Oficinas em saúde mental...

articula a todos, causados e aprendizes da clínica com as psicoses, podería-


mos assim resumi-lo:
O minimal entre nós seria o pacto em torno de uma política dos corpos,
dos objetos e das palavras, orientada por uma ética que suporta o mal-estar
de todos, a desinserção ou falta de cabimento de cada um e, sobretudo, a
falta central na estrutura do saber na práxis que essa ética política engendra
e sustenta.

REFERÊNCIAS

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psicológicas completas de Sigmund Freud. 3.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1976. V. XIV,
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FREUD, S. O mal-estar na civilização ([1930]1929). In: ______. Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.3. ed. Rio deJaneiro:
Imago, 1976. V. XXI, p.75-171.
GARCIA, Célio. Estamira, novas formas de existência: por uma clínica da carência.
Belo Horizonte: Ophicina de Arte e Prosa, 2011.
GUERRA, Andréa; GENEROSO, Cláudia. Desinserção social e habitação: a psica-
nálise na reforma psiquiátrica brasileira. Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental. V. 15, n.. 3, set. 2012.
LACAN, Jacques. A ciência e a verdade [1965]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998, p. 869-892.
______. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose [1957-1958].
In: ______. Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 537-590.
______. Seminário A identificação [1961-1962]. s/d.
______. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne [1971-
1972]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
______. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar,1982.
_____. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
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Cause Freudienne, 2006. Consultado em 08 de Janeiro de 2010 em <http://www.
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-psychanalytique>.
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nacional de Psicanálise. São Paulo, out. 2002, n. 34, p. 07-16.
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n. 60, 2003, p. 7-14.
______. Pièces detachés. Séminaire Orientation Lacanienne III, 6, 2004-2005. s/d.

99
Andréia M. C. Guerra

SOLER, Colete. Estudios sobre la psicosis. Buenos Aires: Manantial, 1990.

Recebido em: 20/07/2012


Aceito em: 30/08/2012
Revisado por: Otávio Augusto Winck Nunes

100
100
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 101-110, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS

GPVTG3

Simone Moschen2

Tguwoq< O artigo discute o estatuto do objeto produzido no âmbito das oficinas


terapêuticas. Seu objetivo é destacar a dimensão da perda como guia a orientar a
produção das materialidades elaboradas no seio desses dispositivos terapêuticos.
A produção da perda se situa como condição da inscrição de um entre. Entre que
funciona como preposição e marca a distância de dois pontos. Entre que funciona
como verbo e permite o convite ao outro para aproximar-se, sem que essa apro-
ximação carregue uma ameaça incontornável.
Rcncxtcu/ejcxg< psicose, oficinas terapêuticas, objeto , políticas públicas.

DGVYGGP
Cduvtcev< The article discuss the statute of object made at the scope of the thera-
peutic workshops . It’s goal is to detach the dimension of lost as guide to orient the
production of the materiality elaborated at the breast of these therapeutic devices.
The production of lost find itself as condition of the enrollment of a between. Between
that works as preposition and that’s stands the distance of to spots. Between that
works as a verb and allows the invitation to another to get closer, without meaning
that this approximation carries an unavoidable threat.
Mg{yqtfu< psychosis, therapeutic workshops, object, public policies.

1
Esse artigo foi inicialmente publicado em: Leite, Nina Virgínia de Araújo, Milán-Ramos, Guillermo
J. EntreAto – o poético e o analítico. São Paulo: Mercado das Letras, 2011.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Insti-
tuto APPOA; Professora do Pós-Graduação em educação e em Psicologia Social e Institucional/
UFRGS;Pesquisadora do CNPq.E-mail:simonemoschen@gmail.com
101
Simone Moschen

H omer e Langley Collyer eram dois irmãos que viveram em Nova Iorque no
início do século passado. Moravam no Harlem, quando este ainda era um
bairro elegante que abrigava enormes casarões onde residiam famílias ricas e
promissoras. Eles eram filhos de um médico ginecologista e de uma cantora de
ópera. Ambos, quando moços, ingressaram na Universidade Colúmbia, sendo
que Homer se formou em direito e Langley em engenharia. Sabe-se que Homer
chegou a ter dois empregos fixos: trabalhou primeiro em um escritório em Wall
Street e depois em uma companhia de seguros na Broadway. Langley, por sua
vez, não chegou a trabalhar. A história de suas vidas rendeu a produção de
um curta-metragem, dirigido por Alfeu França, intitulado: Irmãos Collyer – uma
fábula do acúmulo (2006).3
Por algum tempo os irmãos nova-iorquinos moraram no casarão de doze
cômodos do Harlem, acompanhados por toda sua família. Quando da morte
dos pais, foram paulatinamente se retirando da cena pública, recolhendo-se
em sua casa, até não mais saírem às ruas, com exceção de furtivas incursões
noturnas. À noite, Langley ganhava a rua para buscar alimentos e em suas
andanças trazia consigo tudo que pudesse encontrar pelo caminho: restos de
objetos e entulhos com os quais cruzava em suas caminhadas e que eram
sistematicamente recolhidos a sua casa. Homer, por sua vez, viveu no corpo
a reclusão psíquica que os irmãos se impunham: em 1937 ficou cego e, em
seguida, por conta de um reumatismo grave, ficou preso a uma cama. Langley,
que contava com a biblioteca de seu pai, médico, acreditava poder curar o irmão
com uma dieta de mais de cem laranjas por dia. Por conta de sua aposta, de
que Homer pudesse voltar a ver, e também em função da impossibilidade que
compartilhava com o irmão de jogar qualquer coisa fora, Langley guardava os
jornais velhos que trazia em suas andanças para que o irmão pudesse lê-los
logo que recuperasse a visão.
A reclusão de Homer à cama lembra a imobilidade de um famoso per-
sonagem literário que ganhou vida na pena de Jorge Luis Borges: Funes, o
memorioso (1999). Irineu Funes sofrera um acidente que havia lhe imposto
o completo enclausuramento ao catre. Sua imobilidade física, porém, se fez
acompanhar de uma terrível capacidade: era-lhe possível experimentar cada
acontecimento como se fosse único e registrá-lo em sua memória de forma

3
Fui apresentada a este documentário por minha orientanda Simone Lerner.
102
102
Entre

que nada lhe passava despercebido. A letra de Borges nos catapulta para o
drama de Funes:
Nós, de uma olhadela, percebemos três taças em uma mesa; Funes,
todos os rebentos e cachos e frutos que compreende uma parreira. Sabia as
formas das nuvens autrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos
e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro
encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas das espumas
que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho.
Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às
sensações musculares, térmicas, etc. [...] Disse-me: ‘Minha memória, senhor,
é como um despejadouro de lixos.’ Tinha aprendido sem esforço o inglês, o
francês, o português, o latim. Suspeito, entretanto que não era muito capaz de
pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, é abstrair. No abarrotado
mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos” (1999, p.543
e 545; grifo nosso).
Retenhamos esse contraste entre uma memória que se infinitiza como
um “despejadouro de lixos” e a capacidade de pensar que implica esquecer
– por que não dizer, perder, deixar cair – as diferenças.
Voltemos ao casarão do Harlem. Sozinhos, reclusos, sem sair nem ao
menos para pagar suas contas, os irmãos Collyer viram o telefone do casarão
cortado em 1917 – o que não devem ter nem ao menos notado!!! – e o forneci-
mento da eletricidade e do gás interrompidos em 1928. Sabe-se que Langley,
como engenheiro, construiu uma forma de gerar um mínimo de energia através
do reaproveitamento de um velho motor.
Em março de 1947, o comissário de polícia da cidade recebeu a denúncia
de que um forte cheiro exalava do número 1228 da 5ª Avenida. Essa denúncia
deu início a uma busca por entre toneladas e toneladas de entulhos. Os policiais
foram abrindo caminho em meio a papéis, latas, pedaços de móveis, restos
de armamentos, peças de instrumentos musicais... até encontrarem Homer,
deitado, morto em sua cama. Como não encontraram Langley, passaram a
suspeitar de que, tendo visto o irmão morto, ele tivesse saído de casa sem
rumo. Após dezesseis dias de um trabalho contínuo de remoção de entulhos,
os policiais encontraram o corpo de Langley a apenas três metros da cama do
irmão e, com isso, reconstituíram a tragédia: Langley tinha sido vítima de uma
de suas armadilhas para ladrões. Na pressa de acudir o irmão, teria passado
por um túnel e ativado uma arapuca que fazia desabar, sobre o desavisado,
toneladas de entulho. Como refere o narrador do curta-metragem: “os irmãos
encontraram seu destino em uma avalanche de acúmulo. Objetos, o que sig-
nificam para nós? Por que precisamos deles?” (França, 2006).

103
Simone Moschen

A história dos irmãos Collyer ganha versões mais brandas em uma série
de encontros que podemos ter com sujeitos que recorrem à rede de assistência
à saúde por conta do que situamos como sendo da ordem da loucura. Muito
são os relatos de colegas, que ouvimos em supervisão, impactados com o
que presenciam em visitas domiciliares: o acúmulo, por vezes sem bordas ou
critérios – pelo menos aparente –, de objetos cuja utilidade não responde ao
pragmatismo da vida cotidiana.
A experiência com essa história e com essas imagens nos leva a re-
visitar um trabalho que vimos acompanhando desde 2004 junto a grupos de
diferentes instituições: o trabalho com as chamadas oficinas terapêuticas no
âmbito da saúde coletiva. A história dos irmãos Collyer nos permite tomar o
acompa-nhamento deste trabalho para levantar alguns pontos de reflexão que
a ele se referem e outros que dele transcendem. Em primeiro lugar, nos faz
pensar sobre aquilo que se produz no âmbito do fazer em oficina, e seu lugar
para aqueles que o constroem.
Independentemente do artefato cultural que reúna os participantes de
uma oficina, está em jogo, nesse encontro, como um horizonte a alcançar, a
produção de uma materialidade, seja ela um texto, uma pintura, uma escultura,
um boneco de pano, um filme... Tanto é assim que frequentemente as oficinas
recebem a alcunha do artefato ao qual se dedicam: de escrita, de expressão
plástica, de fotografia, de produção de imagem... Esse modo de trabalhar tem
alargado sua presença como um dos dispositivos acionados, especialmente
no trabalho dos Caps, após a Reforma Psiquiátrica; de sua condução têm-
se ocupado trabalhadores com as mais variadas formações, dentre os quais
psicanalistas que atuam na rede pública.
A reunião de sujeitos em torno da produção de uma materialidade que
tenha sentido e lugar na circulação simbólica, convoca-nos a pensar sobre o
estatuto que o objeto ali produzido assume para os sujeitos que encontram
nessa forma de trabalho uma possibilidade de encaminhar os impasses que
lhes são próprios. Que objetos são esses? Que lugar eles ocupam? O que a
impactante história dos irmãos Collyer pode nos dizer sobre eles?
Ao acompanharmos o trabalho nas oficinas terapêuticas, nos vemos
interpelados sobre o lugar que a produção de uma materialidade pode ter;
lugar que talvez possa tensionar o trabalho do acúmulo a que se veem im-
pulsionados alguns sujeitos. Parece-nos que produzir uma materialidade que
seja capaz, mesmo que momentaneamente, de representar um objeto que
se destaca do corpo para ganhar lugar no exterior, coloca-se na contramão
da relação à produção de uma continuidade sem fissuras, implementada pelo
trabalho do acúmulo dos irmãos.
104
104
Entre

Freud, no texto A negativa ([1925] 1974), nos diz que podemos situar
a origem mítica do sujeito no momento em que algo se destaca de uma con-
tinuidade, passando a constituir uma alteridade em relação à qual o sujeito
ganhará existência. O sujeito emerge quando ,algo se destaca do continum
sem bordas em que se situa o Outro, em seu primórdios. É como efeito dessa
operação que o vemos surgir enquanto imparidade instransponível. Isso que
se destaca do campo do Outro, que é expulso, cuspido diria Freud, estabelece
as condições para diferenciar uma experiência eminentemente interior de uma
experiência exterior. Mas sigamos os passos de Freud.
Freud, nesse artigo, vai reconstruir uma história que, de forma alguma
pretende ser a metáfora de um desenvolvimento, mas, sim, uma referência
a um momento inicial, mítico, em que, para o sujeito, por um lado, tudo que
lhe confere prazer, que é por ele sentido como bom, equivaleria àquilo que
se encontra dentro dele e, por outro, tudo o que é da ordem do desconforto,
do mau, seria sentido como da ordem do exterior. Trata-se de um momento
primordial no qual vemos atuar o eu-prazer a incorporar o que lhe dá prazer
e a expulsar o que lhe confere desprazer.
Hyppolite ([1954] 1998) se refere desse modo ao trabalho de Freud:

Há, no começo, parece dizer Freud – mas ‘no começo’ não quer dizer
outra coisa, no mito, senão ‘era uma vez’... Nessa história, era uma
vez um eu (entenda-se, aqui, um sujeito) para quem ainda não havia
nada de estranho. A distinção entre o estranho e ele mesmo é uma
operação de expulsão (p. 898).

Se é possível ao sujeito referir-se a um fora como distinto dele próprio


é porque houve, em algum momento, uma primeira operação de expulsão,
capaz de produzir essas duas instâncias numa certa tensão – dentro-fora;
eu-não-eu, sujeito-objeto. As origens desse mecanismo que Freud chamou
de juízo de atribuição, ou seja, a capacidade de o sujeito decidir sobre as
características de algo, inscreve-se a partir de uma expulsão que funda duas
instâncias em tensão, em um momento segundo, em relação ao que seria o
da pura unidade, momento mítico em que ainda não se verificaria a existência
de um eu e de um não-eu.
Na sequência de sua descrição da gênese do juízo de atribuição, Freud
vai se dedicar a desdobrar a origem do que ele chamou de juízo de existên-
cia: a capacidade do sujeito de se assegurar da existência ou não de uma
representação na realidade. Segundo ele, tratar-se-á “mais uma vez de uma
questão de interno e externo” ([1925] 1974, p.298). Se no começo temos, como
vimos, uma unidade mítica, a questão acerca da existência ou não de uma
105
Simone Moschen

representação na realidade não se coloca, nesse momento, para o sujeito –


se é que podemos conferir-lhe essa denominação –, pelo simples fato de não
haver algo como uma realidade interior em distinção a uma realidade exterior.
Temos um contínuo mítico, sem rupturas. É no desdobramento do eu-prazer,
fruto de uma primeira expulsão, que permitiu criar um interior em tensão a um
exterior, que veremos se inscrever a condição, para o sujeito, de discriminar
aquilo que tem existência em suas fantasias ou devaneios e aquilo que, tendo,
por isso, existência interna, pode também ser encontrado no exterior com uma
existência independente do sujeito. É nesse ponto que Freud situa a origem
mítica da disjunção entre o que é subjetivo e, portanto, existe no interior do
sujeito, mas não pode ser reencontrado em seu exterior, e o que é objetivo e
tem realidade assegurada em ambos os lugares.
Freud situa numa perda originária a condição de uma cissão Eu-Outro
e, por que não dizer, da constituição do objeto como exterior ao sujeito – ainda
que o exterior aqui referido obedeça à estranha topologia inconsciente: exterior
como aquilo que está excluído no interior. Vale referir uma longa citação de
Freud ([1925] 1974):

A antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início. Surge


apenas do fato de que o pensar tem a capacidade de trazer diante
da mente, mais uma vez, algo outrora percebido, reproduzindo-o
como representação sem que o objeto externo ainda tenha que
estar lá. Portanto [...] é evidente que uma precondição para que o
estabelecimento do teste da realidade consiste em que os objetos,
que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos (p.299).

Há algo de uma perda necessária à constituição do objeto como repre-


sentação, objeto que, esculpido pela argamassa simbólica que lhe confere
consistência e valor numa condição separada, externa ao sujeito, tem como
atributo fazer retornar sobre o sujeito a consistência que lhe é própria. Como
vimos, a divisão primordial que institui uma tensão eu-não-eu se inscreve a
partir de uma expulsão, de uma perda que constitui o objeto, que passa agora
a habitar uma exterioridade em referência à qual o sujeito pode emergir.
Quando nos situamos diante das imagens produzidas na Nova Iorque
dos anos 50 assistimos à constituição de um espaço sem vazios, sem ocos.
Para não dizer que se tratava de um espaço completado pelos entulhos acu-
mulados, precisamos levar em conta que havia neles somente alguns túneis
por onde era possível circular pela casa, por onde era possível alguém passar.
Túneis que davam lugar ao sujeito, espaços vazios que permitiam circular,
106
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Entre

movimentar-se em direção ao outro. Pequenos entres que possibilitavam


passagens e, talvez, alguma condição de encontro, de estar na companhia
do outro, mesmo que saibamos que a relação é impossível.
Se supomos que, para os irmãos Collyer, a condição de experienciar
o vazio, o oco, se punha em questão no trabalho incessante de recuperar os
objetos de sua perda, articulando com os restos o preenchimento aterrador do
espaço em que viviam; podemos também supor que a produção dos objetos
como elementos destacados do corpo, como elementos que compõem uma
exterioridade que sustenta a operação de inscrição do sujeito na malha sim-
bólica, constituía-se para eles em um relevante impasse. Temos pensado que
parte do que articula o trabalho nas chamadas oficinas terapêuticas implica a
tentativa de constituir alguma exteriorização capaz de configurar uma perda no
campo do Outro, mesmo que essa perda se apresente de forma evanescente
e que, por isso, precise ser, a cada encontro, reconstituída.
Nessa direção, acompanhamos o trabalho de Andréa Guerra (2004),
que nos diz:

Ao criar coisas concretas, talvez o psicótico estivesse extraindo do


ventre do Outro objetos reais que lhe permitindo produzir um resto
nessa operação – um objeto inédito – talvez lhe conferisse uma
densidade simbólica sobre sua corporalidade real. O psicótico seria
deslocado ou separado dessa posição de objeto de gozo do Outro
ao criar um objeto externo, endereçado ao social, via oficineiro ou
qualquer outra pessoa ou instituição (p. 51).

A produção das diferentes materialidades em oficina parece-nos ter


como horizonte a construção de um objeto-resto, que não caiu quando da
inscrição do sujeito na linguagem, um objeto-resto sobre o qual não operou a
castração que permite a inscrição nas malhas simbólicas e que, metaforica-
mente, se inscreve sobre os elementos circulantes no mundo sob a forma de
sua transitoriedade.
Vale a pena pensar, contudo, sobre a perspectiva presente, de forma
ordinária neste trabalho de oficina, quanto ao que se refere ao endereçamento
da produção ao social. Assistimos, com frequência, um empuxo dos condu-
tores desse trabalho no sentido da publicização do que naquele espaço se
produz. Merece reflexão esse impulso a inscrever na cultura as materialidades
produzidas – algumas talvez, sim, fazendo suplência da função de objeto. Se
é a queda do objeto, sua expulsão, que cava no seio do Outro o vazio que
faz surgir do mesmo golpe sujeito e objeto, eu e Outro, numa cissão intrans-

107
Simone Moschen

ponível mediada pela Lei que tece as malhas do simbólico, se é justo nesse
ponto que encontramos o sujeito trabalhando para transpor seu impasse; um
endereçamento, para a circulação social, daquilo que é produzido na oficina,
não poderia representar um convite, por que não dizer uma interpelação, a
que o sujeito recolha e suporte os efeitos de uma circulação fálica – justo o
que para ele está em questão? Não seria mais oportuno pensar o trabalho
de produção dessas materialidades que carregam uma densidade simbólica
diferenciada como um trabalho a ser realizado, para esses que compõem o
fazer na oficina, em um espaço protegido aonde a interpelação fálica chegue
minimizada da intensidade com que ela se faz presente no espaço público?
É claro que alguns participantes demandam a inscrição de suas elaborações
no social. Mas a questão talvez seja justamente de que lugar vem a demanda
por essa transposição do espaço protegido da oficina ao espaço aberto do
social. Acompanhar os sujeitos que se veem concernidos por realizar essa
travessia é tarefa importante do oficineiro. Mas impor a realização dessa
passagem nos parece, antes de tudo, uma forçagem.
De braços dados com esse movimento que situamos como uma força-
gem, vemos, com frequência, surgir uma outra antecipação nesse trabalho.
Para chegar a ela, iniciemos retomando uma citação de Quinet (2009):

O processo delirante é a tentativa do sujeito de fazer a separação


desse objeto tentando localizar o gozo num objeto separado do
corpo. Esse processo abre a questão da constituição das obras de
arte na psicose, como uma tentativa, além do delírio, de constituir
algo que possa vir a representar esse objeto, para que o sujeito dele
se separe (p.64).

O fazer em oficina tem como horizonte, através da produção de materia-


lidades diversas, a externalização de um objeto em uma operação que tem
como efeito estabelecer de forma singular as bordas de um buraco no Outro
e, ao fazê-lo, representar o lugar do sujeito nas malhas do simbólico, mesmo
que de forma precária. De algum modo, também é disso que se trata na arte
– externalizar um objeto capaz de inscrever novas possibilidades de o sujeito
se representar no campo do Outro. Porém, estabelecer o deslocamento direto
da produção em oficina para a produção em arte parece-nos uma precipitação
que pode dizer de uma certa idealização da loucura e recair com um peso
insuportável sobre o sujeito, chamado a sustentar no campo da circulação
fálica os efeitos de sua produção, precocemente denominada de artística.
Talvez, no que diga respeito à circulação das produções fora da oficina ou ao
estatuto das materialidades ali produzidas – objetos artísticos ou ordinários –,
108
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Entre

vale muito a pena manter certa cautela, se dar o tempo de um silêncio, sem
responder de pronto sobre uma ou outra dessas questões.
Pensamos que o acento deste trabalho pode se colocar em outro lu-
gar, qual seja, na construção de um entre, tomado tanto em sua condição de
preposição – aquilo que marca um intervalo, um ponto de descolamento e
de junção ao mesmo tempo – quanto em sua condição de verbo, aquilo que
marca o gesto de um acolhimento, a condição de dar abrigo a algo que se
apresenta como externo.
É a produção de um entre, de um espaço intervalar que permite di-
ferenciar dois territórios. Esse entre é tributário de um corte num continum
originário que se opera por conta de uma expulsão, de uma exteriorização
primeira. Como fruto dessa exteriorização, vemos surgirem sujeito e objeto
separados e enlaçados por um entre. Esse vazio cavado no campo do Outro
talvez permita uma relação com os objetos que transcenda o acúmulo e possa
operar em outros registros, mas, mais do que qualquer coisa, permita, tam-
bém, uma acolhida ao outro num laço que não se traduz numa relação, mas
que possibilita o estabelecimento de uma fratria que pode nos sustentar no
atravessamento dos impasses da vida. Lembro aqui de uma fala de Contardo
Calligaris em recente encontro na APPOA: “o psicótico padece do fato de não
ter amigos” (sic). A mesma operação que funda o intervalo permite a acolhida
ao outro: desdobramentos de um entre.
Há uma passagem muito bonita no texto Agressividade em psicanálise
([1948] 1998) que vale a pena ser retomada. Nesse texto, Lacan vai percor-
rer os meandros da estruturação psíquica. Partindo do estádio do espelho
e da constituição do eu ideal como formação primeira a defender o sujeito
do iminente despedaçamento corporal, ele conduz o leitor rumo ao Édipo,
estrutura capaz de produzir uma fenda nessa imagem totalizada que, quando
ameaçada, encontra, por parte do sujeito, uma resposta sempre agressiva. A
constituição de um ideal do eu, fruto da passagem edípica, alerta-nos Lacan
nesse texto, tem uma

função apaziguadora... [...] A identificação edipiana é aquela através


da qual o sujeito transcende a agressividade constitutiva da primeira
individuação subjetiva. Insistimos em outra ocasião no passo que ela
constitui na instauração dessa distância pela qual, com sentimen-
tos da ordem do respeito, realiza-se toda uma assunção afetiva do
próximo (p.119-120).

A assunção afetiva do próximo depende em alguma medida da inscrição


de uma distância. Só mediado por um entre é possível dizer ao outro: entre!,
109
Simone Moschen

sem se ver excessivamente ameaçado em sua integridade. A perspectiva de


um laço ao outro-semelhante implica a inscrição de uma fenda impossível de
cerzir, implica a produção de um buraco no Outro.
Nessa medida, o trabalho em oficina pode contribuir para algo que, no
campo das políticas públicas de atendimento à loucura, aparece como vontade
de socialização. Se nesse trabalho é possível produzir uma materialidade que
funcione para o sujeito como constituição de um objeto que descompleta o
Outro, que, por sua produção mesma, introduz um entre, talvez por conta disso
possamos assistir à ampliação para o sujeito de suas possibilidades de, como
diz Lacan ([1949] 1998, p.120), “com sentimentos da ordem do respeito, realizar
a assunção afetiva do próximo”. E isso sem que as materialidades produzidas
necessariamente tenham que ganhar a rua, ou que, então, tenham que ter o
estatuto de objetos que pudessem receber a adjetivação de artísticos.

REFERÊNCIAS

BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso. In: ______. Obras completas. São Paulo:
Globo, 1999. v. 1.
COSTA, C. M. Oficinas terapêuticas em saúde mental – sujeito, produção cidadania.
Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004.
FRANÇA, ALFEU. Irmãos Collyer – uma fábula do acúmulo. Brasil, 22 min., 2006.
FREUD, S. [1925]. A negativa. In: ______. Edição standad das obras completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.295-308.
GUERRA, A. M. Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de
uma prática. In: FIGUEIREDO, A. C.;
HYPPOLITE J. [1954] Comentário falado sobre a “Verneinung” de Freud. In: LACAN,
J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, Jacques. A agressividade em psicanálise [1948]. In: ______. Escritos. Rio de
Janeiro: Zahar, 1998.
QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2009.

Recebido em 09/11/2012
Aceito em 09/12/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões

110
110
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 111-117, jul. 2011/jun. 2012

Uł0"Uł
Woc"gzrgtkgpekc"fg"kpuetkèçq."
TEXTOS fg"uwuvgpvcèçq"fg"wo"fgxkt."
pq"cvq"fg"vtknjct"eqtfc"pwoc"
ocpjç"pc"Ecuc"fqu"Ecvc/Xgpvqu

Renata Maria Conte de Almeida1

Tguwoq< Este artigo apresenta o trabalho da Casa dos Cata-Ventos, projeto de


extensão e intervenção social do Instituto de Psicologia da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul e do Instituto APPOA, em Porto Alegre, através do recorte
de uma brincadeira de pular corda e seus efeitos de intervenção com uma menina
de oito anos.
Rcncxtcu/ejcxg< psicanálise, intervenção social, infância.

Uł0"Uł0
Cp"gzrgtkgpeg"qh"kpuetkrvkqp."uwrrqtv"hqt"c"dgeqokpi."
kp"vjg"cev"qh"lwor"tqrg"kp"c"Ecuc"fqu"Ecvc/Xgpvqu"oqtpkpi0"
Cduvtcev< This article presents the work done in Casa dos Cata-Ventos, a project of
extension and social intervention carried by the Psychology Institute at Rio Grande
do Sul Federal University in association with APPOA Institute, at Porto Alegre.The
author presents this work through a shortcut of a jump rope play and its intervention
effects in an eight years girl.
Mg{yqtfu< psychoanalysis, social intervention, childhood.

1
Psicanalista; Médica Homeopata; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)
e Membro do Instituto APPOA; Membro da equipe da Casa dos Cata-Ventos. E-mail: renata.
almeida36@yahoo.com.br
111
Renata Maria Conte de Almeida

A Casa dos Cata-Ventos é um espaço de brincadeiras e conversas com


crianças em situação de vulnerabilidade social. Ela está situada numa vila,
favela, de Porto Alegre e é um projeto que nasceu inspirado na Maison Verte e
na Casa da Árvore; a primeira estruturada pela psicanalista francesa Françoise
Dolto, e a segunda, também inspirada em Dolto e situada no estado do Rio
de Janeiro. Trata-se de projeto de psicanalistas que acreditam que a escuta
analítica pode estar onde o sujeito pulsa, onde a criança, em sua construção
subjetiva, mais necessita. Ali, no seu território2, devastado pela violência, pelo
abandono social, onde os códigos da pólis em que vivemos não têm força de
significante.
Há muito sabemos que a brincadeira é o palco privilegiado para que o
inconsciente infantil construa um devir, elabore os traumas, para que trance
as cordas do simbólico, real e imaginário, dando corpo e vida ao fantasma
que o habita.
A Casa dos Cata-Ventos oferece às crianças um espaço para suas
brincadeiras, para que suas questões sobre os acontecimentos e violências,
presenciados e sofridos, possam ali ser, de alguma forma, elaborados. Este se
diferencia do entorno, pois ali o sujeito em desenvolvimento pode ser escutado.
Pode ter, por um breve momento, a experiência e o brincar sustentados num
outro lugar, lugar de sujeito, no simbólico do adulto presente. Simbólico que
se diferencia pela riqueza dos códigos estrangeiros à vila de uma cidade que
as crianças desconhecem, pela exclusão a que estão submetidas. Vivência de
brincadeiras em que a palavra tem peso maior que a agressão, forma comum
de resolução dos problemas entre elas. A palavra será sustentada nesse lugar
privilegiado de possibilidade de novos deslizamentos para aquilo que se repete
como pura descarga pulsional. Quando falamos em crianças em situação de
vulnerabilidade social, devemos ter em conta crianças que não têm acesso
aos direitos básicos do cidadão. Algumas das que recebemos na Casa nunca
frequentaram escola. Nunca, aqui, não é força de expressão e, sim, força da
exclusão social. Alguns pais vivem de forma itinerante, muitas vezes fugitivos
de situações de violência com tráfico, em outras vilas da cidade, ou por ou-

2
O conceito de território compreende a história vivida por uma comunidade e as impressões que
ela faz no espaço configuram a sua própria identidade, sendo que cada indivíduo que ali vive, se
reconhece como parte dela. “É nesse espaço que se constituem as redes de relações, a cons-
trução de regras, conceitos e normas a partir do imaginário social e as relações de poder entre
os recursos naturais, as relações de produção ou as ligações afetivas e de identidades entre um
grupo social e seu espaço” (Souza e Pedon, 2009, apud Ferreto, 2009. p.1).

112
112
Só. Só

tras dificuldades, como fim de relações e busca de emprego. Não dispõem


de acesso ao sistema básico de saúde porque não têm moradia certa. Sem
endereço certo, não conseguem vagas em escolas, nem atendimento em
postos de saúde sem a intervenção da assistência social. Vivem temporaria-
mente com pais, ou avós, ou parentes. Itinerantes na vida. Outras estão com
suas famílias, porém expostas à miséria, à violência familiar e do tráfico, a um
ambiente sem as mínimas condições de higiene. As ruas da vila são repletas
de fezes de cachorro, cavalo e dejetos humanos. Pequenos cujo corpo pode
ser habitado por piolhos, fome e detritos de fezes e urina. Essas crianças são
cuidadas em muitos momentos por seus irmãos mais velhos, crianças também,
ou já perambulam livremente pela vila, apesar da tenra idade. Nesse cenário
de devastação, há um cuidado com as crianças dentro da vila, marcado pela
presença de uma pequena creche comunitária, um SASE (Serviço de Apoio
Socioeducativo) e a presença de pais e avós imbuídos de sua função.
A vila onde trabalhamos parece ser um ponto cego da cidade, apesar de
ter vizinhança com duas grandes universidades, um shopping, a Associação
Médica do Rio Grande do Sul e o maior hospital psiquiátrico do Estado. Ela
parece não estar lá. Está escondida atrás de casas que dão para uma avenida
importante de Porto Alegre, situando-se entre elas e os muros do referido hospi-
tal. Suas entradas são becos controlados pelo tráfico. As mulheres dificilmente
levantam os olhos para conversar com pessoas estranhas quando estão fora
de lá. Mas, assim como suas crianças, a vila está ali, escondida e pulsante,
território pleno de vida e morte, dor e alegria, apesar dessa invisibilidade social.
Vou relatar um pouco da história de uma criança que nunca foi à esco-
la, apesar ter idade para tal. Ela nos acompanha desde o início das nossas
atividades na vila. Essa menina, apesar de ausências regulares, devido às
mudanças da família, retornava, dando continuidade ao laço. Laço que com
outras crianças foi desfeito pelas mudanças de casa que fizemos ou, ainda,
por estarmos cada vez mais embrenhados no território violento. São relatos de
brincadeiras de uma menina de oito anos em extrema vulnerabilidade social,
com muitos dos direitos básicos das crianças ausentes na sua trajetória. Vou
chamá-la de Elena.
Elena vem aos plantões3 da casa sempre acompanhada de sua irmã

3
Plantões são turnos de 3 horas, quando as crianças são recebidas na Casa dos Cata-Ventos
para brincar, ou turnos de 1 hora e meia para contação de histórias. Sempre terão a presença de
três ou mais adultos a testemunhar suas brincadeiras, intervindo sempre, se possível, na lógica
do sujeito em constituição, buscando dar à palavra seu estatuto de plena, na medida em que
possa realizar a verdade do sujeito.

113
Renata Maria Conte de Almeida

menor, que tem seis anos de idade. Algumas vezes, sua mãe as acompanha
com a irmã caçula, de cinco meses. As crianças dessa família não frequen-
tam escola, nem nunca o fizeram. A mãe tem uma pobreza simbólica gritante.
Não fala muito e, ao ser demandada pelas filhas, não consegue responder
rapidamente. O bebê é hipotônico, tem dificuldades de sustentar a cabeça e
o olhar. Sua irmã de seis anos é uma menina que não cabe dentro do seu
pequeno corpo, tudo é movimento sem contornos de brincadeiras ou jogos,
tudo parece ser pura descarga.
Elena é uma criança passiva, com dificuldades de brincar em grupo, não
reconhece cores, formas figurativas, tem dificuldade de brincadeiras quando
o corpo é solicitado, como pular corda, pular amarelinha. Busca pelo olhar
materno insistentemente, apelo muitas vezes sem resposta pela dificuldade
materna.
Essas pequenas crianças, quando descobriram o espaço da Casa dos
Cata-Ventos, fizeram dele uma janela no mundo. Passaram a vir em todos
os plantões e a “comer” com voracidade tudo que lhes era apresentado. Uso
o termo “comer” porque a fome é a melhor expressão possível da pulsão ali
presente. Esta comparecia com a voracidade de quem esteve excluído por
muito tempo da dança necessária aos registros simbólico, real e imaginário
poderem fazer o seu trabalho: trançar e novamente trançar, abrindo a consti-
tuição subjetiva para um devir.
Por um bom tempo, nos plantões, a brincadeira preferida do grupo era
pular corda; corda grande, que precisava ser trilhada pelos adultos ou duas
crianças maiores. Elena não conseguia pular como as meninas da sua idade
ou mesmo menores. Fazíamos a “cobrinha”, corda balançada rente ao chão,
para que ela fosse lentamente entrando na brincadeira.
No brincar, Elena foi construindo possibilidades desconhecidas para o
seu corpo inibido, gordinho e lento. Muitos foram os momentos de júbilo com
o salto certeiro, sem ter a “cobrinha” enroscada em seus pés. Sempre havia
o convite de um dos adultos para pular corda, com toda a volta e dificuldade
característica. Ora ela desistia sem tentar, ora a frustração pelo não saber. Mas
no jogo, na brincadeira, na presença dos erros alheios, apesar dos grandes
puladores de corda presentes, Elena foi engendrando corpo e desejo.
Pensar sobre uma simples brincadeira de pular corda com crianças se
faz necessário quando presenciamos algo que inaugura, para uma criança,
um novo tempo, tempo de enodamento do significante ao real do corpo.
Volto ao relato da brincadeira com Elena.
Um dia ela pede para não pular “cobrinha”, quer pular corda e o faz com
extremo prazer, dela e da plantonista que trilhava a corda, devo apontar. Todos
114
114
Só. Só

os pulos foram sustentados no olhar. Cada salto referenciado sem pestanejar,


no olhar satisfeito de quem pulava e de quem trilhava a corda para ela. Apelo
de reconhecimento e aposta mantidos no fio da vida, na alegria da brincadeira,
sustentada no olhar desejante, no desejo da psicanalista ali presente; desejo
que, numa análise de crianças, tem a função de fazer surgir o sujeito naquele
que ainda se constrói; desejo do analista a sustentar a saída de um lugar de
objeto e aceder a esse lugar de sujeito. Momento de vivência de uma potên-
cia antes desconhecida, o corpo inibido se joga no salto proposto e descobre
algo novo. Elena transita, a partir de então, de forma diferente no grupo, algo
da exclusão pode ter fim. Ela é, enfim, uma menina que também sabe pular
corda. Esse dia marca para ela uma modificação tênue, porém ela retorna a
cada novo plantão menos inibida, mais confiante.
Diana Corso, colega psicanalista, em uma palestra-supervisão, no curso
de extensão da UFRGS, Brincar e Contar Histórias na Casa dos Cata-Ventos,
associa esse momento de Elena com aquele em que as mães soltam os seus
bebês para caminhar, quando eles ficam “só-só”; corpo sustentado no espa-
ço, sujeito sustentado no olhar que o imaginariza capaz de algo que ainda é
apenas projeto, mas, por ser antecipado, sustenta-se por um breve momento,
inaugurando outro tempo deste sujeito.
Segundo Jerusalinsky:

[...] o toque corporal impregnado de significações reordena um movi-


mento, ali onde uma dispraxia o parasitava. Vemos nisto que o real
não engendra esquema por si mesmo. É no recorte da borda que o
significante se impõe ao corpo que se faz o esquema, efeito do sig-
nificante na imagem. E é por isto que o esquema corporal não está
na esfera do real, mas sim na dimensão imaginária, nessa posição
singular que resulta do rebatimento do olhar do sujeito sobre a borda
do impossível. Diferentemente da imagem corporal, que é resultante
do rebatimento do olhar do sujeito no olhar do Outro, ou seja, no
corte simbólico da imagem especular (Jerusalinsky, 1999, p.68-69).

Na infância, a força de repetição das brincadeiras encontra-se nesse


enlaçamento dos três registros, real, simbólico e imaginário. Trança que lembra
uma dança, um movimento constante que está sempre a serviço da constituição
subjetiva. Ainda segundo o autor:

É no ponto de intersecção entre o eixo do imaginário (a-moi) e do


simbólico (A-S) que se constitui a imagem especular do corpo (i[a])
como objeto para o desejo do Outro (A). É evidente que se, do lado do
115
Renata Maria Conte de Almeida

real o olho se vê obrigado a esquematizar um resto, do lado simbóli-


co, após sofrer o impacto com que a palavra lhe marca a escolha de
seu ponto de perspectiva, o olho pode apontar a sua mira na direção
mais arbitrária e fazer do corpo o espetáculo mais mirabolante. As
zonas erógenas, de cuja situação corporal cada sujeito humano tem
seu próprio mapa, constituem um bom exemplo disto (Jerusalinsky,
1999, p.68-69).

Dessa forma, brincando, mapeia-se o corpo por força do olhar, do toque


e da palavra do Outro, dos cortes simbólicos que operarão no real do corpo,
criando bordas e litorais.
Ainda, segundo Jerusalinsky (1999), “sabem bem disto os psicomotri-
cistas que trabalham no hiato entre o inconsciente e o corpo... fazendo pé no
esquema, abre as vias para que o sujeito possa esquecer seu corpo, mantendo-
o nas asas de sua imaginação”.
O trabalho de trilhar cordas, acompanhar brincadeiras, contemporizar
disputas são tarefas que cabem, na Casa dos Cata-Ventos, aos psicanalistas,
adultos de plantão. Boa expressão: adultos de plantão, ou seja, adultos atentos
ao que se passa; atenção voltada à infância dessas crianças, tempo da sub-
jetivação psíquica, tempo em que a brincadeira é um dos palcos privilegiados
para o inconsciente; trabalho de encarnar o Outro, de colocar em andamento
processos constitutivos que, pela pobreza simbólica de pais e cuidadores, ou
pela extrema pobreza e violência do território, estavam inibidos ou mesmo
ausentes.
A infância é marcada por sucessivas aquisições, todas elas tramando
uma rede na qual o sujeito se sustentará ao longo da vida. Quando uma crian-
ça, em vulnerabilidade social, encontra um espaço onde pode, lentamente,
dentro do seu próprio ritmo, armar seu esquema e sua imagem corporais, dar
asas à fantasia, enfim, ter a sua infância preservada dentro desse território
inóspito a ela, acreditamos que sua constituição psíquica ganha novas cores
e horizontes.
Se o território é o somatório das relações de poder, afeto e identifica-
ções de uma determinada comunidade, num determinado espaço, trabalhar
com crianças em vulnerabilidade social, dentro do seu território, ofertando um
espaço de brincadeiras e conversas que permite um hiato na violência e na
invisibilidade social a que estão diuturnamente constrangidas, pode vir a ser
transformador dessa realidade, desse território. Apostamos que seja transfor-
mador da vida dessas crianças; como talvez tenha sido para a pequena Elena
descobrir sua capacidade de confiar e se jogar no olhar do Outro e conseguir,
116
116
Só. Só

enfim, pular corda e, no jogo da vida, trançar alguns novos registros e se po-
sicionar de outra forma no mundo.
O olhar transpassado pela psicanálise poderá então relançar o laço social
de forma menos perversa? Poderá inscrever registros diferentes da violência
e da negligência a que essas crianças e famílias estão submetidas? Fica a
aposta de que esta seja uma intervenção possível e potente.

REFERÊNCIAS

FERRETO, Letícia. Trabalhando o conceito de território no ensino fundamental. Dispo-


nível em < http://www.agb.org.br/XENPEG/artigos/Poster/P%20(39).pdf >.
Acesso em: 09 dez. 2012.
JERUSALINSKY, Alfredo et al. Psicanálise e desenvolvimento infantil. 2. ed. Porto
Alegre: Artes e Ofícios, 1999.

Recebido em 18/10/2012
Aceito em 22/11/2012
Revisado por Bianca Kreisner e
Deborah Nagel Pinho

117
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 118-127, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS
EQPUVTWÑ÷GU"FC"
EN¯PKEC"GO"WO"ECRU3
Ester Luiza Trevisan2

Tguwoq< A autora explora as transformações do trabalho em saúde mental, to-


mando, para isso, as figuras de Artaud e Irene. Explora aspectos de um trabalho
clínico-institucional orientado pela psicanálise, realizado com Irene, que passou por
longo período de tratamento no Caps Cais Mental Centro (Porto Alegre). Aborda
questões e impasses de uma clínica do sujeito no campo da saúde mental.
Rcncxtcu/ejcxg< Caps, saúde mental, clínica psicanalítica, clínica institucional.

ENKPKECN"EQPUVTWEVKQPU"KP"C"ECRU
Cduvtcev< The author explores the transformations of the work in Mental health by
taking the figures of Artaud and Irene. Explores aspects of a clinical-institutional
work oriented by psychoanalysis, performed with Irene, who went through a long
period of treatment in Caps Cais Mental Centre (Porto Alegre). Addresses issues
and dilemmas of a clinic of the subject in the field of mental health.
Mg{yqtfu< Caps; mental health; psychoanalytic clinic; institutional clinic.

Comment pas d’être et un corps?3

1
Caps: Centro de Atenção Psicossocial. Os Caps constituem-se como dispositivos de atendimento
em saúde mental, surgidos a partir da reforma psiquiátrica no Brasil. Trabalho apresentado na
II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e intervenções sociais, em setembro de 2011, Porto
Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e Membro do Instituto APPOA;
Membro fundador da equipe do Caps Cais Mental Centro – SMS Porto Alegre; DEA Psicopatologia
e Psicanálise Universidade de Paris Xlll. E-mail: esterltrevisan@gmail.com
118
118
Construções da clínica em um Caps

D esde que pensei em trazer algumas questões suscitadas a partir do trabalho


no Caps, acompanha-me a figura de Antonin Artaud (1896-1948), artista
francês cuja obra se situa no entrecruzamento da literatura, do desenho, do
teatro, do cinema e do rádio.
Há alguns anos, tive a oportunidade de ver, em Paris, uma bela expo-
sição sobre ele, na Biblioteca Nacional. A meu ver, os organizadores foram
muito felizes no modo como construíram a exposição, contemplando diferentes
faces de Artaud: como ator de teatro, de cinema, escritor, desenhista, roteirista,
figurinista, projetista de cenários, crítico, poeta – além de recortes biográficos,
suas viagens, depoimentos de amigos, registros de passagens pelos asilos
psiquiátricos. Na apresentação estética do espaço da exposição, havia escritos
pelas paredes e pelo chão, evocando o modo como ele registrava em seus
cadernos.
Muitos desses cadernos estavam expostos. Ele deixou um legado de
406 cadernos escritos nos últimos três anos de sua vida, num movimento que
podemos pensar como de reconstrução de si. Se nos informarmos um pouco
sobre sua biografia, veremos que é um sobrevivente. Desde a sua infância,
Artaud foi levado a fazer tratamentos psiquiátricos, que hoje sabemos serem
atrozes e sem qualquer utilidade, como, por exemplo, o fato de ser submetido
à máquina eletrostática, aos 5 anos de idade, por ser uma criança nervosa; foi
também tratado por mais de 20 anos com injeções extremamente dolorosas e
ineficazes de uma mistura de arsênio, bismuto e mercúrio para uma suposta
sífilis hereditária, sífilis essa que não se confirmou, além de ter sido um dos
“pioneiros” a ser submetido ao eletrochoque, técnica que era executada, então,
sem o mínimo de cuidado e em condições extremamente precárias.
Como homem das artes, Artaud mantinha uma produção efervescente;
porém, o seu estado se deteriorou a partir de uma longa internação de 9 anos
em manicômios, em uma época em que os doentes mentais estavam sendo
dizimados ou deixados para morrer de fome nos asilos, pelos nazistas. Foi
através da insistência de sua mãe e de um grupo de amigos que se conseguiu
transferi-lo para o asilo de Rodez, onde permaneceu até 1945. A saída do
manicômio para a clínica de Ivry, próxima a Paris, foi orquestrada por amigos,
ligados às artes, mas principalmente por uma jovem psiquiatra, Paule Théve-
nin, que abandona a psiquiatria e se torna sua secretária e grande amiga, e

3
Como não existir e um corpo? (trad. livre do autor). In ARTAUD, A. Le corps humain. Oeuvres
complètes. Paris: ed. Gallimard, 2004. p. 1547.

119
Ester Luiza Trevisan

que vai ser aquela a quem ele vai delegar seus manuscritos e a publicação
de sua obra.
Thévenin (Texier, 2007) conta que, nas últimas semanas de sua vida,
Artaud repetia com frequência que não tinha mais nada a dizer, e narra uma
cena que considero muito comovente :
Um dia, ao chegarem em casa, ele lançou a seguinte frase :
“Anuncio que não escreverei nunca mais, já escrevi tudo. Veja, além
disso, não tenho mais nem caderno!”
Enquanto falava, mostrava o bolso no interior de seu casaco, vazio
do habitual caderno. Porém, logo a seguir, escutou-o, em um tom de voz de
uma educação incomparável, pedir à sua filha: “Minha querida Domine, você
poderia fazer a gentileza de ir comprar para mim um caderno?”
Ela diz que não pôde deixar de provocá-lo um pouco, lembrando-o que
acabara de dizer que não escreveria nunca mais, ao que ele respondeu:
“– É verdade, mas é para fazer bastões4 [traços]! Minha mão não con-
segue não escrever.”
“Logo que obteve o caderno, ele de fato começou a fazer bastões,
conscienciosamente, duas páginas de bastões que, pouco a pouco, tornaram-
se letras.”
Artaud, nesta cena, produz quase uma mímese da gênese da escrita,
tal como os sumérios, que marcavam as plaquetas de barro com a escrita
cuneiforme. Ele nos evoca a escrita como estilo, estilete, aquilo que faz traço,
marca, revelando através desse gesto o valor de construção que ela adquire
para ele.
Em um trabalho conjunto de pesquisa com Simone Moschen e Cristina
Poli, escrevemos sobre a questão do traço do caso,5 tomando o traço “[...]
como o suporte mínimo do sujeito que permanece indelével na elaboração de
uma experiência clínica”. É um traço que conserva algo do sujeito, mas não o
representa, senão pelos seus rastros e seu apagamento. Artaud ilustra algo
da psicose, que é uma tentativa sempre incessante de escrever aquilo que,
no início, nos primórdios da vida do sujeito, não se inscreveu e que Lacan
nomeia como o Nome do Pai.

4
Baton, no original.
5
Referência ao trabalho Le trait du cas dans la clinique des psychoses, apresentado em Paris,
no Colloque International Psychanalyse et écriture, realizado entre 26 e 27 de novembro de 2010
na Maison du Brésil.
120
Construções da clínica em um Caps

O gesto de Artaud é quase uma tradução do que ocorre em certas


psicoses, em que é preciso forjar a separação do Outro, que aparece para
o sujeito sob um modo absoluto, totalizante, e que é preciso furar, perfurar,
cortar, para fazer-se um lugar, literalmente. Artaud dava às letras atributos: o
H para ele era a “letra da geração”, feita de bastões, onde via a figura de um
homem com o pênis ereto, de frente para a mulher. Ele dizia que era preciso
“devolver às letras o seu odor, o seu sexo”.
Artaud é para mim emblemático do que ocorre com muitos dos pacien-
tes com os quais nos vemos confrontados: ele sofria imensamente com sua
psicose e era, ao mesmo tempo, extremamente revoltado, inquieto, nunca
parou de delirar e de gritar sua revolta. Ele dizia que sofria “de não existir”,
como podemos ler neste fragmento:
“Eu não lembro de ter nascido
eu lembro de jamais ter nascido.” (Artaud, 2004, p. 135)6.
Ele coloca o leitor – aquele que consegue lê-lo – como testemunha
do que acontecia consigo, de sua angústia, como podemos ver neste outro
fragmento:
“Eu senti minha vida se abrir em dois...
e tive a impressão que meu corpo e minha alma....
não se colariam jamais...” (Artaud, p. 148)7
Se trago essas lembranças, à guisa de introdução, é porque os bastões
de Artaud me remetem a uma zona de articulação: de um lado, a dificuldade
de operar um recorte e tornar transmissível a experiência do trabalho clínico
de mais de 15 anos em um Caps, o Caps Cais Mental Centro e, de outro, esse
trabalho de fazer, de forjar a separação do grande Outro, como o próprio Artaud.
Um Caps, no contexto da reforma psiquiátrica, é um lugar de recepção,
acolhimento, acompanhamento de pacientes e usuários de saúde mental, ou
seja, um lugar onde nos deparamos com a clínica dos chamados “transtornos
mentais graves”, onde vamos receber pacientes em função de sintomas alu-
cinatórios, persecutórios, paranoides, alguns em estados de desorganização
psíquica importante. Há uma grande incidência de pessoas com depressão
grave, que vêm por tentativa de suicídio, numa condição de desamparo, efeito
de uma constituição psíquica extremamente frágil. Destes, um número signifi-
cativo são miseráveis, errantes, loucos de rua, que vêm através de parcerias

6
Trad. livre do autor.
7
Trad. livre do autor.

121
Ester Luiza Trevisan

construídas com abrigos, albergues, instituições religiosas, ongs, e do trabalho


de membros da equipe que desenvolvem o atendimento na rua.
Assim, nossa tarefa será de operar a fim de que o Caps possa se cons-
tituir como um lugar de encontros possíveis para os que ali aportam, dando
consistência à possibilidade de construção-reconstrução do laço social. No caso
deste Caps, essa é uma das razões pelas quais o nomeamos “Cais mental”:
lugar de arrimo, de ancoragem, onde a nau de quem passa por momentos de
crise, ou de quem vive em condições de isolamento extremo, possa aportar.
Que possa aportar, mas nem sempre é assim que se passa; por isso, às
vezes, o trabalho se dá na rua. Gostaria de evocar brevemente, a título de ilus-
tração, a situação de um acompanhamento feito a um homem que se mantinha
há longo tempo na rua e com quem a equipe que realiza as abordagens na rua
vinha fazendo algumas tentativas de aproximação. Ele se encontrava em um
estado de pauperização extrema, mantinha-se muito sujo, evacuado, urinado,
comia se lhe dessem comida, alternando períodos de mutismo e gritos, quase
sem permitir aproximação. No contexto da supervisão clínico-institucional8,
conseguimos pensar, naquele momento, que o Outro, o grande Outro, para
aquele homem, se constituíra sob o modo da violência; ele estaria como resto
para esse Outro, que se configurava para ele violento, ameaçador. Confundido
com a expulsão – com as fezes, a urina, os gritos, ele não está no controle, no
prazer. E certamente precisaríamos de um longo tempo de aproximação para
que pudesse talvez, entrar no prazer, romper com a violência.
Não há padrão que encerre a complexidade da abordagem de um caso
assim. Um dos desafios que enfrentamos, quando trabalhamos nas instituições
públicas, especialmente da área social e de saúde mental, é o risco sempre
presente de sermos engolidos por uma demanda de atender e de assistir ao
maior número possível de pacientes e usuários, sem que se leve em conside-
ração a exigência de um trabalho caso-a-caso.
Nesse sentido, este texto assume um caráter de resistência, um tempo
para pensarmos, recolhermos e compartilharmos elementos de nossa clínica.
Elementos que, numa tentativa de transmissão, criam movimentos de passa-
gem, de busca de elaborações e saídas para os impasses que surgem nesse
contexto. Caráter também de reafirmar a inscrição do discurso psicanalítico
dentro das políticas públicas: como sustentar o singular da escuta do sujeito e

8
Supervisão com a psicanalista Ana Costa, através de edital do Ministério da Saúde para os Caps.

122
Construções da clínica em um Caps

as construções com cada um dentro de um contexto que seria “para todos”? De


que modo a fazer incidir a ética psicanalítica, sem que o psicanalista venha a
se tornar um produto a mais a ser ofertado pelos serviços, pelas instituições?
Trazer à tona a clínica pode se constituir como polêmica, na medida
em que percebemos certo apagamento das questões subjetivas no campo
da saúde pública. Ainda causa surpresa quando dizemos que é necessário
orientarmos nossas ações, nossos atos, por uma atenta escuta clínica, e que
se leve em consideração o sujeito do inconsciente. Surgem vários argumen-
tos: que o tratamento seria muito demorado; que, no contexto público, não há
tempo para os efeitos de construção de que se trata na clínica psicanalítica,
que a saúde mental é um campo mais “adequado” às terapias focais, breves,
etc. Ou, ainda, fala-se de “inaplicabilidade” para determinados casos ou às
situações de crise; enfim, poderíamos continuar a enumerar muitas críticas.
Não pensamos a psicanálise como mais um objeto de oferta, trata-se de
retomarmos a interrogação que insiste para alguns de nós, que operamos no
seio das instituições públicas de saúde mental: de que modo vamos inscrever
na prática institucional as questões que o sujeito coloca à psicanálise?
A clínica no Caps opera através dos entrelaçamentos e produções
em torno de cada caso que a equipe acolhe, num trabalho de tessitura entre
vários. Algo de artesanal e de experimental, que leva em conta e que inclui
as produções singulares de cada sujeito. Podemos pensar, assim, que este é
um modo de enlace que aponta para a direção “do usuário ao sujeito”, como
forma de sustentar uma interrogação acerca da subjetividade no laço social.
Tomo essa referência do usuário ao sujeito de Ângela Jesuíno9,, que chama a
atenção para o fato de que o trabalho a ser feito pelas equipes, com casos tão
complexos, é o de “alta-costura”. É impossível operarmos neste campo com a
lógica do “prêt-à-porter”, quando tomamos cada caso em sua singularidade.
Em um Caps, vamos responder a uma demanda que se apresenta
inicialmente como psiquiátrica, mas não só. Não por acaso os Caps estão
colocados num intervalo que é o do psicossocial, pois lidar com as questões
que surgem nessa clínica exige que nossa prática se dê no diálogo e enlace
com outros campos. Quando fazemos parte de uma equipe que tem por função
acompanhar pessoas que vêm em um estado muitas vezes de limite de vida,

9
Ângela Jesuino, De l’usager au sujet, texto lido em conferência na Appoa, em setembro de 2004.
123
Ester Luiza Trevisan

colocamos constantemente à prova o nosso desejo, e nosso limite também.


Ana Cristina Figueiredo (2011), na primeira Jornada do Instituto Appoa,
apontou a questão do quanto, neste trabalho em instituições públicas, preci-
samos suportar uma série de golpes narcísicos e o esforço necessário para
não ficarmos engessados dentro da lógica da impotência.
Na sua origem, a palavra clínica, em medicina, está ligada ao olhar. O
clínico, do grego kliné, é aquele que se debruça sobre o leito do doente para
observá-lo. Foucault, em O nascimento da clínica (2004), mostra que o método
clínico que a medicina inaugurou permitiu-lhe agrupar em quadros os tipos
clínicos, instituindo um discurso sobre a doença e sobre o doente de modo a
produzir, como fato médico, elementos que, sem a constituição desse discurso,
permaneceriam como contingentes e desarticulados.
Mas, ao longo do tempo, com as novas tecnologias e o surgimento de
novas disciplinas de outros campos de saber, que não o estritamente médico
em torno dos doentes, a acepção de clínica vem se modificando. No campo da
saúde mental e a partir da experiência psicanalítica, temos trabalhado com o
conceito operatório de construção do caso clínico em saúde mental, que nos
permite pensar a clínica a partir de elementos e interrogações que emanam
de outras disciplinas, como, por exemplo, no encontro com terapeutas ocupa-
cionais, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, assistentes
sociais, artistas, entre outros.
Na construção do caso clínico em saúde mental, a psicanálise intro-
duz sua contribuição, que é de levar em consideração aquilo que o paciente
tem a dizer sobre o que acontece com ele, entendendo que o sintoma não é
mais sinal da doença, mas sinal da presença do sujeito. É a partir do que se
apresenta como enigmático na clínica que a equipe vai se reunir e construir
algo em torno desse enigma, o que exige implicação e compromisso de quem
participa dessas tentativas de resolução que o sujeito nos apresenta. Dessa
forma, torna-se importante pensar o trabalho nesse enlace transferencial que
se tece a partir das questões que o sujeito coloca para aqueles que o recebem.
Se o sujeito que chega até nós não provoca um mínimo de questões, se
vamos simplesmente enquadrá-lo em um protocolo ou em prescrições norma-
tivas, não há lugar para singularidade, funcionamos no sentido do apagamento
do sujeito do inconsciente. Em lugar de operar com um saber prévio a ser apli-
cado ao paciente do lugar de mestria, a psicanálise dá voz a um saber antes
ignorado, desqualificado, alienado. Um saber que, por se apresentar de forma
insuficientemente elaborada, deve ser construído com o sujeito, preservando-se
uma ética que marca o tempo e o compasso da construção da narrativa, em
transferência. A clínica psicanalítica é uma clínica em transferência.
124
Construções da clínica em um Caps

Quando veio para o acolhimento, Irene ainda estava em uma internação


que durava já três meses, e portava o diagnóstico de esquizofrenia. Perma-
neceu conosco de outubro de 2004 até janeiro de 2011.
De início, encontrava-se na posição de total dependência da filha, que
havia retornado para casa para se ocupar dela. Falava muito pouco, somente
quando solicitada; mesmo assim, respondia de modo quase monossilábico,
com capacidade associativa muito reduzida, levando-me a pensar nos bastões
de Artaud. Ela dizia “não lembrar”. Chorava muito, um choro gutural, que evo-
cava o choro de um bebê. Tinha o olhar assustado, às vezes falava no “vulto
de um homem” e de “um gato imaginário” que a acompanhava. Também se
queixava de anestesia corporal: dizia que “não sentia nada do pescoço para
baixo” e que “não sentia o gosto das coisas”.
Começou a ser vista por uma colega psiquiatra, que passou a interrogar o
diagnóstico de esquizofrenia. Logo no primeiro atendimento Irene lhe pergunta:
“Tu vai me curar, né?” Nesse período, a filha falava como se fossem indiferen-
ciadas: “a gente tem problemas de defecar nas calças”, dizia, referindo-se ao
fato de a mãe precisar ser orientada a ir ao banheiro. Assim como também
desabafava: “a mãe é uma bactéria que está me matando”.
Em uma primeira intervenção, propôs-se que a paciente fosse acompa-
nhada por terapeuta ocupacional, e a colega iniciou um trabalho de reconstru-
ção, através de fotos, fazendo com ela um “diário de lembranças”.
Seis meses depois de sua chegada, em equipe, decidimos levá-la para
apresentação de pacientes com Alfredo Jerusalinsky. A partir da discussão
que se deu em torno do caso, passei a receber a filha em acompanhamento,
durante alguns meses, tempo suficiente para que ela conseguisse suportar se
separar da mãe. Ela, então, retomou a faculdade que havia abandonado para
se ocupar exclusivamente da mãe. Aos poucos passou a permitir que Irene,
que começava a sustentar uma posição de maior autonomia, viesse sozinha
ao seu tratamento.
Foi importante, no decorrer do trabalho com essa paciente, a sua par-
ticipação na Oficina de expressão corporal. Encontrei o seguinte relato de
sua primeira participação nessa Oficina: “Irene, num primeiro momento, não
conseguia olhar-se no espelho e fazer os movimentos propostos, mas logo
que a terapeuta fez o movimento em espelho com ela, passou a desempenhar
os gestos sem o menor problema e, a partir daí, de modo espontâneo”. Nos
encontros que seguem passa a ser propositiva, mostrando, por exemplo, que
sabia dançar tango.
Logo que a filha voltou a residir com o seu companheiro, Irene passou a
ter novamente crises de ansiedade e fez uma importante crise de angústia que
culminou em um episódio narrado de modo quase alucinatório: “eu queria me
125
Ester Luiza Trevisan

vestir para sair, mas eu olhava para minhas roupas, em meus braços, e elas
tinham o tamanho das roupas de um bebê”. Seguiu-se uma crise de angústia
intensa, com sintomas persecutórios, o que fez com que a filha a trouxesse
para o Caps. Ela foi recebida, passou a frequentar o Centro de atenção diária
e foi a partir desse momento que ela iniciou o acompanhamento comigo.
Gostaria de destacar três tempos do trabalho com ela:
Num primeiro momento ela vem com a recomendação que lhe deixara
Alfredo na entrevista: “se lembrar, vai sentir”. Escuto-a na produção de suas
lembranças. Chora muito, não quer lembrar. Aparece nesse período um sin-
toma corporal psicossomático importante de otites de repetição que chegam
a supurar. Podemos considerar esse um tempo em que ainda está entregue
ao olhar do outro, um corpo sem voz, que convoca que o outro fale dela. Sua
busca por médicos fica justificada e a medicina se presta bastante bem a isso,
já que detém o saber sobre o corpo no discurso social. O sintoma desapareceu
quando falar não se constituiu mais em uma ameaça para ela.
Em um segundo tempo consegue trazer questões de modo mais impli-
cado: fala da maternidade, da relação à filha, da relação ao ex-companheiro,
retornam questões edípicas, associa. Há muita angústia, principalmente na
complicada relação com a filha, mas “sente” e consegue se emocionar com
suas lembranças. Tempo da produção de uma narrativa de sua história, mas
também de construção de saídas, de retomada de laços sociais, de mudança
de posição na relação ao outro. Usa de sua voz, movimenta-se.
Já num terceiro tempo, não se prende mais tanto à sua “desgraça
pessoal”. Parece ter entendido sua angústia como constitutiva. Faz e refaz
trajetórias narrativas, problematiza o seu lugar. A sombra de seu momento
de quase completa deserção de si não aparece mais com tanta consistência.
Acompanhei Irene no Caps ao longo de cinco anos. Do período de
adoecimento, ela concluiu que ficou “no ar, fora da casa, que o que houve foi
um mau contato”. Ao longo do tratamento, retomou muitas questões, voltou a
morar sozinha, a viajar, mudou de casa, fez amigos. Ao final, dizia que tinha
encontrado um bom remédio para a sua angústia, que era o de “se ligar nas
pessoas, fazer bons contatos.”
Apresento este caso porque me parece emblemático para pensarmos
o trabalho possível a partir de um Caps. A construção do caso é singular em
cada Caps, e se molda diferente em cada caso. Foi preciso um longo período
de escuta de sua narrativa, respeitar o tempo da transferência e as construções
que alguém como Irene precisava fazer, buscando outras saídas para si, que
não a de sair de si. E foi em transferência que pudemos repensar, então, o
diagnóstico inicial de esquizofrenia. Irene construiu para si possibilidades de
126
Construções da clínica em um Caps

separação sem aniquilamento, colocando nomes, objetos e lugares entre ela


e o outro. Em um tempo que lhe foi necessário para suportar sair da posição
objetalizada em que se encontrava, puro corpo de gozo que, por tanto tem-
po, a mantinha, a ela e a sua filha, encapsuladas. Irene realizou uma grande
travessia até conseguir cunhar para si outras possibilidades de encontros.
Podemos dizer que existem muitas Irenes que já aportaram e que par-
tiram do Cais. São também numerosos os que permanecem ancorados, que
tentamos abordar. Há um imenso trabalho em sustentar, no âmbito de uma
instituição de saúde pública, uma clínica do sujeito. Nessa trajetória, faço-me
acompanhar por alguns poetas. Gostaria de encerrar, então, com a citação
deste outro poeta, que também é fio na tessitura de minhas indagações clíni-
cas: trata-se de Manoel de Barros que, diferente de Artaud – que por vezes
me angustia – provoca em mim apaziguamento, escansão, contemplação,
silêncios, tão importantes em meio ao burburinho da instituição:

[...] que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica
nem com balanças nem barômetros etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encanta-
mento que a coisa produza em nós.
Manoel de Barros.

REFERÊNCIAS

ARTAUD, A. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 2004.


FIGUEIREDO, A. C. Psicanálise e atenção psicossocial: clínica e intervenção no coti-
diano. Psicanálise e intervenções sociais. Porto Alegre. APPOA. 2011.
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2. ed.
1980.
TEXIER, D. Artaud, le logicien de l’écriture. Disponível em WWW.freud-lacan.com/
champs_specialises/litterature_inconscient/Artaud_le_logicien_de_l_ecriture. Acesso
em 27/01/2013.

Recebido em 05/12/2012
Aceito em 10/01/2013
Revisado por Renata Almeida

127
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 128-138, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS
C"JKUVGTK\CÑ’Q"FQ"FKUEWTUQ"
PC"GPHGTOCTKC"RUKSWKıVTKEC

Luciane Loss Jardim1

Tguwoq< Este artigo aborda a emergência do discurso do analista, que faz circular
os quatro discursos, em um dispositivo institucional de tratamento de transtornos
mentais. Consiste no recorte do caso clínico de um paciente com diagnóstico de
esquizofrenia paranoide internado na enfermaria psiquiátrica do Hospital de Clíni-
cas da Unicamp. Dessa forma, o presente texto relata uma prática que possibilitou
um giro no discurso do sujeito da ciência, incluindo o sujeito do inconsciente, seu
desejo e gozo no processo de sofrimento psíquico. São tecidas, também, algumas
considerações sobre o discurso do analista nas instituições.
Rcncxtcu/ejcxg< psicanálise, psiquiatria, discursos, esquizofrenia, instituições.

VJG"J[UVGTK\CVKQP"QH"VJG"URGCEJ"CV"VJG"RU[EJKCVTKE"PWTUGT[
Cduvtcev< This article discusses the emergence of discourse analyst, which
circulates the four discourses in an institutional device for treatment of mental
disorders. It consists in cutting a clinical case of a patient diagnosed with paranoid
schizophrenia admitted to the psychiatric ward of the Clinical Hospital of Unicamp.
Thus, this paper reports a practice that allowed a turn in the discourse of the sub-
ject of science, including the subject of the unconscious, desire and enjoyment in
the process of psychological distress. Articulates also some considerations on the
discourse analyst in institutions.
Mg{yqtfu< psychoanalysis, psychiatry, discourses, schizophrenia, institutions.

1
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Insti-
tuto APPOA; Pós-Doutorado no Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da UNICAMP;
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP. E-mail: lulossjardim@uol.com.br
128
128
A histerização do discurso...

A s práticas clínicas em saúde mental, sejam elas realizadas nos ambulatórios,


enfermarias psiquiátricas dos hospitais gerais ou mesmo nos CAPS (Cen-
tro de Atenção Psicossocial), estão inseridas em um discurso. A formação
discursiva, segundo Focault (1995), compreende regras de funcionamento
dos objetos, das formas enunciativas dos indivíduos, dos conceitos, temas e
teorias. Uma prática discursiva se define por

um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas


no tempo e no espaço, que definiriam, em uma dada época e para
uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as
condições de exercício da função enunciativa (Foucault, 1995, p. 48).

Portanto, podemos pensar que qualquer prática profissional, por mais


técnico que possa ser seu exercício, está incluída no campo do simbólico. O
simbólico é uma função complexa que envolve toda a atividade humana e que
faz do homem um animal fundamentalmente regido pela linguagem.
O campo simbólico foi chamado por Lacan ([1969-1970] 1992) de campo
do grande Outro, e é o ponto de partida no qual o autor elabora a teoria dos
quatro discursos, articulada no seminário O avesso da psicanálise. Essa teoria
versa sobre a organização da linguagem específica das relações do sujeito com
o significante e com o objeto que determina e regula as formas do laço social.
Os discursos – a saber, discurso do mestre, discurso universitário, dis-
curso da histérica e discurso do analista – organizam-se a partir da posição dos
elementos S1, significante mestre; S2, o conjunto de significantes, designado
como saber; $, sujeito do inconsciente; e o objeto “a”, objeto causa de dese-
jo do lado do analista, e do lado do sintoma é designado como mais-gozar.
Esses elementos ocupam determinados lugares, de acordo com a circulação
dos discursos, a saber:

agente outro
verdade produção

Os quatro discursos se diferenciam a partir da posição que os elementos


ocupam nos quatro lugares marcados, cada um deles é um lugar de apreensão
dos efeitos do significante. O lugar do agente é aquele que opera o discurso,
que o coloca em movimento; o outro é o lugar ao qual esse discurso se dirige;
o lugar da verdade é aquilo que move o agente a operar o discurso; e a pro-
dução é o lugar do resultado do que se opera no discurso.

129
Luciane Loss Jardim

Lacan ([1969-1970]1992) apresenta a elaboração desses discursos por


meio de um algoritmo. Inicia propondo a formalização do discurso do mestre:

S1 S2
$ a

Nessa disposição, o S1 designa um significante que representa o sujeito


junto ao conjunto dos significantes, representado por S2. O S barrado indica
que o sujeito não é autônomo, mas atravessado pelo significante. Este, por
sua vez, determina o sujeito que não tem relação direta com o objeto “a”,
pois não existe acesso direto do sujeito ao objeto do seu desejo. O fato de o
significante mestre estar sobre a barra, sobre o sujeito barrado, demonstra
o assujeita-mento do sujeito ao enunciado de um mandamento, seu apego à
palavra de ordem.
O discurso da ciência tem a estrutura do discurso do mestre, o sujeito
fica excluído, é um corpo que sofre e que deve ser diagnosticado e tratado.
Segundo Clauvrel (1983), isso não significa que a subjetividade não esteja
presente, mas não tem nenhuma importância, pelo fato de que o discurso do
mestre se sustenta independentemente da subjetividade daquele que o enun-
cia. “A retirada da subjetividade no discurso do mestre se escreve colocando
o $ sob a barra, para mostrar que o sujeito não está no discurso manifesto”
(Clauvrel, 1983, p.170).
O sujeito barrado no discurso do mestre fica recalcado; quem sofre,
porque sofre, não é contemplado. Ou melhor, o objeto de estudo e a investi-
gação do discurso médico não levam em conta o sujeito desejante, implicado
no seu adoecer.
A objetalização do indivíduo no ato médico circunscreve o próprio cam-
po de ação da medicina, método necessário para o médico poder operar, ou
seja, exercer sua prática. O discurso do mestre é equivalente ao do sujeito
cartesiano, o qual mantém o sujeito e o objeto a sob a barra, para mostrar que
o sujeito do inconsciente não está no discurso manifesto.
Na proposição cartesiana “penso, logo existo”, a existência do sujeito
está assentada no pensamento, em um pensamento claro, com ideias bem
categorizadas, independentes das paixões, sensações, dores, inclinações,
satisfações e insatisfações. O pensamento filosófico cartesiano tem como
princípios desfazer-se de todas as opiniões, crenças e impressões que não
são capazes de fundamentar conhecimentos satisfatoriamente exatos.
Portanto, o discurso define e circunscreve como o sujeito será interpela-
do. No discurso do mestre, o sujeito está excluído pela estrutura mesma desse
discurso. É uma questão epistemológica, trata-se da metodologia médica;
130
A histerização do discurso...

portanto, nada mais condizente que esse discurso possa se ocupar do órgão
e não do sujeito; em outras palavras, a função médica será exercida na dimen-
são da demanda. Diferentemente do trabalho do analista, que se ocupará da
questão do desejo, e é a emergência do discurso do analista que fará circular
os quatro discursos, a partir do qual é possível passar de um discurso ao outro.
No contexto do ambulatório e enfermaria de psiquiatria do Hospital de
Clínicas da UNICAMP, o discurso predominante é o discurso do mestre, e o
meu ingresso ocorreu através de uma pesquisa de pós-doutoramento, que tinha
como objetivo oferecer escuta psicanalítica a pacientes com diagnóstico de
esquizofrenia. Dessa forma, houve uma aposta na possibilidade de circulação
dos discursos sustentada por mim a partir do discurso do analista. No transcurso
de minha inserção nessa instituição, os pacientes foram sendo encaminhados
pelos residentes e professores preceptores da psiquiatria. A partir da oferta,
criei uma demanda de escuta e, assim, foi se estabelecendo um trabalho junto
aos pacientes, médicos residentes da psiquiatria, enfermeiros e outros pro-
fissionais da enfermaria e ambulatório de psiquiatria do Hospital de Clínicas.
A enfermaria é a unidade de internação psiquiátrica e é um serviço
especializado no hospital geral da Unicamp. Trata-se de um dos serviços
substitutos do modelo manicomial, implementado após a reforma psiquiátrica. A
internação na enfermaria psiquiátrica do hospital é recomendada, geralmente,
para pacientes graves, casos de depressões graves, pacientes esquizofrêni-
cos paranoicos em surto, pacientes com transtornos bipolares em suas fases
maníacas, pacientes com riscos de suicídio, e também para aquelas situações
clínicas em que são necessários cuidados médico-hospitalares. São situações
clínicas graves, muitas vezes extremas, e exigem que o paciente seja hospitali-
zado para que se possa realizar a terapêutica. A hospitalização, geralmente, é
indicada quando nenhuma alternativa menos restritiva está disponível, levando
em consideração a gravidade do caso.
O discurso dominante sobre a clínica com esses pacientes é o psiqui-
átrico, que trata de prescrever as medicações e ajustar as doses. A clínica
psiquiátrica é sustentada a partir do Manual Diagnóstico e Estatístico dos
Transtornos Mentais (DSM-IV-R), que estabelece um discurso com uma es-
trutura científica sobre o sofrimento psíquico. A classificação dos transtornos
mentais está baseada em metodologia puramente descritiva e ateórica dos
sintomas e comportamentos (American Psychiatric Association, 2002.).
Nessa perspectiva, o tratamento psiquiátrico prescrito pode ser compre-
endido como discurso universitário; uma vez que se trata do prolon-gamento
do discurso do mestre. Formalizado no algoritmo:

131
Luciane Loss Jardim

S2 a
S1 $

Nessa formalização do discurso, o saber é considerado enquanto tal,


e não como relativo aos significantes que o constituem. É dessa forma que o
discurso universitário prescreve o tratamento, para extrair o mal desse corpo,
prescrição que o sujeito deve seguir à risca, se quiser se curar.
Esse enfoque privilegia um sistema que tem a pretensão de ser neutro
no que concerne às teorias etiológicas, entretanto, se configura como um
sistema pragmático e naturalista da doença (Banzato, 2009).
Nessa perspectiva, configura-se com uma posição cuja concepção
subjacente entende que a doença é alheia ao sujeito e que, portanto, a cura
também é algo externo ao doente. O sujeito é colocado no lugar de corpo-
objeto-depósito do transtorno mental e de que nada sabe sobre seu mal-estar.
Dessa forma, o sujeito é mantido alheio ao que lhe passa e também apartado
de uma possível solução.
A classificação nosográfica do DSMIV-T-R sustenta a possibilidade de
que a medicina continue avançando no que concerne às pesquisas das bases
biológicas do comportamento. Nesse sentido, o cérebro dos indivíduos é es-
tudado e se vêm descobrindo alterações neuroanatômicas e químicas relacio-
nadas aos transtornos mentais. Esses progressos deixam de lado o sujeito; o
recalque da subjetividade é constitutivo do discurso científico. Lacan ([1966]
1985) sublinhou que a psicanálise se constituiu ocupando-se do sujeito que a
ciência deixa de lado, ideia que se vinculou à ação do analista que está atento
àquilo que o médico não escuta. Esse limite da ciência é epistemológico, não
é uma questão de ausência de conhecimento da medicina, por exemplo, não se
ocupar da subjetividade, trata-se de posições distintas no que concerne ao
sofrimento psíquico.
Todavia, enquanto os avanços neurocientíficos e seus produtos, ideais
da ciência moderna, são concebidos como o tratamento quimérico para o so-
frimento mental dos sujeitos, existe uma realidade clínica de difícil tratamento.
Nessa perspectiva, quais são as contribuições que o discurso psi-
canalítico pode aportar para o sujeito da ciência? Como incluir o sujeito do
inconsciente, seu desejo e seu gozo no processo de padecimento psíquico?
Lacan assinala que “Freud [...] inventou o que deveria responder a subversão
da posição do médico pelo avanço da ciência: a saber, a psicanálise como
prática” (Lacan, ([1966] 1985), p. 94).
E o que é uma práxis? Perguntou-se Lacan ([1964] 1988), respondendo
que “é o termo mais amplo para designar a ação realizada pelo homem, qual-
quer que ela seja que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico” (p.14).
132
A histerização do discurso...

Nessa perspectiva, apresento algumas ações que trataram o real pelo


simbólico, uma práxis realizada junto a um paciente internado na enfermaria
psiquiátrica do Hospital de Clínicas da Unicamp.
Rogério era um rapaz de 35 anos e tinha sido internado na enfermaria
psiquiátrica, encaminhado do Caps, para a introdução de clozapina, uma das
drogas antipsicóticas mais potentes atualmente, uma vez que as outras dro-
gas antipsicóticas não estavam esbatendo seus sintomas. Rogério estava em
franco surto psicótico quando ingressou no serviço. O diagnóstico de Rogério
era de esquizofrenia paranoide e ele estava fazendo uso de 400 mg diárias
de clozapina.
Rogério reivindicava insistentemente e com veemência sobre a neces-
sidade de fazer um check-up médico, justificando: “minha doença é física e
não mental”. Queria consultar alguns médicos especialistas, como urologista,
dermatologista, neurologista e um gastroenterologista. Rogério dizia que estava
com uma doença venérea já há sete anos e que possuía manchas brancas em
seu pênis que não eram passíveis de serem vistas a olho nu. Falava, também,
sobre seu testículo inchado e sua falta de ejaculação, sobre seus ossos tortos,
da sensação de ter “110 kg sem estar gordo”, sobre seu pulmão que estava
travado, os gases que soltava e das dores de cabeça, pois estava “grampeado”.
Essa deterioração corporal era acompanhada de alucinações auditivas
de caráter paranoico e de inúmeras frases interrompidas. Portanto, ao ser
hospitalizado, Rogério apresentava um delírio hipocondríaco sistematizado,
sustentado pelas alucinações, o pensamento desagregado e distúrbios de
linguagem, fazendo uso de neologismos, como, por exemplo, “grampeado”.
Rogério tinha a certeza delirante de que sua doença era física e não mental. As
queixas sobre suas afecções corporais eram recorrentes em sua fala. Sentia-
se doente, sendo seu corpo invadido por uma série de moléstias sem fim. Era
atormentado constantemente pela profusão de estímulos que o afligiam, dos
quais ele não tinha nenhum controle. Dizia, de forma delirante e paranoica,
que “os lotes de medicação vêm marcados” e que eles estavam adoecendo
seu corpo. Rogério dizia que através da medicação o estavam envenenando.
O delírio persecutório remontava às inúmeras internações que Rogério já havia
sofrido. Alguns Flechsigs2 da vida o perseguiam, envenenando-o para poder
roubar suas posses.
A esquizofrenia é uma entidade clínica que, segundo Freud ([1911]
1969), se distingue dentro do grupo das psicoses por uma localização da fi-

2
A autora aqui se refere a Flechsig, primeiro médico de Schreber (caso/livro analisado
por Freud).

133
Luciane Loss Jardim

xação predisponente a uma fase muito precoce do desenvolvimento da libido,


o autoe-rotismo, e por um mecanismo particular de formação dos sintomas: o
sobre-investimento das representações de palavra (distúrbios da linguagem)
em relação às representações objetais (alucinações).
Freud ([1911] 1969), na análise de Schreber, formula a hipótese de que
há uma regressão narcisista, chegando até o abandono completo do amor
objetal e a retomada de uma satisfação autoerótica. Aponta que os delírios
de grandeza, por exemplo, são consequência do desinvestimento do mundo
externo e manifestação do retorno da libido sobre o eu, ameaçado por um
grande afluxo de energia. Nesse estádio, já houve uma escolha objetal, porém
o objeto confunde-se com o eu próprio do indivíduo. O delírio, para Freud, é
uma tentativa de cura, uma reconstrução do mundo exterior pela restituição da
libido ao objeto. Já nas alucinações encontramos a libido retirada dos objetos,
refugiada no próprio eu do indivíduo. Portanto, na esquizofrenia, a tentativa de
cura não ocorre por um reinvestimento aos objetos; trata-se de “uma primitiva
condição de narcisismo de ausência de objeto” (Freud, [1915] 1974, p. 225).
No seu artigo dedicado ao inconsciente, em 1915, Freud compara a alu-
cinação ao mecanismo posto em jogo na histeria, na formação dos sintomas.
Considera que na esquizofrenia os investimentos (Besetzungen) libidinais são
retidos na apresentação da palavra, existe uma predominância da relação de
palavra sobre a relação da coisa. Isso corresponde, clinicamente, aos distúrbios
de linguagem, o caráter rebuscado e afetado da expressão verbal, os neolo-
gismos e as extravagâncias encontrados nesse quadro psicopatológico. Nesse
sentido, Freud relata um exemplo clínico, colocado por Tausk à sua disposição,
no qual uma paciente, após desentendimento com seu amado, queixa-se: “Os
olhos dele não estão certos, eles estão alterados, distorcidos, tortos” Freud
([1915] 2006, p.46), acrescentando que “não consegue entendê-lo, cada vez
ele tem uma aparência diferente, ele é um hipócrita, um distorcedor de olhos,
ele torceu e virou os olhos dela, agora é ela quem tem os olhos revirados,
distorcidos, não são mais dela aqueles olhos, ela agora vê o mundo com
outros olhos” ([1915] 2006, p. 46). Nessa perspectiva, Freud conclui sobre a
predominância da relação da palavra sobre a relação da coisa na estranha
formação substitutiva e sintomática na esquizofrenia. Argumenta que é a
equivalência da expressão linguística e não a semelhança entre objetos que
determina esse tipo de substituição; portanto, é nos aspectos em que palavra
e coisa (Ding) não se equivalem que a formação substitutiva na esquizofrênica
se diferencia das neuroses.
Com efeito, o sintoma referente ao corpo próprio está invariavelmente
presente em pacientes esquizofrênicos, como nos atesta o exemplo clínico de
Tausk trazido por Freud. Para o esquizofrênico, a percepção do corpo próprio
134
A histerização do discurso...

é sentida como se fosse outro que o habita, pois percebe sensações de um


corpo que lhe são alheias, como se fossem de outro corpo.
Com efeito, a fenomenologia psicótica precisa ser compreendida, já
apontava Freud ([1911] 1969), como alguma coisa que foi rejeitada no interior
e que reaparece no exterior. Lacan ([1958] 1998) articula essa questão dizendo
que essa alguma coisa primordial ao ser, no sujeito, não entra na simbolização,
ou seja, não é recalcada, é rejeitada. É uma Verwerfung primitiva, ou seja, algu-
ma coisa que não é simbolizada e que vai se manifestar no real. A significação
que concerne ao sujeito é rejeitada e isso determinará a invasão psicótica.
A partir do ensino de Lacan ([1957-1958] 1999) e de sua compreensão
do fenômeno psicótico: criando o conceito de foraclusão (Verwerfung), a escuta
do discurso do paciente, além da tradicional observação de seus sintomas,
ganha relevância para o diagnóstico de psicose.
É através da escuta do discurso do sujeito que vamos encontrar os
efeitos dessa suposta não inscrição do Nome-do-Pai. Pois, diferentemente do
neurótico, encontramos aquilo que não está inscrito, a ausência da metáfora
paterna aparece através do delírio, no qual o sujeito está tentando articular
uma rede de significação que foi foracluída. Dessa forma, a formação delirante
é uma tentativa de cura do paciente.
A valorização da tentativa de cura não significa, porém, que o paciente,
através da sua construção delirante, poderia sair da estrutura psicótica. O que
se quer dizer é que ele poderá sair da crise e viver como um psicótico fora de
crise. Lacan ([1955-1956] 1992) nos ensina como identificar esses pontos de
ruptura da cadeia significante através da fala, uma fala que desnuda a estrutura
da linguagem no inconsciente.
A exigência peremptória da ordem simbólica que não foi integrada pelo
sujeito acarreta uma desagregação em cadeia, a trama da tapeçaria é desfeita,
e o delírio surge no lugar dessa subtração feita na tapeçaria, para dar conta
desse corpo espedaçado que se revela na psicose.
Esse dilaceramento corporal era denunciado por Rogério com sua para-
noia e reivindicações constantes, que já estavam sendo muito mal toleradas na
enfermaria psiquiátrica. Ninguém aguentava ouvi-lo, pois a demanda era maciça
e as queixas delirantes constantes. Dispus-me a escutá-lo, em um primeiro
momento ingressei na mesma via imaginária que os demais profissionais da
enfermaria, ou seja, persecutória.
Sabendo da impossibilidade de qualquer intervenção analítica desde
uma relação dual, tratei de situar-me em outra posição. À medida que passei
a me interessar por suas estórias delirantes sem contradizê-lo ou apontar o
absurdo das suas ideias a partir de minha lógica, Rogério passou a considerar-
me. Pode tolerar minha presença e compartilhar sem maiores desconfianças
135
Luciane Loss Jardim

sua realidade psíquica delirante. Em determinado momento, Rogério achou


que essa doutora “era esperta”, uma vez que falava sua língua.
É preciso acolher o psicótico na fala de sua língua estrangeira, como
propunha Lacan ([1955-1956] 1985). Ingressar nesse mundo fechado e encer-
rado da psicose, abrir uma porta e entrar, compartilhar com o psicótico de seu
delírio é essencial para poder fazer da psicose uma experiência da psicanálise.
Essa entrada no discurso psicótico é possível quando conseguimos
levar o sujeito a aplicar a regra analítica, a saber, a associação livre. Desse
modo conseguimos fazer girar o discurso em um quarto de volta e fazer surgir
o discurso da histérica, que se caracteriza por ser essencialmente cindido.
Nessa escuta da fala delirante do psicótico acompanhamos sua lógica de dis-
curso totalitário, e tentamos introduzir uma vacilação calculada. Um equívoco,
essencialmente verbal que faz um corte na linha dura do discurso psicótico.
No caso de Rogério, fiz uma equivocação quanto ao seu discurso para-
noico. Rogério era perseguido por um médico particular da família, interessado
em usurpar todo o seu dinheiro através do seu tratamento. Acreditava que os
remédios que estavam sendo administrados na enfermaria psiquiátrica esta-
vam marcados e envenenados. Disse-lhe, alguma coisa, no sentido de que os
remédios receitados naquele hospital para os pacientes eram comprados com
verba pública. Era a primeira, vez que Rogério, rapaz psicótico de família de
grandes posses, tinha sido internado em um hospital pelo SUS. Isso produziu
um efeito de corte, de sideração da lógica persecutória à qual Rogério estava
submetido. A crença de que o outro queria sempre lhe passar a perna, a fim de
roubar seu dinheiro, monitorar seus pensamentos e trancafiá-lo para sempre
em um manicômio cedeu.
Portanto, a partir do método proposto por Freud, a talking cure, ou seja, a
cura pela fala, houve a possibilidade de o paciente expressar suas alucinações
pela fala; à medida que isso foi ocorrendo, o paciente foi se tranquilizando e
o quadro clínico geral apresentou significativa melhora. Houve diminuição
acentuada de seu delírio, ele voltou a comportar-se adequadamente, passou
a interagir melhor com os outros e consequentemente estabelecer laços mais
efetivos.
O ato psicanalítico é uma práxis, um savoir-faire sobre o qual podemos
falar no a posteriori da experiência. A formação psicanalítica, naquilo em que
ela se sustenta, a saber, a análise pessoal, o estudo da teoria psicanalítica e
a supervisão dessa prática é aquilo que possibilita ao analista sustentar seu
fazer. O discurso psicanalítico é o único, entre os quatro discursos propostos
por Lacan, no seminário O avesso da psicanálise ([1969-1970] 1992), que se
dirige ao outro como sujeito.
136
A histerização do discurso...

Dessa forma, trata-se de estabelecermos um laço social que convoque


o sujeito do inconsciente. Nessa direção, com um quarto de volta ascendente,
produzimos artificialmente a histerização do discurso, que por sua estrutura
se opõe a todo o saber preestabelecido. O sujeito barrado no lugar do agente
produz um desejo de saber no lugar do outro, convocando o sujeito na produ-
ção dos significantes que o constituem.
Conduzi minha prática na enfermaria psiquiátrica do hospital dessa for-
ma, a partir do discurso do analista, não como um saber a mais entre tantos
outros, que toma o outro como objeto do conhecimento. Ingressar como “mais
um” na equipe, exercer uma função de alteridade é como penso que seja pos-
sível trabalhar em uma clínica feita com muitos profissionais. Penso que é a
partir desse discurso que podemos trabalhar nas instituições, pois ele é o único
laço social que trata o outro como sujeito. Nessa direção caminha o trabalho
em uma equipe interdisciplinar, pois na psicanálise trata-se de um saber que
não se sabe, e isso deve valer também para o analista ou, como propôs Lacan
([1955] 1998) ao se referir à posição do analista, que é de ignorância douta.
Dessa forma, o trabalho do analista em uma instituição se dá pela possi-
bilidade que ele tem de sustentar o discurso analítico, também fora do setting
analítico, sem tentar instituir a psicanálise como outro saber, ou um saber a
mais ou um saber sobre os demais. Pois quem institui um saber e ou uma
forma de poder é o discurso do mestre. O discurso do mestre é o discurso da
instituição, e seu avesso é o discurso do analista; sua emergência não institui
nem comanda um trabalho institucional, entretanto, causa transferência.

REFERÊNCIAS

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tornos mentais. 4. Ed. Texto Revisado DSM-IV-TR. Porto Alegre, 2002.
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137
Luciane Loss Jardim

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______. O seminário, livro 5. As formações do inconsciente. [1957/1958].Rio de Janeiro:
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______. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. [1958]. In:
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______. O seminário, livro 11, Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise.
[1964]. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
______. Psicoanalisis y medicina. [1966].In: ______. Intervenciones y textos. Buenos
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______. Seminário 17, O avesso da psicanálise. [1969-1970]. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992.

Recebido em 04/10/2012
Aceito em 22/11/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões

138
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 139-152, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS EQO"C"RCNCXTC.
QU"CPCNKUVCU<"
c"rukecpânkug"pqu"ECRU3
Volnei Antonio Dassoler2
Tguwoq< A produção recente da literatura psicanalítica demarca os avanços e os
impasses que cercam a expansão da clínica nos contextos públicos de saúde. Nessa
perspectiva, o presente estudo tem por objetivo investigar a experiência clínica conduzi-
da por analistas nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), levando em consideração
a diversidade de configurações que envolve a situação analítica nesse espaço insti-
tucional. Para tanto, entrevistas semiestruturadas foram conduzidas e posteriormente
analisadas a partir do estabelecimento de alguns indicadores que permitiram abordar
a articulação teórica e clínica que fundamenta essa prática.
Rcncxtcu/ejcxg< clínica psicanalítica, sintoma, ética, centro de atenção psicossocial
(CAPS).

PQY"YKVJ"VJG"URGGEJ."VJG"CPCN[UVU<"
ru{ejqcpcn{uku"kp"ECRU
Cduvtcev< The recent production regarding psychoanalytic literature points out advances
and impasses about the expansion of the clinic in public health care contexts. Thus,
the following study has as its aim to investigate the clinical experience carried out by
analysts in Psychosocial Care Centers (CAPS), taking into consideration the diversity
of configurations involved on the analytic situation in such institution. Semi-structured
interviews were carried out and analyzed considering the establishment of some ma-
rkers, that allowed approaching the theoretical and clinical articulation that substantiates
such practice.
Mg{yqtfu<" psychoanalytic clinic, symptom, ethics and psychosocial care centers
(CAPS).
1
Este artigo é inspirado na dissertação de mestrado de minha autoria, As in(ter)venções do analista frente
às demandas institucionais dos CAPS (PPGP. UFSM-2010). Os CAPS constituem a principal estratégia
institucional do redirecionamento da atenção em saúde mental e são destinados a acolher os pacientes
com transtornos mentais graves. Dentro de suas pretensões, destaca-se o desenvolvimento de ações
interdisciplinares e intersetoriais que visam integrar os usuários a um ambiente social e cultural concreto,
designado como território e onde se desenvolve a vida quotidiana. Por outro lado, esses serviços assumem
um papel estratégico na composição de uma rede de cuidados descentralizada, aberta e agenciadora
de cidadania. Os CAPS são definidos a partir do tamanho de sua estrutura física, profissional, e da es-
pecificidade da demanda. Os diferentes tipos de CAPS são: CAPS I e II para atendimento a adultos com
transtornos psíquicos graves; CAPSi para a infância e adolescência e CAPSad para usuários de álcool
e outras drogas, além do CAPS III para atendimento 24h durante toda a semana. Fonte: Saúde Mental
no SUS: Os CAPS, Ministério da Saúde. 2004.
2
Psicanalista; Mestre em Psicologia (UFSM); Membro da APPOA; Integrante da equipe do CAPSad
Caminhos do Sol, Santa Maria. RS. E-mail: dassoler@bol.com.br
139
139
Volnei Antonio Dassoler

Crtgugpvcèçq

O surgimento do campo psicossocial, como elaboração política e clínica para


o tratamento de usuários com transtornos psíquicos graves em substituição
ao modelo biológico hegemônico, surge com algum traço de familiaridade à
psicanálise pela participação historicamente ativa de alguns analistas nesse pro-
cesso. Por essa razão, o aspecto central do debate não deve ser a inter-rogação
sobre a pertinência ou não da psicanálise, mas, sim, como o analista deve se
situar diante de um tipo de sintoma (na psicose, por exemplo) que não responde
à estrutura freudiana da neurose e como incluir a práxis analítica nesse universo.
A despeito de algumas críticas e, inevitavelmente, de algumas pedras
no caminho, o novo aparato clínico institucional tem se consolidado como
referência aos usuários do sistema público de saúde mental, caracterizando-
se por uma concepção de complexidade na relação entre o sujeito e o seu
sofrimento. Essa nova montagem vai demandar intervenções inspiradas em
projetos terapêuticos de caráter singular, que se efetivam pelo trabalho interdis-
ciplinar e pela responsabilidade compartilhada em formatos que preservam a
heterogeneidade, avessos a qualquer forma de rigidez protocolar e discursiva.
Nesse sentido, a psicanálise tem o compromisso ético de apresentar-se
como colaboradora do projeto psicossocial em oposição às formas totalizantes,
excludentes e massificadoras de outras terapêuticas, justamente por afirmar
que a subjetivação não se faz alheia ao laço social, mas na interface com a
alteridade. Portanto, não há incompatibilidade em considerar a presença do
analista como partícipe dos tratamentos para as variações sintomáticas en-
contradas no campo psicossocial e que a experiência do sujeito demonstra.
Para a realização da pesquisa, optou-se por uma investigação que res-
saltasse o vivo da experiência dos analistas, fazendo-os dialogar com a teoria
através das suas narrativas. Foram entrevistados nove analistas participantes
de equipes de CAPS no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, interrogando-
os sobre o modo como articulam os princípios da psicanálise criada por Freud
e estendida por seus contemporâneos, com os diferentes protagonistas e com
as variadas demandas institucionais que especificam a clínica proposta pelos
CAPS. Nesse sentido, a pesquisa teve o propósito de conhecer e problematizar
as diferentes modalidades de intervenção e refletir sobre as consequências
dessa prática para a psicanálise, destacando limites e possibilidades.

Tgcnkfcfg"uwdlgvkxc"g"tgcnkfcfg"fkuewtukxc

Uma proposta possível que sustente a entrada da clínica psicanalítica


na saúde mental deve reconhecer como pertinentes os princípios orientadores
140
140
Com a palavra, os analistas...

que fundam esse universo como forma de tornar fecundo o diálogo entre as res-
pectivas instâncias. Com efeito, consideramos que o pressuposto fundamental
que as reúne, diz respeito ao reconhecimento de que a loucura é habitável, de
que há nesta ou em qualquer forma de estruturação psíquica, a manifestação
de um sujeito que não pode ser concebido nem definido alheio àquilo que lhe
surge como sofrimento. Esse entendimento ratifica o fundamento analítico de
que o sintoma é o resultado dos efeitos da desnaturalização do corpo com a
entrada do sujeito na linguagem e situa o laço social como o âmbito das trocas,
estabelecido nas relações que o sujeito comunga.
A experiência analítica reatualiza o advento subjetivo como interme-
diado pelo corte simbólico processado a partir da entrada do ser ao campo
do Outro pela incidência da falta. A linguagem, exercida como lei, introduz o
sujeito na estrutura dos discursos, abrindo, com isso, as possibilidades para
que o exercício pulsional encontre meios que promovam ligação entre corpo
e linguagem como forma de satisfação e que será, nos diz Freud, sempre em
caráter parcial. Assim, o sujeito entra na ordem simbólica e, nessa entrada,
o sintoma se produz inexoravelmente pela vigência de um corpo pulsional.
Embora estejamos habituados com a afirmação de que o analista faz
uso da linguagem como forma de acesso ao sujeito, é preciso lembrar de que
a psicanálise trata dos efeitos da linguagem enquanto a mesma incide como
traumática para o advento do sujeito, numa operação que descompleta o gozo
e institui, simultaneamente, a realidade psíquica, como uma outra realidade
distinta daquela regida pela consciência.
Essa referência é atualizada por Maron (2000), quando nos sugere que:
“presumirmos que a realidade subjetiva é discursiva e supor que o sujeito é feito
de linguagem, serve de ponto de partida para nossas ações” (p. 53). Assim,
posicionar o dispositivo clínico da fala no centro da sua práxis, através da oferta
da escuta e tomando a transferência como seu operador clínico, permite ao
analista expandir sua prática para além do modelo de atendimento individual.
Isso se faz, pois o componente simbólico, princípio mínimo necessário para
a ação de um analista, encontra-se presente inclusive naqueles sujeitos com
quadros psicopatológicos graves. Mesmo nesses casos, é possível apostar na
instauração da demanda de reconhecimento pelo endereçamento ao Outro,
através do analista.
O texto conhecido como Função e campo da palavra e da linguagem
em psicanálise ([1953] 1988) pode ser considerado um dos marcos históricos
do direcionamento que Lacan pretende dar para sua obra a partir de 1950,
ancorando o inconsciente do lado da linguagem. Com efeito, a palavra é situada
no eixo simbólico, indicando que o sintoma neurótico, da mesma maneira que

141
Volnei Antonio Dassoler

o sonho, coloca em funcionamento a estrutura da linguagem e mais, precisa-


mente, a relação do homem com a linguagem, enquanto recurso à subjetivação:

Quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a


psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente. A evidência
desse fato não justifica que se o negligencie. Ora, toda fala pede uma
resposta. Mostraremos que não há fala sem resposta, mesmo que
depare apenas com o silencio, desde que ela tenha um ouvinte, e que
esse é o cerne de sua função em análise (Lacan, [1953] 1988, p. 248).

Entretanto, para que essa proposta seja viável, é preciso estar munido
da particularidade que o conceito de sujeito adquire no campo psicanalítico.
De acordo com Figueiredo (2005), “o sujeito não é todo; ele é, antes de tudo,
um efeito. Um efeito da intervenção do Outro” que se produz a partir de uma
convocação feita a ele e que aparece sob determinadas condições:

Podemos dizer que o sujeito porta o Outro na sua própria constitui-


ção, nele se aliena e dele se separa pontualmente, parcialmente, e
nunca se faz um com o outro. O sujeito não faz Um, nem com o ou-
tro, nem com seu objeto. Nada o complementa. Pelo contrário, se às
vezes temos a impressão de estar diante de um sujeito completo, a
quem não parece faltar nada porque nada demanda, este deve estar
suspenso em seu próprio isolamento, seu autismo particular, sua recu-
sa ao Outro como ápice de sua patologia. Cabe a nós provocá-lo para
sair disso. O sujeito é uma abertura, é sobredeterminado, como nos
ensinou Freud, em sua abertura ao Outro (Figueiredo, 2005, p. 49).

Essa posição é decisiva para podermos começar a pensar nas parti-


cularidades que vão se produzir como potencialidade naquilo que se formula
como uma clínica a sujeitos não situados na neurose e que têm no contexto
institucional um aspecto fundamental do seu tratamento. Nesse sentido, é
pertinente a colaboração de Elia (2011), quando nos diz que:

O sujeito é, por tessitura, efeito de um laço social, de uma estrutura


que inclui o Outro, que é transindividual, por excelência. Isso nos
permite aproximar o sujeito da noção de coletividade, desde que a
distingamos de um agrupamento social considerado em sua con-
sistência interpessoal. Coletividade é uma categoria interessante e
conveniente para a Psicanálise e pode ser articulada com a categoria
de inconsciente (Elia, 2011, p.33).
142
142
Com a palavra, os analistas...

Na mesma direção, Goldenberg (2006) afirma que o sujeito do incons-


ciente só se apreende nos efeitos da fala, não havendo um texto anterior, escrito
ou oral que nos localize o inconsciente oculto. Assim, em um tratamento, só
há acontecimentos discursivos, aos quais se imputa um agente que deverá,
como efeito de um tempo posterior, situar um lugar ao sujeito. Com isso, não
será pela via da dedução do inconsciente, feita pelo conhecimento prévio da
genealogia de alguém, que uma interpretação vai se guiar. Esta se faz quando
fornece um sujeito ao inconsciente e isso vale, segundo o autor, para qualquer
estrutura de subjetivação.
Lacan, na sua obra, recorda que o analista, desde Freud, ocupa o lugar
de endereçamento do sintoma, daquilo que rompe com o ideal, sugerindo que o
real comparece determinado pela presentificação do simbólico que recorta seus
limites. Com isso, Lacan formaliza que a verdade do sintoma não deve mais ser
buscada na decifração de um significado oculto, visto que, pelo seu caráter de
estrutura, nunca se consegue dizer toda a verdade. Portanto, a verdade que o
sintoma revela não é relativa à aquisição de um sentido que desvela o enigma,
mas, justamente, ela é verdade ao surpreender o sujeito naquilo que ele localiza
como impossível, como furo, medida que provoca a suspensão de saber e restitui
ao sintoma seu caráter de enigma. Dessa forma, o que o sintoma recobre é a
verdade da impossibilidade do reencontro ao objeto, causa de desejo. Assim,
define Lacan:

O sintoma, aqui, é o significante de um significado recalcado da


consciência do sujeito. Símbolo escrito na areia da carne e no véu
de Maia, ele participa da linguagem pela ambiguidade semântica,
que já sublinhamos em nossa constituição. Mas é uma fala em ple-
na atividade, pois inclui o segredo do outro no seu código (Lacan,
[1953] 1988, p. 282).

Diante disso, o analista, desde seu lugar clínico, legitima a falta como
possibilidade de haver o exercício do desejo, postura que se contrapõe à
demanda de completude e cura que pode advir dos pacientes, familiares e
técnicos dos CAPS. No seminário sobre a ética, Lacan ([1959] 1991) diz: “o que
nos demandam, é preciso chamá-lo por uma palavra simples, é a felicidade” (p.
350). O que faz, então, um analista em resposta a esse pedido? Retomando o
tema pela releitura de Freud, Lacan ([1959] 1991) argumenta que, se não há
felicidade a ser alcançada, nem objeto a ser reencontrado, não pode haver,
por parte do analista, nenhuma conduta afirmativa sobre o acesso à felicidade.
Justamente por saber disso, o analista tem o cuidado de não propor, nos trata-

143
Volnei Antonio Dassoler

mentos que conduz, nenhum bem a ser alcançado, tampouco dá as garantias


de êxito do seu empreendimento.
Recolocando a questão de outra forma, Lacan menciona que não há
possibilidade de responder à demanda de felicidade, pela razão óbvia de que
propor-se a isso equivaleria pressupor a existência de um bem supremo que
concederia esse estado de plenitude. Precavendo-se dessa armadilha, Lacan
aponta a inacessibilidade a esse objeto, não somente porque “ele (o analista)
não o tem, como sabe que não existe” (p. 359). Caberia, portanto, ofertar um
bem dizer ao sujeito à medida que lhe possibilita alguma satisfação e circu-
lação no laço social, circunstância que só pode ser considerada a partir do
singular. Levando em consideração essa perspectiva, podemos afirmar que,
para a psicanálise, a ética diz respeito a uma interrogação que vincula uma
relação entre a ação e o desejo que a sustenta, articulação conceitual que
fundamentaria a operação clínica.
Como seria possível pensar a existência de um pedido de felicidade no
âmbito psicossocial, visto que, nesse cenário, o mais provável é encontrarmos
uma precariedade que alcança os níveis mais fundamentais da existência
material e psíquica? Um olhar mais atento nos possibilita assinalar que as
expectativas vinculadas ao tratamento estão associadas à aquisição ou ao
reestabelecimento de determinado padrão de conduta social, ou seja, não
há, explicitamente, um pedido de felicidade ou de plenitude endereçado aos
CAPS ou aos analistas. Precisamente ou simplesmente, o pedido almeja o
retorno a uma condição de normalidade que corresponderia a um estado de
controle psíquico, representado pelo manejo efetivo sobre aquilo que é visto
como desregramento nas condutas dos alcoolistas, toxicômanos, autistas e nas
incontáveis formas de viver da psicose. Quer dizer, a demanda de felicidade
percebida na clínica neurótica encontraria correspondência com as expectativas
de cura e adaptação no contexto psicossocial.
Parece-nos que, mesmo que o ideal esteja situado numa outra ordem de
carência, a solicitação não muda estruturalmente, ou seja, aquilo que se pede
ao analista continua sendo o impossível. Só que, nesses casos, o impossível
é vertido na garantia da abstinência do uso de substâncias psicoativas, na
aquisição de uma racionalidade neurótica para os psicóticos e numa infância
sem transtornos no seu desenvolvimento, pedidos que se afastam da ética
psicanalítica ao se colocarem do lado da moral tradicional, na qual há um saber
a priori que define o bem.
É pertinente recordar que o procedimento diagnóstico da clínica lacania-
na é pautado pela presença do significante Nome-do-pai, tomado como critério
indicativo da qualidade estrutural do funcionamento psíquico. Dentro desse
ponto de vista, o sintoma é abordado pela sua resposta à cadeia significante
144
144
Com a palavra, os analistas...

organizada em torno do significante nome-do-pai. De acordo com Lacan, só


somos capazes de operar sobre o sintoma porque esse é o efeito do simbólico
no real, ou seja, o sintoma se torna manejável, na medida em que não é puro
real, pela incidência do simbólico.
Apesar de constatar a irredutibilidade da representação da pulsão de
morte e, portanto, da interpretação significante, o analista conserva o campo
simbólico como sendo aquele de onde opera. Entretanto, a partir de agora inclui
uma nova abordagem do sintoma pela perspectiva do real, ou seja, reconhe-
cendo a presença de uma exclusão radical no processo de subjetivação que,
mesmo sem ser acessível-representável, permanece assediando o sujeito. A
verdade não reside mais no sentido, devendo ser localizada, por escansão,
no encontro com o indizível, característica que designa uma das nuances do
real lacaniano e que aparece formulada em Televisão ([1973] 1993), quando
afirma que não se pode dizer toda a verdade, na medida em que faltam pala-
vras para dizê-la toda, sendo, justamente, por essa impossibilidade material
que a verdade toca o real.
Diante dessa nova perspectiva, Viganó (2006) afirma que os últimos
ensinamentos de Lacan trazem uma potencialidade clínica para aqueles
sintomas que, na origem da psicanálise, estariam excluídos do beneficio do
trabalho de um analista. Para o autor, Lacan “deixa lugar a uma concessão
mais contínua do sintoma como resposta subjetiva à impossibilidade lógica
da relação sexual” (p. 29). Assim, a clínica que se preconiza só pode ser feita
pela estrutura particular do sujeito, o que faz com que sua política não vise
ao consenso majoritário ao seu discurso, na medida em que “oferece uma
representação social para o lugar da exceção, e age caso a caso (portanto,
não é nem ao menos uma questão de minoria” (p. 30).
Segundo Viganó (2006), diante de novos sintomas, a clínica não pode
se limitar ao binário neurose-psicose, o que representaria a reintrodução de um
critério fenomenológico, a presença ou ausência da estrutura clássica do sin-
toma analítico. Para o autor, a clínica “deve reencontrar o critério estrutural em
nível de toda resposta subjetiva, religando-se ao último Freud, que reavaliava
a defesa na base do sintoma” (p. 29). Pensar o tratamento dessa forma tem
como consequência que o diagnóstico se garante unicamente pela estrutura
particular do sujeito, que remete ao universal do desejo, mas também ao gozo
enquanto categoria singular.
Essa posição é viável por entendermos que se todo e qualquer sujeito
apresenta algo de forcluído na sua constituição, também é verdade que sempre
há algo do sujeito que se inscreve no campo simbólico, tornando-o falante a
partir do conjunto de representações com as quais dirige sua existência e com

145
Volnei Antonio Dassoler

as quais tenta lidar com a falta e com o gozo da pulsão. Como consequência
disso, o analista auxilia o sujeito a reconhecer o furo do sentido, como marca
da própria divisão, de maneira que o gozo possa circular visando adquirir algum
valor de inscrição simbólica e menos de exclusão do laço social, particularida-
des fortemente presentes na população assistida nos CAPS e que autorizam
a clínica psicanalítica a não precisar reservar-se à neurose.

Swcpfq"qu"cpcnkuvcu"hcnco000000

Estudioso da clínica na instituição, Lebrun (2004) declara que o psica-


nalista poderia postular-se como o “profissional da enunciação” (p. 199), qua-
lificação que, segundo ele, evidenciaria a especificidade do seu ofício, que,
pelo caráter particular da sua presença, promoveria um lugar para a palavra
onde o sujeito tenderia ao silenciamento mortífero. Para o autor, esse cenário
seria decorrente das circunstâncias que proliferam nos espaços institucionais
dominados pela dinâmica imaginária que se impõe ao desejo, aos corpos e
entre os semelhantes.
Segundo Lebrun, a psicanálise tem o compromisso de tomar para si
o encargo de reintroduzir a dimensão do sujeito dividido, aquele que não se
confunde com o sujeito unificado da fala e que se mostra dividido entre seu
dizer e seu dito, entre saber e verdade, entre enunciado e enunciação. Com
efeito, para fazer frente ao discurso da ciência, nova fronteira do mal-estar,
que visa ao apagamento do singular e da enunciação, o analista seria aquele
que faz retornar, com potencialidade de vida, aquilo que do sujeito emerge
como resto desqualificado e que, a priori, mostra-se como obstáculo ao bom
andamento do ideal. Diante disso, de acordo com o autor, o analista operaria
como o agente que faz furo na instituição, tendo o cuidado de não dar ao
seu discurso o caráter de histericização, risco possível para aqueles que se
mantêm fascinados pela denúncia da insuficiência dos demais discursos que
participam da dinâmica coletiva.
Por participar de um projeto institucional, alguns procedimentos da rotina
dos CAPS não remetem à prática convencional de um analista, por estarem
associados ao caráter psicossocial do serviço. Entretanto, um analista pode
contribuir com sua participação em ações desenvolvidas no CAPS, sabedor
dos lugares distintos que ocupa diante das demandas institucionais. Essa
diversidade de lugares foi percebida nas falas dos analistas entrevistados,
que destacam a relevância em demarcar a sua especificidade para atribuir ao
seu ato as condições de independência que o mesmo requer sem, com isso,
almejar concessão de uma posição privilegiada ou hierarquizada dentro da
equipe de trabalho.
146
146
Com a palavra, os analistas...

Assegurada a potencialidade transferencial que qualifica e institui as


condições para seu ato, o analista nos CAPS pode, doravante, ocupar-se da
passagem do “consultório” para o espaço coletivo como um cenário a mais
para suas intervenções. Esse novo status pareceu familiar aos analistas en-
trevistados, que atuam tanto em atividades de formato coletivo ou no próprio
ambiente de convivência, intervindo em situações de urgência, nos proces-
sos de acolhimento e de cuidado aos familiares e por intermédio de outras
estratégias que comparecem de forma expressiva nos projetos terapêuticos.
A modalidade de atendimento individual continua sendo um dispositivo
de trabalho viável e frequente ao analista que atua nesses locais; porém, a
prioridade dos mesmos em detrimento de outras formas de tratamento não
foi observada por nenhum dos entrevistados. É oportuno registrar que os
atendimentos nos moldes semelhantes à clínica privada são mais constantes
com os pacientes dos CAPSad e menos frequentes com aqueles dos CAPSi
e CAPS II. Essa situação pode ser explicada, parcialmente, pelo CAPSad
receber muitos usuários que, para além da problemática envolvendo o uso de
álcool ou outras drogas, estão referidos à estrutura neurótica.
Por outro lado, as experiências de trabalho com grupos é um dos pontos
mais nevrálgicos da prática do analista no circuito institucional, por colocar
de saída a problematização da noção de eu na psicanálise em sua dimensão
de sujeito dividido, interrogando, pelo viés da identificação, os processos de
grupo. Sobre isso, citamos o comentário de uma das analistas entrevistadas,
que atua em CAPS para crianças: Hoje em dia, eu penso que o grupo, ele faz
objeção à psicanálise... porque o que acontece? O grupo, ele faz a identificação,
é a própria análise que o Freud, mostrando que o grupo, ao invés de propiciar,
diminuir o eu, que racionaliza, que tenta barrar o inconsciente, ele faz crescer
o eu, ele é um espaço propício pras identificações egoicas, a tudo que faz
barreira, assim, pra abertura do inconsciente. Então, a nossa proposta desde
o início foi assim, receber um coletivo de crianças e jovens, mas não ter nada
que investisse em grupo.
Apesar disso, consideramos que o dispositivo de grupo somente se
mostra avesso à ética psicanalítica se a sua dinâmica ignorar a singularidade
que se estabelece na relação do sujeito com o laço social e atuar em favor
da subor-dinação do eu ao ideal do grupo, o que não parece ser a realidade
das atividades conduzidas pelos demais analistas entrevistados. Os mesmos
consideram o trabalho em grupo como um dispositivo de tratamento possível a
partir da perspectiva psicanalítica, fato que se sustenta através do estabeleci-
mento de uma rede que privilegie a dimensão significante do sujeito operando
como instrumento de acesso a linguagem na construção de laço social.

147
Volnei Antonio Dassoler

Tradicionalmente, os tratamentos previstos para os quadros graves


apresentam, em sua composição, a oferta de oficinas como uma modalidade
terapêutica privilegiada. De acordo com os entrevistados, as oficinas são in-
tervenções que permitem forjar um novo arranjo sintomático que, favorecido
pela intermediação do recurso material das mesmas, adquire a capacidade de
atrelar a pulsão à cadeia significante. Dessa forma, haveria a construção de
alguma borda que se apresenta ao sujeito como um significante que o situa no
laço social, ao servir de expediente na modulação do gozo, possibilitando que
algo do sujeito se perceba destacado do Outro. Com tal fundamentação, essa
prática torna-se comum entre os analistas, na forma de oficinas de escrita, de
cinema, de poesia, de música, de dança, de artesanato, etc.
De acordo com os analistas entrevistados, as oficinas parecem estar
mais afinadas ao modus operandi analítico, pela suposição de que as mes-
mas se projetam como instrumentos para a elaboração de escoras simbólicas
que favorecem a construção de um lugar no laço social. Isso significa que
o eixo central, que opera nessa proposta, localiza o sujeito como um efeito
da linguagem, assim como destaca ao sujeito a potencialidade desse ato e
transforma as oficinas em lugares de clínica. Esse parece o entendimento de
uma analista entrevistada para quem a participação dos sujeitos obedece à
lógica de um coletivo que não se faz todo: “É possível, desde que você tenha
uma escuta caso a caso, acho que o psicanalista vai produzindo espaços para
ir colhendo isso, pra que não se perca, tomando isso da crise que acontece,
na briga por exemplo, que isso possa ser escutado desde um outro lugar.....
de fazer uma intervenção que possa fazer com que isso possa ser escutado
enquanto possibilitador e não enquanto problemático”. Na citação anterior, o
possibilitador é a forma particular de a entrevistada dizer sobre o caráter de
subversão e criação que respaldaria a direção analítica do seu trabalho.
Corroborando com o postulado acima, destacamos a posição de To-
rossian (2011):

As oficinas são dispositivos coletivos, espaços intermediários, transi-


cionais, entre sujeitos e subjetividades, que podem produzir desvios
em relação a sentidos cristalizados. O coletivo emerge, então, do
espaçamento moebiano, é uma superfície entre a produção social e
a sua singularização, entre a psicanálise em extensão e a psicaná-
lise em intensão, entre o sujeito do inconsciente e a discursi-vidade
política (p. 181).
Portanto, para formalizar as ações do analista no CAPS, é preciso que
as mesmas estejam referidas a uma concepção de sintoma que leve em con-
sideração o trabalho pela via do significante, como recurso de mediação ao
148
148
Com a palavra, os analistas...

inconsciente e no tratamento ao real. Essa configuração não tem a estrutura


verificável pelo inconsciente freudiano e requer intervenções que dificilmente
podem ser concebidas antecipadamente por parte do analista, comportando,
assim, um grau de invenção e flexibilidade no seu manejo. Enfim, no dizer
de um entrevistado: não se é analista a priori, verifica-se, posteriormente, se
foi. Tal depoimento sugere que a presença do analista está atrelada a uma
posição de disponibilidade, conforme o depoimento de outro entrevistado: “A
gente está ali numa disponibilidade, não que vai ter a ânsia que aconteça algo,
mas se algo acontece, estamos ali no lugar de testemunho, de intervenção...”.
Com efeito, fica evidenciado que o lugar do analista nos CAPS é con-
cebido como sendo paradoxalmente ativo, estando, ao mesmo tempo, numa
posição de disponibilidade, o que deixa em suspenso os ideais de cura e de
adaptação, muito frequentes nos serviços psicossociais. Com tal perspectiva, o
sintoma não é mais interpretável como desviante da normalidade, mas tomado
como forma particular de gozo. Tal reconhecimento nos serve para indicarmos
que o analista que atua nesse cenário deve levar em conta que os dispositivos
clínicos ofertados precisam, obrigatoriamente, considerar o tipo de estrutura
psíquica dos usuários na proposição de seu trabalho, conforme esclarece um
dos analistas participantes da pesquisa: “porque a gente acha que o dispositivo,
tem que ter afinidade com a estrutura psíquica”. Tal recomendação é válida,
visto que o contexto psicossocial acolhe uma diversidade de pessoas que re-
colhem e compartilham suas histórias do ponto de vista estritamente singular,
não sendo necessariamente numa sala ou através do recurso à associação
livre que o processo vai ser desencadeado.
Como forma de sustentar essa direção, recorremos a Quinet (2009), que
nos lembra de que o particular da psicanálise não está no formalismo prático,
mas, sim, no rigor de uma ética que é particular ao oficio do analista. Tal posição
ética busca destacar o sujeito do emaranhado indistinto que, muitas vezes,
acompanha as ações nos CAPS, a despeito da pretensão de singularização
que rege sua clínica. Assim, contrariamente à disposição de universalização
e burocratização dos dispositivos, os analistas acompanham o percurso do
sujeito em tratamento, resguardando as condições que lhes possibilitem uma
intervenção guiada pela direção que o próprio sujeito apresenta, sabedor de
que essa não pode ser antecipada.
Dessa forma, a disponibilidade do analista não é pensada como uma
espera passiva, mas vista como uma atitude instigadora e provocadora de
efeitos no sujeito, conforme as declarações colhidas dos entrevistados. Ten-
do em consideração que o sintoma é uma resposta singular e que cabe ao
analista intervir dentro dessa lógica, vislumbram-se, no contexto institucional,

149
Volnei Antonio Dassoler

dispositivos marcadamente determinados por um caráter de invenção.

Eqpenwkpfq."qw00000ckpfc."pçq0

A particularidade do sujeito em tratamento nos CAPS demonstra o


enredamento do sintoma sobre o seu modo de vida, naquilo que envolve
o contexto familiar, as relações com o trabalho, os ideais sociais, o âmbito
afetivo e as condições relativas à saúde física. Tal descrição se veicula nas
narrativas dos entrevistados, sugerindo que essa apresentação se encena
no cotidiano dos CAPS. Nesse sentido, reafirmamos o caráter essencial da
relação do sujeito com o sintoma como participante da direção de tratamento,
conforme ressalta Laurent (2007), para quem “o sintoma é nossa dimensão
de ex-sistência no mundo”:

Nós ex-sistimos ao sintoma, pois há uma tensão no sintoma. De um


lado ele é um envelope formal: de outro, pedaço de nós mesmos,
acontecimento de nosso corpo. Por intermédio desse pedaço de corpo
que posso reconhecer como meu, tenho acesso ao signi-ficante do
Outro em mim, a essa mensagem vindo de alhures. Quando estou
em face do Outro, este não é exterior a mim, está em mim. Eu sou
o Outro que está lá (p.174).

Dessa forma, o sintoma alcança o estatuto de solução psíquica, de


recurso estabilizador da existência, privilegiando uma abordagem às patolo-
gias psíquicas graves, em que o analista, do seu lugar, visa promover algum
tipo de aproximação do sujeito com o Outro, via sintoma, relação cavada pela
introdução de suportes simbólicos, que possam engajá-lo no laço social. Com
efeito, o tratamento dos analistas nos CAPS pela via do sintoma se faz guiado
pela dimensão simbólica, intermediando na relação problemática do sujeito com
seu corpo e com a alteridade em decorrência da particular presença do Outro
nesses casos. Tais fatos são explicitados pela frágil inserção no laço social,
conforme as vinhetas registradas pelos analistas ao descreverem situações
nas quais entra em cena a relação com os contornos e limites do corpo através
da passagem ao ato ou do acting-out.
Portanto, a constatação da presença de uma parcela de gozo, do real,
inapreensível e irrepresentável no simbólico, não exclui o compromisso de
possibilitar brechas para que um quantum dessa energia se vincule, num outro
gozo, no gozo fálico, inscrito e reconhecido. A pulsão não é eliminável, mas
fazê-la passar pela linguagem permite incluir a dimensão do inconsciente,
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150
Com a palavra, os analistas...

do Outro e, deste ângulo, o que faz um analista no contexto institucional diz


respeito a fazer com que algo desse gozo passe pela referência ao Outro,
promovendo algum esvaziamento dessa condição pela introdução de algu-
ma referência à falta. É o gozo absoluto do entorpecimento da droga, que
prescinde de qualquer intermediação, ou o gozo na psicose, que se processa
pela invasão avassaladora do Outro sem mediação. Assim, a posição ética
do analista visa criar condições para que o sujeito possa emergir como efeito
de um significante que module a experiência sem sujeito do sintoma, a partir
de um traço que se inscreva, progressivamente, no simbólico, como tentativa
do real sair do corpo e habitar a linguagem.

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______. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. [1959] Rio de Janeiro: JZ Editores,
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VIGANÓ, C. Basaglia com Lacan. Revista Mental, Barbacena, ano IV-n.6, p.15-26,
jun-2006.

151
Volnei Antonio Dassoler

______. A palavra na instituição. Revista Mental, Barbacena, ano IV-n.6, p.27-32,


jun-2006.

Recebido em 11/11/2012
Aceito em 20/12/2012
Revisado por Renata Almeida

152
152
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 153-163, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS
SWCPFQ"C"GUEWVC"
UG"HC\"OQTCFC3
Lívia Zanchet2

Tguwoq< O trabalho no campo da assistência social tem absorvido cada vez mais
profissionais da área psi, que se veem desafiados a reinventar suas práticas para atuar
nas políticas públicas. A psicanálise em muito contribuiu para a construção da concep-
ção de um sujeito de direitos, mas faz-se necessária ainda para que as pessoas não
passem a ocupar o lugar de meros objetos das políticas públicas. Um recorte de caso
traz à cena a discussão sobre a ética do desejo, defendendo a escuta psicanalítica e a
redução de danos como elementos fundamentais no trabalho intersetorial, com enfoque
no Sistema Único de Assistência Social.
Rcncxtcu/ejcxg< assistência social, escuta psicanalítica, intersetorialidade.

YJGP"NKUVGPKPI"DGEQOGU"CFTGUU
Cduvtcev< The work on the Social Assistance field has increasingly absorbed professio-
nals of the psychology area. These professionals are finding themselves challenged to
reinvent their practices to work in public policies. The psychoanalisis has made many
contributions to the construction of a subject of rights conception, but is still necessary
so that people do not take the place of mere objects of these public policies. A piece
of a clinical case is presented to make a discussion about the ethics of desire, where
the psychoanalytic listening and harm reduction are considered fundamental elements
of intersectorial actions, focusing on the Single System of Social Assistance (SUAS –
Sistema Único de Assistência Social).
Mg{yqtfu< social assistance, psychoanalytical listening, intersetoriality.

“Tudo o que não invento é falso”


Manoel de Barros, Memórias Inventadas
1
Texto apresentado na Jornada do Percurso de Escola X da Appoa, em abril de 2012.
2
Psicóloga no Grupo Hospitalar Conceição; Especialista em Saúde Mental Coletiva pela ESP/
RS; Mestranda no PPG de Psicologia Social e Institucional da UFRGS. E-mail: liviazanchet@
yahoo.com.br
153
153
Lívia Zanchet

N o Brasil da atualidade, falar sobre direitos do cidadão tornou-se fato corrente.


O tema da cidadania e dos direitos humanos está nas escolas, nos jornais,
na televisão, nas redes sociais e, em especial, no campo das políticas públicas.
Como psicóloga que atua3 no Sistema Único de Assistência Social – SUAS –
em um município da região metropolitana, minha intenção é discorrer sobre
a psicanálise na sua perspectiva ética – ligada ao desejo, e sua inserção no
campo da política nacional de assistência social, considerando seu objetivo
de garantir direitos ao cidadão.
A assistência social como política pública é recente na história de nos-
so país. Ainda que suas referências já estivessem presentes na Constituição
Federal de 1988 (Brasil, 1988), é de 1993 a publicação da Lei Orgânica da
Assistência Social (Brasil, 1993); lei essa que estabeleceu os objetivos, princí-
pios e diretrizes das ações. Sua última modificação ocorreu em julho de 2011
(Brasil, 2011), quando ficou regulamentado o Sistema Único de Assistência
Social – SUAS. Em sua nova redação, encontramos que “A assistência social
tem por objetivos: a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução
de danos e à prevenção da incidência de riscos”. E também, o princípio de
universalização dos direitos sociais e o respeito à dignidade do cidadão, à sua
autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à
convivência familiar e comunitária.
No decorrer de seu desenvolvimento, a política tem absorvido, de forma
crescente, profissionais da área psi, chegando ao panorama atual: um grande
número de psicólogos e psicanalistas, adentrando tais portas e sendo desa-
fiados a compor suas práticas em equipes multiprofissionais, reescrevendo
formas para tal.
A psicanálise em muito contribuiu para a consolidação dessa concepção
de “um cidadão de direitos”, à medida que proporcionou o direcionamento do
olhar social para o sujeito naquilo que lhe é singular. No entanto, sua presença
enquanto ética do desejo permanece necessária, no intuito de impedir que os
usuários do SUAS não passem a ocupar o lugar de meros objetos de direitos
ditados pelas políticas públicas, tornando-se reféns das leis e da técnica.
O desejo, em psicanálise, define-se como a “falta inscrita na palavra e
efeito da marca do significante sobre o ser falante” (Chemama, 1997, p.42).
É, portanto, aquilo que move o sujeito, que o propulsiona à vida. À medida
que algo falta ao sujeito, ele pode ir em busca; sem, no entanto, conhecer

3
Esta experiência de trabalho encerrou-se em abril de 2012.
154
154
Quando a escuta se faz morada

conscientemente aquilo que busca. A falta inscrita na palavra é sempre da


ordem do inconsciente.
O que se observa no campo da assistência social é, muitas vezes, inva-
são de privacidade e vidas tuteladas, sustentadas pelo argumento de adequa-
ção a determinado padrão de comportamento ou a valores morais que tomam
proporções exorbitantes e se sobrepõem a escolhas individuais e legítimas.
O risco é cotidiano e iminente de que, na busca pela garantia de direitos, o
Estado e os profissionais que executam a política, transformem-se em meros
reprodutores da lógica de controle já apontada por Foucault em inúmeros de
seus escritos. Ao fundar o conceito de biopoder (Foucault, [1988] 2009), o
autor situa o principal dispositivo de controle da contemporaneidade, que não
se encontra fora dos sujeitos, mas intrínseco a suas relações: trata-se de um
discurso em defesa da vida e da população, um investimento sobre o corpo
vivo – para que esteja saudável, com capacidade de produzir – mas absoluta-
mente voltado aos interesses do sistema capitalista e a sua manutenção. As
práticas cotidianas no campo da assistência social, direcionadas à garantia
de direitos, à proteção de vulnerabilidades e à prevenção de riscos, se bem
observadas, carregam em si traços dessa vigilância e disciplinarização dos
sujeitos. Os profissionais, no intuito de seguir o que preconiza a política, podem
colocar em ação técnicas diversas, que produzirão apenas corpos dóceis e
bem adaptados ao sistema. Com a psicanálise, pode-se pensar no exercício
de um lugar ético e não meramente técnico, uma vez que as práticas serão
endereçadas aos sujeitos, os “usuários”, como são chamados os cidadãos
que fazem uso da política. A psicanálise não se propõe à reprodução, mas faz
frente exatamente ali onde ela pode advir; opera com a ruptura na repetição,
trazendo à tona a singularidade dos sujeitos.

Wo"ecuq."woc"ecuc

Um recorte de caso pode aqui fazer cena para algumas análises e


proposições.
Inicia-se uma história quando apresentam-me duas crianças, Julia e Ana,
por meio da seguinte afirmação: “Elas, há uns seis meses quando chegaram
aqui, eram bichinhos! Não sabiam usar o banheiro e cuspiam no chão!” E eu,
ao olhá-las, enxergava apenas duas crianças sorridentes; que, a partir daquele
momento, vinham dar-me um beijo de bom dia todas as manhãs, ao chegarem
no Centro de Referência de Assistência Social – CRAS. Dias depois, conheci
a mãe das meninas, dona Juliana. Ao primeiro contato, senti certo medo de
seu olhar penetrante e de sua fala rápida, em tom agressivo. Imagino que, da
mesma forma, ela também tenha sentido certo medo ao ter de ficar respon-
155
Lívia Zanchet

dendo a perguntas de uma desconhecida que fazia questionamentos sobre


sua vida e a de suas filhas...
Ecoava em mim a pergunta: Afinal, quem tem medo de quem? “Nós”,
profissionais que atuamos no campo das políticas públicas e buscamos ga-
rantir direitos para a população; ou “eles”, usuários dessas políticas e sujeitos
inúmeras vezes invadidos em sua privacidade por aqueles que “sabem” o que
lhes é melhor para seguir a vida? Freud, em 1918, apontava alertas relaciona-
dos a essa questão, ao pensar a condução do tratamento analítico. Dizia ele:

Recusamo-nos, da maneira mais enfática, a transformar um pacien-


te que se coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa
propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os
nossos próprios ideais, e, com o orgulho de um Criador, a formá-lo
à nossa própria imagem e verificar que isso é bom (Freud, [1918]
1996, p. 178).

Aos poucos, aproximei-me de Juliana e de suas filhas, pois frequenta-


vam o CRAS diariamente: as meninas vinham passar a manhã conosco, no
projeto de contra-turno, e Juliana vinha para buscá-las ao final das atividades.
Gradualmente, pude perceber que ali havia uma mãe buscando exercer sua
função. Ela, mesmo que envolta no terreno da psicose, sem estar referenciada
a um serviço de saúde mental do município, encontrava no CRAS algumas
ancoragens para seguir trilhando seu caminho. Relatos de outros profissionais
do SUAS evidenciavam diferenças no cuidado de Juliana com as meninas.
Há alguns anos atrás, mãe e filhas recebiam verba através do Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil, porque Juliana levava consigo as meninas
para auxiliá-la na “catação” de materiais para reciclagem. Atualmente, contudo,
não mais recebem qualquer benefício do governo; pois, ao “felizmente” terem
saído da situação de trabalho infantil, o grupo familiar foi retirado do sistema
para recebimento desse auxílio, estando automaticamente na condição para
recebimento de outro benefício, o Bolsa-Família. Contraditoramente, porém,
ingressaram no final da fila, atrás de mais de mil pessoas que aguardam ava-
liação do Governo Federal para o repasse dos valores.
Neste ponto, deparamo-nos com uma das várias pequenas armadilhas
que retiram as pessoas da condição de sujeitos de direitos para a condição
de objetos de direitos. A burocratização da administração pública promove
situações como esta: uma família que, por meio de recursos socioassistencias
consegue sair de uma condição aviltante, mas que, paradoxalmente, fica im-
possibilitada de seguir adiante. Uma vez fora da condição de trabalho infantil,
passa a ocupar uma posição que a deixa à beira de retroceder à situação ante-
156
156
Quando a escuta se faz morada

rior, pois o benefício recebido faz ainda diferença importante na sobrevivência


econômica do grupo. São impasses burocráticos como esse que permeiam o
cotidiano do fazer nas políticas públicas e que nos distanciam de efetivar, com
o sujeito, atos oriundos da instância desejante. O trabalho psíquico passa a
ocupar segundo plano, tornando-se irrelevante o investimento já realizado pelos
profissionais e pelos próprios usuários nesses percursos de reescritura de vida.
Ainda no tema da burocratização, há um segundo apontamento a ser
feito na sequência do relato. Juliana e suas filhas viviam em condições precá-
rias e insalubres: um casebre, onde a chuva passava sem qualquer barreira; a
comida, sempre em falta; cachorros, ratos e baratas dividindo o espaço com os
demais moradores, sem luz elétrica e numa estrada onde o destino único era
o depósito de lixo da cidade. Uma região não urbanizada; apenas a estrada,
os casebres e, ao fundo, o lixão. Juliana aguardava ser chamada para receber
uma nova casa, através do programa “Minha Casa, Minha Vida”. Sempre que
conversávamos, surgia o tema da casa e ela afirmava esperar ansiosamente
que ficasse pronta. Certo dia, fui a um aniversário com colegas de trabalho e,
inevitavelmente, os temas de nosso cotidiano fizeram-se presentes. Conversei
com a assistente social responsável pela entrega das casas, referi Juliana.
Escutei o seguinte: “Com essa daí eu nem sei mais o que fazer, a casa dela
já tá pronta há três meses e ela não quer saber de se mudar. O funcionário já
foi lá e ela se negou a assinar os papeis!” Naquele momento, veio-me à mente
a imagem de Juliana, com seu jeito bravo, sendo chamada à porta de casa
por um desconhecido para assinar um papel. Lembrei-me de sua condição
de analfabeta e do tempo que precisei para me vincular a ela e ter sua con-
fiança... Pareceu-me oportuno ela ter-se negado. Mesmo assim, coloquei-me
em dúvida: estaríamos falando da mesma pessoa? Para mim, há semanas
Juliana falava reiteradamente na vontade de se mudar e, de repente, escuto
da profissional responsável que essa mesma Juliana é um “dos entraves” para
a ocupação das casas...
Combinei então com a colega de trabalho que diria a Juliana no dia
seguinte que sua casa estava pronta e, após, faria novo contato com os res-
ponsáveis. Assim o fiz. Juliana afirmou-me desconhecer essa informação. O
período que seguiu funcionou como uma “luta de convencimento”: precisava
convencer a colega Assistente Social que Juliana tinha, sim, vontade de se
mudar; precisava convencer Juliana que a Assistente Social tinha, sim, vontade
de lhe entregar a casa; precisava convencer-me de que tudo aquilo não era
um delírio próprio, de que ambas falavam de suas verdades, mesmo que tão
destoantes. E deu-se a mudança.
Na perspectiva psicanalítica, estamos falando em transferência, fenô-
meno fundamental e mola propulsora da experiência de análise, definida no
157
Lívia Zanchet

dicionário de Chemama (1997) como “vínculo afetivo intenso, que se instaura


de forma automática e atual entre o paciente e o analista, comprovando que a
organização subjetiva do paciente é comandada por um objeto, que J. Lacan
denominou de objeto a” (p. 217). No recorte apresentado, é possível afirmar
a transferência como ferramenta potente, que permite a quem escuta, limpar
as interferências do registro imaginário e permitir a emergência do simbólico,
conferindo lugar ao desejo e suas derivações.
Ao saber que Juliana e suas filhas estavam na nova habitação, fui visitá-
las (na linguagem técnica da assistência social, fiz uma “visita domiciliar”). Para
minha surpresa, foi a primeira vez que Juliana recebeu-me com um sorriso
estampado no rosto. Encontrei-a na casa de uma de suas novas vizinhas. Ao
ver-me descer do carro, dirigiu-se ao meu encontro, abraçou-me e disse: “Vou
ali pegar a chave e te levo na minha casa”. Ali falava um sujeito. Um sujeito
empoderado e desejante, um caso que agora tinha casa, uma situação em que
a escuta se fez morada. No campo das políticas públicas, a psicanálise sai do
setting clássico dos consultórios privados, sua ética adentra o território vivo
e temos aquilo que vem sendo chamado de clínica ampliada (Cunha, 2005;
Betts, 2007). É a possibilidade de que os efeitos da escuta clínica possam se
fazer presentes em diferentes contextos, subvertendo lógicas instituídas e
produzindo vida ali onde antes havia anestesia. Corroborando Betts,

uma prática clínica, qualquer que seja, é atravessada pela ética psi-
canalítica sempre que leva em consideração a singularidade de cada
pessoa em sua dupla dimensão de indivíduo-cidadão e de sujeito
desejante (Betts, 2007, p. 11).

Ao adentrar sua nova casa, surpreendi-me novamente. Entramos pela


porta da frente, da sala. Havia ao centro, um fogão a lenha desativado e,
ao seu lado, no chão, um colchão de casal que, segundo Juliana, era onde
dormiam ela e as meninas. Para mim, a casa era composta de cinco cômo-
dos: um banheiro, dois quartos, uma sala e uma cozinha. Para mim, como já
disse. Pois para Juliana, o que lhe importava estava ali na “sala”: o fogão e a
cama. Significantes remetidos comumente a necessidades básicas: comer e
dormir. Vidas que, até aquele momento, ocupavam-se dessas necessidades.
Não havia como ir além do básico. O banheiro estava ainda sem chuveiro, e
os quartos, lotados com os pertences da família – roupas, bolsas, sapatos,
panelas.... Enfim, muita coisa. E nesse olhar para um território habitado num
formato por mim inesperado, outra pergunta ocorreu-me: Basta que haja uma
casa para que esta se torne uma morada?
158
158
Quando a escuta se faz morada

Nesse dia, percebi que muito trabalho haveria pela frente. Um trabalho
sensível e delicado, que não poderia forçar construções psíquicas fragilmente
sedimentadas e ao mesmo tempo tão valiosas. Ouvi de Juliana, enquanto
apontava o dedo para a casa ao lado, mostrando um fogão a lenha a funcionar
sem a saída de fumaça instalada: “Não vou deixar acontecer aqui que nem o
louco do vizinho! Aquele ali não bate bem das ideias! Olha o meu teto: bem
branquinho; e ele lá, preteando tudo!” E nessas frases escutei que ali havia,
sim, uma morada, havia um espaço habitado e afetivo, havia apropriação e
desejo. Ali falava um sujeito.
A redução de danos e a escuta – diretrizes e amarragens no trabalho
intersetorial

E como dar sequência ao acompanhamento desse grupo familiar?


Há que se considerar os riscos em sua situação de vulnerabilidade
e entender que em alguns momentos é, sim, necessária a tomada
de atitudes mais ativas e, à primeira vista intervenientes. Freud no-
vamente pode auxiliar-nos a partir do que escreve em 1918 (Freud,
[1918] 1996):
Não podemos evitar de aceitar para tratamento determinados pacien-
tes que são tão desamparados e incapazes de uma vida comum, que,
para eles, há que se combinar a influência analítica com a educativa;
e mesmo no caso da maioria, vez por outra surgem ocasiões nas
quais o médico é obrigado a assumir a posição de mestre e mentor.
Mas isso deve ser feito com muito cuidado, e o paciente deve ser
levado para liberar e satisfazer a sua própria natureza, e não para
assemelhar-se conosco (p.178b).

Em O mal-estar na civilização (Freud, [1930] 1996), outra contribuição


de Freud para essas indagações refere-se à condição de total desamparo
em que se encontra um bebê ao nascer, e da proteção do pai que se lhe faz
necessária. Em relação à mãe, trata-se da necessidade de que o outro lhe
ceda algo seu, empreste-lhe o seu desejo para que, dessa forma, ele consiga
ir em busca de algo. No texto sobre o estádio do espelho, Lacan ([1949] 1998)
afirma que tal estádio

[...] é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para


a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo
da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma
imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que
chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de
159
Lívia Zanchet

uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo
o seu desenvolvimento mental (p.100).

Essa ideia se aplica ao trabalho com a clínica das psicoses, mas enten-
do que pode também servir a uma aproximação com o campo da política de
assistência social, pois acabamos por emprestar nosso desejo aos usuários,
não de maneira a se sobrepor ao que já tenham construído, mas para compor
com suas construções frágeis. É nosso desafio encontrar a delicadeza num
terreno em que há muito de brutalidade. Histórias de vidas violentas e violen-
tadas, vidas abandonadas, vidas desesperadas e desesperançadas. Ali onde
está o buraco, há que se colocar uma suplência, ainda que temporária, mas
profundamente necessária. Soares, Susin e Warpechowski (2009), nesta mes-
ma direção, propõem a clínica da assistência social promovendo um lugar de
investimento libidinal, ao dizer que, muitas vezes, a iniciativa se coloca primei-
ramente do lado do psicólogo até que o sujeito possa, ele próprio, demandar,
sustentar e exigir atendimento.
E nesse olhar atento ao perigo da sobreposição anteriormente referida,
pensar a prática a partir da redução de danos pode ser alternativa. O concei-
to de redução de danos ampliada vem sendo utilizado para referir-se à sua
aplicação como estratégia para além do trabalho com usuários de drogas e
portadores de HIV, mas inserida no campo das políticas públicas, visando
prevenir quaisquer danos à vida antes que eles aconteçam. Ela constitui-se
como uma diretriz de trabalho, pressupondo a flexibilidade no contrato com
o usuário e o estabeleci-mento de vínculo, facilitando assim o acesso às
informações e orientações e estimulando sua ida aos serviços, por meio de
propostas diversificadas e construídas singularmente. Segundo Rose Mayer
(Conte et al., 2004), a redução de danos é um paradigma a partir do qual se
parte do real existente, para uma situação melhor e possível. Ela relaciona-
se com a interdisciplinaridade, pois o “real” e o “possível” podem ser vistos a
partir de vários olhares; além de pressupor autoria e protagonismo, pois é o
sujeito que vai poder avaliar o “real” e o “melhor”. É um processo educativo,
de construção de escolhas que pode, portanto, ser transposto para o campo
da assistência social.
Alcançar transformações consistentes em situações complexas como
as que são atendidas diariamente pelo campo da política de assistência social
requer, inúmeras vezes, o envolvimento intersetorial dos diferentes atores que
compõem a rede de atendimento – saúde, educação, habitação, cultura. São
raros os casos em que um usuário do SUAS não faça uso também do Sistema
Único de Saúde (SUS) e da rede de ensino de sua cidade. A construção da
intersetorialidade já está colocada no discurso social, mas é com resistên-
160
160
Quando a escuta se faz morada

cias que se torna ação. E um dos grandes riscos da prática intersetorial é a


fragmentação do sujeito. Ao trabalhar na rede, testemunham-se situações
assim com certa frequência e, paradoxalmente, aquilo que deveria fortalecer
o sujeito e potencializar o trabalho – essa rede composta por vários recursos
assistenciais – acaba responsável por seu despedaçamento e fragmenta-
ções. Os diversos olhares sobre os casos podem produzir movimentos não
sintonizados, com diferentes direções. Em situações como essas, a escuta
psicanalítica pode funcionar como o fio condutor e de amarragem entre os
diferentes setores. O cuidado sustentado na escuta clínica pode testemunhar
a vida e fazer permanecer aquilo que há de singular no sujeito, ao serem en-
cadeadas as intervenções da rede. Com a ética psicanalítica garante-se um
norte, o norte do desejo.
Trabalhar no campo das políticas públicas – sejam elas de educação,
saúde, habitação ou assistência social – exige dos profissionais conhecimentos
acerca do fazer público, dos princípios e diretrizes que o regem, da Constituição
Federal e das leis específicas que dizem respeito a cada uma dessas políticas.
Porém, esses conhecimentos não são por si só suficientes para garantir aos
sujeitos atendidos seu lugar de cidadãos de direitos e deveres. Às vezes, é
exatamente nessa busca que as políticas públicas acabam acarretando custos
altos aos sujeitos, se desconsideram o valor da singularidade e das escolhas
de cada um. Universalizar e garantir direitos, sim. Desde que não ao preço do
apagamento da diferença, do sujeito, do desejo.
Para encerrar este ensaio, a escrita de Manoel de Barros (2010) Sobre
importâncias, um motor na abertura de sentidos e no exercício desejante de
cada leitor:

Um fotógrafo-artista me disse outra vez: veja que pingo de sol no


couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro
no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se
mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encanta-
mento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos
de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos
Andes. Que um osso é mais importante para o cachorro do que uma
pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais
importante para os arqueólogos do que a Torre Eiffel. Que uma bo-
neca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma
criança é mais importante para ela do que o Empire State Building.
Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma
Usina Nuclear. Sem precisar medir o ânus da formiga. Que o canto
161
Lívia Zanchet

das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos
do que os ruídos dos motores de Fórmula 1. Há um desagero em
mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito
do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem
algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que
eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas
do que com homens doutos.

REFERÊNCIAS

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São


Paulo: Planeta do Brasil, 2010.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaoA7ao.htm. Acesso em
27.03.2012
______. Presidência da República. Lei Orgânica da Assistência Social, n. 8.742, de 7
de setembro de 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8742.
htm. Acesso em 27.03.2012
______. Presidência da República. Lei n. 12.435, de 6 de julho de 2011. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12435.htm. Acesso
em 27.03.2012
BETTS, Jaime. A clínica ampliada na psicanálise. Correio da APPOA. Porto Alegre, n.
156, abril 2007.
CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
CONTE, Marta & al. Redução de danos e saúde mental na perspectiva da atenção
básica. Boletim da Saúde. Núm. 18. Vol. 1. Porto Alegre: jan./jun. 2004.
CUNHA, Gustavo Tenório. A construção da clínica ampliada na atenção básica. São
Paulo: Hucitec, 2005.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – a vontade de saber. Vol. 1. São Paulo:
Edições Graal, 2009.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização [1930]. In: ______. Edição standard das
obras psicológicas completas. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. Linhas de progresso na terapia psicanalítica [1918]. In: ______. Edição standard
das obras psicológicas completas. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu [1949]. In:
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

162
162
Quando a escuta se faz morada

SOARES, Janete.; SUSIN, Luciane; WARPECHOWSKI, Marisa Batista. A clínica am-


pliada na Assistência Social. In: CRUZ, Lilian; GUARESCHI, Neuza (orgs.). Políticas
públicas de assistência social – diálogos com as práticas psicológicas. Petrópolis:
Vozes, 2009.

Recebido em: 10/08/2012


Aceito em 10/09/2012
Revisado por Sandra D. Torossian

163
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 164-172, jul. 2011/jun. 2012

KPVGTXGPÑ÷GU"EN¯PKECU"
GO"EQPVGZVQU"FG"GZENWU’Q<
TEXTOS tgcuugpvcogpvq."
wo"nwict"c"eqpuvtwkt3
Janete Nunes Soares2
Luciane Susin3
Marisa Batista Warpechowski4

Tguwoq< O trabalho trata da intervenção clínica desenvolvida numa comunidade de Porto


Alegre que sofreu processo de reassentamento. Esta prática orientada pela psicanálise
buscou articular os direitos sociais e a dimensão subjetiva. A intervenção ocorreu pelo
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), através da criação
de espaços de escuta individuais e coletivos em que a vivência do reassentamento
pudesse encontrar reconhecimento e testemunho. O desafio neste trabalho é intervir,
entrelaçando a dimensão clínica, política e social, possibilitando ao sujeito se reinventar,
criando laço social de inclusão.
Rcncxtcu/ejcxg< clínica, exclusão social, reassentamento urbano, assistência social,
políticas públicas.

IPVGTXGPVKQPU"KP"ENKPKECN"EQPVGZVU"GZENWUKQP<
tgugvvngogpv<"c"rnceg"vq"dwknf
Cduvtcev< The paper analyzes the effects of a clinic intervention developed with a group of
residents of a community in Porto Alegre. They had suffered a process of resettlement. A
clinical practice oriented by psychoanalysis in the context of social exclusion and violence,
seeking to articulate social rights and subjective dimension. The intervention occurred
from the Center for Specialized Social Assistance Reference (CSSAR), through a liste-
ning space in which the experience of relocation and its effects could be recognized and
testimony. The challenge is to intervene interlacing clinical, political and social, allowing
the subject to reinvent itself, creating social ties of inclusiveness.
Mg{yqtfu< clinic, social exclusion, urban resettlement, social assistance, public politic.

1
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e intervenções sociais, em se-
tembro de 2011, Porto Alegre.
2
Psicóloga; Psicanalista; Supervisora da Rede de Alta Complexidade da Fundação de Assistência Social
e Cidadania da Prefeitura Municipal de Porto Alegre; Coordenadora do Grupo de Trabalho Saúde Mental
na Assistência Social. E-mail: jnunessoares@hotmail.com
3
Psicóloga; Psicanalista; Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Compõe a equipe do
Centro de Referência Especializado em Assistência Social da Fundação de Assistência Social e Cida-
dania da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E-mail: luciane.susin@gmail.com
4
Psicóloga; Psicanalista; Especialista em transtornos do desenvolvimento na infância e adolescência.
Compõe a equipe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social da Fundação de Assis-
tência Social e Cidadania, Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E-mail: marisabw@gmail.com
164
164
Intervenções clínicas em contextos de exclusão...

E ste trabalho trata de uma prática clínica orientada pela psicanálise num
contexto de exclusão social e violência, a partir do acompanhamento
de uma experiência de migração urbana ocorrida em uma comunidade na
região centro de Porto Alegre, que se produziu através de ação de remoção
e reassentamento.
Desenvolvemos este trabalho com um grupo de famílias da Vila Choco-
latão, durante o processo de reassentamento dessa comunidade para outra
região da cidade, tendo em vista a reapropriação pela União do terreno onde
a Vila se situava. Nossa intervenção é legitimada pelo trabalho que desen-
volvemos junto à Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) da
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, através dos serviços socioassistenciais
que compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), conjugada à
ética psicanalítica.
O trabalho ocorreu a partir do Centro de Referência Especializado de
Assistência Social (CREAS) Centro, e buscou articular a dimensão dos direitos
sociais com a criação de um espaço de escuta e acompanhamento em que a
vivência do reassentamento e os seus efeitos subjetivos pudessem encontrar
reconhecimento e testemunho. Realizamos intervenções individuais e coletivas
junto ao grupo de moradores, disponibilizando espaços de escuta.
Participamos de uma rede de discussão com as demais secretarias
municipais envolvidas no processo, órgãos públicos federais do entorno e
moradores da Vila. Durante todo o processo, acompanhou-se a relação com
as demais políticas públicas na perspectiva do acesso aos serviços e da ga-
rantia dos direitos sociais. Compôs-se uma rede, em que algumas ações das
secretarias municipais foram tendo lugar e visibilidade na comunidade.

Xknc"Ejqeqncvçq<"fq"vgttkvôtkq"cq"nwict

“Toda representação contém seu traço de saudade e seu resto de


silêncio – de algo que já não está, de algo que nunca se entregou inteiro à
simbolização” (Kehl, 2000, p. 140).
A Vila Chocolatão passou a ser ocupada há mais de 20 anos por famílias
que estavam vivendo em situação de rua e que habitavam nas proximidades,
embaixo de pontes, marquises e acampamentos na margem do rio Guaíba.
Aos poucos, as famílias foram recolhendo das ruas restos de madeiras e
compensados até erguerem seus pequenos barracos.
A Vila localizava-se no centro da cidade, posição que a diferenciava das
demais comunidades periféricas tão comuns nas grandes cidades. Situava-se
entre prédios públicos e pontos turísticos (Tribunal Regional Federal, Instituto
165
Janete Nunes Soares, Luciane Susin e Marisa Batista Warpechowski

Brasileiro de Geografia e Estatística, Câmara de Vereadores, Galpão Crioulo,


Parque Harmonia Gasômetro) e também ao lado do prédio da Receita Federal.
Este prédio, de arquitetura moderna, é todo em vidro marrom, e o seu formato
e cor fazem lembrar uma imensa barra de Chocolate, ficando conhecido pelo
nome de Chocolatão. Como esse prédio constituía um marco de referência, a
Vila que foi se formando ao lado também adotou esse nome, ficando conhecida
por Vila Chocolatão.
Nessa comunidade, os moradores vivem em condições extremamente
precárias, em que nada está assegurado – nem mesmo o alimento do dia.
As casas situam-se em zona irregular e de risco; o trabalho é precário, sem
nenhum direito; em geral, trabalham com aquilo que os demais descartam,
recolhendo o lixo que a sociedade produz. O trabalho com a reciclagem é a
atividade preponderante entre os moradores, sendo que alguns trabalham em
cooperativas de serviços gerais, em que os direitos trabalhistas não lhe são
assegurados.
O tráfico de drogas e a violência encontram lugar como em tantas outras
comunidades pauperizadas nas fronteiras porosas entre o legal e o ilegal, o
formal e o informal, o lícito e o ilícito. Conforme Telles e Hirata (2007, p. 173),
“um cenário urbano no qual se expande uma ampla zona cinzenta que torna
incertas e indeterminadas as diferenças entre o trabalho precário, o emprego
temporário, expedientes de sobrevivência e as atividades ilegais, clandestinas
ou delituosas”.
A vida na Vila é marcada pelas condições de exclusão, pois não há água
encanada, nem luz com ligação regular (as ligações elétricas são clandestinas,
os chamados “gatos”), o que já foi responsável por inúmeros incêndios nessa
comunidade, inclusive com morte de adultos e crianças; não há saneamento
básico, ficando o esgoto a céu aberto. Quando chove, tudo fica tomado pela
água e pelo lodo, restringindo a circulação e o deslocamento dos moradores.
As casas são pequenas, reduzindo-se a uma peça na maioria delas,
onde tudo é compartilhado – o lugar de estar, comer, dormir, trabalhar. O lixo
invade as casas, pois, nas mesmas, os moradores guardam e separam o
material coletado nas ruas.
O contexto de aridez da Vila Chocolatão contrasta com o doce a que
alude seu nome. A possibilidade de ter acesso a uma casa legalizada, em
melhores condições, em terreno urbanizado – passando a existir no mapa
oficial da cidade – representava um sonho para muitos.
Por outro lado, esses moradores sabem que, além da casa, necessitam
viver num território onde também possam ter acesso aos demais bens e servi-
ços que tornam a vida digna. Estavam inseridos nos serviços da região, como
escola, creche, posto de saúde e centros de assistência social. O centro da
166
166
Intervenções clínicas em contextos de exclusão...

cidade é uma região muito rica na produção de resíduos, garantindo o trabalho


de coleta. Construíram uma rede de apoio informal, composta por moradores do
entorno, igrejas, restaurantes que auxiliavam com alimentos, roupas, móveis.
Assim, diziam: “O centro é muito rico e aqui ninguém passa fome”.
Ao dar lugar às falas carregadas de angústia frente à mudança e ao
enfrentamento com o novo, também se apresentava o desejo de permanecer
no lugar onde estavam. Os moradores se perguntavam se, nesse novo terri-
tório, teriam acesso ao que já haviam conquistado, referindo-se aos serviços
que usufruíam. As falas apontavam para certa forma de exílio, na medida em
que faziam referência a uma distância, a um lugar muito longe: “As casinhas
são muito longe, lá no fim do mundo”.
A ruptura com o território que conferia identidade a esse coletivo afetaria
a rede de relações que haviam construído. Sabemos que justamente nesses
grupos que vivem em situação de exclusão e alijamento, essas relações cum-
prem papel fundamental na configuração de sua inscrição social. Conforme
Haesbaert (2004, p. 4): “[...] muitas vezes, [...] é entre aqueles que estão mais
destituídos de seus recursos materiais que aparecem formas as mais radicais
de apego às identidades territoriais”.
Como outras migrações brasileiras, a remoção da Vila Chocolatão —
vista pelo ângulo da sua causa — caracteriza-se como migração forçada, em
razão de não representar inicialmente o desejo da comunidade. Essa migração
atende ao jogo do mercado, no qual os direitos dos cidadãos, por muitas vezes,
encontram-se suprimidos (Santos, [1987] 2007).
Para Haesbaert (2004), o território funcional é aquele de onde se retiram
os recursos e as matérias-primas, possibilitando a produção e agregando a
função de proteção e abrigo. O território simbólico é onde se produzem sig-
nificados, trocas afetivas, formas de viver, enfim um lugar de pertencimento:
“[...] todo o território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes
combinações, funcional e simbólico, pois exercemos o domínio sobre o es-
paço tanto para realizar suas ‘funções’ quanto para produzir ‘significados’”
(Haesbaert, 2004, p. 3).
Na medida em que se produz o reassentamento, é necessário também
a apropriação do novo território, e nossa aposta é de que, pela palavra, os
moradores possam construir simbolicamente o novo lugar e, assim, fazer re-
sistência à violência que um processo como esse pode produzir. A colocação
em palavras permite deslocamentos e rearranjos de sentidos, possibilitando
narrativas que reorganizam a experiência passada, modificando seus efeitos
no presente.

167
Janete Nunes Soares, Luciane Susin e Marisa Batista Warpechowski

Como nos lembra Milton Santos ([1987] 2007, p. 81): “Quando o homem
se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece,
cuja memória lhe é estranha, esse lugar é sede de uma vigorosa alienação”.
Cultura e territorialidade, na concepção do autor, são como sinônimos,
pois, em ambos, está contida a herança e também o resultado obtido por
intermédio do próprio processo de viver. Bem como refere que “as migrações
agridem o indivíduo, roubando-lhe parte do ser” (Santos, [1987] 2007, p. 81),
obrigando-o a nova e dura adaptação ao novo lugar.
O trabalho de escuta foi muitas vezes o de possibilitar que os moradores
tomassem a palavra, transformando a vivência dolorosa silenciada em uma
experiência compartilhada.

Pcttcvkxc"g"Vguvgowpjq

O reassentamento atingiu a todos, e o nosso trabalho foi propiciar uma


narrativa que oferecesse lugar à implicação singular de cada morador. Narrati-
vas que pudessem testemunhar as histórias dos moradores – e da comunidade
– e construir uma memória que trouxesse tanto as marcas da exclusão, como
o potencial de inscrição que possibilitou a cada um viver na Vila Chocolatão.
A Vila representou um lugar de acolhimento, reconhecimento, inscrição,
perdas e dores. Foi também lugar de passagem, trânsito e nascimento. Nos
espaços coletivos, através de rodas de conversas, buscamos a recuperação
da memória, da historicidade, do testemunho dos primeiros moradores da Vila,
que foram seus fundadores, e de como as histórias puderam ser comparti-
lhadas. Nesses espaços, recortamos os significantes que possibilitassem o
reposicionamento subjetivo.
Para Lacan ([1953] 1998, p. 263):

[...] o que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente


é a sua história – ou seja, nós o ajudamos a perfazer a historicização
dos fatos que já determinaram na sua existência certo número de
“reviravoltas” históricas. Mas se eles tiveram esse papel, já foi como
fatos históricos, isto é, como reconhecidos num certo sentido ou
censurados numa certa ordem.

Assim, constituímos alguns dispositivos clínicos; entre eles, a construção


de uma linha do tempo em que cada um situou sua chegada à Vila, descre-
vendo como chegou ao lugar e as transformações que produziu. Dona Iara
fala com emoção que foi no Chocolatão que teve sua primeira casa, que saiu
da rua, de baixo do viaduto, e que ali estava conseguindo criar três dos seus
168
168
Intervenções clínicas em contextos de exclusão...

oito filhos. Luiza nos conta que sempre viveu na Vila, pois foi ali que nasceu
e também que teve sua filha.
Nesse dispositivo, surgiram memórias das vivências traumáticas da
violência, morte e destruição da Vila pela ocorrência de 13 incêndios, ao longo
dos últimos anos. Os incêndios representaram marcos de temporalidade, e
os moradores falavam do horror de viver sob o perigo de destruição e a pos-
sibilidade de novas perdas.
Destacamos o movimento de destruição e reconstrução do espaço
da Vila, que reconfigurava os traçados da vida a cada incêndio, constituindo
marcos de referência histórica. A partir do significante “incêndio”, outros foram
sendo encadeados, como “Vila incendiária”, “Vila assassina” e “Vila do horror”,
sentidos atribuídos socialmente, que não deixavam espaço para expressão
da vivência traumática. Como nos trazia Carla: “Perdemos com os incêndios,
perdemos muito, nossos documentos, nossas coisas, nossas vidas, tememos
pelos nossos filhos”.
Trabalharam-se as relações de vizinhança e as redes afetivas, na tenta-
tiva de construir distâncias que pudessem preservar algo de intimidade, num
espaço em que a proximidade excessiva das casas fragiliza a separação entre
o público e o privado. Procuramos trabalhar esses elementos através da criação
de uma colcha de retalhos, onde o desenho da casa desejada representava
uma posição no coletivo e teve como efeito a escolha do local da casa no novo
endereço. Cada um pode dizer com quem gostaria de “vizinhar”, assim como
daqueles que gostariam de preservar distância.
Circulamos por lugares considerados significativos, construindo um
mapeamento afetivo com os moradores, na perspectiva de articular a memória
dos moradores a um lugar – a vila, a cidade. Os encontros eram realizados na
comunidade, no parque, na associação de moradores, na praça, na sombra
das árvores. Ao percorrer esse trajeto, percebemos o efeito de uma expansão
do território e reconfiguração de limites que puderam ser compartilhados.
Esses lugares foram fotografados, constituindo-se, posteriormente, em
uma mostra fotográfica. Adriana fez questão de fotografar o interior de sua
casa, pois se sentia bem nela, sendo que ali conseguiu ter uma casa, suas
coisas, e cada objeto da casa representava muito para ela. Manuela gostaria
de fotografar uma árvore da entrada da Vila, local onde sua filha nasceu.
Nesse trânsito, seguíamos fotografando, conversando, ouvindo as histórias e
formulando questões sobre o novo local de moradia.
No novo local, visitamos a obra, conhecemos as casas, percebemos
as diferenças entre elas, falamos das preferências de cada um em relação a

169
Janete Nunes Soares, Luciane Susin e Marisa Batista Warpechowski

morar num sobrado ou casa térrea, circulamos pelo território, visitando alguns
serviços e conhecendo algumas equipes.
Ao final de 14 meses, é chegado o momento de transferência das fa-
mílias para a nova moradia, nomeada pelos moradores de Residencial Nova
Chocolatão.
Destacamos que a escolha do nome, decidida em assembleia de mora-
dores, preservou traços identificatórios, de forma a servir-se do passado para
inventar o novo.
A possibilidade do novo convivia com a insistência da destruição, pois,
durante o processo de remoção das famílias, que transcorreu durante alguns
dias, o que se presenciou foi muita destruição, em que a desfiguração do
espaço foi determinante na angústia dos moradores.
As casas vizinhas, as ruelas, a associação de moradores, as entradas
da Vila, os bares da comunidade, os becos, não existiam mais, a não ser na
memória, ainda recente e frágil para o momento do acontecimento. Estavam
ali a Polícia Federal, a Brigada Militar, os guardas municipais, técnicos de
várias secretarias, retroescavadeiras e muitos escombros. Parecia cenário de
guerra. Um morador refere: “Aqui parece o Japão”. Estava certo. Falava de
uma catástrofe, de algo com o poder de arruinar, de não deixar nada. Com os
pertences encaixotados para a mudança, outra moradora diz: “Nos deixaram
aqui, pior que animais”. Também contundente em sua fala, pois essa remoção,
considerando a acepção de Milton Santos ([1987] 2007), guarda pouco do que
podemos considerar humano.
Numa postura de resistência frente à destruição que imperava, Julio
inicia, ele mesmo, a desmanchar sua casa, tornando-se protagonista, ao
transformar o que poderia ser perda em ganho, uma vez que sua intenção
era a de vender as madeiras da casa: “Não vou deixar destruir, isto aqui é
madeira boa, já vendi”.
Para Endo (2005, p. 71):

A abertura de espaço mediante a destruição de lugares tem êxito


assim que os moradores desconhecem o seu lugar, ao percebê-lo
completamente desfigurado e destruído, instante que a presença ali
perde o sentido, e o morador que resistia percebe-se atemorizado
e em grande perigo. O espaço já invadiu os lugares e sua presença
física torna-se então, repentinamente, descontextualizada e indese-
jável. A circulação do cidadão, própria e singular, que só pode ser
exercida pelo corpo contextualizado, inscrito em um determinado
lugar, é bruscamente impedida e inviabilizada.

170
170
Intervenções clínicas em contextos de exclusão...

Recuperar a potência da palavra em contextos tão áridos está em


consonância com o princípio ético da psicanálise e se apresenta como uma
especificidade do trabalho. Pois, para que a lembrança dolorosa encontre
significações e possibilite aberturas discursivas é necessária uma passagem
do vivido ao narrado, sendo que, ao narrar, suportamos perder o que ficou
para trás. Para Lacan ([1953] 1998, p. 258), “é justamente a assunção de sua
história pelo sujeito, no que ela é constituída pela fala endereçada ao outro,
que serve de fundamento ao método na psicanálise”.
Assim, procuramos recuperar e preservar a memória da comunidade e
também inscrever uma partida, fazer uma despedida, um luto. Construir uma
aposta de futuro e abertura para apropriação do novo território. Resguardar os
sujeitos da dimensão dolorosa e violenta, que está, muitas vezes, envolvida
nesses processos.
A intervenção clínica no campo da assistência social comporta a cons-
trução de uma trama de saber no lugar do que aparece como traumático. Esse
é o trabalho simbólico que pode resguardar o sujeito do real.
Nessa direção, o testemunho passa a ter função essencial: falar sobre
pequenos fragmentos de memória que não foram assimilados, algo que se
excedeu em relação aos referenciais do sujeito. Dessa forma, o testemunho
conjuga a narrativa da experiência vivida em que algo da verdade escapa e, ao
mesmo tempo, a impossibilidade de passar essa tarefa a outrem sem perder
sua função essencial.
Como apontam Rosa et al. (2010, p. 19): “A presença do psicanalista
testemunha o desenrolar de um processo, como oferta de um campo que o
sujeito possa associar a laços já estabelecidos e desencadear movimentos
associativos”. Nesse sentido, ocorre o testemunho da narrativa dos sujeitos
em relação à sua história, compartilhada com os pares, e o testemunho do
analista que sustenta a escuta dos sujeitos.
E nesse aspecto, em conformidade com Gagnebin (2006, p. 57):
“Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue
ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem
adiante, como num revezamento a história do outro”.
Assim, o trabalho clínico nas políticas públicas exige a criação de dis-
positivos que possam fazer circular a palavra, de forma a restituir o pertenci-
mento à cultura, dando lugar às diferenças e permitindo o questionamento de
determinantes sociopolíticos. Nesse campo, em que predomina a realização
de atos e urgências pautadas em “fazer o bem”, torna-se um desafio abrir
espaços para a construção de narrativas.

171
Janete Nunes Soares, Luciane Susin e Marisa Batista Warpechowski

Nesse contexto de exclusão, violência e alienação, o desafio é intervir


de modo a entrelaçar as dimensões clínica, política e social, restituindo a
dignidade ética à palavra, possibilitando ao sujeito se reinventar e criando um
laço social de inclusão.

REFERÊNCIAS

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violências na cidade de São Paulo. São Paulo: Escuta: FAPESP, 2005.
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Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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o ilegal, o informal e o ilícito. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, set./dez. 2007.

Recebido em 26/04/2012
Aceito em 30/06/2012
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

172
172
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 173-182, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS Q"SWG"TGVQTPC"PC"EN¯PKEC"FC"
CVGPÑ’Q"RTKOıTKC"
‘"UCðFGA3
Eliana Mello2

Tguwoq< O texto explora a produção subjetiva no interstício entre a história indivi-


dual e a história da cultura, e propõe o trabalho clínico de saúde mental realizado
na atenção primária à saúde, no campo da saúde pública, como terreno fértil para
acolher suas manifestações. O artigo visa destacar a importância da psicanálise na
compreensão desse campo e o quanto ele pode ampliar a leitura da psicanálise.
Rcncxtcu/ejcxgu<"história individual, história da cultura, produção subjetiva, aten-
ção primária à saúde, trabalho clínico, psicanálise.

YJCV"TGVWTPU"KP"ENKPKE"QH"RTKOCT["JGCNVJ"ECTGA
Cduvtcev< The paper explores the production of subjectivity in the interstitial be-
tween individual history and the history of culture and suggests the clinical work
of mental health conducted in Primary Health Care, in the field of Public Health,
as fertile ground to host their events. It aims to highlight the importance of psycho-
analysis in understanding this field and how this field can enlarge the reading of
psychoanalysis
Mg{yqtfu<" individual history, history of culture, subjective production, primary
health care, clinical work, psychoanalysis.

1
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais,
realizada em Porto Alegre, setembro de 2011, e decorrente da tese de doutorado em Educação,
intitulada Trauma e sintoma social: resistências do sujeito entre história individual e história da
cultura (Mello, 2010)
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga do Grupo
Hospitalar Conceição (GHC); Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS); Doutora em
Educação (UFRGS). E-mail: elianam@portoweb.com.br
173
173
Eliana Mello

A escrita que se segue consistiu na construção de pontos de ancoragem e


enlace para algumas intuições e múltiplos interrogantes, despertados por
minha inserção profissional, enquanto psicóloga psicanalista, no território de
abrangência de uma das doze Unidades de Saúde de Atenção Primária do
Grupo Hospitalar Conceição (GHC), situada na periferia de um bairro da zona
leste da cidade de Porto Alegre. Como costuma se evidenciar na realidade das
periferias urbanas, esse território se depara com o confronto desigual entre
minoritárias (mas não inexistentes) forças de Eros – pulsões de vida – frente
a uma hegemônica presença de Thanatos – pulsão de morte3.
Desde minha chegada ao local, impressionou-me a enorme demanda
por atendimento psicológico de crianças, por problemas referidos a “agitação”,
“agressividade” ou “dificuldades escolares”, assim como a constatação do
grande contingente de jovens envolvidos na delinquência ou na criminalida-
de, esta vinculada principalmente a assaltos e ao tráfico de drogas. O que se
constitui em assunto recorrente nos consultórios e, consequentemente, entre
os profissionais das equipes multidisciplinares, que se veem, dessa forma,
convocados a um saber interdisciplinar, em que pesem os entraves que lhes
fazem obstáculo.
A intensa agressividade entre os pares é o elemento que se destaca em
comum nesses fenômenos. No caso das crianças, ela se manifesta no ende-
reçamento ao colega, o seu próximo, expressando-se em circunstâncias que
envolvem acirradas disputas, e resultando, frequentemente, em luta corporal.
Tais disputas reais – por um ideal imaginário – são deflagradas sobretudo por
situações relacionadas à palavra: manifestam-se nos apelidos que apontam
para algum detalhe na imagem corporal, ou em xingamentos, principalmente
os que trazem a mãe da criança para a cena.
A brincadeira ou luta, por eles, chamada “arreganho”, que é gozar com
irritar o outro, e que envolve todas as faixas etárias, parece demarcar uma zona
de fronteira, na qual o brincar e o brigar coabitam em um exercício periclitante,
que passa, facilmente, à contenda corporal. Entre as crianças, o elemento
lúdico e o elemento agressivo estão também entrelaçados em curiosos jogos
de linguagem, que indicam certo comparecimento do simbólico, da cultura, em
algum trabalho de mediação. É o caso da brincadeira, compartilhada por um
grupo substantivo de crianças, conforme nossa observação, que consistia em,

3
O dualismo freudiano, pulsão de vida e pulsão de morte, é aqui entendido como a contraposição
de forças de ligação, que tendem a constituir e manter unidades de convivência cada vez maiores
entre os humanos, às forças de destruição, que tendem à dissolução dos laços sociais.
174
174
O que retorna na clínica...

a cada dia, ser escolhida uma palavra aleatória, como “número”, por exemplo,
que, naquele dia, as crianças não podiam falar em hipótese alguma. Isso
tornava uma aula de matemática, no caso de nosso exemplo, uma arriscada
empreitada... Aos infratores estavam previstas penas variadas, pequenas ou
grandes “humilhações”, pequenas ou grandes investidas corporais.
Essa zona limítrofe, entre a intensa agressividade e o apelo ao simbólico,
também pode ser observada em outra versão na adolescência. Assim, a paixão
pelo grafismo e a disposição para a criação grupal estão presentes, de forma
fundamental, na formação atual dos “bondes”, os quais emergiram, conforme
relatos locais, pelo desejo dos jovens de andarem em grupo, se atribuindo um
“nome”, e de picharem a marca desse nome pela cidade. É verdade que a
apropriação dos bondes, por grupos que “querem só a violência” (como o que
escutamos), acaba desconstituindo essa formação grupal enquanto alternativa
de suporte para o trabalho de inscrição subjetiva.
No que diz respeito à prática de delinquência e criminalidade juvenil,
as disputas entre gangues rivais são constantes e apresentam um expressivo
saldo de mortes contabilizado pelos grupos envolvidos, configurando uma
situação que é denotada pelos moradores da periferia como “guerra”. Que os
filhos entrem na “guerra” é talvez o temor mais recorrente das mães, nesse
lugar. Esses assassinatos são sustentados sobretudo por uma cultura calcada
na vendeta4, que determina quem está jurado para ser o próximo a morrer.
A relação entre os fenômenos descritos é para mim sugestiva da organi-
zação de algo como uma “linha de montagem”, que jamais deixou de suscitar
interrogações sobre seus fundamentos e força de manutenção.
Essa zona de “delinquência” e de “criminalidade” tem uma espantosa
visibilidade no imaginário da cidade, aliás, típica do meio urbano brasileiro
– desde que a consideremos como uma cidade “outra”, dissociada da socia-
bilidade ordenada que se pense produzir na cidade de “verdade”. É certo que
se torna cada vez mais difícil sustentar essa dicotomia, o que demanda mais
esforço de segregação. A “outra” cidade insiste em se apresentar no temor
ao assalto, no confronto direto com a violência. Violência deles, do “outro”,
evidentemente. Então, o “problema” passa a ser enfrentado com o aparato das
instituições em atribuição de “consertar” o inaceitável. Em parte pela adesão a
esse ideal irrealizável, em parte porque os recursos financeiros que o problema
demanda se inscrevem na lógica da distribuição dos bens, que os despencam

4
Palavra italiana que designa o espírito de vingança, entre famílias, provocado por um assassinato
ou uma ofensa, e que é mantido ao longo do tempo por atos de vingança recíprocos.

175
Eliana Mello

na ordem das prioridades, esse “conserto” se revela impossível, e o clamor


por presídios e pela repressão total aumenta.
Contudo, para além da intenção “normatizante”, que domina o discurso
institucional, o registro da insistência de certas manifestações sintomáticas
alerta para a extensão que tal desarranjo tem assumido no tecido social em
questão. Evidencia-se, na escuta clínica de um número expressivo de casos, a
pouca coesão de um “mito das origens”, a precária apropriação de uma história
familiar, uma rasura que lança o sujeito na condição de desamparo simbólico.
A fragilidade na inscrição de um “originário”, enquanto estrutura mítica
capaz de amarrar corpo e linguagem e dar amparo ao sujeito, e o recurso à
violência, como saída frente à angústia gerada pelo confronto sem anteparo
com o estranho, comparecem à nossa vista como relacionados, já que a
falta de referências simbólicas leva o sujeito a ter que inventar – em outro
referencial – as suas próprias soluções. A questão sobre a construção de um
“mito das origens” apresentou-se, então, por dupla via: uma voltada à ficção
na história, ou seja, sobre as condições da experiência para reformulação ou
consolidação de mitos sociais, familiares e individuais; e outra, desde a sus-
pensão ou cristalização dessa construção, que a perspectiva de um portador de
estigma social coloca. Nesse caso, uma versão das “origens”, frequentemente,
revela-se apenas de forma fragmentada, fazendo obstáculo à estruturação
subjetiva capaz de sustentar um Eu em possibilidade enunciativa, já que todo
sujeito determina-se por seu pertencimento a uma ordem simbólica. Aqui é
importante lembrar, com Sandra Pesavento (1993, p. 388, grifos meus), que
“a autenticidade de um mito não se mede pela sua adequação ou não à reali-
dade objetiva, mas, sim, pelo poder de evocação e mobilização dos discursos
e imagens”. Poder de evocação este, que, para a psicanálise, se relaciona à
fundação de uma memória, que diz respeito aos efeitos de inscrição de um
significante paterno, ou seja, de um significante que suporte o registro da lei
cultural e situe o sujeito na referência a uma filiação.
Como lidar, então, com um traço identificatório que se marca pela sua
ausência, por aquilo que se subtrai às possibilidades de demarcação afirmativa
de um território para a subjetividade5? Assim, essa clínica da exclusão desafia
o nosso preparo para enfrentá-la nas instituições e encaminha perguntas pe-
las condições estruturais e históricas, das quais adveio a captura dos corpos
pela estigmatização. A herança de mais de três séculos sob a vigência de um

5
Essa questão foi construída pela leitura do artigo Experiência e linguagem como estratégias de
resistência, de Miriam Debieux Rosa e Maria Cristina Poli (2009).

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O que retorna na clínica...

sistema escravista, dentro de um processo de colonização, continua a cobrar


reflexão, em nosso país, sobre os efeitos de violência decorrentes desse pas-
sado – que sabemos ter confiscado nomeações fundadoras –, amalgamados
a condicionantes próprios do presente. Por outro lado, a convivência com
pessoas de “discretas dignidades”, no mesmo território, em quem é perceptível
uma indubitável consistência subjetiva – marcada por uma palavra singular,
que evidencia potência de transmissão simbólica –, tornava a configuração
do problema de pesquisa ainda mais complexo, mas indicava também um
novo caminho. Pois o que havia viabilizado a diferença de um protagonismo?
Quais as condições de possibilidade para que alguns conseguissem construir
uma versão das origens que legitimasse o nome sob o qual se distinguem?
Assim, esses pontos de interrogação buscaram encontrar suas respos-
tas no desenvolvimento de uma tese. O primeiro apoio consistiu no encontro
com uma discussão que se costurava no trabalho de três autores de nossa
bibliografia: Melman (2000a; 2000b), Calligaris (2000) e Jerusalinsky (1999;
2005). Qual a herança do processo de colonização e do correlato sistema
escravista para a subjetividade do brasileiro é a questão que dela emergia.
Nessa discussão busquei espaço para eleger um fio condutor, e este diz res-
peito à possibilidade de virmos a reconhecer um agenciamento discursivo,
ainda que fragmentário, próprio à posição do escravo, construído nas zonas
de sombras do olhar senhorial. Para trabalhar nessa direção, objetivei, como
principais metas de pesquisa, a contextualização histórica da formação social
escravista, e suas zonas de tensões, e também o rastreio das condições para
o agenciamento discursivo da experiência da escravidão.
Como questão orientadora, a pergunta se, na violência do confronto de
seres humanos com um Outro que escraviza, devemos supor a morte da or-
dem significante e a impossibilidade absoluta para o advento de um agente de
enunciação. Não estaríamos presumindo assim o sistema colonial e escravista
como monolítico e dispensando as zonas de fronteiras que podemos inferir
como necessárias para delimitá-lo? Não configurariam, elas, sulcos, rachas,
que puderam acolher traços inéditos, os quais teriam permitido – tais como os
“restos diurnos” para a formação dos sonhos – a elaboração de novos textos
narrativos, articulados à reserva de um remanescente saber inconsciente,
referido às culturas de origem? No vacilo dos senhores e nas estratégias de
resistência dos cativos à dominação, não seria factível supor que o empenho
em escavar o absoluto se traduzisse em um camuflado deslocamento de
uma posição passiva a uma posição ativa no discurso, exercitada apenas em
condições propícias? Dessas estratégias, entendo a apropriação do “rito de
compadrio”, oferecido pela igreja católica brasileira, em sua incauta intenção
de “salvar as almas” dos infiéis, como o que possibilitou a formação de fato
177
Eliana Mello

de uma noção de “comunidade escrava”, pelo estabelecimento de redes de


solidariedade que multiplicaram os laços de parentescos espirituais, dentro
e fora do cativeiro, e ajudaram a preservar heranças culturais, para além das
fronteiras dos plantéis (Paula, 2010).
Podemos supor que os que soçobraram foram justamente aqueles que
não conseguiram se inserir ou tecer relações suficientemente fortes, para as-
segurar sua pertença a uma construção narrativa a se retecer. Trata-se, aqui,
como o entendo, de recordações e novos traços, criados no tempo de recons-
tituição do sujeito, pois o sujeito, como efeito de linguagem, não pode senão
se reconstituir, enquanto re-petição do traço, sempre que as possibilidades de
algum exercício pulsional inscrito em uma ordem simbólica se apresentem. Em
termos de constituição subjetiva, pelo estudo de autores do campo da psica-
nálise, de Freud e de Lacan, podemos compreender as operações de fronteira
entre os diferentes tempos que compõem distintas “versões de realidade”, às
quais um sujeito é instado a construir, em seu processo cronológico de vida,
como implicando sempre uma topologia “transicional”, em que as coordenadas
interior-exterior, sujeito-objeto, eu-outro, e, ainda, o exercício de uma função
nomeante, estão a se refazer.
Desse precipitado de histórias, decantam-se as marcas que, sempre
singularizadas pela história individual, têm escrito o texto psíquico no incons-
ciente dos corpos que a têm habitado no tempo. Dele, restam hoje fragmentos,
os quais o trabalho clínico é potente ferramenta para acolher e quiçá permitir
evidenciar os nexos que articulam no inconsciente, o individual e o coletivo,
e o presente ao passado. Fragmentos que se articulam à contemporânea
lógica neoliberal capitalista, cujo discurso ordena a sociedade de classes no
mundo ocidental contemporâneo, e que prescreve o tecnicismo e o consumo
sem fim de objetos para obturar o ponto de falta, justo esse que nos garante
a condição de sujeitos. Afinal, é do presente ao passado que se produzem a
história e a clínica.
É de se esclarecerem aqui as peculiaridades que especificam um traba-
lho clínico que se situa no campo da atenção primária à saúde (APS). O que
caracteriza a APS é o fato de ela estar na pressuposição de quatro atributos:
porta de entrada, integralidade, longitudinalidade e coordenação do caso. Isso
quer dizer, em síntese, que uma Unidade de Saúde de Atenção Primária tem
a responsabilidade por seu paciente, e mesmo nas situações em que o refe-
rencie para outros serviços de outra complexidade, a coordenação do caso,
entendido em sua abrangência, continua sendo prerrogativa dos profissionais
dessa Unidade. A característica de longitudinalidade – que implica que uma
pessoa será acompanhada em seu transcorrer de vida, enquanto moradora
do território de abrangência – traz, consequentemente, uma nova inflexão no
178
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O que retorna na clínica...

ritmo e no enquadre em que se processa um trabalho clínico.


Se, além disso, levarmos em conta as migrações e as especificidades
culturais, que orientam os sentidos atribuídos a um trabalho que demanda fre-
quência e extensão temporal, como é o caso da psicanálise, podemos deduzir
que todas essas peculiaridades podem engendrar novas formas de considerar
e dispor do fator tempo. O fato de a temporalidade do inconsciente também não
estar determinada por uma lógica linear tem nos levado a conceber o tempo,
no que diz respeito aos tratamentos, como submetido a uma lógica própria,
que também pode se mostrar operativa. Por exemplo, se um paciente “some”
por um período, sabemos que ele pode retornar em outro momento (o que é
bastante corriqueiro nesta clínica), e se ele puder se implicar em seu pedido de
retorno, aquele momento anterior pode vir a ser significado por ele de alguma
forma, configurando mesmo uma clínica do retorno. Uma clínica que atualiza
a singularidade com que, no tempo presente, os seres humanos, um a um,
damos conta da história individual e coletiva que nos constitui.
Dessa clínica, trago aqui um caso, o qual desdobrou muitas questões
para a tese. Vou chamar de Alisson o menino de oito anos, repetindo a 1ª série
no ano de 2009, que chegou até mim em outubro desse mesmo ano, por um
encaminhamento da escola, descrevendo-o como: “desmotivado, não retira
a mochila voluntariamente, não leva o material escolar, apenas reconhece o
alfabeto, brinca durante a aula, envolve-se em brigas, desrespeita a profes-
sora, faz gestos obscenos”. Quem vem na primeira consulta, depois de várias
remarcações, é a avó, que também havia trazido o encaminhamento. Ela era
bastante conhecida na Unidade de Saúde, por ter sido considerada a figura
que “segurava a barra” de uma família bem envolvida com a criminalidade.
Dos quatro filhos homens que teve, um foi morto durante a execução de um
assalto; outro estava, à época, numa cadeira de rodas, pela mesma razão; o
pai do menino estava preso por tentativa de assalto; e o último “trabalhava”,
juntamente com o irmão, no métier que deve ser pronunciado com cautela.
D. Rosa chega queixando-se, na entrevista, de que a mãe da criança
deixa o cuidado dos filhos sempre com ela. Mas diz estar preocupada com
Alisson, porque ele está muito gago, e que as crianças riem dele, que então
briga ou se isola. Refere que o menino sofre com o fato de o pai viver preso, e
conta que, no ano passado, seu filho estava em liberdade provisória, e Alisson,
tendo escutado uma conversa deste com comparsas, pediu para o pai não fazer
o assalto que planejavam, porque “sabia” que ele iria ser preso de novo – e
isso foi justo o que aconteceu. Conta ainda que ultimamente o menino tem um
índio como amigo imaginário, e, interagindo com este, entretém-se por horas
a brincar com tampinhas e pauzinhos. Embora ela, a avó, seja negra, sua avó

179
Eliana Mello

paterna era índia. D. Rosa queixava-se de cansaço, pois tomava conta dos
outros netos também. Os filhos não a escutam, e “tanto que ela pedia para
eles largarem esta vida de bandido, que só traz desgraças”. Achava que era
por “essa angústia no peito” que teve que fazer a cirurgia cardíaca há dois
anos passados, e que acabou parando seu coração pouco depois da época
deste relato.
O atendimento de Alisson foi muito irregular, tendo ele faltado muitas
vezes, já que nenhum adulto se lembrava do compromisso, mesmo que levas-
sem o dia e o horário anotados e o menino manifestasse claro interesse em vir.
Por isso, insisti na manutenção do espaço, mandando, por várias vezes, hora
marcada por uma agente de saúde e, mesmo assim, consegui vê-lo apenas
seis vezes. Minhas anotações dos encontros com aquele menino franzino
registraram o seguinte:
Primeiro encontro- brinca com índios e arma cena de guerra, enuncia
várias vezes que aqueles que são “sem cuidado” vão para o “comitê da mor-
te”, buscando minha confirmação, a cada vez, por um “né?” e pelo olhar que
me dirigia.
Segundo encontro- chega chateado e, quando eu insisto, conta-me que
gozaram dele na escola, por causa da gagueira. Brinca de “bem” contra o “mal”.
Terceiro encontro- brinca que os “ancestrais” voltam do passado e
aterrorizam as pessoas.
Quarto encontro- sucedem-se no brincar cenas de graves massacres,
acertos de contas entre bandidos, alguns amigos fazem “salvamentos”, uma
enorme “boca mastigadora” ameaça a todos. No final, todos morrem.
Quinto encontro- brinca de revolta dos “índios” contra os “portugueses”.
Chamou-me atenção o fato de ele não ter gaguejado nesta sessão.
Sexto encontro- no brincar de hoje, o “herói” é o “pobre” que reparte seus
ganhos com os amigos e fica cada vez mais “rico”, derrotando os “homens
ricos” na corrida de carrinhos, que sempre envolve um acerto de contas por
dívidas não saldadas.
Este é um caso que me parece muito rico na composição dos elemen-
tos que revela, e aqui apenas poderei explorar alguns. A primeira pergunta
formulada, a partir dele foi: quem é o sujeito que fala aqui? Impressionou-me
sobremaneira que uma criança que só conhecia as letras do alfabeto, conforme
a professora, falasse em “ancestrais” e em “revolta dos índios contra portugue-
ses”. O que possibilitava esse saber? Ele me fala vagamente que viu imagens
em uns livros da escola. Eis que a criança “desinteressada” da professora
revelava-se assim particularmente atenta ao que podia atribuir sentido para
sua existência. A transmissão que se efetua pela avó, de sua herança negra e
índia, parece ser mesmo a fonte que alimenta a tentativa de construir um mito
180
180
O que retorna na clínica...

organizador de uma “versão da realidade”, que o sustente subjetivamente.


Sabemos que a imagem de uma mortífera “boca mastigadora” pode ser
associada à fantasia terrorífica de ser devorado pelo Outro não barrado. Aqui
se nos assoma que o Outro, em questão, é sobretudo a realidade de violência
em que o menino está imerso. Como lidar com esse Outro absoluto? Ele bem
que tenta se defender bravamente – cavou até um amigo imaginário na sua
genealogia! O fato de ele não ter gaguejado, quando brincava de “revolta dos
índios” – em que assume uma posição ativa no discurso (a produção de um
ato de revolta) –, e o percurso que desenvolveu, em suas seis sessões de
trabalho, evidenciam um movimento que vai construindo o lugar do eu e do
outro, que lhe permite que vá se deslocando, da paralisia de um instante de
ver, ver os “sem-cuidado” indo para o “comitê da morte”, a brincar de derrotar
“os homens ricos”, e ser o “herói” entre os companheiros.
Há, como se constata, movimento subjetivo em jogo, mas a luta é feroz
e o desequilíbrio de forças é de fato obsceno. Alisson está situado no olho do
furacão de uma engrenagem mortífera, engendrada por uma montagem per-
versa – construída no ritmo dos passos das inter-relações das forças sociais
na história –, que mastiga e tritura vidas, como uma imensa “boca mastigado-
ra”. E, nesse sentido, a gagueira, ou seja, o vacilo de sua fala, pode bem ser
pensado como a posição da própria linguagem nela.
Em Alisson, a gagueira parece situar os impasses de sua condição de
alienação- separação ao Outro: seu isolamento, seu “mundo próprio”, seu
“desinteresse” na aprendizagem podem ser aqui entendidos como tentativas
de separação de uma alienação ao mortífero saber em comando, no qual os
indivíduos são reduzidos a meros instrumentos de uma engrenagem, na qual
a morte reina em antecipação. Afinal, Alisson “sabia” que o pai poderia ser
preso, e “morrer” mais ainda para ele, se participasse do assalto.
A afirmação psicanalítica do inconsciente como o lugar do Outro ad-
quire, aqui, pela perspectiva do caso, como o entendo, seu pleno estatuto.
Uma topologia que dá a ver elementos de tempos remotos em encontro com
o presente, criando uma figura inédita – singular e coletiva, ao mesmo tempo,
pelo encontro da história de vida de um indivíduo com a história da sua cole-
tividade, engendrando um sujeito que se situa em um ponto entre ambas. A
clínica de saúde mental da APS, pelas peculiaridades acima apontadas, vem
a ser um território fértil para acolher suas manifestações, pois ali o sujeito tem
a possibilidade de retornar e tecer uma narrativa a várias voltas.

181
Eliana Mello

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Recebido em 02/08/2012
Aceito em 04/10/2012
Revisado por Deborah Nagel Pinho

182
182
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 183-193, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS
C"XKQNÙPEKC"PQUUC"FG"ECFC"
FKC<"q"tcekuoq"ä"dtcukngktc3
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi2

Tguwoq< Este texto aborda o racismo contra o negro no Brasil como um sintoma
social. Partindo da concepção freudiana de que a cultura é fundada no assassinato
do pai da horda e de que o sujeito psíquico é constituído no laço social, podemos
pensar na crueldade como elemento constitutivo das formações sociais, e que
cada sociedade engendra suas próprias figurações de violência.
Rcncxtcu"ejcxg< racismo, sintoma social, violência, narcisismo.

QWT"FCKN["XKQNGPEG<"tcekuo"kp"c"dtc|knnkcp"yc{
Cduvtcev< This text addresses the racism against black people in Brazil as a social
symptom. From the Freudian conception that culture is founded on the murder of
the father of the horde and the psychic subject constituted in the social bond, cruelty
can be considered a constituent element of the social formations, and each society
engenders its own figurations of violence.
Mg{yqtfu< racism, social symptom, violence, narcissism.

1
Este texto é baseado em trabalho apresentado em 22 de junho de 2012 na 3ª fase do ciclo O
racismo contra o negro no Brasil: questões para a Psicanálise, realizado pelo Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
2
Psicanalista; Membro de Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; Professora
do curso de Psicanálise do mesmo Departamento e Coordenadora do núcleo de atendimento de
famílias de Projetos Terapêuticos. E-mail: mbeatiche@gmail.com
183
183
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi

E ste trabalho pretende pensar o racismo contra o negro como um sintoma


coletivo, herança da escravatura das origens do Brasil e, como tal, atuali-
zação da violência constitutiva da sociabilidade brasileira.
Partirei da leitura de dois dos chamados textos sociais de Freud e de
alguns desdobramentos de seus argumentos para, em seguida, levantar ideias
sobre a configuração que a violência racista ganha em nosso país.
Em Totem e tabu, Freud nos apresentou um verdadeiro mito das ori-
gens, “o assassinato, ato único e singular, ao qual deu o estatuto de realidade
como o marco zero da passagem da natureza para a cultura” (Koltai, 2012, p.
88). Se antes teria havido a horda primitiva, com um chefe animal que tinha
todo o gozo, com poder de vida e morte sobre os viventes, esse ato fundador
gerou o contrato social. A premissa contida nessa narrativa é que o advento
da cultura constitui fruto de uma conspiração, que o primeiro projeto comum,
que instaura o que chamamos de humanidade, foi uma rebelião articulada
através do ódio compartilhado.
Quando Freud propôs que da morte do tirano teria surgido a lei que
regula os laços entre os irmãos instaurou a figura do pai, ou de Deus, como
elemento central da constituição simbólica. Daí que o laço social seria fruto
da submissão à lei, que baliza as trocas libidinais e agressivas entre os seme-
lhantes. Portanto a com-paixão, propriedade tão frequentemente ressaltada
para falar da relação entre irmãos, guardaria toda a dimensão de ambivalência
do laço com o outro: paixão compartilhada na cumplicidade amorosa, mas
também no ódio.
Ainda segundo essa perspectiva, as diversas formas de sociedade
buscariam dirigir e limitar o exercício das trocas sexuais e agressivas entre
os humanos, mas, no limite, isso é ingovernável. Diante da impossibilidade de
suprimir a agressividade, cada cultura criaria suas vias de descarga e o caminho
mais frequente tem sido direcioná-la para fora da comunidade. A imagem do
“estrangeiro” como o inimigo seria um artifício, modo de defesa das coletivida-
des, criado para reforçar a reunião entre os pares. Esse mecanismo de defesa
dos grupos, Freud denominou como “narcisismo das pequenas diferenças”.

A civilização adota, assim, uma dupla estratégia: impedir a agressi-


vidade de se exprimir entre os membros do grupo, reforçando, ao
contrário, o vínculo libidinal e as identificações mútuas; e favorecer
a manifestação da agressividade contra os outros grupos que, de
adversários respeitáveis, tornam-se inimigos inferiores e causa de
todos os males sofridos pelo grupo (Enriquez, 1990, p. 109).

184
184
A violência nossa de cada dia

Jurandir Freire Costa, em seu ensaio sobre a concepção da teoria


psicanalítica envolvendo o fenômeno da violência, ressalta a importância de
diferenciá-lo dos conceitos de agressividade e de excesso pulsional. O fenô-
meno da violência não estaria restrito à manifestação da agressividade, mas
consistiria numa formação que envolve o enlaçamento da disposição agressiva
com as exigências narcísicas de eliminar o outro. Diz o autor: não poderíamos
falar de violência “sem o desejo de destruição, comandando a ação agressiva”
(Costa, 2003, p. 43).
Apoiados no argumento de Freud em Por que a guerra? podemos
afirmar que violência não só não é um dado natural, mas é uma construção a
serviço das necessidades de autoconservação dos indivíduos e dos grupos.
As diversas sociedades têm sua escala de valores, com sua definição do que
é ser bom ou ser mau, gerando suas com-paixões amorosas e odiosas, ou
seja, criam vias para a expressão de amor, mas também da agressividade, a
fim de fortalecerem os seus laços internos.
Como argumenta Freud no texto acima citado, mesmo a instituição do
Direito, que teria a função de regular os excessos e assegurar a igualdade, não
alcança a inclusão de todos. Em primeiro lugar, porque a interdição à satisfação
dos impulsos destrutivos nunca chega a eliminar sua pressão. Reprimidos,
retornam. Em segundo lugar, quem faz as leis são os homens, e aqueles que
têm maior reconhecimento e força dentro de uma comunidade são os que
legislam e executam as normas que protegem seus interesses. Portanto, a
lei deixa sempre como resíduo a marca do exercício de dominação. O uso da
força persiste como elemento irredutível nas relações humanas. Sempre uns
têm mais proteção e pertença, em detrimento de outros, e isso gera como
consequência a designação daqueles que valem e os que não têm valor para
o grupo, tornando estes últimos seus “bodes expiatórios”. É contra estes que é
permitida a descarga de agressividade, pois os “sem visibilidade” são também
“os sem direitos”, passando a ser desprezados e rejeitados.
O que podemos depreender disso é que cada formação coletiva engen-
dra seu alvo de violência, faz as suas vítimas.
Não seria possível pensar uma proposta de organização social que pu-
desse erradicar o desprezo e a brutalidade entre os homens, mas isso não sig-
nifica que não se possa intervir sobre os processos que levam a determinados
modos e figurações que a violência toma, nos diversos sistemas e formações
sociais. Essa concepção ética não naturaliza, não toma como imutáveis, as
produções humanas, levando a pensar em sua dimensão política.
Voltemos agora nossa atenção para a questão do racismo, como uma

185
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi

figura da violência.
O psicanalista J. B. Pontalis, pensando sobre a persistência das ideias
e das práticas racistas no mundo de hoje, em que a noção de raça biológica
está superada, radicalizou o argumento freudiano, articulando-o com os fenô-
menos do estranhamento. Sua contribuição é chamar atenção para o elemento
passional desse fato social e, como tal, absolutamente refratário aos apelos
da argumentação. O ponto de origem dessa paixão estaria nos fenômenos
primitivos de estranhamento e angústia intrínsecos às formações de identidade.

Quando é que intervém a angústia diante do estranho? Quando


o outro é simultaneamente parecido e diferente. Por isso é que
considero falsa, ou pelo menos incompleta, a ideia aceita de que o
racismo seria testemunho de uma rejeição radical do outro, de uma
intolerância essencial às diferenças, etc. Ao contrário do que se
acredita, a imagem do semelhante, do duplo, é infinitamente mais
perturbadora do que a do outro (Pontalis, 1988, p. 36)

A angústia adviria do encontro com os traços excedentes ao eu, do


outro lado do espelho, que são tidos como incompatíveis com o “si mesmo”,
e o racismo seria uma forma de manifestação da angústia. Seria o efeito da
transformação da angústia em ódio e sua projeção em um traço de diferença
em um semelhante.
Não odiamos os animais, mesmo que eles nos produzam medo. Odia-
mos o mórbido, o feio, o sujo, o malvado, refletido no igualmente humano. O
racismo se alimenta do que aparece reproduzido, mas radicalmente recusado
na inscrição da própria identidade. Se a relação com o outro-semelhante é
problemática para todos nós humanos, o racismo faz da cisão do caráter
paradoxal, sempre presente entre a mesmidade e a alteridade, seu ponto de
partida. Apresenta uma saída, na direção de desprezar, de expelir para fora
de si aquilo que causaria dor e retornaria como sinistro.
Projetar o estranho é uma solução da economia psíquica, e o mecanismo
do ódio racista tem na estrutura da paranoia o seu modelo.
A rejeição a uma “cara que não agrada”3, na qual não me reconheço, é

3
Título do capítulo acima citado de J.B. Pontalis.
186
186
A violência nossa de cada dia

uma estratégia de autopreservação, ou do narcisismo, através do deslocamento


na cena social daquilo que não é elaborado entre o “si” e o “si mesmo”. Trata-se
de um fenômeno de massa, em termos freudianos ou, em outros termos, de
uma formação passional. A história é farta de situações que nos apresentam
o poder de mortificação de ódio compartilhado.
Segundo Renato Janine Ribeiro, em A dor e a injustiça, a formação
do Brasil baseou-se em dois traumas coletivos: o primeiro estaria ligado à
violência da exploração colonial e o segundo se refere à crueldade inerente
à escravidão, que sustentou o processo de formação do Estado nacional, no
período imperial.
O fato de o Brasil, como nação, ter nascido dividido entre “homens
superiores e livres” e “seres inferiores cativos” inscreveu uma marca. O outro,
diferente pelos seus traços, pela cor, pelos cabelos, por sua origem geográfi-
ca, carrega um estigma instalado no lugar do estrangeiro e escravizado pelos
“brasileiros” descendentes dos europeus.
Recorro às palavras do antropólogo:

Com o descobrimento da América e da África, os povos autóctones


recém descobertos receberam as identidades coletivas de “índios”
e “negros”. A questão colocada tanto pelos teólogos ocidentais dos
séculos XVI e XVII, quanto pelos filósofos iluministas do século XVIII,
era saber se esses índios e negros eram bestas ou seres humanos
como os europeus. Questão cuja resposta desembocou numa
classificação absurda da diversidade humana em raças superiores
e inferiores. Daí a origem do racismo científico ou racialismo, que
interfere até hoje nas relações entre seres e sociedades humanos
(Munanga, 2003, p. 5)

No regime político, social e jurídico da escravatura, a violência contra


o negro não só era permitida, mas recomendada. Tínhamos, então, uma
configuração social em que havia homens livres e cativos, e “a lei” regulava
os direitos de quem, inclusive, podia dispor integralmente dos corpos e das
vidas dos cativos.
A escravidão do negro no Brasil foi oficial até 1888, e o processo de es-
cravização se dava como uma política de desenraizamento, de dessocialização
que visava despersonar (Arantes, 2012, p. 2) os escravizados.
Segue um trecho de O trato dos viventes, de Alencastro (2000, p. 148),
no qual aparecem dois testemunhos do modo pelo qual os africanos eram
recebidos em sua chegada:

187
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi

...desembarcado nos postos da América portuguesa, mais uma vez


submetido à venda, o africano costumava ser surrado ao chegar à
fazenda. “A primeira hospedagem que [os senhores] lhes fazem [aos
escravos], logo que comprados aparecem na sua presença, é mandá-
los açoitar rigorosamente, sem mais causa que a vontade própria de
o fazer assim, e disso mesmo se jactam [...] como inculcando-lhes,
que só eles [os senhores] nasceram para competentemente dominar
escravos, e serem eles temidos e respeitados”. Tal é o testemunho do
padre e jurista Ribeiro Rocha [1758], morador da Bahia, no seu tratado
sobre a escravatura no Brasil, publicado em meados do século XVIII.
Cem anos mais tarde, o viajante francês Adolphe d’Assier (1864)
confirmava a prática de espancar os escravos logo de entrada, para
ressocializá-los no contexto da opressão nas fazendas e engenhos do
Império. Método de terror luso-brasílico, e mais tarde autenticamente
nacional, brasileiro, o choque do bárbaro arbítrio do senhor – visando
demonstrar ao recém-chegado seu novo estatuto subumano.

Nossa formação nacional, ou nossa representação de nação, foi mar-


cada por uma sociabilidade e uma economia sustentadas na violência racista,
como está descrito acima. Os escravizados eram sequestrados, vendidos nos
portos e tratados como mercadoria e força de trabalho barata. Para isso, foram
instituídos procedimentos de brutalidade que se constituíam em uma política
de desumanização sistemática.
Passados mais de 100 anos do final da escravidão, a ordem jurídica não
mais sustenta a desumanização dos brasileiros negros, mas algo do estranho
permanece projetado neles.
A abolição da escravidão trouxe um grande contingente de “novos brasi-
leiros”, ou seja, os ex-escravos foram incorporados à condição de brasileiros.
Porém, isso se deu através de uma política de miscigenação que se constituiu
como poderoso instrumento de hierarquização e estratificação social.
A política do “embranquecimento” ou “branqueamento” da população,
conduzida ativamente pelo Estado brasileiro, estabeleceu uma nova moda-
lidade de racismo à brasileira. No processo de transformação de sociedade
rural em sociedade industrial, na República, tivemos o início de um processo
irreversível, até hoje, que permitiria a ascensão social desses “novos brasilei-
ros”, desde que assimilassem as condutas e atitudes da população branca,
não só do ponto de vista estético, como também cultural.
Tendo como passado a longa e humilhante trajetória escravista, a as-
similação dos comportamentos e estéticas do branco era vista pelos próprios
negros como uma saída da condição de escravo e como oportunidade de
188
188
A violência nossa de cada dia

mobilidade social, engendrando o desprezo a sua origem africana. Ou seja,


ao assimilarem os valores sociais e morais da ideologia de branqueamento,
alguns negros avaliavam-se pelas representações negativas construídas pelos
brancos.
A mistura racial, com vistas ao branqueamento, até hoje, produz seus
efeitos e ratifica a hierarquização e valorização negativa da identidade negra.
Vejamos, mais uma vez, o que nos diz o antropólogo Kabengele Mu-
nanga:

A história da emigração africana é uma história totalmente diferente


da história dos emigrados europeus, árabes, judeus e orientais que
saíram de seus respectivos países, de acordo com a conjuntura
econômica e histórica interna e internacional que influenciaram suas
decisões para emigrar. Evidentemente, eles também sofreram rup-
turas que teriam provocado traumas, o que explicaria os processos
de construção das identidades particulares como a “italianidade bra-
sileira”, a identidade gaúcha, etcetera. Mas, em nenhum momento,
a cor de sua pele clara foi objeto de representações negativas e de
construção de uma identidade negativa que, embora inicialmente
atribuída, acabou sendo introjetada, interiorizada e naturalizada pelas
próprias vítimas da discriminação racial (2003, p.1-2).

Ainda segundo o antropólogo (1999), o racismo à brasileira é hoje um


crime perfeito. As crenças da democracia racial e da mestiçagem encobrem,
mascaram a brutalidade do cotidiano. As representações negativas estão
enraizadas no imaginário social e os golpes sofridos no dia a dia por negros e
não brancos frequentemente caem na condição de “não existência”, pelo seu
desmentido no discurso coletivo.
Além de tudo, a falta de nome e de admissão do racismo no Brasil con-
fisca a condição de pensamento e mesmo de defesa contra as palavras e os
gestos violentos. Resta em seus corpos a marca dolorosa e enclausurada da
brutalidade. Marcas que reavivam as marcas transmitidas pela memória de
várias gerações de nosso passado escravocrata.
Somos, todos nós brasileiros, afetados pelos crimes do passado e dos
atuais, tanto brancos, como negros ou de qualquer outra coloração. Mas, como
pensar os efeitos mortíferos do pensamento racista sobre a subjetividade dos
negros?
Jurandir Freire Costa, em seu prefácio ao trabalho de Neuza Santos,

189
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi

Tornar-se negro, localiza justamente no âmbito da constituição de identidade


e do valor atribuído a si mesmo, os transtornos pelos quais passam os negros
numa sociedade que tem no branco o seu ideal.
Num país constituído por maioria negra ou mestiça, a branquitude faz
da brancura uma imagem fetiche. O ciclo de violência se realiza com a intro-
jeção desse ideal, que leva o sujeito negro a desejar um futuro identificatório
antagônico em relação à realidade de seu corpo! Sendo o “eu” antes de tudo
uma representação corporal, como se constitui o projeto pessoal, o vir-a-ser
de um sujeito que tem na realidade e na aparência do corpo os traços que
visa apagar?
Diante do ideal branco, o corpo negro pode ser vivido como uma ferida
aberta ou mesmo um objeto perseguidor. O crime perfeito se consuma justa-
mente quando o negro busca se branquear, o que, no limite, é a negação de
si mesmo. Um desejo que deságua no desejo da própria extinção.
A dor em carne viva desses traumas silencia, grita e chora. A estratégia
de sobrevivência psíquica, muitas vezes, captura o pensamento no trabalho
psíquico de afastar o sofrimento. Por outro lado, a denegação do racismo no
discurso corrente também imputa a dúvida quanto à realidade da violência de
gestos e falas cotidianas que reafirmam a estratificação social. O desmentido,
mas atuado nas ruas, nas portarias dos prédios, nos lugares restritos aos bran-
cos, pela exclusão social, pode levar ao limite da experiência de desrealização.
Falar disso e dar voz àquilo que está emudecido é movimentar a esfera das
representações, de construção e desconstrução das imagens, testemunhar e
tratar desse pesadelo social.
A violência nossa de cada dia, do “racismo cordial” típico da brasilidade,
nega a negritude e mantém o negro na condição de vítima da violência.
As políticas dos movimentos negros afirmam a negritude e apresentam
outras linhas de força para além da dor, pela adoção de um projeto de identifi-
cação e reconhecimento social através da valorização de seus traços.
Essa resposta, embora necessária, ainda permanece no âmbito das
identidades, e a afirmação de identidade, segundo nossa argumentação, tem
como contraponto a violência, pela necessidade da marcação das diferenças
na função de fronteira. Essa política é uma política importante, por seu caráter
de dar visibilidade e reconhecimento do lugar social do negro, mas não resolve
a questão do racismo.
Fica um desafio, que é um desafio contemporâneo colocado para toda a
ação política de todos os cantos do mundo: pensar o contrato social para além
da regulação de um conjunto de indivíduos articulados em torno da identidade
e contemplar uma proposta de laço social e de direitos universais para além
das defesas de categorias identitárias, seja de sexo, de raça, da cultura, ou
190
190
A violência nossa de cada dia

de classe social.
Termino na aposta do uso da palavra que fala, testemunha, ultrapassa
a dor, gera movimentos significantes, resgatando a língua em sua função de
ferramenta cultural, com sua qualidade de desenhar outros destinos.
Seguem as palavras de Cuti (2007, p.53-54), um poeta.

QUEBRANTO
às vezes sou o policial
que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
às vezes sou o zelador
não me deixando entrar
em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredito
às vezes sou o amor
que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo com o vazio
às vezes as migalhas do que
sonhei e não comi
outras o bem-te-vi
com olhos vidrados
trinando tristezas
um dia fui abolição que me
lancei de supetão no espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida
uma constituição que me promulgo
a cada instante

191
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi

também a violência dum impulso


que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser
às vezes faço questão
de não me ver
e entupido com a visão deles
me sinto a miséria
concebida como um
eterno começo
fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo
e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.
às vezes!...

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192
192
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perdido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
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blicas, emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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truído, libertado: discurso teológico-jurídico sobre a libertação dos escravos no Brasil.
[1758]. Introd. e notas de Paulo Suess. Petrópolis: Vozes; São Paulo: CEHILA, 1992.

Recebido em 28/08/2012
Aceito em 04/10/2012
Revisado por Marisa T. G. de Oliveira

193
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 194-202, jul. 2011/jun. 2012

TEXTOS
RQFGT"G"XKQNÙPEKC"PQ"
FKUEWTUQ"ECRKVCNKUVC3

Rosana de Souza Coelho2

Tguwoq< o artigo toma como pano de fundo as relações de trabalho contem-


porâneas, para pensar a incidência do discurso capitalista nessas relações. Expõe
brevemente as mudanças socioeconômicas alavancadas pelo capitalismo pós-
moderno, destacando a hegemonia do discurso gerencialista. Por fim, analisa
as formas pelas quais o poder e a violência são exercidos nesse discurso, assim
como os modos de regulação do gozo, à luz da categoria de discurso em Lacan,
utilizando, para isso, o discurso do mestre e o discurso do capitalista.
Rcncxtcu/ejcxg< poder, violência, gozo, discurso, capitalismo.

RQYGT"CPF"XKQNGPEG"KP"VJG"ECRKVCNKUV"FKUEQWTUG"
Cduvtcev< The article takes as its background the contemporary labor relations
to consider the incidence of the capitalist discourse in these relationships. Briefly
presents the socio-economic changes leveraged by postmodern capitalism, em-
phasizing the dominance of the management discourse. Finally, it analyzes the
exercises of power and violence present in this discourse, as well as the way to
regulate the enjoyment through the category of speech in Lacan, using, for this,
the Master’s Discourse and the Discourse of the Capitalist.
Mg{yqtfu< power, violence, enjoyment, discourse, capitalism.

1
O presente artigo é uma versão do trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA:
Psicanálise e Intervenções Sociais, em: Porto Alegre, setembro de 2011.
2
Psicanalista; Mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS; Membro da Associação Psica-
nalítica de Porto Alegre; Membro do Instituto APPOA; Professora no CESUCA/Faculdade INEDI.
E-mail: psi.rosana@gmail.com
194
194
Poder e violência no discurso capitalista

[...] Eu não espero pelo dia / Em que todos / Os homens concordem/ Apenas
sei de diversas / Harmonias bonitas / Possíveis sem juízo final/ Alguma coisa / Está
fora da ordem / Fora da nova ordem / Mundial
[Fora da ordem, Caetano Veloso].

D urante o encontro de um grupo de estudos3, uma participante fala da situação


na empresa onde ela trabalha, uma empresa pública de serviços. Conta-nos
que uma colega a procurou e, aflita, queria ajuda para “escapar” de um convite
feito pelo chefe, para que fosse a uma festa em comemoração a metas atingidas
por sua equipe e na qual ela e seus colegas de setor receberiam um prêmio.
Prêmio que essa pessoa não identifica como resultado de seu trabalho, mas
como uma forma de a empresa promover e manter a adesão às suas metas.
A moça resiste, diz que não vai, ao que o chefe insiste e, por fim, lhe diz: “Se
tu não fores, vai se arrepender...porque a festa será muito boa”. Ela continua
argumentando que não quer, que não pode ir. O chefe pega o telefone e, na
sua frente, diz a quem está do outro lado da linha para reservar três convites,
o da moça e de suas duas filhas. O que até então era um convite configura-se
claramente em uma ordem. “Por que tanta questão de que a moça vá a esta
festa?”, indaga outro participante do grupo. “Porque nada pode estar fora da
ordem!”, lembramos todos do refrão da música de Caetano Veloso.
Proponho pensar que a palavra ordem adquire, neste contexto, um
duplo sentido: não só uma ordem que o chefe dá à moça, a qual ela parece
se ver obrigada a cumprir, mas também uma ordem que penetra no tecido
social e encharca suas fibras, impondo suas cores às relações de trabalho
pós-modernas.
Refiro-me à ordem capitalista. De fato, a pós-modernidade testemunha
a hegemonia do capitalismo. Hegemonia sempre reinventada num esforço
canino para não abrir mão de sua lógica utilitarista. Harvey (1992) já mostrara
seu caráter processual e o quanto a sua lógica expansionista e imperialista
abarca todas as áreas da vida cultural.
Como diz Harvey, o capital é um processo, e não uma coisa. Um processo
que mascara e fetichiza, alcança crescimento mediante a destruição criativa,
cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do trabalho e do de-
sejo humanos. A voracidade com que ocupa espaços e a surdez com que nega
seus limites e seus efeitos encobrem os paradoxos nocivos que ele produz,

3
Trata-se do grupo de estudos que coordeno na Associação Psicanalítica de Porto Alegre e cuja
temática é liderança e poder nas relações de trabalho.

195
Rosana de Souza Coelho

cujos reflexos mais visíveis encontramos na relação entre capital e trabalho.


Sua marcha, sempre adiante, vem fazendo com que as fronteiras entre
a esfera pública e a esfera privada fiquem cada vez mais indiferenciadas. O
declínio da industrialização alarga o setor de serviços, e o acelerado desenvol-
vimento tecnológico vai configurando formas de trabalhar que privilegiam um
tipo de trabalho dito imaterial (Lazzarato; Negri, 2001). O valor recai então no
conhecimento, na informação, na comunicação e nas relações intersubjetivas.
A prescrição inerente à organização científica do trabalho passa a ter como
foco de organização e comando não mais as tarefas, mas a subjetividade do
trabalhador, aquilo que ele pode produzir ao “se dar” à sua tarefa (Gorz, 2005).
Contudo, à medida que a lógica capitalista se expande, suas contradi-
ções se tornam mais aparentes, fazendo com que ela precise ser interiorizada,
de tal forma que se acredite nela como condição de reprodução e perpetuação
dos efeitos que lhe são favoráveis, como a única ordem possível ou mesmo
desejável. Para isso, poder e saber intensificam sua intimidade e exibem um
vestuário discursivo up-to-date no qual o poder é mais sedutor, mais difuso,
mais sutil, tanto mais eficaz quanto mais interiorizado. Se a ética e o saber da
religião protestante foram o ancoradouro seguro para o engajamento e a mo-
tivação necessários à acumulação capitalista, a queda de Deus e o reinado da
ciência, que fundaram a modernidade e ainda perduram na pós-modernidade,
têm na gestão uma “figura do poder” (Enriquez, 2007) em que a repressão é
mais sutil, mais apoiada em discursos e em injunções paradoxais4.
Gaulejac (2007) aponta que o gerencialismo se revela em um modelo
cujo caráter é quantofrênico5, o qual não está a serviço de medir para melhor
compreender, mas de compreender apenas aquilo que pode ser medido. A
fascinação pelo pragmatismo leva ao “culto” da eficácia da ação, desprezan-
do qualquer proposta que tenha como parâmetro a reflexão. Seu universo é
eminentemente experimental, numa perspectiva funcionalista, normativa e
totalizante. Veiculado pela literatura empresarial destinada a executivos, o
discurso gerencialista não se limita ao saber puramente técnico. É antes uma

4
Para a apreciação mais detalhada sobre o discurso e o poder gerencialista, permito-me remeter
o leitor a minha dissertação de mestrado. COELHO, Rosana. Raciocina... mas obedece!: poder e
desejo nas relações de trabalho. Porto Alegre: UFRGS, 2011. Dissertação (Mestrado em Psicolo-
gia Social e Institucional), Faculdade de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
5
A expressão é utilizada por Gaulejac para se referir a um modelo que prima pela quantificação
e pelo pragmatismo. Ver Gaulejac (2009) Op. cit.

196
Poder e violência no discurso capitalista

literatura normativa que diz como deve ser, e não como é (Gaulejac, 2007).
Faz-se a gestão das competências do trabalhador tendo como parâmetro a
“qualidade total”. É imprescindível ter iniciativa, ser participativo e dinâmico,
comprometido com metas estabelecidas por outros e realizá-las com “erro zero”!
No mundo do trabalho construído por esses discursos, as ações são
norteadas por preceitos que enfatizam a importância de um sentido compar-
tilhado, mas desde que esse seja único, uníssono. Ao primado dos objetivos
financeiros, soma-se a produção da adesão e a mobilização psíquica dos
sujeitos. Assim, a gestão mobiliza e solicita, principalmente, desejos. Mas o ho-
rizonte prescritivo e totalizante que tais formações discursivas comportam nos
deixa ver um imaginário que insufla a representação de um mundo idealizado,
onde o conflito e a falha devem ser para sempre banidos. Nesse exercício de
poder-saber vemos a fantasia de um desejo que deve ser satisfeito, em que
saber e verdade coincidem.
A psicanálise, com Lacan, não fez ouvidos moucos aos efeitos do ca-
pitalismo. Em sua conhecida conferência de 1972, em Milão, ele apontou o
caráter autofágico do capitalismo com uma de suas criativas frases: “Isso se
consome, se consome tão rápido que se consuma”6.
É nessa conferência que ele propõe o discurso do capitalista

com o qual, penso, ele quis reescrever o discurso do mestre

para apontar os efeitos do capitalismo avançado no laço social.

6
No Seminário XVII, O avesso da psicanálise ([1969-1970] 1992), onde formula os quatro discur-
sos (discurso do mestre, discurso da histérica, discurso da universidade e discurso do analista),
Lacan não faz referências diretas a um quinto discurso. Entende-se que ele veio elaborando um
quinto discurso – denominado discurso do capitalista – nos anos seguintes, vindo a formalizá-lo
em 1972, em uma conferência em Milão. Ver “Milan, 12 de maio de 1972”. Em Lacan em Italia.
Milano: La Salamandra, 1972.
197
Rosana de Souza Coelho

Ao grafar o discurso do capitalista, Lacan o faz reescrevendo os luga-


res que S1 e o sujeito barrado ocupavam no discurso do mestre. Agora é o
S barrado que se encontra no lugar de agente, mas, ao invés das barras que
marcavam a disjunção entre o sujeito e o objeto a, Lacan escreve uma seta
que parte do objeto para o sujeito. Ou seja, o objeto a continua no lugar da
produção, e a seta o remete ao S barrado, nos permitindo pensar que é o objeto
que “produz” o sujeito. No discurso do capitalismo contemporâneo, a verdade
do sujeito e de seu objeto de gozo é marcada pelo atravessamento da lei do
mercado na lei do desejo. Na pós-modernidade é o mestre-capitalista quem
governa, imprimindo uma política que revela um apelo ao gozo, o que não é
sem efeitos para a subjetividade.
É do fascínio que o sujeito encontra nessa miragem de completude
e totalidade que o capitalismo vem angariando forças para alçar o discurso
gerencialista a saber hegemônico. A gestão mais insidiosa da subjetividade
parece favorecer o que Calligaris (1986) identifica como a inserção do sujeito
em uma montagem perversa na tentativa de uma “saída” que lhe permita certa
tranquilidade, o alívio de suportar-se em um “saber sabido” e compartilhado.
Zizek (1991) já nos lembrou que é próprio da lógica totalizante aproximar lei
e gozo às custas do permanente recalque das relações de dominação e sub-
missão que persistem nas relações intersubjetivas.
“É como a propaganda do Mastercard: não tem preço”: enunciação que
escutei de mais de um dos sujeitos de pesquisa, ao se referirem à satisfação
pelos resultados de sua gestão7. No capitalismo contemporâneo, o objeto
de consumo e o objeto do desejo se fundem para que o sujeito nada queira
saber do preço a pagar pela opção de implicar-se em seu desejo. O discurso
neoliberal autoriza a gestão do mal-estar através da livre escolha e disposi-
ção de fetiches para tentar “dar cabo” da angústia. Não é difícil perceber que,
principalmente no mundo do trabalho, o “bastão de comando” pode muito
bem ser um dos representantes mais eficazes, permitindo que se justifique e
se banalize certa “confusão” entre o apetite de gozo pessoal e o simbólico da

7
Aqui refiro-me ao sujeito como o concebe a psicanálise, sujeito do inconsciente. A “fala” que trago
é recolhida da escuta no trabalho de campo que fundamentou minha pesquisa de mestrado, a
qual sustentou-se no método e na ética da psicanálise. Conforme dissertação citada, na nota 4,
mais especificamente o capítulo 2. Utilizo enunciação acompanhando a distinção entre sujeito do
enunciado e sujeito da enunciação feita por Joel Dor em Introdução à leitura de Lacan: estrutura
do sujeito. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. v.2. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. Lacan
aborda essa distinção em uma passagem da lição de 22/04/1964 do seminário XI e relaciona a
enunciação à emergência do desejo: “Tudo que anima, o de que fala toda enunciação, é desejo”
(Lacan, [1964] 1990, p. 134).
198
Poder e violência no discurso capitalista

investidura. Diante da autorização sedutora do superego pós-moderno, que


ordena “Goza!”, reconhecemos o desafio do exercício de um poder que aceite
um quantum de subtração de gozo, face Outra do desejo, sempre ávido pelo
excessivo. Quanto a isso, lembremos, com Soueix (1997), que a categoria
de discurso em Lacan pretende indicar a maneira como o sujeito se situa em
relação ao seu ser. É, portanto, uma forma de regular o gozo.
Apontei acima que, diferentemente do discurso do mestre, a barra que
separa sujeito e objeto está ausente no discurso do capitalista e, em seu lu-
gar, Lacan faz uma seta que parte do objeto em direção ao sujeito barrado.
Chemama (1997) destaca esse aspecto, entendendo que Lacan pretendeu
assinalar que, em tal discurso, toda separação entre sujeito e objeto é evitada.
Propõe então lermos a→S, como “o sujeito diretamente comandado pelo objeto
que, no entanto, ele produz” (Chemama, 1997, p. 33). Lacan, no seminário O
avesso da psicanálise ([1969-1970] 1992) – portanto, pouco antes da Confe-
rência de Milão –, parece antecipar essa leitura, destacando a incidência do
consumo e do saber (assimilado à verdade) como mercadoria enquanto ícones
do capitalismo. O senhor, no capitalismo contemporâneo, é o próprio capital
em sua represen-tação mais sublime: a do “divino mercado” (Dufour, 2009).
Quanto a isso, ouçamos o próprio Lacan:

[...] o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o do senhor


moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do
saber. [...] Não se percebe que o que lhe é restituído não é, forço-
samente, a sua parte? Seu saber, a exploração capitalista efetiva-
mente o frustra, tornando-o inútil. Mas o que lhe é devolvido, em
uma espécie de subversão, é outra coisa – um saber de senhor. E
é por isto que ele não fez mais do que trocar de senhor. [...] O sinal
da verdade está agora em outro lugar. Ele deve ser produzido pelo
antigo escravo, isto é, pelos que são eles próprios produtos, como
se diz, consumíveis tanto quanto os outros. Sociedade de consumo,
dizem por aí. Material humano, como se enunciou um tempo – sob os
aplausos de alguns que ali viram ternura (Lacan, [1969-1970] 1992,
p. 32-33, grifado no original).

Ora, se na época fordista o “produto material” sobressaía, a ênfase em


aptidões relacionais e comunicacionais traduzida pela hegemonia do trabalho
imaterial faz da subjetividade um “produto imaterial” de destaque, mas, para que
o sujeito se torne uma “peça” importante, indispensável. Penso que, ancorando-
se na racionalidade capitalista pós-moderna, o discurso gerencialista incide
199
Rosana de Souza Coelho

diretamente na subjetividade com a intenção de instrumentalizá-la. E dizendo


isso pretendo tocar no segundo ponto contemplado no título deste artigo: a
violência no discurso capitalista.
Para tal, inicialmente, faço uma breve visita a um ensaio de Hannah
Arendt (1994) em que ela discorre sobre a violência, para ali recolher duas
pontuações que permitem um diálogo afinado com a psicanálise.
A primeira decorre de precisas críticas que ela tece justamente às teses
científicas que pretendem advogar a favor da concepção de violência como
ato irracional e, para isso, utilizam-se do grosseiro argumento de que o ser
humano compartilha propriedades com algumas espécies do reino animal. A
estas, ela responde de forma peremptória que “é exatamente o dom adicional
da razão que torna o homem uma fera mais perigosa” (Arendt, 1994, p. 47).
Resposta que podemos reler, à luz do que nos ensina a psicanálise, e dizer
que o argumento de que o ser humano é um ser racional só se sustenta às
custas de denegar que é justamente o uso da razão que pode nos tornar
perigosamente irracionais. A outra pontuação, que também julgo valiosa para
o tema do qual me ocupo, diz respeito ao que Arendt sublinha como sendo o
caráter instrumental da violência. Sobre isso, ela diz que, como todos meios,
a violência sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que al-
meja. O ato violento sempre precisa de implementos, tais como a tecnologia
e a fabricação de instrumentos, meios pelos quais a violência pode se afirmar.
Precisa de discursos, reitero, para acompanhar Arendt.
Costa (1986) também visita Arendt, para pensar a violência desde a
visada psicanalítica, e ilumina outro ângulo da querela que pretende assimilar
violência e irracionalidade. A esse respeito, conclui que “a aparente irracionali-
dade do comportamento violento deve-se ao fato de que a razão desconhece os
móveis verdadeiros de suas intenções e finalidades” (Costa, 1986, p. 29, grifo
meu). Para Costa, a violência é irracional quando e porque se dirige a objetos
substitutivos. Ele afirma que a aparente irracionalidade de um ato violento não
desfaz, por si só, o “mal-entendido” que pretende justificar a violência como
algo da ordem do instinto e, portanto, natural e inevitável, propondo pensarmos
a violência como o emprego desejado da agressividade (Costa, 1986, p. 30,
grifo meu). Com o autor, penso que os objetos, motivos e finalidades de um
ato violento podem ser “racionalizados”, isto é, imputados a pessoas, coisas
ou fenômenos substitutivos. Contudo, isso não atesta a origem irracional da
violência humana, antes, mostra que ela porta a marca de um desejo (Costa,
1986, p. 30, grifo meu).
Desejo que funda o sujeito cujo efeito não é outro senão aquele que
emerge de um laço discursivo (Lacan, [1975-1976] 2007). Discurso que, no
capitalismo pós-moderno, ao circunscrever seu domínio de sociabilidade, lucra
200
Poder e violência no discurso capitalista

com a opção de substituir a coerção explícita por regulação mais insidiosa da


subjetividade, obtida pela via do domínio instrumental (Peixoto Junior, 2003).
Exercício de poder tanto mais eficaz quanto mais invisível, violência que se
instrumentaliza numa mescla de desejo e gozo.
Para concluir, lembro que Freud, corajosamente, apontou nosso de-
samparo diante do mundo que nos cerca, do nosso corpo que fenece e do
outro que “arranha” nosso narcisismo (Freud, [1930] 1976). Em seu ensino,
Lacan assinalou que a entrada na linguagem não é sem consequências, nos
mostrando que o real pode ensejar a violência na forma de uma possível
resposta do sujeito em determinado laço social, notadamente quando falta o
reconhecimento da palavra. Apontamentos que utilizo para “ler” os efeitos do
discurso capitalista na contemporaneidade, mas também para considerar que,
não obstante o triunfo da técnica, esse algo que resta e insiste na relação entre
os homens é justamente o que pode nos convocar a ressituar o sujeito e o
desejo como elementos indissociáveis a uma ética e uma política que resistam
à instrumentalização social do gozo. É por essa via que a psicanálise pode
contribuir para uma gestão do mal-estar (Birman, 2006) que não se recuse a
pôr em jogo a heterogeneidade entre vida coletiva e desejos singulares, mas
utilize essa heterogeneidade como reinvenção de novas formas de trabalhar,
amar e viver.

REFERÊNCIAS

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BIRMAN, Joel. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização
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201
Rosana de Souza Coelho

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ENRIQUEZ, Eugène. As figuras do poder. São Paulo: Via Lettera, 2007.
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Recebido em 07/05/2012
Aceito em 30/08/2012
Revisado por Simone Goulart Kasper e
Otávio Augusto Winck Nunes

202
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 203-209, jul. 2011/jun. 2012

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TEXTOS TGEQPEGKVWCÑ’Q"FQ"FCPQ"GO"
FGNKVQU"FG"NGUC/JWOCPKFCFG<"
cpânkug"fg"wo"ecuq
Fabiana Rousseaux1

Tguwoq<"A partir do trabalho realizado no Centro de Assistência a Vítimas de Viola-


ções de Direitos Humanos “Dr. Fernando Ulloa”, da Secretaria de Direitos Humanos,
enfrentamos a necessidade de uma reconceituação da ideia de dano, em delitos de
lesa-humanidade, a partir de uma experiência de trabalho que demonstra a impossibi-
lidade de utilizar categorias clínicas, derivadas dos manuais de psiquiatria imperantes
na época, para avaliar os danos que se depreendem desses particulares delitos. Para
dar conta disso, trarei o recorte das coordenadas históricas de um caso que demonstra
como as políticas de reparação promovidas ou canceladas pelos Estados incidem sobre
a construção de um discurso ético-científico.
Rcncxtcu/ejcxg<"reparação, dano, lesa-humanidade.

TGRCKTKPI"RQNKVKEU"CPF"TG/EQPEGRVWCNK\CVKQP"QH"FCOCIGU"KP"
ETKOGU"CICKPUV"JWOCPKV[<"cpcn{uku"qh"c"ecug
Cduvtcev< From the work done at the assistance to the victims of the human rights
Center “Dr. Fernando Ulloa”,of the human rights secretariat, we faced the need of
a re-conceptualization of the idea of damage in crimes against humanity, from a
work experience that shows the impossibility of using clinic categories, derived from
psychiatric manuals, prevalent at the time, to evaluate the damages that were inferred
from this particular crimes.To solve this,I will bring the snippet of the historical coor-
denades of a case that shows how the reparation policies promoted or canceled
by the state affect the construction of an ethic-scientific speech.
Mg{yqtfu< reparation, damage, against humanity.

1
Psicóloga, graduada na Universidade de Buenos Aires; Diretora do Centro de Assistência a Ví-
timas de Violações de Direitos Humanos Dr. Fernando Ulloa, da Secretaria de Direitos Humanos
do Ministério de Justiça e Direitos Humanos, Argentina. E-mail: fabianarousseaux@hotmail.com
203
203
Fabiana Rousseaux

A partir do trabalho realizado no contexto do Centro de Assistência a Vítimas


de Violações de Direitos Humanos “Dr. Fernando Ulloa”, da Secretaria
de Direitos Humanos/Buenos Aires/Argentina, enfrentamos a necessidade
de uma reconceituação da ideia de dano, em delitos de lesa-humanidade,
a partir de uma experiência de trabalho que nos devolve, repetidas vezes,
a impossibilidade de utilizar categorias clínicas, derivadas dos manuais de
psiquiatria imperantes na época, para avaliar os danos que se depreendem
desses particulares delitos.
Para dar conta disso, trarei o recorte das coordenadas históricas de
um caso que foi paradigmático durante a década de 90, na Argentina, e que
demonstra como as políticas de reparação promovidas ou canceladas pelos
Estados incidem sobre a construção de um discurso ético-científico, já que os
processos clínicos podem – através de suas leituras e construções narrativas –
anular os processos históricos, com sua consequência direta sobre os sujeitos:
anular também o processo de reparação do que foi danificado.
O tratamento institucional que às vezes recai sobre esses temas pode
provocar a forclusão de um fato central, que é a responsabilidade enquanto
representação de uma função pública, a qual cada profissional encarna no
momento de emitir parecer técnico sobre o dano ou sobre o estado de saúde
mental do sujeito cuja vida foi arrasada pela violação sistemática de direitos
humanos.
Apesar de ter recebido a autorização dos afetados para publicar seu
caso, não vou dar a conhecer nem a identidade deles, nem a das instituições
que intervieram. Interessa-me antes analisar as “coagulações” institucionais
que derivam de práticas repetitivas ligadas a certas significações da “saúde
mental”.
Muitos de vocês recordarão a história que teve importância midiática,
em épocas em que os horrores cometidos pelo terrorismo de Estado saltavam
à luz na Argentina, inscrevendo o que depois passou a ser chamado “show do
horror”, pelo tratamento obsceno e sem véu que a exumação da memória do
ocorrido teve por parte dos meios de comunicação. Em meio a essa lógica,
sustentada e aprofundada anos mais tarde, a partir do próprio Estado, na
infausta década de 90, duas crianças, gêmeas, que haviam sido apropriadas
por um ex-subcomissário e sua esposa, apareciam por todos os canais de
televisão, dizendo que “queriam continuar ao lado de seus apropriadores”.
O debate televisivo deu lugar a tudo. E com isso me refiro a essa dimensão
do “tudo”, em que a impudicícia não faz fronteira, onde não cabe a função de
privação, dado que ali ninguém se privou de dizer nem de mostrar nada, nem
os meios nem a opinião pública, situando as crianças como prova do “pior”.
204
204
Políticas reparatórias e reconceituação...

As crianças haviam nascido em cativeiro durante o ano 1977, e ambos


os pais ainda hoje permanecem “desaparecidos”. No momento do sequestro,
a mãe das crianças estava grávida de seis meses. Ela e seu marido foram
vistos no CCD2 La Cacha, um dos 500 centros clandestinos que funcionaram
na Argentina. Imediatamente depois da separação violenta e forçada de sua
mãe, no momento do parto em uma prisão clandestina, e dada a prematuridade
dos bebês, ambos foram postos em uma incubadora, já que no hospital para
onde haviam sido transladados não havia duas incubadoras, apenas uma.
Poderia passar-nos desapercebido esse dado, uma vez que o contexto quase
o naturaliza. Contudo, nos parece que a partir do momento do sequestro, cada
fato, cada ato, cada violação deve ter o “estatuto de marca”. Ou por acaso
essa imagem não é a representação da objetalização extrema de uma criança
que acaba de nascer?
Cabe assinalar que no delito de apropriação se produzem vários delitos
simultâneos: sequestro clandestino, tortura, assassinato, roubo, desaparição,
entre outros. Ao tratar-se do sequestro de uma mulher em estado de gravidez,
com objetivo de apropriar-se de seus filhos, esses delitos atrozes recaem
sobre o corpo e a constituição subjetiva das crianças em gestação, tal como
refere o informe técnico apresentado ante a causa Nº. 10326 – Franco Rubén
Nicolaides e Carlos Suárez Mason, sobre subtração de menores, iniciada
em dezembro de 19963 – o que já define as crianças como sobreviventes da
tortura praticada contra o corpo de sua mãe e deles mesmos. A afecção que
esse delito constitui é de tal grau, que deve ser considerada entre as mais
graves formas de vulnerabilização da integridade, não somente psíquica, mas
também física, já que foi posta em risco a própria vida dos recém-nascidos.
Tal como consta no mencionado ditame: “a natureza, gravidade e persistência
dos danos psíquicos que uma criança recém-nascida sofre são de diversas
ordens” (Argentina, 1996, p. 5).
No dia 24 de fevereiro de 2011, a sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, vinculada ao caso Gelman vs. Uruguai, expressa no ponto
118 que o fato de

2
Sigla de Centro Clandestino de Detención, instalações secretas do governo onde eram alojados,
torturados e executados opositores do regime militar que ocupou o poder na Argentina entre 1976
e 1983. (N. T.)
3
Esse Informe pericial foi realizado em Buenos Aires e apresentado em 18 de setembro por Eva
Giberti e os Drs. Maria Isabel Punta de Rodulfo, Ricardo Rodulfo e Fernando Ulloa, perante o
juiz Federal Dr. Adolfo Luis Bagnasco em referência à causa supracitada.

205
Fabiana Rousseaux

[…] ter-se inteirado das circunstâncias da morte de seu pai biológico,


como da violação de seu direito a conhecer a verdade sobre sua
própria identidade, da falta de investigações efetivas para o escla-
recimento dos fatos e do paradeiro de María Claudia García (sua
mãe) e, em geral, da impunidade na qual o caso permanece, o que
lhe gerou sentimentos de frustração, impotência e angústia (Corte
Interamericana de Direitos Humanos, 2011, p.125).

Deste modo, entendemos imediatamente que esses episódios consti-


tuem danos indimensionáveis, os quais nenhum profissional pode reduzir a
mera tabulação psiquiátrica.
Nos casos de apropriação de crianças, com todos os agravantes que
essas apropriações tiveram, mesmo quando o vínculo de filiação foi restituído
pelo acionar da justiça, devemos saber que tais vínculos nunca serão restituídos
em sua totalidade, já que o impacto extremamente traumático que os atravessa
torna impossível que as coisas retornem ao estado anterior ao “arrancamento”
materno em momentos determinantes para a vida de qualquer sujeito.
Voltando ao informe da causa Nicolaides e Suarez Mason,

[…] as provas oferecidas por todos os âmbitos científicos pertinentes


são absolutamente concludentes quanto a que o dano psíquico e os
traumatismos psíquicos e físicos dos mais diversos tipos sofridos
pela mãe são trasladados, tanto ao feto quanto ao recém-nascido,
e repercutem diretamente sobre ele e devêm prejuízos ou agentes
patogênicos (Argentina, 1996, p. 5).

Por outro lado, um dos signos mais notórios que costumam emergir
na casuística clínica de tais casos é precisamente um “transcorrer como se
nada tivesse acontecido”, durante determinado tempo, até que esse horror
se imponha na vida dessas pessoas, e apareçam ali sintomas muito diversos
ligados aos episódios de extrema crueldade a que foram submetidas quando
se achavam na máxima indefensabilidade, já que “…a falta de provisão de
ternura e outros afetos concomitantes não é uma mera insuficiência ou déficit,
mas opera, entretanto, como um grave agente desestruturante e gerador de
patologia tanto física quanto psíquica” (Argentina, 1996, p.6).
Nesse sentido, o discurso que enquadra as leituras a respeito dos sin-
tomas que escutamos nos obriga a pôr em contexto o que emerge da verdade
enunciada pelo sujeito que fala, já que eludir o significado dessas verdades
subjetivas no texto social em que se inscrevem pode desorientar-nos e virar
nosso olhar para uma espécie de sustentação do pior, da calamidade, à qual,
206
206
Políticas reparatórias e reconceituação...

como sociedade, já deveríamos ter deixado de nos acostumar.


Atravessa-nos, nessa função, uma responsabilidade que se curva à do
segredo profissional e é a responsabilidade ética de não anular, como anali-
sador clínico, os crimes cometidos pelo próprio Estado em épocas de terror
generalizado, diminuindo o valor que assumem tais crimes na produção de
marcas subjetivas. Podemos seriamente supor que depois do que foi relatado
não há dano? Pois alguns profissionais sustentam que sim.
Continuando com o caso, cabe esclarecer que a série delitiva continuou.
Em 1984, os apropriadores fogem para o Paraguai com as crianças, frente à
intervenção da justiça. Em 1987, é decretada prisão preventiva, a fim de obter
sua extradição. Em 1989, as crianças regressam ao país. Em 1990 se dá a
extradição dos imputados.
Aqui nos detemos: em 1991, a juíza interveniente no caso solicita a um
hospital público um informe para determinar o estado de saúde psíquica das
crianças para, desse modo, decidir o que convinha fazer com a vinculação
familiar em relação aos apropriadores e à “família de origem”, tal como veio a
chamar-se, a partir do discurso jurídico-social, cada um dos universos postos
em jogo nessas histórias que, de tão trágicas, às vezes soam inverossímeis.
Nesse ano, o apropriador encontrava-se com prisão preventiva.
No mencionado hospital, recomenda-se manter a ligação afetiva das
crianças com os apropriadores, para o bem das crianças, tendo em conta que
elas haviam expressado o desejo de continuar ao lado de seus apropriadores,
a quem, inevitavelmente como crianças, deviam considerar seus pais. Esse
suposto bem das crianças, que alguns profissionais confundem com uma
escolha do indecidível, é uma armadilha descarnada, já que não se trata de
que a vítima do delito escolha o que na verdade a justiça deve dirimir nesses
casos de violações de direitos humanos. Dilema ético que supõe a possibilidade
de deixar de fora o delito sobre o qual se baseia essa ligação afetiva, ou, no
melhor dos casos, um esvaziamento da dimensão de delito, reduzindo-o ao
campo de delito comum. No entanto, trata-se – e aqui radica a centralidade da
análise – de delitos de lesa-humanidade, ou seja, que não apenas lesionam
as vítimas diretas, mas a humanidade em seu conjunto.
Em 1993, um juiz ordena a restituição das crianças a sua família biológica
e, mais adiante, elas são entregues a uma terceira família até alcançarem a
maioridade, dado o conflito familiar que havia se desencadeado a partir da
revinculação com a família de origem.
Isso se produz, não obstante em 1994 fosse editada a sentença, tendo
o apropriador sido condenado a 12 anos de prisão por delitos de retenção e
ocultação de menores de dez anos, enquanto a apropriadora haja sido con-
denada a três anos, pelos mesmos delitos.
207
Fabiana Rousseaux

Uma das crianças padeceu, durante os primeiros anos de vida, de he-


morragias no nariz e, em sua história clínica, consta o quadro de epistaxe. O
nome epístaxis tem sua origem no grego e significa fluir gota a gota, ao modo
de uma perfeita metáfora do sintomático calado em um corpo infantil que
desconhece o mais íntimo de sua linhagem histórico-sanguínea.
Não é minha intenção fazer aqui uma interpretação fora de qualquer
enquadramento transferencial, nem forçar nexos causais que se tornam tão
necessários na hora de apoiar-nos em um discurso quantificável e medicável
ao extremo, para dar conta da incomensurável dor psíquica. Sabemos que o
diagnóstico ou a avaliação frente a uma situação de tamanha envergadura
não podem ser lidos a partir de um mero enumerador com significados e es-
tipulações categoriais.
O ideal objetivo que o juiz nos aponta, e no qual a lógica positivista nos
submerge, não nos permite escutar o discurso do qual fala o sujeito apropriado,
nesse caso, ou torturado em outros ou, ainda, enlutando a desaparição eterna
em outros. Qual verdade buscam os profissionais da saúde mental? Em que
verdade teórica devemos situar-nos? A histórica? A subjetiva? Que legalidade
nos atravessa nesses casos?
Os modos de construção da narrativa subjetiva frente ao horror não
podem deixar de nos interpelar. O que buscamos ali, nessa fronteira do dis-
curso, na trincheira semântica da dor? Se nosso recurso teórico se apoia em
um suposto bem do sujeito, pode tornar-se paradoxalmente consequente com
a sustentação do sofrimento, ante a irrupção violenta da história mais trágica.
Uma nova virada em suas vidas faz com que, no ano 2005, os irmãos
solicitem indenização por dano, nos marcos da lei de reparação que o Estado
tem a obrigação de dar àqueles que, sendo menores de idade, foram privados
de sua liberdade com relação à detenção de seus pais ou sofreram substi-
tuição de identidade. De seu expediente se depreende que essa solicitação
é enquadrada por um dos beneficiários do seguinte modo: “dano psicológico
por supressão de identidade de que fui vítima depois de meu nascimento em
cativeiro, após o desaparecimento forçado de meus pais”4.
Em dezembro desse ano, um serviço de estresse pós-traumático de um
hospital público realiza a avaliação solicitada pela mencionada lei reparatória.
Ali se dá o parecer de que: “não foi encontrada patologia psiquiátrica nem sig-

4
Expediente por tramitação de lesões apresentado perante a Secretaria de Direitos humanos da
Nação. Os expedientes das leis de reparação econômica não são de uso público, mas perten-
cem à esfera privada do beneficiário, motivo pelo qual não é possível oferecer mais informação
a esse respeito.

208
208
Políticas reparatórias e reconceituação...

nos de sintomatologia compatível com transtorno por estresse pós-traumático”,


portanto são negados o dano e a reparação do mesmo.
Em meados de 2011, os irmãos tornam a pedir o desarquivamento do
expediente, para reavaliação do caso, sustentando uma pergunta que nos
devolve a interrogação ética: que dano tenho de demonstrar para que o Estado
reconheça o que o próprio Estado fez com minha vida?
A lei diz que isso deve ser definido por profissionais de hospitais públi-
cos que decidam se esses acontecimentos provocaram ou não dano nesses
sujeitos; decisão que nos interroga como comunidade científica, mas sobretudo
como funcionários públicos deste país, que não pode deixar suas marcas de
lado para pensar as categorias clínicas que melhor se ajustem às tabulações
clínicas.
Na edição de 1976 de “Se isto é um homem”, foi acrescentado ao livro
um apêndice que inclui respostas de Primo Levi às frequentes perguntas que
seus leitores lhe faziam.

Por isso, meditar sobre o que aconteceu é dever de todos. Todos


devem saber, ou recordar… Os monstros existem, mas são dema-
siado poucos para ser realmente perigosos; mais perigosos são os
homens comuns, os funcionários prontos para crer e obedecer sem
discutir (Levy, [1958-1976] 2002).

REFERÊNCIAS

ARGENTINA. Informe técnico pericial ante la Causa nº 10326 – Nicolaides, Cristino;


Franco, Rubén; Suárez Mason, Carlos, sobre sustracción de menores. Buenos Aires,
1996.
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS . Caso Gelman vs Uruguay-
fondo y reparaciones, sentencia del 24 de febrero del 2011. Disponível em: http://www.
corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_221_esp1.pdf. [Acesso em 18 de dezembro
de 2012].
LEVY, Primo. Apendice [1976]. In: ______. Si esto es un hombre [1958] Barcelona,
Muchnik Editores, 2002.

Recebido em 30/08/2012
Aceito em 22/12/2012
Revisado por Sandra D. Torossian

209
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 210-215, jul. 2011/jun. 2012

ENTREVISTA

RUKECPıNKUG"G"UGWU"NKVQTCKU

Maria Cristina Kupfer

Se Freud duvidava de que a psicanálise pudesse ser transmitida dentro das uni-
versidades, ao longo do tempo constatamos que a dúvida dele não se transformou
em certeza. Há muitos anos, são muitos os psicanalistas que constroem novas
fronteiras para que a psicanálise esteja dentro da academia, com isso avançando
em diversos pontos importantes da psicanálise e não se furtando a se posicionar,
quando preciso, ao dialogar com outros campos de saber.
Neste número, propomos uma série de questões, que versam sobre a construção
dessas fronteiras, para a psicanalista Maria Cristina Machado Kupfer, a qual,
com uma trajetória muito singular, conseguiu levar adiante o desafio de colocar a
psicanálise em diversos campos. Ela é professora titular do Departamento de Psi-
cologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de
Psicologia da USP, editora da revista Estilos da Clínica, do mesmo instituto, editada
conjuntamente com o LEPSI (Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas
e Educacionais sobre a Infância) e em colaboração com a Associação Lugar de
Vida, da qual é diretora e uma de suas fundadoras.
Em 1990, participa da fundação do Lugar de Vida, um serviço do Departamento de
Psicologia da USP voltado ao tratamento e acompanhamento escolar de crianças
e adolescentes com problemas psíquicos. O tratamento é realizado por meio de
atendimento psicanalítico individual e em grupo, em ateliês de escrita, música,
contação de histórias, culinária, jogos e brincadeiras. Para além dos tratamentos, é
um centro de referência e formação de profissionais, pesquisadores e estudantes da
210
Psicanálise e seus litorais

área de saúde mental e educação, funcionando, atualmente, como uma associação.


Em 1998, Maria Cristina, em parceria com o psicanalista e professor da Faculdade
de Educação da USP Leandro Lajonquière, funda o LEPSI, um laboratório interu-
nidades que, ao ter a psicanálise como eixo, promove e desenvolve iniciativas de
ensino, de investigação e de extensão, em torno dos temas de educação familiar
e escolar, assim como da educação terapêutica na infância. O LEPSI, em seu VII
Colóquio Internacional, lança, em 2008, com associados franceses, a convocatória
para a construção da Rede Internacional Universitária em Educação e Psicanálise
– RUEPSY.
É ainda cocoordenadora do Grupo de Trabalho Psicanálise, Infância e Educação
da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia).
Voltada às crianças com transtornos globais do desenvolvimento, foi uma das
coordenadoras da pesquisa multicêntrica, vinculada ao Ministério da Saúde, que
apontou os Indicadores Clínicos de Risco Psíquico para o Desenvolvimento Infantil.
Aproveitando a riqueza de suas experiências no litoral entre psicanálise, educação,
universidade e clínica, propusemos à nossa entrevistada questões que atravessam
todos os psicanalistas que trabalham na borda do que Lacan nomeou psicanálise
em extensão.

Desejamos a todos uma boa leitura!

REVISTA: Neste número da Revista da APPOA, estamos privilegiando


o debate da psicanálise com outros campos de saber. A indicação de Lacan
sobre a distinção entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão
sustenta que esse debate é necessário e produtivo a todos. O diálogo entre
essas duas práticas nem sempre é feito sem provocar muita resistência, o que
não é necessariamente ruim, mas que pode dificultar o reconhecimento das
contribuições que a psicanálise – através da hipótese do inconsciente – pode
produzir. Como você vê essa questão e qual o trabalho necessário para que o
diálogo se efetive ainda mais? Como considera que o psicanalista pode propor
intervenções no campo social, mantendo a especificidade de sua práxis?
MARIA CRISTINA KUPFER: Em meu percurso, tenho privilegiado o
debate, mas também o diálogo com um campo de saber em especial, o campo
da educação. Vocês falam em resistência a esse trabalho. Tenho enfrentado
justamente muita resistência, mas posso dizer que a principal resistência não
é a dos psicanalistas que recusam o que poderia aí haver de psicanálise em
211
Maria Cristina Kupfer

extensão; ela vem sobretudo dos próprios educadores. Ao solicitarem que a


psicanálise venha em seu auxílio a partir do acionamento do discurso do uni-
versitário – ou seja, solicitam um saber que os objetaliza – só posso entender
o movimento desses educadores como resistência. A transferência imaginária
com que os educadores brindam os psicanalistas não os põe a trabalhar, mas
os fixa em uma posição que não os leva a nada, mas os mantêm aí. O trabalho
da psicanálise no campo educativo pode então ser localizado como aquele
que leva à produção de giros discursivos e opera alterações na posições que
os educadores ocupam em relação ao seu saber e ao seu desejo. Será que
podemos dizer que esse trabalho é legitimamente psicanalítico? Acredito que
sim, porque opera com a transferência e com a interpretação (não a clássica,
naturalmente) que faz giro. Pode ser feito em grupos de professores, por
exemplo. Pode ser feito com professores em creches, como tenho feito ulti-
mamente. Há um mundo enorme de possibilidades de trabalho que prossegue
sendo psicanálise ainda que não seja o tratamento-padrão.

REVISTA: Como você considera que o conceito de transferência, concei-


to fundamental da psicanálise, pode ser articulado nas práticas institucionais,
em que o psicanalista participa de uma equipe? Qual a sua experiência em
relação à presença dos analistas em equipes de saúde mental, ou mesmo na
educação?
MARIA CRISTINA KUPFER: A noção de transferência sofreu várias
torções e releituras desde que Freud a inventou no caso Dora. Vou propor
mais uma: Claude Boukobza (1997) dizia que em uma equipe de profissio-
nais ouvidos por um psicanalista, o trabalho consiste em fazer um holding do
holding. Ela está com isso apontando que se deve realizar um suporte para
aquele profissional (seja ele de saúde mental ou de educação) que, por sua
vez, também deverá realizar um suporte a seu cliente ou aluno. Boukobza está
partindo de uma perspectiva winnicottiana, mas penso que poderíamos talvez
aproximar essa noção daquela de transferência imaginária. Em uma análise,
ela é necessária mas não é suficiente; em uma equipe de saúde mental, ela é
suficiente para a produção, em alguns momentos, dos giros a que me referi na
pergunta anterior. São giros que não levam um profissional a usufruir dos efeitos
do tratamento-padrão, mas o levam a mudanças de posição que o levarão a
escutar de outro modo a pessoa que ele for escutar ou tratar em sua instituição
de trabalho. De todo modo, vale lembrar: “Desde que haja uma pergunta, desde
que haja discurso endereçado, [...] isso faz um quadro transferencial, mesmo
que se limite à transferência imaginária” (Vorcaro, 2008, p. 162).

212
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Psicanálise e seus litorais

REVISTA: A ênfase na produção de pesquisa psicanalítica e a sua divul-


gação podem servir de instrumento que subsidie intervenções clinicopolíticas?
Você acha que essa já é uma realidade nos serviços de saúde do Brasil?
MARIA CRISTINA KUPFER: A pesquisa psicanalítica não é apenas uma
estratégia científica para a psicanálise; é também uma estratégia política. A
pesquisa nos insere no mundo da produção de conhecimento contemporânea
e, seja ela ou não dominada por interesses ideológicos, ainda assim é a vitrine
que temos em nosso mundo. Quando a pesquisa é apresentada em revistas
de impacto, isso significa que ela vai ser lida por um chinês na China. E por
isso é também um instrumento político; dar visibilidade à psicanálise é garantir
sua disseminação e portanto manter preservado (e ampliar) o espaço conquis-
tado no mundo contemporâneo. Mas a pesquisa psicanalítica está longe dos
serviços de saúde pública do Brasil. Estamos trabalhando para aumentar sua
penetração nesse âmbito!

REVISTA: No seu texto Psicanálise em instituições, publicado no Correio


da APPOA, nº 83, em 2000, você apontava as dificuldades em considerar as
práticas que têm uma direção inversa à do tratamento padrão e que vão do real
em direção ao simbólico como uma ampliação legítima do campo freudiano.
A aposta no conceito de clínica ampliada foi muito grande. Hoje se fala tam-
bém no conceito de clínica implicada. Para você, podemos pensar que esses
conceitos são operadores nos campos da psicanálise e da saúde mental?
MARIA CRISTINA KUPFER:Ampliação e implicação. Sem dúvida, são
operadores no campo da psicanálise, da saúde mental... e da educação! É
bem interessante olhar para os movimentos teóricos que buscam alargar as
fronteiras do território da psicanálise. Ganhar terrenos ao mar! A implicação
tem servido de referência para Voltolini (2002), para quem Freud não explica,
mas Freud implica. A ideia da implicação serve à psicanálise em extensão
porque nela se trata de que o sujeito se reconheça implicado em sua queixa.
Essa implicação não o leva a uma análise, mas a uma mudança de posição
em relação a ela.

REVISTA: Você entende ser a universidade um lugar privilegiado para


a transmissão da pesquisa psicanalítica? As dificuldades encontradas para
a pesquisa psicanalítica no campo acadêmico são mais de cunho político ou
científico?
MARIA CRISTINA KUPFER: O campo acadêmico é o lugar em que
menos tenho encontrado dificuldades para desenvolver pesquisa psicanalítica.
Se o pesquisador reconhecer que há uma discursividade própria da universi-
dade – e aqui não me refiro ao discurso do universitário – ou seja, se há uma
213
Maria Cristina Kupfer

legalidade própria daquela instituição, um cerimonial, um conjunto de regras


de trabalho, e se ele as aceitar, não terá problemas em fazer pesquisa aca-
dêmica. Antigamente, o psicanalista forçava a aceitação, pela universidade,
de um discurso típico das instituições psicanalíticas, de um texto hermético
que nada tinha a ver com pesquisa. Não havia pesquisa, mas apenas um
conjunto de afirmações que não estavam sujeitas ao debate. Eram apenas
a transmissão da pura verdade. Resultado: os órgãos de apoio à pesquisa
recusavam financiamento para suas pesquisas. Hoje esse cenário mudou, e
muitos psicanalistas, trabalhando inteiramente dentro da metodologia psica-
nalítica, recebem financiamento, seus orientandos recebem bolsas e publicam
em revistas científicas de psicanálise com impacto, ou seja, são lidos por um
número significativo de pesquisadores em outras partes do mundo.
O que não quer dizer que a discursividade acadêmica seja maravilho-
sa. Ela está naturalmente carregada dos moldes americanos dos papers,
das exigências descabidas da CAPES relativas à publicação de artigos em
revistas científicas, etc. Isso tudo nós conhecemos, tem caráter político e
devemos combater. Mas eu diria que a universidade recebe bem a pesquisa
em psicanálise contanto que ela aceite a “castração”, contanto que aceite ser
avaliada por pares. Sei que há quem não concorde com isso, uma vez que a
psicanálise veio ao mundo para subverter e não para submeter-se. Veio para
“fazer furo” no campo social. Mas suspeito que, se o psicanalista pesquisador
não topar a avaliação universitária, seu barco é que será furado e afundado...

REVISTA: Mudando a perspectiva desta entrevista, você considera per-


tinente falarmos de prevenção na infância, se o próprio conceito de prevenção
é, ainda, questionável na própria psicanálise? Suas experiências nesse campo
legitimam a ideia de prevenção?
MARIA CRISTINA KUPFER: Quando falamos de prevenção – e eu con-
tinuo falando de prevenção – não estamos nos referindo a algo como evitar os
destinos e vicissitudes pelas quais poderá passar uma criança no decorrer de
sua constituição subjetiva. Mas precisamos “garantir” que uma constituição se
efetue – qualquer que seja a sua direção – ou seja, precisamos acompanhar o
surgimento de um sujeito no campo da palavra e da linguagem. Se encontra-
mos, muito cedo, sinais de risco de que o sujeito não venha a se constituir ou,
melhor dizendo, riscos de que não se constituam as referências mínimas para
que um sujeito venha a poder dizer-se, então vamos intervir para restabelecer
essas condições. Não é isso uma prevenção, em sentido amplo?

REVISTA: Estamos testemunhando, atualmente, uma forte resistência

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Psicanálise e seus litorais

à prática da psicanálise, em especial nos atendimentos às crianças autistas.


Como nós, psicanalistas, podemos fazer frente a isso?
MARIA CRISTINA KUPFER: Fazendo frente. Ou seja, criando frentes de
trabalho. Organizando grupos que irão cuidar das múltiplas frentes de combate
a essa desqualificação. E quais são essas frentes? Um grupo “de olhos bem
abertos” em frente aos gabinetes de políticos, para impedir que nos passem
“rasteiras”, como a que sofremos quando a psicanálise, antes presente, foi reti-
rada de um documento de diretrizes para o atendimento do autismo preparado
pelo Ministério da Saúde (coisa que também ocorreu de modo semelhante na
França); um grupo que cuide da mídia; um grupo que cuide da conversa com
a universidade. Um grupo que se encarregue de dar visibilidade à produção
psicanalítica nos melhores moldes acadêmicos. E sobretudo, acima de tudo,
todos cuidando de suas próprias práticas – mais do que da prática dos outros
– para produzir resultados cada dia mais eficazes no tratamento do autismo.
Ah! E não se esquecendo de prosseguir produzindo a respeito da psicose
infantil, da qual acabamos por nos esquecer frente à enorme pressão de tudo
ser transformado em autismo.

215
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 216-235, jul. 2011/jun. 2012

RUKECPıNKUG"G"KFGQNQIKC
RECORDAR
REPETIR
ELABORAR
Abrão Slavutzky
Ernildo Stein
Helio Pellegrino

Era início dos anos 80 no Brasil. Éramos seis estudantes de psicologia: Ademar
Becker, Analice Palombini, Dóris Blessmann, Edson Sousa, Kátia Frizzo, Paulo
Slomp. Celular, internet, computador não tinham dado as caras ainda. Escrevíamos
em máquinas datilográficas e ligávamos de telefones públicos para convidar os
palestrantes do simpósio que organizaríamos em outubro de 1981 e que nomeamos
como I Simpósio Alternativas no Espaço Psi.
Unia-nos a vontade de discutir os temas a que éramos confrontados em nossa
graduação de psicologia, e a necessidade de engajamento na vida política em
nosso país. Eram tempos, ainda, de luta contra a ditadura. Com efeito, um dos
pontos altos desse evento foi a mesa-redonda intitulada Psicanálise e Ideologia,
da qual participaram Abrão Slavutzky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino. Os três
palestrantes procuraram mostrar o quanto a prática psicanalítica não pode dar as
costas ao seu tempo, sob pena de perder o essencial dos princípios que animam
sua ética. Essa mesa-redonda talvez tenha sido a primeira manifestação de Hélio
Pellegrino, em Porto Alegre, depois de sua expulsão da Sociedade Psicanalítica do
Rio de Janeiro (SPRJ) em 1980, junto com Eduardo Mascarenhas. Foram expulsos
por denunciarem as posições políticas de conivência da SPRJ com a ditadura no
Brasil. No momento em que revisitamos nossa história, sobretudo com o importante
trabalho da Comissão Nacional da Verdade, é comovente acompanhar o relato
de Pellegrino sobre sua prisão pela ditadura e as denúncias contra Amilcar Lobo,
médico aceito como candidato na SPRJ, mesmo com provas evidentes de que
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Psicanálise e ideologia

tomara parte em atos de tortura no DOI-CODI do Rio de Janeiro. Lobo tinha como
analista-didata Leão Cabernite, na época, presidente da SPRJ.
Este texto foi publicado naquele momento, em forma de livro, numa
edição quase “caseira”, mas que foi, sem dúvida, uma fonte importante nos
debates que se seguiram desde então. Disponibilizá-lo novamente, neste nú-
mero da Revista da APPOA, é uma forma de recolocar em cena esse debate
histórico, evidenciando o compromisso político da psicanálise com seu tempo.

Analice Palombini
Edson Sousa

Eqqtfgpcfqt"fc"Oguc

Para participar da mesa Psicanálise e Ideologia, temos aqui a presença


de Abrão Slavutzky, psicanalista com formação na Argentina; de Ernildo Stein,
filósofo e professor de Graduação e Pós-Graduação na UFRGS, com período
de estudo na Alemanha, dedicando-se intensamente à questão da ideologia; e
a presença de Hélio Pellegrino, psicanalista recentemente envolvido no episó-
dio referente à Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, sobre o qual todos
devem estar a par. Serão dados vinte minutos para cada um dos palestrantes
expor o seu ponto de vista e em seguida será aberto o debate.

Cdtçq"Uncxwv|m{

A abertura do tema psicanálise e ideologia é algo difícil, porque as


questões envolvidas são muito amplas. A psicanálise é complexa, toda uma
questão importante; a ideologia, por outro lado, com seus vários conceitos, é
outro problema. Imaginem então esses dois conceitos, psicanálise e ideologia,
unidos. Poderíamos, por exemplo, pensar toda a questão da influência ideoló-
gica na obra freudiana, ou a das relações entre ciência e ideologia, a questão
da concepção de mundo, enfim, seriam muitos os aspectos que poderiam ser
analisados sobre psicanálise e ideologia.
Gostaria de apresentar a introdução a um trabalho que fiz e que resume-
se no seguinte: de posse de todas as revistas da Associação Brasileira de
Psicanálise, desde o primeiro número até fins de 1980 (são mais ou menos
cinquenta números), investiguei nessas revistas quais eram os efeitos ideológi-
cos na produção teórica e na produção científica dos psicanalistas brasileiros.
217
Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino

Para mim, esse foi um trabalho importante porque, como passei muito tempo
fora do país, ele me ajudou muito no sentido de entrar em contato com os
pensamentos, e as reflexões psicanalíticas aqui no Brasil. Os artigos que sele-
cionei são os relacionados justamente com o problema da guerra, conflitos de
gerações, a responsabilidade social do psicanalista, psicanálise e sociedade,
enfim, toda uma série de temas nos quais se veem, nítida e concretamente,
os efeitos ideológicos sobre o pensamento psicanalítico.
A Revista Brasileira de Psicanálise teve seu primeiro número em 1928,
quando ainda não estava constituída a Associação Brasileira de Psicanálise. A
título de curiosidade: esse número foi enviado a Sigmund Freud, que respondeu
em uma carta dizendo que ficava muito contente de receber a revista e que ia
comprar um dicionário Português-Alemão para lê-la. Depois de 1928, passam
quarenta anos sem ser editada uma revista da Brasileira de Psicanálise. Em
1967, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo começa a editar uma
Revista Psicanalítica, que depois é incorporada e oficializada como a Revista
Brasileira de Psicanálise, da Associação Brasileira de Psicanálise.
Um dos temas que esteve muito em voga há alguns anos atrás – 68,
69 – foi o problema da guerra e da violência. Então leio o pensamento de um
artigo, a mensagem de Roda-Viva da Dr.ª Virgínia Bicudo, publicado em 1968
sobre a guerra e a violência: “A habilidade desenvolvida para a produção de
armamento bélico, expressão do instinto de morte, suficientemente poderoso
para ameaçar a sobrevivência de toda a humanidade, é fator para desenvolver
um estado universal e contínuo de angústia e insegurança”.
Vamos então refletir: a guerra, naquele momento, a grande guerra de
68, vocês recordam ou pelo menos os de mais idade recordam – os mais
novos talvez não lembrem os detalhes do jornal – a grande guerra daquele
momento, manchete nos jornais, era a guerra do Vietnã. Essa guerra é a ex-
pressão do instinto de morte do ser humano? Aqui se coloca, primeiro, uma
questão complexa do instinto de morte, de thánatos; existem psicanalistas
que questionam esse conceito, até que ponto ele é válido. Eu o aceito. Acho
que é um conceito que realmente tem o seu valor científico, mas não vamos
entrar na discussão teórica intrínseca da pulsão de morte versus pulsão de
vida, que Freud, em Mais além do princípio do prazer, aprofunda e analisa,
esse confronto pulsional. O problema é usar esse conceito para explicar o
problema da guerra, o que, se levado ao absurdo, poderia ser pensado assim:
“naquela época os americanos e os vietnamitas, devido a uma pulsão de morte
incrementada, devido a um alto grau de destrutividade, estavam matando-se
uns aos outros”. Quando, na verdade, o que acontecia, sem entrar em profun-
das análises, era uma invasão imperialista no Vietnã, com 500 mil soldados

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Psicanálise e ideologia

destruindo, matando, arrasando o povo vietnamita que, falando numa forma


clássica, por um espírito de sobrevivência, de luta pela sua pátria, pelo seu
solo, que estava sendo invadido, defendia-se de forma tão ardorosa a ponto
de conseguir derrotar os invasores. Essa é uma questão concreta, sobre como
pensar o problema da guerra e da violência. A psicanálise, quando explica,
como nesse caso, a guerra e a violência – e esse artigo que cito não é exclu-
sivo da autora, todos os pensamentos que tenho aqui sobre guerra e violência
fazem esse tipo de análise – por um lado, assume um aspecto fascinante, em
que mostra o homem com seus aspectos destrutivos, mas, por outro lado, ela
se insere perfeitamente dentro de uma ideologia, quando busca explicar os
fenômenos sociais, econômicos e políticos exclusivamente desde o ponto de
vista intrapsíquico, não levando em conta a estrutura socioeconômica na qual
estão inseridos os seres humanos.
Um outro problema, continuando nessa linha de raciocínio, é o conflito
de gerações. Naquela época, 69/70, estava no auge toda a luta do movimento
estudantil. A famosa passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro – o Dr. Hélio
Pellegrino inclusive foi um dos participantes – foi uma passeata organizada e
que contou com ampla participação dos intelectuais progressistas e de amplas
camadas da população. Surge então o problema “conflito de gerações”: o pro-
blema estudantil, na França, no Brasil, nos Estados Unidos, não passava de
complexo de Édipo mal-resolvido, em que os filhos se rebelavam contra os pais.
Vejam, essa é uma questão perigosíssima, pois toma um conceito muito forte,
um conceito científico da mais alta importância como o complexo de Édipo, – o
conflito normal e lógico em termos da triangularidade edípica, em termos dessa
dimensão tensional que se desenvolve, e que, evidentemente, todos sabemos
que existe – para explicar e justificar uma submissão, uma adaptação, em que
não devemos questionar em absoluto os valores sociais, os valores políticos
dominantes. Diz o Dr. Darci Uchoa, em “conflito de gerações”: “O desajusta-
mento social surge como uma extensão do desajustamento pessoal, intrafa-
miliar e intrapsíquico, em que situações conflitivas nas relações pais-filhos/
filhos-pais não são suficientemente resolvidos”. Dessa forma, quando vamos
buscar explicar o desajustamento social pela problemática das relações pais/
filhos, devemos pensar que os milhões e milhões de marginais desta pobre
sociedade brasileira estão marginalizados, não pelo capitalismo selvagem no
qual se vive, mas porque são desajustados socialmente, o que é uma extensão
do seu desajustamento pessoal, intrafamiliar e intrapsíquico. Esse é um efeito
concreto da ideologia dominante sobre a psicanálise, e um exemplo concreto
de como a psicanálise, do ponto de vista teórico, pode, dependendo de quem
a usa e dela abusa, servir aos interessados da classe dominante.
Haveria uma série de outras citações sobre conflito de gerações, todas
219
Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino

exatamente na mesma linha. Por exemplo: “...aqui poderíamos ousar uma


afirmação: completam-se e integram-se a neurose individual, a familiar e a
social, havendo a indicação de todas elas serem compreendidas e tratadas para
que possa a civilização contemporânea emergir do estado de inconsistência e
caos em que se encontra”. Vejam, “neurose individual, familiar e social” – isto
é um erro do ponto de vista científico. A neurose só pode ser definida, e ela o
é desde Freud e pelos grandes autores da psicanálise, como uma estrutura
psicopatológica individual. Não se aceita sequer a extensão dessa definição de
neurose para a família. Por mais que se use a expressão “família neurótica”, a
neurose é uma estrutura psicopatológica, intrapsíquica, assim como a psicose,
assim como a perversão. Aí já se coloca um erro científico, mas esse erro vai
mais além, porque busca falar de uma neurose social. Se desse margem a
imaginação e fantasia, poderia pensar o que seria “tratar” a neurose social,
os psicanalistas tendo um papel importante nesse tratamento... É uma forma
nítida de não considerar a estrutura classista da sociedade, os processos
estruturais da sociedade, a própria história humana.
Revendo as revistas pensava: mas tudo que é trabalho nessa linha,
em plenos anos das mobilizações estudantis e logo após a profunda e terrí-
vel repressão sofrida no Brasil durante os anos de 70 a 73, os anos negros,
como se diz hoje, da tortura, da morte, do sequestro, sobre tudo isso não há
absolutamente nada, nem uma referência indireta?
Vejamos outra questão específica, por exemplo, o dinheiro, importante na
psicanálise. Em geral os psicanalistas – me incluo nisso, evidentemente – es-
crevemos pouco sobre o dinheiro, do ponto de vista técnico, ou seja, a questão
do setting analítico, onde se analisa uma série de aspectos do enquadre, o
problema específico de como é que interfere o dinheiro na relação analista-
paciente. Bem, um dos trabalhos “Psicanálise e Economia Política” – um título
forte –, do Dr. Vitor Manuel de Andrade, escrito em 72, diz o seguinte: “Freud
foi o primeiro a relacionar o interesse pelo dinheiro e pelo ouro com analidade,
inferindo que simbolizavam as fezes”. Isso é uma coisa já conhecida univer-
salmente, a relação dinheiro-fezes. No entanto, numa leitura mais apurada de
um trabalho importantíssimo na obra freudiana, sobre as transmutações das
pulsões, especialmente do erotismo anal, trabalho escrito em 1917, encontra-
se uma coisa muito óbvia, que Freud escreve, numa frase, sem chegar a
desenvolver: “a criança, nos seus dois, três anos, não tem noção do que é o
dinheiro; esta noção lhe é introduzida pelos adultos, pelo seu pai, pela sua
mãe, pelos tios, e, a partir daí, a relação da noção de dinheiro com as fezes
passa a ser intrapsíquica”. É importante destacar, então que o significado do
dinheiro, o conhecimento do seu valor é algo introduzido desde fora, na criança

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Psicanálise e ideologia

de dois, três anos. Freud tem uma passagem em que fala dessa questão, dois
adultos dando dinheiro como presente e as fezes como o primeiro presente
que a criança dá, porque o presentear é valorizado pelos adultos. Daí, então, a
questão do presente relacionado com as fezes, por um lado, e com o dinheiro,
por outro. Portanto, passar a explicar toda a problemática do dinheiro com base
na analidade é um brutal reducionismo, que incorre em dois erros: primeiro, num
erro científico dentro da teoria psicanalítica, ao não levar em consideração que
o dinheiro é um valor introduzido desde o meio externo ao aparelho psíquico
da criança; segundo, o de não saber quais são os significados do dinheiro do
ponto de vista econômico numa sociedade capitalista e de como se produziu
o dinheiro, como ele circula, a história, et cétera.
“A humanidade está, em termos econômicos, fixada em uma etapa
de identificação entre as etapas oral e anal que corresponde a uma fase de
transição entre as posições esquizoparanóide e depressiva. Cito como fato
sintomático da não-integração econômica a divisão da humanidade em dois
campos de forças antagônicos, capitalismo e socialismo, indicativos de núcleos
esquizoparanóides econômicos sociais”. Essa citação é do Dr. Vitor Manuel de
Andrade, “Psicanálise e Economia Política”, p. 341, vol. VI, nº 53 e 4, publicado
em 1972. Os risos de vocês dispensam comentários. Fico pensando: como
que então o capitalismo e o socialismo para se entender devem-se deprimir
e chegar a uma outra fase...
Há outro ponto que considero importante e que foi tema do debate
promovido pelo Coojornal, na Assembleia Legislativa, referente à realidade
social e à psicanálise. A doutora Virgínia Bicudo, em seu trabalho “A incidência
da realidade social no trabalho analítico”, faz uma afirmação absolutamente
correta: “A realidade social constitui parte integrante da personalidade”. Segue
depois, dizendo que “a ideologia total é um dado que permeia toda a realidade
social e, portanto, indissociável, da qual o cientista não pode subtrair-se, mas
da qual se protege, utilizando-se do método científico, e assim diminuindo a
área de influência da ideologia”. Cita Mannheim, afirmando que “a ideologia está
presente sempre”, mas imediatamente um spliting que o possibilite separar-se
de sua realidade social, da qual depois, no mesmo trabalho, faz a seguinte
colocação: “o analista deve utilizar-se de compartilhar em outros papéis que
não o de psicanálise, e que inclua seus preconceitos, suas idiossincrasias e
preferências, suas ideologias religiosas, raciais, políticas e pseudocientíficas”.
Refletindo sobre essa questão, é certo que, no trabalho analítico, é indispensá-
vel que o analista não doutrine, ou convença, ou se envolva emocionalmente
com os seus pacientes, deixando de lado a regra fundamental para o analista,
que é a atenção flutuante. O problema é que todo o analista, todos nós que
estamos aqui, todas as pessoas têm uma ideologia. A ideologia não é algo de
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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino

que se possa dizer “eu não tenho”, a ideologia faz parte dos nossos costumes,
dos nossos hábitos, das nossas reflexões, da nossa inserção social. Desde
pequenos, desde a própria formação da estrutura de nossa personalidade,
fomos adquirindo uma série de aspectos ideológicos, transmitidos por nossos
pais dentro de todo um contexto social. O Dr. Horsteins escreve no livro Teoria
das ideologias e psicanálise o seguinte: “Continuamente apelamos a um código
que é a interiorização inconsciente da ideologia de uma sociedade, de uma
classe”. O analista tem, portanto, uma representação do mundo que acompanha
todas as suas atitudes e governa suas condutas; lida, então, através e pela
ideologia. O ideólogo não pode ser definido de forma negativa como obstáculo
constante. A neutralidade valorativa espontânea, que tenta eliminar o ideoló-
gico, está viciada por ter uma concepção pré-teórica das condições em que
se desenvolve a prática psicanalítica. A neutralidade é parcialmente possível,
na medida em que o analista conheça ao máximo a estrutura ideológica que
o sujeita, determina e aprisiona. O que quero dizer com isso é que o analista
que afirma “eu não tenho ideologia” comete um erro. Erro porque não tem
consciência, não tem insight suficiente, não tem conhecimento suficiente de
que tem uma ideologia, e dizer “eu não tenho” é uma manifestação típica da
existência de ideologia no analista. Isso é perigoso, porque então pode passar
através das interpretações e do trabalho clínico a um trabalho educativo, a um
trabalho de reeducação que seria a antipsicanálise. Por exemplo, analisar e
interpretar as atividades políticas exclusivamente como problemas neuróticos
é partir do ponto de vista de que a sociedade, assim como está, está bem. Não
deve ser questionada, não deve ser modificada. Isso não quer dizer que na
atividade política não exista o problema neurótico – todos nós sabemos que
existe –, mas daí a tomar essa atividade questionadora dos valores sociais
vigentes apenas pelo seu aspecto neurótico é cair num reducionismo, é também
partir do pressuposto de que a sociedade nunca muda e vai ficar sempre igual.
Assim, quem a questiona está se rebelando exclusivamente por um problema
conflitivo e neurótico. Essa é uma manifestação típica da ideologia dominante
para manter o status quo.
Poderíamos expor mais algumas coisas a esse respeito, mas acredito
que foi visto até aqui o suficiente para dar uma pequena idéia da produção
científica publicada na Revista Brasileira de Psicanálise, que não deve ser
confundida com a psicanálise brasileira na sua totalidade nem com a totalidade
dos psicanalistas brasileiros.

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Psicanálise e ideologia

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O que vou dizer aqui vocês podem deduzir que nasceu de um diuturno
trabalho sobre questões antes de tudo epistemológicas.
Em primeiro lugar, o que me motivou fundalmente a discutir a questão
da psicanálise e ideologia nasce de três tendências básicas que eu gostaria
que se tornassem aqui coletivas e conscientes. Vivemos numa época marcada
por aqueles que a olham criticamente, por aqueles que tomam distância, por
aqueles que se retiram, digamos, de um tipo de reflexão individualista, criticam
a própria filosofia, como sendo uma espécie de ideologia da etnia branca,
portanto, marcada por aqueles que, num mundo subdesenvolvido, percebem
que não é mais possível simplesmente recebermos, sem crítica, instituições,
quer sejam elas científicas, quer sejam elas terapêuticas.
Os três elementos que nos levam a isso nestes dias de debate são:
primeiro, a vontade de dissidência, vontade esta que se volta contra todo o
institucionalizado, contra tudo aquilo que é ritualizado, inercial. A vontade de
dissidência leva à dissidência da dissidência, à dissidência da dissidência da
dissidência, conduzindo perigosamente a grupúsculos que, de uma postura
crítica, passam a uma hipercrítica e, num regresso ao infinito, multiplicam-se,
castrando toda a produtividade.
Segundo, além da vontade de dissidência, o elemento que se apresenta
como comum à vontade de crítica é o que eu chamaria de ausência de media-
ções. Nós certamente estamos cansados de trambolhos postos no caminho
da comunicação entre indivíduos e grupos. Essa ausência de mediações
certamente é uma aspiração essencial, mas nós sabemos que, como seres
humanos, a liquidação de todas as mediações nos reconverteria em selvagens.
A conquista de mediações, de regras de civilidade, impede a produção de
angústia quando dois seres aproximam-se. Assim, eles sabem, por exemplo,
que há regras de jogo, que há formas de comportamento, que há signos que
podem ser interpretados para percebermos a subjetividade daquele que de nós
se aproxima. Portanto, essa aspiração a eliminar mediações entre nós, ainda
que fundamentalmente positiva, pode também converter-se numa espécie de
contiguidade acrítica; contiguidade que certamente representaria a possível
destruição das subjetividades que entram em contato.
O terceiro elemento, que também comanda o nosso comportamento
crítico de busca de alternativa, manifestação de protesto, é a busca do que
eu chamaria do simples. Queremos cada vez mais – talvez exatamente pela
reunião em dissidências, pela eliminação das mediações – encontrar aquilo que
é simples, aquilo que suprime todos os rituais da era tecnológica. Mas, essa

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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino

simplicidade é extremamente complicada. Após as conquistas feitas através


do trabalho da razão, através do trabalho científico, através de todo o trabalho
das mediações conseguidas por processos cognitivos, nós não podemos mais
aspirar a uma simplicidade descomplicada, isto é, a uma simplicidade que
se daria a partir de órgãos que possivelmente nós teríamos, além da nossa
razão. Estes nos permitiriam o acesso a uma vida feliz, a uma vida tranquila.
Essa busca do simples é também novamente ambígua. Se, de um lado, é a
busca de uma consciência crítica, de outro, ela revela também um enorme
risco: pensarmos que a simplicidade, hoje em dia, pode ser encontrada sem as
mediações da realidade, sem os caminhos e o trânsito, através de complexas
relações humanas que foram sendo estabelecidas, através de conquistas de
gerações, pelo trabalho e pela reflexão.
Esses três elementos, portanto, estão antepostos a minha pequena
observação sobre psicanálise e ideologia. Psicanálise e ideologia, dois ter-
mos que podem ser intercambiados em sua relação, produzindo dois efeitos
inteiramente diferentes.
Não vou me referir a nada daquilo assinalado pelo Abrão; acho que ele
toca em questões fundamentais, porque coloca aquilo que, em nosso meio,
muitas vezes condiciona a prática psicanalítica.
Eu apenas queria apontar para o seguinte fato, sobretudo ao nível teóri-
co: considero uma análise ideológica ou uma crítica ideológica da psicanálise
relevante, na medida em que insere o estudo da psicanálise ou aqueles que
se ocupam com a psicanálise, naquele mesmo ductus, naquela mesma dire-
ção fundamental que atualmente todo exercício de uma ciência exige. Não
há ciência que seja desinteressada. Não há ciência que esteja desligada de
processos ligados à práxis. Ora, se a psicanálise quisesse isolar-se numa
instituição através da qual canalizaria os seus processos terapêuticos e até
as suas reflexões teóricas, se ela quisesse, portanto, se autoisolar, estaria
incidindo exatamente nisso que se diz hoje: que a ciência vem carregada de
anteparos ideológicos na medida em que se articula através de determinados
grupos para sobreviver.
A ciência não funciona a-histórica, a-social, a-econômica, a-política ou
a-eticamente. A ciência passa necessariamente pelos processos coletivos. Na
medida em que ela nega esses processos coletivos, e pensa que pode ser
assumida através de um grupo determinado, ela converte-se num processo
fundamentalmente ideológico em que passa a ter que autojustificar-se, ainda
que essa autojustificação seja feita através de um discurso não aparente, um
discurso que se faz por pequenos silêncios ou um discurso em que se faz
diretamente a articulação do poder.

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Psicanálise e ideologia

Então, penso eu, a crítica que em geral se faz à psicanálise insere-a no


protesto daquelas ciências passíveis de crítica, como aliás todas as ciências o
são. Portanto, não se considere a psicanálise perseguida por se aplicar sobre
ela um instrumento que foi muito produtivo em outros campos científi-cos.
Existe evidentemente a possibilidade de virar a espada contra aquele
que faz a crítica da psicanálise, a crítica ideológica da psicanálise. Não tenho,
até hoje, conseguido impedir que se vire essa espada contra mim: a crítica
ideológica à psicanálise é uma grande defesa, é uma grande atitude pela qual
a massa ignorada, a massa não-iniciada no processo psicanalítico, com uma
imensa inveja dos iniciados, faz a sua guerra, guerra inútil e de ignorância,
contra a fortaleza da lucidez, contra a fortaleza daqueles que dominam, diga-
mos assim, os canais de equilíbrio dos indivíduos.
Esse virar a espada contra os críticos é, sem dúvida nenhuma, algo muito
perigoso e que produz efeitos e silêncio importantes. Assim que deveríamos
ver porque é possível à psicanálise voltar-se contra os críticos que a criticam
sob o ponto de vista do enfoque ideológico e com ela obtêm resultados, isto
é, cria silêncios naqueles que um dia esperam analisar-se e poder falar, e não
querem, por isso, arriscar-se a agredir o único instrumento que os tiraria das
trevas da ignorância ou das trevas dos conflitos afetivos.
Essa retorção contra aqueles que criticam a psicanálise sob o ponto
de vista ideológico representa realmente um risco de intimidação. Não vou
explicitá-lo aqui porque o tempo não me permite, mas gostaria de apontar que
a psicanálise tem uma certa razão naquilo que ela pratica. Realmente, o nível
de reflexão e interpretação e o nível de sutileza e de força teórica com que
se analisa criticamente a psicanálise, em termos da ideologia, é muitas vezes
fraco, permitindo esta retorção do argumento contra os críticos.
É preciso aprofundar muito as coisas e não apenas fazer simples pia-
das, aparentemente científicas, contra a psicanálise. Isso não é tão simples,
porque a psicanálise, ou melhor, Freud, através da psicanálise, inventou um
instrumento decisivo, que é a instância da autorreflexão. A psicanálise tem
efetivamente, um instrumento importante para constantemente controlar-se no
seu próprio funcionamento, e esse instrumento da autorreflexão, no exercício
da própria ciência é uma descoberta da própria psicanálise.
A filosofia pensava possuí-lo, mas certamente, a filosofia pensava tê-lo
apenas ao nível da consciência, isto é, ao nível da hegemonia do diurno, da
hegemonia daquilo que podemos chamar de manifesto. A filosofia não se dava
conta do outro lado que a psicanálise descobriu. Assim, como a psicanálise tem
esse instrumento de autorreflexão como um novo instrumento de crítica – que
toda ciência deveria exercer sobre si –, ela tem também um instrumento forte
contra os seus próprios críticos.
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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino

Mas a psicanálise esquece-se de que faz interpretação excessiva e teoria


de menos. A psicanálise tem preguiça de teoria e por isso faz interpretação
demais. Subsume tudo num reducionismo psicanalítico, quando não tem teoria
para subsumir tudo. Mas, muitas vezes, a psicanálise arroga-se a autoridade
de interpretar tudo.
Vocês devem dar-se conta do que vulgarmente se espalha, ou daquilo
que se insinua através das catedrais psicanalíticas, e se propaga no meio da
população afetivamente ainda não organizada pela psicanálise. Isso que se
espalha por aí, de que deve-se interpretar tudo, é a arma imediata para poder
prender o pensamento do outro, não naquilo que ele diz, mas naquilo que ele
quis dizer.
Esse processo todo, além de ser espantosamente neurótico, é um pro-
cesso que substitui a falta de teoria. Toda interpretação é uma crítica, e, se
quisermos criticar através da psicanálise, devemos ter massa teórica para tanto.
Ora, nós não a temos. Apenas as conquistas que Lacan fez como epistemólogo
da psicanálise talvez tenham incorporado relevante massa teórica, através
de outras ciências – linguística, antropologia, etnografia, e da epistemologia.
Com essa incorporação de novos elementos e mais teoria, as interpre-
tações puderam ampliar-se com um mínimo de risco, a partir de um suporte
epistemológico. É sob esse ponto de vista, então, que temos que responder
à psicanálise quando eles viram-se contra nós, dizendo: “Vocês, pobres igno-
rantes, sois nossos críticos, mas no fundo estão com imensa inveja de ainda
não terem reclinado-se sobre o divã!”.
Problema, portanto, de pobreza de teoria contra riqueza e luxo de in-
terpretação. Reduzamos as interpretações de nossa sociedade; reduzamos
as interpretações que a psicanálise autorizaria a todos que lêem um livro de
psicanálise a fazer ou que eles pretendem fazer de toda a sociedade.
O que o Slavutzky denunciou aqui foi apenas isso: a pobreza espantosa,
a nível teórico, daqueles que exercem a práxis terapêutica psicanalítica. Se
eles tivessem um pouco de leitura e de marxismo ou de formação dos condi-
cionamentos socioeconômicos de todos, não poderiam em nenhum artigo de
revista, dizer o que o colega de mesa astutamente extraiu para desmascarar
a prática ideológica da psicanálise. Em suma, devemos querer mais teoria e
menos interpretação ou, ao menos, instrumentos de interpretação paralelos
ao desenvolvimento do campo teórico.
Bem, invertendo agora a relação ideologia-psicanálise, o elemento que
se coloca na psicanálise é o papel que ela pode representar no desmascara-
mento das ideologias. Penso que já foram desenvolvidos muitos instrumentos
para pensarmos numa espécie de relação madura que os homens estabeleçam
entre si; numa espécie de relação simétrica que as pessoas possam estabelecer
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Psicanálise e ideologia

entre si como indivíduos e como grupos; mas não foi suficientemente pensado
o quanto a crítica ideológica recebeu de auxílio dos insights psicanalíticos
fundamentais.
A psicanálise dá-nos aquele elemento fundamental, que é o de que nós
não vivemos no pleno meio-dia da consciência, de que existem processos
determinantes que não podemos elevar superficial e rapidamente ao nível de
uma racionalidade. Isso a psicanálise nos ensinou, e isso deve funcionar como
um instrumento de crítica das ideologias.
Tem-se, portanto, não apenas a crítica da psicanálise, enquanto ela
guarda dentro de si elementos ideológicos, mas a psicanálise é uma arma
anti-ideológica, arma no processo de desmistificação. Sob esse ponto de vista,
a ideia de autorreflexão que Freud desenvolveu, nas suas intuições primeiras,
na psicanálise são essenciais.
Mas o importante é que o processo ideológico não é um processo
que acontece através da hegemonia da consciência. É um processo no qual
entram, claramente a expressão, elementos latentes, elementos que não po-
demos discernir através de um simples esforço da nossa razão. Isso aponta,
evidentemente, para um elemento mais geral e mais fundamental, com o qual
eu finalizo esta exposição, que é o elemento da práxis.
Pensávamos, no mundo ocidental, que a teoria resolvia tudo, que os pro-
cessos de vida humana propriamente, os processos intersubjetivos, materiais,
do encontro dos corpos, de toques, dos desejos, do uso de instrumentos, do
exercício de trabalho, do trabalho vivo, tudo isso era uma questão de eluci-
dação teórica para depois tudo funcionar. Na verdade, isso só vai se resolver
através dos processos de práxis.
Não podemos simplesmente pensar que iremos resolver essas questões
que as ciências às vezes põem como resolvíveis ao nível puramente teórico.
Elas se resolvem ao nível da práxis, em que o elemento inconsciente, o ele-
mento não predicável diretamente, que condiciona por vezes todo o nosso
discurso, é um elemento privilegiado e, muitas vezes, até hegemônico. Sem
querer reduzir o problema da práxis a apenas isso, considero importante
chamar atenção ao fato de que não é possível crer hoje em dia que a crítica
da ideologia possa pensar a realidade puramente ao nível teórico, ao nível
de uma espécie de solipsismo da razão. O processo de desideologização
tem que funcionar ao nível da práxis, ao nível da totalidade humana em seu
comportamento concreto. Sob esse ponto de vista, penso que a psicanálise
pode dar uma contribuição muito importante.

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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino

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Nada como ser filósofo para ter essa clareza de pensamento, essa ele-
gância na exposição e essa profundidade nas coisas que são ditas. De início
quero pedir-lhes desculpas porque vou dizer algumas coisas que repetirei
amanhã, e isso evidentemente é um pecado contra a originalidade. De qualquer
forma, consolo-me com Napoleão Bonaparte, quando diz que “a repetição é a
mais eficaz das armas de retórica”.
Isto posto, vamos começar a pensar, tomando como modelo uma socie-
dade de classes, isto é, uma sociedade em que haja opressores e oprimidos,
exploradores e explorados, privilegiados e despossuídos. Seria o caso, por
exemplo, da atual sociedade brasileira. O que acontece, do ponto de vista da
produção de ideologias, numa sociedade dessa ordem? Acontece o seguinte:
as classes, nessa sociedade, produzem ideologias diferentes; elas criam, de si
próprias, uma representação imaginária inconsciente, que tem de ser diferente
segundo a produção ideológica parta da classe dominante, isto é, da burguesia,
ou segundo a representação ideológica venha da classe dominada, no caso
a classe trabalhadora, ou a classe dos despossuídos.
Isso é muito fácil de compreender, pois numa sociedade de classes
– suponhamos a sociedade brasileira em que há um desnível monstruoso
entre a minoria privilegiada e o imenso mar do povo que não tem nada –, o
fundamento infraestrutural é a injustiça, algo que, se fica claro e público, deixa
mal e culpados os exploradores, perante os explorados, ou os despossuídos.
Então, todo o esforço ideológico, a produção ideológica da classe dominante é
no sentido de encobrir a injustiça infraestrutual da qual ela parte. Vamos tomar
um exemplo também brasileiro, o anticomunismo. O anticomunismo irracional,
paranoico, não crítico, é uma peça ideológica ainda muito importante no nosso
quadro político. Ele é, inclusive, o centro da Doutrina de Segurança Nacional.
O que acontece com o anticomunismo? Qual a sua função ideológica, e por
que o anticomunismo, no Brasil, é uma ideologia? Porque a realidade brasileira
implica, necessariamente, uma violência de classe muito grande. Para que
se mantenha a situação social brasileira, para que os despossuídos sejam
tão despossuídos e tão explorados quanto o são, é necessário uma violência
de classe muito bruta. Essa violência de classe não se pode legitimar, com
facilidade, isto é: ninguém pode cometer uma violência de classe como violên-
cia de classe; ninguém pode perpetrá-la em nome da exploração do homem
pelo homem; ninguém pode dar vivas à mortalidade infantil; não há cinismo
que consiga hastear, impunemente semelhante bandeira. Então, para que se
busque justificar a exploração de classe, tal como ocorre no Brasil, é preciso

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Psicanálise e ideologia

encontrar um pretexto, ou um texto, e o anticomunismo serve justamente como


texto – ou como pretexto – ideológico. Em nome do anticomunismo, já que o
comunismo é o mal absoluto, vamos praticar o bem. E, sendo o comunismo
o mal absoluto, tudo no seu combate é permitido. O recurso ideológico opera
exatamente no sentido de uma justificação da violência de classe. A violência
de classe será praticada em nome de nobres e belas maiúsculas. Ela será
praticada, por exemplo, em nome de Deus, em nome da Pátria, em nome da
Família, em nome do Cristo (pobre Cristo!), em nome do Ocidente e de outras
coisas graves e gradas. Mas, no fundo, o objetivo é o de manter a sociedade
iníqua na qual vivemos.
Em relação à classe trabalhadora, a situação é outra, pois enquanto a
classe dominante é pensionista da justiça, a classe trabalhadora é sua vítima.
Assim, as produções ideológicas da classe trabalhadora são produções que não
têm um compromisso visceral, fundamental, essencial com a injustiça. É claro
que as classes trabalhadoras tendem a produzir os artefactos ideológicos da
classe dominante, porque esta impõe, justamente com a dominação de classe,
também a sua ideologia. Mas o compromisso que as classes trabalhadoras
têm com a ideologia dominante é um compromisso acidental, por assim dizer.
E é por isso que as classes trabalhadoras são muito mais porosas do que as
classes dominantes às verdades descobertas pelo marxismo. Às verdades
descobertas pelo marxismo – o que é a mais-valia, o que é a luta de classes
enquanto o motor da história, o que é o trabalho social, o que é o capitalismo
enquanto indébita de mais-valia –, isso a classe trabalhadora entende bem, ao
contrário do que acontece com as classes dominantes. Com frequência, elas
não entendem nada disso e, também com frequência, as classes dominantes
usam a violência – quer dizer, o porrete – para aqueles recalcitrantes que
teimam em pensar segundo tais conceitos.
Aqui se coloca uma questão importante. Nós podemos dizer que a classe
dominante, a classe burguesa, na sua produção de ideologia, visa a efeitos
de encobrimento, a efeitos de desconhecimento. Ela tem que esconder algo,
que é a injustiça infraestrutural que constitui seu fundamento. E, se a classe
dominante tem que produzir necessariamente efeitos de encobrimentos e
desconhecimento, o que vai ocorrer é que ela será contrária às revoluções
científicas. Ela vai procurar “normalizar”, aparar as unhas, a barba e o bigode
ao esforço científico, porque o esforço científico visa exatamente ao oposto
do que visa a ideologia burguesa. Enquanto esta faz um esforço no sentido de
encobrir e desconhecer, a ciência faz o esforço contrário de conhecer e des-
cobrir. Há uma oposição às vezes muito dramática entre a ideologia burguesa
e o progresso das ciências. No nosso tempo, isso pode ser muito notado nas

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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino

relações entre a ideologia burguesa, a psicanálise e o marxismo. É do conhe-


cimento de todos de que maneira a burguesia resistiu e ainda resiste a essas
duas ciências, que representam um corte epistemológico radical, a marca es-
pecífica da revolução científica de nosso tempo. A princípio, o que aconteceu?
A psicanálise e o marxismo foram pela ciência oficial, pelo conhecimento oficial.
A verdade, porém, é teimosa. A verdade é imbatível porque o homem, apesar
de tudo, é imbativelmente racional. Apesar dos ataques feitos à psicanálise
e ao marxismo, as verdades do marxismo e da psicanálise permaneceram. A
burguesia, então, mudou de tática. Ela procurou exatamente recuperar, fazer
a barba e o bigode de Freud e Marx. A burguesia buscou entrar na cidadela da
psicanálise e do marxismo sob forma de proposições reformistas. Na medida
em que a classe dominante não pode resistir ao ímpeto das transformações
revolucionárias no conhecimento, ela vai até o campo das ciências novas e lá
procura exatamente recuperar, compatibilizar, amenizar, apagar ou atenuar a
mordência do pensamento revolucionário, no caso, das revoluções provocadas
por Marx e por Freud.
Há um outro ponto que me parece significativo. No seu esforço ideológi-
co, a burguesia tenta se apresentar como representante do todo social e falar
em nome de todos. Mas, para isso, precisa usar conceitos muito abstratos e
esvaziados de prática e de sentido concreto, porque numa sociedade de classe
o motor da vida social é mesmo a luta de classes. Se a burguesia quer falar
em nome de todos, e em nome do todo, tem que expulsar a luta de classes
do seu discurso ideológico: ela vai falar em termos globais. Por exemplo, a
burguesia vai falar em nome da Liberdade, em nome da Igualdade, em nome
da Fraternidade e em nome da Democracia. Essas palavras nos causam
arrepios patrióticos. Elas são muito sérias, muito graves e, eventualmente,
até nos dispomos por elas. Mas é preciso saber o que significa, por exemplo,
para a burguesia, a Liberdade. A gente pode dizer: “Bom, um estudante e um
operário podem tirar férias em Paris. Um estudante e um operário têm liberdade
plena de tirar férias em Paris”. Acontece que um operário ou um estudante não
têm renda para ir a Paris. Então, essa nobre e bela possibilidade é impossível
para um operário e para um estudante. Ou, sejamos mais modestos em nosso
argumento. Tomemos, por exemplo, o direito operário de comer carne todos
os dias. Não sei se aqui, no Rio Grande do Sul, terra de nobres rebanhos,
um operário come carne todos os dias. No Rio de Janeiro não come, não. Em
Minas Gerais, minha terra natal, também não come. É claro que o operário
tem todo o direito, toda a liberdade de comer carne todos os dias. Acontece,
no entanto, que essa possibilidade, para o operário, é, nos dias de hoje, uma
miragem proteínica, uma vez que ele não tem, definitivamente, dinheiro para
isso. As coisas, portanto, são muito relativas. Nós falávamos a respeito da
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Psicanálise e ideologia

Liberdade. Com relação à Igualdade e Fraternidade, não é preciso nem fazer


comentários.
Mas, a propósito dessa necessidade unificadora da burguesia, de falar
em nome de todos, e em nome do todo, eu queria citar aqui um trecho de um
artigo de Althusser sobre Marx e Freud, escrito em dezembro de 1976. Diz o
seguinte: “Essa ideologia do homem como sujeito, cuja unidade está assegu-
rada ou coroada pela consciência, não é uma ideologia fragmentária qualquer;
é simplesmente a forma filosófica da ideologia burguesa a qual dominou a
história durante cinco séculos e que, embora hoje em dia não tenha a mesma
força que antes, reina ainda em amplos setores da filosofia idealista e constitui
a filosofia implícita da psicologia, da moral e inclusive da economia política”.
Esse dado ideológico, no caso da psicanálise, tem uma importância grande
pelo seguinte: o conceito do sujeito unificado pela consciência é o fundamento
oculto do reformismo psicanalítico, é o fundamento oculto da escola americana
de psicanálise, orientada no sentido de fazer da psicanálise uma psicologia
do ego, e de fazer do inconsciente uma espécie de consciência enterrada, de
consciência do porão. Aí fica negada toda a mordência da descoberta freudiana.
Porque o que Freud descobriu de espantoso é que somos realmente cidadãos
de dois mundos: o nosso psiquismo é composto de regiões heterogêneas e
irredutíveis uma à outra. Nós podemos, pela interpretação, e com boa teoria,
falar do desejo inconsciente em termos do processo secundário. Mas não po-
demos inscrever de maneira idêntica, um mesmo dado, no inconsciente e na
consciência. Essa é a teoria da dupla inscrição de Freud, e foi tal descoberta
que lhe permitiu dizer que a psicanálise promoveu uma revolução copernicana
no conhecimento que o homem tem de si próprio. Até Freud, a consciência
era o centro do sistema psíquico, era o centro do sistema solar. Depois de
Freud, a consciência foi satelitizada, tornou-se lunar, e o centro do sistema
passou a ser o desejo, a pulsão, o psiquismo inconsciente. E isso, diz Freud,
foi uma ferida no narcisismo humano, porque nós, evidentemente, por motivos
narcísicos, gostaríamos de ser as estátuas equestres de nós próprios. Assim,
o ego estaria montado num cavalo de bronze, e nós seríamos todos heróis
libertadores, o que é verdade. Toda a luta da psicanálise é no sentido de com-
patibilizar o montador com a montaria, de lançar um entendimento – sempre
bastante tenso e bastante conflitivo – entre cavaleiro e cavalo.
Mas, voltando ao conceito de Althusser: uma das formas pelas quais a
burguesia tenta manter esse seu papel unificador reside na visão segundo a
qual a atividade científica, o conhecimento científico são políticos. Porque, se
a ciência for política, se o esforço do conhecimento se orientar no sentido de
conhecer o tapete da pólis, a maneira pela qual a pólis se articula, então, o
conhecimento vai inevitavelmente chegar até as contradições sociais e à luta
231
Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino

de classes. E a burguesia tem horror da luta de classes, porque, na medida


em que ela admite e aceita a luta de classes, ela tem que admitir-se como
perecível, finita, mortal. Na medida em que, para existir, a burguesia tem que
criar a classe operária, ela cria exatamente a classe que a irá derrubar, his-
toricamente. Por isso, a burguesia tem todo o interesse em ocultar do campo
do conhecimento a luta de classes; ela precisa que o conhecimento científico
seja apolítico. Dessa forma, o conhecimento político será compartimentalizado,
apartamentado, setorializado, ultraespecializado, de maneira a que eu, falando
dele, desconheça sua articulação com todo o resto.
No campo da psicanálise, essa postura ideológica gera o soi-disant
apoliticismo da ciência e da prática psicanalíticas. Tal dado é muito importante
e encontradiço, nos níveis teóricos, institucional e prático. É, por exemplo, a
posição da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, quando nos expulsou,
a mim e ao Dr. Mascarenhas. Inclusive, a minha expulsão se deve justamente
ao fato de ter eu levantado esse problema numa palestra em que sequer foi
mencionado o nome da S.P.R.J. Foi numa mesa-redonda, muito menos sim-
pática do que esta, mas de qualquer maneira bastante simpática. Lá eu disse:
“O apoliticismo da psicanálise é um artefato ideológico de má fé, no sentido
sartreano da palavra, pelo qual a instituição psicanalítica encobre a sua adesão
radical ao status quo vigente”. Essa afirmativa foi dramaticamente ilustrada
pela S.P.R.J.. A esse respeito, tenho a contar-lhes uma eloquente história.
Em 1968, participei das grandes passeatas de então, e fiz parte da Comissão
dos Cem Mil, que foi, inclusive, convocada pelo presidente Costa e Silva (mas
esta é uma outra história). Quando veio o AI-5, em dezembro de 68, tive que
me esconder, pois era bastante visado. Depois de algum tempo, apresentei-
me, porque não havia nenhum motivo para eu me tornar clandestino. Depois
de um mês e meio, dirigi-me ao Ministério de Exército, junto com meu velho
amigo, já morto, Nélson Rodrigues, escritor admirável e falso direitista, porque
um escritor admirável nunca é de direita. Fui preso e processado pela Lei de
Segurança Nacional. Eu poderia ficar mais ou menos tempo preso, na medida
que o processo ficasse pronto com maior ou menor rapidez. Solicitei, então, da
S.P.R.J., uma carta dizendo apenas o seguinte: “Declaramos que a prisão do Dr.
Hélio Pellegrino pode eventualmente provocar ansiedade nos seus pacientes”.
O texto é de uma modéstia comovedora, e não há nada mais verdadeiro do
que essa declaração. Entretanto, a Sociedade se negou e dá-la, em nome do
apoliticismo. Nesse mesmo ano, 1969, foi aceito como candidato da S.P.R.J.
um médico chamado Dr. Amílcar Lobo Moreira da Silva. Esse médico, nos anos
de 1970 a 1973, fez parte, inequivocamente – e eu sei o que estou dizendo,
e sei a gravidade da informação que dou a vocês – do DOI-CODI da PE, da
Rua Barão de Mesquita, do Rio de Janeiro. Ele fez parte de uma equipe de
232
232
232
Psicanálise e ideologia

torturadores políticos. Esse homem, nesse tempo, estava em análise com o


Dr. Leão Cabernite, então presidente da S.P.R.J. Ele declarou pela imprensa
que o seu analista didata sabia das suas atividades, como membro da equipe
de tortura. E procurou se justificar, na imprensa, dizendo que cumpria ordens
e que nunca havia, pessoalmente, torturado ninguém. Ora, ninguém o acusou
de introduzir charutos acesos nos orifícios corporais dos presos políticos. Não é
essa a atividade de um médico numa equipe de tortura. Ele existe exatamente
para impedir que o torturado morra. A função do médico, na equipe de tortura,
é preservar, perversamente, a vida do torturado, para que o torturador possa
continuar a torturá-lo. Os defuntos têm um soberano desprezo pela tortura e por
tudo o mais. Portanto, essa pseudodefesa do Dr. Amílcar Lobo Moreira da Silva
é algo muito, muito frágil. Não defende nem justifica ninguém. Apesar disso,
entretanto, esse médico não foi expulso da S.P.R.J. Nada lhe aconteceu. Em
1973, os argentinos, Marie Langer e Armando Bauleo, fizeram uma denúncia
do Dr. Amílcar Lobo como torturador. Receberam do Brasil um jornal clandes-
tino do Partido Comunista, Voz Operária, que tinha uma nota sobre o terrível
problema e publicaram a denúncia no primeiro número de “Questionamos”. O
analista didata do Dr. Amílcar, Dr. Leão Cabernite, negou, cometendo perjúrio,
e declarou, sob fé, que isso não era verdade. O Dr. Amílcar Lobo continuou,
como candidato da SPRJ, protegido e acoitado pela instituição, que nenhu-
ma providência tomou para apurar as acusações gravíssimas. Eu pergunto o
seguinte: que apoliticismo é esse, que não dá a mim aquele santo e modesto
documento e que aceita e protege um médico que faz parte de uma equipe
de tortura? Isso não é apoliticismo de maneira alguma. É uma posição política
absolutamente radical.
Por fim, quero declarar que o “apoliticismo” psicanalítico nem sempre
adota uma forma tão rombuda, crassa e grossa quanto na S.P.R.J. O que lá
ocorreu, felizmente, não é nada comum. Não conheço outra sociedade psi-
canalítica que tenha acobertado um membro da tortura. Mas há outra forma,
muito mais sutil, de entrada do elemento político na nossa atividade prática
diária. Aparentemente, o psicanalista, no consultório, faz tudo, menos política.
Ou seja, no consultório psicanalítico, não posso doutrinar ninguém. Não posso
dizer: “Sou do PT”. Falo isso aqui, mas dentro do consultório não sou do PT,
sou um psicanalista, um auditor do desejo do inconsciente daquele que me pro-
cura. O esforço de desalienação, no consultório do psicanalista, é exatamente
o esforço de escuta do desejo do paciente: é para isso que ele me procura.
Se faço doutrinação, se oriento meu paciente, se faço qualquer coisa que não
seja essa cuidadosa escuta, favoreço, não a libertação do meu paciente, mas,
pelo contrário, a sua neurose e, portanto, o seu sistema de alienação.

233
Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino

Mas, então, por onde entra a política? A política entra através do preço
que cobro. Há uma unanimidade entre os psicanalistas, no sentido de que
não pode haver análise sem pagamento. Ninguém entra no consultório de um
psicanalista sem pagar. Acontece que o pagamento é uma determinação do
mercado. Não sou eu que determino o que é que vou cobrar. Posso interferir
escassa e limitadamente, mas é o mercado que impõe sua lei. Não posso cobrar
de um paciente que vai no meu consultório trezentos mil cruzeiros por hora. Se
o fizesse estaria insano, e o sujeito que resolvesse pagar essa quantia se-lo-ia
duplamente. O paciente me paga o que o mercado me permite cobrar dele.
O mercado, portanto, entra no meu consultório como um elemento constitu-
tivo do meu chão de trabalho. Não posso negar isto. As leis do mercado não
pertencem à nosologia psicanalítica; entretanto, teço o chão do meu trabalho
levando-as em conta, e cobrando de acordo com o que elas estabelecem.
Dessa forma, faço política, porque as leis do mercado são fundamentos da
realidade política. O que ganho no meu consultório, por outro lado, vai definir
meu perfil de classe. O que ganho no meu consultório vai definir minha relação
com a distribuição de renda. Isso não é psicanálise: é política.
Depois que o tratamento começa, tendo eu combinado suas condições
– pagamento inclusive –, ocorre uma coisa curiosa. Uma vez iniciado o trata-
mento psicanalítico, tudo o que nele se passa sofre uma transubstanciação
alquímica: tudo, sem exceção, passará a ser significante das linhas de força do
campo de desejo que ali se criou. O setting analítico é justamente um artifício
pelo qual eu crio um campo desejante para o paciente. Tudo o que ele disser
vai ser tomado por mim como significante das linhas de força desse campo
desejante. Aí sim, se um paciente traz o tema do pagamento na análise, e
se a análise transcorre e decorre, vou tentar interpretar esse tema de acordo
com a única política que faço no consultório: a política do desejo do paciente.
Eventualmente, o dinheiro pode significar fezes, e o tema pode apontar para
as fantasias anais do paciente. O jogo, no consultório, é realmente muito es-
tranho e frequentemente irritante, porque tudo o que acontece é sempre uma
outra coisa. Na vida cotidiana, a gente faz força para não tomar gato por lebre:
essa é uma regra fundamental. No consultório do analista, a regra é o oposto:
a gente toma, sempre, gato por lebre. Se o paciente fala gato, pensa-se em
lebre, e se o paciente fala em lebre, a gente pensa em girafa, e quando ele
fala em girafa pensa-se em leão.
E a gente vai, através desse deslizamento do significante, tentar saber
qual é o desejo que está querendo manifestar-se. Mas é preciso ser muito cui-
dadoso e muito estrito. Não se pode generalizar esse modelo, da mesma forma
que um ginecologista não pode generalizar o modelo ginecológico. Dentro do

234
234
234
Psicanálise e ideologia

consultório, o ginecologista pode pedir, de direito e de fato, que as senhoras


se dispam, para que as examine. Fora do consultório, uma tal conduta seria,
no mínimo, extravagante. Da mesma forma, o psicanalista, fora do consul-
tório, não pode usar o modelo clínico. Ele não pode promover essa époque
fenomenológica, esse “pôr em parênteses” a realidade, esvaziando-a, para
fazer pelo puro significante. Quando o analista, fora do consultório, interpreta
a realidade como se o mundo estivesse em sessão analítica, na verdade ele
faz um jogo degradante para a psicanálise.
Dentro do meu consultório, posso lhes garantir, sou bastante severo e
estrito. Fora dele, assumo as minhas posições políticas, digo o que quero e a
que venho, falo da minha filiação partidária. Porque isso é uma obrigação minha
como sócio da pólis, da cidade, do país, da nação brasileira. Muito obrigado.

235
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 236-248, jul. 2011/jun. 2012

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cu"eqpfkèùgu"rctc"c"gpwpekcèçq3
Sonia Luzia Dalpiaz2

O presente trabalho teve como fatores desencadeantes uma série de


questionamentos que me desacomodam, instigam e me conduzem a refle-
xões sobre a prática clínica no campo da fonoaudiologia, mais especificamente
na clínica dos distúrbios de linguagem3, prática desenvolvida a partir da inser-
ção em espaços clínicos interdisciplinares, em que a interlocução com outras
áreas de conhecimento (psicanálise, psicopedagogia, psiquiatria, fisioterapia)
está sempre presente. Antes disso, já participava de outras práticas, também
inserida em equipes de saúde, como acadêmica do Curso de Enfer-magem
e profissional da área da educação física, o que colaborou para a formulação
de questões e reflexões que, aqui e agora, se aprofundam.
A pergunta fundamental e que, ao longo de mais de dez anos de expe-
riência como fonoaudióloga, se desdobra em muitas outras, é sobre como se
constrói o fazer clínico: que recursos, movimentos e operações podem auxi-

1
Texto elaborado a partir da dissertação de mestrado da autora: Dalpiaz, S.L. Sobre o “fazer clí-
nico” diante dos distúrbios de linguagem: o tempo e as condições para a enunciação. Dissertação
(Mestrado em Teorias do Texto e do Discurso). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
2
Fonoaudióloga; Mestre em Teorias do Texto e do Discurso pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Sócia-Fundadora e Fonoaudióloga da
Clínica Palavra Viva. E-mail: soniadalpiaz@hotmail.com
3
Essa expressão, utilizada ao longo deste trabalho, deve ser compreendida na mesma pers-
pectiva presente em Cardoso (2011): trata-se da clínica que acredita na indissociabilidade
entre a linguagem e o sujeito que a enuncia, e entende o distúrbio como manifestação sin-
gular de linguagem que escapa à regra. Falando, ou não, o sujeito se marca na linguagem.
236
Sobre o fazer clínico...

liar para que se constitua um espaço possível para o sujeito com distúrbios
de linguagem enunciar? Que fatores estão aí implicados? O que conduz um
processo terapêutico? Como se relacionam o terapeuta e seu paciente diante
das dificuldades que o trazem para o atendimento? Como se constitui o es-
paço da terapia, quais os lugares ocupados por essa dupla na cena clínica4?
Procuro, aqui, ancorar teoricamente minha reflexão para tentar responder
a essas indagações. Busco, para isso, a inspiração no pensamento elaborado
pelo linguista Émile Benveniste5 sobre o que implica o ato de enunciar6. Tenho
como objetivo instituir uma reflexão sobre o fazer clínico diante dos distúrbios
de linguagem no campo da fonoaudiologia, norteada pela preocupação em
eleger quais seriam as condições para a enunciação e pela questão sobre
como é construída a relação entre o terapeuta e seu paciente na clínica dos
distúrbios de linguagem. Guiada por questões advindas de minha prática clí-
nica, busco, em especial nos estudos enunciativos de Benveniste, as noções
teóricas para refleti-las e, ao final dos devidos cruzamentos, esboçar uma
concepção sobre como contemplar as condições para que a enunciação se
faça presente e possível.
Realizo, no presente texto, três movimentos: o primeiro deles tenta
refletir sobre a pertinência da proposta aqui desenvolvida no campo da litera-
tura fonoaudiológica. Embora de forma breve, visito textos que circulam entre
estudantes e profissionais desse campo, para tentar identificar a presença
dos questionamentos que me mobilizam. Em especial, tento ver como são
pensados os lugares que ocupam, desde as concepções teóricas definidas, o
terapeuta e o paciente na relação clínica, procedimento, esse, decorrente de
minha certeza de que o clínico da linguagem, independente do escopo teórico
de sua atuação, precisa situar a si e ao outro na cena clínica, para mim condição
sine qua non da clínica no campo fonoaudiológico. Entendo, nesse processo,

4
Uso o termo ao longo deste trabalho para me referir ao espaço físico, diálogos e situações que
ocorrem durante uma sessão de fonoaudiologia.
5
Linguista sírio, naturalizado francês. Émile Benveniste se situa entre o grupo de autores fundado-
res do campo da enunciação, junto com Charles Bally e Mickail Bakhtin. A característica que une
esse grupo de pensadores se situa no fato de que todos refletiram sobre a enunciação, mesmo
que não se tenham dedicado a construir um modelo de análise da linguagem. Suas construções
e reflexões sobre o tema da subjetividade, intersubjetividade, referência, e outros, influenciaram
definitivamente o cenário da linguística francesa, assim como em outros campos, tais como a
filosofia e a psicanálise (Flores, et.al., 2009)
6
Vale lembrar que o autor não se preocupou especificamente com a clínica dos distúrbios de
linguagem; entretanto, posso constatar que leituras e releituras de suas formulações permitem
deslocamentos de grande valor para pensarmos sobre essa temática.

237
Sonia Luiza Dalpiaz

que não há lugar constituído para essa reflexão nos textos analisados, pelo
menos na forma como me proponho a realizar.
O segundo movimento busca a aproximação ao pensamento de Benve-
niste sobre o ato de enunciar. Embora tenha a consciência de que Benveniste
não tenha se dedicado, em seus estudos, a pensar sobre os distúrbios de
linguagem, compreendo que muitas das noções por ele desenvolvidas podem
auxiliar na construção da concepção que aqui desenvolvo. Destaco, de parte
de sua obra, temas como singularidade, (inter)subjetividade, espaço e, em
especial, o tempo.
Finalmente, como terceiro movimento nesse texto, desenvolvo o que
pude compreender sobre quais seriam as condições para a construção de uma
relação entre o fonoaudiólogo e seu paciente e para tornar o ato de enunciar
possível. Não se trata de uma concepção conclusiva, terminada: falo, aqui,
de movimento na direção de, ou seja, conserva o caráter de mudança, em
constante construção, que me acompanha, desde sempre. Entre os aspectos
que coloco em questão, estão o lugar que ocupa o terapeuta na relação (para
mim um lugar constituído por atravessamentos); a constituição do espaço de
escuta e suposição na direção do outro; a imprevisibilidade como constituinte
da enunciação; o tempo do sujeito, único e singular.

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Inicialmente, busco, junto a alguns textos de referência do campo da


fonoaudiologia,7 a existência (ou não) da preocupação dos autores sobre como
se dá a construção da relação entre o terapeuta e o paciente na clínica dos
distúrbios de linguagem. Com isso, procuro lançar um breve olhar em busca
do sujeito no campo da fonoaudiologia8.
A pergunta fundamental que me acompanha nessa busca é: há lugar
constituído, nessa literatura, para a reflexão sobre as condições necessárias
para que o paciente possa se fazer sujeito no processo terapêutico? Dela decor-
rem outras importantes questões que norteiam a reflexão que aqui desenvolvo,
a saber: como é apresentada, nessa bibliografia, a relação terapeuta-paciente?

7
A fonte dessa leitura são textos identificados por Cardoso (2002) como sendo aqueles de gran-
de circulação no meio acadêmico, visitados por leitores que se encontram em formação. Deles,
destaco: Mota (2001), Zorzi (1999), Jakubovicz e Meinberg (1992) e Yavas, Hernandorena e
Lamprecht (1991).
8
Os pontos que destaco, da referida literatura, podem ser consultados na dissertação que ori-
ginou o presente texto.
238
238
238
Sobre o fazer clínico...

Como é vista a constituição da cena terapêutica? Que papéis são reservados ao


terapeuta e ao paciente na cena? Quais os tempos implicados nessa relação?
Não se trata de julgar o certo e o errado, mas de obter dados sobre como
o tema do fazer clínico, sob a ótica da relação terapeuta-paciente no campo
da linguagem, na clínica dos distúrbios da linguagem, tem sido pensado na
bibliografia de referência da área. Quero, com esse movimento, identificar em
que medida as questões que me instigam vêm interessando a outros profis-
sionais do campo. A busca que faço, dessa forma, não é exaustiva, o foco é
apenas ilustrar o que se produz, em geral, nessa área.
Embora possa surpreender, durante o percurso que realizo desde a
referida bibliografia, uma preocupação com aspectos que considero de ordem
subjetiva, a leitura dos textos selecionados (v. Nota 7) indica que as questões
que aqui problematizo não têm relevância para os autores consultados. Consigo
vislumbrar alguma presença de questões ligadas ao que estou chamando de
singularidade, mas esse tema não figura entre os destaques desses autores.
Percebo que os autores focam maior atenção em estratégias de identificação
e abordagem junto aos erros ou falhas na produção dos pacientes, o que
confere, aos textos visitados, um aspecto de “manual”.
As leituras dos materiais circulantes no campo da fonoaudiologia (v.
nota 7) indicam a pertinência de minha reflexão. Concluo que os aspectos
que me convocam a pensar sobre o trabalho desde a clínica dos distúrbios
de linguagem não estão suficientemente contemplados na literatura que, em
geral, circula nesse campo. Em linhas gerais, posso afirmar que nada é dito
sobre o fazer clínico diante dos distúrbios de linguagem, sobre a questão dos
tempos implicados ou sobre o questionamento em relação às condições para
que o sujeito se enuncie e possa se apropriar da língua.
Embora saiba que, para além do corpus analisado, já existem mate-
riais mais recentes que problematizam a questão do fazer clínico na área de
linguagem no campo fonoaudiológico9, sua circulação ainda é restrita ao meio
acadêmico em nível de pós-graduação. Não se configura, portanto, como
literatura de grande circulação. A intenção, com este texto, é poder imprimir
novas marcas que possam apoiar as abordagens no campo da fonoaudiologia,
fazê-las circular nesse ou em campos afins e abrir espaço para que novos
questionamentos sejam formulados.

9
Como destaque, refiro os trabalhos produzidos por fonoaudiólogos no campo da enunciação, em
especial os desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa em Enunciação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, coordenado pelo professor Valdir do Nascimento Flores, junto ao Programa
de Pós-Graduação em Letras: Surreaux (2006), Cardoso (2011) e Oliveira (2011)

239
Sonia Luiza Dalpiaz

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Para realizar o segundo movimento a que me proponho neste texto, a


construção de uma concepção de relação entre o fonoaudiólogo e seu paciente
na clínica dos distúrbios de linguagem, busco ancoragem teórica através de
um percurso de leitura da teoria da enunciação do linguista Émile Benveniste.
Procuro, a partir desse estudo, compreender quais são as condições para o
evento da enunciação, para, na sequência, então, operar os deslizamentos
necessários a essa construção.
Assim, não pretendo esgotar a obra do autor, mas realizar uma inter-
pretação de alguns de seus textos. Aqueles que possam sustentar a discussão
do que aqui proponho, sobre a clínica dos distúrbios de linguagem, guardan-
do minha singularidade como sujeito leitor. Como afirmam Flores e Teixeira
(2005, p. 8), “a leitura é também fenômeno enunciativo”. O sentido, nos dizem
os autores, “longe de ser imanente, se apresenta como o resultado de um
processo de apropriação do texto pelo leitor, que imprime sua singularidade
na experiência da leitura.”
Neste estudo, me interessa desvendar os termos pelos quais se constitui
um espaço possível de enunciação para o sujeito com distúrbios de linguagem.
Trata-se, na verdade, de recolocar o processo terapêutico sob exame para, a
partir disso, pensar sobre como a relação entre o terapeuta e seu paciente é
fundamental para construir um espaço da terapia na qual os lugares ocupados
pela dupla são constitutivos da cena clínica.
Elenco, então, as noções de subjetividade, intersubjetividade, tempo e
espaço, discutidas ao longo da obra de Benveniste e retomadas, posterior-
mente, por muitos de seus leitores. Através dessas noções, pretendo destacar
algo da ordem da singularidade do sujeito, que, segundo penso, é um ponto
– embora não exaustivamente tematizado por Benveniste – decorrente de sua
reflexão sobre enunciação.
Para Benveniste, o homem sempre sentiu o poder fundador da linguagem
como instauradora de uma realidade imaginária, como animadora do que é
inerte; ela faz ver o que ainda não existe e traz de volta o que já se foi. Socie-
dade e indivíduo só são possíveis pela língua. Na criança, segundo o autor, o
despertar da consciência é coincidente com o aprender da linguagem; é esta
que a introduz, aos poucos, como indivíduo na sociedade. Conclui dizendo
que a fonte desse poder misterioso que reside na língua está na capacidade
humana de simbolização, que deve ser entendida como “a faculdade de re-
presentar o real por um ‘signo’ e de compreender o ‘signo’ como representante

240
240
240
Sobre o fazer clínico...

do real, de estabelecer, pois, uma relação de “significação” entre algo e algo


diferente” (2005, p. 27).
A faculdade simbólica no homem, segundo o autor, se realiza na lin-
guagem, sistema simbólico organizado em dois planos: fato físico, por utilizar
como mediador o aparelho vocal para se produzir e o aparelho auditivo para
ser percebida; por outro lado, “estrutura imaterial, comunicação de significados,
substituindo os acontecimentos ou as experiências pela sua ‘evocação’” (op.
cit., p. 30). Nesse sentido, define a linguagem como uma entidade de dupla
face. Além disso, destaca sua propriedade de organizar o pensamento e tornar
possível o acesso de um sujeito à experiência interior de outro.
Dany-Robert Dufour, filósofo francês, reflete sobre os processos sim-
bólicos a partir da leitura de Benveniste e diz que a simbolização, capacidade
exclusiva-mente humana, é adquirida e transmitida pelo discurso, o qual
leva, com ele, todo um universo imaginário (Dufour, 2005). Para o autor, é por
intermédio das narrativas que se transmitem, de uma geração a outra, um
dom de palavra: “transmitir uma narrativa é, com efeito, transmitir conteúdos,
crenças, nomes próprios, genealogias, ritos, obrigações, saberes, relações
sociais” (op. cit., p. 128). É quando o destinatário pode se identificar como
ele mesmo e situar , ao seu redor, os outros. Situá-los antes e depois dele.
Sem que seja instituído o sujeito falante, segundo Dufour, não é possível que
a função simbólica se transmita. É pelo discurso oral frente a frente que se
opera o acesso à simbo-lização.
Aprendemos com Benveniste: “Não vemos jamais o homem reduzido a si
mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem falando que
encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem
ensina a própria definição do homem” (2005, p. 128). A partir dessa afirmação,
Flores (2005) conclui que não há oposição entre sujeito e linguagem: sujeito
é linguagem e a intersubjetividade sua condição. Retomando Benveniste: “é
o movimento do discurso, para não dizer a enunciação, que recria indefinida-
mente o sujeito” (2005, p. 4).
Se um diz, este um se dirige a alguém: surge aqui a condição para que
a pessoa se constitua: o diálogo. Não há quem empregue eu a não ser quando
se dirige a um tu. Para Benveniste, o que possibilita a linguagem é o fato de
que o locutor se remete a si mesmo como eu no seu discurso, apresentando-
se ao outro como sujeito; reciprocamente, o sujeito, que nessa alocução é tu,
passa a ser o eu em seu próprio discurso. Essa polaridade entre as pessoas
é, para o autor, a condição fundamental da linguagem.
Eu e tu se referem, diz ele, à “realidade de discurso”, onde eu é a “pes-
soa que enuncia a presente instância de discurso que contém eu” (op. cit., p.

241
Sonia Luiza Dalpiaz

27) e tu o indivíduo interpelado na instância que contém o tu, ou seja, se


definem a partir de sua posição na linguagem. Surge, aqui, a noção que ele
desenvolve sobre a questão da referência10, presença constante e necessá-
ria à instância de discurso, que une eu/tu aos indicadores de tempo, lugar,
objeto. Eu e tu só existem na medida em que são atualizados na instância de
discurso, onde marcam para cada uma de suas próprias instâncias o processo
de apropriação daquele que fala.
Benveniste introduz a densa discussão sobre as noções pessoa-não
pessoa para pensar o lugar de ele: “eu” e “tu” são sempre únicos em cada
enunciação (“eu” enuncia dirigindo-se a “tu”); “ele”, por sua vez, “pode ser uma
infinidade de sujeitos – ou nenhum” (op. cit., p. 253). No diálogo, “eu” e “tu” se
invertem; issto não é possível com relação a ele, uma vez que “ele” não designa
uma pessoa especificamente. “Ele” tem, assim, uma posição particular. Sobre
isso, diz Dany Robert Dufour: “ele” é a ausência necessária para a existência
do espaço dual da fala. Em suas palavras, “para ser um, é preciso ser dois,
mas quando se é dois, de imediato se é três” (Dufour, 2000, p. 55). É a trindade
natural da língua, segundo Dufour: sem ela, representante da “essência do
laço social”, a relação de interlocução não seria possível e a cultura humana,
por sua vez, inviável. Cabe, aqui, o destaque de parte de sua reflexão:

...quando um sujeito fala, ele diz “eu” a um “tu”, a propósito d’”ele”.


Falem e porão em jogo esse sistema e, a partir de então, um fan-
tástico ordenamento do discurso será instantaneamente efetuado
[...] aquele a quem eu falo adotará espontaneamente este sistema,
mesmo que não compreenda nada do que digo ou que discorde
absolutamente de mim [...] o prisma formado pelo conjunto “eu”, “tu”
e “ele” funciona, de certa maneira, como um dispositivo no interior
da língua, que inscreve sempre em seus lugares os alocutários...
(Dufour, 2000, p. 69).

Bem, para mim, a partir da reflexão sobre a prática clínica, torna-se


fundamental incluir a discussão sobre a questão do tempo. E não pode ser
de outra forma, pois, desde meu ponto de vista, ele comparece sempre e
seus efeitos constantemente se fazem sentir na clínica dos distúrbios de lin-
guagem. Esse foi um dos motivos que me aproximaram de Benveniste como

10
Referência, em Benveniste, é a “significação singular e irrepetível da língua cuja interpretação
realiza-se a cada instância de discurso contendo um locutor” (Flores et. al., 2009, p. 197)

242
242
242
Sobre o fazer clínico...

escolha teórica. Ele afirma que o tempo é uma característica constitutiva da


enunciação. Está lá, desde sempre.
A temporalidade, em Benveniste, é produzida pela e na enunciação, é
o tempo em que se fala que indica o tempo em que se está, e esse, acrescen-
ta, é determinado a cada vez pelo locutor, a cada vez em que se instancia o
discurso: é o momento eternamente presente. Com isso, conclui que a tem-
poralidade humana revela a subjetividade própria do exercício da linguagem.
É a partir dessa perspectiva que penso que se constrói o trabalho: para mim,
esse entendimento de tempo circunscreve uma realidade ímpar na clínica:
olhar, escutar e compreender de que tempo se fala nos “aquis-agoras” dos
atos de enunciação é o que promove a conexão aos sujeitos com os quais
trabalhamos nessa clínica.

Q"vgtegktq"oqxkogpvq<"q"vgorq"g"cu"eqpfkèùgu"rctc"c"gpwpekcèçq0"
Eqpuvtwkpfq"woc"eqpegrèçq"fg"tgncèçq"gpvtg"q"hqpqcwfkônqiq"g"ugw"
rcekgpvg

Chega o momento de operar os deslocamentos: hora de cruzar o


que percebo na prática clínica com o que fui descobrindo, junto aos autores
visitados, ou seja, os fundamentos que me aproximassem da compreensão
sobre as condições para a enunciação11. A base de apoio para a construção
da concepção sobre como se constitui a relação entre o fonoaudiólogo e seu
paciente tem a forma de um tripé: inicialmente, repouso a atenção sobre como
se constitui o lugar do fonoaudiólogo, o que o atravessa a partir dos campos
do saber e da própria cena clínica. Como segundo apoio estão as condições
para que o paciente construa sua enunciação. Por último, destaco a questão
do tempo na clínica dos distúrbios de linguagem.
A questão dos atravessamentos, que defendo como necessários ao
fonoaudiólogo em sua prática clínica, foi trabalhada a partir de duas pers-
pectivas complementares e que, no processo de construção de um lugar no
que denomino o fazer clínico, se harmonizam: de um lado, trata-se do que
considero a permeabilidade do profissional à própria cena vivida no aqui-agora
junto a seu paciente; de outro, da permeabilidade do campo a outros saberes
que circulam no social.

11
Na dissertação que deu origem a este texto, os referidos deslocamentos estão descritos no
capítulo 3, onde elenco reflexões advindas da prática clínica, retomo recortes de cenas clínicas
e fui me deixando interrogar. Em um movimento de ir e vir entre o que percebia nessa prática e
entre leituras e releituras dos textos selecionados, fui construindo minha concepção.
243
Sonia Luiza Dalpiaz

Com relação à cena em si, considero a imersão do fonoaudiólogo no


diálogo que se estabelece a cada instante, quando a alternância entre os
sujeitos na cena, o imprevisível, a surpresa, o dito, o silêncio se façam pre-
sentes. Eis, portanto, a primeira questão que me move: se observarmos com
atenção, percebemos que, ao nos depararmos com um paciente, melhor dito,
com cada paciente, uma nova relação, a cada encontro, se constrói. A cada
encontro e, sobretudo, a cada momento. Entendo, assim, que a relação entre
o terapeuta e seu paciente não está dada, mas está sempre em movimento,
sendo eternamente construída por seus dois personagens, que se alternam e
montam cada cena. Lembremos o que nos ensina Benveniste (2005), quando
diz que a realidade é reproduzida ou “produzida novamente” pela linguagem:
no discurso daquele que fala, diz ele, renascem o acontecimento e sua expe-
riência; por sua vez, aquele que ouve, primeiramente apreende o discurso e,
por ele, o acontecimento. Assim se estabelece a comunicação intersubjetiva.
Em resumo, o primeiro atravessamento que destaco para a construção
de um lugar do fonoaudiólogo na clínica dos distúrbios de linguagem é o atra-
vessamento da própria cena da qual ele é parte. O fonoaudiólogo não pode
ignorar o que na relação se redefine a cada momento, isto é, que seu lugar
implica o outro e se redefine a partir dessa relação. Deixar-se atravessar pela
cena clínica, para mim, é o que permite e, mais que isto, garante a alteridade.
Se nossa atenção recair somente sobre a forma como fala nosso paciente, o
trabalho será desenvolvido na perspectiva do “conserto”; escutar o que ele diz
e buscar os sentidos possíveis nos aproxima do sujeito. Deixar-se atravessar
pela fala do outro, assim, é oferecer-lhe um lugar para enunciar.
De acordo com Benveniste, “a linguagem é, para o homem, um meio, na
verdade, o único meio de atingir o outro homem, de lhe transmitir e de receber
dele uma mensagem”. E completa: “a linguagem exige e pressupõe o outro”
(Benveniste, 2006, p. 93). Para trabalharmos com linguagem, nesse sentido,
essa suposição de que o outro existe é condição; e, assim sendo, o imprevisível
está sempre presente. Eis o segundo atravessamento, avatar do primeiro: o fo-
noaudiólogo precisa estar atento ao imprevisível, pois ele é constitutivo da cena.
Com relação ao campo, trabalho com a ideia da escuta de outras áreas
de conhecimento como provocadora de efeitos na atuação do fonoaudiólogo.
Para mim, o trabalho na clínica dos distúrbios de linguagem, quando centrado
nos sujeitos e não simplesmente em sua falha, pressupõe uma complexidade
de que uma área isolada não dá conta. Ultrapassar as fronteiras de outros
campos, deixando-nos atravessar por outros saberes, sem, no entanto, aban-
donarmos o que nos torna únicos, parece-me ser uma saída interessante.
Assim compreendo a interdisciplina. Nela vejo o terceiro atravessamento que

244
244
244
Sobre o fazer clínico...

pode permitir a construção de um lugar para o fonoaudiólogo na clínica dos


distúrbios de linguagem.
Trata-se de atravessamentos que, embora de naturezas distintas (alteri-
dade e imprevisibilidade têm um estatuto intracênico, enquanto a interdiscipli-
na diz respeito à formação do fonoaudiólogo), operam de forma conjunta na
clínica, não há uma hierarquia entre eles. Em última análise, ambos se fazem
presentes e necessários na construção da cena clínica.
A partir da reflexão que realizo, uma noção me parece ser condição
determinante dos processos terapêuticos que se estabelecem no trabalho
junto à clínica dos distúrbios de linguagem: trata-se da possibilidade de es-
cuta do fonoaudiólogo, ou seja, a capacidade de ultrapassar a instância do
ouvir, no sentido de perceber os sons e a forma como fala seu paciente, para
a de escutar esses sujeitos no aqui-agora da relação. Assumir essa posição
sustenta e define, em minha concepção, a forma como o fonoaudiólogo atua.
Forma que supõe maturidade e coragem, uma vez que, em certo sentido, se
contrapõe às demandas sociais de que “consertemos o que não está bem”
e mesmo da “busca de resultados no menor tempo possível”, que permeia,
ainda, nossa formação acadêmica.
Quando falo em maturidade, me refiro aos processos por que passa-
mos na construção de nossa prática clínica, aliás, em constante movimento,
desde que nos deixemos interrogar por ela. Buscar um “modelo a seguir”,
nessa proposta, não passa de ilusão. Escutar, na concepção que aqui estou
desenvolvendo, carrega as noções abordadas: singularidade, intersubjetivida-
de, alteridade, atravessamento, movimento, deslocamento, sujeito. Trata-se
de posicionamento frente àqueles que nos procuram, condição para que se
constitua um espaço possível para que o paciente ocupe seu lugar como sujeito.
Essa forma de conceber o que entendo, aqui, como escuta, decorre,
ainda, da noção de sintoma de que me valho nessa discussão. Para Flores,
quando se trata de “patologia” de linguagem, a relevância se encontra no
processo de construção da enunciação pelo locutor, mais que no produto.
Diz o autor: “o sintoma de linguagem não é separado daquele que enuncia”
(2007, p. 112). Na mesma direção, encontro em Surreaux (2006) a proposta
de se tomar o sintoma de linguagem como ato de criação, uma “combinação
singular”, afastando-o do status de “erro” ou “falha”.
Quanto aos lugares que cada sujeito ocupa nessa relação e as suposi-
ções que entre eles circulam, compreendo que para o paciente há, na direção
do fonoaudiólogo, a suposição de que ali está alguém que pode aliviar seu
sofrimento; para o fonoaudiólogo, em minha concepção, a suposição na direção
de seu paciente é de que ali há um sujeito e, como tal, alguém capaz de se

245
Sonia Luiza Dalpiaz

apropriar de seu dizer. Para mim, como dito ao longo de todo este trabalho,
trata-se de uma construção em via de mão dupla, em que cada um, desde sua
singularidade, enuncia e, enunciando, se faz sujeito na relação.
Como terceiro apoio do tripé que sustenta minha concepção está a
questão do tempo na clínica dos distúrbios de linguagem. Trata-se daquele
tempo que não pode ser medido e quantificado. Trata-se dos tempos dos
sujeitos implicados na clínica: únicos, singulares, que variam de sujeito para
sujeito. Tão inscrito, marcado e marcante em cada instante da relação que ali
se estabelece, que, para mim, tem o status de operador: operador do fazer
clínico, pois faz funcionar a cena clínica, ele se atravessa, constitui e significa.
Comparece em todas as instâncias com as quais lidamos durante os proces-
sos junto aos pacientes: tempo para que o paciente formule a demanda de
tratamento, tempo de avaliação, tempo de tratamento, tempo de construção
da relação, tempo de enunciar, tempo de despedida...
Semelhante ao atravessamento que a questão do sujeito e sua singula-
ridade, desde a psicanálise, vem produzindo efeitos em minha prática, é nesse
campo que inicio um percurso para compreender a questão do tempo, que aqui
se apresenta. Para a psicanalista Sylvie Le Poulichet, a pergunta sobre o que
é o tempo gera, para seu campo, um não-saber fundamental; a resposta final é
inapreensível, e o efeito disso é a singularidade de cada experiência analítica,
ou seja, não há uma progressão linear dentro de um tempo lógico. No trabalho
analítico, a autora distingue as dimensões entre o tempo instaurador e o tempo
de duração. O tempo de duração (número de sessões, duração da análise)
não garante por si só a existência de uma experiência analítica; é necessário
que seja aberto, como refere a autora, um tempo instaurador de passagens.
Esse tempo não pode ser pensado em termos de duração, ele é, antes de
tudo, “um ritmo que dá lugar a um conjunto de laços e passagens” (1996, p. 8)
Em minha perspectiva, o processo por que passa cada paciente em
terapia é singular e, na medida em que se desenvolve, essa construção passa
a fazer parte de sua história. Os resultados desse trabalho são, assim, “conse-
quência”, fruto do trabalho de dois sujeitos, responsáveis tanto pelo resgate
de suas histórias individuais, como por colocá-las como pano de fundo para
a criação de uma continuidade, juntos, construindo um caminho em direção
ao futuro. Cabe, aqui, percebermos que, no momento em que se admite um
cruzamento de histórias, ambas se modificam: o que ali acontece marca para
sempre a trajetória de cada um dos sujeitos implicados. Aqui e agora, desde
o antes e para o depois.
O tempo é constitutivo do sujeito. Singular, individual, está tão imbricado
em tudo que se faz, que pode parecer banal falar sobre ele. A obviedade de
sua presença afasta-o de nossa consciência, mas, paradoxalmente, está ali,
246
246
246
Sobre o fazer clínico...

correndo nos ponteiros, construindo a existência de cada sujeito. O curso do


tempo pode ser tomado desde a angústia e a pressa características da atu-
alidade, com todos os efeitos que podem causar no trabalho na clínica dos
distúrbios de linguagem, ou desde a posição de que ele constrói processos,
institui movimentos, possibilita mudanças e cria o novo. Minha opção é pela
segunda perspectiva.

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247
Sonia Luiza Dalpiaz

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Recebido em 02/12/2012
Aceito em 08/03/2013
Revisado por Marisa T. Garcia de Oliveira

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248
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 249-255, jul. 2011/jun. 2012

VARIAÇÕES
Q"UWRGTGIQ"FC"ETKCPÑC
G"C"ETWGNFCFG"PC"GUEQNC3

Alba Flesler2

Ici se marque le tranchant du couteau entre la jouissance de Dieu et ce qui,


dans cette tradition, se présentifie comme son désir… Il met tout au contraire en
valeur la béance séparant le désir de la jouissance.
Jacques Lacan

P ara Freud, as instâncias moralizantes contribuem para a cultura. Quando


se atinge alguma vantagem de forma delinquente, o sentimento de culpa
irrompe como castigo para o sujeito, pois os poderes da consciência moral
freiam a satisfação de se obter a vantagem há tanto tempo esperada.
De acordo com essa posição, afirma-se que: “Nas crianças podemos
observar diretamente que ‘são más’ para provocar o castigo, e uma vez que
este é obtido, mostram-se tranquilas e contentes” (Freud, [1916] 1985, p. 320).
Costumamos prestar atenção a suas reflexões, sem nos negarmos a
formular nossas perguntas: por acaso, quando machucam outra criança na
escola, perseguem o encontro com um severo rigor que as coloque frente à
responsa-bilidade de seus atos?

1
Texto publicado em Imago Agenda. Número: 161, julho, 2012. Letra Viva, Buenos Aires.
2
Psicanalista; Membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires (Argentina); Supervisora da
Àpres-coup Psychoanalitic Association of the New York (USA). É autora de El niño en análisis y
las intervenciones del analista (Editorial Paidós, 2011); Coautora dos livros Los discursos y La
cura e de poetas, niños y criminales: a propósito de Jean Genet. E-mail: albaflesler@sion.com

249
Alba Flesler

Os fatos nem sempre indicam isso. Elas não se parecem ao “pálido de-
linquente” nietzschiano. São muito mais próximas à atitude do pequeno Sergei,
conhecido como Homem dos Lobos, que quando era criança tinha como objeto
de crueldade pequenos insetos, pegando moscas para arrancar-lhes as asas
e pisoteando escaravelhos, quando realizava suas “atividades plenamente
sádicas de signo positivo” enquanto fantasiava com “crianças como objeto de
maus-tratos” (Freud, [1914] 1985).
É verdade que fantasiar não é o mesmo que fazer, como dizia Hans, em
outro dos casos clínicos freudianos, assim como também é verdade que sua
tentação pulsional cedeu ao influxo posterior da severidade do superego. No
entanto, é notável descobrir o sujeito mortificado entre a pressão dos gozos
pulsionais e os mandatos de um superego sádico e cruel. Entre um e outro,
Sergei se debatia, aprisionado sem saída, sem lei reguladora para orientar os
gozos no caminho do seu desejo.
Por que essa lógica se repete?

Q"dwnn{kpi<"cniq"swg"pçq"vgo"pqog"

Diz-se que não se entende, que a atitude parece não seguir padrões
de comportamento nem revelar pautas fixas, e que é motor de situações que
têm levado algumas crianças ao assassinato ou ao suicídio. As sombras da
morte parecem sobrevoar ameaçantes sobre o âmbito escolar e espaços
circundantes, com variações de agressão que oscilam entre amostras de
indiferença abismal e provocações humilhantes, entre zombarias e insultos,
entre o silêncio e as mensagens humilhantes, entre pancadas e empurrões.
É mencionado, descritivamente, que a criança tomada por objeto desse
assédio pode ser gorda ou magra, alta ou baixa, calada ou extrovertida, nova
na aula ou veterana; seus atributos não são causa suficiente para compreender
qual é o ensejo inicial que desencadeia a tragédia. O que se sabe é que as vias
se fecham, que para as crianças é difícil contar o quanto sofrem, que na maioria
das vezes se calam, que tentam deixar de ir à escola, que somente encontram
saída em uma passagem ao ato fatal. Parafraseando Ulloa (1995), a armadilha
cumpre seu propósito, a cena deixa de ser cômica, a tensão dramática detém
seu curso e a tragédia ganha o cenário escolar, com uma ferocidade que não
tem nome.

Rqt"swg"pc"gueqnc"g"rqt"swg"go"etkcpècu"fg"egtvc"kfcfgA

As neuroses da infância são, em geral, como dizia Freud e como nós


analistas constatamos, episódios regulares do desenvolvimento: “ainda que
250
250250 se dê escassa atenção” ([1926] 1985, p.139).
O superego da criança...

Os sintomas de agressão de crianças contra outras são episódios co-


muns na infância, não é um novo mal destes nossos tempos. No entanto, os
episódios em progressão, precisam elucidar suas razões.
Por que estão aumentando, nos últimos tempos, essas cenas no espaço
escolar?
Ansiosa por encontrar um nome, esta época de inquietude e incertezas
as chamou de bullying, importando do inglês um termo que alude a quem usa
a força ou o poder para ferir ou amedrontar as outras pessoas. O agressor
age, tal como faria um bull, um touro. Trata-se, então, de alguém que arremete
de modo bestial.
O fato de não ser exclusivo entre as crianças não impede de se ques-
tionar por que a sua prática se afiança e se estende nas escolas, e por que
essencialmente repercute em crianças e adolescentes na faixa dos sete aos
quatorze anos.

Q"swg"qeqttg"pguug"vgorq"fq"uwlgkvqA

Meu interesse por indagar a distinção entre a idade e os tempos na es-


trutura do sujeito, levou-me a delimitar os tempos do real, do imaginário e do
simbólico na constituição da estrutura, e a considerar que somente com um bom
enlace entre eles se recria o vazio conveniente para a progressão dos tempos
do sujeito. Insisti em ressaltar que, muito embora seu enodamento gere uma
borda em cada um dos registros para abrigar o objeto como causa de desejo, é
preciso lembrar que, e vale ressaltá-lo neste momento, o objeto também pode
funcionar como um plus de gozar, obstruindo qualquer progressão.
Costumamos confirmar que não há progresso, e coincidimos com
Lacan, e que o ser humano guarda na sua própria constituição um caroço
indestrutível. No entanto, que não haja progresso não impede considerar
que haja progressão, ainda que saibamos que ela é contingente. Em certas
ocasiões, devido à falta da incompletude, cuja lógica se faz necessária, a
progressão falha, e os gozos circulam entre demandas vampirizantes e os
desdobramentos superegoicos, cruéis e terminantes. Ambos escravizam o
sujeito, incapazes de relegar uma porção de gozo idêntico e pertinaz ofere-
cido ao altar de Outro não barrado.
Todos os fundamentalismos se nutrem desse fator ativo, demonstrando
que a ordem simbólica nem sempre é pacificadora; muitas vezes torna-se
fonte de mandatos e sintagmas coagulados, nutrindo também o gozo do
superego.

251
Alba Flesler

Q"uwrgtgiq"g"q"kfgcn"pqu"vgorqu"fq"uwlgkvq

Quando a ordem simbólica abriga um furo, principal e primeiro para a


estrutura do sujeito, suas engrenagens se movem em uma lógica que admite
a castração e faz da incompletude a promotora dos tempos do sujeito. Quan-
do acontece, a palavra torna-se um significante para outro significante, e seu
acervo abre a brecha diferencial entre o Ideal e o superego. O simbólico do
Outro real, que assim funciona, oferece opções para colocar no horizonte do
sujeito o Ideal do eu. Por esse prisma, a perspectiva se abre para quem aceita
renunciar à miragem prazerosa e arrebatadora do olhar unificante, à tentação
das pulsões constantes e ao gozo dos mandatos sádicos do superego, dando
lugar a uma falta ocasional para enxergar além do seu próprio umbigo.
Somente alcançando vislumbrar ideais e projetando nessa direção o seu
desejo, o sujeito pode-se liberar do atordoamento egoico, das sujeições supe-
regoicas e da dependência pulsional. Os ideais, herdeiros de uma diferença
admitida entre o Ideal do eu e o eu ideal, poderão propiciar o avanço subjetivo.
Passo a passo, descobrindo a distância entre o Ideal e o objeto, abrir-
se-á para as crianças uma oportunidade de andar pelo caminho da exogamia.
Todavia, ninguém avança sem luzes pelo caminho, e a diferença pode-se tornar
inaceitável, o familiar estender-se ao social, levando à segregação do outro,
à rejeição ou, expressamente, ao aniquilamento.
Normalmente, está bem demonstrado pelas ditaduras de todas as
épocas que os transbordamentos pulsionais se dão bem com os excessos do
autoritarismo mais cruel. Quando a castração do Outro não funciona, o gozo
governa como se fosse um cruel tirano. Destinos pulsionais e sintagmas su-
peregoicos tiranizam o sujeito e parecem unir suas forças sem limite, quando
não dispõem do efeito pacificador de uma lei que legisle e regule.

Gpvtg"qu"ugvg"g"qu"swcvqt|g"cpqu

Los hombres se parecen más a su tiempo que a sus padres.


Max Weber

Cada momento da vida, cada tempo do sujeito demanda uma redistri-


buição de gozos. Concluída a primeira infância, se inicia a latência, mas, longe
de ficarem latentes, os gozos ficam pulsando. O contraponto entre saber e
sexo apunhala apressadamente o tempo de compreender aquilo que a criança
descobriu na primeira ocasião de seu despertar sexual. O real do gozo gera
urgências que não sabem esperar. São necessárias coordenadas simbólicas,
que deem marco e limite aos transbordamentos. Elas se produzem, a seu
devido tempo, na infância e são dependentes dos emblemas familiares e do
252
252252
O superego da criança...

discurso da época. Cada tempo histórico vai entregando, ou não, os recursos


necessários para alcançar os objetos prometidos a gozos futuros.
A faixa dos sete aos quatorze anos é o intervalo entre um e outro des-
pertar; um tempo no qual as crianças não sabem muito bem o que fazer da sua
vida. As vicissitudes da sua travessia podem estar cheias de aborrecimento
e tédio, quando a homeostase egoica se impõe ou, ainda pior, de tentações
pulsionais plenas de enredos e jogos desatinados presos à desorientação,
quando não de mandatos superegoicos.
Prisioneira de uma atualidade que satura os espaços e procura com
veemência seu preenchimento, a possibilidade de encontro com o vazio fica
reduzida para a criança, nada lhe causa a falta de objeto e tudo colabora
para desorientar o desejo. A época contribui, inquietando os corações com a
desvalorização dos ideais de outrora e enfrentando as crianças com graves
falências na autoridade dos pais, tantas vezes mais desorientados do que elas.
Com esse panorama, recorrem àquelas velhas e conhecidas instâncias que
sempre sabem como matar o tempo: as tentações pulsionais e os mandatos
do superego. Elas nunca se alimentam de perguntas, sempre oferecem res-
postas e se propõem realizá-las com prontidão e crueldade, sem sutilezas nem
concessões, à risca. A demanda pulsional e o severo superego estão repletos
de saberes consabidos, coagulados na linguagem que ausenta a palavra. A
pobreza simbólica sempre se coloca ao seu lado e se torna uma aliada.

Q"swg"hc|gt"rctc"hcxqtgeg/nc."pc"pquuc"cvwcnkfcfgA"

A agressão aos outros sempre existiu nas crianças dessa faixa etária, e a
segregação está na base de todo agrupamento. Seus ecos sempre ressoaram
em todas as crianças que começam a transitar nesse momento da vida, no
qual os grupos de pertencimento são o resguardo para ir além da sua família.
Por isso, encontrá-los é tão importante, e o sofrimento, imenso, quando se
enfrenta a exclusão. Muitas crianças emudecem quando se acumulam os go-
zos, e o sujeito não encontra resposta. Faltam as palavras, frequentemente há
Verbluffung, sideração, porque o destino desse momento da vida depende dos
recursos simbólicos recebidos do Outro real para abrigar o diferente. A falha
se evidencia tanto para a criança que agride quanto para a que é assediada.
A primazia das pulsões e dos fundamentalismos superegoicos é o
efeito da progressiva falha da operação nominante do pai e o concomitante
desfalecimento de sua função de autoridade. Assistimos a uma versão do pai
desautorizado. Ele não se autoriza e também não o faz o discurso social, ao
confundir a lei com a censura, a autoridade com o autoritarismo, e toda re-
pressão como improcedente restrição da liberdade do sujeito. Quando nada é
253
Alba Flesler

proibido, tudo é obrigatório. A existência se arrisca à mercê do gozo, e a vida


acaba sendo levada por um tobogã em direção à morte.
Chamam o bullying de “a epidemia silenciosa”, talvez porque, apesar
de suas apresentações variadas, conserva um elemento comum: a ausência
da palavra. A percepção dolorosa de uma repetição faz da testemunha o
observador indiferente da ação, um bystander como é chamado pelos anglo-
saxões. Os maus-tratos sistemáticos e continuados entre pares não parecem
chamar a atenção.
Sem a suspensão dos gozos parasitários, o laço social vai à falência.
E não deve nos surpreender, pois, que aquilo que não foi ordenado na cena
familiar se mostre fora dela.
Faz tempo que a escola se transformou no “ringue” de uma cena que
leva ao âmbito público aquilo que não consegue processar no âmbito privado.
Da família à escola, o “acting” se faz “out”, quando não a passagem ao ato.
Procura-se que alguém responda aos gozos pulsionais que ancoram em um
cais inexpugnável.
Chamado o Outro, que demora em responder, que desconhece que
a urgência pulsional, não admite espera sem limites, que a passagem à pu-
berdade reclama um agente ordenador do trânsito, que o desfalecimento da
autoridade, e suas consequências sobre a desacreditada função nominante
do pai, hoje dirige sua reclamação para outro âmbito, um obrigatório, aquele
ao que pela lei social se deve concorrer.
Cenário de transição entre a endogamia e a exogamia, a geografia da
escolaridade enfrenta nestes dias a pergunta pela responsabilidade que diz
respeito a nós, os adultos, diante do problema escolar. Considerá-lo como
sintoma libera a palavra amordaçada e nos convida a falar e a decidir.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. De la historia de una neurosis infantil [1914]. In:_____Obras com-


pletas – Tomo XVII. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1985, p. 2-112.
______. Algunos tipos de carácter dilucidados por el trabajo psicoanalítico [1916].
In: ______. Obras completas – Tomo XIV. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1985,
p.313-339.
______. Inhibición, síntoma y angustia [1926]. In:_____Obras completas - Tomo XX.
Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1985. p. 71-164.

254
254254
O superego da criança...

LACAN, Jacques. Le nons-du-père. Paris: Du Seuil, 2005. p. 100-101.


ULLOA, Fernando. Novela clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Ed. Paidós, 1995.

Recebido em 06/11/2012
Aceito em 25/11/2012
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis

255
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 256-265, jul. 2011/jun. 2012

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Paulo Endo2

[...] a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela
transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais,
os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais.
Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um
sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto
ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política
enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo,
enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo
que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência
específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma
específica de visibilidade, uma modificação das relações entre for-
mas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas,
mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão.

1
Este artigo foi originalmente publicado na revista on line Trivium, ano IV, edição I, no 1º. Se-
mestre de 2012.
2
Psicanalista; Professor Doutor do Instituto de Psicologia da USP; Pós-Doutorado pelo Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP/CAPES); Coordena o Grupo Psicanálise, Teoria
Política e Psicologia Institucional (Diversitas/USP). É pesquisador do Laboratório de Psicanálise,
Arte e Política (LAPPAP) e do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI-USP) e membro
do GT da ANPPEP, Psicanálise, Política e Cultura. Expert junto ao Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL) e membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e à Vio-
lência Institucional. E-mail: pauloendo@uol.com.br
256
Política, cultura e mercado em um mundo...

Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma


luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações
comuns”; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não
parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc.
Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela
recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela
determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos
sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e
das incom-petências, que define uma comunidade política (Rancière,
2005, p. 2 ).

É , talvez, examinando, contemplando e sendo interpelados pela arte, pelo


artista e sua obra, que alcançamos o sentido radical da política. As inter-
rogações sobre a natureza do espaço e do tempo compartilhados, a partir
da ação significativa nesse próprio tempo e espaço, que desfaz e refaz con-
cepções conhecidas, determinadas e imperecíveis convocam a radicalidade
possível da arte. É nesse território, onde se manejam tempo e espaço, que
a arte revela-se como urgente e necessária e é provavelmente por isso que
ela é igualmente atacada, capturada, combatida e esgotada em seu potencial
ofensivo e em sua radicalidade política.
Uma das capturas mais prosaicas a que o fazer artístico está sujeito
ocorre no cerne daquilo que se denomina, muito apropriadamente, de produção
cultural. A cultura e os produtos derivados do fazer artístico são, frequente-
mente, alvos a serem capturados por sua funcionalidade e inscrição no fluxo
de capitais e, dessa forma, muitas vezes são reduzidos a mero apanágio pan-
tomímico de grupos específicos, envolvendo artistas, curadores, intelectuais e
empresários desinteressados de qualquer crítica ou debate político ou estético
radical, muito embora, claro, eles não estejam tão desinteressados de exercer
sua influência pessoal para figurar no campo da arte considerada “consagrada”,
exposta nos lugares igualmente consagrados e hegemonicamente prestigiados.
Não raro torna-se difícil distinguir uma performance, exposição ou obra
da espetacularização que lhe é coeva e das condições prévias (patrocínios,
financiamentos, relações pessoais com curadores, etc.) que lhe servem de
suporte para que aquela obra exista. Teixeira Coelho, ex-diretor do museu de
arte contemporânea e curador do Masp (Museu de Arte de São Paulo), num
programa de debates televisivo, quando indagado sobre a definição de arte,
respondeu um tanto ironicamente: “a arte é aquilo que está no museu”. Ou
seja, se um papel higiênico é encontrado no meio da rua é dejeto, se é encon-
trado numa sala na Bienal de São Paulo é arte. Com esse exemplo deixava
evidente o problema de que, ao fim e ao cabo, a definição sobre o que é a
257
Paulo Endo

arte, ao menos da arte consagrada e prestigiada no mercado da arte, estava


mesmo nas mãos dos curadores.
Bourdieu (2007) demonstrou como essa construção é pertinaz, contínua
e regular, como também sugeriu que as definições sobre o gosto, uma vez con-
solidadas, a partir de processos históricos longitudinais, não são nada simples
de serem decifradas. Ou seja, o que possibilita o surgimento e apagamento de
preferências adquire inscrição inconsciente que, por sua vez, é reproduzida
nas instituições de transmissão, como a família e a escola, de forma contínua
e eficaz. Basta observar o universo das escolas particulares no Brasil para
reconhecer, em muitas delas, a apresentação de Miró, Picasso e Kandinski
como conteúdos praticamente obrigatórios nas disciplinas de arte, tal como a
adição, a multiplicação e a divisão em matemática.
Certamente a transmissão do que é ética e esteticamente aceitável
está quase toda a cargo das instituições familiares e escolares, mas não só
delas. É preciso considerar a televisão. Longe dos debates sobre a estética,
podemos observar hoje o parentesco que a publicidade almeja ter com a arte.
Os publicitários definem-se, sem qualquer cerimônia, como artistas. Em toda
agência há lá um setor ou uma diretoria de arte e no festival anual internacional
de publicidade, que é realizado em Cannes, uma das categorias premiadas
é a de direção de arte.
Abro parênteses neste ponto para lembrar que escola, família e tele-
visão, sobretudo, são definidores e sugestionadores de padrões de eficácia
incontestável. Se, como faz Bourdieu (2007), reconhecermos, no processo de
constituição social de uma obra de arte, que de modo algum estão apenas na
mão do artista aquelas condições que a definem como arte, então, indubita-
velmente, podemos percebê-las em estreita conexão com as práticas, valores
e estilos burgueses.
Esse estilo se destaca pela imposição das regras de compra e venda,
regras de comercialização e ingresso no mercado das artes, muito difíceis de
evitar e driblar. Tudo deve ter seu preço e esse preço deve ser capaz de sus-
tentar o artífice, seu ofício e os que com ele podem obter lucro e rentabilidade.
O paralelismo entre a arte e a publicidade, evidentemente, não pode e
não deve ser buscado em seu parentesco estético, mas na proximidade ideo-
lógica que pode haver entre ambas, e na perfeita oposição em que podemos
perceber que aquilo que enfraquece e pode destruir uma (a arte e o artista),
fortalece e produz eficácia em outra (a publicidade e o publicitário).
Por isso, creio que é possível reconhecer nessa proximidade estranha o
paroxismo, por aproximação e similitude, de uma certa definição aproximativa
da própria arte.

258
Política, cultura e mercado em um mundo...

Isto é, se uma boa parte do mundo da arte,o mundo dos artistas e de


seus admiradores, consumidores, patrocinadores e críticos se organiza em
torno da experiência burguesa - o mercado da arte - é porque o estilo de vida
burguês, antes, já impôs sua penetração na produção cultural da arte, exi-
gindo condições mínimas para que uma determinada forma de viver e fazer
a arte sobrevivam sob seus auspícios. Poderíamos sintetizar tais condições
na seguinte caracterização da arte, conforme sugeriu Bourdieu (2007): “...a
distância objetiva em relação à necessidade” (p. 56).
Daí se poderia extrair o próprio sentido implícito de liberdade presente
no mundo da arte: a liberdade relativa à necessidade objetiva. O que sugeriria
que toda expressão de necessidade é uma espécie de aprisionamento, já que
a própria necessidade estaria presente naquilo que se poderia julgar como
vulgar, rasteiro e não sublime.
Retomamos e encarecemos aqui tanto o exemplo de Teixeira Coelho,
citado acima, quanto um outro que acrescentarei mais adiante. Desse ponto
de vista, o papel higiênico na rua não seria mais do que a expressão flagrante
de uma necessidade humana, num certo sentido então, nas antípodas do que
seria a arte. Já um papel higiênico num museu seria, ao contrário, o exemplo
do anti-necessário, um supérfluo absoluto no contexto do museu, dos artistas,
do mercado cultural e das pessoas que visitam o museu em busca de obras
de arte.
A necessidade como polo opositor da liberdade pleiteada pela arte, ou
melhor, por uma certa arte, permanece igualmente distante do mercado publi-
citário, que não é outra coisa senão a imposição da necessidade do supérfluo.
Nesse sentido entendemos talvez, porque o publicitário quer se reconhe-
cer como artista e reivindica também para si esse título, não só banalizando-o,
mas praticamente destruindo-o antes de fazer uso dele. Justamente porque é
ele o artesão do inútil, do fútil e é ele que se apresenta como a célula-mater da
constituição da vida burguesa, fundada na oferta de produtos e na aquisição
massiva desses mesmos produtos. Quem não pode conviver, adquirir, admirar
o fútil não pode ser um burguês, especialmente porque, supostamente, estaria
atado ao mundo vulgar e tirânico das necessidades e vetado à experiência
do sublime e do fútil.
A aspiração do mundo publicitário em direção à arte então ganha
densidade. Não estariam muitos “artistas” ingressando na seara daqueles
que produzem o desnecessário e o habilitam para o consumo, no chamado
mercado da arte, representado, sobretudo, pelas galerias de arte privadas?
Não se tornara prática corriqueira a busca desenfreada dos decoradores
de interiores por quadros – de preferência executados por artistas consagrados

259
Paulo Endo

–, para combinar com o tom da cor das cortinas e das paredes dos castelos,
mansões e coberturas?
Essas considerações, bastante superficiais, sobre um determinado
cenário onde o mercado da arte se move, revela pontos de tangência com
a publicidade que qualquer observador e consumidor comum de arte pode
verificar, embora seja mais invisível aos especialistas, estudiosos da arte e a
muitos artistas que se mantêm nas antípodas de processos como esse.
A observação de Teixeira Coelho sobre o fracasso da arte contemporâ-
nea e seus ideários, assumidos na década de 60, quando grupos de artistas
defendiam o fim dos museus e do mercado da arte, é elucidativa. Cito Teixeira
Coelho:

O museu não foi derrotado. Nem o mercado de arte. Nem as ins-


tituições como um todo. Mesmo porque, ao final da década de 70,
uma nova atitude diante das instituições despontava: não se tratava
mais de contestá-las, destruí-las, tratava-se agora, um tanto cini-
camente, de aproveitar os aspectos positivos que podiam oferecer
a cada um individualmente. Mesmo a tão radical arte conceitual foi
suficientemente contemporânea para entrar na nova onda: [...], os
próprios artistas queriam (e querem) que o museu e o mercado, no
modo da galeria ou da bienal, lhes deem e às suas obras, a devida
e necessária certidão de existência artística. Os próprios artistas
querem mais: que o museu conserve aquilo que alegadamente não
foi feito para durar. Se as instituições são a modernidade e se 68 foi
contra esse espírito moderno e portanto contra a instituição, de seu
lado a pós-modernidade é o reconhe-cimento (implícito e às vezes
expresso) da existência da instituição, com a qual se passa a conviver
pacificamente. Muito pacificamente (2000, p.200).

O problema certamente não se encerra nas instituições como lugares


onde uma obra pode existir, mas na necessidade intrínseca que a arte passa a
ter de sua institucionalização. Isso é, a pergunta apropriada nesse caso seria:
como pode a arte existir num horizonte em que seu próprio desaparecimento
é condição de sua existência e de sua legitimação?
Como diz Rancière a respeito de sua, muito própria, concepção de
estética:
A palavra estética, não remete a uma teoria da sensibilidade, do
gosto ou do prazer dos amadores da arte. No regime estético das
artes as coisas da arte são identificadas por pertencerem a um
260
Política, cultura e mercado em um mundo...

regime específico do sensível. Esse sensível, subtraído às suas


conexões ordinárias, é habitado por uma potência heterogênea, a
potência de um pensamento que se tornou ele próprio estranho a
si-mesmo: produto idêntico ao não produto, saber transformado em
não-saber, logos idêntico a um pathos, intenção do inintencional, etc.
(Ranciére,2005a, p.32)

O efeito de distinção sobre o qual Bourdieu (2007) chamou a atenção


(ricos/pobres, expertos/ignorantes, cultos/incultos, etc), por sua vez ampla-
mente ratificada pelo mercado da arte, revela a complexa institucionalização
a que, muitas vezes, o fazer artístico foi e é submetido, e onde ele agoniza.
Sendo assim, a arte não poderia ancorar-se jamais na positividade ab-
soluta dos julgamentos arbitrários do gosto que constituem as instituições de
arte. E quando ela o faz, arrisca-se ao seu próprio aniquilamento.
É, diferentemente, no bojo de uma revolução estética que Jacques
Ranciére compreendeu a própria possibilidade do inconsciente freudiano,
que foi, para Rancière, uma das versões da revolução estética em curso no
final do século XIX. O conhecido convívio, fundamental para Freud com a
literatura, com os escritores de sua época, e a sua premiação com o prêmio
Goethe revelam, de fato, que um debate estético estava em curso no seio da
constituição do saber-fazer psicanalítico3 .
É, do mesmo modo, intrigante a preocupação de Freud, em dado mo-
mento, com a institucionalização da psicanálise e os perigos daí decorrentes,
tantas vezes ameaçadores para a própria psicanálise.
Cito Freud:

Porém estou seguro de uma coisa. Não importa muito qual seja a re-
solução que vocês farão recair sobre a questão da análise leiga. Qual-
quer que seja, só pode ter um efeito local. O que é verdadei-ramente
importante é que as possibilidades do próprio desenvol-vimento que,
em si, engendram a Psicanálise não podem ser restringidas por leis
nem regulamentos (Freud, [1926] 1981, p.2953).

Essas palavras de Freud não são exatamente reveladoras do que acon-


teceu e acontece com o movimento psicanalítico, hoje repleto de instituições
de todas as cores e credos, mas podem ser recordadas como alerta sobre um

3
Não poderemos discutir mais apropriadamente esse aspecto aqui, porém remeto o leitor ao
texto de Jacques Rancière intitulado El inconsciente estético. Buenos Aires: Del Estante, 2006.

261
Paulo Endo

paradoxo: a necessária institucionalização, para que algo se transmita, deve


vir acompanhada da contínua oposição a essa mesma institucionalização,
que compacta e solidifica a coisa, a fim de transmiti-la a partir de posições de
consenso. Trata-se da mesma questão que tentamos propor acima. O que são
posições de consenso, quando se trata de uma obra de arte ou de um artista?
Essa conhecida e autoevidente afirmação freudiana insiste em afirmar
aquilo que foi necessário para que a própria psicanálise adviesse: a sustenta-
ção do pathos na experiência, mais tarde denominada psicanalítica, diante do
estrondo ensurdecedor da ruína do lógos. Poderá isso caber e ser transmitido
pelas instituições?
Um pequeno exemplo, extraído da história da psicanálise, pode auxiliar
a evidenciar o papel incerto que toda institucionalização comporta, sobretudo
quando se trata de transmitir práticas e saberes que dependem de sua dinâ-
mica instável e irresolúvel, como arte e psicanálise.
Em 1910, Freud publica um texto intitulado Leonardo da Vinci e uma
lembrança de sua infância. Recordemos apenas um seguinte trecho da bio-
grafia de Leonardo destacado por Freud em seu estudo:

Pareço-me ter sido destinado a ocupar-me particularmente do abutre


porque uma das minhas primeiras recordações de infância é que,
estando ainda no berço, um abutre chegou até mim, abriu-me a boca
com seu rabo e, várias vezes, bateu-me com o rabo entre os lábios
(apud Viderman, 1990, p.136).

A interpretação freudiana então vê nessa fantasia recordada ou recor-


dação fantasiada o desejo de “ser amamentado por sua mãe, e vemos aí a
mãe substituída por um abutre.” A atenção de Freud recairá sobre o abutre e a
simbologia que o acompanha, por exemplo, na escritura sagrada egípcia, em
que a mãe é representada por um abutre e toda a hipótese sobre a anseio de
Leonardo em ser filho de uma mãe abutre, mãe viril, mãe, sem pai.
Num trabalho de 1913, Oskar Pfister, amigo e discípulo de Freud, des-
cobre que no Louvre, num quadro de Leonardo que representa Santa Ana, a
Virgem e o Menino, na prega drapeada da vestimenta da virgem Pfister vê um
abutre, como numa imagem enigma proposta pelo próprio artista. Descrevendo
a imagem detalhadamente Pfister observa que “A extremidade à direita desse
rabo está dirigida para a boca do menino, exatamente como seu prófético
sonho de infância.” (apud Viderman, 1990, p.146)
Em 1952, um especialista de língua e literatura italiana, numa nota ao pé
de página, afirma que Freud traduziu de maneira equivocada o texto de Leo-
nardo. Não se tratava de um abutre, mas de um milhafre, ave muito diferente.
262
Política, cultura e mercado em um mundo...

Segue-se daí, como consequência, a ruína de toda interpretação


freudiana calcada na figura do abutre quanto mais ela seja referida às bases
materiais da descoberta (abutre ou milhafre). De outro lado emergem, como
numa erupção, os elementos constitutivos do trabalho psicanalítico revelados
nesse ‘erro’.
O parentesco que Freud encontrou entre o milhafre e o abutre resulta-
ram de sua própria atividade associativa e fantasmática, bem como o abutre
que Pfister encontrou no quadro de Leonardo, cuja tela em si mesma permitiu
que ali fosse projetada a figura de um abutre. Essas interpretações sucessi-
vas evidenciam-se então como trabalho associativo incessante que recobre
a própria interpretação em psicanálise e a faz render, de onde seu caráter
interminável. A interpretação da interpretação encontraria seu desmentido na
reinterpretação que a sucede para fazer surgir no próprio espaço analítico

[...] verdades que não estavam em nenhuma outra parte antes de


serem construídas na situação analítica por meio do trabalho que a
constitui” (p. 151 Viderman) “Pouco importa o que Leonardo tenha
visto (sonho ou recordação); pouco importa o que Leonardo tenha dito
(abutre ou milhafre) – o que importa é o que o analista, sem respeito
pela realidade, ajusta e reúne esses materiais para construir um todo
coerente que não reproduz uma fantasia preexistente no inconsciente
do sujeito, mas fá-la existir ao dizê-la (Viderman, 1990, p.151-152).

Um sem fim de interpretações apoiadas sobre as bases frágeis do


sentido e da significação, vindoura e fantasmática, conservam e perpetuam
o trabalho psicanalítico.
É precisamente isso que Freud, segundo Jacques Ranciére, apreendeu
da revolução estética, sendo a revolução psicanalítica fundamento e expressão
de ambas as revoluções, não só sintônicas, mas, num certo sentido, indiscerní-
veis. Nesse sentido, poderíamos falar de uma intervenção no espaço analítico
e de deslocamento e refundação de lugares que nada devem aos significados
instituídos e de consenso.
De modo flagrante, o que se denuncia no episódio de Leonardo, e na
reflexão de Serge Viderman, é esse desencontro notável entre duas expres-
sões, a obra de arte e a psicanálise, que dialogam sobre suas verdades, na
exigência que uma faz a outra na direção de seus princípios revolucionários.
Daí o fracasso da interpretação psicanalítica se ela quer apenas com-
patibilizar elementos dispersos (a ave-a cultura egípcia-a simbologia das
escrituras) em torno de alguma hipótese vitoriosa e constatativa, o que não
seria mais do que voltar à primeira teoria do trauma cometido pelo genitor na
263
Paulo Endo

gênese da histeria ou um giro em direção ao modelo proposto por Jung e a


teoria dos arquétipos e a hipótese de um inconsciente coletivo.4
A possibilidade da interpretação fracassada da obra de arte revela o
trabalho inconsciente do próprio Freud e, talvez, de Leonardo, cujo resultado
é uma composição original, inédita e instável, como é a própria interpretação
psicanalítica e seu devir.
Podemos terminar com uma elaboração bastante satisfatória dos ele-
mentos que apresentei para vocês em relativa dispersão. Cito mais uma vez
Rancière:

O que está em jogo a princípio para ele (Freud)(...)não é estabelecer


uma etiologtia sexual dos fenômenos da arte. É intervir na ideia do
pensamento inconsciente que normativiza as produções do regime
estético da arte, ordenar a maneira em que a arte e o pensamento
da arte fazem jogar as relações do saber e o não saber, do logos e
do pathos, do real e do fantástico. Com suas intervenções, Freud
busca, antes de tudo, afastar certa interpretação dessas relações, a
que joga com a ambiguidade do real e do fantasmático, do sentido
e do sem sentido para conduzir ao pensamento da arte e à inter-
pretação das manifestações da “fantasia” até uma última palavra, que
é a pura afirmação do pathos, do sem sentido bruto da vida (2006,
p.68) [tradução minha do espanhol].

Poderíamos extrair daí a potência política da arte e da psicanálise.


Seu espírito inquietante no seio da adversidade gerada por toda e qualquer
imposição de hegemonia. J.B Pontalis (1974) já havia dito que a psicanálise
só existe ante aquilo que resiste a ela. Não se passará o mesmo com a arte?
Poderíamos imaginar psicanálise e arte sem alguma resistência que se lhes
oponha?

4
Remeto o leitor a Endo, P.C. Freud, Jung e o Homem dos lobos: percalços da psicanálise
aplicada. Ágora, v.4, n.1,p.115-129, 2001; onde discuto mais detalhadamente o episódio Freud e
Jung e algumas consequências metapsicológicas dessa dissidência no movimento psicanalítico.
264
Política, cultura e mercado em um mundo...

REFERÊNCIAS

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COELHO, T. Guerras Culturais.São Paulo: Iluminuras, 2000
FREUD, S. Um recuerdo infantil de Leonardo da Vinci. [1910] In: ______. Sigmund
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_____. Analisis profano. [1926] In: _____. Sigmind Freud: Obras Completas, T. III.
Madrid, Biblioteca Nueva, 1981, p. 2911-2959.
PONTALIS J-B. Bornes ou confins? Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.10, automne
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RANCIÈRE, J. El inconsciente estético. Buenos Aires: Del Estante, 2006.
RANCIÈRE, J. Política da arte. Disponível em: www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/
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RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005a.
VIDERMAN, S. A construção do espaço analítico.São Paulo: Escuta,1990.

Recebido em 13/10/2012
Aceito em 15/11/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões

265
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IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕES
No corpo do texto, a referência a autores deverá ser feita somente men-
cionando o sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de
autores cujo ano do texto é relevante, colocá-lo antes do ano da edição utilizada.
Ex: Freud ([1914] 1981).
As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas, acrescidas
dos seguintes dados, entre parênteses: autor, ano da edição, página.

V REFERÊNCIAS
Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem
alfabética pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:
OBRA NA TOTALIDADE
BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gramática
inconsciente. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-
1958]. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1999.

PARTE DE OBRA
CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al.
O laço conjugal. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24.
CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo.
São Paulo: Comp. das Letras, 1993. p. 21-9.
FREUD, Sigmund. El “Moises” de Miguel Angel [1914]. In: ______. Obras
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ARTIGO DE PERIÓDICO
CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? Cadernos da APPOA, Porto
Alegre, n. 71, p. 12-20, ago. 1999.
HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista da
Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 14, p. 43-53, mar. 1998.

ARTIGO DE JORNAL
CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com
Maria Rita Kehl. Zero Hora, Porto Alegre, 5 dez. 1998. Caderno Cultura, p. 4-5.

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
KARAM, Henriete. Sensorialidade e liminaridade em “Ensaio sobre a ce-
gueira”, de J. Saramago. 2003. 179 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária).
Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre. 2003.

TESE DE DOUTORADO
SETTINERI, Francisco Franke. Quando falar é tratar: o funcionamento da
linguagem nas intervenções do psicanalista. 2001. 144 f. Tese (Doutorado em
Linguística Aplicada). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2001.

DOCUMENTO ELETRÔNICO
VALENTE, Rubens. Governo reforça controle de psicocirurgias. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff01102003 23.htm>. Acesso em:
25 fev. 2003.
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