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REVISTA DA ASSOCIAÇÃO ISSN 1516-9162
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 41-42, jul. 2011/jun. 2012
Editores:
Maria Ângela Bulhões e Sandra Djambolakdjan Torossian
Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Gláucia Escalier Braga,
Maria Ângela Bulhões, Marisa Terezinha Garcia de Oliveira, Otávio Augusto W. Nunes,
Rosana de Souza Coelho e Sandra Djambolskdjan Torossian.
Editoração:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria linguística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que tem
por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém estudos
teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições temáticas
e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da venda avulsa,
a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação a instituições
científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
Semestral
ISSN 1516-9162
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psi-
cologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em maio 2013. Tiragem 500 exemplares.
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UWOıTKQ
Q"swg"tgvqtpc"pc"enîpkec"fc" VARIAÇÕES
atenção primária à saúde? ............ 173 Sobre o fazer clínico diante
What returns in clinic of primary health care? dos distúrbios de linguagem:
Eliana Mello o tempo e as condições para a
enunciação ...................................... 236
A violência nossa de cada dia: On the “clinical act” on language disorders:
o racismo à brasileira ...................... 183 the time and the conditions for the enunciation
Our daily violence: racism in a brazillian way Sonia Luiza Dalpiaz
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi
O superego da criança e a crueldade
Poder e violência no na escola .......................................... 249
discurso capitalista ......................... 194 The superego of the child and
Power and violence in the capitalist discourse
the cruelty at school
Rosana de Souza Coelho Alba Flesler
Políticas reparatórias e reconceituação Política, cultura e mercado num
do dano em mundo sem valores: diálogos entre
delitos de lesa-humanidade: psicanálise e estética ...................... 256
análise de um caso .......................... 203 Politics, culture and market in a world
Repairing politics and re-conceptualization of
without values: Dialogs between
damages in crimes against humanity:
Psychoanalysis and aesthetic
analysis of a case
Paulo Endo
Fabiana Rousseaux
ENTREVISTA
Psicanálise e seus litorais ............. 210
Psychoanalysis and its littorals
Maria Cristina Kupfer
EDITORIAL
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EDITORIAL
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 9-21, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
CU"HłTOWNCU"FC"UGZWCÑ’Q"G"
C"RUKECPıNKUG"GO"GZVGPU’Q3
Jaime Alberto Betts2
VJG"UGZWCNK\CVKQP"HQTOWNCU"
CPF"RU[EJQCPCN[UKU"KP"GZVGPUKQP
Cduvtcev<"This paper discusses psychoanalysis in extensión. The author appro-
aches Lacan’s four discourses, the formulas of sexualization and the pathology
of cultural communities to better situate clinical psychoanalysis in extensión and
ethics of desire.
Mg{yqtfu< psychoanalysis in extension, social bond, institutions, ethics of desire.
A psicanálise está à altura de falar o que quer que seja a respeito da vida da
instituição, de contribuir para a vida coletiva, inclusive para o político?
Jean-Pierre Lebrun (2009)
... podemos esperar que, um dia, alguém se aventure a se empenhar na
elaboração de uma patologia das comunidades culturais.
Sigmund Freud (1929 – Mal-estar na civilização)
1
Trabalho apresentado na Jornada Clínica da APPOA – Ainda mais Sobre o Gozo, em novembro
de 2012, resultado do trabalho de cartel realizado pela Linha de Trabalho O Desejo do Analista
nas Práticas Institucionais do Instituto APPOA.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Instituto
APPOA; Co-autor dos livros Sob o véu transparente – recortes do processo criativo com Claudia
Stern. Porto Alegre: Território das Artes, 2005; e (Re)velações do olhar – recortes do processo
criativo com Liana Timm. Porto Alegre: Território das Artes, 2005. E-mail: jaimebetts@gmail.com
9
Jaime Alberto Betts
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Jaime Alberto Betts
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As fórmulas da sexuação...
Cu"hôtowncu"fc"nôikec"fc"ugzwcèçq
13
Jaime Alberto Betts
Cu"hôtowncu"fc"ugzwcèçq."c"rcvqnqikc"fcu"eqowpkfcfgu"ewnvwtcku"g"c"
enîpkec"fc"rukecpânkug"go"gzvgpuçq5
3
Este subtítulo é uma ampliação de ideias propostas em Betts, 2011.
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Jaime Alberto Betts
bem como para os sujeitos que compõem o lugar conjunto formado pelo lugar
de exceção. A esse respeito, observe-se que, nas fórmulas da sexuação, Lacan
escreve F, significante do falo simbólico, e não o (-ϕ), falo imaginário. Ou seja,
o F indica a borda do simbólico com o real, a falta de objeto que se procura
frequentemente recobrir com o falo imaginário do poder.
Aqui nos aproximamos do tema do desejo do analista. Trata-se do desejo
que sustenta o analista em seu ato. É o desejo de que surja a diferença, de
que o impossível seja reconhecido. Na psicanálise em extensão, é o desejo
que o impossível – ‘que não cessa de não se escrever’ – e a diferença de lu-
gares que produz possa ser reconhecida pelos sujeitos que compõem o laço
social em questão. A diferença é produzida pelo real que ‘não cessa de não
se escrever’, fazendo hiato entre S1 e S2. Ou seja, mesmo alguém ocupando
o lugar de exceção ao conjunto, esse lugar é ocupado pontualmente, tem um
mandato e depois é substituído. Mesmo ocupando esse lugar diferenciado,
quem o ocupa está também submetido à lei da castração, como os demais.
O lugar diferenciado do ‘existe um’ é o lugar do pai simbólico, do pai morto.
Lacan refere que este é o lugar do Nome-do-Pai, o significante operador da
lei da castração que interdita o desejo do Outro materno, tornando possível
ao sujeito uma significação fálica, e do lado feminino acrescenta-se a possibi-
lidade lógica de um gozo Outro, especificamente feminino, além da castração.
O problema é que em função do desamparo, referido por Freud em
Totem e tabu, resta a esperança de que haja um todo poderoso que possa
proteger ou que se deva temer. A tendência que insiste é imaginária, isto é,
de afirmar ou ter a esperança de que quem ocupa o lugar do ‘existe Um’ não
esteja submetido à castração; de que ocupar esse lugar diferenciado, exercer
a função do significante mestre, é encarnar o lugar do amo, detentor do falo,
representante do pai tirano (ameaçador ou protetor) do mito da horda primi-
tiva. Assim, podemos entender a servidão voluntária – descrita por La Boétie
(1986) como um discurso já no século XVI – como a esperança neurótica de
que se alguém temê-lo e servi-lo bem, o ser poderoso estará velando por ele,
protegendo-o de todo mal.
Nesse sentido, no seminário da Angústia, Lacan ([1962-1963] 2005)
refere que a castração é mais facilmente suportada pelo sujeito em relação
a si mesmo que suportar a operação de castração na segunda volta do oito
interior, em que se defronta com a castração do Outro.
As instituições organizadas predominantemente na lógica do lado
feminino surgem com os ideais da modernidade, inaugurada pelos ideais da
Revolução Francesa de liberdade, igualdade, fraternidade, e com seu des-
dobramento com a invenção da democracia no Novo Mundo, promovendo a
horizontalidade nas organizações, a igualdade diante da lei e o individualismo.
17
Jaime Alberto Betts
Övkec"fq"fguglq."rqnîvkec"g"rukecpânkug"go"gzvgpuçq
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20
As fórmulas da sexuação...
REFERÊNCIAS
Recebido em 22/10/2012
Aceito em 30/11/2012
Revisado por Gláucia Escalier Braga
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 22-28, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
Q"EQNQPKCNKUOQ3
Hugo D. Ruda2
Tguwoq< O artigo propõe encarar o discurso desde a lógica que preside a posição
psicanalítica, a qual surge da escuta de um discurso em continuidade. Ao perder
suas teorizações semiotizantes, tal discurso pode abordar o sujeito em relação ao
coletivo, ali onde se implicam seu corpo, seu gozo e seu desejo, lugar constituinte
de sua experiência e de seu devir ético, poiético e político.
Rcncxtcu/ejcxg< colonialismo, posição do analista, discurso, política.
VJG"EQNQPKCNKUO
Cduvtcev< The paper proposes confront the speech from the logic of the psychoa-
nalytic position, which comes from in the listening to speech in continuity. By losing
their theorizing imbued with meanings, such discourse can approach the subject
in relation to the collective, precisely where your body, your enjoyment and your
desire are implicated, constituent place of your experience and your becoming
ethical, political and poietic.
Mg{yqtfu< colonialism, position of the analyst, discourse, political.
C omeço com uma citação tomada do livro La poesía como crítica del sentido,
de Henri Meschonnic (2007), para introduzir um escritor, linguista e tradutor
francês que subverteu a teoria positivista da tradução a partir de seu trabalho
com a Bíblia hebraica. Ao propor que não há nela nem prosa, nem poesia, mas
canto, rompe com a política do signo, destitui a métrica e promove o ritmo,
propondo-nos, assim, um modo de encarar o discurso que vai nos guiar em
nossa exposição.
O disparador a partir do qual decidi abordar o tema foi uma referência de
Lacan ([1970] 1997), da lição de 18 de fevereiro do seminário XVII O avesso
da psicanálise. Ali, conta que depois da guerra tomou em análise três médicos
oriundos de Togo (colônia francesa). Diz:
Lacan faz notar que é a ciência, a etnografia, que tomou o relevo das
recordações de infância, sendo ela a encarregada de realizar o ideal colonia-
lista, consistente neste caso não apenas, nem necessariamente, na ocupação
territorial, nem na apropriação do produto do trabalho do colonizado, mas em
conquistar a posição de transformar seu próprio ideal, o do colonizador, em
ideal de todos, deixando para aqueles que não participam dele a condição de
“selvagem”.
Vou tentar comentar esse parágrafo de Lacan e acrescentar alguns
exemplos, tanto de minha clínica como de acontecimentos conhecidos por
todos, partindo da premissa de que não há temas psicanalíticos, mas escuta
psicanalítica, o que implica que entre as condições de uma análise em inten-
são e a presença de um analista fora do dispositivo analítico existe, por meio
do seu ato, uma lógica que se especifica por eludir as condições binárias
próprias do algoritmo científico, com sua política do signo pela qual o conhe-
cimento se divide em unidades mínimas e opera por pares antitéticos. Sujeito-
objeto, indivíduo-sociedade, poesia-prosa, escrita-oralidade, racional-emotivo,
civilização-barbárie. Suas pequenas unidades: palavra, fonema, significante-
significado, semantema, mitema, etc.
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Hugo D. Ruda
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Hugo D. Ruda
quem não soubesse nada da dialética que o lança com essas vidas em um
movimento simbólico?” Sublinho “discórdia das linguagens”.
Parece que demos volta no sentido do título de nosso congresso. Esta-
mos interrogando as incidências do social, do político e do clínico no momento
do ato analítico. Assim mesmo, fomos levados a interrogar-nos mais uma vez
pelo saber do analista e por sua formação, o que, por sua vez, nos obriga a
perguntarmos por nosso trabalho de escola, por nosso trabalho institucional,
pelo que às vezes é um pouco vagamente chamado transferência de trabalho
e finalmente pela comunidade de experiência, que em outras oportunidades
gostamos de chamar, com Blanchot, “a comunidade dos que não têm comu-
nidade” (Blanchot, 1972).
Precisamente, é Maurice Blanchot quem nos propõe uma versão da
transferência que tem pelo menos a utilidade de não cair na oposição binária
indivíduo-sociedade. Diz: “A fala analítica se sustenta na possibilidade que a
palavra tem de viajar através dos corpos e dos tempos, capacidade de dissemi-
nação entre falantes, que Freud chamou transferência” (Blanchot, 1972, p.51).
Voltando a nossas escolas, nos perguntamos que lugar ocupa nelas a
obediência como fator de coesão institucional. Claro que tal obediência não
tem por que ser especialmente a uma pessoa, pode sê-lo, como vimos, aos
paradigmas de uma teoria que não é interrogada. Império do que Lacan cha-
ma, em L’Étourdit (1973), o thombreo (unindo teoria e homem), tributário do
para todos, precursor, como diz ali, da ideia de raça, cultor dos universais e
impossibilitador de qualquer singularidade que seja invenção.
Primo, ao descrever a tediosa e resignada obediência dos soldados do
lager, os chamou “o produto de uma escola”.
Pensamos a comunidade de experiência como um instrumento político
para buscar uma saída “à universalização do sujeito da ciência, do fenômeno
fundamental cuja erupção o campo de concentração pôs em evidência, quem
não vê no nazismo só o papel de um reativo precursor” (Lacan, 2003, p.22-23).
Já a partir do título, este congresso rompe com a divisão abstrata entre
o social e o político, interrogando a política dos analistas a respeito.
Isso impõe uma decisão. Ou a psicanálise tenta situar-se no acordo das
ciências com seu lado mais semiotizante, ou opta, como nos propõe Lacan em
L’Insu, por apostar em produzir um despertar ligado aos efeitos de verdade
que uma interpretação porta por ser poética, ou seja, por ser capaz de afetar
os corpos. Isso não significa atirar pela janela nenhum aspecto fundamental
da obra de nossos mestres, mas voltar a fazer, como Lacan fez seu jardim à
francesa, nosso próprio jardim para sustentar a vitalidade da psicanálise. E
isso será assim se nós, os analistas-analisantes, pudermos estar à altura das
encruzilhadas em que nossa época nos coloca.
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Hugo D. Ruda
REFERÊNCIAS
Recebido em 08/08/2012
Aceito em 10/10/2012
Revisado por Sandra Djambolakdjian Torossian
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 29-40, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS RUKECPıNKUG"KORNKECFC<"
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KORNKECVGF"RU[EJQCPCN[UKU<"
xkekuukvwfgu"qh"enkpkecn"rqnkvkecn"rtcevkegu
Cduvtcev< This paper presents the clinical-political psychoanalytical practice and
its clinical-theoretical epistemological field of articulation between psychoanalysis,
society and politics. This practice throws challenges and demands strategies in
two areas: of the individual and of the social practices. We also present the coor-
dinates of the clinic of the traumatic and its strategies and devices. The possible
direction of treatment, its ethics and politics are based on: restoring a minimum
field of significants referred to the field of the Other; articulating the private turned
to the singular, which promotes the articulation to the social bond; breaking with the
violent discourse that presents itself as symbolic and mark the supression of any
participation in this enjoyment.
Mg{yqtfu< practice of psychoanalysis, trauma, psychoanalysis, anxiety, grief.
1
Psicanalista; Professora dos programas de pós-graduação em Psicologia Social (PUC-SP) e
em Psicologia Clínica (IP-USP); Coordenadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade e Projeto
Migração e Cultura do IP-USP. E-mail: debieux@terra.com.br
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Miriam Debieux Rosa
C"enîpkec"fq"vtcwoâvkeq
Woc"fktgèçq"rquuîxgn"fg"vtcvcogpvq"gvkec"g"rqnîvkec
referidos ao campo do Outro, para que possam circular, o que permite ao sujeito
localizar-se e poder dar valor e sentido à sua experiência de dor, articulando
um apelo que o retire do silenciamento.
Ou seja, visa-se à transformação do trauma em experiência comparti-
lhada e na construção da posição de testemunha, transmissor da cultura. Além
disso, usamos as estratégias que levam em consideração as precondições
sociopolíticas e subjetivas necessárias para a elaboração do luto, para fazer
valer a dimensão do desejo, melhor defesa contra o gozo mortífero.
Os casos de Isac e Nahib (nomes fictícios de pessoas atendidas por
Christian Haritçalde, da equipe do projeto Migração e Cultura, da USP2) nos
introduz às nossas considerações. De volta ao lar, depois do trabalho, Isac
e o irmão, africanos do Congo, encontraram sua casa, com os pais e outros
irmãos, incendiada por rebeldes. Em pânico, os irmãos fogem, cada um em
uma direção, para garantir chances de sobrevivência para pelo menos um
deles. Isac pega um navio e vem para o Brasil, e aqui é abrigado na Casa do
Migrante. Tem insônia e crises de angústia com as imagens da casa incendiada.
Considera que seu maior sofrimento é não saber o destino ou paradeiro do
irmão e não ter como ou onde procurá-lo. Nahib quer morrer e tenta se matar.
Depois de assassinados seus pais, por questões políticas em Angola, foge
e, ao chegar ao Brasil, tem a notícia de que as duas irmãs que ficaram foram
também assassinadas.
Como abordar a questão da angústia e do luto, tanto considerando a
produção sociopolítica da angústia, como o impedimento político do processa-
mento subjetivo das situações traumáticas? Os sujeitos sob o efeito destrutivo
de situações traumáticas podem desarticular sua ficção fantasmática e perder
o laço identificatório dos semelhantes para com eles – estes tendem a recuar
diante do terror – com o que perdem a sua solidariedade e são lançados fora da
política. Tais condições promovem um sem lugar no discurso, impossibilitando
2
Trata-se de trabalho de extensão universitária desenvolvida no Instituto de Psicologia da Uni-
versidade de São Paulo e teve seu início em 2004, a partir do pós-doutorado “História, Clínica
e a Cultura em Psicanálise”, de Taeco Toma Carignato. Faz parte das atividades do Laboratório
Psicanálise e Sociedade do IP-USP e do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Curso de Pós-gra-
duação de Psicologia Social da PUC-SP. A Casa do Migrante visa acolher migrantes brasileiros
recém-chegados; imigrantes e refugiados, indivíduos envolvidos no drama mundial da mobilidade
humana, sem distinção de sexo, etnia, cor, credo, nacionalidade ou qualquer outra forma passível
de discriminação. Trata-se de um trabalho da Missão Escalabriniana junto aos migrantes. As inter-
venções são realizadas por estagiários e supervisionadas por psicanalistas e coordenadas por mim.
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Psicanálise implicada...
Fcu"ctvkocpjcu"fq"rqfgt"ä"cnkgpcèçq"guvtwvwtcn"cq"fkuewtuq"fq"Qwvtq
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Miriam Debieux Rosa
Fq"vtcwoc"ä"gzrgtkgpekc"eqorctvknjcfc
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Miriam Debieux Rosa
sobre Hamlet, oferece a base teórica para tratar da perda que, rejeitada no
simbólico, reaparece no real. Lacan destaca a dimensão ritual e coletiva como
precondição à elaboração individual do luto. Diz: “Os ritos são a intervenção
maciça de todo jogo simbólico – uma satisfação dada ao que se produz de
desordem em razão da insuficiência dos significantes para fazer face ao buraco
criado na existência” (Lacan, 2002, p.100).
Essa constatação pode ser traduzida em estratégia clínica: para tratar
o trauma provocado pela intervenção do Outro totalitário, que tenta apagar
todas as marcas da subjetividade, é necessária uma elaboração que finque
suas bases na reconstituição das leis que norteiam o funcionamento do campo
social. Essa é a razão pela qual sustentamos que o fenômeno social traumático
deve ser inscrito e elaborado no nível coletivo, sem desmerecer as respostas
singulares.
A prática clinicopolítica e a clínica do traumático lançam desafios e
exigem intervenções não convencionais. A publicização pode favorecer a
desidentificação do sujeito à vertente imaginária do acontecimento, travestida
de simbólica, para que prevaleça demarcar a dimensão histórica e cultural
dos fatos sociais e políticos. Nesse processo é fundamental a possibilidade
de oferecer um reencontro com o Outro receptivo à escuta, disponível para
oferecer um campo de saber capaz de desestabilizar e colocar entre aspas a
série de identificações que desqualificam e aprisionam o sujeito fora do campo
social. Nossa aposta está na recuperação da polissemia da palavra, para que
ela não seja apenas instrumento de gozo.
As estratégias de intervenção apresentadas neste artigo foram modos
de enlaçar uma palavra perdida, à deriva, - que na infância é confrontada à
angustia das origens e, na adolescência, com a possibilidade do encontro
com o sexual -, através da composição de uma trama ficcional que pudesse
os proteger da difícil presença do real. Desse ângulo, há situações em que o
espaço público, seja na rua ou nas instituições, é o lugar privilegiado de um
trabalho analítico onde se pode autenticar outra posição para o sujeito.
Fica evidente a articulação à ética da psicanálise. Com Zizek, considera-
mos que, “É preciso arriscar e decidir.... Não busque apoio em nenhuma forma
de Outro maiúsculo – mesmo que esse Outro maiúsculo seja totalmente vazio.
É preciso arriscar o ato sem garantias. Nesse sentido, o fundamento supremo
da ética é político” (Zizek, 2005, p.201). Nessa afirmação, o autor subverte a
relação que empalidece a política em face da ética ou que afirma a ética como
fundamento da política. Ele ainda diz que, em Lacan, a ética despolitizada é
uma traição ética, porque significa confiança em alguma imagem do grande
Outro. Mas o ato lacaniano é, precisamente, o ato em que se presume que
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38
Psicanálise implicada...
não existe grande Outro. É nessa dimensão que a escuta psicanalítica pode
contribuir para emergência de um sujeito que se separa dessa ordenação,
para comparecer como questionamento a essa ordem e se movimenta, criando
ações de transformação; nessa dimensão, é reconhecendo-se como falta-a-
ser que a alteridade, a diferença, não é significada como ameaça, mas como
encontro, com o qual se faz o novo.
REFERÊNCIAS
39
Miriam Debieux Rosa
ROSA, M.D. Uma escuta psicanalítica das vidas secas. Revista Textura, São Paulo,
ano 2, n. 2, p. 42-47, 2002.
_______. Migrantes, imigrantes e refugiados: a clínica do traumático. Revista Cultura
e Extensão, USP, 2012.
ROSA, Miriam Debieux; CARIGNATO, Taeco Toma; BERTA, Sandra Letícia. Metáforas
do deslocamento: Imigrantes, migrantes e refugiados e a condição errante do desejo. In:
COSTA, Ana; RINALDI, Doris (Orgs.) Escrita e psicanálise. Ed. Companhia de Freud.
Rio de Janeiro: Editora Companhia de Freud, 2006, p. 371-387
ROSA, M. Debieux, GAGLIATO, M. Psicanalistas, heróis e resistências. In: PERDOMO,
M. C.; CERRUTI, M. (Orgs.). Trauma, memória e transmissão: a incidência da política
na clínica psicanalítica. São Paulo: Primavera Editorial, 2011.
ROSA, M. Debieux; POLI, M. C. Experiência e linguagem: a psicanálise e as estraté-
gias de resistência. Psicologia e Sociedade, número especial Linguagem, experiência,
utopia, 2009.
VICENTIN, M.C.G.; GRAMKOW, G; ROSA, M. D. Patologização do jovem autor de ato
infracional e a emergência de “novos” manicômios. Revista Brasileira de Crescimento
e Desenvolvimento Humano (Impresso), v. 1, p. 1-10, 2010. Disponível em: http://www.
revistasusp.sibi.usp.br/pdf/rbcdh/v20n1/09.pdf. Acesso em: 10 mar. 2012.
ZIZEK, Slavoj.; DALY, Glyn. Arriscar o impossível: conversas com Zizek. São Paulo:
Martins Fontes, p.201, 2005.
Recebido em 09/11/2012
Aceito em 10/12/2012
Revisado por Gláucia Escalier Braga
40
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 41-53, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS UCDGT"G"VTCDCNJQ"PC"XKFC"
UGETGVC"FCU"RCNCXTCU
Admardo Bonifácio Gomes Júnior1
Daisy Moreira Cunha2
Yves Schwartz3
Tguwoq< Este artigo busca pensar a relação entre trabalho e saber a partir do filme
A vida secreta das palavras, de Isabel Coixet, 2005. O conceito ergológico de uso
de si e a noção psicanalítica de saber fazer com o sintoma são aqui articulados
como forma de pensarmos as possibilidades de um ganho de saber com o trabalho
na vida secreta das palavras.
Rcncxtcu/ejcxg< trabalho, saber, uso de si, sintoma.
MPQYNGFIG"CPF"YQTM"KP"VJG"UGETGV"NKHG"QH"YQTFU
Cduvtcev<"This paper seeks to reflect on the relationship between work and kno-
wledge from the film The Secret Life of Words, Isabel Coixet, 2005. The ergologic
concept of the use of onself and the psychoanalytic notion of know-how to deal
with the symptom are articulated in this study as a way of thinking about the pos-
sibilities of some knowledge gain with the work in the secret life of words.
Mg{yqtfu< work, knowledge, use of onself, symptom.
1
Professor da Faculdade de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Minas Gerais; Dou-
torando em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Ergologia pelo Instituto
de Ergologia da Universidade Aix-Marseille. E-mail: admardo.junior@uol.com.br
2
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais; Doutora em Filosofia pela Universidade Aix-Marseille. E-mail. daisy-
cunha@uol.com.br
3
Professor emérito de Filosofia do Instituto de Ergologia da Universidade Aix-Marseille; Presidente
da Sociedade Internacional de Ergologia. E-mail: yves.schwartz@univ-amu.fr
41
Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz
O que é o trabalho? Até que ponto a concepção que temos dele não porta,
ela mesma, poderosos preconceitos que operam profundos processos
de exclusão? Não seria a separação da dimensão do trabalho stricto sensu
daquela do ato mesmo de viver, do trabalho da vida, uma potente forma de
exclusão? O que a não separação entre trabalho e vida pode operar como
ganho de saber?
As experiências do lar, da escola e do trabalho fazem circular valores,
nesses campos, que os tornam inseparáveis. Dos primeiros aprendizados no
lar, do tempo de escola àquele do trabalho, os traços, as linhas, as marcas de
nossas vivências, com maior ou menor violência, vão compondo a experiência
de vida de cada um de nós. As palavras aí, como a psicanálise nos ensina,
criam sua vida secreta. Nossos sintomas não prescindem do que fazemos
com as palavras, que dão vida a nossas vivências e experiências. São elas
que lhes dão a estrutura. A saída aí, sempre singular, parece incluir um sa-
voir y faire com o sintoma, que guarda suas relações com savoir-faire que o
trabalho comporta, um saber fazer aí com nosso modo sintomático de viver.
Nossa atividade na vida que chamamos “trabalho” é sempre investida nesse
saber fazer aí com isso.
Fq"hknog."cniq"uqdtg"q"vtcdcnjq"g"c"xkfc
O filme segue. Haveria muito mais para contar... mas ficaremos por aqui.
Vtcdcnjq"g"wuq"fg"uk
4
Démarche de análise da atividade de trabalho desenvolvida pelo Departamento de Ergologia
da Universidade de Provence (www.ergologie.com). Seguindo a tradição de George Canguilhem
na epistemologia francesa, o ergológico é apreendido em relação ao epistêmico. Se o esforço
epistêmico corresponde à exigência de trabalho de construir, precisar e complexificar os conceitos,
libertando-os de sua aderência local às normas e valores da dimensão histórica dos fenômenos,
da vida em geral, o esforço ergológico num movimento inverso, busca aproximar os conceitos
de suas aderências locais e sempre singulares para fazê-los avançar assim como desenvolver a
atividade em questão. Na ergologia, o trabalho é analisado como atividade humana implicando
sempre um “uso de si”, por si e pelo outro, noção esta que busca operar com o mais singular das
atividades humanas.
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Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz
Q"vtcdcnjq"g"q"ucxqkt"{"hcktg"fc"xkfc"eqvkfkcpc
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Optamos aqui pela expressão, traduzida do texto em francês, motions pulsionnelles que denota
melhor o que está em jogo, que a expressão em português “impulsos instintivos”.
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Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz
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Com o conceito de sinthoma, Lacan faz trabalhar no seminário O sinthoma ao mesmo tempo
a grafia antiga no francês da palavra sintoma, sua homofonia em francês saint homme (santo
homem), assim como o sin, que em inglês significa pecado, para pensar a função do sintoma na
estrutura que enlaça os registros do real, simbólico e imaginário. Como nos afirma Miller (2011,
p. 82), Lacan inventa esse conceito para pensar o caso de James Joyce, assim como Freud, no
caso Schreber, um caso sem análise, sem decifração do inconsciente, sem a prática da associação
livre. Lacan afirma que Joyce era desabonado do inconsciente.
7
“O ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito ao outro pelas vias de uma trans-
ferência de trabalho”. Lacan, J. Ato de fundação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 242.
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Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz
Ucdgt"g"vtcdcnjq"pc"xkfc"ugetgvc"fcu"rcncxtcu
É A vida secreta das palavras um filme que nos permite refletir sobre o
saber na relação homem-trabalho? Parece-nos que se pensarmos o trabalho
como “uso de si”, ele é inteiramente uma reflexão sobre muita coisa do que se
passa nessa relação. É um filme no qual fica claro que as escolhas que cada
pessoa faz ali, no campo do trabalho, diz muito sobre a dimensão “subjetiva”
de cada uma delas. A diretora Isabel Coixet soube trazer para a história toda a
dramática do uso que cada personagem faz ali, de si, na relação com o trabalho.
No filme, trabalho e vida não se separam, eles estão na mesma plataforma.
Depois que descobrimos alguns dos segredos das palavras que contam
a história de Hanna, entendemos melhor o uso que a personagem parece fazer
de si na fábrica têxtil. O trabalho ali é o da contenção, na repetição de uma
rotina sem muita invenção. A mesma comida todos os dias, o mesmo trabalho
repetitivo, quatro anos sem aparente interrupção. Tudo isso indica cumprir uma
função. Seu modo sintomático de viver busca amarrar registros por demais
disjuntos pelos traumas vividos.
A vida secreta das palavras de Hanna, na fábrica, segue seu rumo,
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Saber e trabalho na vida secreta das palavras
organizado de forma a “conter”. Manter dentro de si. Sob certo uso. Sem risco
de transbordar e inundar a vida de lágrimas. Mas eis que algo interrompe sua
surdez, também controlada. O eventual, a contingência, o inesperado, o aci-
dental: as férias forçadas que a conduzem ao litoral. No ônibus, a caminho das
férias, podemos ver Hanna bordando um pedaço de pano. Nesse novo lugar,
o trabalho de bordado é dispensado numa lixeira. Prenúncio de um novo uso
de si? Do uso de “conter” para o uso de “contar” a vida secreta das palavras?
Sou enfermeira, diz Hanna, ao seu vizinho de mesa de quem ela escutava a
conversa. É surpreendente a forma decidida com que Hanna se apresenta.
Naquele momento as palavras servem para “contar” algo de muito importante
da sua história. Sou enfermeira. Um significante que a nomeia. Uma palavra que
a identifica, e cujo emprego acaba por expô-la ao trabalho de contar sua vida.
O trabalho de enfermeira reenvia Hanna à sua vida no ponto em que
ela foi paralisada. Quando ela brutalmente foi obrigada a se conter. Uma for-
mação interrompida pela guerra. Uma escolha impedida. Um projeto de uso
de si violentamente abortado. Retomar essa atividade, esse uso de seu corpo
na função de cuidar do outro, parece ir aos poucos permitindo fazer conviver
experiências incomunicáveis: o antes e o depois das atrocidades vividas. Nesse
trabalho, um novo uso do corpo que lhe exige reordenar as palavras às novas
experiências do encontro com alguém que lhe demanda cuidado e afeto. Um
encontro no qual o amor e a confiança permitem que ela possa dizer afinal algo
de seu trabalho e de si. Uma manhã, Hanna ao limpar o corpo de Josef relata:
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Admardo Bonifácio Gomes Júnior, Daisy Moreira Cunha e Yves Schwartz
REFERÊNCIAS
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Recebido em 11/03/2013
Aceito em 17/03/2013
Revisado por: Otávio Augusto Winck Nunes
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 54-70, jul. 2011/jun. 2012
GPVTG"EQPXGTUCU"G"
TEXTOS
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kpvgtxgpèçq"fkcpvg"fcu"wtigpekcu"
fg"woc"gueqnc"fg"Uçq"Rcwnq
Ana Paula Musatti Braga1, Viviani S. C.
Catroli2 e Miriam Debieux Rosa3
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kpvgtxgpvkqp"uvtcvgikgu"xku/ä/xku"vjg"wtigpekgu"qh"c"uejqqn"kp"Uçq"Rcwnq"
Cduvtcev<"This paper intends to report two intervention devices: the Workshop of Findings
and the Chat Group, performed in a public secondary school in the city of Sao Paulo.
Both devices belong in the field of clinical practices that we opted to call clinical-political,
in that they constitute group intervention strategies guided by the psychoanalytic the-
ory implicated in the social context where they operate. For purposes of this article,
we describe, based on a few fragments of a case, both devices and the methodology
framework adopted.
Mg{yqtfu< psychoanalisis and education, psychoanalysis-institutions, childhood,
adolescence.
1
Doutoranda em Psicologia Clínica pela USP; Membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade
da USP. E-mail: ana.musattibraga@ajato.com.br
2
Doutora em Psicologia Social, PUC-SP; Doutora em Sciences de l’Education, Paris VIII; Pes-
quisadora “Sujeitos, Sociedade e Política em Psicanálise”. USP-São Paulo. Chargée d’études
à l’INED, França. Endereço residencial: 32, Rue Sainte Marthe – 75010, Paris-França. E-mail:
vivianisc@gmail.com
3
Professora do Programa de Psicologia Clínica da USP; Coordenadora do Laboratório Psicanálise
e Sociedade e do Projeto Migração e Cultura; Profª. Titular do Programa de Pós-Graduação da
Psicologia Social da PUC-SP; Coordenadora do Núcleo Psicanálise e Política. E-mail: debieux@
terra.com.br
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Entre conversas e descobertas...
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O Grupo de Estratégias constituiu-se inicialmente com Ana Paula Musatti Braga, Simone Camargo
Silva, Larissa Patti Gomes e Evelyn Madeira. Posteriormente, integraram-se também a esse grupo
Raquel Foresti, Viviani S.C. Catroli e Helena CantoGusso.
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Ana Paula Musatti Braga, Viviani S. C. Catroli e Miriam Debieux Rosa
Q"vtcdcnjq"eqo"qu"itwrqu."uwcu"rquukdknkfcfgu"g"korcuugu
Ora, o que Bion percebe é o mesmo que Freud em Psicologia dos grupos e
análise do ego ([1921]1996), ou seja, que o grupo se mantém organizado em
torno da figura do líder e que, quando essa função do líder é equivocada, as
massas se dispersam, a civilização entra em pane.
Mas haveria uma forma de enlaçar quando o Outro não assegura e esta-
belece o sentido? É assim que Lacan ([1947] 2003), em seu texto A psiquiatria
inglesa e a guerra, de 1947, irá descobrir nos pequenos grupos criados por
Bion, na Inglaterra do após Segunda Guerra, a saída para o problema dos
grupos artificiais de Freud e o perigo do coletivo fundado na função do Um.
Essa discussão nos é cara por dois aspectos. Primeiramente, para pensar a
possibilidade de uma clínica dos grupos pautada na desidentificação ao Um,
que seria ultrapassar o laço empreendido pelo discurso do Mestre, em direção
ao laço proposto pelo discurso do Analista. Isso daria ao sujeito a possibili-
dade de se descolar dos significantes-mestres que o marcaram em sua his-
tória, possibilitando seu movimento desejante num espaço de intervalo entre
sentidos. Em segundo lugar, se concordamos que vivemos numa sociedade
caracterizada pela saída de cena progressiva do Outro da posição de mestre,
urge pensarmos numa alternativa coletiva que não seja o pânico das massas
ao perceberem que o piloto sumiu!
O que há de tão inovador nos grupos terapêuticos de Bion (1965)? A
inclusão de um princípio capaz de diferenciar a massa do grupo. Bion decide
criar três tipos de atividades terapêuticas que eram o reflexo da sociedade,
nessa época de pós-guerra, dividida entre militares e civis. Ele irá incluir, além
dessas duas categorias de atividades, civis e militares, uma a mais, que daria
conta da expressão da impotência neurótica dos doentes (Bion, 1965, p.6).
Ele aponta um elemento terceiro que poderia, ao invés de algo da segregação,
descompletar um todo, ser seu ponto de exterioridade, impedindo assim que
a função identitária imprimisse seu modo de laço segregatório. Esse ponto
de exterioridade é o que permitirá o avanço do tratamento em grupo. Nas
palavras de Barros (2008),
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Sobre a Oficina de Descobertas, ver também artigo “Quem pergunta quer saber: oficina de
descobertas numa escola pública de São Paulo” de autoria de BRAGA, Ana Paula M. O infantil.
Correio APPOA, Porto Alegre, maio 2011.
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Ana Paula Musatti Braga, Viviani S. C. Catroli e Miriam Debieux Rosa
o sentido ou, mais exatamente, por decantar ao ser excluído dele” (Lacan,
[1975] 2007, p.63).
Ao tratar a sexualidade pela via da necessidade, do orgânico e do bioló-
gico, os educadores buscam se proteger do que é imprevisível, imponderável,
inominável e que só se pode tocar pelas bordas. Pensamos que tratar o sexual
pela via do biológico escamoteia o que parece insuportável de ser enunciado,
a saber, que em relação ao sexual há muitas informações, mas não há um
saber; a sexualidade escapa à norma e a uma referência a priori, apontando
sempre para o inominável, da mesma forma que a morte.
Falar, desenhar e conversar sobre o corpo das mulheres, dos homens,
papais e mamães, meninos e meninas foi algo que permeou muitos encontros
dessa Oficina. Tal estratégia visava operar uma passagem do plano imaginário
ao simbólico, deslocando as inadequações e respostas morais para o desejo
de saber. Com isso, as encenações sexuais rapidamente cederam lugar a
indagações como:
“Dizem que sou igual ao meu avô que eu nem conheci. Como isso
acontece?” (aluno de sete anos).
“Por que nasce parecido com o pai ou com a mãe? Eu sou parecido
com meu pai e meu irmão com minha mãe!” (aluno de sete anos).
“Por que às vezes nasce menino e às vezes nasce menina? E gê-
meos?” (aluna de sete anos).
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gpvtg"c"gueqnc."c"fgocpfc"g"qu"uwlgkvqu"cfqnguegpvgu
6
Do original consultado: L’espoir – de la conversation – réside toujours dans l’élément de nouve-
auté que chaque enfant apporte avec lui. Part d’espoir et d’illusion qu’il lui faut faire partager en
sachant accueillir et lui donner sa place. Savoir l’accueillir, c’est lui donner une place d’où il aura
la possibilité d’entrer dans une discours, dans une prise d’énonciation. C’est lui donner la parole
à partir de ce qu’il est, à partir de sa singularité, et de la part de nouveauté qu’il porte en lui. La
practique de la conversation donne chance de discours à chacun.” LACADÉE, P. (2008) De la
norme de la conservation au détail de la conversation. In: Comment se faire entendre à l´école?.
CRDP, Aquitaine. p.20.
7
O CIEN foi criado na França, em 1996, por Jacques-Alain Miller, com a proposta de abordar de
forma interdisciplinar as dificuldades encontradas pelas crianças e pelos adolescentes no laço
social, utilizando de forma privilegiada a prática da conversação. Desde a década de noventa
existem experiências em inúmeros países sob a forma de “laboratórios de investigação”, com
estilos bastante diversos. No Brasil, existem laboratórios no Rio de Janeiro e Belo Horizonte há
alguns anos e, mais recentemente, no Maranhão e em Recife.
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8
Este caso clínico foi anteriormente trabalhado no artigo “O laço social na adolescência: a violência
como ficção de uma vida desqualificada”, de autoria de Catroli, Viviani S.C. e Rosa, Miriam D.,
enviado à revista Estilos da Clínica. No entanto, neste artigo, as análises feitas sobre o material
clínico em questão eram utilizadas para divulgar as teses defendidas no doutorado de Catroli,
Viviani, S.C. (2011), a saber, que quando os sujeitos adolescentes se encontram diante da violenta
desqualificação de suas vidas e da falta de perspectivas de inscrição em um laço indicador de
participação fálica no social, podem fazer da violência sua própria forma de ficção de si.
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que se havia instituído para eles, de resto-mudo; mas, ao tentarem sair dessa
posição, foram alvo de mais hostilidade.
Observa-se a reprodução da invasão do espaço do outro – do furto que
gerou a demanda da escola – que é encenada às avessas, na escola. Cria-se
um espaço para a palavra, mas o lugar de dejeto é afirmado e, literalmente,
vai atrás desses adolescentes. Mas com uma diferença, pois dessa vez os
psicanalistas estão presentes e são convidados a testemunhar. No último
encontro do semestre com esse grupo, todos os meninos mais novos, que
desestabilizavam a fala dos mais velhos, vão embora. Apenas depois que to-
dos partiram é que foi possível para esses três meninos sustentarem sua fala.
Eles dizem, “ainda temos 5 minutos, o que vamos fazer?”. A sugestão é: “nós
vamos limpar a oca e catar essas pedras”. Limpamos o espaço, conversamos,
e a porta da oca é esquecida aberta. Um dos meninos, que a cada encontro
insistia em tentar esconder o cadeado da porta, avisa-nos desse esquecimento
e fecha a oca, dizendo: “é uma pena que essa porta não fique sempre aberta”.
Nessa fala, um voto, um desejo é pronunciado. O caminho da palavra se abriu
apenas quando tudo o que excedia e que levava a uma experiência de puro
gozo pôde abandonar o grupo.
Nosso objetivo, nesses Grupos de Conversa, foi oferecer aos adoles-
centes a possibilidade de um reencontro com um Outro receptivo à escuta,
disponível para lhes oferecer um campo de saber capaz de desestabilizar, e
de colocar entre aspas, a série de identificações que os desqualificam e os
aprisionam fora do campo social. Nossa aposta foi a de criar garantias para o
sentido da palavra adolescente, para que ela não seja apenas instrumento de
gozo, e garantias de uma existência enquanto pertencimento não-desqualifi-
cado no campo social, como forma de evitar seja a passagem ao ato, sejam
os actingouts, graças a uma aposta na palavra.
As estratégias de intervenção apresentadas neste artigo foram modos
de enlaçar uma palavra perdida, à deriva – que na infância é confrontada com
a angústia das origens, e na adolescência com a possibilidade do encontro
com o sexual – através da composição de uma trama ficcional que pudesse
protegê-los da difícil presença do real.
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canálise na favela – Projeto Digaí-Maré: a clínica dos grupos. Rio de Janeiro: Assoc.
Digaí-Maré, 2008.
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taires de France, 1965.
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Recebido em 21/09/2012
Aceito em 19/10/2012
Revisado por Renata Almeida
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 71-85, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS RUKECPıNKUG"G"Q"UWU<"
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ucûfg"rûdnkec3
RU[EJQCPCN[UKU"CPF"UWU<"CP"GZRGTKGPEG"KP"RWDNKE"JGCNVJ
Cduvtcev< From an experience developed during two years (2003-2004) in a region
on the outskirts of São Paulo, we objectify to describe aspects of that experience
and, simultaneously, to problematize the practices of the psychoanalyst in public
health, in a mental health service. It is also our objective to problematize what
constitutes an intervention guided by notions of public health and coletive health
in this field of knowledge, actions and practices.
Mg{yqtmu<"psychoanalysis, public health, violence.
1
Este texto tem como referência a pesquisa desenvolvida pela autora, em nível de doutorado, cuja
tese foi intitulada A experiência do luto em situação de violência: entre duas mortes. Programa
de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2011.
2
Mestre e doutora em Psicologia Social pela PUC–SP; Membro do Núcleo de Pesquisa em
Psicanálise e Política da PUC – SP; Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.
E-mail: sandra.lsalencar@gmail.com
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Sandra Luiza de Souza Alencar
Kpvtqfwèçq
Htciogpvq"Enîpkeq
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Sandra Luiza de Souza Alencar
brasileiro –, tem negado esse direito. Na delegacia, o que Flor escuta é que
ela não deve querer saber, não deve buscar informação; essas são as pala-
vras que recebe da autoridade policial: “Nestes casos é melhor não mexer, é
melhor deixar isso para lá.” Quais casos, porém, são esses a que se refere o
policial? O que ele sabia sobre o filho dessa mulher?
O que escutamos é que as palavras proferidas pela autoridade da
instituição pública se constituíram em ordenamento: Flor devia silenciar. Com
essas palavras e de “onde” elas são proferidas constituem-se os sintomas de
Flor; os sintomas mostram sua articulação com o campo social, referido, por
sua vez, ao campo do Outro. Flor está proibida de chorar a morte de seu filho
e seu luto se torna impedido.
Uma morte que não pode ser chorada nos fez associar o caso de Flor
com Antígona, tragédia de Sófocles ([441 a.C.] 2003). Tal como Antígona, Flor
também recebeu uma proibição proferida pela autoridade legal. Antígona foi
proibida, por um decreto real, de realizar o luto pela morte do irmão, pois ele
foi considerado inimigo da cidade de Tebas:
Q"ogvqfq"rukecpcnîvkeq"enkpkeqrqnîvkeq"g"uwc"ctvkewncèçq"eqo"q"UWU
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Sandra Luiza de Souza Alencar
3
Segundo dados do relatório do Programa de Aperfeiçoamento de Informações de Mortalidade
(PRO AIM), de 1996 a 2005, a região de São Mateus registrou 2.233 óbitos em decorrência de
homicídios. Destes, 1.709 foram de pessoas na faixa etária entre 15 e 34 anos.
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Psicanálise e o SUS...
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A tese que constitui base para as questões abordadas neste artigo, já anteriormente referida, foi
orientada pela Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa, coordenadora desses dois espaços de pesquisa,
estudo e extensão.
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Sandra Luiza de Souza Alencar
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5
A mesa foi composta por dois psicanalistas, Emilia Estivalet Bróide e Jorge Bróide; pelo coor-
denador do Conselho de Segurança da região; pelo subprefeito de São Mateus Franco Torresi; e
por dois representantes do Fórum, Jefferson Ramos da Silva (professor de uma escola estadual)
e Wilma Lopes (da coordenadoria de saúde de São Mateus).
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Sandra Luiza de Souza Alencar
três pontos correspondiam aos três distritos que compõem a região. O ponto
de encontro foi uma praça localizada na avenida central da região, Mateo Bei.
Nesse ponto realizamos um ato público seguido de um ato ecumênico.
Uma professora que promovera um concurso de redação organizou um
painel com os textos produzidos pelos alunos.
No final do ato ecumênico, flores que haviam sido trazidas foram “plan-
tadas” na praça.
Formação dos membros Fórum: Em 2004, as atividades do Fórum inclu-
íram leituras de textos, projeção de documentários tendo como tema central a
violência nas escolas e sua articulação com a região e a sociedade em geral;
Descentralização: passamos a realizar reuniões em serviços que
solicitavam algum apoio para organizar e encaminhar situações críticas em
consequência de violências.
Rede de proteção: a partir das reuniões do Fórum foram se constituindo
alguns grupos de trabalho que se juntavam em torno de um problema concre-
to de uma escola ou que estava sendo enfrentado pelo conselho tutelar, por
exemplo. Tomávamos o problema concreto e reuníamos todos os envolvidos:
escolas, serviço social e de psicologia da Vara da Infância de cobertura da
região. Ou diretora de uma escola, conselho tutelar, psicóloga da Unidade
Básica de Saúde.
Esses espaços articulavam os setores e suas ações para avançar e
amadurecer as experiências intersetoriais.
Grupo de educadores na Unidade Básica de Saúde: a partir das deman-
das de atendimento que chegavam das escolas, convidamos representantes
dessas escolas para uma reunião. Compareceram vários educadores que
portavam a expectativa de conseguirem atendimento para as crianças, visto
que era uma queixa da região a carência de profissionais de saúde mental.
Dada a expectativa dos educadores, a primeira reunião iniciou em um
contexto de impasse. Mas, a partir da fala de um educador, coordenador pe-
dagógico da escola, em que relata a morte de um ex-aluno da escola, assassi-
nado com 14 anos, produz-se um corte na sequência de falas, e a negativa de
atendimento foi sobreposta pela proposta de continuidade daquele encontro.
Os encontros com os educadores se seguiram em 2003 e 2004. Esse
trabalho teve desdobramentos, tais como um espaço de vídeo na unidade de
saúde, onde se reuniam estudantes, pais, educadores e os trabalhadores da
equipe de saúde mental.
Alguns educadores também estavam na fundação e constituição do
Fórum, visto que as atividades também se davam paralelamente.
Também, como desdobramento dos encontros mensais com educado-
82
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Psicanálise e o SUS...
res, a partir da demanda dos pais e deles (educadores) pelo atendimento das
crianças, constituímos grupos que tiveram como coordenadores as psicólogas
do serviço de saúde e os educadores. O objetivo desses grupos, para os quais
predeterminamos oito encontros, era o de conhecer e dialogar com as queixas
e demandas dos pais e educadores. Inferimos que a experiência teve efeitos
de deslocamentos no posicionamento subjetivo na relação entre educadores
e familiares dos alunos. Como elemento que concorria para produzir deslo-
camento, apontamos o espaço do encontro, uma Unidade Básica de Saúde.
Nesse espaço, a palavra e a escuta estavam mediadas por outras referências
que as cristalizadas relações de hierarquia e culpabilizações por fracassos
escolares das crianças e adolescentes. Essa última questão extrapola nossa
condição de abordagem no espaço de trabalho deste texto.
II Seminário Costurando a Rede: realizado no dia 29 de junho de 2004,
na subprefeitura de São Mateus, no qual foi deliberada a realização da Segunda
Caminhada pela Vida em São Mateus.
Finalização das atividades: o segundo semestre daquele ano foi marcado
por várias questões de dimensões mais amplas. Uma delas foram as eleições
para a prefeitura da cidade de São Paulo, um processo cujas proporções
também envolve o funcionamento das instituições. Esse aspecto se destaca
entre os elementos que inviabilizaram a realização da Segunda Caminhada
pela Vida e levaram ao encerramento das atividades tal como vinham sendo
desenvolvidas.
O governo do Partido dos Trabalhadores, representado por Marta Su-
plicy, perdeu as eleições, e o prefeito que assumiu, José Serra, do PSDB, em
cinco meses de governo, apresentou um projeto de privatização das unidades
públicas de saúde, que passaram a ser gerenciadas por entidades terceirizadas,
com autonomia de gestão. Isso levou ao aprofundamento da fragmentação
das ações de saúde.
Resistências políticas e subversão dos sujeitos: A região na qual foram
desenvolvidas as atividades aqui descritas é uma região com larga história
de luta e participação de seus moradores em ações que concorreram para a
construção e criação de melhores condições de vida no bairro.
As práticas e ações desenvolvidas, conforme relatadas neste espaço
do texto, relacionam-se com a história da região.
Eqpenwuçq
83
Sandra Luiza de Souza Alencar
REFERÊNCIAS
Recebido em 04/10/2012
Aceito em 08/11/2012
Revisado por Rosana de Souza Coelho
85
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 86-100, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS QHKEKPCU"GO"UCðFG"OGPVCN<"
equvwtcu"gpvtg"q"tgcn."
ukodônkeq"g"kocikpâtkq3
Andréa M. C. Guerra2
YQTMUJQRU"KP"OGPVCN"JGCNVJ<"
ugcou"dgvyggp"tgcn."u{odqnke"cpf"kocikpct{
Cduvtcev< This paper discusses the workshops in mental health from three con-
tributions: the idea of profanation, of interdisciplinarity in act and of detachment.
Discusses the workshops and their potential of subjective, political and social
mobilization, as a tool for clinical intervention. Concludes with a minimal point: the
pact around a policy of bodies, objects and words, guided by an ethic that supports
the malaise of all, the detachment of each one and, above all, the central lack in
the structure of knowledge that this ethics policy engenders.
Mg{yqtfu< psychosis, workshops, Brazilian psychiatric reform.
1
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais, em
Porto Alegre, setembro de 2011.
2
Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
e Rennes II-França; Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal
de Minas Gerais – UFMG (Belo Horizonte). E-mail: aguerra@uai.com.br
86
86
Oficinas em saúde mental...
1.
Parto, portanto, de um pressuposto: o de que temos a liberdade de
conferir novos usos aos objetos, profaná-los ou desativar os dispositivos de
poder que os indisponibilizaram, devolvendo ao uso comum os espaços con-
fiscados (Agamben, 2007). Profanar é restituir à propriedade e ao uso comum
dos homens os objetos sacralizados. E a clínica com as psicoses nos ensina
que os objetos se dispõem aos homens para seu uso, e não o contrário. As-
sim, um carrinho de compras transforma-se em uma parede, numa moradia
de rua improvisada por um psicótico, por exemplo, ou em um apoio para a
bicicleta sem rodas em outra situação. Um carrinho de compras pode servir
a diferentes finalidades, assim como uma palavra. As palavras e as coisas
podem ser refuncionalizadas.
A atitude profanadora na psicose nos ensina que os objetos materiais
estão referidos a outra lógica no mundo. Eles não se inscrevem apenas numa
série produtiva e repetitiva que os agrega segundo a dinâmica do sistema
capitalista. Os valores atribuídos aos objetos, inclusive, modificam-se, se eles
alteram sua inscrição no circuito do consumo. Uma cadeira desenhada por
famoso designer, que perde sua trança de assento, torna-se mais útil como
varal de roupas. O ato criador (científico e/ou social) está ligado à realização
87
Andréia M. C. Guerra
2.
Avanço com a proposta de uma interdisciplinaridade em ato na prática
feita por vários, ou seja, que se realiza nas decisões e intervenções cotidianas,
suportando o peso da experiência de limite de cada saber, no arranjo que torna
possível o desejo nas mais diferentes invenções subjetivas. Ela se realiza em
ato, portanto, pois presentifica em cada espaço institucional a impossibilidade
de qualquer saber apreender a realidade toda da experiência. Nesse sentido,
abrimo-nos ao encontro com o imponderável e recolhemos, efeito desse en-
contro, o sujeito que se busca ali produzir, ou seja, a maneira como a causa
do desejo toma forma para cada um. Entendamos melhor a proposta.
A interdisciplinaridade, historicamente, está associada à complexidade
do fenômeno humano e ao desejo de absorvê-lo todo, sabê-lo todo. Quando
a psicanálise se faz parceira de outros saberes, ela parte da certeza dessa
impossível apreensão toda. Lacan, na década de 50, pensa a estrutura da
linguagem, ou o inconsciente estruturado como linguagem, lidando exata-
mente com a permutação dos elementos na estrutura a partir de uma falta
central, que permite o acionamento da língua. O Nome-do-Pai é o responsável
pela inscrição desse ponto zero de significação, espaço vazio que permite à
linguagem e à cultura se ordenarem (Lacan, [1957] 1998). Como no jogo do
Resta Um, é necessário retirar uma peça para que o jogo possa funcionar
em suas jogadas possíveis, que, pouco a pouco, vão tornando outros lances
impossíveis de serem realizados, firmando assim um campo de possibilidades
e outro de impossibilidades.
Na medida em que avança em seu ensino, Lacan – assim como acon-
teceu com Freud – vai destacando esse campo de impossibilidade, não como
elemento que faz parar, mas antes como elemento que agencia novos cami-
nhos. Ele chama essa dimensão da realidade de real, dimensão que comporta,
de certa maneira, o dado bruto (Miller, 2002). Apercebe-se, então, de que
todo o aparato de saber que construímos busca dar conta dessa verdade real
de nosso ser, que é, por estrutura, inapreensível (Lacan, [1971-1972] 2011).
Assim, aproximarmo-nos da estrutura da verdade exige, sempre, um quantum
de ficção 666a ficção que inventamos como tela para ler o mundo.
O saber das disciplinas, ditas científicas, não foge a essa lógica. Os
conceitos, tanto quanto as palavras, são aparatos que criamos e com os quais
pactuamos, utilizamo-los para ler a realidade factual e domesticar a comichão
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Oficinas em saúde mental...
(pulsão) que anima cada um, tornando a convivência entre os homens possí-
vel. É porque há um ponto que não apreendemos que produzimos um saber
sempre parcial sobre ele. Nesse ponto de seu ensino, Lacan começa a pensar
em furos, ali onde pensava em falta. Quando se fala de falta, há a referência
a lugares. A falta implica uma ausência que se inscreve num lugar. Pode-se
faltar, mas há sempre termos que venham ali se substituir. Daí a falta ser coe-
rente com a ideia de combinatória e de permutação, de linearidade, de cadeia
de significantes, de metáfora. Passando para essa outra topologia, a do furo,
verificamos que, ao contrário, ela comporta o desaparecimento da ordem dos
lugares, da ordem da combinatória, evidencia o suplemento inventado pelo
sujeito para compor a realidade, sempre psíquica.
Lacan concebia a realidade como o resultado da amarração entre três
registros: o real, ou aquilo que é da ordem do dado, que tem um certo valor
bruto; o imaginário, ou aquilo que é representado enquanto imagem; e o sim-
bólico, ou o que é estruturado e articulado como linguagem (Miller, 2002). O
furo seria o efeito da ação de um registro sobre o outro. Como não funcionam
dentro da mesma lógica, ao atravessarem um sobre o outro, o efeito seria um
furo central em cada um dos registros.
89
Andréia M. C. Guerra
3
Centro de Atenção Psico-social.
90
90
Oficinas em saúde mental...
3.
Retomo, como terceiro aspecto, a desinserção. O que chamamos de
desinserção não equivale à exclusão (social), nem à desadaptação (moral).
Há, no nascimento do sujeito enquanto ser de linguagem, uma desinserção
originária, estrutural. Primeiro, temos corpo e nome disjuntos; depois, dupla
perda, do ser e do sentido, como condição para nomeação e assunção do
sujeito ao campo do Outro ou da linguagem. Essa primeira identificação, que
comporta a inscrição do significante no sujeito, é o que há de mais apagado
do primeiro encontro com o objeto. Ela denuncia uma perda originária, ponto a
partir do qual inconsciente e desejo se estruturam. É sobre o apagamento desse
traço que, por sua vez, o sujeito poderá falar de si. “O sujeito está, se permitem
dizê-lo, em uma exclusão interna a seu objeto” (Lacan, [1965] 1998, p. 825).
A “exclusão” ou desinserção, assim, em psicanálise, é lógica e necessá-
ria para que, do vazio que dela se instala, o sintoma possa advir como amar-
ração possível do sujeito ao campo do Outro. O sintoma, nessa perspectiva,
é menos a proliferação do mal-estar que seu tratamento possível no laço
civilizatório. Ele é a consequência lógica e estrutural da constituição do sujeito,
e não um mal a ser extirpado. Se o sujeito “encontra sua morada num ponto
situado no Outro” (Lacan, [1962-1963]s/d, p. 58), fato é que o faz às custas
do sintoma, do que perde de gozo e de sentido ao se inscrever na linguagem.
E essa perda nunca se recupera, ela é o preço da entrada na civilização. É o
real em jogo no processo civilizatório.
Sabemos que o desejo do mestre, da civilização, é o de que tudo funcione
por homogeneização, sem falhas. Por outro lado, sabemos também, desde o
texto sobre o mal-estar, de Freud ([1929] 1976), que a psicanálise sabe que
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Andréia M. C. Guerra
que aprendeu a lidar, a saber fazer com seu sintoma, seja através do delírio, da
arte, da escrita ou de outro recurso. Ele nos mostra o uso possível do sintoma
na radicalidade da vivência do desamparo em relação ao Outro.
O tratamento construído pelo psicótico para trabalhar essa disjunção
com o corpo e com o Outro é a direção seguida para lidar com sua desinserção
originária. Com isso, seu estilo ganha um valor central na clínica. Além disso,
a singularidade de sua história e da lógica que constrói em decorrência dessa
posição face à linguagem demarcam a estrutura de sua posição subjetiva e
de seu pacto com a civilização. Não há o que adaptar ou incluir, mas antes
o que suportar desse embaraço da experiência da loucura com a civilização,
estabelecida a cada caso.
Para ilustrar a desinserção, trago Maria das Flores, usuária de um serviço
de Santo André (SP). Com ela, aprendemos que uma casa pode ser habitada
de maneiras muito diferentes daquelas dispostas no espaço arquitetônico tra-
dicional das moradias com paredes, portas, janelas e seus cômodos. Quando
hipotetizamos que apropriar-se de uma casa perfaz uma ação sociossimbólica
na qualidade de reparação ou invenção do ponto de ruptura do sujeito com o
Outro ou com o corpo, fazemo-lo em função de situações inusitadas como a
que ela nos fez conhecer.
Maria vive na cidade de Santo André-SP e, ao apresentar seu espaço de
moradia, visita conosco nada menos que dez referências: barracões na estação
da cidade, três casas de amigos e uma de familiar (irmã), quatro bares, um
hospital, além de ruelas das duas favelas contíguas por onde circula, sem contar
a farmácia na qual se maquia. Ela dorme a cada dia em um desses espaços,
havendo a preferência pelas casas nas favelas – salvo a da irmã, com quem
não conversa mais. Já dormiu muitas vezes na rua com mendigos ou noias,
correndo risco de vida e presenciando tiroteios. Nos bares, algumas vezes
ajuda com a limpeza em troca de abrigo ou comida, mas nunca se prostituiu,
como a convidaram a fazer alguns dos donos desses bares.
Além disso, ela diz realizar o roteiro de visita às suas “moradias” todos os
dias. E, ao se referir a uma internação hospitalar por conta de uma pneumonia,
relata que ali se “hospedou”: “Estava hospedada por alguns dias. Precisava
me tratar de uma pneumonia e fiquei hospedada. Fiquei amiga de todo mundo,
me trataram muito bem”.
Quanto à relação com a família, ela não fala nem com um irmão, nem
com uma irmã, mas ainda se relaciona com a mãe. Entretanto, mesmo com
essa, não estabelece diálogos ou um laço de afeto, pois, segundo ela, ela tem
problemas, não fala direito. Ninguém consegue conversar bem com ela. A mãe
sempre foi assim. Do pai, não tem notícias: eu não tenho pai. Não sou irmã de
sangue das minhas irmãs. Meu pai não ficou com a minha mãe. Eu o vi uma
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Andréia M. C. Guerra
vez, mas era criança e, por isso, nem me lembro. De fato, M. é mais branca
que a mãe e as irmãs, com quem não se parece muito. Foi casada e teve um
filho, tendo perdido sua guarda para o pai do menino. A cada relacionamento
posterior, perdia um vínculo com as coisas do mundo, tendo seu apartamento
sido ocupado pelo último namorado, com quem permanece até hoje.
Esse laço aparentemente bambo, solto, frágil, parece sinalizar para
uma resposta possível, construída por Maria, em sua posição na relação com
o Outro. O Outro a espolia, a rouba, não a deseja, perde a paciência com ela.
Ela atrapalha. Como resposta, nos parece, Maria não se compromete com
ninguém, não se fixa, não pede nada, apenas aceita o que lhe dão, pois não
quer ter que dar nada em troca. Sua resposta é a errância em relação ao Outro,
com esparsos pontos de fixação. Na falta de um espaço simbólico no campo
do Outro, no qual pudesse se alojar, Maria responde com sua falta de lugar,
sua dispersão. A cada endereço, um ponto.
Poderíamos, diante dos modelos de moradia que conhecemos, dizer que
ela não consegue habitar. Se, porém, observamo-la mais de perto, verificamos
que ela forja, a sua maneira, uma proteção ao olhar do Outro, uma espécie
de intimidade bem particular. Revejamos sua estratégia de ocupação. A cada
casa, das três por onde circula, ela deixa parte das, mas nunca todas, suas
roupas. Não as recolhe. Dorme, no improviso, sem avisar a ninguém onde se
encontra. Se lhe fecham a porta, como aconteceu com uma irmã e uma das
donas dessas três casas, ela se vira. Daí em diante, porém, essas pessoas
deixam o campo das confiáveis e passam para o outro lado, das espoliadoras.
Não é mais sua família de coração, aquela eleita e amada por ela. O saber
fazer com a habitação que Maria inventa orienta-se pelas pessoas e espaços
que elege. E, a partir da relação que estabelece com elas, fixa seus pontos de
moradia através das roupas e outros pertences que deixa ali sob os cuidados
do outro, resguardados. Parece-nos que, a partir de seus desacertos pela via
da normalidade moral, Maria inventa um jeito muito próprio de habitar seus
espaços. Até então, ela tem criado um espaço de intimidade resguardada do
Outro, espaço de “exclusão interna”, tornando-se hóspede do outro. E tem se
virado muito bem com ele a seu modo...
4.
E discuto finalmente as oficinas e seu potencial de mobilização subjetiva,
política e social, enquanto instrumento de intervenção clínica, produzindo seus
efeitos diretamente recolhidos pelos oficineiros e técnicos da saúde mental.
Nesse quarto e último aspecto, retomo a discussão com a qual iniciei a
abordagem do tema, ao descobrir certa “densidade simbólica diferenciada”
no trabalho das oficinas. E avanço tentando pensar os diferentes registros
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reçá-los aos outros, tal como ao dar os jornais para a irmã que os coleciona.
Além disso, destaca-se, nessa nomeação Voa-Voa, um elemento de
apaziguamento do gozo, um tratamento do real, que o avassala, pelo simbólico
do nome. Voa-Voa condensa, aos moldes de uma metáfora, um nome pró-
prio, cuja assinatura deixa sua marca de autoria no Outro. Ao mesmo tempo,
nomeia sua ausência de “raízes”, fazendo as vezes de uma vetorialização de
sua posição subjetiva. Além disso, tornar-se aquele que escreve para o jornal
do CAPS o aloca a um semblante, a um lugar social, cuja imagem costura,
com seu codinome, um espaço no campo público.
Como se vê, temos aqui a tal densidade simbólica diferenciada, cuja
especificidade situa-se exatamente no fato de não vir sozinha, mas antes
incluir os outros dois registros da realidade: o real e o imaginário. A diferença
dessa densidade simbólica, a nosso ver, reside no fato de permitir uma costura
entre o simbólico do codinome, o semblante do escritor e o endereçamento do
produto-objeto escrito no campo do Outro. Trata-se de elementos fundamentais
para o apaziguamento e para a fixação desse sujeito em um ponto do Outro,
tratando o real indomesticado de Victor.
5. Concluindo
4
VOA-VOA: refere-se às iniciais do nome de Victor de Oliveira Alves (pseudônimo adotado no
texto para evitar sua identificação), sendo tal codinome sugerido pelo coordenador da oficina de
Jornal do CAPS.
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REFERÊNCIAS
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100
100
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 101-110, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
GPVTG3
Simone Moschen2
DGVYGGP
Cduvtcev< The article discuss the statute of object made at the scope of the thera-
peutic workshops . It’s goal is to detach the dimension of lost as guide to orient the
production of the materiality elaborated at the breast of these therapeutic devices.
The production of lost find itself as condition of the enrollment of a between. Between
that works as preposition and that’s stands the distance of to spots. Between that
works as a verb and allows the invitation to another to get closer, without meaning
that this approximation carries an unavoidable threat.
Mg{yqtfu< psychosis, therapeutic workshops, object, public policies.
1
Esse artigo foi inicialmente publicado em: Leite, Nina Virgínia de Araújo, Milán-Ramos, Guillermo
J. EntreAto – o poético e o analítico. São Paulo: Mercado das Letras, 2011.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Insti-
tuto APPOA; Professora do Pós-Graduação em educação e em Psicologia Social e Institucional/
UFRGS;Pesquisadora do CNPq.E-mail:simonemoschen@gmail.com
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Simone Moschen
H omer e Langley Collyer eram dois irmãos que viveram em Nova Iorque no
início do século passado. Moravam no Harlem, quando este ainda era um
bairro elegante que abrigava enormes casarões onde residiam famílias ricas e
promissoras. Eles eram filhos de um médico ginecologista e de uma cantora de
ópera. Ambos, quando moços, ingressaram na Universidade Colúmbia, sendo
que Homer se formou em direito e Langley em engenharia. Sabe-se que Homer
chegou a ter dois empregos fixos: trabalhou primeiro em um escritório em Wall
Street e depois em uma companhia de seguros na Broadway. Langley, por sua
vez, não chegou a trabalhar. A história de suas vidas rendeu a produção de
um curta-metragem, dirigido por Alfeu França, intitulado: Irmãos Collyer – uma
fábula do acúmulo (2006).3
Por algum tempo os irmãos nova-iorquinos moraram no casarão de doze
cômodos do Harlem, acompanhados por toda sua família. Quando da morte
dos pais, foram paulatinamente se retirando da cena pública, recolhendo-se
em sua casa, até não mais saírem às ruas, com exceção de furtivas incursões
noturnas. À noite, Langley ganhava a rua para buscar alimentos e em suas
andanças trazia consigo tudo que pudesse encontrar pelo caminho: restos de
objetos e entulhos com os quais cruzava em suas caminhadas e que eram
sistematicamente recolhidos a sua casa. Homer, por sua vez, viveu no corpo
a reclusão psíquica que os irmãos se impunham: em 1937 ficou cego e, em
seguida, por conta de um reumatismo grave, ficou preso a uma cama. Langley,
que contava com a biblioteca de seu pai, médico, acreditava poder curar o irmão
com uma dieta de mais de cem laranjas por dia. Por conta de sua aposta, de
que Homer pudesse voltar a ver, e também em função da impossibilidade que
compartilhava com o irmão de jogar qualquer coisa fora, Langley guardava os
jornais velhos que trazia em suas andanças para que o irmão pudesse lê-los
logo que recuperasse a visão.
A reclusão de Homer à cama lembra a imobilidade de um famoso per-
sonagem literário que ganhou vida na pena de Jorge Luis Borges: Funes, o
memorioso (1999). Irineu Funes sofrera um acidente que havia lhe imposto
o completo enclausuramento ao catre. Sua imobilidade física, porém, se fez
acompanhar de uma terrível capacidade: era-lhe possível experimentar cada
acontecimento como se fosse único e registrá-lo em sua memória de forma
3
Fui apresentada a este documentário por minha orientanda Simone Lerner.
102
102
Entre
que nada lhe passava despercebido. A letra de Borges nos catapulta para o
drama de Funes:
Nós, de uma olhadela, percebemos três taças em uma mesa; Funes,
todos os rebentos e cachos e frutos que compreende uma parreira. Sabia as
formas das nuvens autrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos
e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro
encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas das espumas
que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho.
Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às
sensações musculares, térmicas, etc. [...] Disse-me: ‘Minha memória, senhor,
é como um despejadouro de lixos.’ Tinha aprendido sem esforço o inglês, o
francês, o português, o latim. Suspeito, entretanto que não era muito capaz de
pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, é abstrair. No abarrotado
mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos” (1999, p.543
e 545; grifo nosso).
Retenhamos esse contraste entre uma memória que se infinitiza como
um “despejadouro de lixos” e a capacidade de pensar que implica esquecer
– por que não dizer, perder, deixar cair – as diferenças.
Voltemos ao casarão do Harlem. Sozinhos, reclusos, sem sair nem ao
menos para pagar suas contas, os irmãos Collyer viram o telefone do casarão
cortado em 1917 – o que não devem ter nem ao menos notado!!! – e o forneci-
mento da eletricidade e do gás interrompidos em 1928. Sabe-se que Langley,
como engenheiro, construiu uma forma de gerar um mínimo de energia através
do reaproveitamento de um velho motor.
Em março de 1947, o comissário de polícia da cidade recebeu a denúncia
de que um forte cheiro exalava do número 1228 da 5ª Avenida. Essa denúncia
deu início a uma busca por entre toneladas e toneladas de entulhos. Os policiais
foram abrindo caminho em meio a papéis, latas, pedaços de móveis, restos
de armamentos, peças de instrumentos musicais... até encontrarem Homer,
deitado, morto em sua cama. Como não encontraram Langley, passaram a
suspeitar de que, tendo visto o irmão morto, ele tivesse saído de casa sem
rumo. Após dezesseis dias de um trabalho contínuo de remoção de entulhos,
os policiais encontraram o corpo de Langley a apenas três metros da cama do
irmão e, com isso, reconstituíram a tragédia: Langley tinha sido vítima de uma
de suas armadilhas para ladrões. Na pressa de acudir o irmão, teria passado
por um túnel e ativado uma arapuca que fazia desabar, sobre o desavisado,
toneladas de entulho. Como refere o narrador do curta-metragem: “os irmãos
encontraram seu destino em uma avalanche de acúmulo. Objetos, o que sig-
nificam para nós? Por que precisamos deles?” (França, 2006).
103
Simone Moschen
A história dos irmãos Collyer ganha versões mais brandas em uma série
de encontros que podemos ter com sujeitos que recorrem à rede de assistência
à saúde por conta do que situamos como sendo da ordem da loucura. Muito
são os relatos de colegas, que ouvimos em supervisão, impactados com o
que presenciam em visitas domiciliares: o acúmulo, por vezes sem bordas ou
critérios – pelo menos aparente –, de objetos cuja utilidade não responde ao
pragmatismo da vida cotidiana.
A experiência com essa história e com essas imagens nos leva a re-
visitar um trabalho que vimos acompanhando desde 2004 junto a grupos de
diferentes instituições: o trabalho com as chamadas oficinas terapêuticas no
âmbito da saúde coletiva. A história dos irmãos Collyer nos permite tomar o
acompa-nhamento deste trabalho para levantar alguns pontos de reflexão que
a ele se referem e outros que dele transcendem. Em primeiro lugar, nos faz
pensar sobre aquilo que se produz no âmbito do fazer em oficina, e seu lugar
para aqueles que o constroem.
Independentemente do artefato cultural que reúna os participantes de
uma oficina, está em jogo, nesse encontro, como um horizonte a alcançar, a
produção de uma materialidade, seja ela um texto, uma pintura, uma escultura,
um boneco de pano, um filme... Tanto é assim que frequentemente as oficinas
recebem a alcunha do artefato ao qual se dedicam: de escrita, de expressão
plástica, de fotografia, de produção de imagem... Esse modo de trabalhar tem
alargado sua presença como um dos dispositivos acionados, especialmente
no trabalho dos Caps, após a Reforma Psiquiátrica; de sua condução têm-
se ocupado trabalhadores com as mais variadas formações, dentre os quais
psicanalistas que atuam na rede pública.
A reunião de sujeitos em torno da produção de uma materialidade que
tenha sentido e lugar na circulação simbólica, convoca-nos a pensar sobre o
estatuto que o objeto ali produzido assume para os sujeitos que encontram
nessa forma de trabalho uma possibilidade de encaminhar os impasses que
lhes são próprios. Que objetos são esses? Que lugar eles ocupam? O que a
impactante história dos irmãos Collyer pode nos dizer sobre eles?
Ao acompanharmos o trabalho nas oficinas terapêuticas, nos vemos
interpelados sobre o lugar que a produção de uma materialidade pode ter;
lugar que talvez possa tensionar o trabalho do acúmulo a que se veem im-
pulsionados alguns sujeitos. Parece-nos que produzir uma materialidade que
seja capaz, mesmo que momentaneamente, de representar um objeto que
se destaca do corpo para ganhar lugar no exterior, coloca-se na contramão
da relação à produção de uma continuidade sem fissuras, implementada pelo
trabalho do acúmulo dos irmãos.
104
104
Entre
Freud, no texto A negativa ([1925] 1974), nos diz que podemos situar
a origem mítica do sujeito no momento em que algo se destaca de uma con-
tinuidade, passando a constituir uma alteridade em relação à qual o sujeito
ganhará existência. O sujeito emerge quando ,algo se destaca do continum
sem bordas em que se situa o Outro, em seu primórdios. É como efeito dessa
operação que o vemos surgir enquanto imparidade instransponível. Isso que
se destaca do campo do Outro, que é expulso, cuspido diria Freud, estabelece
as condições para diferenciar uma experiência eminentemente interior de uma
experiência exterior. Mas sigamos os passos de Freud.
Freud, nesse artigo, vai reconstruir uma história que, de forma alguma
pretende ser a metáfora de um desenvolvimento, mas, sim, uma referência
a um momento inicial, mítico, em que, para o sujeito, por um lado, tudo que
lhe confere prazer, que é por ele sentido como bom, equivaleria àquilo que
se encontra dentro dele e, por outro, tudo o que é da ordem do desconforto,
do mau, seria sentido como da ordem do exterior. Trata-se de um momento
primordial no qual vemos atuar o eu-prazer a incorporar o que lhe dá prazer
e a expulsar o que lhe confere desprazer.
Hyppolite ([1954] 1998) se refere desse modo ao trabalho de Freud:
Há, no começo, parece dizer Freud – mas ‘no começo’ não quer dizer
outra coisa, no mito, senão ‘era uma vez’... Nessa história, era uma
vez um eu (entenda-se, aqui, um sujeito) para quem ainda não havia
nada de estranho. A distinção entre o estranho e ele mesmo é uma
operação de expulsão (p. 898).
107
Simone Moschen
ponível mediada pela Lei que tece as malhas do simbólico, se é justo nesse
ponto que encontramos o sujeito trabalhando para transpor seu impasse; um
endereçamento, para a circulação social, daquilo que é produzido na oficina,
não poderia representar um convite, por que não dizer uma interpelação, a
que o sujeito recolha e suporte os efeitos de uma circulação fálica – justo o
que para ele está em questão? Não seria mais oportuno pensar o trabalho
de produção dessas materialidades que carregam uma densidade simbólica
diferenciada como um trabalho a ser realizado, para esses que compõem o
fazer na oficina, em um espaço protegido aonde a interpelação fálica chegue
minimizada da intensidade com que ela se faz presente no espaço público?
É claro que alguns participantes demandam a inscrição de suas elaborações
no social. Mas a questão talvez seja justamente de que lugar vem a demanda
por essa transposição do espaço protegido da oficina ao espaço aberto do
social. Acompanhar os sujeitos que se veem concernidos por realizar essa
travessia é tarefa importante do oficineiro. Mas impor a realização dessa
passagem nos parece, antes de tudo, uma forçagem.
De braços dados com esse movimento que situamos como uma força-
gem, vemos, com frequência, surgir uma outra antecipação nesse trabalho.
Para chegar a ela, iniciemos retomando uma citação de Quinet (2009):
vale muito a pena manter certa cautela, se dar o tempo de um silêncio, sem
responder de pronto sobre uma ou outra dessas questões.
Pensamos que o acento deste trabalho pode se colocar em outro lu-
gar, qual seja, na construção de um entre, tomado tanto em sua condição de
preposição – aquilo que marca um intervalo, um ponto de descolamento e
de junção ao mesmo tempo – quanto em sua condição de verbo, aquilo que
marca o gesto de um acolhimento, a condição de dar abrigo a algo que se
apresenta como externo.
É a produção de um entre, de um espaço intervalar que permite di-
ferenciar dois territórios. Esse entre é tributário de um corte num continum
originário que se opera por conta de uma expulsão, de uma exteriorização
primeira. Como fruto dessa exteriorização, vemos surgirem sujeito e objeto
separados e enlaçados por um entre. Esse vazio cavado no campo do Outro
talvez permita uma relação com os objetos que transcenda o acúmulo e possa
operar em outros registros, mas, mais do que qualquer coisa, permita, tam-
bém, uma acolhida ao outro num laço que não se traduz numa relação, mas
que possibilita o estabelecimento de uma fratria que pode nos sustentar no
atravessamento dos impasses da vida. Lembro aqui de uma fala de Contardo
Calligaris em recente encontro na APPOA: “o psicótico padece do fato de não
ter amigos” (sic). A mesma operação que funda o intervalo permite a acolhida
ao outro: desdobramentos de um entre.
Há uma passagem muito bonita no texto Agressividade em psicanálise
([1948] 1998) que vale a pena ser retomada. Nesse texto, Lacan vai percor-
rer os meandros da estruturação psíquica. Partindo do estádio do espelho
e da constituição do eu ideal como formação primeira a defender o sujeito
do iminente despedaçamento corporal, ele conduz o leitor rumo ao Édipo,
estrutura capaz de produzir uma fenda nessa imagem totalizada que, quando
ameaçada, encontra, por parte do sujeito, uma resposta sempre agressiva. A
constituição de um ideal do eu, fruto da passagem edípica, alerta-nos Lacan
nesse texto, tem uma
REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso. In: ______. Obras completas. São Paulo:
Globo, 1999. v. 1.
COSTA, C. M. Oficinas terapêuticas em saúde mental – sujeito, produção cidadania.
Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004.
FRANÇA, ALFEU. Irmãos Collyer – uma fábula do acúmulo. Brasil, 22 min., 2006.
FREUD, S. [1925]. A negativa. In: ______. Edição standad das obras completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p.295-308.
GUERRA, A. M. Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de
uma prática. In: FIGUEIREDO, A. C.;
HYPPOLITE J. [1954] Comentário falado sobre a “Verneinung” de Freud. In: LACAN,
J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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Janeiro: Zahar, 1998.
QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2009.
Recebido em 09/11/2012
Aceito em 09/12/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões
110
110
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 111-117, jul. 2011/jun. 2012
Uł0"Uł
Woc"gzrgtkgpekc"fg"kpuetkèçq."
TEXTOS fg"uwuvgpvcèçq"fg"wo"fgxkt."
pq"cvq"fg"vtknjct"eqtfc"pwoc"
ocpjç"pc"Ecuc"fqu"Ecvc/Xgpvqu
Uł0"Uł0
Cp"gzrgtkgpeg"qh"kpuetkrvkqp."uwrrqtv"hqt"c"dgeqokpi."
kp"vjg"cev"qh"lwor"tqrg"kp"c"Ecuc"fqu"Ecvc/Xgpvqu"oqtpkpi0"
Cduvtcev< This article presents the work done in Casa dos Cata-Ventos, a project of
extension and social intervention carried by the Psychology Institute at Rio Grande
do Sul Federal University in association with APPOA Institute, at Porto Alegre.The
author presents this work through a shortcut of a jump rope play and its intervention
effects in an eight years girl.
Mg{yqtfu< psychoanalysis, social intervention, childhood.
1
Psicanalista; Médica Homeopata; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)
e Membro do Instituto APPOA; Membro da equipe da Casa dos Cata-Ventos. E-mail: renata.
almeida36@yahoo.com.br
111
Renata Maria Conte de Almeida
2
O conceito de território compreende a história vivida por uma comunidade e as impressões que
ela faz no espaço configuram a sua própria identidade, sendo que cada indivíduo que ali vive, se
reconhece como parte dela. “É nesse espaço que se constituem as redes de relações, a cons-
trução de regras, conceitos e normas a partir do imaginário social e as relações de poder entre
os recursos naturais, as relações de produção ou as ligações afetivas e de identidades entre um
grupo social e seu espaço” (Souza e Pedon, 2009, apud Ferreto, 2009. p.1).
112
112
Só. Só
3
Plantões são turnos de 3 horas, quando as crianças são recebidas na Casa dos Cata-Ventos
para brincar, ou turnos de 1 hora e meia para contação de histórias. Sempre terão a presença de
três ou mais adultos a testemunhar suas brincadeiras, intervindo sempre, se possível, na lógica
do sujeito em constituição, buscando dar à palavra seu estatuto de plena, na medida em que
possa realizar a verdade do sujeito.
113
Renata Maria Conte de Almeida
menor, que tem seis anos de idade. Algumas vezes, sua mãe as acompanha
com a irmã caçula, de cinco meses. As crianças dessa família não frequen-
tam escola, nem nunca o fizeram. A mãe tem uma pobreza simbólica gritante.
Não fala muito e, ao ser demandada pelas filhas, não consegue responder
rapidamente. O bebê é hipotônico, tem dificuldades de sustentar a cabeça e
o olhar. Sua irmã de seis anos é uma menina que não cabe dentro do seu
pequeno corpo, tudo é movimento sem contornos de brincadeiras ou jogos,
tudo parece ser pura descarga.
Elena é uma criança passiva, com dificuldades de brincar em grupo, não
reconhece cores, formas figurativas, tem dificuldade de brincadeiras quando
o corpo é solicitado, como pular corda, pular amarelinha. Busca pelo olhar
materno insistentemente, apelo muitas vezes sem resposta pela dificuldade
materna.
Essas pequenas crianças, quando descobriram o espaço da Casa dos
Cata-Ventos, fizeram dele uma janela no mundo. Passaram a vir em todos
os plantões e a “comer” com voracidade tudo que lhes era apresentado. Uso
o termo “comer” porque a fome é a melhor expressão possível da pulsão ali
presente. Esta comparecia com a voracidade de quem esteve excluído por
muito tempo da dança necessária aos registros simbólico, real e imaginário
poderem fazer o seu trabalho: trançar e novamente trançar, abrindo a consti-
tuição subjetiva para um devir.
Por um bom tempo, nos plantões, a brincadeira preferida do grupo era
pular corda; corda grande, que precisava ser trilhada pelos adultos ou duas
crianças maiores. Elena não conseguia pular como as meninas da sua idade
ou mesmo menores. Fazíamos a “cobrinha”, corda balançada rente ao chão,
para que ela fosse lentamente entrando na brincadeira.
No brincar, Elena foi construindo possibilidades desconhecidas para o
seu corpo inibido, gordinho e lento. Muitos foram os momentos de júbilo com
o salto certeiro, sem ter a “cobrinha” enroscada em seus pés. Sempre havia
o convite de um dos adultos para pular corda, com toda a volta e dificuldade
característica. Ora ela desistia sem tentar, ora a frustração pelo não saber. Mas
no jogo, na brincadeira, na presença dos erros alheios, apesar dos grandes
puladores de corda presentes, Elena foi engendrando corpo e desejo.
Pensar sobre uma simples brincadeira de pular corda com crianças se
faz necessário quando presenciamos algo que inaugura, para uma criança,
um novo tempo, tempo de enodamento do significante ao real do corpo.
Volto ao relato da brincadeira com Elena.
Um dia ela pede para não pular “cobrinha”, quer pular corda e o faz com
extremo prazer, dela e da plantonista que trilhava a corda, devo apontar. Todos
114
114
Só. Só
enfim, pular corda e, no jogo da vida, trançar alguns novos registros e se po-
sicionar de outra forma no mundo.
O olhar transpassado pela psicanálise poderá então relançar o laço social
de forma menos perversa? Poderá inscrever registros diferentes da violência
e da negligência a que essas crianças e famílias estão submetidas? Fica a
aposta de que esta seja uma intervenção possível e potente.
REFERÊNCIAS
Recebido em 18/10/2012
Aceito em 22/11/2012
Revisado por Bianca Kreisner e
Deborah Nagel Pinho
117
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 118-127, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
EQPUVTWÑ÷GU"FC"
EN¯PKEC"GO"WO"ECRU3
Ester Luiza Trevisan2
ENKPKECN"EQPUVTWEVKQPU"KP"C"ECRU
Cduvtcev< The author explores the transformations of the work in Mental health by
taking the figures of Artaud and Irene. Explores aspects of a clinical-institutional
work oriented by psychoanalysis, performed with Irene, who went through a long
period of treatment in Caps Cais Mental Centre (Porto Alegre). Addresses issues
and dilemmas of a clinic of the subject in the field of mental health.
Mg{yqtfu< Caps; mental health; psychoanalytic clinic; institutional clinic.
1
Caps: Centro de Atenção Psicossocial. Os Caps constituem-se como dispositivos de atendimento
em saúde mental, surgidos a partir da reforma psiquiátrica no Brasil. Trabalho apresentado na
II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e intervenções sociais, em setembro de 2011, Porto
Alegre.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e Membro do Instituto APPOA;
Membro fundador da equipe do Caps Cais Mental Centro – SMS Porto Alegre; DEA Psicopatologia
e Psicanálise Universidade de Paris Xlll. E-mail: esterltrevisan@gmail.com
118
118
Construções da clínica em um Caps
3
Como não existir e um corpo? (trad. livre do autor). In ARTAUD, A. Le corps humain. Oeuvres
complètes. Paris: ed. Gallimard, 2004. p. 1547.
119
Ester Luiza Trevisan
que vai ser aquela a quem ele vai delegar seus manuscritos e a publicação
de sua obra.
Thévenin (Texier, 2007) conta que, nas últimas semanas de sua vida,
Artaud repetia com frequência que não tinha mais nada a dizer, e narra uma
cena que considero muito comovente :
Um dia, ao chegarem em casa, ele lançou a seguinte frase :
“Anuncio que não escreverei nunca mais, já escrevi tudo. Veja, além
disso, não tenho mais nem caderno!”
Enquanto falava, mostrava o bolso no interior de seu casaco, vazio
do habitual caderno. Porém, logo a seguir, escutou-o, em um tom de voz de
uma educação incomparável, pedir à sua filha: “Minha querida Domine, você
poderia fazer a gentileza de ir comprar para mim um caderno?”
Ela diz que não pôde deixar de provocá-lo um pouco, lembrando-o que
acabara de dizer que não escreveria nunca mais, ao que ele respondeu:
“– É verdade, mas é para fazer bastões4 [traços]! Minha mão não con-
segue não escrever.”
“Logo que obteve o caderno, ele de fato começou a fazer bastões,
conscienciosamente, duas páginas de bastões que, pouco a pouco, tornaram-
se letras.”
Artaud, nesta cena, produz quase uma mímese da gênese da escrita,
tal como os sumérios, que marcavam as plaquetas de barro com a escrita
cuneiforme. Ele nos evoca a escrita como estilo, estilete, aquilo que faz traço,
marca, revelando através desse gesto o valor de construção que ela adquire
para ele.
Em um trabalho conjunto de pesquisa com Simone Moschen e Cristina
Poli, escrevemos sobre a questão do traço do caso,5 tomando o traço “[...]
como o suporte mínimo do sujeito que permanece indelével na elaboração de
uma experiência clínica”. É um traço que conserva algo do sujeito, mas não o
representa, senão pelos seus rastros e seu apagamento. Artaud ilustra algo
da psicose, que é uma tentativa sempre incessante de escrever aquilo que,
no início, nos primórdios da vida do sujeito, não se inscreveu e que Lacan
nomeia como o Nome do Pai.
4
Baton, no original.
5
Referência ao trabalho Le trait du cas dans la clinique des psychoses, apresentado em Paris,
no Colloque International Psychanalyse et écriture, realizado entre 26 e 27 de novembro de 2010
na Maison du Brésil.
120
Construções da clínica em um Caps
6
Trad. livre do autor.
7
Trad. livre do autor.
121
Ester Luiza Trevisan
8
Supervisão com a psicanalista Ana Costa, através de edital do Ministério da Saúde para os Caps.
122
Construções da clínica em um Caps
9
Ângela Jesuino, De l’usager au sujet, texto lido em conferência na Appoa, em setembro de 2004.
123
Ester Luiza Trevisan
vestir para sair, mas eu olhava para minhas roupas, em meus braços, e elas
tinham o tamanho das roupas de um bebê”. Seguiu-se uma crise de angústia
intensa, com sintomas persecutórios, o que fez com que a filha a trouxesse
para o Caps. Ela foi recebida, passou a frequentar o Centro de atenção diária
e foi a partir desse momento que ela iniciou o acompanhamento comigo.
Gostaria de destacar três tempos do trabalho com ela:
Num primeiro momento ela vem com a recomendação que lhe deixara
Alfredo na entrevista: “se lembrar, vai sentir”. Escuto-a na produção de suas
lembranças. Chora muito, não quer lembrar. Aparece nesse período um sin-
toma corporal psicossomático importante de otites de repetição que chegam
a supurar. Podemos considerar esse um tempo em que ainda está entregue
ao olhar do outro, um corpo sem voz, que convoca que o outro fale dela. Sua
busca por médicos fica justificada e a medicina se presta bastante bem a isso,
já que detém o saber sobre o corpo no discurso social. O sintoma desapareceu
quando falar não se constituiu mais em uma ameaça para ela.
Em um segundo tempo consegue trazer questões de modo mais impli-
cado: fala da maternidade, da relação à filha, da relação ao ex-companheiro,
retornam questões edípicas, associa. Há muita angústia, principalmente na
complicada relação com a filha, mas “sente” e consegue se emocionar com
suas lembranças. Tempo da produção de uma narrativa de sua história, mas
também de construção de saídas, de retomada de laços sociais, de mudança
de posição na relação ao outro. Usa de sua voz, movimenta-se.
Já num terceiro tempo, não se prende mais tanto à sua “desgraça
pessoal”. Parece ter entendido sua angústia como constitutiva. Faz e refaz
trajetórias narrativas, problematiza o seu lugar. A sombra de seu momento
de quase completa deserção de si não aparece mais com tanta consistência.
Acompanhei Irene no Caps ao longo de cinco anos. Do período de
adoecimento, ela concluiu que ficou “no ar, fora da casa, que o que houve foi
um mau contato”. Ao longo do tratamento, retomou muitas questões, voltou a
morar sozinha, a viajar, mudou de casa, fez amigos. Ao final, dizia que tinha
encontrado um bom remédio para a sua angústia, que era o de “se ligar nas
pessoas, fazer bons contatos.”
Apresento este caso porque me parece emblemático para pensarmos
o trabalho possível a partir de um Caps. A construção do caso é singular em
cada Caps, e se molda diferente em cada caso. Foi preciso um longo período
de escuta de sua narrativa, respeitar o tempo da transferência e as construções
que alguém como Irene precisava fazer, buscando outras saídas para si, que
não a de sair de si. E foi em transferência que pudemos repensar, então, o
diagnóstico inicial de esquizofrenia. Irene construiu para si possibilidades de
126
Construções da clínica em um Caps
[...] que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica
nem com balanças nem barômetros etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encanta-
mento que a coisa produza em nós.
Manoel de Barros.
REFERÊNCIAS
Recebido em 05/12/2012
Aceito em 10/01/2013
Revisado por Renata Almeida
127
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 128-138, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
C"JKUVGTK\CÑ’Q"FQ"FKUEWTUQ"
PC"GPHGTOCTKC"RUKSWKıVTKEC
Tguwoq< Este artigo aborda a emergência do discurso do analista, que faz circular
os quatro discursos, em um dispositivo institucional de tratamento de transtornos
mentais. Consiste no recorte do caso clínico de um paciente com diagnóstico de
esquizofrenia paranoide internado na enfermaria psiquiátrica do Hospital de Clíni-
cas da Unicamp. Dessa forma, o presente texto relata uma prática que possibilitou
um giro no discurso do sujeito da ciência, incluindo o sujeito do inconsciente, seu
desejo e gozo no processo de sofrimento psíquico. São tecidas, também, algumas
considerações sobre o discurso do analista nas instituições.
Rcncxtcu/ejcxg< psicanálise, psiquiatria, discursos, esquizofrenia, instituições.
VJG"J[UVGTK\CVKQP"QH"VJG"URGCEJ"CV"VJG"RU[EJKCVTKE"PWTUGT[
Cduvtcev< This article discusses the emergence of discourse analyst, which
circulates the four discourses in an institutional device for treatment of mental
disorders. It consists in cutting a clinical case of a patient diagnosed with paranoid
schizophrenia admitted to the psychiatric ward of the Clinical Hospital of Unicamp.
Thus, this paper reports a practice that allowed a turn in the discourse of the sub-
ject of science, including the subject of the unconscious, desire and enjoyment in
the process of psychological distress. Articulates also some considerations on the
discourse analyst in institutions.
Mg{yqtfu< psychoanalysis, psychiatry, discourses, schizophrenia, institutions.
1
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do Insti-
tuto APPOA; Pós-Doutorado no Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da UNICAMP;
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP. E-mail: lulossjardim@uol.com.br
128
128
A histerização do discurso...
agente outro
verdade produção
129
Luciane Loss Jardim
S1 S2
$ a
portanto, nada mais condizente que esse discurso possa se ocupar do órgão
e não do sujeito; em outras palavras, a função médica será exercida na dimen-
são da demanda. Diferentemente do trabalho do analista, que se ocupará da
questão do desejo, e é a emergência do discurso do analista que fará circular
os quatro discursos, a partir do qual é possível passar de um discurso ao outro.
No contexto do ambulatório e enfermaria de psiquiatria do Hospital de
Clínicas da UNICAMP, o discurso predominante é o discurso do mestre, e o
meu ingresso ocorreu através de uma pesquisa de pós-doutoramento, que tinha
como objetivo oferecer escuta psicanalítica a pacientes com diagnóstico de
esquizofrenia. Dessa forma, houve uma aposta na possibilidade de circulação
dos discursos sustentada por mim a partir do discurso do analista. No transcurso
de minha inserção nessa instituição, os pacientes foram sendo encaminhados
pelos residentes e professores preceptores da psiquiatria. A partir da oferta,
criei uma demanda de escuta e, assim, foi se estabelecendo um trabalho junto
aos pacientes, médicos residentes da psiquiatria, enfermeiros e outros pro-
fissionais da enfermaria e ambulatório de psiquiatria do Hospital de Clínicas.
A enfermaria é a unidade de internação psiquiátrica e é um serviço
especializado no hospital geral da Unicamp. Trata-se de um dos serviços
substitutos do modelo manicomial, implementado após a reforma psiquiátrica. A
internação na enfermaria psiquiátrica do hospital é recomendada, geralmente,
para pacientes graves, casos de depressões graves, pacientes esquizofrêni-
cos paranoicos em surto, pacientes com transtornos bipolares em suas fases
maníacas, pacientes com riscos de suicídio, e também para aquelas situações
clínicas em que são necessários cuidados médico-hospitalares. São situações
clínicas graves, muitas vezes extremas, e exigem que o paciente seja hospitali-
zado para que se possa realizar a terapêutica. A hospitalização, geralmente, é
indicada quando nenhuma alternativa menos restritiva está disponível, levando
em consideração a gravidade do caso.
O discurso dominante sobre a clínica com esses pacientes é o psiqui-
átrico, que trata de prescrever as medicações e ajustar as doses. A clínica
psiquiátrica é sustentada a partir do Manual Diagnóstico e Estatístico dos
Transtornos Mentais (DSM-IV-R), que estabelece um discurso com uma es-
trutura científica sobre o sofrimento psíquico. A classificação dos transtornos
mentais está baseada em metodologia puramente descritiva e ateórica dos
sintomas e comportamentos (American Psychiatric Association, 2002.).
Nessa perspectiva, o tratamento psiquiátrico prescrito pode ser compre-
endido como discurso universitário; uma vez que se trata do prolon-gamento
do discurso do mestre. Formalizado no algoritmo:
131
Luciane Loss Jardim
S2 a
S1 $
2
A autora aqui se refere a Flechsig, primeiro médico de Schreber (caso/livro analisado
por Freud).
133
Luciane Loss Jardim
REFERÊNCIAS
Recebido em 04/10/2012
Aceito em 22/11/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões
138
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 139-152, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS EQO"C"RCNCXTC.
QU"CPCNKUVCU<"
c"rukecpânkug"pqu"ECRU3
Volnei Antonio Dassoler2
Tguwoq< A produção recente da literatura psicanalítica demarca os avanços e os
impasses que cercam a expansão da clínica nos contextos públicos de saúde. Nessa
perspectiva, o presente estudo tem por objetivo investigar a experiência clínica conduzi-
da por analistas nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), levando em consideração
a diversidade de configurações que envolve a situação analítica nesse espaço insti-
tucional. Para tanto, entrevistas semiestruturadas foram conduzidas e posteriormente
analisadas a partir do estabelecimento de alguns indicadores que permitiram abordar
a articulação teórica e clínica que fundamenta essa prática.
Rcncxtcu/ejcxg< clínica psicanalítica, sintoma, ética, centro de atenção psicossocial
(CAPS).
PQY"YKVJ"VJG"URGGEJ."VJG"CPCN[UVU<"
ru{ejqcpcn{uku"kp"ECRU
Cduvtcev< The recent production regarding psychoanalytic literature points out advances
and impasses about the expansion of the clinic in public health care contexts. Thus,
the following study has as its aim to investigate the clinical experience carried out by
analysts in Psychosocial Care Centers (CAPS), taking into consideration the diversity
of configurations involved on the analytic situation in such institution. Semi-structured
interviews were carried out and analyzed considering the establishment of some ma-
rkers, that allowed approaching the theoretical and clinical articulation that substantiates
such practice.
Mg{yqtfu<" psychoanalytic clinic, symptom, ethics and psychosocial care centers
(CAPS).
1
Este artigo é inspirado na dissertação de mestrado de minha autoria, As in(ter)venções do analista frente
às demandas institucionais dos CAPS (PPGP. UFSM-2010). Os CAPS constituem a principal estratégia
institucional do redirecionamento da atenção em saúde mental e são destinados a acolher os pacientes
com transtornos mentais graves. Dentro de suas pretensões, destaca-se o desenvolvimento de ações
interdisciplinares e intersetoriais que visam integrar os usuários a um ambiente social e cultural concreto,
designado como território e onde se desenvolve a vida quotidiana. Por outro lado, esses serviços assumem
um papel estratégico na composição de uma rede de cuidados descentralizada, aberta e agenciadora
de cidadania. Os CAPS são definidos a partir do tamanho de sua estrutura física, profissional, e da es-
pecificidade da demanda. Os diferentes tipos de CAPS são: CAPS I e II para atendimento a adultos com
transtornos psíquicos graves; CAPSi para a infância e adolescência e CAPSad para usuários de álcool
e outras drogas, além do CAPS III para atendimento 24h durante toda a semana. Fonte: Saúde Mental
no SUS: Os CAPS, Ministério da Saúde. 2004.
2
Psicanalista; Mestre em Psicologia (UFSM); Membro da APPOA; Integrante da equipe do CAPSad
Caminhos do Sol, Santa Maria. RS. E-mail: dassoler@bol.com.br
139
139
Volnei Antonio Dassoler
Crtgugpvcèçq
Tgcnkfcfg"uwdlgvkxc"g"tgcnkfcfg"fkuewtukxc
que fundam esse universo como forma de tornar fecundo o diálogo entre as res-
pectivas instâncias. Com efeito, consideramos que o pressuposto fundamental
que as reúne, diz respeito ao reconhecimento de que a loucura é habitável, de
que há nesta ou em qualquer forma de estruturação psíquica, a manifestação
de um sujeito que não pode ser concebido nem definido alheio àquilo que lhe
surge como sofrimento. Esse entendimento ratifica o fundamento analítico de
que o sintoma é o resultado dos efeitos da desnaturalização do corpo com a
entrada do sujeito na linguagem e situa o laço social como o âmbito das trocas,
estabelecido nas relações que o sujeito comunga.
A experiência analítica reatualiza o advento subjetivo como interme-
diado pelo corte simbólico processado a partir da entrada do ser ao campo
do Outro pela incidência da falta. A linguagem, exercida como lei, introduz o
sujeito na estrutura dos discursos, abrindo, com isso, as possibilidades para
que o exercício pulsional encontre meios que promovam ligação entre corpo
e linguagem como forma de satisfação e que será, nos diz Freud, sempre em
caráter parcial. Assim, o sujeito entra na ordem simbólica e, nessa entrada,
o sintoma se produz inexoravelmente pela vigência de um corpo pulsional.
Embora estejamos habituados com a afirmação de que o analista faz
uso da linguagem como forma de acesso ao sujeito, é preciso lembrar de que
a psicanálise trata dos efeitos da linguagem enquanto a mesma incide como
traumática para o advento do sujeito, numa operação que descompleta o gozo
e institui, simultaneamente, a realidade psíquica, como uma outra realidade
distinta daquela regida pela consciência.
Essa referência é atualizada por Maron (2000), quando nos sugere que:
“presumirmos que a realidade subjetiva é discursiva e supor que o sujeito é feito
de linguagem, serve de ponto de partida para nossas ações” (p. 53). Assim,
posicionar o dispositivo clínico da fala no centro da sua práxis, através da oferta
da escuta e tomando a transferência como seu operador clínico, permite ao
analista expandir sua prática para além do modelo de atendimento individual.
Isso se faz, pois o componente simbólico, princípio mínimo necessário para
a ação de um analista, encontra-se presente inclusive naqueles sujeitos com
quadros psicopatológicos graves. Mesmo nesses casos, é possível apostar na
instauração da demanda de reconhecimento pelo endereçamento ao Outro,
através do analista.
O texto conhecido como Função e campo da palavra e da linguagem
em psicanálise ([1953] 1988) pode ser considerado um dos marcos históricos
do direcionamento que Lacan pretende dar para sua obra a partir de 1950,
ancorando o inconsciente do lado da linguagem. Com efeito, a palavra é situada
no eixo simbólico, indicando que o sintoma neurótico, da mesma maneira que
141
Volnei Antonio Dassoler
Entretanto, para que essa proposta seja viável, é preciso estar munido
da particularidade que o conceito de sujeito adquire no campo psicanalítico.
De acordo com Figueiredo (2005), “o sujeito não é todo; ele é, antes de tudo,
um efeito. Um efeito da intervenção do Outro” que se produz a partir de uma
convocação feita a ele e que aparece sob determinadas condições:
Diante disso, o analista, desde seu lugar clínico, legitima a falta como
possibilidade de haver o exercício do desejo, postura que se contrapõe à
demanda de completude e cura que pode advir dos pacientes, familiares e
técnicos dos CAPS. No seminário sobre a ética, Lacan ([1959] 1991) diz: “o que
nos demandam, é preciso chamá-lo por uma palavra simples, é a felicidade” (p.
350). O que faz, então, um analista em resposta a esse pedido? Retomando o
tema pela releitura de Freud, Lacan ([1959] 1991) argumenta que, se não há
felicidade a ser alcançada, nem objeto a ser reencontrado, não pode haver,
por parte do analista, nenhuma conduta afirmativa sobre o acesso à felicidade.
Justamente por saber disso, o analista tem o cuidado de não propor, nos trata-
143
Volnei Antonio Dassoler
145
Volnei Antonio Dassoler
as quais tenta lidar com a falta e com o gozo da pulsão. Como consequência
disso, o analista auxilia o sujeito a reconhecer o furo do sentido, como marca
da própria divisão, de maneira que o gozo possa circular visando adquirir algum
valor de inscrição simbólica e menos de exclusão do laço social, particularida-
des fortemente presentes na população assistida nos CAPS e que autorizam
a clínica psicanalítica a não precisar reservar-se à neurose.
Swcpfq"qu"cpcnkuvcu"hcnco000000
147
Volnei Antonio Dassoler
149
Volnei Antonio Dassoler
Eqpenwkpfq."qw00000ckpfc."pçq0
REFERÊNCIAS
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Volnei Antonio Dassoler
Recebido em 11/11/2012
Aceito em 20/12/2012
Revisado por Renata Almeida
152
152
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 153-163, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
SWCPFQ"C"GUEWVC"
UG"HC\"OQTCFC3
Lívia Zanchet2
Tguwoq< O trabalho no campo da assistência social tem absorvido cada vez mais
profissionais da área psi, que se veem desafiados a reinventar suas práticas para atuar
nas políticas públicas. A psicanálise em muito contribuiu para a construção da concep-
ção de um sujeito de direitos, mas faz-se necessária ainda para que as pessoas não
passem a ocupar o lugar de meros objetos das políticas públicas. Um recorte de caso
traz à cena a discussão sobre a ética do desejo, defendendo a escuta psicanalítica e a
redução de danos como elementos fundamentais no trabalho intersetorial, com enfoque
no Sistema Único de Assistência Social.
Rcncxtcu/ejcxg< assistência social, escuta psicanalítica, intersetorialidade.
YJGP"NKUVGPKPI"DGEQOGU"CFTGUU
Cduvtcev< The work on the Social Assistance field has increasingly absorbed professio-
nals of the psychology area. These professionals are finding themselves challenged to
reinvent their practices to work in public policies. The psychoanalisis has made many
contributions to the construction of a subject of rights conception, but is still necessary
so that people do not take the place of mere objects of these public policies. A piece
of a clinical case is presented to make a discussion about the ethics of desire, where
the psychoanalytic listening and harm reduction are considered fundamental elements
of intersectorial actions, focusing on the Single System of Social Assistance (SUAS –
Sistema Único de Assistência Social).
Mg{yqtfu< social assistance, psychoanalytical listening, intersetoriality.
3
Esta experiência de trabalho encerrou-se em abril de 2012.
154
154
Quando a escuta se faz morada
Wo"ecuq."woc"ecuc
uma prática clínica, qualquer que seja, é atravessada pela ética psi-
canalítica sempre que leva em consideração a singularidade de cada
pessoa em sua dupla dimensão de indivíduo-cidadão e de sujeito
desejante (Betts, 2007, p. 11).
Nesse dia, percebi que muito trabalho haveria pela frente. Um trabalho
sensível e delicado, que não poderia forçar construções psíquicas fragilmente
sedimentadas e ao mesmo tempo tão valiosas. Ouvi de Juliana, enquanto
apontava o dedo para a casa ao lado, mostrando um fogão a lenha a funcionar
sem a saída de fumaça instalada: “Não vou deixar acontecer aqui que nem o
louco do vizinho! Aquele ali não bate bem das ideias! Olha o meu teto: bem
branquinho; e ele lá, preteando tudo!” E nessas frases escutei que ali havia,
sim, uma morada, havia um espaço habitado e afetivo, havia apropriação e
desejo. Ali falava um sujeito.
A redução de danos e a escuta – diretrizes e amarragens no trabalho
intersetorial
uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo
o seu desenvolvimento mental (p.100).
Essa ideia se aplica ao trabalho com a clínica das psicoses, mas enten-
do que pode também servir a uma aproximação com o campo da política de
assistência social, pois acabamos por emprestar nosso desejo aos usuários,
não de maneira a se sobrepor ao que já tenham construído, mas para compor
com suas construções frágeis. É nosso desafio encontrar a delicadeza num
terreno em que há muito de brutalidade. Histórias de vidas violentas e violen-
tadas, vidas abandonadas, vidas desesperadas e desesperançadas. Ali onde
está o buraco, há que se colocar uma suplência, ainda que temporária, mas
profundamente necessária. Soares, Susin e Warpechowski (2009), nesta mes-
ma direção, propõem a clínica da assistência social promovendo um lugar de
investimento libidinal, ao dizer que, muitas vezes, a iniciativa se coloca primei-
ramente do lado do psicólogo até que o sujeito possa, ele próprio, demandar,
sustentar e exigir atendimento.
E nesse olhar atento ao perigo da sobreposição anteriormente referida,
pensar a prática a partir da redução de danos pode ser alternativa. O concei-
to de redução de danos ampliada vem sendo utilizado para referir-se à sua
aplicação como estratégia para além do trabalho com usuários de drogas e
portadores de HIV, mas inserida no campo das políticas públicas, visando
prevenir quaisquer danos à vida antes que eles aconteçam. Ela constitui-se
como uma diretriz de trabalho, pressupondo a flexibilidade no contrato com
o usuário e o estabeleci-mento de vínculo, facilitando assim o acesso às
informações e orientações e estimulando sua ida aos serviços, por meio de
propostas diversificadas e construídas singularmente. Segundo Rose Mayer
(Conte et al., 2004), a redução de danos é um paradigma a partir do qual se
parte do real existente, para uma situação melhor e possível. Ela relaciona-
se com a interdisciplinaridade, pois o “real” e o “possível” podem ser vistos a
partir de vários olhares; além de pressupor autoria e protagonismo, pois é o
sujeito que vai poder avaliar o “real” e o “melhor”. É um processo educativo,
de construção de escolhas que pode, portanto, ser transposto para o campo
da assistência social.
Alcançar transformações consistentes em situações complexas como
as que são atendidas diariamente pelo campo da política de assistência social
requer, inúmeras vezes, o envolvimento intersetorial dos diferentes atores que
compõem a rede de atendimento – saúde, educação, habitação, cultura. São
raros os casos em que um usuário do SUAS não faça uso também do Sistema
Único de Saúde (SUS) e da rede de ensino de sua cidade. A construção da
intersetorialidade já está colocada no discurso social, mas é com resistên-
160
160
Quando a escuta se faz morada
das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos
do que os ruídos dos motores de Fórmula 1. Há um desagero em
mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito
do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem
algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que
eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas
do que com homens doutos.
REFERÊNCIAS
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162
Quando a escuta se faz morada
163
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 164-172, jul. 2011/jun. 2012
KPVGTXGPÑ÷GU"EN¯PKECU"
GO"EQPVGZVQU"FG"GZENWU’Q<
TEXTOS tgcuugpvcogpvq."
wo"nwict"c"eqpuvtwkt3
Janete Nunes Soares2
Luciane Susin3
Marisa Batista Warpechowski4
IPVGTXGPVKQPU"KP"ENKPKECN"EQPVGZVU"GZENWUKQP<
tgugvvngogpv<"c"rnceg"vq"dwknf
Cduvtcev< The paper analyzes the effects of a clinic intervention developed with a group of
residents of a community in Porto Alegre. They had suffered a process of resettlement. A
clinical practice oriented by psychoanalysis in the context of social exclusion and violence,
seeking to articulate social rights and subjective dimension. The intervention occurred
from the Center for Specialized Social Assistance Reference (CSSAR), through a liste-
ning space in which the experience of relocation and its effects could be recognized and
testimony. The challenge is to intervene interlacing clinical, political and social, allowing
the subject to reinvent itself, creating social ties of inclusiveness.
Mg{yqtfu< clinic, social exclusion, urban resettlement, social assistance, public politic.
1
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e intervenções sociais, em se-
tembro de 2011, Porto Alegre.
2
Psicóloga; Psicanalista; Supervisora da Rede de Alta Complexidade da Fundação de Assistência Social
e Cidadania da Prefeitura Municipal de Porto Alegre; Coordenadora do Grupo de Trabalho Saúde Mental
na Assistência Social. E-mail: jnunessoares@hotmail.com
3
Psicóloga; Psicanalista; Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Compõe a equipe do
Centro de Referência Especializado em Assistência Social da Fundação de Assistência Social e Cida-
dania da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E-mail: luciane.susin@gmail.com
4
Psicóloga; Psicanalista; Especialista em transtornos do desenvolvimento na infância e adolescência.
Compõe a equipe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social da Fundação de Assis-
tência Social e Cidadania, Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E-mail: marisabw@gmail.com
164
164
Intervenções clínicas em contextos de exclusão...
E ste trabalho trata de uma prática clínica orientada pela psicanálise num
contexto de exclusão social e violência, a partir do acompanhamento
de uma experiência de migração urbana ocorrida em uma comunidade na
região centro de Porto Alegre, que se produziu através de ação de remoção
e reassentamento.
Desenvolvemos este trabalho com um grupo de famílias da Vila Choco-
latão, durante o processo de reassentamento dessa comunidade para outra
região da cidade, tendo em vista a reapropriação pela União do terreno onde
a Vila se situava. Nossa intervenção é legitimada pelo trabalho que desen-
volvemos junto à Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) da
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, através dos serviços socioassistenciais
que compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), conjugada à
ética psicanalítica.
O trabalho ocorreu a partir do Centro de Referência Especializado de
Assistência Social (CREAS) Centro, e buscou articular a dimensão dos direitos
sociais com a criação de um espaço de escuta e acompanhamento em que a
vivência do reassentamento e os seus efeitos subjetivos pudessem encontrar
reconhecimento e testemunho. Realizamos intervenções individuais e coletivas
junto ao grupo de moradores, disponibilizando espaços de escuta.
Participamos de uma rede de discussão com as demais secretarias
municipais envolvidas no processo, órgãos públicos federais do entorno e
moradores da Vila. Durante todo o processo, acompanhou-se a relação com
as demais políticas públicas na perspectiva do acesso aos serviços e da ga-
rantia dos direitos sociais. Compôs-se uma rede, em que algumas ações das
secretarias municipais foram tendo lugar e visibilidade na comunidade.
Xknc"Ejqeqncvçq<"fq"vgttkvôtkq"cq"nwict
167
Janete Nunes Soares, Luciane Susin e Marisa Batista Warpechowski
Como nos lembra Milton Santos ([1987] 2007, p. 81): “Quando o homem
se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece,
cuja memória lhe é estranha, esse lugar é sede de uma vigorosa alienação”.
Cultura e territorialidade, na concepção do autor, são como sinônimos,
pois, em ambos, está contida a herança e também o resultado obtido por
intermédio do próprio processo de viver. Bem como refere que “as migrações
agridem o indivíduo, roubando-lhe parte do ser” (Santos, [1987] 2007, p. 81),
obrigando-o a nova e dura adaptação ao novo lugar.
O trabalho de escuta foi muitas vezes o de possibilitar que os moradores
tomassem a palavra, transformando a vivência dolorosa silenciada em uma
experiência compartilhada.
Pcttcvkxc"g"Vguvgowpjq
oito filhos. Luiza nos conta que sempre viveu na Vila, pois foi ali que nasceu
e também que teve sua filha.
Nesse dispositivo, surgiram memórias das vivências traumáticas da
violência, morte e destruição da Vila pela ocorrência de 13 incêndios, ao longo
dos últimos anos. Os incêndios representaram marcos de temporalidade, e
os moradores falavam do horror de viver sob o perigo de destruição e a pos-
sibilidade de novas perdas.
Destacamos o movimento de destruição e reconstrução do espaço
da Vila, que reconfigurava os traçados da vida a cada incêndio, constituindo
marcos de referência histórica. A partir do significante “incêndio”, outros foram
sendo encadeados, como “Vila incendiária”, “Vila assassina” e “Vila do horror”,
sentidos atribuídos socialmente, que não deixavam espaço para expressão
da vivência traumática. Como nos trazia Carla: “Perdemos com os incêndios,
perdemos muito, nossos documentos, nossas coisas, nossas vidas, tememos
pelos nossos filhos”.
Trabalharam-se as relações de vizinhança e as redes afetivas, na tenta-
tiva de construir distâncias que pudessem preservar algo de intimidade, num
espaço em que a proximidade excessiva das casas fragiliza a separação entre
o público e o privado. Procuramos trabalhar esses elementos através da criação
de uma colcha de retalhos, onde o desenho da casa desejada representava
uma posição no coletivo e teve como efeito a escolha do local da casa no novo
endereço. Cada um pode dizer com quem gostaria de “vizinhar”, assim como
daqueles que gostariam de preservar distância.
Circulamos por lugares considerados significativos, construindo um
mapeamento afetivo com os moradores, na perspectiva de articular a memória
dos moradores a um lugar – a vila, a cidade. Os encontros eram realizados na
comunidade, no parque, na associação de moradores, na praça, na sombra
das árvores. Ao percorrer esse trajeto, percebemos o efeito de uma expansão
do território e reconfiguração de limites que puderam ser compartilhados.
Esses lugares foram fotografados, constituindo-se, posteriormente, em
uma mostra fotográfica. Adriana fez questão de fotografar o interior de sua
casa, pois se sentia bem nela, sendo que ali conseguiu ter uma casa, suas
coisas, e cada objeto da casa representava muito para ela. Manuela gostaria
de fotografar uma árvore da entrada da Vila, local onde sua filha nasceu.
Nesse trânsito, seguíamos fotografando, conversando, ouvindo as histórias e
formulando questões sobre o novo local de moradia.
No novo local, visitamos a obra, conhecemos as casas, percebemos
as diferenças entre elas, falamos das preferências de cada um em relação a
169
Janete Nunes Soares, Luciane Susin e Marisa Batista Warpechowski
morar num sobrado ou casa térrea, circulamos pelo território, visitando alguns
serviços e conhecendo algumas equipes.
Ao final de 14 meses, é chegado o momento de transferência das fa-
mílias para a nova moradia, nomeada pelos moradores de Residencial Nova
Chocolatão.
Destacamos que a escolha do nome, decidida em assembleia de mora-
dores, preservou traços identificatórios, de forma a servir-se do passado para
inventar o novo.
A possibilidade do novo convivia com a insistência da destruição, pois,
durante o processo de remoção das famílias, que transcorreu durante alguns
dias, o que se presenciou foi muita destruição, em que a desfiguração do
espaço foi determinante na angústia dos moradores.
As casas vizinhas, as ruelas, a associação de moradores, as entradas
da Vila, os bares da comunidade, os becos, não existiam mais, a não ser na
memória, ainda recente e frágil para o momento do acontecimento. Estavam
ali a Polícia Federal, a Brigada Militar, os guardas municipais, técnicos de
várias secretarias, retroescavadeiras e muitos escombros. Parecia cenário de
guerra. Um morador refere: “Aqui parece o Japão”. Estava certo. Falava de
uma catástrofe, de algo com o poder de arruinar, de não deixar nada. Com os
pertences encaixotados para a mudança, outra moradora diz: “Nos deixaram
aqui, pior que animais”. Também contundente em sua fala, pois essa remoção,
considerando a acepção de Milton Santos ([1987] 2007), guarda pouco do que
podemos considerar humano.
Numa postura de resistência frente à destruição que imperava, Julio
inicia, ele mesmo, a desmanchar sua casa, tornando-se protagonista, ao
transformar o que poderia ser perda em ganho, uma vez que sua intenção
era a de vender as madeiras da casa: “Não vou deixar destruir, isto aqui é
madeira boa, já vendi”.
Para Endo (2005, p. 71):
170
170
Intervenções clínicas em contextos de exclusão...
171
Janete Nunes Soares, Luciane Susin e Marisa Batista Warpechowski
REFERÊNCIAS
Recebido em 26/04/2012
Aceito em 30/06/2012
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
172
172
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 173-182, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS Q"SWG"TGVQTPC"PC"EN¯PKEC"FC"
CVGPÑ’Q"RTKOıTKC"
‘"UCðFGA3
Eliana Mello2
YJCV"TGVWTPU"KP"ENKPKE"QH"RTKOCT["JGCNVJ"ECTGA
Cduvtcev< The paper explores the production of subjectivity in the interstitial be-
tween individual history and the history of culture and suggests the clinical work
of mental health conducted in Primary Health Care, in the field of Public Health,
as fertile ground to host their events. It aims to highlight the importance of psycho-
analysis in understanding this field and how this field can enlarge the reading of
psychoanalysis
Mg{yqtfu<" individual history, history of culture, subjective production, primary
health care, clinical work, psychoanalysis.
1
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais,
realizada em Porto Alegre, setembro de 2011, e decorrente da tese de doutorado em Educação,
intitulada Trauma e sintoma social: resistências do sujeito entre história individual e história da
cultura (Mello, 2010)
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga do Grupo
Hospitalar Conceição (GHC); Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS); Doutora em
Educação (UFRGS). E-mail: elianam@portoweb.com.br
173
173
Eliana Mello
3
O dualismo freudiano, pulsão de vida e pulsão de morte, é aqui entendido como a contraposição
de forças de ligação, que tendem a constituir e manter unidades de convivência cada vez maiores
entre os humanos, às forças de destruição, que tendem à dissolução dos laços sociais.
174
174
O que retorna na clínica...
a cada dia, ser escolhida uma palavra aleatória, como “número”, por exemplo,
que, naquele dia, as crianças não podiam falar em hipótese alguma. Isso
tornava uma aula de matemática, no caso de nosso exemplo, uma arriscada
empreitada... Aos infratores estavam previstas penas variadas, pequenas ou
grandes “humilhações”, pequenas ou grandes investidas corporais.
Essa zona limítrofe, entre a intensa agressividade e o apelo ao simbólico,
também pode ser observada em outra versão na adolescência. Assim, a paixão
pelo grafismo e a disposição para a criação grupal estão presentes, de forma
fundamental, na formação atual dos “bondes”, os quais emergiram, conforme
relatos locais, pelo desejo dos jovens de andarem em grupo, se atribuindo um
“nome”, e de picharem a marca desse nome pela cidade. É verdade que a
apropriação dos bondes, por grupos que “querem só a violência” (como o que
escutamos), acaba desconstituindo essa formação grupal enquanto alternativa
de suporte para o trabalho de inscrição subjetiva.
No que diz respeito à prática de delinquência e criminalidade juvenil,
as disputas entre gangues rivais são constantes e apresentam um expressivo
saldo de mortes contabilizado pelos grupos envolvidos, configurando uma
situação que é denotada pelos moradores da periferia como “guerra”. Que os
filhos entrem na “guerra” é talvez o temor mais recorrente das mães, nesse
lugar. Esses assassinatos são sustentados sobretudo por uma cultura calcada
na vendeta4, que determina quem está jurado para ser o próximo a morrer.
A relação entre os fenômenos descritos é para mim sugestiva da organi-
zação de algo como uma “linha de montagem”, que jamais deixou de suscitar
interrogações sobre seus fundamentos e força de manutenção.
Essa zona de “delinquência” e de “criminalidade” tem uma espantosa
visibilidade no imaginário da cidade, aliás, típica do meio urbano brasileiro
– desde que a consideremos como uma cidade “outra”, dissociada da socia-
bilidade ordenada que se pense produzir na cidade de “verdade”. É certo que
se torna cada vez mais difícil sustentar essa dicotomia, o que demanda mais
esforço de segregação. A “outra” cidade insiste em se apresentar no temor
ao assalto, no confronto direto com a violência. Violência deles, do “outro”,
evidentemente. Então, o “problema” passa a ser enfrentado com o aparato das
instituições em atribuição de “consertar” o inaceitável. Em parte pela adesão a
esse ideal irrealizável, em parte porque os recursos financeiros que o problema
demanda se inscrevem na lógica da distribuição dos bens, que os despencam
4
Palavra italiana que designa o espírito de vingança, entre famílias, provocado por um assassinato
ou uma ofensa, e que é mantido ao longo do tempo por atos de vingança recíprocos.
175
Eliana Mello
5
Essa questão foi construída pela leitura do artigo Experiência e linguagem como estratégias de
resistência, de Miriam Debieux Rosa e Maria Cristina Poli (2009).
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O que retorna na clínica...
179
Eliana Mello
paterna era índia. D. Rosa queixava-se de cansaço, pois tomava conta dos
outros netos também. Os filhos não a escutam, e “tanto que ela pedia para
eles largarem esta vida de bandido, que só traz desgraças”. Achava que era
por “essa angústia no peito” que teve que fazer a cirurgia cardíaca há dois
anos passados, e que acabou parando seu coração pouco depois da época
deste relato.
O atendimento de Alisson foi muito irregular, tendo ele faltado muitas
vezes, já que nenhum adulto se lembrava do compromisso, mesmo que levas-
sem o dia e o horário anotados e o menino manifestasse claro interesse em vir.
Por isso, insisti na manutenção do espaço, mandando, por várias vezes, hora
marcada por uma agente de saúde e, mesmo assim, consegui vê-lo apenas
seis vezes. Minhas anotações dos encontros com aquele menino franzino
registraram o seguinte:
Primeiro encontro- brinca com índios e arma cena de guerra, enuncia
várias vezes que aqueles que são “sem cuidado” vão para o “comitê da mor-
te”, buscando minha confirmação, a cada vez, por um “né?” e pelo olhar que
me dirigia.
Segundo encontro- chega chateado e, quando eu insisto, conta-me que
gozaram dele na escola, por causa da gagueira. Brinca de “bem” contra o “mal”.
Terceiro encontro- brinca que os “ancestrais” voltam do passado e
aterrorizam as pessoas.
Quarto encontro- sucedem-se no brincar cenas de graves massacres,
acertos de contas entre bandidos, alguns amigos fazem “salvamentos”, uma
enorme “boca mastigadora” ameaça a todos. No final, todos morrem.
Quinto encontro- brinca de revolta dos “índios” contra os “portugueses”.
Chamou-me atenção o fato de ele não ter gaguejado nesta sessão.
Sexto encontro- no brincar de hoje, o “herói” é o “pobre” que reparte seus
ganhos com os amigos e fica cada vez mais “rico”, derrotando os “homens
ricos” na corrida de carrinhos, que sempre envolve um acerto de contas por
dívidas não saldadas.
Este é um caso que me parece muito rico na composição dos elemen-
tos que revela, e aqui apenas poderei explorar alguns. A primeira pergunta
formulada, a partir dele foi: quem é o sujeito que fala aqui? Impressionou-me
sobremaneira que uma criança que só conhecia as letras do alfabeto, conforme
a professora, falasse em “ancestrais” e em “revolta dos índios contra portugue-
ses”. O que possibilitava esse saber? Ele me fala vagamente que viu imagens
em uns livros da escola. Eis que a criança “desinteressada” da professora
revelava-se assim particularmente atenta ao que podia atribuir sentido para
sua existência. A transmissão que se efetua pela avó, de sua herança negra e
índia, parece ser mesmo a fonte que alimenta a tentativa de construir um mito
180
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O que retorna na clínica...
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Eliana Mello
REFERÊNCIAS
Recebido em 02/08/2012
Aceito em 04/10/2012
Revisado por Deborah Nagel Pinho
182
182
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 183-193, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
C"XKQNÙPEKC"PQUUC"FG"ECFC"
FKC<"q"tcekuoq"ä"dtcukngktc3
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi2
Tguwoq< Este texto aborda o racismo contra o negro no Brasil como um sintoma
social. Partindo da concepção freudiana de que a cultura é fundada no assassinato
do pai da horda e de que o sujeito psíquico é constituído no laço social, podemos
pensar na crueldade como elemento constitutivo das formações sociais, e que
cada sociedade engendra suas próprias figurações de violência.
Rcncxtcu"ejcxg< racismo, sintoma social, violência, narcisismo.
QWT"FCKN["XKQNGPEG<"tcekuo"kp"c"dtc|knnkcp"yc{
Cduvtcev< This text addresses the racism against black people in Brazil as a social
symptom. From the Freudian conception that culture is founded on the murder of
the father of the horde and the psychic subject constituted in the social bond, cruelty
can be considered a constituent element of the social formations, and each society
engenders its own figurations of violence.
Mg{yqtfu< racism, social symptom, violence, narcissism.
1
Este texto é baseado em trabalho apresentado em 22 de junho de 2012 na 3ª fase do ciclo O
racismo contra o negro no Brasil: questões para a Psicanálise, realizado pelo Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
2
Psicanalista; Membro de Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; Professora
do curso de Psicanálise do mesmo Departamento e Coordenadora do núcleo de atendimento de
famílias de Projetos Terapêuticos. E-mail: mbeatiche@gmail.com
183
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Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi
184
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A violência nossa de cada dia
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Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi
figura da violência.
O psicanalista J. B. Pontalis, pensando sobre a persistência das ideias
e das práticas racistas no mundo de hoje, em que a noção de raça biológica
está superada, radicalizou o argumento freudiano, articulando-o com os fenô-
menos do estranhamento. Sua contribuição é chamar atenção para o elemento
passional desse fato social e, como tal, absolutamente refratário aos apelos
da argumentação. O ponto de origem dessa paixão estaria nos fenômenos
primitivos de estranhamento e angústia intrínsecos às formações de identidade.
3
Título do capítulo acima citado de J.B. Pontalis.
186
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A violência nossa de cada dia
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Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi
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Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi
de classe social.
Termino na aposta do uso da palavra que fala, testemunha, ultrapassa
a dor, gera movimentos significantes, resgatando a língua em sua função de
ferramenta cultural, com sua qualidade de desenhar outros destinos.
Seguem as palavras de Cuti (2007, p.53-54), um poeta.
QUEBRANTO
às vezes sou o policial
que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
às vezes sou o zelador
não me deixando entrar
em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredito
às vezes sou o amor
que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo com o vazio
às vezes as migalhas do que
sonhei e não comi
outras o bem-te-vi
com olhos vidrados
trinando tristezas
um dia fui abolição que me
lancei de supetão no espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida
uma constituição que me promulgo
a cada instante
191
Maria Beatriz Costa Carvalho Vannuchi
REFERÊNCIAS
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
ARANTES, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. Configurações do racismo no Brasil
são questões para a psicanálise? Jornal Digital dos Membros, Alunos e Ex Alunos do
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, 2012.
D’ASSIER, Adolphe. Le mato virgem. Revue des Deux Mondes (1) Paris, 1864.
COSTA, Jurandir Freire. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
CUTI, Luiz Silva. Quebranto. In: Negroesia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.
ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao estado: psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1990.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu [1912/1913] In: ______. E.S.B das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.18.
FREUD, Sigmund. Por que a guerra? [1932/1933] In:______. E.S.B. das obras psico-
lógicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996, v.8.
KOLTAI, Caterina. Totem e tabu: um mito freudiano. Para ler Freud. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional
versus identidade negra. Petrópolis: Ed. Vozes, 1999.
______. Diversidade, etnicidade, identidade e cidadania. Ação Educativa, ANPED.
Palestra proferida no 1º Seminário de Formação Teórico Metodológica. São Paulo,
192
192
A violência nossa de cada dia
Recebido em 28/08/2012
Aceito em 04/10/2012
Revisado por Marisa T. G. de Oliveira
193
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 194-202, jul. 2011/jun. 2012
TEXTOS
RQFGT"G"XKQNÙPEKC"PQ"
FKUEWTUQ"ECRKVCNKUVC3
RQYGT"CPF"XKQNGPEG"KP"VJG"ECRKVCNKUV"FKUEQWTUG"
Cduvtcev< The article takes as its background the contemporary labor relations
to consider the incidence of the capitalist discourse in these relationships. Briefly
presents the socio-economic changes leveraged by postmodern capitalism, em-
phasizing the dominance of the management discourse. Finally, it analyzes the
exercises of power and violence present in this discourse, as well as the way to
regulate the enjoyment through the category of speech in Lacan, using, for this,
the Master’s Discourse and the Discourse of the Capitalist.
Mg{yqtfu< power, violence, enjoyment, discourse, capitalism.
1
O presente artigo é uma versão do trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA:
Psicanálise e Intervenções Sociais, em: Porto Alegre, setembro de 2011.
2
Psicanalista; Mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS; Membro da Associação Psica-
nalítica de Porto Alegre; Membro do Instituto APPOA; Professora no CESUCA/Faculdade INEDI.
E-mail: psi.rosana@gmail.com
194
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Poder e violência no discurso capitalista
[...] Eu não espero pelo dia / Em que todos / Os homens concordem/ Apenas
sei de diversas / Harmonias bonitas / Possíveis sem juízo final/ Alguma coisa / Está
fora da ordem / Fora da nova ordem / Mundial
[Fora da ordem, Caetano Veloso].
3
Trata-se do grupo de estudos que coordeno na Associação Psicanalítica de Porto Alegre e cuja
temática é liderança e poder nas relações de trabalho.
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Rosana de Souza Coelho
4
Para a apreciação mais detalhada sobre o discurso e o poder gerencialista, permito-me remeter
o leitor a minha dissertação de mestrado. COELHO, Rosana. Raciocina... mas obedece!: poder e
desejo nas relações de trabalho. Porto Alegre: UFRGS, 2011. Dissertação (Mestrado em Psicolo-
gia Social e Institucional), Faculdade de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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A expressão é utilizada por Gaulejac para se referir a um modelo que prima pela quantificação
e pelo pragmatismo. Ver Gaulejac (2009) Op. cit.
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Poder e violência no discurso capitalista
literatura normativa que diz como deve ser, e não como é (Gaulejac, 2007).
Faz-se a gestão das competências do trabalhador tendo como parâmetro a
“qualidade total”. É imprescindível ter iniciativa, ser participativo e dinâmico,
comprometido com metas estabelecidas por outros e realizá-las com “erro zero”!
No mundo do trabalho construído por esses discursos, as ações são
norteadas por preceitos que enfatizam a importância de um sentido compar-
tilhado, mas desde que esse seja único, uníssono. Ao primado dos objetivos
financeiros, soma-se a produção da adesão e a mobilização psíquica dos
sujeitos. Assim, a gestão mobiliza e solicita, principalmente, desejos. Mas o ho-
rizonte prescritivo e totalizante que tais formações discursivas comportam nos
deixa ver um imaginário que insufla a representação de um mundo idealizado,
onde o conflito e a falha devem ser para sempre banidos. Nesse exercício de
poder-saber vemos a fantasia de um desejo que deve ser satisfeito, em que
saber e verdade coincidem.
A psicanálise, com Lacan, não fez ouvidos moucos aos efeitos do ca-
pitalismo. Em sua conhecida conferência de 1972, em Milão, ele apontou o
caráter autofágico do capitalismo com uma de suas criativas frases: “Isso se
consome, se consome tão rápido que se consuma”6.
É nessa conferência que ele propõe o discurso do capitalista
6
No Seminário XVII, O avesso da psicanálise ([1969-1970] 1992), onde formula os quatro discur-
sos (discurso do mestre, discurso da histérica, discurso da universidade e discurso do analista),
Lacan não faz referências diretas a um quinto discurso. Entende-se que ele veio elaborando um
quinto discurso – denominado discurso do capitalista – nos anos seguintes, vindo a formalizá-lo
em 1972, em uma conferência em Milão. Ver “Milan, 12 de maio de 1972”. Em Lacan em Italia.
Milano: La Salamandra, 1972.
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Rosana de Souza Coelho
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Aqui refiro-me ao sujeito como o concebe a psicanálise, sujeito do inconsciente. A “fala” que trago
é recolhida da escuta no trabalho de campo que fundamentou minha pesquisa de mestrado, a
qual sustentou-se no método e na ética da psicanálise. Conforme dissertação citada, na nota 4,
mais especificamente o capítulo 2. Utilizo enunciação acompanhando a distinção entre sujeito do
enunciado e sujeito da enunciação feita por Joel Dor em Introdução à leitura de Lacan: estrutura
do sujeito. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. v.2. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. Lacan
aborda essa distinção em uma passagem da lição de 22/04/1964 do seminário XI e relaciona a
enunciação à emergência do desejo: “Tudo que anima, o de que fala toda enunciação, é desejo”
(Lacan, [1964] 1990, p. 134).
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Poder e violência no discurso capitalista
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-
-Dumará, 1994.
BIRMAN, Joel. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.
CALLIGARIS, Contardo. Perversão 6 um laço social? Salvador: Cooperativa Cultural
Jacques Lacan, 1986.
CHEMAMA, Roland. Um sujeito para o objeto. In: GOLDENBERG, Ricardo. Goza!
capitalismo globalização psicanálise. Bahia: Ágalma. 1997.
COELHO, Rosana. Raciocina... mas obedece!: poder e desejo nas relações de trabalho.
Porto Alegre: UFRGS, 2011. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional),
Faculdade de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
COSTA, Jurandir Freire. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2. ed.,
1986.
DOR, Joel. Introdução à leitura de Lacan: estrutura do sujeito. Tradução de Patrícia
Chittoni Ramos. v.2. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
DUFOUR, Dany-Robert. O divino mercado. Conferência. In: http://www.cprj.com.br/ima-
genscadernos/caderno23_pdf/09-O%20DIVINO%20MERCADO_DANY-ROBERT%20
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Rosana de Souza Coelho
Recebido em 07/05/2012
Aceito em 30/08/2012
Revisado por Simone Goulart Kasper e
Otávio Augusto Winck Nunes
202
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 203-209, jul. 2011/jun. 2012
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TEXTOS TGEQPEGKVWCÑ’Q"FQ"FCPQ"GO"
FGNKVQU"FG"NGUC/JWOCPKFCFG<"
cpânkug"fg"wo"ecuq
Fabiana Rousseaux1
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ETKOGU"CICKPUV"JWOCPKV[<"cpcn{uku"qh"c"ecug
Cduvtcev< From the work done at the assistance to the victims of the human rights
Center “Dr. Fernando Ulloa”,of the human rights secretariat, we faced the need of
a re-conceptualization of the idea of damage in crimes against humanity, from a
work experience that shows the impossibility of using clinic categories, derived from
psychiatric manuals, prevalent at the time, to evaluate the damages that were inferred
from this particular crimes.To solve this,I will bring the snippet of the historical coor-
denades of a case that shows how the reparation policies promoted or canceled
by the state affect the construction of an ethic-scientific speech.
Mg{yqtfu< reparation, damage, against humanity.
1
Psicóloga, graduada na Universidade de Buenos Aires; Diretora do Centro de Assistência a Ví-
timas de Violações de Direitos Humanos Dr. Fernando Ulloa, da Secretaria de Direitos Humanos
do Ministério de Justiça e Direitos Humanos, Argentina. E-mail: fabianarousseaux@hotmail.com
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Fabiana Rousseaux
2
Sigla de Centro Clandestino de Detención, instalações secretas do governo onde eram alojados,
torturados e executados opositores do regime militar que ocupou o poder na Argentina entre 1976
e 1983. (N. T.)
3
Esse Informe pericial foi realizado em Buenos Aires e apresentado em 18 de setembro por Eva
Giberti e os Drs. Maria Isabel Punta de Rodulfo, Ricardo Rodulfo e Fernando Ulloa, perante o
juiz Federal Dr. Adolfo Luis Bagnasco em referência à causa supracitada.
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Fabiana Rousseaux
Por outro lado, um dos signos mais notórios que costumam emergir
na casuística clínica de tais casos é precisamente um “transcorrer como se
nada tivesse acontecido”, durante determinado tempo, até que esse horror
se imponha na vida dessas pessoas, e apareçam ali sintomas muito diversos
ligados aos episódios de extrema crueldade a que foram submetidas quando
se achavam na máxima indefensabilidade, já que “…a falta de provisão de
ternura e outros afetos concomitantes não é uma mera insuficiência ou déficit,
mas opera, entretanto, como um grave agente desestruturante e gerador de
patologia tanto física quanto psíquica” (Argentina, 1996, p.6).
Nesse sentido, o discurso que enquadra as leituras a respeito dos sin-
tomas que escutamos nos obriga a pôr em contexto o que emerge da verdade
enunciada pelo sujeito que fala, já que eludir o significado dessas verdades
subjetivas no texto social em que se inscrevem pode desorientar-nos e virar
nosso olhar para uma espécie de sustentação do pior, da calamidade, à qual,
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Políticas reparatórias e reconceituação...
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Expediente por tramitação de lesões apresentado perante a Secretaria de Direitos humanos da
Nação. Os expedientes das leis de reparação econômica não são de uso público, mas perten-
cem à esfera privada do beneficiário, motivo pelo qual não é possível oferecer mais informação
a esse respeito.
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Políticas reparatórias e reconceituação...
REFERÊNCIAS
Recebido em 30/08/2012
Aceito em 22/12/2012
Revisado por Sandra D. Torossian
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 210-215, jul. 2011/jun. 2012
ENTREVISTA
RUKECPıNKUG"G"UGWU"NKVQTCKU
Se Freud duvidava de que a psicanálise pudesse ser transmitida dentro das uni-
versidades, ao longo do tempo constatamos que a dúvida dele não se transformou
em certeza. Há muitos anos, são muitos os psicanalistas que constroem novas
fronteiras para que a psicanálise esteja dentro da academia, com isso avançando
em diversos pontos importantes da psicanálise e não se furtando a se posicionar,
quando preciso, ao dialogar com outros campos de saber.
Neste número, propomos uma série de questões, que versam sobre a construção
dessas fronteiras, para a psicanalista Maria Cristina Machado Kupfer, a qual,
com uma trajetória muito singular, conseguiu levar adiante o desafio de colocar a
psicanálise em diversos campos. Ela é professora titular do Departamento de Psi-
cologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de
Psicologia da USP, editora da revista Estilos da Clínica, do mesmo instituto, editada
conjuntamente com o LEPSI (Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas
e Educacionais sobre a Infância) e em colaboração com a Associação Lugar de
Vida, da qual é diretora e uma de suas fundadoras.
Em 1990, participa da fundação do Lugar de Vida, um serviço do Departamento de
Psicologia da USP voltado ao tratamento e acompanhamento escolar de crianças
e adolescentes com problemas psíquicos. O tratamento é realizado por meio de
atendimento psicanalítico individual e em grupo, em ateliês de escrita, música,
contação de histórias, culinária, jogos e brincadeiras. Para além dos tratamentos, é
um centro de referência e formação de profissionais, pesquisadores e estudantes da
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Psicanálise e seus litorais
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Psicanálise e seus litorais
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Psicanálise e seus litorais
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 216-235, jul. 2011/jun. 2012
RUKECPıNKUG"G"KFGQNQIKC
RECORDAR
REPETIR
ELABORAR
Abrão Slavutzky
Ernildo Stein
Helio Pellegrino
Era início dos anos 80 no Brasil. Éramos seis estudantes de psicologia: Ademar
Becker, Analice Palombini, Dóris Blessmann, Edson Sousa, Kátia Frizzo, Paulo
Slomp. Celular, internet, computador não tinham dado as caras ainda. Escrevíamos
em máquinas datilográficas e ligávamos de telefones públicos para convidar os
palestrantes do simpósio que organizaríamos em outubro de 1981 e que nomeamos
como I Simpósio Alternativas no Espaço Psi.
Unia-nos a vontade de discutir os temas a que éramos confrontados em nossa
graduação de psicologia, e a necessidade de engajamento na vida política em
nosso país. Eram tempos, ainda, de luta contra a ditadura. Com efeito, um dos
pontos altos desse evento foi a mesa-redonda intitulada Psicanálise e Ideologia,
da qual participaram Abrão Slavutzky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino. Os três
palestrantes procuraram mostrar o quanto a prática psicanalítica não pode dar as
costas ao seu tempo, sob pena de perder o essencial dos princípios que animam
sua ética. Essa mesa-redonda talvez tenha sido a primeira manifestação de Hélio
Pellegrino, em Porto Alegre, depois de sua expulsão da Sociedade Psicanalítica do
Rio de Janeiro (SPRJ) em 1980, junto com Eduardo Mascarenhas. Foram expulsos
por denunciarem as posições políticas de conivência da SPRJ com a ditadura no
Brasil. No momento em que revisitamos nossa história, sobretudo com o importante
trabalho da Comissão Nacional da Verdade, é comovente acompanhar o relato
de Pellegrino sobre sua prisão pela ditadura e as denúncias contra Amilcar Lobo,
médico aceito como candidato na SPRJ, mesmo com provas evidentes de que
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tomara parte em atos de tortura no DOI-CODI do Rio de Janeiro. Lobo tinha como
analista-didata Leão Cabernite, na época, presidente da SPRJ.
Este texto foi publicado naquele momento, em forma de livro, numa
edição quase “caseira”, mas que foi, sem dúvida, uma fonte importante nos
debates que se seguiram desde então. Disponibilizá-lo novamente, neste nú-
mero da Revista da APPOA, é uma forma de recolocar em cena esse debate
histórico, evidenciando o compromisso político da psicanálise com seu tempo.
Analice Palombini
Edson Sousa
Eqqtfgpcfqt"fc"Oguc
Cdtçq"Uncxwv|m{
Para mim, esse foi um trabalho importante porque, como passei muito tempo
fora do país, ele me ajudou muito no sentido de entrar em contato com os
pensamentos, e as reflexões psicanalíticas aqui no Brasil. Os artigos que sele-
cionei são os relacionados justamente com o problema da guerra, conflitos de
gerações, a responsabilidade social do psicanalista, psicanálise e sociedade,
enfim, toda uma série de temas nos quais se veem, nítida e concretamente,
os efeitos ideológicos sobre o pensamento psicanalítico.
A Revista Brasileira de Psicanálise teve seu primeiro número em 1928,
quando ainda não estava constituída a Associação Brasileira de Psicanálise. A
título de curiosidade: esse número foi enviado a Sigmund Freud, que respondeu
em uma carta dizendo que ficava muito contente de receber a revista e que ia
comprar um dicionário Português-Alemão para lê-la. Depois de 1928, passam
quarenta anos sem ser editada uma revista da Brasileira de Psicanálise. Em
1967, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo começa a editar uma
Revista Psicanalítica, que depois é incorporada e oficializada como a Revista
Brasileira de Psicanálise, da Associação Brasileira de Psicanálise.
Um dos temas que esteve muito em voga há alguns anos atrás – 68,
69 – foi o problema da guerra e da violência. Então leio o pensamento de um
artigo, a mensagem de Roda-Viva da Dr.ª Virgínia Bicudo, publicado em 1968
sobre a guerra e a violência: “A habilidade desenvolvida para a produção de
armamento bélico, expressão do instinto de morte, suficientemente poderoso
para ameaçar a sobrevivência de toda a humanidade, é fator para desenvolver
um estado universal e contínuo de angústia e insegurança”.
Vamos então refletir: a guerra, naquele momento, a grande guerra de
68, vocês recordam ou pelo menos os de mais idade recordam – os mais
novos talvez não lembrem os detalhes do jornal – a grande guerra daquele
momento, manchete nos jornais, era a guerra do Vietnã. Essa guerra é a ex-
pressão do instinto de morte do ser humano? Aqui se coloca, primeiro, uma
questão complexa do instinto de morte, de thánatos; existem psicanalistas
que questionam esse conceito, até que ponto ele é válido. Eu o aceito. Acho
que é um conceito que realmente tem o seu valor científico, mas não vamos
entrar na discussão teórica intrínseca da pulsão de morte versus pulsão de
vida, que Freud, em Mais além do princípio do prazer, aprofunda e analisa,
esse confronto pulsional. O problema é usar esse conceito para explicar o
problema da guerra, o que, se levado ao absurdo, poderia ser pensado assim:
“naquela época os americanos e os vietnamitas, devido a uma pulsão de morte
incrementada, devido a um alto grau de destrutividade, estavam matando-se
uns aos outros”. Quando, na verdade, o que acontecia, sem entrar em profun-
das análises, era uma invasão imperialista no Vietnã, com 500 mil soldados
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de dois, três anos. Freud tem uma passagem em que fala dessa questão, dois
adultos dando dinheiro como presente e as fezes como o primeiro presente
que a criança dá, porque o presentear é valorizado pelos adultos. Daí, então, a
questão do presente relacionado com as fezes, por um lado, e com o dinheiro,
por outro. Portanto, passar a explicar toda a problemática do dinheiro com base
na analidade é um brutal reducionismo, que incorre em dois erros: primeiro, num
erro científico dentro da teoria psicanalítica, ao não levar em consideração que
o dinheiro é um valor introduzido desde o meio externo ao aparelho psíquico
da criança; segundo, o de não saber quais são os significados do dinheiro do
ponto de vista econômico numa sociedade capitalista e de como se produziu
o dinheiro, como ele circula, a história, et cétera.
“A humanidade está, em termos econômicos, fixada em uma etapa
de identificação entre as etapas oral e anal que corresponde a uma fase de
transição entre as posições esquizoparanóide e depressiva. Cito como fato
sintomático da não-integração econômica a divisão da humanidade em dois
campos de forças antagônicos, capitalismo e socialismo, indicativos de núcleos
esquizoparanóides econômicos sociais”. Essa citação é do Dr. Vitor Manuel de
Andrade, “Psicanálise e Economia Política”, p. 341, vol. VI, nº 53 e 4, publicado
em 1972. Os risos de vocês dispensam comentários. Fico pensando: como
que então o capitalismo e o socialismo para se entender devem-se deprimir
e chegar a uma outra fase...
Há outro ponto que considero importante e que foi tema do debate
promovido pelo Coojornal, na Assembleia Legislativa, referente à realidade
social e à psicanálise. A doutora Virgínia Bicudo, em seu trabalho “A incidência
da realidade social no trabalho analítico”, faz uma afirmação absolutamente
correta: “A realidade social constitui parte integrante da personalidade”. Segue
depois, dizendo que “a ideologia total é um dado que permeia toda a realidade
social e, portanto, indissociável, da qual o cientista não pode subtrair-se, mas
da qual se protege, utilizando-se do método científico, e assim diminuindo a
área de influência da ideologia”. Cita Mannheim, afirmando que “a ideologia está
presente sempre”, mas imediatamente um spliting que o possibilite separar-se
de sua realidade social, da qual depois, no mesmo trabalho, faz a seguinte
colocação: “o analista deve utilizar-se de compartilhar em outros papéis que
não o de psicanálise, e que inclua seus preconceitos, suas idiossincrasias e
preferências, suas ideologias religiosas, raciais, políticas e pseudocientíficas”.
Refletindo sobre essa questão, é certo que, no trabalho analítico, é indispensá-
vel que o analista não doutrine, ou convença, ou se envolva emocionalmente
com os seus pacientes, deixando de lado a regra fundamental para o analista,
que é a atenção flutuante. O problema é que todo o analista, todos nós que
estamos aqui, todas as pessoas têm uma ideologia. A ideologia não é algo de
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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino
que se possa dizer “eu não tenho”, a ideologia faz parte dos nossos costumes,
dos nossos hábitos, das nossas reflexões, da nossa inserção social. Desde
pequenos, desde a própria formação da estrutura de nossa personalidade,
fomos adquirindo uma série de aspectos ideológicos, transmitidos por nossos
pais dentro de todo um contexto social. O Dr. Horsteins escreve no livro Teoria
das ideologias e psicanálise o seguinte: “Continuamente apelamos a um código
que é a interiorização inconsciente da ideologia de uma sociedade, de uma
classe”. O analista tem, portanto, uma representação do mundo que acompanha
todas as suas atitudes e governa suas condutas; lida, então, através e pela
ideologia. O ideólogo não pode ser definido de forma negativa como obstáculo
constante. A neutralidade valorativa espontânea, que tenta eliminar o ideoló-
gico, está viciada por ter uma concepção pré-teórica das condições em que
se desenvolve a prática psicanalítica. A neutralidade é parcialmente possível,
na medida em que o analista conheça ao máximo a estrutura ideológica que
o sujeita, determina e aprisiona. O que quero dizer com isso é que o analista
que afirma “eu não tenho ideologia” comete um erro. Erro porque não tem
consciência, não tem insight suficiente, não tem conhecimento suficiente de
que tem uma ideologia, e dizer “eu não tenho” é uma manifestação típica da
existência de ideologia no analista. Isso é perigoso, porque então pode passar
através das interpretações e do trabalho clínico a um trabalho educativo, a um
trabalho de reeducação que seria a antipsicanálise. Por exemplo, analisar e
interpretar as atividades políticas exclusivamente como problemas neuróticos
é partir do ponto de vista de que a sociedade, assim como está, está bem. Não
deve ser questionada, não deve ser modificada. Isso não quer dizer que na
atividade política não exista o problema neurótico – todos nós sabemos que
existe –, mas daí a tomar essa atividade questionadora dos valores sociais
vigentes apenas pelo seu aspecto neurótico é cair num reducionismo, é também
partir do pressuposto de que a sociedade nunca muda e vai ficar sempre igual.
Assim, quem a questiona está se rebelando exclusivamente por um problema
conflitivo e neurótico. Essa é uma manifestação típica da ideologia dominante
para manter o status quo.
Poderíamos expor mais algumas coisas a esse respeito, mas acredito
que foi visto até aqui o suficiente para dar uma pequena idéia da produção
científica publicada na Revista Brasileira de Psicanálise, que não deve ser
confundida com a psicanálise brasileira na sua totalidade nem com a totalidade
dos psicanalistas brasileiros.
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Psicanálise e ideologia
Gtpknfq"Uvgkp
O que vou dizer aqui vocês podem deduzir que nasceu de um diuturno
trabalho sobre questões antes de tudo epistemológicas.
Em primeiro lugar, o que me motivou fundalmente a discutir a questão
da psicanálise e ideologia nasce de três tendências básicas que eu gostaria
que se tornassem aqui coletivas e conscientes. Vivemos numa época marcada
por aqueles que a olham criticamente, por aqueles que tomam distância, por
aqueles que se retiram, digamos, de um tipo de reflexão individualista, criticam
a própria filosofia, como sendo uma espécie de ideologia da etnia branca,
portanto, marcada por aqueles que, num mundo subdesenvolvido, percebem
que não é mais possível simplesmente recebermos, sem crítica, instituições,
quer sejam elas científicas, quer sejam elas terapêuticas.
Os três elementos que nos levam a isso nestes dias de debate são:
primeiro, a vontade de dissidência, vontade esta que se volta contra todo o
institucionalizado, contra tudo aquilo que é ritualizado, inercial. A vontade de
dissidência leva à dissidência da dissidência, à dissidência da dissidência da
dissidência, conduzindo perigosamente a grupúsculos que, de uma postura
crítica, passam a uma hipercrítica e, num regresso ao infinito, multiplicam-se,
castrando toda a produtividade.
Segundo, além da vontade de dissidência, o elemento que se apresenta
como comum à vontade de crítica é o que eu chamaria de ausência de media-
ções. Nós certamente estamos cansados de trambolhos postos no caminho
da comunicação entre indivíduos e grupos. Essa ausência de mediações
certamente é uma aspiração essencial, mas nós sabemos que, como seres
humanos, a liquidação de todas as mediações nos reconverteria em selvagens.
A conquista de mediações, de regras de civilidade, impede a produção de
angústia quando dois seres aproximam-se. Assim, eles sabem, por exemplo,
que há regras de jogo, que há formas de comportamento, que há signos que
podem ser interpretados para percebermos a subjetividade daquele que de nós
se aproxima. Portanto, essa aspiração a eliminar mediações entre nós, ainda
que fundamentalmente positiva, pode também converter-se numa espécie de
contiguidade acrítica; contiguidade que certamente representaria a possível
destruição das subjetividades que entram em contato.
O terceiro elemento, que também comanda o nosso comportamento
crítico de busca de alternativa, manifestação de protesto, é a busca do que
eu chamaria do simples. Queremos cada vez mais – talvez exatamente pela
reunião em dissidências, pela eliminação das mediações – encontrar aquilo que
é simples, aquilo que suprime todos os rituais da era tecnológica. Mas, essa
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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino
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Psicanálise e ideologia
entre si como indivíduos e como grupos; mas não foi suficientemente pensado
o quanto a crítica ideológica recebeu de auxílio dos insights psicanalíticos
fundamentais.
A psicanálise dá-nos aquele elemento fundamental, que é o de que nós
não vivemos no pleno meio-dia da consciência, de que existem processos
determinantes que não podemos elevar superficial e rapidamente ao nível de
uma racionalidade. Isso a psicanálise nos ensinou, e isso deve funcionar como
um instrumento de crítica das ideologias.
Tem-se, portanto, não apenas a crítica da psicanálise, enquanto ela
guarda dentro de si elementos ideológicos, mas a psicanálise é uma arma
anti-ideológica, arma no processo de desmistificação. Sob esse ponto de vista,
a ideia de autorreflexão que Freud desenvolveu, nas suas intuições primeiras,
na psicanálise são essenciais.
Mas o importante é que o processo ideológico não é um processo
que acontece através da hegemonia da consciência. É um processo no qual
entram, claramente a expressão, elementos latentes, elementos que não po-
demos discernir através de um simples esforço da nossa razão. Isso aponta,
evidentemente, para um elemento mais geral e mais fundamental, com o qual
eu finalizo esta exposição, que é o elemento da práxis.
Pensávamos, no mundo ocidental, que a teoria resolvia tudo, que os pro-
cessos de vida humana propriamente, os processos intersubjetivos, materiais,
do encontro dos corpos, de toques, dos desejos, do uso de instrumentos, do
exercício de trabalho, do trabalho vivo, tudo isso era uma questão de eluci-
dação teórica para depois tudo funcionar. Na verdade, isso só vai se resolver
através dos processos de práxis.
Não podemos simplesmente pensar que iremos resolver essas questões
que as ciências às vezes põem como resolvíveis ao nível puramente teórico.
Elas se resolvem ao nível da práxis, em que o elemento inconsciente, o ele-
mento não predicável diretamente, que condiciona por vezes todo o nosso
discurso, é um elemento privilegiado e, muitas vezes, até hegemônico. Sem
querer reduzir o problema da práxis a apenas isso, considero importante
chamar atenção ao fato de que não é possível crer hoje em dia que a crítica
da ideologia possa pensar a realidade puramente ao nível teórico, ao nível
de uma espécie de solipsismo da razão. O processo de desideologização
tem que funcionar ao nível da práxis, ao nível da totalidade humana em seu
comportamento concreto. Sob esse ponto de vista, penso que a psicanálise
pode dar uma contribuição muito importante.
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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino
Jgnkq"Rgnngitkpq
Nada como ser filósofo para ter essa clareza de pensamento, essa ele-
gância na exposição e essa profundidade nas coisas que são ditas. De início
quero pedir-lhes desculpas porque vou dizer algumas coisas que repetirei
amanhã, e isso evidentemente é um pecado contra a originalidade. De qualquer
forma, consolo-me com Napoleão Bonaparte, quando diz que “a repetição é a
mais eficaz das armas de retórica”.
Isto posto, vamos começar a pensar, tomando como modelo uma socie-
dade de classes, isto é, uma sociedade em que haja opressores e oprimidos,
exploradores e explorados, privilegiados e despossuídos. Seria o caso, por
exemplo, da atual sociedade brasileira. O que acontece, do ponto de vista da
produção de ideologias, numa sociedade dessa ordem? Acontece o seguinte:
as classes, nessa sociedade, produzem ideologias diferentes; elas criam, de si
próprias, uma representação imaginária inconsciente, que tem de ser diferente
segundo a produção ideológica parta da classe dominante, isto é, da burguesia,
ou segundo a representação ideológica venha da classe dominada, no caso
a classe trabalhadora, ou a classe dos despossuídos.
Isso é muito fácil de compreender, pois numa sociedade de classes
– suponhamos a sociedade brasileira em que há um desnível monstruoso
entre a minoria privilegiada e o imenso mar do povo que não tem nada –, o
fundamento infraestrutural é a injustiça, algo que, se fica claro e público, deixa
mal e culpados os exploradores, perante os explorados, ou os despossuídos.
Então, todo o esforço ideológico, a produção ideológica da classe dominante é
no sentido de encobrir a injustiça infraestrutual da qual ela parte. Vamos tomar
um exemplo também brasileiro, o anticomunismo. O anticomunismo irracional,
paranoico, não crítico, é uma peça ideológica ainda muito importante no nosso
quadro político. Ele é, inclusive, o centro da Doutrina de Segurança Nacional.
O que acontece com o anticomunismo? Qual a sua função ideológica, e por
que o anticomunismo, no Brasil, é uma ideologia? Porque a realidade brasileira
implica, necessariamente, uma violência de classe muito grande. Para que
se mantenha a situação social brasileira, para que os despossuídos sejam
tão despossuídos e tão explorados quanto o são, é necessário uma violência
de classe muito bruta. Essa violência de classe não se pode legitimar, com
facilidade, isto é: ninguém pode cometer uma violência de classe como violên-
cia de classe; ninguém pode perpetrá-la em nome da exploração do homem
pelo homem; ninguém pode dar vivas à mortalidade infantil; não há cinismo
que consiga hastear, impunemente semelhante bandeira. Então, para que se
busque justificar a exploração de classe, tal como ocorre no Brasil, é preciso
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Psicanálise e ideologia
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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino
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Abrão Slavutsky, Ernildo Stein e Hélio Pellegrino
Mas, então, por onde entra a política? A política entra através do preço
que cobro. Há uma unanimidade entre os psicanalistas, no sentido de que
não pode haver análise sem pagamento. Ninguém entra no consultório de um
psicanalista sem pagar. Acontece que o pagamento é uma determinação do
mercado. Não sou eu que determino o que é que vou cobrar. Posso interferir
escassa e limitadamente, mas é o mercado que impõe sua lei. Não posso cobrar
de um paciente que vai no meu consultório trezentos mil cruzeiros por hora. Se
o fizesse estaria insano, e o sujeito que resolvesse pagar essa quantia se-lo-ia
duplamente. O paciente me paga o que o mercado me permite cobrar dele.
O mercado, portanto, entra no meu consultório como um elemento constitu-
tivo do meu chão de trabalho. Não posso negar isto. As leis do mercado não
pertencem à nosologia psicanalítica; entretanto, teço o chão do meu trabalho
levando-as em conta, e cobrando de acordo com o que elas estabelecem.
Dessa forma, faço política, porque as leis do mercado são fundamentos da
realidade política. O que ganho no meu consultório, por outro lado, vai definir
meu perfil de classe. O que ganho no meu consultório vai definir minha relação
com a distribuição de renda. Isso não é psicanálise: é política.
Depois que o tratamento começa, tendo eu combinado suas condições
– pagamento inclusive –, ocorre uma coisa curiosa. Uma vez iniciado o trata-
mento psicanalítico, tudo o que nele se passa sofre uma transubstanciação
alquímica: tudo, sem exceção, passará a ser significante das linhas de força do
campo de desejo que ali se criou. O setting analítico é justamente um artifício
pelo qual eu crio um campo desejante para o paciente. Tudo o que ele disser
vai ser tomado por mim como significante das linhas de força desse campo
desejante. Aí sim, se um paciente traz o tema do pagamento na análise, e
se a análise transcorre e decorre, vou tentar interpretar esse tema de acordo
com a única política que faço no consultório: a política do desejo do paciente.
Eventualmente, o dinheiro pode significar fezes, e o tema pode apontar para
as fantasias anais do paciente. O jogo, no consultório, é realmente muito es-
tranho e frequentemente irritante, porque tudo o que acontece é sempre uma
outra coisa. Na vida cotidiana, a gente faz força para não tomar gato por lebre:
essa é uma regra fundamental. No consultório do analista, a regra é o oposto:
a gente toma, sempre, gato por lebre. Se o paciente fala gato, pensa-se em
lebre, e se o paciente fala em lebre, a gente pensa em girafa, e quando ele
fala em girafa pensa-se em leão.
E a gente vai, através desse deslizamento do significante, tentar saber
qual é o desejo que está querendo manifestar-se. Mas é preciso ser muito cui-
dadoso e muito estrito. Não se pode generalizar esse modelo, da mesma forma
que um ginecologista não pode generalizar o modelo ginecológico. Dentro do
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Psicanálise e ideologia
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 236-248, jul. 2011/jun. 2012
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Sonia Luzia Dalpiaz2
1
Texto elaborado a partir da dissertação de mestrado da autora: Dalpiaz, S.L. Sobre o “fazer clí-
nico” diante dos distúrbios de linguagem: o tempo e as condições para a enunciação. Dissertação
(Mestrado em Teorias do Texto e do Discurso). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
2
Fonoaudióloga; Mestre em Teorias do Texto e do Discurso pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Sócia-Fundadora e Fonoaudióloga da
Clínica Palavra Viva. E-mail: soniadalpiaz@hotmail.com
3
Essa expressão, utilizada ao longo deste trabalho, deve ser compreendida na mesma pers-
pectiva presente em Cardoso (2011): trata-se da clínica que acredita na indissociabilidade
entre a linguagem e o sujeito que a enuncia, e entende o distúrbio como manifestação sin-
gular de linguagem que escapa à regra. Falando, ou não, o sujeito se marca na linguagem.
236
Sobre o fazer clínico...
liar para que se constitua um espaço possível para o sujeito com distúrbios
de linguagem enunciar? Que fatores estão aí implicados? O que conduz um
processo terapêutico? Como se relacionam o terapeuta e seu paciente diante
das dificuldades que o trazem para o atendimento? Como se constitui o es-
paço da terapia, quais os lugares ocupados por essa dupla na cena clínica4?
Procuro, aqui, ancorar teoricamente minha reflexão para tentar responder
a essas indagações. Busco, para isso, a inspiração no pensamento elaborado
pelo linguista Émile Benveniste5 sobre o que implica o ato de enunciar6. Tenho
como objetivo instituir uma reflexão sobre o fazer clínico diante dos distúrbios
de linguagem no campo da fonoaudiologia, norteada pela preocupação em
eleger quais seriam as condições para a enunciação e pela questão sobre
como é construída a relação entre o terapeuta e seu paciente na clínica dos
distúrbios de linguagem. Guiada por questões advindas de minha prática clí-
nica, busco, em especial nos estudos enunciativos de Benveniste, as noções
teóricas para refleti-las e, ao final dos devidos cruzamentos, esboçar uma
concepção sobre como contemplar as condições para que a enunciação se
faça presente e possível.
Realizo, no presente texto, três movimentos: o primeiro deles tenta
refletir sobre a pertinência da proposta aqui desenvolvida no campo da litera-
tura fonoaudiológica. Embora de forma breve, visito textos que circulam entre
estudantes e profissionais desse campo, para tentar identificar a presença
dos questionamentos que me mobilizam. Em especial, tento ver como são
pensados os lugares que ocupam, desde as concepções teóricas definidas, o
terapeuta e o paciente na relação clínica, procedimento, esse, decorrente de
minha certeza de que o clínico da linguagem, independente do escopo teórico
de sua atuação, precisa situar a si e ao outro na cena clínica, para mim condição
sine qua non da clínica no campo fonoaudiológico. Entendo, nesse processo,
4
Uso o termo ao longo deste trabalho para me referir ao espaço físico, diálogos e situações que
ocorrem durante uma sessão de fonoaudiologia.
5
Linguista sírio, naturalizado francês. Émile Benveniste se situa entre o grupo de autores fundado-
res do campo da enunciação, junto com Charles Bally e Mickail Bakhtin. A característica que une
esse grupo de pensadores se situa no fato de que todos refletiram sobre a enunciação, mesmo
que não se tenham dedicado a construir um modelo de análise da linguagem. Suas construções
e reflexões sobre o tema da subjetividade, intersubjetividade, referência, e outros, influenciaram
definitivamente o cenário da linguística francesa, assim como em outros campos, tais como a
filosofia e a psicanálise (Flores, et.al., 2009)
6
Vale lembrar que o autor não se preocupou especificamente com a clínica dos distúrbios de
linguagem; entretanto, posso constatar que leituras e releituras de suas formulações permitem
deslocamentos de grande valor para pensarmos sobre essa temática.
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Sonia Luiza Dalpiaz
que não há lugar constituído para essa reflexão nos textos analisados, pelo
menos na forma como me proponho a realizar.
O segundo movimento busca a aproximação ao pensamento de Benve-
niste sobre o ato de enunciar. Embora tenha a consciência de que Benveniste
não tenha se dedicado, em seus estudos, a pensar sobre os distúrbios de
linguagem, compreendo que muitas das noções por ele desenvolvidas podem
auxiliar na construção da concepção que aqui desenvolvo. Destaco, de parte
de sua obra, temas como singularidade, (inter)subjetividade, espaço e, em
especial, o tempo.
Finalmente, como terceiro movimento nesse texto, desenvolvo o que
pude compreender sobre quais seriam as condições para a construção de uma
relação entre o fonoaudiólogo e seu paciente e para tornar o ato de enunciar
possível. Não se trata de uma concepção conclusiva, terminada: falo, aqui,
de movimento na direção de, ou seja, conserva o caráter de mudança, em
constante construção, que me acompanha, desde sempre. Entre os aspectos
que coloco em questão, estão o lugar que ocupa o terapeuta na relação (para
mim um lugar constituído por atravessamentos); a constituição do espaço de
escuta e suposição na direção do outro; a imprevisibilidade como constituinte
da enunciação; o tempo do sujeito, único e singular.
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7
A fonte dessa leitura são textos identificados por Cardoso (2002) como sendo aqueles de gran-
de circulação no meio acadêmico, visitados por leitores que se encontram em formação. Deles,
destaco: Mota (2001), Zorzi (1999), Jakubovicz e Meinberg (1992) e Yavas, Hernandorena e
Lamprecht (1991).
8
Os pontos que destaco, da referida literatura, podem ser consultados na dissertação que ori-
ginou o presente texto.
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Sobre o fazer clínico...
9
Como destaque, refiro os trabalhos produzidos por fonoaudiólogos no campo da enunciação, em
especial os desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa em Enunciação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, coordenado pelo professor Valdir do Nascimento Flores, junto ao Programa
de Pós-Graduação em Letras: Surreaux (2006), Cardoso (2011) e Oliveira (2011)
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Sonia Luiza Dalpiaz
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c"gpwpekcèçq"g"c"enîpkec"fqu"fkuvûtdkqu"fg"nkpiwcigo
240
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Sobre o fazer clínico...
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Referência, em Benveniste, é a “significação singular e irrepetível da língua cuja interpretação
realiza-se a cada instância de discurso contendo um locutor” (Flores et. al., 2009, p. 197)
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Sobre o fazer clínico...
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11
Na dissertação que deu origem a este texto, os referidos deslocamentos estão descritos no
capítulo 3, onde elenco reflexões advindas da prática clínica, retomo recortes de cenas clínicas
e fui me deixando interrogar. Em um movimento de ir e vir entre o que percebia nessa prática e
entre leituras e releituras dos textos selecionados, fui construindo minha concepção.
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apropriar de seu dizer. Para mim, como dito ao longo de todo este trabalho,
trata-se de uma construção em via de mão dupla, em que cada um, desde sua
singularidade, enuncia e, enunciando, se faz sujeito na relação.
Como terceiro apoio do tripé que sustenta minha concepção está a
questão do tempo na clínica dos distúrbios de linguagem. Trata-se daquele
tempo que não pode ser medido e quantificado. Trata-se dos tempos dos
sujeitos implicados na clínica: únicos, singulares, que variam de sujeito para
sujeito. Tão inscrito, marcado e marcante em cada instante da relação que ali
se estabelece, que, para mim, tem o status de operador: operador do fazer
clínico, pois faz funcionar a cena clínica, ele se atravessa, constitui e significa.
Comparece em todas as instâncias com as quais lidamos durante os proces-
sos junto aos pacientes: tempo para que o paciente formule a demanda de
tratamento, tempo de avaliação, tempo de tratamento, tempo de construção
da relação, tempo de enunciar, tempo de despedida...
Semelhante ao atravessamento que a questão do sujeito e sua singula-
ridade, desde a psicanálise, vem produzindo efeitos em minha prática, é nesse
campo que inicio um percurso para compreender a questão do tempo, que aqui
se apresenta. Para a psicanalista Sylvie Le Poulichet, a pergunta sobre o que
é o tempo gera, para seu campo, um não-saber fundamental; a resposta final é
inapreensível, e o efeito disso é a singularidade de cada experiência analítica,
ou seja, não há uma progressão linear dentro de um tempo lógico. No trabalho
analítico, a autora distingue as dimensões entre o tempo instaurador e o tempo
de duração. O tempo de duração (número de sessões, duração da análise)
não garante por si só a existência de uma experiência analítica; é necessário
que seja aberto, como refere a autora, um tempo instaurador de passagens.
Esse tempo não pode ser pensado em termos de duração, ele é, antes de
tudo, “um ritmo que dá lugar a um conjunto de laços e passagens” (1996, p. 8)
Em minha perspectiva, o processo por que passa cada paciente em
terapia é singular e, na medida em que se desenvolve, essa construção passa
a fazer parte de sua história. Os resultados desse trabalho são, assim, “conse-
quência”, fruto do trabalho de dois sujeitos, responsáveis tanto pelo resgate
de suas histórias individuais, como por colocá-las como pano de fundo para
a criação de uma continuidade, juntos, construindo um caminho em direção
ao futuro. Cabe, aqui, percebermos que, no momento em que se admite um
cruzamento de histórias, ambas se modificam: o que ali acontece marca para
sempre a trajetória de cada um dos sujeitos implicados. Aqui e agora, desde
o antes e para o depois.
O tempo é constitutivo do sujeito. Singular, individual, está tão imbricado
em tudo que se faz, que pode parecer banal falar sobre ele. A obviedade de
sua presença afasta-o de nossa consciência, mas, paradoxalmente, está ali,
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REFERÊNCIAS
Recebido em 02/12/2012
Aceito em 08/03/2013
Revisado por Marisa T. Garcia de Oliveira
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 249-255, jul. 2011/jun. 2012
VARIAÇÕES
Q"UWRGTGIQ"FC"ETKCPÑC
G"C"ETWGNFCFG"PC"GUEQNC3
Alba Flesler2
1
Texto publicado em Imago Agenda. Número: 161, julho, 2012. Letra Viva, Buenos Aires.
2
Psicanalista; Membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires (Argentina); Supervisora da
Àpres-coup Psychoanalitic Association of the New York (USA). É autora de El niño en análisis y
las intervenciones del analista (Editorial Paidós, 2011); Coautora dos livros Los discursos y La
cura e de poetas, niños y criminales: a propósito de Jean Genet. E-mail: albaflesler@sion.com
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Alba Flesler
Os fatos nem sempre indicam isso. Elas não se parecem ao “pálido de-
linquente” nietzschiano. São muito mais próximas à atitude do pequeno Sergei,
conhecido como Homem dos Lobos, que quando era criança tinha como objeto
de crueldade pequenos insetos, pegando moscas para arrancar-lhes as asas
e pisoteando escaravelhos, quando realizava suas “atividades plenamente
sádicas de signo positivo” enquanto fantasiava com “crianças como objeto de
maus-tratos” (Freud, [1914] 1985).
É verdade que fantasiar não é o mesmo que fazer, como dizia Hans, em
outro dos casos clínicos freudianos, assim como também é verdade que sua
tentação pulsional cedeu ao influxo posterior da severidade do superego. No
entanto, é notável descobrir o sujeito mortificado entre a pressão dos gozos
pulsionais e os mandatos de um superego sádico e cruel. Entre um e outro,
Sergei se debatia, aprisionado sem saída, sem lei reguladora para orientar os
gozos no caminho do seu desejo.
Por que essa lógica se repete?
Q"dwnn{kpi<"cniq"swg"pçq"vgo"pqog"
Diz-se que não se entende, que a atitude parece não seguir padrões
de comportamento nem revelar pautas fixas, e que é motor de situações que
têm levado algumas crianças ao assassinato ou ao suicídio. As sombras da
morte parecem sobrevoar ameaçantes sobre o âmbito escolar e espaços
circundantes, com variações de agressão que oscilam entre amostras de
indiferença abismal e provocações humilhantes, entre zombarias e insultos,
entre o silêncio e as mensagens humilhantes, entre pancadas e empurrões.
É mencionado, descritivamente, que a criança tomada por objeto desse
assédio pode ser gorda ou magra, alta ou baixa, calada ou extrovertida, nova
na aula ou veterana; seus atributos não são causa suficiente para compreender
qual é o ensejo inicial que desencadeia a tragédia. O que se sabe é que as vias
se fecham, que para as crianças é difícil contar o quanto sofrem, que na maioria
das vezes se calam, que tentam deixar de ir à escola, que somente encontram
saída em uma passagem ao ato fatal. Parafraseando Ulloa (1995), a armadilha
cumpre seu propósito, a cena deixa de ser cômica, a tensão dramática detém
seu curso e a tragédia ganha o cenário escolar, com uma ferocidade que não
tem nome.
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251
Alba Flesler
Q"uwrgtgiq"g"q"kfgcn"pqu"vgorqu"fq"uwlgkvq
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Q"swg"hc|gt"rctc"hcxqtgeg/nc."pc"pquuc"cvwcnkfcfgA"
A agressão aos outros sempre existiu nas crianças dessa faixa etária, e a
segregação está na base de todo agrupamento. Seus ecos sempre ressoaram
em todas as crianças que começam a transitar nesse momento da vida, no
qual os grupos de pertencimento são o resguardo para ir além da sua família.
Por isso, encontrá-los é tão importante, e o sofrimento, imenso, quando se
enfrenta a exclusão. Muitas crianças emudecem quando se acumulam os go-
zos, e o sujeito não encontra resposta. Faltam as palavras, frequentemente há
Verbluffung, sideração, porque o destino desse momento da vida depende dos
recursos simbólicos recebidos do Outro real para abrigar o diferente. A falha
se evidencia tanto para a criança que agride quanto para a que é assediada.
A primazia das pulsões e dos fundamentalismos superegoicos é o
efeito da progressiva falha da operação nominante do pai e o concomitante
desfalecimento de sua função de autoridade. Assistimos a uma versão do pai
desautorizado. Ele não se autoriza e também não o faz o discurso social, ao
confundir a lei com a censura, a autoridade com o autoritarismo, e toda re-
pressão como improcedente restrição da liberdade do sujeito. Quando nada é
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Alba Flesler
REFERÊNCIAS
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O superego da criança...
Recebido em 06/11/2012
Aceito em 25/11/2012
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis
255
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 41-42, p. 256-265, jul. 2011/jun. 2012
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VARIAÇÕES OGTECFQ"PWO"OWPFQ"
UGO"XCNQTGU<"fkânqiqu"
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Paulo Endo2
[...] a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela
transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais,
os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais.
Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um
sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto
ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política
enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo,
enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo
que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência
específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma
específica de visibilidade, uma modificação das relações entre for-
mas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas,
mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão.
1
Este artigo foi originalmente publicado na revista on line Trivium, ano IV, edição I, no 1º. Se-
mestre de 2012.
2
Psicanalista; Professor Doutor do Instituto de Psicologia da USP; Pós-Doutorado pelo Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP/CAPES); Coordena o Grupo Psicanálise, Teoria
Política e Psicologia Institucional (Diversitas/USP). É pesquisador do Laboratório de Psicanálise,
Arte e Política (LAPPAP) e do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI-USP) e membro
do GT da ANPPEP, Psicanálise, Política e Cultura. Expert junto ao Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL) e membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e à Vio-
lência Institucional. E-mail: pauloendo@uol.com.br
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Política, cultura e mercado em um mundo...
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Política, cultura e mercado em um mundo...
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Paulo Endo
–, para combinar com o tom da cor das cortinas e das paredes dos castelos,
mansões e coberturas?
Essas considerações, bastante superficiais, sobre um determinado
cenário onde o mercado da arte se move, revela pontos de tangência com
a publicidade que qualquer observador e consumidor comum de arte pode
verificar, embora seja mais invisível aos especialistas, estudiosos da arte e a
muitos artistas que se mantêm nas antípodas de processos como esse.
A observação de Teixeira Coelho sobre o fracasso da arte contemporâ-
nea e seus ideários, assumidos na década de 60, quando grupos de artistas
defendiam o fim dos museus e do mercado da arte, é elucidativa. Cito Teixeira
Coelho:
Porém estou seguro de uma coisa. Não importa muito qual seja a re-
solução que vocês farão recair sobre a questão da análise leiga. Qual-
quer que seja, só pode ter um efeito local. O que é verdadei-ramente
importante é que as possibilidades do próprio desenvol-vimento que,
em si, engendram a Psicanálise não podem ser restringidas por leis
nem regulamentos (Freud, [1926] 1981, p.2953).
3
Não poderemos discutir mais apropriadamente esse aspecto aqui, porém remeto o leitor ao
texto de Jacques Rancière intitulado El inconsciente estético. Buenos Aires: Del Estante, 2006.
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Paulo Endo
4
Remeto o leitor a Endo, P.C. Freud, Jung e o Homem dos lobos: percalços da psicanálise
aplicada. Ágora, v.4, n.1,p.115-129, 2001; onde discuto mais detalhadamente o episódio Freud e
Jung e algumas consequências metapsicológicas dessa dissidência no movimento psicanalítico.
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Política, cultura e mercado em um mundo...
REFERÊNCIAS
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VIDERMAN, S. A construção do espaço analítico.São Paulo: Escuta,1990.
Recebido em 13/10/2012
Aceito em 15/11/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões
265
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
II DIREITOS AUTORAIS
A aprovação dos textos implica a permissão de publicação, sem ônus, nesta
Revista. O autor continuará a deter os direitos autorais para futuras publicações.
IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕES
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cionando o sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de
autores cujo ano do texto é relevante, colocá-lo antes do ano da edição utilizada.
Ex: Freud ([1914] 1981).
As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas, acrescidas
dos seguintes dados, entre parênteses: autor, ano da edição, página.
V REFERÊNCIAS
Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem
alfabética pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:
OBRA NA TOTALIDADE
BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gramática
inconsciente. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-
1958]. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1999.
PARTE DE OBRA
CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al.
O laço conjugal. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24.
CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo.
São Paulo: Comp. das Letras, 1993. p. 21-9.
FREUD, Sigmund. El “Moises” de Miguel Angel [1914]. In: ______. Obras
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ARTIGO DE PERIÓDICO
CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? Cadernos da APPOA, Porto
Alegre, n. 71, p. 12-20, ago. 1999.
HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista da
Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 14, p. 43-53, mar. 1998.
ARTIGO DE JORNAL
CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com
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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
KARAM, Henriete. Sensorialidade e liminaridade em “Ensaio sobre a ce-
gueira”, de J. Saramago. 2003. 179 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária).
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em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff01102003 23.htm>. Acesso em:
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Assinatura da
Revista da APPOA
Conecte-se com os temas e eventos mais atuais em Psicanálise.
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