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Um caso de cura pelo hipnotismo (Freud, 1892-3)

In: FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas: edição standard


brasileira. Volume I – Publicações Pré-Psicanalíticas e Esboços Inéditos (1886-
1899), pág. 155-170.
Este artigo veio à luz quase exatamente na mesma época da “Comunicação
Preliminar” de Breuer e Freud, e serve como uma ligação entre seus escritos
sobre hipnotismo e aqueles que abordam a histeria, assunto pelo qual Freud
começava a se interessar.
Neste artigo Freud traz a público um caso isolado de cura pela sugestão hipnótica
onde foi possível individualizar o mecanismo psíquico básico do distúrbio.
Tratava-se de uma mãe que era incapaz de amamentar seu bebê recém-nascido.

A jovem senhora tinha entre 20 e 30 anos e Freud a conhecia desde a infância.


Sua tranqüilidade dificultava que alguém a considerasse neurótica, daí Freud
classificá-la como uma histérique d’occasion. Vamos ao caso.

Antes, uma observação. O irmão sofreu de uma neurastenia típica do início da


idade adulta que arruinou sua carreira. Ele enfrentara, na puberdade, dificuldades
sexuais próprias da idade; segue-se uma sobrecarga de trabalho, como estudante;
e sofre um ataque de gonorréia e constipação. Esta, com o tempo, é substituída
por uma pressão intracraniana, depressão e incapacidade para o trabalho. Torna-
se mais ensimesmado até se tornar um tormento para a família. Fica aberta,
então, a possibilidade de haver uma disposição hereditária para a neurose.

A paciente estava se preparando para a amamentação de seu primeiro filho mas,


houve pouca produção de leite e surgiam dores quando da amamentação. Logo
vieram a perda de apetite e a insônia. Após 15 dias abandonou a tentativa e
recorreu a uma ama-de-leite. Após isso, os sintomas desapareceram.

Três anos depois nasceu o segundo bebê, e os esforços da mãe para amamentação
eram menos sucedidos ainda. Além de tudo ela passava a vomitar tudo o que
comia. Seus médicos, entre os quais Breuer, só lhe pediram mais um esforço: a
sugestão hipnótica. Foi aí que Freud foi apresentado profissionalmente à
paciente.

Foi feita a hipnose e as sugestões foram no sentido de contestar todos os temores


e os sentimentos em que esses temores se baseavam. Durante cerca de doze horas
os problemas desapareceram. Na segunda hipnose houve mais energia e
confiança, e foi sugerido que a paciente se zangasse com a família por estar com
fome. Ela agiu dessa forma e passou a melhorar significativamente e amamentou
a criança por 8 meses. Depois, teve o terceiro filho e o processo se repetiu, com
sucesso.
É quando Freud começa a se perguntar: qual teria sido o mecanismo psíquico do
distúrbio da paciente que foi removido pela sugestão?

Existem determinadas ideias que têm um afeto de expectativa que lhes está
vinculado. São de dois tipos: ideias de eu fazer isto ou aquilo – o que
denominamos intenções – e ideias de isto ou aquilo me acontecer – são as
expectativas propriamente ditas. O afeto vinculado a tais ideias depende de dois
fatores: primeiro, o grau de importância que o resultado tem para mim;
segundo, o grau de incerteza inerente à expectativa desse resultado. A incerteza
subjetiva, a contra-expectativa, é em si representada por um conjunto de ideias
ao qual darei o nome de “ideias antitéticas aflitivas” (p. 163).
No caso de uma intenção, essas ideias antitéticas se passam assim: “não vou
conseguir executar minha intenção, porque isto ou aquilo é demasiado difícil para
mim, e eu sou incapaz de fazê-lo; sei, também, que algumas outras pessoas
igualmente fracassaram em situação semelhante”.
O outro caso, o da expectativa: a contra-expectativa consiste em enumerar todas
as coisas que talvez possam me acontecer, diferentes das que eu desejo. Mas,
voltando às intenções, como é que uma pessoa, com vida ideativa sadia, lida com
ideias antitéticas que se opõem a uma intenção? Com a autoconfiança da saúde,
ela as reprime e inibe, e na medida do possível, as exclui de suas associações de
pensamentos. E quando há uma neurose presente?

Temos de supor a presença primária de uma tendência à depressão e à


diminuição da autoconfiança, tal como as encontramos muito desenvolvidas e
individualizadas na melancolia. Nas neuroses, pois, uma grande atenção é
dedicada [pelo paciente] às ideias antitéticas que se opõem às intenções (p.
163).
Quando essa intensificação das ideias antitéticas se relaciona com as
“expectativas”, então, o feito se manifesta num quadro mental difusamente
pessimista. Quando a relação é com as “intenções”, ela origina as perturbações
que se agrupam no que se conhece como folie de doute, marcada pela descrença
na capacidade pessoal. Nesse ponto, as duas principais neuroses se comportam de
modo distinto: na neurastenia,
a ideia antitética, patologicamente intensificada, combina-se com a ideia
volitiva num único ato da consciência; ela exerce uma subtração na ideia
volitiva e causa a fraqueza da vontade (p. 164).
Na histeria, o processo difere do anterior,

[em primeiro lugar] em consonância com a tendência à dissociação da


consciência na histeria, a ideia antitética conflitiva, que parece estar inibida, é
afastada da associação com a intenção e continua a existir como ideia
desconectada, muitas vezes inconscientemente para o próprio paciente. [Em
segundo lugar] é extremamente característica da histeria que, quando chega o
momento de se pôr em execução a intenção, a ideia antitética inibida consegue
atualizar-se através da inervação do corpo, com a mesma facilidade com que o
faz, em circunstâncias normais, uma ideia volitiva. A ideia antitética se
estabelece, por assim dizer, como uma “contravontade”, ao passo que o
paciente, surpreso, apercebe-se de que tem uma vontade que é resoluta, porém
impotente. Talvez, conforme já disse, estes dois fatores, no fundo, sejam um só:
pode ser que a ideia antitética apenas seja capaz de se impor porque não inibe a
sua combinação com a intenção, da forma como a intenção é inibida por ela (p.
164).
Ora, segundo Freud, se a mãe fosse neurastênica sua conduta seria a de sentir um
temor consciente da tarefa que lhe competia, teria se preocupado com os vários
acidentes e perigos, e teria amamentado sem dificuldades, ou então (se a ideia
antitética dominasse), teria abandonado seu encargo por se sentir receosa. Se
fosse histérica seria o contrário.
Pode não estar consciente do seu receio, estar bastante decidida a levar a cabo
sua intenção e passar a executá-la sem hesitação. Aí, porém, comporta-se como
se fosse sua vontade não amamentar a criança em absoluto. Ademais, essa
vontade desperta nela todos os sintomas subjetivos que uma simuladora
apresentaria como desculpa para não amamentar seu filho; perda do apetite,
aversão à comida, dores quando a criança é posta a mamar. E, como a
contravontade exerce sobre o corpo um controle maior do que a simulação
consciente, também produz no aparelho digestivo uma série de sinais objetivos
que a simulação seria incapaz de engendrar. Aqui, em contraste com a fraqueza
da vontade mostrada na neurastenia, temos uma perversão da vontade (p. 165).
Assim, Freud classifica sua paciente como uma hystérique d’occasion. Ou seja,
ela era capaz de produzir uma série de sintomas como um mecanismo
característico da histeria. A causa fortuita era o estado de excitação da paciente
antes do primeiro parto ou a sua exaustão após o mesmo.
Freud ainda menciona outro caso, também de uma paciente histérica que
apresentava um “ruído particular”, um tique, que sempre se intrometia em suas
conversas, um estalo da língua, que se apresentava a muito tempo. Recordou, sob
hipnose, que iniciou quando sua filha mais nova esteve muito doente, com
convulsões.

Quando, certa vez, ela adormeceu, a paciente sentou à beira da cama e pensou
que teria que ficar absolutamente quieta para não acordá-la, depois de tantos
espasmos e convulsões. Foi quando ocorreu o primeiro estalo. Dias depois,
quando de uma tempestade, um raio atingiu uma árvore e o cocheiro teve que
parar os cavalos abruptamente. Ela pensou novamente que teria que ficar quieta
para não assustar ainda mais os cavalos. Outro estalo veio, e não pararam
mais. Assim,

a mãe, exausta com suas angústias e dúvidas acerca de suas tarefas de cuidar da
criança enferma, tomou a decisão de não deixar que sequer um som saísse de
seus lábios, com receio de perturbar o sono da filhinha, o qual tinha custado
tanto a vir. Mas, no seu estado de exaustão, mostrou-se mais forte a
concomitante ideia antitética de que ela, não obstante, pudesse fazer um ruído; e
essa ideia teve acesso à inervação da língua, que sua decisão de manter-se em
silêncio talvez pudesse ter-se esquecido de inibir, irrompeu no fechamento dos
lábios e produziu um ruído que daí em diante permaneceu fixado (p. 167).
Mas, como sucede a ideia antitética adquirir a supremacia em consequência da
exaustão geral? Freud diz que a exaustão é apenas parcial, pois o que está
exausto são os elementos do sistema nervoso que formam o fundamento material
das ideias associadas com a consciência primária; as ideias que estão excluídas
dessa cadeia associativa (do ego normal), as ideias inibidas e suprimidas, não
estão exaustas, e predominam no momento da disposição para a histeria. Assim,

se atentarmos cuidadosamente para o fato de que são as ideias antitéticas


aflitivas (inibidas e rechaçadas pela consciência normal) que se impõem num
primeiro plano, no momento para a disposição para a histeria, e têm acesso à
inervação somática, então teremos a solução para compreender também a
peculiaridade dos delírios dos ataques histéricos (…). São os grupos de ideias
recalcadas – laboriosamente recalcadas – que entram em ação nesses casos,
pela operação de uma espécie de contravontade, quando a pessoa cai vítima da
exaustão histérica (p. 168).
Essa emergência de uma contravontade é predominantemente responsável pela
característica demoníaca tão frequentemente mostrada pela histeria – isto é, a
característica de os pacientes serem incapazes de fazer alguma coisa
precisamente quando e onde mais ardentemente desejam fazê-la; de fazerem
justamente o oposto daquilo que lhes foi solicitado; e de serem obrigados a
cobrir de maus-tratos e suspeitas tudo o que mais valorizam. A perversidade de
caráter que os histéricos mostram, sua ânsia de fazerem a coisa errada, de
parecerem doentes quando mais necessitam estar bem (…) esses pacientes se
tornam vítimas desamparadas de suas ideias antitéticas (p. 168-9).
Mas, Freud se questiona, o que acontece às intenções inibidas em relação à vida
ideativa normal?

Poderíamos ser tentados a responder que elas simplesmente não existem. O


estudo da histeria mostra que, não obstante, elas realmente existem, ou seja, que
é mantida a modificação física a elas correspondente e que elas são
armazenadas e levam a vida insuspeitada numa espécie de reino das sombras ,
até emergirem como maus espíritos e assumirem o controle do corpo, que,
geralmente, está sob as ordens da predominante consciência do ego (p. 169).

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