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RACIONALIDADE

ARGUMENTATIVA DA
FILOSOFIA E A DIMENSÃO
DISCURSIVA DO TRABALHO
FILOSÓFICO

Noções elementares de lógica para a disciplina de Filosofia.


Documento elaborado no âmbito da definição das Aprendizagens Essenciais

Aires Almeida
SPF e APF
Ficha técnica
Autor: Aires Almeida, 2017

Documento elaborado no âmbito da definição das Aprendizagens


Essenciais da disciplina de Filosofia.

Uma colaboração da Sociedade Portuguesa de Filosofia e da Associação


de Professores de Filosofia

Utilização sob licença Creative Commons Atribuição – Uso Não-Comercial – Proibição


de Realização de Obras Derivadas (by-nc-nd)
Sumário
TESE, VERDADE, ARGUMENTO, VALIDADE E SOLIDEZ ......................................................... 3
Tese .......................................................................................................................................................... 3
Verdade .................................................................................................................................................. 4
Argumento............................................................................................................................................. 5
Validade .................................................................................................................................................. 7
Solidez ..................................................................................................................................................... 9
O QUADRADO DA OPOSIÇÃO ......................................................................................................... 11
FORMAS DE INFERÊNCIA VÁLIDA ............................................................................................... 15
Conectivas proposicionais ........................................................................................................... 15
Tabelas de verdade ......................................................................................................................... 19
Tabelas de verdade e teste de validade das formas argumentativas .......................... 24
Regras de inferência válida .......................................................................................................... 27
PRINCIPAIS FALÁCIAS FORMAIS ................................................................................................. 28
TIPOS DE ARGUMENTOS E FALÁCIAS INFORMAIS ............................................................... 29
Indução: generalização e previsão ............................................................................................ 30
Argumentos por analogia ............................................................................................................. 31
Argumentos de autoridade .......................................................................................................... 32
FALÁCIAS INFORMAIS ...................................................................................................................... 34
Apelo à ignorância ........................................................................................................................... 35
Falsa relação causal ........................................................................................................................ 36
Petição de princípio ........................................................................................................................ 37
Falso dilema ....................................................................................................................................... 37
Derrapagem ....................................................................................................................................... 38
Boneco de palha ............................................................................................................................... 39
Ad hominem .............................................................................................................................................. 40
Ad populum......................................................................................................................................... 41
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ................................................................................................ 42
TESE, ARGUMENTO, VALIDADE, VERDADE E SOLIDEZ
Tese

Uma tese é uma resposta a um problema que está em aberto.


Um problema está em aberto quando, devido à sua natureza ou dificuldade,
não dispõe de soluções consensuais, impedindo que o debate se encerre.
Uma tese filosófica é uma resposta a algum problema filosófico. Devido ao seu
carácter geral e fundamental, os problemas da filosofia não têm respostas
consensuais, permanecendo em aberto. Por exemplo, não é consensual que nunca
devemos mentir ou que não há justiça social sem igualdade.
Também há problemas em aberto nas ciências, na economia e em outras áreas.
Mas os genuínos problemas filosóficos são todos problemas em aberto, mesmo que
permitam esclarecer muitas situações particulares e tenham fortes implicações
práticas.
Geralmente, as teses articulam-se com outras teses auxiliares que as suportam
ou complementam, assim formando teorias. É habitual as teorias serem identificadas
pela sua tese principal, que é normalmente expressa por uma frase declarativa.

Os filósofos costumam chamar proposições ao que é expresso pelas frases


declarativas. A noção de proposição é fácil de entender e relativamente consensual,
mesmo para os filósofos que duvidam da sua existência. Mas que noção é essa
exatamente?
Deixemos de lado todas as frases que não são declarativas, como as
interrogativas, as imperativas, as exclamativas ou as compromissivas, pois nenhum
destes tipos de frases serve para descrever ou transmitir informação sobre o que
pensamos ser o mundo. Isto porque perguntar (interrogativas), dar ordens
(imperativas), exprimir emoções (exclamativas) e fazer promessas (compromissivas)
servem para outros fins, que não primariamente para veicular informação sobre
como são ou não são as coisas. Essa é a função das frases declarativas como “Lisboa

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é a capital de Portugal”, “Mentir é sempre errado”, “Todas as nossas ações são livres”,
“Os gatos são felinos”. Claro que algumas destas frases podem descrever erradamente
as coisas ou estados de coisas, caso em que exprimem proposições falsas. Assim, uma
proposição é a ideia, verdadeira ou falsa, expressa por uma frase declarativa.
A frase é, pois, um item linguístico (formado por sons articulados ou inscrições
numa superfície), sendo a proposição o seu significado ou conteúdo, o qual não é um
item linguístico. A frase “O gato Tobias está a comer” ou o desenho numa folha de
papel de um gato a comer são apenas modos de exprimir algo; neste caso, um certo
gato a comer. Caso esse gato esteja de facto a comer, a frase será verdadeira mas o
desenho não é verdadeiro nem falso — apenas representa bem ou mal um gato a
comer. Alguns filósofos pensam então que a frase só é verdadeira, ao contrário do
desenho, porque exprime uma proposição. De maneira que, deste ponto de vista,
dizer que uma frase é verdadeira ou falsa é apenas uma forma indireta de dizer que a
proposição por ela expressa é verdadeira ou falsa.
Para tornar mais clara a diferença entre frases e proposições, basta pensar que
frases diferentes podem exprimir a mesma proposição. Por exemplo, as frases “Paris
é a capital da França”, “A capital da França é Paris” e “Paris is the capital town of
France” são todas diferentes mas dizem a mesma coisa, têm o mesmo significado: isto
é, exprimem a mesma proposição. Neste caso, sabemos que aquelas três frases
exprimem uma proposição verdadeira. Ora, as discussões filosóficas geralmente não
são acerca das frases elas próprias, mas das ideias que elas veiculam e se tais ideias
são verdadeiras ou falsas.
Note-se que uma frase nunca é uma proposição; apenas exprime uma
proposição se for verdadeira ou falsa. Tal como o numeral que escrevemos num papel
— “4”, por exemplo — nunca é o próprio número quatro: apenas o exprime.

Verdade
O que se espera de uma tese é que seja verdadeira. A verdade de uma tese —
ou de qualquer proposição — é a característica de ela representar adequadamente as

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coisas como elas realmente são. Caso isso não aconteça, essa tese ou proposição é
falsa.
Por exemplo, a proposição de que há extraterrestres só é verdadeira se houver
extraterrestres, independentemente de nós sabermos que há ou não
extraterrestres. Do mesmo modo, a tese filosófica de que toda a arte representa
algo só é verdadeira se não houver mesmo obras de arte que não representem
algo; caso contrário, é falsa.
Algumas proposições são verdadeiras, outras falsas (quer o saibamos quer
não); chama-se “valor de verdade” à verdade e falsidade das proposições. As
proposições mais comuns são ou verdadeiras ou falsas, mas não as duas coisas; mas
é um problema filosófico em aberto saber se há proposições sem valor de verdade, ou
simultaneamente com os dois, ou se há outros valores de verdade, além da verdade e
da falsidade.

Ninguém está interessado em teses falsas porque elas não nos permitem
compreender como as coisas realmente são e, portanto, não nos proporcionam
conhecimento.
Como referido, as teses filosóficas são respostas a problemas em aberto e
estão, portanto, sujeitas a discussão. Isto significa que não há maneira de provar
inequivocamente que uma dada tese é verdadeira (ou falsa). Por isso se espera que o
proponente de uma tese seja capaz de defender, de algum outro modo, a verdade
dessa tese, apresentando boas razões que a apoiam e mostrando ser justificado
acreditar que a tese é verdadeira. Assim, apresentar razões que sustentem uma tese
é argumentar a seu favor, de modo a persuadir os outros.

Argumento
É frequente apresentarem-se vários argumentos em defesa de uma dada tese.
Um argumento é um conjunto variável de proposições (ou afirmações) articuladas
entre si, com o intuito de uma delas ser apoiada pelas outras.

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A proposição que se procura apoiar ou defender é a conclusão do argumento
e as que visam apoiar a conclusão são as premissas do argumento. A conclusão não
tem de surgir em último lugar nem as premissas têm de surgir antes da conclusão. O
que importa é saber qual é a conclusão visada, e quais são as premissas usadas para
a apoiar.
Mas se precisarmos de ser completamente claros, podemos apresentar os
nossos argumentos na sua forma mais simples (a “forma canónica” ou também
“forma-padrão”), com as premissas separadas e a conclusão no fim. O número de
premissas de um argumento é variável, mas a conclusão é só uma. (Quando
encontramos várias conclusões é porque estamos perante vários argumentos
encadeados.)
É comum num texto haver vários argumentos e é importante avaliar cada um
deles, pois tanto podem ser bons como maus. Para isso é preciso começar por
identificá-los, pois muitas vezes surgem misturados com outras informações e
considerações laterais.
A melhor maneira de identificar um argumento é começar por identificar a sua
conclusão, isto é, o que se quer defender. Muitas vezes, há palavras ou expressões
indicadoras de conclusão. Por exemplo, “logo”, “portanto”, “consequentemente”, “por
isso”, “daí que”, “por conseguinte”, “infere-se que”, “como tal”, “assim” são termos que
normalmente indicam que a conclusão surge imediatamente a seguir. Por sua vez,
palavras ou expressões como “porque”, “pois”, “dado que”, “visto que”, “devido a”, “já
que”, “a razão é que” são termos que normalmente servem para apresentar razões, ou
seja, premissas.
Uma vez identificados os argumentos a favor de uma dada tese ou contra teses
rivais, é ainda preciso averiguar se tais argumentos são aceitáveis ou não. Isso faz-se
averiguando dois aspetos: um acerca da relação entre as premissas e a conclusão e
outro acerca da credibilidade das premissas.

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Validade
O primeiro desses aspetos diz respeito à validade. O que, neste caso, se procura
apurar é se as premissas apoiam efetivamente a conclusão. Quando as premissas
apoiam da maneira mais forte uma conclusão isso significa que não há maneira de a
conclusão ser falsa caso todas as premissas sejam verdadeiras; ou seja, significa que
as premissas implicam a conclusão ou, para falar ainda de outra maneira, significa
que a conclusão se segue logicamente das premissas. Quando isto acontece diz-se
também que a verdade das premissas garante a verdade da conclusão. E é isto que
significa dizer que um argumento é válido.
A validade é, assim, uma propriedade ou característica dos argumentos como
um todo, e não das premissas nem da conclusão.
Para se compreender melhor a noção de validade, atente-se nos dois exemplos
seguintes:

Argumento 1
A Sofia fala francês e é portuguesa. Portanto, é portuguesa.

Argumento 2
A Sofia fala francês ou é portuguesa. Portanto, é portuguesa.

É fácil, em cada um destes argumentos, identificar as premissas e as respetivas


conclusões, pois a palavra “portanto” indica claramente que a frase que se lhe segue
exprime a conclusão. Em ambos os casos a conclusão é “A Sofia é portuguesa”.
Identificada a conclusão, resta uma frase, pelo que temos apenas uma premissa
em cada argumento. A premissa do primeiro argumento é “A Sofia fala francês e é
portuguesa” ao passo que a premissa do segundo argumento é “A Sofia fala francês
ou é portuguesa”. O que queremos agora saber é se os argumentos são válidos, isto é,
se as conclusões de cada um se seguem das respetivas premissas.
Como vimos, num argumento válido, a verdade das premissas garante a verdade
da conclusão. Esta ideia costuma ser expressa de várias maneiras e todas acabam por
ir dar ao mesmo. Eis as mais comuns:

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Num argumento válido
- é impossível todas as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa,
simultaneamente.
- a conclusão não pode ser falsa, se todas as premissas forem verdadeiras.
- a conclusão tem de ser verdadeira, se todas as premissas forem
verdadeiras.

Se lermos com atenção, veremos que em nenhum caso se diz que um


argumento válido tem de ter premissas verdadeiras e em nenhum caso se diz que um
argumento válido tem de ter conclusão verdadeira. Um argumento válido tanto pode
ter premissas falsas como conclusão falsa, como até premissas e conclusão falsa. A
única coisa que não pode acontecer num argumento válido é ter todas as suas
premissas verdadeiras a sua conclusão falsa. A ideia é simples: algo estará a correr
mal no nosso raciocínio quando obtemos conclusões falsas exclusivamente a partir
de premissas verdadeiras. Tal como haveria algo estranho em alguém dar uma notícia
falsa, baseada apenas em informações verdadeiras; ou em um pasteleiro fazer um
bolo mau só com ingredientes bons. Em ambos os casos consideramos que se
procedeu algures de forma incorreta.
Mas podemos raciocinar corretamente e, mesmo assim, chegar a uma
conclusão falsa. Para isso, basta que alguma das premissas de que partimos seja falsa.
Assim, raciocinar corretamente ou incorretamente (validamente ou invalidamente)
não tem que ver com as premissas ou a conclusão serem, isoladamente, verdadeiras
ou falsas, mas antes com a ligação entre as premissas e a conclusão.
Voltemos agora aos argumentos acima apresentados, começando pelo
argumento 1. Será válido ou inválido? Dado que os argumentos válidos admitem
qualquer combinação de valores de verdade menos uma (que é só ter premissas
verdadeiras e conclusão falsa), o mais prático é verificar se isso acontece. E a resposta
só pode ser “sim” ou “não”.
Se a resposta for “sim, é possível este argumento ter premissa verdadeira e
conclusão falsa”, então o argumento tem algo que os argumentos válidos não podem

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ter. Logo, é inválido. Mas se a resposta for “não, não é possível aquela conclusão ser
falsa, caso a premissa seja verdadeira”, então o argumento é válido.
Vejamos, então, se o argumento 1 pode ter a premissa verdadeira e a conclusão
falsa. Dado que não conhecemos a Sofia, não sabemos se a premissa é verdadeira ou
falsa. Contudo, sabemos que, se ela for verdadeira (se aquela Sofia falar mesmo
francês e for portuguesa), então a conclusão será também verdadeira; a falsidade da
conclusão ficou excluída. Estamos, assim, em condições de afirmar que o argumento
1 é válido.
E quanto ao argumento 2? Continuamos a não saber se a premissa do
argumento é verdadeira ou falsa. Porém, somos agora capazes de ver que nada
impede a conclusão de ser falsa, mesmo que a premissa seja verdadeira. Basta, por
exemplo, dar-se o caso de a Sofia falar francês mas não ser portuguesa. Se for esse o
caso, então a premissa será na mesma verdadeira, mas a conclusão será falsa. Logo, é
possível o argumento ter a premissa verdadeira e a conclusão falsa, pelo que é
inválido.

Solidez
Ficámos a saber que um argumento válido pode ter premissas falsas. Mas
apresentar argumentos com premissas falsas, mesmo que válidos, é pouco ou nada
convincente. Por isso, temos também de acautelar o segundo aspeto acima referido:
precisamos que, além de válidos, os nossos argumentos tenham efetivamente
premissas verdadeiras. Chama-se sólido a um argumento válido e com premissas
verdadeiras. A solidez inclui, pois, a validade.
A propósito da validade, perguntámos se as premissas podem ser verdadeiras
(não se elas são mesmo verdadeiras) e a conclusão falsa. Mas agora precisamos que
elas sejam mesmo verdadeiras e não apenas que o possam ser.
Que as premissas possam ser verdadeiras é muito diferente de elas serem
mesmo verdadeiras. A diferença entre uma proposição poder ser verdadeira e ser
efetivamente verdadeira é, assim, de grande importância.

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Ora, se queremos que os nossos argumentos sejam aceites pelos outros, não
basta que as premissas de que partimos possam ser verdadeiras; é preciso que sejam
realmente verdadeiras. Ninguém estará disposto a deixar-se convencer por
raciocínios corretos que partam de premissas duvidosas. Precisamos também que
elas sejam verdadeiras, para que os nossos argumentos sejam sólidos.
Não é raro as premissas de um argumento serem elas próprias apoiadas por
outras razões. Nesse caso, elas são simultaneamente premissas de um argumento e
conclusões de outro, podendo mesmo formar-se uma longa cadeia de argumentos que
convergem para uma conclusão final. As teorias filosóficas são frequentemente
formadas por encadeamentos de argumentos, em que algumas teses secundárias
convergem para apoiar a tese principal, como ilustrado no gráfico seguinte:

Tese Teses / Premissas / Premissas / Premissas


principal premissas conclusões conclusões iniciais
de apoio à intermédias intermédias
tese
principal

Conclusão
Premissa 1 Premissa
Conclusão
Premissa 1 Premissa 2

Conclusão
Premissa 1
Premissa 1
Conclusão
Premissa 2 Conclusão Premissa 2
Conclusão Premissa
Premissa 1 Premissa 3

Conclusão Premissa 2
Premissa 2
Premissa 3

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O processo argumentativo aqui esboçado nem sempre é transparente, pois as
teorias filosóficas incluem frequentemente muitos outros aspetos: de carácter
histórico, de contextualização filosófica, de explicitação de conceitos, de referência a
perspetivas rivais e outros. Por outro lado, mais do que argumentar a favor de uma
tese, alguns filósofos optam antes por desenvolver modelos teóricos explicativos,
procurando basear esses modelos em intuições filosóficas fundamentais. Em todo o
caso, umas vezes de forma mais explícita e outras de forma meramente implícita, a
dimensão argumentativa tem sido um aspeto marcante de toda a história da filosofia.

O QUADRADO DA OPOSIÇÃO
Uma característica notória da história da filosofia é que os filósofos discordam
entre si, chegando mesmo a defender teses opostas. Muitas vezes os filósofos
defendem teses universais, como “Todo o conhecimento tem origem nos nossos
sentidos” ou “Nenhuma ação motivada apenas pelo interesse pessoal é moralmente
correta”. Outros filósofos discordam, isto é, negam que as coisas sejam mesmo assim,
considerando falsas essas teses. Mas não chega dizer que não se concorda. É também
importante saber discordar, isto é, saber como se nega uma dada proposição e o que
se segue daí.
Por vezes, temos alguma dificuldade em saber o que se segue da negação de
uma dada tese ou proposição e não é raro pensarmos que discordamos sem, afinal,
discordarmos realmente. Imaginemos, por exemplo, que o Sérgio defende que alguns
doces não fazem bem à saúde e que a Sofia discorda. Para mostrar que a afirmação do
Sérgio é falsa, a Sofia alega que alguns doces fazem bem à saúde, e até consegue dar
vários exemplos. Será que a Sofia discorda mesmo do Sérgio? A resposta é que aquilo
que a Sofia diz não nega o que o Sérgio afirma, pois pode perfeitamente ser verdadeiro
o que ambos defendem. Ora, duas afirmações que podem ser simultaneamente
verdadeiras, nunca são a negação uma da outra. Se duas afirmações forem a negação
uma da outra, então não podem ter ambas o mesmo valor de verdade: a verdade de

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uma implica a falsidade da outra e vice-versa. Assim, a negação de “Alguns doces não
fazem bem à saúde” não é “Alguns doces fazem bem à saúde”. Vejamos, então, como
se negam teses ou proposições.
Há vários maneiras de classificar proposições. Uma das mais comuns tem em
conta o uso de quantificadores. Como o próprio termo indica, os quantificadores
quantificam. Por exemplo, quando falamos de portugueses, tanto podemos estar a
referir a totalidade dos portugueses ou apenas uma parte deles. Tudo depende dos
quantificadores usados. Assim, se juntarmos os termos “todos” ou “qualquer” aos
portugueses, estamos mesmo a referir a totalidade dos portugueses; mas se, em vez
disso, usarmos “alguns”, “há”, “certos”, “muitos”, estamos a referir apenas uma parte
do universo dos portugueses. No primeiro caso, usamos quantificadores universais e
no segundo usamos quantificadores particulares. Temos, neste caso, dois tipos de
proposições: as universais e as particulares, respetivamente.
Mas as proposições costumam também ser distinguidas pela sua qualidade, ou
seja, por afirmarem ou negarem uma dada qualidade ou predicado a um certo sujeito.
Assim, dizer que os filósofos são inteligentes é atribuir aos filósofos o predicado de
ser inteligente, ao passo que dizer que os algarvios não são espanhóis é negar o
predicado de ser espanhol aos algarvios. Daqui resultam mais dois tipos de
proposições: as afirmativas e as negativas.
Porém, as proposições podem combinar qualidade e quantidade, o que dá
origem a quatro tipos de proposições: (Tipo A) universais afirmativas; (Tipo E)
universais negativas; (Tipo I) particulares afirmativas; (Tipo O) particulares
negativas. É o que se encontra no chamado “quadrado da oposição” seguidamente
apresentado e que foi originalmente pensado para referir coisas que realmente
existem. Assim, o quadrado da oposição funciona da maneira abaixo descrita apenas
porque não tem em conta termos vazios como “marcianos”, “sereias”, “lobisomens”,
“pessoas com mais de 3 metros de altura”, etc.

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Este quadrado permite-nos compreender melhor a relação entre esses quatro
tipos de proposições e é especialmente útil para aprendermos a negar proposições
quantificadas. Uma vez que já sabemos o que temos em cada uma das pontas do
quadrado, precisamos agora de interpretar corretamente as setas que se observam,
começando pela descrição associada a cada uma.
As setas que se cruzam indicam uma relação de contraditoriedade, a qual se
verifica apenas entre proposições com diferentes quantidades e qualidades. Por sua
vez, a seta que se observa no topo do quadrado indica uma relação de contrariedade,
que se verifica apenas entre proposições universais. Por último, a seta que se observa
na base do quadrado indica uma relação de subcontrariedade, que se verifica apenas
entre as proposições particulares. Mas o que são exatamente proposições
contraditórias, contrárias e subcontrárias? A resposta está na tabela seguinte.

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Tipo de relação Descrição da relação Implicações Observações

Duas proposições A verdade de uma implica São a negação uma da


Contraditoriedade contraditórias não a falsidade da outra, e outra.
podem ter o mesmo vice-versa.
valor de verdade.

Duas proposições A verdade de uma implica Podem ser ambas falsas e,


Contrariedade contrárias não podem a falsidade da outra, mas por isso, não são a
ser ambas verdadeiras. a falsidade de uma não negação uma da outra.
implica a verdade da
outra.

Duas proposições A falsidade de uma Podem ser ambas


Subcontrariedade subcontrárias não implica a verdade da verdadeiras e, por isso, não
podem ser ambas outra, mas a verdade de são a negação uma da
falsas. uma não implica a outra nem há entre elas
falsidade da outra. uma relação de oposição.

Posto isto, torna-se agora bastante mais fácil determinar qual a negação de
uma dada proposição. Assim, a negação de “Todos os ricos são felizes” não é “Nenhum
rico é feliz” mas antes a sua contraditória “Alguns ricos não são felizes”. E, claro, a
negação de “Alguns ricos não são felizes” é “Todos os ricos são felizes”. Podemos,
então, resumir da seguinte maneira: a negação de uma dada proposição quantificada
é um proposição com os mesmos termos mas com diferente quantidade e diferente
qualidade. Isto significa, por exemplo, que se uma proposição é particular afirmativa
(Tipo I), a sua negação é uma universal negativa (Tipo E).
Note-se que há outros tipos de proposições que o quadrado da oposição não refere
sequer, como é o caso das chamadas proposições singulares. As proposições
singulares são aquelas que dizem respeito a um só indivíduo ou objeto singular, como
a própria palavra indica. Eis alguns exemplos de proposições singulares: “Fernando
Pessoa é espanhol”, “O rio Douro não tem afluentes”, “A baleia é um peixe”. Todavia,
a negação de proposições deste tipo não levanta qualquer dificuldade: “Fernando
Pessoa não é espanhol”, “O rio Douro tem afluentes” e “A baleia não é um peixe”,
respetivamente.

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FORMAS DE INFERÊNCIA VÁLIDA
Inferir é concluir a partir de algo. Assim, uma inferência é genericamente um
raciocínio ou argumento. Como tal, as inferências tanto podem ser válidas como
inválidas. Há um número infinito de formas de inferência válidas, mas algumas
merecem uma atenção especial, por serem muito comuns na nossa argumentação.
As formas de inferência válida de que vamos falar aplicam-se, em grande parte
dos casos, a argumentos constituídos por proposições de tipo diferente das referidas
na secção anterior. Por isso, vamos começar por esclarecer de que tipo de proposições
estamos a falar.

Conectivas proposicionais
As proposições podem ser simples ou complexas; para os nossos propósitos
iremos considerar simples uma proposição que não contenha qualquer uma das cinco
conectivas que iremos estudar, como a conjunção (“e”). Assim, “Marcelo Rebelo de
Sousa gosta de fado” é simples, ao passo que “Marcelo Rebelo de Sousa gosta de fado
e de rock” é complexa. À excepção das proposições complexas que resultam
exclusivamente da negação, todas as outras são no fundo compostas por mais de uma
proposição. Neste caso, temos duas: a expressa pela frase “Marcelo Rebelo de Sousa
gosta de fado” e a expressa pela frase “Marcelo Rebelo de Sousa gosta de rock”,
estando ambas ligadas pela conectiva “e”.
As conectivas são muito importantes, pois o mesmo par de proposições
simples ligadas (numa proposição complexa) por uma dada conectiva pode ter um
valor de verdade diferente do que teria se estivessem ligadas por outra conectiva
diferente. Por exemplo, “A ponte da Arrábida fica em Lisboa ou no Porto” é
verdadeira, mas “A ponte da Arrábida fica em Lisboa e no Porto” é falsa.

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A chamada lógica proposicional é a teoria lógica que trata dos argumentos que
resultam do uso das conectivas. A maioria dos argumentos que usamos
habitualmente são deste género.
As conectivas são cinco: negação (“não”), conjunção (“e”), disjunção (“ou”),
condicional (“se”) e bicondicional (“se e só se”). A única que não liga duas proposições
é a negação, havendo por isso quem considere não se tratar de uma verdadeira
conectiva como as outras. Cada conectiva tem um símbolo próprio, como indicado no
quadro abaixo.
Uma vez que, para determinar a validade dos argumentos, o que interessa é a
sua forma lógica, e não tanto o seu conteúdo, há vantagem em recorrer a uma
linguagem lógica diferente da linguagem natural portuguesa, de modo a representar
com clareza a estrutura dos argumentos — e das proposições que os constituem. Daí
que se usem também as letras P, Q, R, etc., para representar proposições simples —
sendo, por isso, chamadas letras ou variáveis proposicionais. As proposições simples
podem agora ser mais rigorosamente definidas: é qualquer proposição que não
contenha qualquer ocorrência de qualquer uma das cinco conectivas.
O quadro seguinte mostra, com exemplos, como representar a forma lógica de
proposições.

Designação Exemplo Dicionário Formalização

Proposição P: Sócrates é filósofo.


Sócrates é filósofo. P
simples

Negação Sócrates não nasceu no Porto. P: Sócrates nasceu no Porto. ¬P

Conjunção P: Sócrates é grego.


Sócrates é grego e filósofo. P∧Q
Q: Sócrates é filósofo.

Disjunção P: O Rui compreendeu a


O Rui compreendeu ou
matéria. P∨Q
decorou a matéria.
Q: O Rui decorou a matéria.

Condicional Se a arte é bela, então tem P: A arte é bela.


P→Q
valor. Q: A arte tem valor.

Bicondicional A arte tem valor se e só se for P: A arte tem valor.


PQ
bela. Q: A arte é bela.

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Como se pode ver, a formalização é a representação da forma lógica de uma
proposição — ou, quando é o caso, de um argumento. A formalização é, assim, uma
espécie de radiografia da estrutura lógica da proposição ou do argumento, revelando
apenas o que interessa. Ao processo inverso — de partir de uma fórmula para
reconstruímos a proposição expressa na linguagem natural — chama-se
interpretação de fórmulas.
Se prestarmos atenção ao quadro anterior também ficamos a compreender
melhor por que razão se diz que as letras P, Q, etc., são variáveis proposicionais: elas
podem representar qualquer proposição, cabendo-nos a nós estabelecer qual,
recorrendo a um dicionário. Por sua vez, os símbolos ¬, ∧,∨,→ e  são constantes,
representando cada um deles sempre a mesma conectiva.
É importante realçar que as conectivas não representam apenas aquelas
palavras exatas, destacadas no quadro anterior, mas qualquer palavra ou expressão
que operem do mesmo modo. Assim, uma conjunção tanto pode ser expressa na
linguagem natural pela palavra “e” como pela palavra “mas” ou por expressões como
“tanto... como...” e outras. Eis alguns exemplos.

Proposição Dicionário Formalização

A arte não tem utilidade. P: A arte tem utilidade. ¬P

Não é verdade que a arte tem utilidade.

Platão e Aristóteles são filósofos.

Tanto Platão como Aristóteles são filósofos.

Quer Platão quer Aristóteles são filósofos. P: Platão é filósofo. P∧Q


Q: Aristóteles é filósofo.
Platão é filosofo, mas Aristóteles também.

Platão é filósofo, embora Aristóteles também o seja.

Camões ou Bocage eram de Setúbal. P: Camões era de Setúbal. P∨Q


Q: Bocage era de Setúbal.
Camões e Bocage, um deles era de Setúbal.
Se Sócrates era filósofo, então era grego.
P: Sócrates era filósofo. P→Q
Se Sócrates era filósofo, era grego.
Q: Sócrates era grego.
Sócrates era grego, se era filósofo.
Deus perdoa se e só se for bom.
P: Deus perdoa. PQ
Deus perdoa se e apenas se for bom. Q: Deus é bom.
Deus perdoa se for bom, e vice-versa.

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Esta linguagem proposicional tem a vantagem de permitir representar
proposições bastante mais complexas. Apenas é preciso recorrer aos parêntesis para
representar adequadamente proposições com duas ou mais conectivas. Vejamos
alguns exemplos.

Conectivas Exemplo Dicionário Formalização

Negação e Não é verdade que, se a Ana P: A Ana estuda.


¬ (P → Q)
condicional. estuda, tem boa nota no teste. Q: A Ana tem boa nota no teste.

Condicional e Se a Ana estuda, não terá P: A Ana estuda.


negação Q: A Ana terá problemas. P→¬Q
problemas.

Conjunção, P: Sócrates é grego.


conjunção Sócrates é grego, filósofo e Q: Sócrates é filósofo. P∧Q∧ R
muito inteligente. Q: Sócrates é muito inteligente.

Conjunção, P: A Ana estuda.


A Ana estuda e, se estiver com
condicional e Q: A Ana está com atenção.
atenção, não terá problemas P ∧ (Q → ¬ R)
negação R: A Ana tem problemas com o
com o teste.
teste.

Bicondicional, P: A arte tem valor.


A arte tem valor se e só se
conjunção e Q: A arte emociona. P  (Q ∧¬ R)
emocionar e não for feia.
negação R: A arte é feia.

Disjunção, P: Trabalhas muito.


Trabalhas muito ou tens
conjunção e Q: Tens talento. (P ∨ Q) ∧ (R →
talento e, se tiveres sorte,
condicional R: Tens sorte. S)
terás sucesso.
S: Tens sucesso.

Os parêntesis indicam qual o âmbito (ou alcance) da conectiva que


imediatamente os antecede. Na primeira coluna indica-se a negrito a conectiva que
tem maior âmbito. Há casos em que não é tarefa fácil decidir, na língua portuguesa,
qual a conectiva com maior âmbito. Mas, na maior parte dos casos, isso é
razoavelmente claro. Note-se também que o dicionário apenas inclui frases
declarativas gramaticalmente completas e que estas surgem geralmente no presente
do indicativo, dado que a lógica proposicional clássica é insensível aos tempos
verbais.

18
Tabelas de verdade
Mas para que precisamos de formalizar proposições numa linguagem
simbólica diferente da linguagem natural? A resposta é que assim podemos calcular
de uma forma relativamente simples em que circunstâncias uma dada proposição é
verdadeira e em que circunstâncias ela é falsa. Comecemos pela mais fácil, que é a
negação.
Imaginemos a fórmula proposicional ¬P, em que P significa “Portugal é uma
monarquia.” Em que condições a fórmula ¬P é verdadeira e em que condições é falsa?
A tabela seguinte apresenta todas as circunstâncias possíveis na coluna da esquerda
e que, neste caso, são apenas duas: P é verdadeira ou P é falsa. Assim, quando P é
verdadeira, a sua negação, ¬P, é falsa; e quando P é falsa, a sua negação, ¬P, é
verdadeira, como se verifica na coluna da direita. (Note-se que este é um dos aspectos
da lógica proposicional clássica, que difere de outras lógicas que aceitam que há mais
de dois valores de verdade. Muitas destas lógicas alternativas são especulativas e
polémicas.)

P ¬P

V F

F V

A tabela mostra-nos, então, que a negação de uma proposição altera o valor


de verdade da proposição de partida: se esta é verdadeira, a sua negação é falsa e vice-
versa.
Vejamos seguidamente a tabela da conjunção. Imaginemos a proposição
expressa pela frase “O Mónaco é um estado e uma cidade”. Neste caso, encontramos
duas proposições simples, que podem ser representadas pelas variáveis P e Q,
respetivamente, as quais estão ligadas por uma conectiva, a conjunção. Temos
também aqui de considerar todas as combinações possíveis de valores de verdade de
P e Q. Assim, como se vê na coluna da esquerda, podem ser ambas verdadeiras, pode

19
a primeira ser verdadeira e a segunda falsa, pode a primeira ser falsa e a segunda
verdadeira e podem ambas ser falsas, num total de quatro combinações.
Na coluna da direita verificamos que, se ambas forem verdadeiras (se for
verdade que o Mónaco é um estado e que é também uma cidade), então a conjunção
será também verdadeira. E essa é a única circunstância em que a conjunção é
verdadeira: nas restantes é sempre falsa.

P Q P∧Q

V V V

V F F
F V F

F F F

Resumindo o que mostra a tabela: uma conjunção só é verdadeira quando as


duas proposições componentes são verdadeiras.
Passemos agora para a disjunção e imaginemos a proposição expressa pela
frase “O Mónaco é um estado ou uma cidade”. Verifica-se que a disjunção é verdadeira
desde que uma das proposições que a compõem seja também verdadeira.

P Q P∨Q

V V V
V F V

F V V

F F F

Resumindo: uma disjunção só é falsa quando as duas proposições


componentes são falsas.
Alguns estudiosos entendem que pode ser considerado um segundo tipo,
menos comum, de disjunção: a chamada disjunção exclusiva. A disjunção acima é
inclusiva, e é esta que geralmente usamos em lógica. Este sentido corresponde ao

20
significado de “ou” da proposição expressa pela frase “O Ricardo viveu em Braga ou
Santarém”. Neste sentido da disjunção, a ideia é não excluir a possibilidade de ambas
as proposições serem verdadeiras.
Contudo, usamos por vezes a mesma palavra “ou” para exprimir uma
disjunção exclusiva: “O Ricardo nasceu em junho ou em julho” exclui a possibilidade
de ele ter nascido em ambas os meses. Neste caso, a conectiva é diferente, e apresenta
as seguintes condições de verdade:

P Q P⩒ Q

V V F
V F V
F V V
F F F

Imaginemos agora uma condicional, como “Se a Ana tirar onze valores no
exame de Filosofia, então passa de ano”. Numa condicional chama-se antecedente à
proposição que está associada ao “se”, ao passo que se chama consequente à
proposição associada ao “então”, mesmo que este esteja subentendido e
independentemente de qual surge em primeiro lugar — por exemplo “A Ana passa de
ano, se tirar onze valores no exame de Filosofia” exprime exatamente a mesma
proposição, sendo a antecedente e a consequente exatamente as mesmas.

Observando a tabela, talvez cause alguma surpresa a condicional ser


verdadeira quando a antecedente (representada por P) é falsa e a consequente
(representada por Q, depois da seta) é verdadeira. Mas, se pensarmos no exemplo
acima, vemos que não é pelo facto de a antecedente ser falsa que a condicional é falsa
também. Imaginemos que a Ana não tirou onze valores no exame de Filosofia, caso
em que a antecedente é falsa, mas tirou antes dezassete. Neste caso, a Ana não tirou
onze no exame de Filosofia e, mesmo assim, passou de ano. Portanto, o facto de a
antecedente ser falsa, não implica que a condicional seja falsa também.

21
P Q P→Q

V V V

V F F

F V V

F F V

Resumindo: Uma condicional só é falsa quando a antecedente (a que vem


antes de →) é verdadeira e a consequente (a que vem depois de →) é falsa.

Finalmente, temos a tabela da bicondicional. Imaginemos a bicondicional “A


Ana passa de Ano se e só se tiver pelo menos onze valores no exame de Filosofia”.
Neste caso, percebemos facilmente que, diferentemente da condicional, a proposição
é falsa quando a primeira componente (aqui não há antecedente nem consequente) é
falsa e a segunda verdadeira.

P Q PQ

V V V

V F F

F V F

F F V

Resumindo: uma bicondicional só é verdadeira quando ambas as proposições


coincidem em valor de verdade.

Parece relativamente simples determinar em que condições uma dada


proposição é verdadeira (ou falsa), mesmo sem fazermos qualquer tabela de verdade.
Contudo, há proposições mais complexas do que as apresentadas, em que as tabelas
são uma grande ajuda. Pensemos na proposição expressa pela frase “A arte tem valor
se e só se emocionar e não for feia”, já antes assim formalizada: P  (Q ∧¬ R). Ela
tanto pode ser verdadeira como falsa, dependendo do valor de verdade de cada umas

22
das proposições simples (P, Q e R) que a compõem. Podemos, então, perguntar: qual
o valor de verdade da proposição complexa se cada uma das proposições que a
compõem for também verdadeira? Uma tabela de verdade dá-nos a solução, não só
nesse caso mas em todos os casos possíveis. Vejamos a tabela, que tem agora três
variáveis, pelo que as combinações possíveis aumenta para oito, em vez de quatro.

P Q R P  (Q ∧ ¬ R)
V V V V F V F F
V V F V V V V V
V F V V F F F F
V F F V F F F V
F V V F V V F F
F V F F F V V V

F F V F V F F F

F F F F V F F V

A resposta à pergunta anterior é que a proposição é, nesse caso, falsa, como se


vê logo na primeira linha da tabela, onde o resultado do cálculo surge destacado com
um fundo sombreado.
Precisamos, contudo, de compreender como foi construída a tabela, de forma
a obtermos o resultado final. Em primeiro lugar, começamos pela conectiva com
menor âmbito e o resultado final corresponde à conectiva com âmbito maior (que, no
caso, é a bicondicional). As conectivas com menor âmbito encontram-se dentro do
parêntesis. Na fórmula dada, há duas conectivas no parêntesis. Mas como a negação
tem menor âmbito do que a conjunção, começa-se por aquela. As letras V e F que se
encontram alinhadas por baixo das variáveis são simplesmente copiadas da coluna
da esquerda, para não termos de estar constantemente a olhar para lá.
Recapitulando, faz-se primeiro o que está dentro do parêntesis e, dentro deste,
começamos pela negação de R. Dado que na primeira linha, R é verdadeira, a negação
de R será falsa, como nos recordamos da tabela da negação. Seguidamente calcula-se

23
o valor de verdade da conjunção de ¬R, que acabámos de verificar ser falso, com Q.
Dado que na primeira linha R é verdadeira, o resultado é que a conjunção é falsa, como
nos recordamos da tabela da conjunção. Ficamos assim a saber qual o valor de
verdade (em cada linha) do que está entre parêntesis. Falta apenas uma conectiva: a
bicondicional entre P e o que está entre parêntesis. Dado que P é verdadeira (na
primeira linha), a bicondicional é falsa, pois para ser verdadeira ambas as
componentes teriam de ter o mesmo valor de verdade e não têm.
Assim, a tabela permite-nos concluir que a proposição é falsa quando cada uma
das suas componentes é verdadeira. Curiosamente, se cada uma das suas
componentes for falsa, então a proposição é verdadeira, como se verifica na última
linha. O facto de isto poder ser surpreendente, mostra que as tabelas podem ser muito
úteis, ajudando-nos a decidir que condições têm de se verificar para uma dada
afirmação ser verdadeira.

Tabelas de verdade e teste de validade de formas argumentativas

Apesar do que foi dito, a utilidade maior das tabelas revela-se quando
precisamos de testar a validade de argumentos. Não é estranho usar o método das
tabelas de verdade para testar a validade de argumento, pois ainda que os
argumentos não sejam verdadeiros nem falsos (mas antes válidos ou inválidos), eles
são constituídos por proposições (as premissas e a conclusão), que são verdadeiras
ou falsas. Uma vez que já sabemos que um argumento válido só não pode ter
premissas verdadeiras e conclusão falsa, podemos então colocar lado a lado as tabelas
de verdade das premissas e a da conclusão, de modo a ver se alguma vez se verifica
aquelas serem verdadeiras e esta falsa. Se tal acontecer uma vez que seja, ficamos a
saber que o argumento é inválido.

Tomemos, como exemplo, o seguinte argumento:

O Universo é fruto do acaso ou foi intencionalmente criado por um ser inteligente.


Porém, o Universo não é fruto do acaso.
Logo, foi intencionalmente criado por um ser inteligente.

24
Para determinar se é válido ou não começamos por representar a forma lógica
de cada uma das proposições, depois de explicitar um dicionário:

P: O Universo é fruto do acaso.


Q: O Universo foi intencionalmente criado por um ser inteligente.

Ao fazer o dicionário não podemos esquecer que temos de usar apenas


proposições sem quaisquer conectivas, que só depois são inseridas. Partindo daí,
representamos a forma argumentativa escrevendo cada premissa numa linha
diferente e a conclusão, precedida pelo respetivo símbolo, “∴”, na última:
P∨Q
¬P
∴Q

O que fazemos agora é uma sequência de tabelas de verdade, uma para cada
premissa e outra para a conclusão, a que se chama também inspetor de
circunstâncias:

P Q P∨Q ¬P ∴Q

V V V F V

V F V F F

F V V V V

F F F V F

Cada linha da tabela corresponde a uma circunstância possível. Resta


examinar este inspetor para ver se há alguma circunstância em que as duas premissas
sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Ora, só na terceira circunstância (F F) as duas
premissas são verdadeiras. Mas nessa mesma circunstância a conclusão também é
verdadeira. Logo, a forma argumentativa é válida.
Vejamos agora outro argumento:

25
Se Deus existe, a vida faz sentido.
Porém, Deus não existe.
Logo, a vida não faz sentido.

Usando o mesmo dicionário que usámos antes, a forma lógica deste argumento é a
seguinte:
P→Q
¬P
∴ ¬Q

A tabela de verdade é a seguinte:

P Q P→Q ¬P ∴ ¬Q

V V V F F

V F F F V

F V V V F

F F V V V

Como se vê, agora temos duas circunstâncias em que as duas premissas são
verdadeiras. Contudo, numa delas a conclusão é falsa. Logo, a forma argumentativa é
inválida.
É incorreto dizer que esta forma argumentativa é válida na terceira fila e
inválida na quarta. Um argumento ou é válido ou não, sendo incorreto afirmar que é
válido em algumas circunstâncias e inválido noutras. Ser válido é não haver qualquer
circunstância em que as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. Basta haver
uma circunstância em que as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa para que
o argumento seja inválido.

Regras de inferência válida


Há muitos casos em que podemos dispensar o teste de validade das tabelas de
verdade, pois há formas de inferência válida muito comuns e que são facilmente

26
reconhecíveis. Trata-se de formas argumentativas em que a verdade das premissas,
sejam elas quais forem, garante a verdade da conclusão.

Apesar de o número de formas argumentativas válidas ser infinito, algumas


são tão comuns que têm nome próprio e são consideradas regras de inferência. Eis
algumas das mais conhecidas.

Nome Exemplo Forma lógica

Não é verdade que o conhecimento não vem da experiência. ¬¬P


Negação dupla
Logo, o conhecimento vem da experiência. ∴P

P→Q
Se Deus existir, a vida tem sentido. Ora, Deus existe.
Modus ponens P
Logo, a vida tem sentido.
∴Q

P→Q
Se Deus existir, a vida tem sentido. Dado que a vida não tem
Modus tollens ¬Q
sentido, segue-se que Deus não existe.
∴ ¬P

Se Deus existir, a vida tem sentido. Portanto, se a vida não P→Q


Contraposição
tiver sentido, Deus não existe. ∴ ¬Q → ¬P

P∨Q
Silogismo Deus existe ou a vida é absurda. Ora, Deus não existe. Daí que
¬P
disjuntivo a vida seja absurda.
∴Q

P→Q
Silogismo Se a arte agrada, então é bela. Se é bela, tem valor. Logo, se a
Q→R
hipotético arte agrada, tem valor.
∴P→R

Não é verdade que a arte é bela ou provocatória. Logo, a arte ¬(P ∨ Q)


não é bela nem é provocatória. ∴ ¬P ∧ ¬Q
Leis de De
Morgan
Não é verdade que a democracia e a ditadura sejam boas. ¬(P ∧ Q)
Assim, ou a democracia não é boa ou a ditadura não é boa. ∴ ¬P ∨ ¬Q

Assim, sempre que algum argumento exemplificar qualquer destes padrões,


será um argumento formalmente válido, seja qual for o seu conteúdo.

27
Porém, precisamos de estar atentos, pois há padrões ou formas
argumentativas que se assemelham a algumas das anteriores e que podem, por isso,
levar-nos ao engano. Os argumentos que têm tais formas são falaciosos.

PRINCIPAIS FALÁCIAS FORMAIS

Uma falácia é um argumento que parece bom mas não é. Dado que um
argumento tem de ser válido para ser bom, uma das maneiras de parecer bom sem o
ser é parecer que tem uma forma válida sem a ter. Uma falácia formal é precisamente
um argumento que parece ter forma válida sem a ter. Eis duas das mais comuns
falácias formais.

Nome Exemplo Formalização

P→Q
Falácia da afirmação da Se Deus existir, a vida tem sentido. Dado que a vida
Q
consequente tem sentido, segue-se que Deus existe.
∴P

P→Q
Falácia da negação da Se Deus existir, a vida tem sentido. Dado que Deus
¬P
antecedente não existe, segue-se que a vida não tem sentido.
∴ ¬Q

Apesar de a primeira ser muito parecida ao modus ponens, a sua forma é


diferente, pois enquanto no modus ponens temos a afirmação da antecedente, nessa
falácia temos a afirmação da consequente, o que não impede que as premissas possam
ser verdadeiras e a conclusão falsa, ao mesmo tempo.
Por sua vez, a segunda é parecida ao modus tollens. Mas, ao passo que o modus
tollens consiste na negação da consequente, a falácia consiste na negação da
antecedente, o que também não impede que as premissas sejam verdadeiras e a
conclusão falsa, ao mesmo tempo.

28
TIPOS DE ARGUMENTOS E FALÁCIAS INFORMAIS

Até aqui estivemos sempre a falar apenas de um tipo de argumentos. Trata-se


dos argumentos dedutivos, cuja validade depende, em geral, apenas da sua forma
lógica. Por isso são estudados pela chamada lógica formal.
Mas o universo da argumentação é bastante mais vasto, havendo outros tipos
de argumentos, cuja validade (ou força, como muitos preferem chamar) não depende
da sua forma lógica, mas antes de aspetos informais. Ao ramo da lógica que trata
destes tipos de argumentos chama-se lógica informal.
O esquema seguinte dá uma ideia do universo da lógica informal aqui
abordado.

Indutivos

Argumentos
não Por analogia
dedutivos
De autoridade

Generalização
precipitada

Amostra não
representativa
Lógica informal
Falsa analogia

Apelo ilegítimo
à autoridade

Apelo à
ignorância

Falso dilema
Falácias
informais Falsa relação
causal

Boneco de
palha

Derrapagem

Petição de
princípio

Ad hominem

Ad populum

29
Quando um argumento é dedutivamente válido, é impossível que tenha
conjuntamente premissas verdadeiras e conclusão falsa. Mas quando um argumento
é não-dedutivamente válido, não é impossível que tenha premissas verdadeiras e
conclusão falsa: é apenas improvável. A diferença é que a validade dedutiva exclui a
possibilidade de a conclusão ser falsa se as premissas forem verdadeiras. A validade
não-dedutiva não exclui esta possibilidade, mas torna-a improvável. Eis um exemplo
da diferença entre a impossibilidade e a improbabilidade: não é impossível que uma
pessoa ganhe dez vezes seguidas o primeiro prémio do Euromilhões, mas é
muitíssimo improvável. Do mesmo modo, não é impossível que as premissas de um
bom argumento não-dedutivo sejam verdadeiras e a sua conclusão seja falsa, mas é
muito improvável. Por isso, há quem considere ser mais adequado falar de força em
vez de validade para os argumentos não dedutivos, sejam eles generalizações e
previsões indutivas, argumentos por analogia ou argumentos de autoridade.
A lógica formal é adequada para captar a validade dedutiva quando esta
resulta da forma lógica dos argumentos. Contudo, no caso dos argumentos não-
dedutivos, a validade não resulta da forma lógica. Por isso, não temos uma lógica
formal para este tipo de argumentos: com a mesma forma lógica tanto podemos ter
argumentos indutivos bons como maus. Apesar disso, dispomos de alguns critérios
informais que ajudam a avaliar argumentos não-dedutivos.

Indução: generalizações e previsões

Pensemos no seguinte argumento: “Todos as esmeraldas observadas até hoje


são verdes; logo, todas as Esmeraldas são verdes.” Trata-se de uma generalização
indutiva, ou argumentação a partir de exemplos.
Comparemos agora com um tipo diferente de indução, a previsão: “Todas as
esmeraldas observadas até hoje são verdes; logo, a próxima esmeralda que
observarmos será verde”.
Como avaliar estes dois tipos de indução?

30
Critérios de avaliação Exemplos Violação do critério

O número de casos observados


Concluir que os portugueses são
tem de ser relevante e não se Falácia da
antipáticos depois de se conhecer três
1 encontrarem contraexemplos, generalização
portugueses e de estes serem
depois de ativamente precipitada
antipáticos.
procurados.

Os casos observados têm de Concluir que os portugueses rejeitam a


Falácia da amostra
2 representar adequadamente o eutanásia, com base nas respostas das
não representativa
universo em causa. pessoas à entrada das igrejas.

Uma pessoa que conclui que o Sol irá


brilhar para sempre porque até agora
Não pode haver informação de
sempre brilhou está a desconsiderar o
fundo que ponha em causa a
conhecimento de fundo da astronomia
3 validade do argumento.
de que todas as estrelas nascem e
morrem.

Argumentos por analogia

Os argumentos por analogia estão, juntamente com os argumentos dedutivos, entre


os mais usados pelos filósofos. São aqueles que se baseiam na semelhança (ou analogia;
daí o nome) entre coisas diferentes. A ideia é que se duas coisas são semelhantes em vários
aspetos relevantes, serão também semelhantes noutro aspeto ainda não considerado.
Os argumentos por analogia têm geralmente a seguinte forma:

Os x têm as propriedades A, B, C, D.
Os y, tal como os x, têm as propriedades A, B, C, D.
Os x têm ainda a propriedade E.
Logo, os y têm também a propriedade E.

Podemos resumir assim:

Os x são E.
Os y são como os x.
Logo, os y são E.

Os argumentos por analogia partem da ideia de que se diferentes coisas são


semelhantes em determinados aspectos, também o serão noutros. Veja-se o exemplo
seguinte:

31
Os relógios são criados por alguém inteligente.
A Natureza é como os relógios.
Logo, a Natureza é criada por alguém inteligente.

O termo “como” na segunda premissa indica que estamos a estabelecer uma


comparação entre situações análogas, característica dos argumentos por analogia.
Avaliamos os argumentos por analogia com base nos três critérios seguintes:

Critérios Exemplos Violação do critério

Uma pessoa que conclui que um livro é


As semelhanças têm de ser excelente porque tem uma capa da mesma
Falácia da falsa
1 relevantes com respeito à cor de outro que era excelente, tem o
analogia
conclusão. mesmo número de páginas e é também feito
de papel, viola este critério.

É preciso que o número de Uma pessoa que conclui que um livro é


semelhanças relevantes excelente porque é do mesmo autor viola Falácia da falsa
2
com respeito à conclusão este critério. Esta semelhança é relevante, analogia
seja suficiente. mas são precisas outras.

É preciso que não existam Uma pessoa que conclui que os homens têm
Falácia da falsa
3 diferenças relevantes com útero porque são como as mulheres, e estas
analogia
respeito à conclusão. têm útero, viola este critério.

Argumentos de autoridade

Os argumentos de autoridade são usados principalmente quando defendemos


ideias que as pessoas, em geral, não estão habilitadas a justificar por si próprias,
sendo necessário confiar na reconhecida competência técnica de outrem. Nesses
casos, nada melhor do que invocar o que pessoas mais bem colocadas ou especialistas
na matéria em causa afirmam. A sua forma costuma ser:

Uma autoridade, especialista ou testemunha afirmou que P.


Logo, P.

Essa autoridade, testemunha ou especialista tanto pode ser um cientista ou


outro estudioso, como uma testemunha de um acidente, por exemplo, ou um amigo
nosso que foi a uma cidade que nunca visitámos.

32
Os argumentos de autoridade são muito comuns porque a maior parte do que
sabemos é obtido por meio de outras pessoas, nomeadamente os especialistas das
diversas áreas: estamos convencidos que devemos tomar certos medicamentos
quando estamos doentes porque o medico nos disse para os tomar; evitamos comer
certos alimentos porque o nutricionista diz que devêmos evitá-los; aceitamos que
uma certa ponte seja encerrada para obras porque o engenheiro inspetor diz que deve
ser encerrada; acreditamos que uma a água é constituída por H2O apenas porque os
cientistas o afirmam, e não porque ela o tenha verificado pessoalmente; e, claro,
acreditamos que os salários na Dinamarca são, em média, mais elevados do que em
Portugal porque lemos isso numa publicação de referência ou porque algum amigo
nosso lá viveu e nos contou tal coisa. É assim, que obtemos várias informações
corretas sobre coisas banais, e não vamos verificá-las todas.
Mas, apesar de grande parte dos argumentos de autoridade serem bons, eles
também são frequentemente utilizados de forma abusiva. Como distinguimos um uso
correto de um uso incorreto dos argumentos de autoridade? Eis quatro critérios:

Critérios Exemplos Violação do critério

Deve-se indicar o nome Não basta referir que um cientista, um professor


da autoridade e a fonte de uma universidade ou um estudo, sem indicar Falácia do apelo
(documento, texto, os nomes, afirmaram algo para que isso seja ilegítimo à
1
filme, etc.) em que tal aceitável. Mesmo quem atribui a Einstein a ideia autoridade
autoridade manifestou de tudo é relativo tem de indicar onde ele (autoridade anónima)
essa ideia. defendeu tal coisa.

Falácia do apelo
A autoridade invocada
Invocar Einstein para defender ideias sobre ilegítimo à
tem de ser realmente
2 física (mas não sobre economia, dado não ser autoridade
uma autoridade na
conhecido como economista). (autoridade não
área.
reconhecida)

A ideia de que a energia é igual à massa vezes a


velocidade da luz ao quadrado, defendida por Falácia do apelo
O que é afirmado deve
Einstein nos Anais da Física de 1905 tornou-se ilegítimo à
ser largamente
3 consensual entre os físicos. (Pelo contrário, a autoridade
consensual entre as
ideia defendida por Platão de que só as (ausência de
autoridades da área.
sociedades governadas por filósofos são justas consenso)
está longe de ser consensual entre os filósofos).

33
Se é invocada a opinião de um investigador
ambiental sobre o efeito de uma dada indústria,
ele não dever trabalhar para as empresas da Falácia do apelo
A autoridade invocada
área nem suas concorrentes. (Por sua vez, não é ilegítimo à
não deve ter fortes
4 aceitável um eventual argumento dos autoridade
interesses pessoais ou
mecânicos de automóveis com o intuito de nos (falta de
de classe no assunto.
convencer que nenhum carro é seguro se não imparcialidade)
for obrigatoriamente à oficina uma vez por
trimestre).

Por outras palavras, depois de garantir que a autoridade realmente afirmou o


que está em causa e que é realmente uma autoridade na área, é preciso garantir que
o facto de ela afirmar tal coisa torna mais provável que isso seja verdadeiro. Quando
uma testemunha afirma algo mas outra testemunha igualmente bem colocada o nega,
a afirmação da primeira não torna mais provável que isso seja verdadeiro; e quando
todas as autoridades concordam mas têm todas muito a ganhar com a afirmação que
defendem, o consenso entre elas não torna mais provável que isso seja verdadeiro.

FALÁCIAS INFORMAIS

Como vimos, uma falácia formal é uma dedução inválida que parece válida.
Mas há também as informais. Uma falácia informal é um erro de argumentação que
não depende da forma lógica do argumento, o que significa que, com a mesma forma
tanto pode haver argumentos bons como argumentos maus. Temos, por isso, de olhar
para outros aspetos como o próprio conteúdo do que se afirma.
Algumas falácias informais foram apresentadas na secção anterior,
nomeadamente aquelas que constituem violações diretas dos critérios de avaliação
dos diferentes tipos de argumentos não dedutivos: as falácias indutivas da
generalização precipitada e da amostra não representativa, a falácia da falsa analogia
e a falácia do apelo ilegítimo à autoridade.
Vejamos mais algumas muito comuns.

34
Apelo à ignorância

A falácia do apelo à ignorância faz quase o oposto do apelo à autoridade. A


ideia é estabelecer algo como falso por ninguém ter conseguido mostrar que é
verdadeiro (ou vice-versa: estabelecer algo como verdadeiro por ninguém ter
conseguido mortar que é falso). No caso dos argumentos de autoridade apela-se ao
conhecimento de alguém bem colocado para defender uma dada ideia, ao passo que
no caso do apelo à ignorância se apela ao desconhecimento de todos sobre uma dada
ideia para concluir o oposto dessa ideia. A forma do apelo à ignorância é a seguinte:

Não se sabe (desconhece-se, ignora-se, não se provou, demonstrou, etc.) que P.


Logo, é falso que P.

Não se sabe (desconhece-se, ignora-se, não se provou, demonstrou, etc.) que é falso que P.
Logo, é verdadeiro que P.

Eis dois exemplos desta falácia:

Ninguém conseguiu ainda provar que Deus existe.


Logo, Deus não existe.

Nenhum cientista conseguiu ainda provar que não existem extraterrestres.


Logo, existem extraterrestres.

A ideia deste tipo de argumento é concluir algo com base na inexistência de


prova em contrário. Ora, é normalmente falacioso argumentar deste modo porque
nem sempre a inexistência de prova é prova de inexistência. Se isso fosse correto,
teríamos de aceitar que antes de Galileu provar que a Terra gira em torno do Sol era
falso que a Terra girava em torno do Sol. Mas sempre foi verdadeiro que a Terra girava
em torno do Sol, mesmo quando ninguém conseguia provar tal coisa.
Só em casos muito particulares o apelo à ignorância é aceitável,
nomeadamente quando a exigência de prova não é, em condições normais, descabida.
É o que se passa se, por exemplo, a professora de música pede a um aluno para
mostrar que sabe cantar afinado e conclui que ele não sabe por nunca ter sido capaz

35
de mostrar tal coisa, cantando sempre desafinado. Por sua vez, se o professor de
matemática concluir que um aluno copiou no teste por este não lhe conseguir mostrar
o contrário, então o professor estará a argumentar falaciosamente.
Em geral, a nossa ignorância (ou desconhecimento, ou falta de provas)
relativamente a uma coisa nada prova quanto à sua existência ou inexistência, ou
quanto à sua verdade ou falsidade. Da nossa ignorância nada de certo é legítimo
concluir, a não ser que somos falíveis.

Falsa relação causal

A falácia da falsa relação causal (também conhecida pelo seu nome latino post
hoc ergo propter hoc: depois disso; logo, causado por isso) é um erro indutivo que
consiste em concluir que há uma relação de causa-efeito entre dois acontecimentos
que ocorrem sempre em simultâneo ou um imediatamente após o outro. Um exemplo
desta falácia é:

O trovão ocorre sempre depois do relâmpago. Logo, o trovão é causado pelo relâmpago.

Esta inferência é falaciosa porque não se pode excluir, por exemplo, que ambos
os eventos sejam causados por um terceiro. Neste caso, é precisamente isso que
acontece: tanto o relâmpago como o trovão resultam de uma descarga elétrica. Do
mesmo modo, o carteiro toca à campaínha da porta da Sara sempre que ela tem
correio, mas não é por causa do carteiro tocar à campaínha que ela tem correio, mas
sim porque alguém decidiu escrever-lhe. Noutras situações, o facto de dois
acontecimentos ocorrerem sempre juntos pode ser meramente acidental, sem que
um seja causado pelo outro. Por exemplo, sempre que viaja de avião o Carlos reza e
este não cai. Contudo, isso não nos autoriza a concluir que o avião não cai por causa
da reza do Carlos.

36
Petição de princípio

A petição de princípio (ou falácia da circularidade) ocorre num argumento


quando, de modo mais ou menos disfarçado, pressupomos nas premissas que a
conclusão é verdadeira. É o que acontece no seguinte caso:

Sem dúvida que as pessoas nunca agem de forma verdadeiramente desinteressada, pois são
todas egoístas.

A conclusão é que as pessoas nunca agem de forma desinteressada; mas a


premissa usada pressupõe essa mesma ideia, apresentada de forma diferente: que
são todas egoístas. Por essa razão, o argumento nada prova: é uma petição de
princípio, toma à partida como certo o que se quer provar ser verdadeiro.

Falso dilema

A forma lógica da falácia do falso dilema é a seguinte:

P ou Q.
Mas não P.
Logo, Q.

Esta forma lógica é válida. Contudo, se a disjunção da primeira premissa (P


ou Q) for falsa apesar de parecer verdadeira, o argumento é falacioso. Vejamos um
exemplo:

Andorra é um reino ou uma república. Dado que não é uma república, segue-se que é um reino.

A disjunção é falsa porque Andorra pode não ser uma coisa nem outra,
havendo mais possibilidades: pode, por exemplo, ser um principado, como sucede na
realidade. Sempre que num argumento usamos uma disjunção entre duas coisas e
queremos concluir uma delas negando a outra, temos de garantir que não há pelo
menos uma terceira possibilidade igualmente plausível. Quando esta existe, o
argumento não é adequado porque a disjunção é falsa.

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Quando o tema do argumento é mais filosófico, é mais fácil cair na falácia:

As verdades são absolutas ou relativas. Dado que é evidente que não são absolutas, são
relativas.

A disjunção é falsa porque há uma terceira alternativa igualmente plausível: a


de algumas verdades serem absolutas e outras relativas.
Quando a disjunção é verdadeira, contudo, o mesmo género de argumento não
é falacioso. O argumento seguinte não é falacioso: “O governo disse que ia diminuir os
impostos ou aumentar os ordenados. Dado que não diminuiu os impostos, aumentou
os ordenados”. Neste caso, também há, em princípio, outras alternativas além de
diminuir impostos e aumentar ordenados. Mas se tivermos razões para pensar que o
governo disse a verdade, essas alternativas não são tão plausíveis quanto aquelas
duas. Dado que das duas alternativas mais plausíveis, a diminuição dos impostos e o
aumento dos ordenados, excluímos a diminuição de impostos, é correto concluir que
aumentou os ordenados.

Derrapagem
Também a falácia da derrapagem (ou bola de neve) se baseia numa forma
lógica válida:

Se P, então Q.
Se Q, então R.
Se R, então S.
Logo, se P, então S.

Esta forma lógica é válida. E continua válida se acrescentarmos mais


condicionais às que já tem, desde que a estrutura geral se mantenha. Contudo, se as
várias condicionais forem realmente falsas apesar de parecerem verdadeiras,
acabamos com uma falácia:

Se passamos muito tempo a jogar no computador, tornamo-nos pessoas frias.


Se nos tornamos pessoas frias, acabamos por desprezar os outros.
Se desprezamos os outros, acabamos por odiá-los.
Se odiamos os outros, tornamo-nos assassinos.
Logo, se passamos muito tempo a jogar no computador, tornamo-nos assassinos.

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Todas as condicionais usadas são aceitáveis porque são ligeiramente
prováveis; porém, são também são ligeiramente improváveis. Ora, esta
improbabilidade ligeira vai-se acumulando e, quando chegamos à última condicional,
o resultado é surpreendente.
A falácia é mais difícil de ver quando o tema é filosófico, como no seguinte
exemplo:

Se permitirmos a eutanásia, estaremos a permitir que os médicos matem pessoas. Se


permitirmos isso, os médicos acabam por matar qualquer pessoa que queiram. Logo, se
permitirmos a eutanásia, os médicos acabarão por matar qualquer pessoa que queiram.

Este argumento é falacioso porque as duas condicionais são realmente falsas,


apesar de não o parecerem.

Boneco de palha

A falácia do boneco de palha (ou espantalho) não tem uma forma lógica
característica; ocorre sempre que distorcemos ou caricaturamos as ideias do nosso
interlocutor para que pareçam mais implausíveis, ridículas ou obviamente falsas. Eis
um exemplo:

Os professores que mandam trabalhos para casa aos alunos são maus porque não querem ser
eles a ensinar as matérias nas aulas.

Este é um caso da falácia do boneco de palha porque se atribui aos professors


que mandam trabalhos para casa uma intenção que eles provavelmente não têm.
Ainda que, por hipótese, algum professor o faça com essa intenção, isso não se aplica
à maior parte deles.
Para que a falácia do boneco de palha seja eficaz, é preciso que as pessoas com
quem estamos a discutir tenham um conhecimento muito superficial do tema em
causa. Caso contrário, as pessoas limitam-se a negar que tenhamos apresentado
corretamente a posição que desejamos rejeitar.

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Ad hominem

A falácia ad hominem é um ataque pessoal, ou ao homem (daí a designação


latina), que tem a seguinte forma lógica:

A pessoa a afirmou P.
Mas a não é credível.
Logo, P é falso.

Eis um exemplo muito simples desta falácia: “O Carlos é um jovem mimado,


pelo que a sua opinião sobre qual o melhor dia para realizar a festa de finalistas é
errada”. Neste caso, trata-se de um argumento falacioso porque não há qualquer
relação relevante entre o facto de o Carlos ser ou não mimado e a verdade ou falsidade
acerca do melhor dia para realizar a festa de finalistas. Argumentar desta maneira é
falacioso porque se ataca algo que não torna menos plausível o que o nosso opositor
defende.
Eis outro exemplo: “Claro que vindo de quem vem não é surpreendente que
defenda tal coisa”. Apesar de parecer que se trata apenas de um comentário lateral,
este género de afirmação é muitas vezes uma maneira de fugir da discussão, atacando
a pessoa que defende um dado argumento, em vez de explicar o que está errado no
argumento.
Por vezes não é falacioso atacar a credibilidade do nosso opositor, pois há
casos em que a sua falta de credibilidade pode desclassificar a sua opinião. Por
exemplo, um cientista que defende um avultado investimento numa área de
investigação em que está envolvido e que já antes foi condenado por fraude científica
não é de confiança, pelo que temos boas razões para pensar que a sua opinião
científica é falsa. Mas atacar o cientista por ser vaidoso, antipático ou egoísta é
falacioso quando isso é irrelevante para a verdade ou falsidade do que afirma.

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Ad populum

Esta falácia consiste em apelar à opinião da maioria (ou ao povo, do nome


latino) para defender que uma dada afirmação é verdadeira. A forma do argumento é
a seguinte:

A maioria das pessoas diz que P.


Logo, P.

Um ilustração disso é:

A maioria das pessoas pensa que só o que é natural é bom para a saúde. Logo, só o que é natural
é bom para a saúde.

O problema deste tipo de inferência é que a maioria das pessoas podem estar
simplesmente enganadas, como sempre o estiveram em muitos outros assuntos. Houve
tempos em que a maioria das pessoas pensava que a Terra era plana, que o Sol girava em
torno da Terra e tantas outras coisas falsas. A verdade ou falsidade de uma afirmação não
tem de depender da opinião das pessoas e, mesmo que dependa das opiniões, seria
injustificado considerar que a opinião da minoria é falsa.

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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

Branquinho, J & Murcho, D. (orgs.) (2001). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos.


Lisboa: Gradiva.

Kneale, W & Kneale, M. (1980). O desenvolvimento da lógica. Lisboa, Fundação


Calouste Gulbenkian.

Murcho, Desidério (2003). O Lugar da lógica na filosofia. Lisboa: Plátano Editora.

Newton-Smith, W. H. (1998). Lógica. Um curso introdutório. Lisboa: Gradiva.

Santos, Ricardo (2014). “Lógica”, in Galvão, Pedro (ed). A Filosofia por disciplinas.
Lisboa, Edições 70.

Warburton, Nigel (2012). Pensar de A a Z. Lisboa: Bizâncio.

Weston, Anthony (1996). A arte de argumentar. Lisboa: Gradiva.

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