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Rodrigo Peñaloza

Oct 8, 2017 · 15 min read

MICROECONOMIA em DOSES: competição perfeita


(Rodrigo Peñaloza, 08-X-2017)

O que normalmente entendemos por competição perfeita, no senso comum, é a


estrutura de mercado em que os agentes procuram maximizar seus lucros e excedentes,
em que empresários têm uma postura ativa no mercado, alterando preços,
diversificando produtos, modificando a capacidade instalada, inovando, abrindo e
fechando mercados, em que os consumidores barganham, jogam um ofertante contra o
outro e assim todas as formas de apropriação de excedentes imagináveis, com direitos
de propriedade bem definidos.

Essa é a ideia popular e que, comparada com o construto que encontramos nos livros,
nos faz cogitar da razoabilidade das hipóteses de conhecimento perfeito dos preços,
mercados completos, existência de grande número de ofertantes e demandantes etc.
Esse conflito tem gerado “especialistas” em criticar o modelo neoclássico, muitos
infelizmente sem o menor preparo para escrever o que escrevem.
As hipóteses que comumente vemos acopladas aos modelos de equilíbrio parcial de
mercados não é o que se entende hoje por competição perfeita. Tampouco o modelo de
equilíbrio geral walrasiano coincide com a ideia moderna de equilíbrio competitivo,
apesar de os próprios artigos e livros da área usarem muitas vezes esses termos
indiscriminadamente.

Como são as coisas hoje na Teoria? São poucas as respostas, mas significativas. (1)
Todo equilíbrio de competição perfeita é walrasiano, mas nem todo equilíbrio
walrasiano é competitivo. (2) Não são os preços que precedem à maximização (no
sentido de os agentes tomarem os preços como dados nas maximizações de seus lucros
e utilidades), mas sim o comportamento maximizador que precede os preços (no
sentido de que os preços de equilíbrio surgem mediante os processos de arbitragem ou
de exploração de oportunidades de ganhos em razão das diferenças entre as taxas
marginais de troca dos agentes, quando percebidas). (3) Comportamento otimizador
significa apenas a comparação racional entre custos e benefícios de cada decisão, na
margem, passo a passo. Aliás, isto sempre foi assim, mas as pessoas ainda confundem o
comportamento otimizador atribuído ao Homo Oeconomicus com a descrição
matemática dos modelos de otimização em Microeconomia. Muito já escrevi sobre essa
confusão, mas não é disto que tratarei aqui. (Se quiser saber algo sobre isso, leia
Maximizando o lucro). (4) Competição perfeita é um conceito de natureza não só
otimizatória, mas principalmente distributiva. Eis aí o ponto em que os especialistas em
pseudo-críticas tropeçam feio. O que define competição perfeita na moderna Teoria de
equilíbrio Geral é a condição de full appropriation: todo agente internaliza na forma de
excedente privado a sua contribuição marginal para o excedente social da economia.
Esta condição equivale ainda a duas outras: (a) os agentes enfrentam ofertas e
demandas perfeitamente elásticas (condição de Joan Robinson) e (b) existência de
opções externas perfeitamente substituíveis. (Se quiser saber mais detalhes sobre os
avanços da teoria relativamente à ideia de competição perfeita, leia Competição
perfeita: o que é isso?).

O que farei neste texto é considerar um mercado simples, desses de livro-texto, e


desvendar o que é competição perfeita nesse mercado. Isso é importante, pois os alunos
simplesmente não vêem o que jaz oculto sob os gráficos de oferta e demanda. Ora,
quando estudamos mercados competitivos, já nos cursos de introdução à economia,
nos defrontamos com o seguinte gráfico:
Essas curvas denotam a oferta agregada (em azul) e a demanda agregada (em
vermelho). O equilíbrio de mercado ocorre à quantidade Q* e ao preço P*. A confusão
começa na forma como chegamos a essas curvas. O consumidor toma os preços como
dados, conhece-os todos, e maximiza sua utilidade, encontrando, assim, sua demanda
marshalliana pelo bem cujo mercado simbolizamos no gráfico acima. Os produtores
tomam os preços fatoriais e de produto como dados e maximizam seus lucros (ou
minimizam seus custos), encontrando, assim, suas curvas de oferta. Dessas curvas
individuais obtemos as curvas agregadas.

O gráfico acima esconde um mundo. Em primeiro lugar, as curvas são agregadas e por
isso perdemos a perspectiva do que se passa no nível descentralizado. É lá que
encontraremos a competição perfeita. Em segundo lugar, as quantidades são
infinitamente divisíveis, tornando as funções, que normalmente seriam discretas,
contínuas. O equilíbrio de mercado se resume a um ponto de interseção: a interseção
entre as curvas agregadas. O que devemos fazer é tomar uma lupa e direcioná-la para
esse pontinho, que, na verdade, possui toda uma geometria. O que acontecesse nesse
ponto?
Para passar o conteúdo teórico que quero, construirei um exemplo muito simples.

Em uma economia há 4 ofertantes e 4 demandantes. Cada agente transaciona uma


única e apenas uma única unidade. Os ofertantes são os agentes i=1,2,3,4 e os
demandantes são os agentes i=5,6,7,8. Os custos incrementais c(i) do ofertante
i=1,2,3,4 e as valorações incrementais v(i) do demandante i=5,6,7,8 são dados por:

Assim, o agente i=1 é um ofertante que oferta uma unidade do bem a um custo
incremental de c(1)=$1. Esse é o valor que a sociedade atribui aos recursos deslocados
da economia para a produção dessa unidade pelo ofertante i=1. Analogamente, o
agente i=5 é um demandante cuja disposição incremental a pagar pela primeira e
única unidade do bem é v(5)=$8. Esse é o valor do consumo privado de outros bens
que ele está disposto a sacrificar para adquirir, em troca, essa unidade do bem.

No gráfico abaixo temos a oferta (inversa, isto é, preço contra quantidade) agregada,
que é a soma horizontal das ofertas (inversas) individuais:
A curva de demanda agregada é analogamente obtida pela soma horizontal das
demandas inversas e é como no gráfico a seguir:

O equilíbrio se obtém pela interseção das curvas de oferta e demanda agregadas, como
abaixo:

Note que a interseção ocorre no trecho horizontal que corresponde às unidades 2 e 3.


Mantive, nesse trecho, as curvas de oferta e demanda ligeiramente afastadas para
melhor visualização, mas evidentemente esses trechos das curvas se sobrepõem.

O preço de equilíbrio é P*=$4 e a quantidade de equilíbrio é Q*=3 unidades. Convém


calcular o excedente social e os excedentes privados dos agentes. Isso é fácil de
calcular. O ofertante i=1 recebe $4 pela unidade que lhe custa $1 produzir, de modo
que seu excedente privado é $3. Os ofertantes i=2,3 têm excedente privado nulo. O
ofertante i=4 não participa do mercado, pois o preço de $4 é inferior ao seu custo de
$6. O demandante i=5 está disposto a pagar $8, mas paga $4, de modo que seu
excedente privado é $4. Os demandantes i=6,7 têm excedente nulo (estão indiferentes
entre participar ou não) e o demandante i=8 não participa. A lista dos excedentes
privados π(i), para i=1,…,8, é, portanto:

O excedente social TS (total surplus) é a soma dos excedentes privados, de modo que
TS=$7. Observe que o excedente social é a área entre as curvas de oferta e de
demanda agregadas.

Para verificarmos se há competição perfeita, devemos calcular o preço-sombra de cada


agente, ou seja, sua contribuição marginal para os ganhos sociais de troca (ou
excedente social). Para sabermos o preço-sombra do ofertante i=1, devemos retirá-lo
da economia e recalcular o excedente social sem a sua presença. Quando o ofertante
=1 está ausente da economia, a curva de oferta (inversa) agregada se desloca uma
unidade para a esquerda, pois o ofertante i=1 contribui com uma única unidade. A
nova situação é descrita no gráfico a seguir:
O preço de equilíbrio continua sendo P*=$4, mas a quantidade de equilíbrio cai para
Q’=2 unidades. O excedente social sem a presença do agente i=1 cai para TS(-1)=$4.
De fato, esta é a área entre a curva de demanda agregada e a nova curva de oferta
agregada (sem a participação do ofertante i=1).

Outra maneira de ver isso é pela soma dos excedentes privados. Todos os agentes
continuam com os mesmos excedentes de antes, menos o agente i=1 que saiu da
economia, levando consigo seu excedente de $3.

Essa é uma observação importante, pois mostra que os agentes da economia são
indiferentes à participação do agente i=1. Portanto, a contribuição marginal do agente
i=1 para os ganhos sociais de troca (total gains from trade ou excedente social) é TS-
TS(-1) = $7-$4 = $3. Essa diferença entre os valores ótimos de bem-estar com e sem a
presença do agente i=1 é o seu preço-sombra social, equivale ao seu multiplicador de
Lagrange para o problema de otimização alocativa. Refraseando, a sociedade é
indiferente à participação do ofertante i=1, pois tudo que a sociedade ganha com a
participação desse agente é inteiramente internalizada por ele na forma de excedente
privado. Sem o agente i=1, a sociedade tem um excedente social de $4. Com a
participação desse agente, a sociedade aumenta seu excedente social para $7, mas esse
incremento é apropriado pelo agente i=1 na forma de excedente privado. Ele recebe de
forma justa o quanto ele contribui. Denotamos o preço-sombra do agente i (ou sua
contribuição marginal social) por CMS(i)=TS-TS(-i), em que TS denota o excedente
total e TS(-i) denota o excedente total sem a presença do agente i. O que acabamos de
ver foi que CMS(1) = π(1).

Essa propriedade, CMS(i) = π(i), quando válida para todos os agentes, é denominada
full appropriation (apropriação plena). Sua natureza é essencialmente pigoviana, pois
foi Pigou, em seu livro The Economics of Welfare, que examinou à exaustão os efeitos
alocativos, em termos de eficiência, das divergências entre os benefícios e custos
marginais sociais e privados.

Por razões didáticas, vou calcular o preço-sombra do agente i=5, que é o demandante
que mais valoriza o bem. Voltando à situação inicial, com a presença de todos os 8
agentes, retiramos o agente i=5. O efeito de sua ausência é um deslocamento da curva
de demanda agregada uma unidade para a esquerda, conforme o gráfico a seguir:
O preço de equilíbrio continua sendo P*=$4 e a quantidade de equilíbrio cai para Q’=2
unidades. O excedente social sem a presença do agente i=5 cai para TS(-5)=$3, que é
a área entre a curva de demanda agregada sem o agente i=5 e a curva de oferta
agregada. Portanto, a contribuição marginal do agente i=5 para os ganhos sociais de
troca é TS-TS(-5) = $7- $3 = $4. Mais uma vez, CMS(5) = π(5).

Se repetirmos esse raciocínio para todos os agentes i=1,…,8, vamos encontrar o


seguinte resultado: CMS(i) = π(i), para todo agente i=1,…,8. Em outras palavras,
full appropriation: todos os agentes internalizam, na forma de excedente privado, as
suas contribuições marginais para os ganhos sociais de troca desse mercado. Isso é
competição perfeita!

Se considerarmos a função excedente total TS como uma função cujas variáveis são os
agentes (e não bens e serviços), então cada agente será privadamente remunerado pelo
seu impacto incremental sobre o excedente social. É como se, em termos discretos, a
função excedente social fosse homogênea de grau 1 nos agentes. Isso nos recorda o
teorema de Euler para funções homogêneas de grau 1, também conhecido por teorema
da exaustão do produto: o valor do produto é distribuído integralmente entre os fatores
de produção de acordo com os produtos marginais de cada um. A diferença é que os
fatores, neste caso, são os agentes. Traduzindo para o nosso contexto: o excedente
social é distribuído integralmente entre os agentes de acordo com os produtos
marginais de cada um. É essa condição de full appropriation que caracteriza a
competição: existe competição perfeita se, e somente se, existe full appropriation.

O mercado de nosso exemplo é, portanto, perfeitamente competitivo.

Uma caracterização equivalente à condição de full appropriation deve-se a Joan


Robinson: competição perfeita ocorre quando os agentes enfrentam ofertas e
demandas perfeitamente elásticas. O sentido dessa caracterização é este: mudanças
ocupacionais unilaterais de agentes não afetam os preços de equilíbrio. Por mudanças
ocupacionais entende-se, entre outras coisas, entrar e sair do mercado, ou seja, ajustes
na margem extensiva. A literatura moderna de Equilíbrio Geral incorpora também
mudanças de preferências ou tecnologias, de possibilidades de troca etc. Nosso
exemplo é bem simples, mas capta perfeitamente esses avanços teóricos.

Outra caracterização equivalente de competição perfeita é esta: os agentes marginais


na vizinhança do equilíbrio possuem opções externas perfeitamente
substituíveis. Agentes marginais são aqueles cujas valorações marginais determinam o
preço de equilíbrio. No nosso exemplo, os agentes marginais são os ofertantes i=2,3 e
os demandantes i=6,7, os quais comercializam a terceira e a quarta unidades de
equilíbrio. Para mais explicações sobre o tema da competição perfeita e suas
caracterizações, remeto o leitor ao meu texto Competição perfeita: o que é isso? Aqui, é
suficiente — e essa foi minha intenção — mostrar a condição de full appropriation e sua
relação com a ideia atual de competição perfeita em Equilíbrio Geral, nada parecido
com aquilo que as pessoas normalmente pensam, como conhecimento perfeito de
preços etc.

Nas exposições de livro-texto, as funções são contínuas e o nível individual se dilui no


agregado, tirando-nos a chance de enxergar a competição perfeita em equilíbrio, pois
tudo se colapsa em um ponto. Na competição perfeita, o ponto é, na verdade, um
trecho horizontal coincidente das curvas de oferta e demanda agregadas. Esse trecho
horizontal será mais provável de existir quanto maior o número de agentes, pois assim
também maior será a chance de que alguns agentes tenham valorações marginais
iguais ou muito parecidas (sejam elas preços de demanda, isto é, disposições marginais
a pagar, ou preços de oferta, isto é, custos marginais), de modo que, na soma
horizontal, várias unidades sejam transacionadas ao mesmo preço. É nesse fato que
reside a condição de full appropriation. Ela não é tão imediata assim, pois depende do
que ocorre não só na infra-margem, mas com todos os agentes anteriores. Ela realça o
aspecto essencialmente distributivo da competição perfeita. Já a condição equivalente
de ofertas e demandas perfeitamente elásticas, elucidada por Joan Robinson nos anos
30, é muito patente no trecho horizontal que determina o preço de equilíbrio. Os
agentes não conseguem alterar o preço de forma unilateral.

Um ponto que se faz óbvio com o exemplo é que a existência de grandes números de
agentes não é condição inerente à competição perfeita, ao contrário do que vemos por
aí e muitos repetem sem a devida ciência de como a Teoria evoluiu.
Note ainda que, sob competição perfeita, o excedente social é igual à soma dos preços-
sombras dos agentes. Sabemos que, por definição, o excedente social é igual à soma
dos excedentes privados. Existe um teorema em Equilíbrio Geral, devido a Joseph
Ostroy e Louis Makowski (“Apropriation and efficiency: a revision of the first theorem
of welfare economics”, American Economic Review, 85: 808–827 (1995)), que diz que o
excedente privado de qualquer agente é sempre majorado pelo seu preço-sombra. Sob
competição perfeita, como há full appropriation, então o excedente fosse um bolo cujas
fatias fossem determinadas pelas contribuições marginais de cada agente para o
tamanho do bolo, seria possível repartir o bolo integralmente segundo esse critério.

A condição de full appropriation chamava-se antes no-surplus condition e surgiu no


artigo seminal de Ostroy: “The no-surplus condition as a characterization of perfectly
competitive equilibrium”, Journal of Economic Theory, 22: 183–207 (1980). A grande
contribuição de Ostroy para a Teoria do Equilíbrio Geral foi, tendo mostrado que o
marginalismo possui dois pilares, o da mercadoria e o do indivíduo, ter erigido o pilar
marginalista do indivíduo, que fora antes apenas abarcado apenas localmente por
Vickrey, Hurwicz, Pigou, Coase, John Bates Clarke, Wicksteed e outros. Vide Ostroy: “A
reformulation of the marginal productivity theory of distribution”, Econometrica, 52:
599–630 (1984)). Os mesmos princípios valem também para bens públicos sob
desenho demecanismos. Veja, para isso, o artigo de Ostroy e Makowski: “Vickrey-
Clarke-Groves mechanisms in continuum economies: characterization and existence”,
Journal of Mathematical Economics, 21: 1–31 (1992). Os 20 anos de pesquisa de Ostroy,
Makowski e outros culminaram no survey “Perfect competition and the creativity of the
market”, Journal of Economic Literature, 39: 479–535 (2001), em que os autores
apresentam um resumo bastante didático da reformulação da teoria marginalista da
distribuição e suas aplicações à Teoria do Equilíbrio Geral.

O texto não foi curto, mas espero que aqueles que tiveram a paciência de lê-lo tenham
aprendido algo novo.

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Please read as well:

Economics and Classics


* A República Romana e os instrumentos de crédito
* On the notion of wrong decision in the Greek tragedy: the epistemic rôle of
uncertainty, risk and ignorance
* O mercado de escravos em Roma e o problema da seleção adversa

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