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Visão: Ser uma instituição educacional reconhecida pela excelência nos serviços
prestados, pelos seus elevados padrões éticos e pela qualidade pessoal e
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VNASPRESS
Imprensa Universitária Adventista
Editor: Rodrigo Follis
Editor Associado: Felipe Carmo
Conselho Editorial: José Paulo Martini, Afonso Cardoso, Elizeu de Sousa, Francisca Costa,
Reinaldo Siqueira, Rodrigo Follis, Betania Lopes, Wilson Paroschi
www.unaspstore.com.br
Todos os direitos reservados para a Unaspress. Proibida a reprodução por Todo o texto, incluindo as citações, foi adaptado segundo o Acordo Ortográfico
quaisquer meios, salvo em breves citações, com indicação da fonte. da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.
0 adventista e a cultura pop/Allan Novaes, Felipe Carmo (orgs.J. -1. ed. - Engenheiro Coelho, SP: Unaspress -
ISBN: 978-85-8463-087-5
14-03589 CDD-302.2
Editora associada:
Associação Brasileira
das Editoras Universitárias 022708201?
PALAVRAS INICIAIS
PREFÁCIO
INTRODUÇÃO
PRIMEIRA SEÇÃO
Capítulo 1: Revelação e cultura........................................................... 29
Felipe Carmo
SEGUNDA SEÇÃO
Capítulo 4:0 adventista e a ficção televisiva................................. 105
Lizbeth Kanyat
TERCEIRA SEÇÃO
Capítulo 11: Minha relação com a cultura pop.................................. 261
Histórias reais
0 tempo passa, e com ele ficam para trás antigas
maneiras de enxergar o mundo a nossa volta. 0
desenvolvimento tecnológico, a mudança de paradigma
e a evolução do pensamento científico avançam, às
vezes, sem pedir licença, exigindo do ser humano um
espírito determinado, porém, flexível. Em face a essa
realidade, não podemos esquecer as palavras do sábio:
“Não diga: ‘Por que os dias do passado foram melhores
que os de hoje?’ Pois não é sábio fazer tais perguntas”
(Ec ?:10, NVI). Esse antigo conselho comunica uma
realidade presente: cada época da história humana
carrega consigo suas inevitáveis dificuldades, mas,
ao mesmo tempo, descortinam um universo de
possibilidades nunca antes imaginado! A vida avança, e
os que desconsideram essa realidade, caducam - seja
na escola, no comércio, no entretenimento ou na religião.
Atualmente, podemos afirmar que vivemos
em uma sociedade apressada. Uma sociedade que
se preocupa, acima de tudo, com o que pode ser
conquistado no imediato'. Compartilhamos a “cultura
da pressa”, em que o vencedor é o mais veloz - seja
na produção de bens de consumo, na elaboração de
idéias ou na veiculação de notícias. A nova geração
que está diante de nós tem pavor da ociosidade, e
não aceita “perder tempo” com afazeres que não
sejam úteis para a realização de seus objetivos. 0
jovem nesse sentido vive com medo do “vazio”,
preenchendo cada segundo do seu dia a dia com
atividades das mais variadas. Esse sentimento
instaura no palco do cotidiano uma competição
entre os afazeres, em que tomam prioridade aqueles
que prometem ser mais promissores para o rápido
avanço de nossas realizações pessoais.
Na tensão das atividades cotidianas, as novas
gerações buscam o alívio de suas preocupações
no entretenimento. Isso significa que, em ocasiões
“livres”, o jovem acostumou-se a acompanhar séries
pela internet, colecionar histórias em quadrinhos,
dedicar tempo e dinheiro em jogos eletrônicos ou
mesmo reunir-se em finais de semana para uma sessão
pipoca com os amigos. Como diriam os especialistas,
a sociedade busca o espetáculo para as ocasiões de
prazer; ela estará inteiramente interessada em um
assunto conquanto este se demonstre interessante
o suficiente para ser consumido, em termos de
relevância, emoção, profundidade e apelo visual. Esse
estilo de vida, devemos admitir, tornou-se abrangente
o suficiente para representar o espírito de nossa
época! Ele não perdoa sequer as nossas igrejas.
Reconhecendo o contexto em que estamos
inseridos, assim como a necessidade de atualizar a
mensagem do evangelho para as novas gerações, o livro
0 adventista e a cultura pop representa uma iniciativa
corajosa. 0 material que você tem em mãos foi redigido
por especialistas na área de Teologia e Comunicação
Social que, além de considerar a relação histórica dos
adventistas com os meios de comunicação, aprofundam
o nosso conhecimento sobre eles, oferecendo uma
perspectiva equilibrada e otimista sobre o assunto.
Tenho comigo a convicção de que Deus conduz
a sua igreja de maneira sábia e inovadora, sempre
disposto a alcançar o ser humano onde quer que se
encontre; sempre preocupado a realizar uma coisa nova
(Is 43:19; 65:17; Nm 16:30). Portanto, acredito que o
estudo dos conceitos elaborados nesta obra e a prática
de suas sugestões abrirão oportunidades inimagináveis
para o avanço do adventismo às novas gerações. Acima
de tudo, consciente da rápida e infindável produção de
conteúdos midiáticos, desejo que o livro 0 adventista
e a cultura pop instaure em nós o sentimento de que
possuímos algo peculiar para oferecer.
Martin Kuhn
Reitor do Centro Universitário Adventista de São Paulo
0 livro O adventista e a cultura pop, uma
novidade lançada pelo selo editorial Excelsior!,
chegou em um momento determinante para a
Igreja Adventista do Sétimo Dia [IASD]. Poderia
ser dito, inclusive, que os esforços empregados
pela denominação para esse quinquênio foram
“coroados” com uma obra simples, acessível e bem
embasada para o início de discussões emergentes,
principalmente no que diz respeito aos meios de
comunicação e às novas gerações.
Atualmente, é inegável o protagonismo
que os meios de comunicação exercem para o
funcionamento da sociedade, de maneira que é
impossível pensar em qualquer ação sem levar em
conta esse fenômeno. A IASD, da mesma forma,
não poderia se excluir deliberadamente deste
contexto, que a abraça de maneira inevitável. Com
esse espírito, a igreja elaborou o Documento sobre
Comunicação Adventista, que visa estabelecer
parâmetros de orientação para a relação entre
a IASD e os meios de comunicação. Dentre as
muitas prescrições apontadas no documento, a
igreja reconhece a necessidade de evangelizar as
“subculturas”. Ele afirma: “a diversidade desses
grupos [as subculturas] exige da missão adventista
a elaboração e execução de abordagens que
respondam às necessidades desses segmentos
e que comuniquem o evangelho eterno de modo
inteligível para eles.” Tudo isso, contudo, sem a
mudança de qualquer princípio da fé adventista.
Essa preocupação com as subculturas,
segundo o documento, impele a IASD a “adotar
abordagens segmentadas ”; isto é, tomar
conhecimento de uma realidade social específica e
respondera ela à sua própria maneira. É justa mente
neste contexto que o livro O adventista e a cultura
pop se enquadra de maneira especial. Ele tem
como objetivo iniciar um diálogo franco com o
público mais jovem, a saber, as “ndvas gerações”,
sobre assuntos que são inevitáveis no seu
cotidiano: jogos, filmes, histórias em quadrinhos
etc. Entretanto, o que torna o livro excepcional
para o momento é a maneira inteligente, profunda
e despreconceituosa de se aproximar dessa
subcultura a partir de sua própria linguagem e
contexto. Dessa forma, O adventista e a cultura
pop incentiva o que o documento citado acima
já idealizava: “utilizar os meios de comunicação
disponíveis, sejam denominacionais ou seculares,
para transmitir ao mundo o evangelho eterno.”
Nesse sentido, 0 adventista e a cultura pop dá
continuidade a uma série de iniciativas ousadas e
criativas da IASD para evangelizar as novas gerações
através dos meios de comunicação. Desde os
mileritas, por exemplo, em uma época em que os
protestantes associavam a utilização de imagens à
idolatria, eram utilizados livrogravuras, diagramas e
gráficos ilustrados para a pregação. A própria Ellen G.
White, em seu livro Fundamentos da Educação Cristã,
reconhece a necessidade do engajamento da igreja
com os novos meios de comunicação, ao afirmar:
“Deus dotou os homens de talentos e capacidade
inventiva, a fim de que seja efetuada a sua grande
obra em nosso mundo. As invenções da mente
humana parecem proceder da humanidade, mas
Deus está atrás de tudo isso. Ele fez com que fossem
inventados os rápidos meios de comunicação para o
grande dia de sua preparação.”
Um exemplo mais prático dessas iniciativas
dentro da IASD pode ser evidenciado na produção
de dois filmes muito conhecidos atualmente
entre os adventistas: Tell de world [“Como tudo
começou”], que conta a história da denominação;
e o filme O resgate, que apresenta uma narrativa
ficcional sobre a história da redenção. Tão
importantes foram essas produções para a igreja
que, por ocasião do primeiro filme, a IASD publicou
um documento intitulado 0 uso de filmes para o
cumprimento da missão, em que reafirma o seu
compromisso com a ?a arte para a propagação da
mensagem do evangelho. Segundo o documento, o
objetivo principal da obra é comunicar esperança
e fé para o cumprimento da missão. Com essa
declaração oficial, a igreja esclarece, de uma vez
portodas, o comprometimento que os adventistas
possuem com os meios de comunicação como
ferramentas outorgadas pelo próprio Deus para a
propagação da sua vontade ao mundo.
É nesse mesmo contexto de inovações que
o livro 0 adventista e a cultura pop se encontra.
Em suma, ele faz questão de esclarecer as
relações históricas que o adventismo possui
com os diversificados meios de comunicação
e, posteriormente, apresentar uma perspectiva
otimista para o futuro. Trata-se de um livro
elaborado por especialistas na área que, além de
explicar as funções específicas dos objetos que
estudam, oferecem ótimos esclarecimentos a
respeito de sua relação com conteúdos religiosos
- especialmente o adventista do sétimo dia.
Portanto, o livro 0 adventista e a cultura pop
deve ser recebido como parte integrante de duas
ênfases da IASD na América do Sul para os próximos
anos: em primeiro lugar, revitalizar a relação dos
adventistas com os meios de comunicação a
fim de que estes sejam ferramentas úteis para a
pregação de sua mensagem; e, por conseguinte,
explorar novas linguagens e conteúdos para o
alcance das novas gerações. 0 departamento
de comunicação da IASD para a América do Sul
reconhece a utilidade deste livro para o avanço das
expectativas acalentadas pela denominação. Além disso, é nosso
desejo que as reflexões oferecidas por essa obra sejam recebidas
com humildade e espírito de inovação para que a igreja avance.
Rafael Rossi
Diretor de Comunicação da Igreja Adventista do Sétimo Dia para a América do Sul
Entre os membros da Igreja Adventista do
Sétimo Dia (IASD), falar de “filme”, “videogame”,
“história em quadrinhos”, “música” etc., costuma
comunicar um sentimento de tensão nas reuniões
jovens. Mas isso não ocorre por considerarem
esses objetos como demoníacos, e muito menos
por acreditar que são inofensivos à moral cristã. 0
problema encontra-se justamente no meio termo,
ou seja, na procura por uma opinião equilibrada
que consiga transitar entre as ênfases otimista e
pessimista. Por isso, os argumentos prós e contras
sobre o envolvimento do adventista com tais objetos
costumam se desenvolver no extremo das opiniões:
ou o adventista se afasta completamente dos
produtos culturais de sua época, para viver uma vida
“pura”, ou mergulha inofensiva e irrefletidamente no
universo do entretenimento... Ambos os extremos,
concordamos, estão enganados.
Embora essa dificuldade seja comum nas
congregações adventistas, com o passar dos anos,
o mesmo sentimento foi transferido ao ambiente
acadêmico. No Centro Universitário Adventista de São
Paulo, campus Engenheiro Coelho (Unasp-EC), por
exemplo, o corpo docente do curso de Comunicação
Social se deparou com dois impasses. Por um
lado, surge a questão: 1) como ensinar aos alunos
a estudar os meios de comunicação e, assim, a
cultura midiática, se muitos deles acreditam que tal
envolvimento é pecaminoso? Por outro lado, 2)como
ensinar aos alunos os princípios de vida cristã se
os meios de comunicação muitas vezes promovem
um universo moral com elementos opostos aos
ensinamentos bíblicos? A relação dos adventistas
com os meios de comunicação pode sertraduzida
assim: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Com essas preocupações em mente, no
segundo semestre de 2016, o curso de Comunicação
Social juntamente com o grupo de pesquisa
interdisciplinar em religião, juventude e cultura da
mídia Excelsior! promoveram uma serie de palestras
intitulada “0 cristão e a cultura midiática”, realizada
aos sábados à tarde no Unasp-EC. Foram convidados
um grupo de especialistas - docentes da área de
Teologia e de Comunicação Social - para elaborar
palestras sobre os problemas que mencionamos.
Cada um deles preparou uma apresentação sobre
o relacionamento histórico dos adventistas com
um objeto específico da cultura pop (jogos, filmes,
literatura, quadrinhos etc.) e ofereceu, a partir de
um viés teológico-comunicacional, uma sugestão
mais equilibrada sobre os temas. Todo o conteúdo
apresentado nessa série de palestras, além de
outros que acrescentamos com o passar do tempo,
foram reunidos exatamente no livro que você tem
em mãos, intitulado O adventista e a cultura pop.
Neste caso, o título deixa claro que o foco principal
desse material é a relação do cristão adventista
com aquilo que conhecemos como “cultura pop,
que entendemos como a cultura da mídia e seus
símbolos, ícones e produtos associados ao universo
do entretenimento, do consumo e da juventude.
Neste livro você encontrará as mesmas palestras,
organizadas com o objetivo de te introduzir ao universo
tempestuoso e, ao mesmo tempo, otimista, das
relações da IASD com a cultura pop. Para que essa
tarefa fosse realizada de maneira completa, o livro
foi dividido em duas partes: a primeira delas quis
apresentar um contexto teológico para as relações
do adventista com a cultura pop; a segunda parte,
de maneira complementar, quis abordar diversos
produtos ou elementos da cultura pop de forma mais
específica, assim como seu relacionamento com a
IASD no passado, no presente e em perspectivas
futuras. Com isso em mente, devemos lembrarvocê,
querido leitor, que o objetivo do livro não é oferecer
uma lista de regras para a sua relação com os meios
de comunicação! Não queremos dizer: “Você pode
assistir isso e deve evitar aquilo”, “filmes da igreja
são melhores do que filmes do mundo” ou “Star Wars
é melhor do que Star Trek’’. Nosso objetivo principal é
introduzir você ao universo da relação da IASD com a
cultura pop e, quando possível, sugerir algumas idéias
para o futuro dessa relação.
0 primeiro capítulo, “Revelação e cultura: reflexões
bíblicas para o cotidiano”, escrito pelo professor Felipe
Carmo, oferece uma perspectiva bíblica e teológica
para ser aplicada aos meios de comunicação. Nesse
capítulo, entendemos, a partir do relato bíblico, que
Deus se revela de diversas maneiras e, portanto,
possuímos a possibilidade de encontrá-lo em contextos
diversificados, mesmo que de forma ainda limitada.
Em seguida, o professor Allan Novaes, no capítulo
“Mensagens subliminares: o imaginário conspiratório
sobre a mídia na literatura adventista”, oferece um
importante esclarecimento sobre a limitação de
abordagens que costumam analisara cultura pop como
recipiente de mensagens ocultas. No final dessa seção,
os professores Marcelo Dias e Rodrigo Follis, no capítulo
“Modernidade, Mídia e Missão: para ser adventista em
um mundo dominado pela comunicação”, explicam
a importância de entender como a mídia atualmente
constrói identidades religiosas e qual o papel do
cristianismo nesse contexto.
Finalmente, a segunda seção é iniciada
pelo capítulo “0 adventista e a ficção televisiva:
redescobrindo a arte de contar histórias”, em que a
professora Lizbeth Kanyat procura compreender o
conceito de “ficção” de uma perspectiva mais ampla.
Em seguida, ela apresenta alguns exemplos de como
a IASD se utilizou dessa linguagem para propagar
sua mensagem por meio da televisão. Quase que
em complemento ao anterior, no capítulo cinco, “0
adventista e os filmes: mudanças de paradigma e
perspectivas para o futuro”, Bruno Ribeiro Nascimento
e Bruno Leonardo Ferreira demonstram que a arte
fílmica, há muito, tem sido utilizada pelos cristãos
como ferramenta para a pregação do evangelho - de
maneira até mesmo pioneira na história do cinema.
Depois disso, os autores também demonstraram
que os adventistas não se encontram alienados da ?a
arte! Na verdade, eles estão produzindo e idealizando
produtos fílmicos de diversos gêneros para a
comunicação de sua mensagem.
0 capítulo seis, “0 adventista e a literatura de
ficção: produção e crítica literária no adventismo
brasileiro”, da autoria do professor Clacir Virmes
Junior, apresenta uma perspectiva otimista sobre a
relação entre teologia e literatura. Posteriormente,
o autor apresenta várias iniciativas da IASD na
produção de ficção literária e enfatiza a importância
do desenvolvimento de uma visão crítica da literatura
entre os membros da instituição. No capítulo sete,
“0 adventista e as histórias em quadrinhos: um
breve relato sobre a relação do adventismo com
a 9a arte”, os professores Felipe Carmo e Allan
Novaes apresentam um panorama resumido sobre
o potencial teológico das histórias em quadrinhos
- por mais estranho que isso possa parecer! Em
seguida, eles apresentam um breve histórico sobre as
opiniões da IASD sobre os quadrinhos e, depois disso,
as iniciativas da própria instituição nesse sentido.
0 capítulo oito, “0 adventista e os games:
expandindo o evangelho à linguagem do
entretenimento”, de Fábio Darius e Gabriel Ferreira,
apresenta de uma maneira muito interessante a
relação dos adventistas com os jogos, mas com
o foco especial na época de Ellen G. White. Depois
disso, eles apresentam algumas iniciativas da própria
IASD na produção de jogos, tanto de tabuleiro quanto
eletrônico. Em seguida, no capítulo nove, “0 adventista
e a música pop: definições, preconceitos e práticas
eclesiásticas”, o professor Joêzer Mendonça retrata
brevemente o contexto de preconceitos em que a
música pop emergia e como muitos dos pressupostos
antigos ainda perduram entre os cristãos adventistas.
Além disso, o autor explica como esse gênero tem sido
tratado atualmente no contexto adventista.
Por fim, e nunca menos importante, a professora
Betina Bordin Pinto, no capítulo “0 adventista e
a mulher na mídia: encontros e desencontros na
construção do feminino”, tenta tratar de um assunto
raramente abordado nas discussões sobre a relação
entre os adventistas e a cultura midiática: a retratação
da figura feminina nos meios de comunicação. Ao
analisar alguns programas da Rede Novo Tempo de
Televisão e alguns artigos da Revista Adventista, a
autora faz observações sobre como a imagem da
mulher é construída no contexto midiático adventista.
Em complemento a todo esse conteúdo que
apresentamos para você, o livro O adventista e
a cultura pop também inclui uma terceira seção
dedicada a testemunhos pessoais. Nós selecionamos
oito pessoas importantes (você deve conhecer várias,
inclusive], para dividir conosco algumas de suas
experiências pessoais com a cultura pop! Mesmo com
um pouco de receio, eles escolheram compartilhar
com você alguns dos desafios (ou não] da relação
com esse tipo de cultura. Cada um deles preparou
uma pequena “declaração pessoal”, apenas com o
objetivo de demonstrar, na prática, como a cultura
pop fez ou ainda faz parte de suas vidas.
Bom... nós esperamos, sinceramente, que
você faça um bom proveito de cada parágrafo deste
livro! Ele foi preparado por pessoas que, além de
abordar os temas profissionalmente, possuem um
amor profundo por Cristo. É também parte do nosso
desejo pessoal que esse conteúdo seja útil para a
informação, educação e reflexão dos adventistas,
principalmente os mais jovens, de maneira que
desenvolvam uma visão mais madura sobre Deus, o
ser humano e o mundo em que estão inseridos.
Os organizadores
Revelação e cultura
REFLEXÕES BÍBLICAS
PARA 0 COTIDIANO
Felipe Carmo
Mestrando em Língua e Literatura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP); Especialista
em Teologia Bíblica [2014] pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo [Unasp-EC];
e Bacharel em Teologia (2012) pela mesma instituição. Atua como redator na Imprensa
Universitária Adventista (Unaspress) e como professor da Faculdade Adventista de Teologia no
Unasp-EC. E-mail: felipe.carmoiaucb.org.br
Vamos direto à questão: “0 que é de Deus
e o que é de Satanás na cultura?” A pergunta
parece simples, mas devo confessar que esse
questionamento é amplo demais para ser
respondido em poucas páginas. 0 que pretendo
dizer é que, antes de formular essa questão, o
sujeito estará normalmente afirmando: existem
coisas que são exclusivamente de Deus e
outras que são exclusivamente de Satanás.
Contudo, para alegar isso, você deve responder
em primeiro lugar quais características são
capazes de tornar um objeto “sagrado” (de
Deus) ou “profano” (de Satanás). Ou seja,
alguém deve ser apto para definir o caráter de
Deus e o caráter de Satanás para, finalmente,
lançar o veredito: isto é sagrado e aquilo é
profano. Complicado, né? Por exemplo, se
entendemos que Deus é amor, por contraste
óbvio, podemos afirmar que Satanás é ódio; se
Deus é fidelidade, Satanás é traição. Até aqui,
a lógica parece simples e aplicável a diversas
circunstâncias, mas não devemos ser ingênuos.
A coisa é bem mais complicada do que parece.
Esses exemplos são características
abrangentes a respeito de Deus. A Bíblia
afirma, várias vezes, que Ele é amor e
fidelidade (lJo 4:8,16; Jr 31:3; SI 33:5; Lm
3:23; Os 2:20; SI 92:2); disso todo mundojá
sabe. Porém, quando alguém pergunta: Esta
música é de Deus? Este livro é de Deus? Esta
comida é de Deus? Este filme é de Deus?,
“amor” e “fidelidade” são categorias muito
limitadoras ou amplas demais! Elas não dão
conta de respondertodos os questionamentos
que podemos levantar. Por exemplo: É
pecado andar de patinete? É pecado mascar
chiclete? Que tipo de óculos agrada a Deus?
capítulo 1
Qual penteado é o menos pecaminoso? É
pecado usar uma camiseta do Chaves? Para
responder a essas questões, precisaremos de
mais definições sobre Deus para aplicá-las a
todas as possíveis instâncias de nossa vida.
Será possível construir uma lista com todas as
características sobre Deus capaz de nos guiar
em cada aspecto do nosso cotidiano?
Sabemos da existência de uma ciência
que pretende conhecer a Deus, por mais
maluco que possa parecer; chamamos
ela de Teologia (do grego Oéoç + Àóyoc;,
literalmente “estudo de Deus”). Assim, se
existe a possibilidade de formular uma lista
de “sagrados e profanos” a respeito dele,
é inevitável nos introduzirmos à “ciência
de Deus”. Por isso, este capítulo pretende
apenas responder uma parte da questão que
propomos acima. A partir de alguns conceitos
introdutórios à Teologia, iremos tentar
entender, de forma geral, “o que é de Deus na
cultura?”. Se essa pergunta for respondida
com sucesso, por lógica, estaremos mais
aptos para responder à outra parte da
questão: “o que é de Satanás na cultura?” Mas
não queremos falar de Satanás nesse capítulo.
(Temos medo de mexer com essas coisas...)
REVELAÇÕES DE DEUS
AO SER HUMANO
Para conhecera Deus, em primeiro
lugar, devemos descobrir em quais locais
Ele resolveu aparecer! Todas as introduções
ao estudo da Teologia trarão o assunto da
“revelação” à tona como pressuposto para
REVELAÇÃOECULTURA
qualquer alegação a respeito de Deus (SEVERA,
2016; REIS, 2016; FRANKLIN, 2015; CANALE,
2011). Muito embora Deus seja gigantesco
e o ser humano uma pulga de mosquito, Ele
toma a iniciativa de se comunicar com a
humanidade de várias formas diferentes (Hb
1:1). Entendemos que, sozinha, a humanidade
nunca seria capaz de entrar em contato com
Ele por ser infinitamente limitada em suas
capacidades físicas e intelectuais. Mesmo
assim, a Teologia compreende que Deus se
revela ao ser humano; Ele pode ser conhecido,
e nos deixou algumas pistas a seu respeito.
Os teólogos costumam explicar a
revelação de Deus de duas maneiras. Para
eles, Deus se manifesta na revelação geral
e na revelação especial. Esses dois tipos de
revelação podem ser definidos da seguinte
maneira, segundo Miliard J. Erickson [2015, p.
140): a revelação geral “é a comunicação que
Deus faz de si mesmo a todas as pessoas,
em todas as épocas e em todos os lugares”; a
revelação especial “envolve a comunicação
e as manifestações particulares de Deus
a respeito de si para certas pessoas,
(...) as quais se encontram à disposição
hoje somente mediante a consulta a
determinados escritos sagrados.”
Em outras palavras, a revelação geral é a
comunicação divina que não faz distinção de
povos, cultura, religião ou time de futebol. Uma
tribo remota na Polinésia, por exemplo, é capaz
de aprender alguma coisa sobre Deus a partir
daquilo que Ele apresenta sobre Ele mesmo.
Ainda que essa tribo possua distinções
doutrinárias daquilo que a Bíblia ensina, ela
pode aprender algo do conhecimento de Deus
CAPÍTULO 1
graças ao que Ele comunica a todos os seres
humanos. Por outro lado, a revelação especial
representa o tipo de conhecimento a respeito
de Deus que está restrito a uma época, local
ou povo específicos. Compreendemos, e
acreditamos, que o povo hebreu foi elegido
por Deus por meio de Abraão para perpetuar a
sua Aliança (Gl 3:29; Rm 9:2; Hb 2:16; Lc 3:8; At
13:26; Gl 3:16). Embora pudessem conhecer
o Criador a partir da revelação geral, para se
relacionar com o Deus verdadeiro, os povos da
antiguidade precisariam se render ao “Deus de
Abraão, Isaque e Jacó”.
Sobre a revelação geral, a Bíblia menciona
alguns exemplos. Podemos alegar que a
revelação geral se manifesta de pelo menos
três formas distintas à humanidade: Deus fala
de si mesmo através da natureza, da história
e do interior moral do ser humano. Contudo,
devemos chamar atenção para uma coisa
muito importante: essas três formas distintas
não representam a revelação de Deus em si,
mas funcionam como uma espécie de “palco”
em que a revelação ocorre. É como se Deus
estivesse caminhando por eles e, ao mesmo
tempo, deixasse algumas pegadas, isto
é, impressões digitais de si mesmo! Nesse
sentido, a natureza, a história e o interior moral
do ser humano não representam a revelação
geral em si, mas o lugar em que a revelação se
manifesta. Isso ficará mais claro ao passo que
recorrermos a alguns exemplos.
Ao introduzir sua carta aos Romanos,
por exemplo, Paulo afirma: “A ira de Deus
se revela do céu contra toda impiedade e
perversão dos homens que detêm a verdade
pela injustiça; porquanto o que de Deus se
REVELAÇÃO E CULTURA
pode conhecer é manifesto [cpavepov1]
entre eles, porque Deus lhes manifestou.” E
complementa: “Porque os atributos invisíveis 1 0 termo grego cpavepov
de Deus, assim o seu eterno poder, como [phaneron] que se
encontra entre colchetes
também a sua própria divindade, claramente
no verso citado significa
se reconhecem, desde o princípio do mundo, “visível, claro, fácil de
sendo percebidos por meio das coisas que ser visto, conhecido”
(GINGRICH; DANKER,
foram criadas. Tais homens são, por isso,
2012). 0 alcance
indesculpáveis” (Rm 1:18-20). Nesse texto, semântico da expressão
o apóstolo nos esclarece que Deus pode ser inserida no verso em
CAPÍTULO 1
divino: “Bem sei que o Senhor vos deu esta
terra, e que todos os moradores da terra estão
desmaiados. Porque temos ouvido que o Senhor
secou as águas do mar Vermelho diante de vós,
quando saíeis do Egito [...], e em ninguém mais
há ânimo algum, por causa da vossa presença;
porque o Senhor, vosso Deus, é Deus em cima
nos céus e embaixo na terra (Js 2:9-11],
Na Bíblia, os eventos históricos
representam provas concretas a respeito da
existência de Deus e, mais do que isso, de que
Ele é fiel e misericordioso. Nas palavras de
Isaías, “povos fortes te glorificarão, e a cidade
das nações opressoras te temerá. Porque foste a
fortaleza do necessitado na sua angústia; refúgio
contra a tempestade e sombra contra o calor” (Is
25:3-4). A história é um tipo de revelação geral
porque comunica à humanidade a onipotência
divina em face aos acontecimentos.
Por último, a revelação geral pode ser
manifesta no próprio ser humano, a partir
de sua vida moral interior: a consciência
humana. Segundo o apóstolo Paulo: “Quando,
pois, os gentios, que não têm lei, procedem,
por natureza, de conformidade com a lei, não
tendo lei, servem de lei para si mesmos."
Eles procedem com ela “acusando-se ou
defendendo-se, no dia em que Deus, por
meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos
homens” (Rm 2:14-16). Esse verso é revelador
porque nos explica que o gentil (ou seja, o
não judeu) será julgado pela lei inscrita em
seu coração e não precisamente pela lei
conferida aos Israelitas. Esse exemplo ilustra
a revelação geral porque todos os seres
humanos, independentemente de etnia ou
religião, nascem com uma habilidade inata
REVELAÇÃOECULTURA
para avaliar moralmente as situações e optar
pela escolha que julgam mais correta.
Mesmo depois desses versos reveladores,
nem tudo é tão bonitinho quanto parece: a
natureza, a história e o interior moral do ser
humano, embora possam sinalizar algo sobre
a revelação de Deus, são meios imperfeitos de
comunicação! Isso significa que eles não vão
conseguir expressar a revelação de Deus de
maneira precisa. Por serem imperfeitos, eles
costumam fazer isso de forma defeituosa.
Essa revelação pode aparecer ambígua e nem
sempre refletir a vontade de Deus de forma
muito clara. Mesmo assim essa limitação não
invalida a revelação geral de maneira alguma!
Na verdade, ela apenas nos lembra que o
“palco” em que Deus atua deve ser analisado
com os “óculos da fé” (CALVINO, 2006), ou seja,
precisa ser interpretada à luz das Escrituras.
Ellen G. White já demonstrava essa mesma
preocupação quando disse: “o livro da natureza
e a palavra escrita lançam luz de um para
o outro” (WHITE, 2008, p, 128); e em outra
ocasião, complementa: “a razão humana,
destituída de auxílio, o ensino da natureza
não poderá deixar de ser senão contraditório
e enganador. Unicamente à luz da revelação
poderá ele ser interpretado corretamente”
(WHITE, 2008, p. 134). Neste caso, a Bíblia será
capaz de nos alertar a respeito da validade
daquilo que encontramos na natureza, na
história e no interior moral do ser humano.
Quando nos deparamos com essas
facetas sobre a revelação geral podemos
reconhecer quatro coisas. Se Deus possui
uma maneira de se revelar a todos os
seres humanos: 1) todas as pessoas,
CAPÍTULO 1
independentemente de etnia ou religião,
possuem um mínimo conhecimento sobre
Deus. Essa característica nutre em nós
uma virtude: 2) a revelação geral amplia
nossa concepção a respeito da grandeza e
onipresença de Deus. Ela deve ser estudada
em conjunto com a revelação especial para
que o nosso conhecimento de Deus seja
enriquecido. Contudo, devemos lembrar
que a revelação geral é muito abrangente e
corre o risco de ser contraditória. Afinal, ela
apresenta algumas características gerais
sobre Deus, e essas características podem
ser interpretadas de maneiras distintas:
dessa forma, 3] a revelação geral possui
algumas imperfeições e ambiguidades; para
ser esclarecida, ela necessita da revelação
especial. Isso não significa, é claro, que a
39
revelação de Deus em si é imperfeita, mas
que o palco em que ela aparece (a natureza, a
história e a moral humana] está com defeito
e, portanto, não consegue se comunicar muito
bem. Ela é limitada e ambígua em termos
de comunicação, porque consegue revelar
apenas as “impressões digitais” da atuação
divina. Por último, podemos alegar que 4) a
revelação geral sinaliza à possibilidade de
que as religiões mundiais possuem algum
elemento válido sobre Deus. Ela nos torna mais
humildes em relação à nossa fé e admite que
Deus é capaz de deixar suas impressões no
contexto das religiões não cristãs, mesmo que
essas impressões sejam ainda ambíguas e
defeituosas por causa do pecado.
Em resposta à questão inicial, o que
abordamos é muito introdutório, mas pode
nos servir de auxílio. Entendemos que é
REVELAÇÃOECULTURA
possível conhecera Deus em qualquer
contexto histórico ou religioso - mesmo que
de forma imperfeita, ambígua e incompleta
- e, portanto, o “mundo” pode ser entendido
como palco da manifestação divina e um
instrumento útil para conquistarmos um
pouco do nosso conhecimento sobre Deus.
Ainda assim, restam alguns questionamentos:
será que podemos elaborar uma “Teologia” a
partir da revelação geral? É muito fácil pegar
uma Bíblia (revelação especial] e falar de
Teologia a partir dela, mas ao entrar em contato
com a revelação geral, seria possível oferecer
definições sobre Deus? Podemos reconhecê-
lo nos acontecimentos cotidianos?
REFLEXÕES TEOLÓGICAS
40 PARA 0 COTIDIANO
Antes de falar da vida cotidiana, vamos usar
outra palavra para entendê-la melhor. Vamos
considerar que ela reflete precisamente aquilo
que conhecemos como cultura. Em termos
simples, ela é entendida de duas perspectivas
propostas por Raymond Williams [2001]: 1]
o “domínio das idéias”, que representa as
descrições que as pessoas conferem às suas
experiências comuns, o que as auxilia a dar
algum sentido à vida; e 2] as “práticas sociais”,
deliberando a existência da cultura como um
modo de vida. De forma mais técnica, a cultura
poderá ser entendida como as “relações entre
elementos de um modo de vida global [...] ela
está perpassada portodas as práticas sociais
e constitui a soma do inter-relacionamento das
mesmas” (HALL, 2003, p. 136).
CAPÍTULO 1
“DEUS SE COMUNICA
COM TODOS OS
SERES HUMANOS
NO‘PALCO’DO
COTIDIANO, DE
FORMA DUE
POBSMO5
ENCONTRAR
EXPRESSOS NA
CULTURA POP
REFLEXÕES
TEOLÓGICAS
OüGHAS DE
VALIDADE.”
Vamos simplificar: a cultura é,
basicamente, a união daquilo que você veste,
o que você come, o que assiste, o que lê
etc., tudo isso (e muito, muito, muito mais)
representa a sua cultura! Para um londrino,
é normal ir a igreja de terno. Para algumas
regiões do Caribe, pode ser que alguém vá
à igreja de camiseta. Tanto a maneira de se
vestir quanto a maneira de se relacionar com o
clima são culturais para eles.
Já que o ser humano também se
relaciona com a natureza, com a história
e consigo mesmo (em suas relações
interpessoais), ou seja, com a “revelação
geral”, é possível dizer que os significados que
eles conferem a essas relações se configuram
como “culturais”, ou seja, eles possuem idéias
sobre a natureza, a história e a moral. Por isso,
se esses elementos são o palco em que Deus
se revela ao ser humano, podemos considerar
que ele se revela através da “cultura humana”
- ainda que de forma imperfeita devido às
limitações dela, como já falamos. Todas as
outras atividades cotidianas resultantes
dessa relação com a revelação geral, portanto,
também serão representantes importantes de
uma cultura, justamente por serem práticas
sociais: escrever histórias, representar a
natureza artisticamente, cantar sobre as
coisas da vida, costurar um tipo de roupa,
preparar um prato de alimento etc.
Existe uma vertente nos estudos
teológicos que procura compreender como
Deus se manifesta na cultura (NIEBUHR, 1926;
TILLICH, 2009). De maneira mais específica,
existem tentativas que pretendem observar
os fenômenos cotidianos (culturais) e, a partir
CAPÍTULO 1
deles, identificar algo a respeito de Deus. Esse
tipo de “Teologia”, em nosso contexto, costuma
receber o nome de “Teologia do Cotidiano”
(REBLIN, 1995; 200?; 2012; BOBSIN, 1992). Ela
representa a Teologia que não tem como base
primordial a revelação especial (ou seja, a Bíblia),
mas as vivências populares da vida cotidiana.
Porém, essa Teologia não é considerada como
“oficial”. Ela não tem como pretensão substituir
as elaborações teológicas empreendidas
através do estudo das Escrituras: a Teologia
do Cotidiano pode ser considerada como uma
forma “subterrânea” de conhecer a Deus. Ela
não dá preferência à fonte oficial [Sola Scriptura]
para expressar algo a respeito dele, mas analisa
a possibilidade de que qualquer fonte possa
apresentar algo ao seu respeito, por reconhecer
que todos possuem alguma coisa a dizer sobre
Ele a partir de suas experiências individuais -
mesmo que limitadas.
Entretanto, para o autor deste capítulo,
é muito complicado dizer que podemos fazer
“Teologia” em qualquer lugar; ou seja, que essa
ciência pode ser sistematizada por qualquer
indivíduo, como se todos fossemos teólogos
no sentido técnico do termo - o que seria
como dizer que o curandeiro de uma tribo
indígena merece um diploma de medicina. Por
isso, preferimos alegar que o cotidiano, na
verdade, pode nos proporcionar “reflexões
teológicas” e não, como os estudiosos
parecem afirmar, uma Teologia no seu status
como ciência - o que, entendemos, só pode
ser elaborado da Bíblia.
Nesse sentido, a reflexão teológica
do cotidiano é formulada “fora do Templo”;
ela se manifesta em ambientes que não
REFLEXÕES BÍBLICAS
PARA 0 COTIDIANO
Você pode ter chegado até aqui ainda
descrente de que é possível refletir sobre
o dia a dia de uma perspectiva teológica;
e ainda mais receoso com a possibilidade
de que tanto as atividades corriqueiras de
uma pessoa comum quanto as expressões
midiáticas são capazes de falar algo a
respeito de Deus, mesmo que de maneira
imperfeita. Contudo, a própria Bíblia, como
você a tem em mãos também nos ajuda a
compreender essas facetas! Ela costuma
ser dividida em livros históricos, poéticos
e proféticos. Os livros históricos estão
repletos de narrativas sobre a história da
salvação, enquanto os proféticos esbanjam
advertências de Deus sobre a Aliança.
Contudo, algo diferente ocorre com os livros
“sapienciais” (Jó, Provérbios e Eclesiastes, na
categoria dos poéticos). Eles não contam a
história da salvação; não estão preocupados
com o relato da queda do ser humano; não
fazem menção à eleição de um povo na
REVELAÇÃO E CULTURA
geração dos patriarcas; não dedicam espaço
à exaltação da Aliança entre Deus e Israel;
não apresentam nenhuma expectativa a
respeito do futuro, como a conquista de uma
terra prometida ou a vinda do Messias; além
disso, há quem diga que esses livros sequer
refletem o conceito de justificação pela fé!
(Afinal de contas, o que eles estão fazendo
na Bíblia mesmo?)
Desde o início do século 18, os livros
sapienciais foram considerados como um
“estranho no ninho” entre os escritos bíblicos
por não contemplarem as temáticas mais
comuns aos estudos teológicos. Para Gerhard
Hasel (2012, p. 62), renomado teólogo
adventista, “virtualmente todas as teologias
do AT tiveram dificuldades de lidar com os
escritos sapienciais”.4 Isso ocorre porque
os livros sapienciais estão interessados 4 Estudiosos se esforçam
até hoje para propor uma
em instâncias práticas da vida cotidiana; teologia específica para
sua abrangência de temas corriqueiros é esses livros (PERDUE,
tão grande que John F. Genung (1906, p. 8) 200?; 1994; CRENSHAW,
19??; O’CONNOR, 1990;
costumava considerá-lo como “o vade mecum PACKER, 2000).
do homem comum para a vida.”
Por exemplo, basta estudar o livro de
Provérbios para perceber que ele está mais
preocupado com a fidelidade no casamento
(Pv 2:5; 21:9, 19; 25: 24; 12:4; 5:18); a
prudência na maneira de falar (Pv 10:11;
19:18; 10:14; 26:2; 10:32); o respeito e
dedicação ao ensinamento dos mais velhos
(Pv 10:1; 4:20; 15:20; 23:19; 1:8; 4:10); as
maneiras de se portar com o alimento -
principalmente em companhia de pessoas
ilustres (Pv 23:1-3; 25:16; 6:8; Ec 2:24; 11:2);
o cuidado com os animais (Pv 9:1-2; 12:10;
22:23); entre outros. No livro de Jó, por outro
CAPÍTULO 1
lado, o leitor é introduzido de maneira intensa
ao tema do sofrimento. Ele nos fala sobre a
vontade de cometer suicídio (Jó 3:1-26; 2:1-21)
e a descrença em Deus (Jó 10:1-22; 16:1-
22), entre outros assuntos. Por fim, o livro
de Eclesiastes aborda questões existenciais
únicas na Bíblia. Ele avalia a legitimidade da
própria vida e, em determinadas situações,
chega a questionar o que absolutamente vale
a pena (Ec 1:1-3; 4:1-4). Resumindo, os livros
sapienciais não estão preocupados com a
“história da salvação”, mas nenhum outro livro
é capaz de responder de maneira tão imediata
às inquietações do ser humano.
Portanto, a Bíblia apresenta uma seção
que está inteiramente preocupada com
questões cotidianas (familiar, amorosa,
profissional etc.). Dessa perspectiva, os
livros sapienciais representam a experiência
de todos os seres humanos, e não apenas
a dos israelitas - já que todas as pessoas
estão inseridas no cotidiano, se relacionam,
comem, bebem, trabalham, estudam etc.
0 livro de Provérbios, por exemplo, inclui
uma seção intitulada “palavras dos sábios”,
sem confirmara origem étnica ou religiosa
destes, evidenciando autores não israelitas
no livro (Pv 22:12; 30:1; 31:1). Além disso,
em Provérbios 22:24 o leitor é exortado:
“Não te associes com o iracundo, nem andes
com o homem colérico.” 0 mesmo assunto
é abordado de maneira quase idêntica em
um texto egípcio chamado Ensinamentos
de Amenemope: “Não confraternizes com
o homem inflamado nem dele te acerques
para conversa” [Amenemope xi, 10). 0 fato de
ambos os textos instruírem o leitor a respeito
REVELAÇÃOECULTURA
do mesmo assunto é uma evidência de que os
autores estavam abordando temas cotidianos.
Todos os seres humanos estão preocupados
com o tipo de companhia que possuem.
Mesmo em nossa época, escutamos um
ditado popular que diz: “diga-me com quem
andas e te direi quem és.”
Um texto sapiencial babilônico oferece o
seguinte conselho: “Quanto a você, Gilgames, 5 Nas palavras de Kathleen
mantenha sua barriga farta, continue se O’Connor [1990, p.
CAPÍTULO 1
“A morte é para mim hoje [como] “Por que não morri eu na madre?
saúde para o doente. Como Por que não expirei ao sair dela?
liberdade para o prisioneiro. A Porque houve regaço que me
morte é para mim hoje como o acolhesse? E por que peitos, para
perfume de mirra, como uma que eu mamasse? Porque já
varanda em um dia de brisa. A agora repousaria eu tranquilo;
morte é para mim hoje como o dormiría, e, então, havería para
perfume de lótus, como beber às mim Descanso, com os reis e
margens do rio. A morte é para conselheiros da terra que para si
mim como o momento após edificaram mausoléus; ou com
a chuva, como o retorno dos os príncipes que tinham ouro
homens aos seus lares após a e encheram de prata as suas
Guerra. A morte é para mim hoje casas; ou, como aborto oculto,
como os céus sorrindo, como um eu não existiría, como crianças
tesouro escondido no campo. A que nunca viram a luz. Ali, os
morte é para mim hoje como o lar maus cessam de perturbar, e, ali,
para o viajante, como a terra natal repousam os cansados. Ali, os
para o exilado. Verdadeiramente, presos juntamente repousam e
quem já ali está vive como um não ouvem a voz dofeitor. Ali, está
deus, punindo os pecados dos tanto o pequeno como o grande
transgressores. Verdadeiramente, e o servo livre de seu senhor. Por
quem já ali está se levanta que se concede luz ao miserável
no Barco do Sol, e recebe as e vida aos amargurados de ânimo,
melhores ofertas dos templos. que esperam a morte, e ela não
Verdadeiramente, quem já ali vem? Eles cavam em procura dela
está será sábio, e será recebido mais do que tesouros ocultos.
por Ra, o criador (0 diálogo de um Eles se regozijam se achassem a
homem com sua alma]. sepultura [Jó 3:11-22).
CAPÍTULO 1
alegar, a natureza, a história e a moral humana
estão repletos de pistas a respeito dos atributos,
do poder e da divindade de Deus.
REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
BOBSIN, 0.0 subterrâneo religioso da vida eclesial:
Intuições a partir das ciências da religião. Estudos
Teológicos, v. 32, n. 3, p. 261-280,1992.
53
CERESKO, A. R. A Sabedoria no Antigo Testamento:
Espiritualidade Libertadora. São Paulo: Paulus, 2015.
CAPÍTIII Í1 1
SEVERA, Z. de A. Manual de Teologia Sistemática: Edição
Revista e Ampliada. Curitiba: Santos Editora, 2016.
http://bit.ly/2ulKXYf
DOIS
Mensagens subliminares
0 IMAGINÁRIO CONSPIRATÓRIO SOBRE
A MÍDIA NA LITERATURA ADVENTISTA
Allan Novaes
CAPÍTULO 2
Diante desse cenário, este texto
procurará se restringir a dois aspectos do
estudo do subliminar: 1) o relacionado à
mídia e à comunicação; e 2) o relacionado
ao conceito popular e conspiratório do
termo, bem diferente daquele usado
pela comunidade acadêmica. Aquilo que
popularmente se entende por mensagem
subliminar é: todo estímulo transmitido em
um baixo nível de percepção, captado pelo
cérebro humano sem nos darmos conta.
Nesse cenário, a mensagem seria assimilada
sem nenhuma crítica consciente, como se
estivéssemos hipnotizados. Esse tipo de
definição é comum, por exemplo, nos textos
1 Tempos atrás eles e vídeos de sites e blogs que analisam
também analisavam símbolos ocultos em filmes e desenhos
falas diabólicas ao animados. É também muito frequente nos
girarem discos de vinil
ao contrário, mas agora
discursos de “especialistas” religiosos
a tarefa é mais difícil por que tentam identificar mensagens ocultas
conta da ausência desse satânicas nos logos da Globo ou da Pepsi.2
tipo de função no Spotify.
Nesse universo apocalíptico, é
muito comum associar as mensagens
subliminares a termos como lavagem
cerebral e reprogramação mental, e a teorias
conspiratórias envolvendo sociedades
secretas, planos de dominação mundial,
apocalipse zumbi e outros mistérios. Pior: de
acordo com essa compreensão conspiratória,
as mensagens subliminares são capazes
de comandaras escolhas, determinara
vontade, moldar o comportamento e implantar
hábitos (ou vícios!). Em outras palavras, as
mensagens subliminares têm o poder de
controlara mente humana. Fica evidente,
portanto, que essa perspectiva do subliminar
pouco ou nada tem de científico.
MENSAGENS SUBLIMINARES
Já definimos que tipo de conceito de
subliminar vamos tratar (o conspiratório) e
em que aspecto ele se manifesta (na mídia).
Agora, vamos conhecer um pouco da história
da mensagem subliminar no contexto da
comunicação, como ela influenciou a literatura 3 Um retrato interessante
CAPÍTULO 2
Em 1956, um publicitário iria revelar os
segredos “sujos” de seus colegas de profissão,
causando um alvoroço na opinião pública. Seu
nome era James Vicary (1915-19??], nascido
em Detroit, EUA, especialista em desenvolver
técnicas que tinham como objetivo fazer
consumidores comprarem por impulso. Ele ficou
famoso após divulgação de seu experimento
em uma sala de cinema em Nova Jersey, no
qual um segundo projetor emitia um slide com
dizeres imperativos: “Drink Coke" (“beba Coca-
Cola”) e “Eatpopcorn" (“coma pipoca”). As frases
James Vicary (1915-19??), eram projetadas sobrepostas ao filme em uma
publicitário norte-americano velocidade de 1/3.000 de segundo - o que seria
pioneiro no estudo das
propagandas subliminares.
tempo suficiente para o inconsciente absorvê-
las, mas não lento o bastante para o espectador
estar ciente disso (CALAZANS, 2006, p. 29). Os
anúncios subliminares supostamente criaram
um aumento de 18,1% nas vendas do refrigerante 53
e um aumento de 5?,8% nas vendas de pipoca.
Com as polêmicas pesquisas de James
Vicary, o tópico “mensagem subliminar” entrou
Fonte: © 2014 Ladrão da Noite.
no radar da opinião pública (ZANOT, 1992, p. 56;
DJIKSTERHUIS; AARTS; SMITH, 2005, p. ??-?9).
A mídia divulgou vastamente os resultados
dos experimentos de Vicary, fazendo do tema
um dos mais populares na América no final
dos anos 1950. Em 195?, ainda durante o
“efeito Vicary”, foi publicado o livro The Hidden
Persuaders, do jornalista Vance Packard (1914-
1996), que prometeu desmascarar o lado negro
do marketing e da comunicação, “reforçando o
interesse e a crença na propaganda subliminar”
(ZANOT, 1992, p. 56).
0 tema da mensagem subliminargerou
apreensão na sociedade americana, levando
Fonte: Capa do livro The Hidden
o congresso dos Estados Unidos a debater as
Persuaders, de Vance Packard.
MENSAGENS SUBLIMINARES
implicações morais e legais desse assunto.
Vicary chegou a apresentar suas idéias
a um grupo de senadores e as principais
emissoras de TV aberta do país decidiram
proibir“materiais subliminares” em suas
propagandas diante do cenário.
0 furor social e o frisson causados pelas
publicações de Vicary e Packard começaram
a diminuirão passo que a agenda política 4 Apesar do caráter
CAPÍTULO 2
produtos audiovisuais (quem nunca ouviu
falar das supostas mensagens ocultas nos
desenhos da Disney?).
Na esteira do sucesso do seu livro,
Key viajou os Estados Unidos em palestras,
programas de rádio e talk shows televisivos
durante esse período, popularizando
ainda mais seus métodos e conceitos. Key
publicaria mais livros nos anos seguintes,
desdobrando sua análise do subliminar
SIGNET-4S1 C9149-J2 50^
na mídia, sendo o último deles em 1989.
Vale ressaltar que os anos 1980 ficaram
SUBLIMINAL marcados pelas alegações de grupos
SEDUCTION evangélicos tradicionalistas de que haviam
ARE YOU
BEING SEXUALLY ordens de adoração ao demônio em discos de
AROUSED
BY Ijj.lS-RLgTURE? rock que eram ouvidos ao contrário (WEITEN,
200?, p. 122; VOKEY; READ, 1985).
Desde então, em parte do mundo
evangélico, a mensagem subliminar passou a
fazer parte do repertório “básico” e “obrigatório”
de argumentos demonizadores da mídia. Nos
anos 1980 e 1990 proliferaram nas igrejas
evangélicas pregadores itinerantes, que
apresentavam discursos sensacionalistas
sobre o perigo do subliminar nas mídias para
Fonte: Capado livro Subliminal
Seduction, de Wilson Bryan Key.
justificar a venda de desenhos animados
bíblicos em VHS, Bíblias Ilustradas e outros
materiais que substituiríam os produtos
“do Maligno”. Enquanto isso, no circuito
acadêmico, o tema continuava marginalizado e
desacreditado por grande parte dos cientistas
e pesquisadores da comunicação e das
neurociências, configuração que permanece
até os dias de hoje, dada a fragilidade
metodológica, a inconsistência teórica, a
abordagem sensacionalista e os resultados
inconclusivos que orbitam o assunto.
MENSAGENS SUBLIMINARES
HIPNOSE, LAVAGEM
CEREBRAL E O APOCALIPSE ZUMBI
5 Em minha tese de
Quando se fala que a sociedade americana doutorado, mapeei
ficou alarmada com o debate sobre o subliminar 12 livros em inglês
na propaganda por conta de Vicary e Packard, é publicados poreditoras
adventistas que falam
importante ressaltar que a literatura adventista sobre a mídia a partir dos
não ficou de fora e também repercutiu essa anos 50 até hoje. São
discussão em sua literatura oficial. eles: Motion pictures
and television (1951);
Em se tratando dos livros adventistas em What abouttelevision?
língua inglesa sobre a mídia publicados a partir (1956); Quagmire ...
dos anos 50, década na qual os experimentos jungle ... desert ... or
what? The Pros and
de Vicary e o livro de Packard ganharam Cons of Television
popularidade, pelo menos metade deles se Viewing (196?); The
destacam por comparar a mídia, e em especial media, the message,
and man (1922); Mind
a televisão, com atividades como hipnose, manipulators (1924);
lavagem cerebral e uso de narcóticos (NOVAES, Televiolence (1928);
66
2014].5 Essas analogias começaram cedo na Television and the
Christian home (1929);
literatura adventista já em 1956, no folheto What
The television time
about television?, que faz menção à hipnose bomb (1993); Remote
como resultado da exposição à televisão, que se controlled: how TV
affects you and your
repetiría duas décadas depois em Televiolence, family (1993); Media
lançado em 1928, como segue na citação abaixo: values: Christian
perspectives on the
mass media (1999);
[A televisão] pode fazer de você um viciado assim
What you watch: a
como os narcóticos podem fazer de você um Christian teenager’s
dependente. Ela pode hipnotizá-lo de tal forma que guide to media
evaluation and decision
você não terá mais poder de desligá-la. Alguns de
making strategies
vocês já experimentaram seu poder. Vocês sentaram (1994); Screen deep: a
na frente dela para assistir ao jornal das seis horas. Christian perspective
on pop culture (2002).
Depois veio ojogo de futebol americano ou algum
Para mais detalhes, ver
filme de segunda à noite, e depois um programa Novaes (2016).
bem tarde da noite, e depois algum mais tarde ainda.
Finalmente nas primeiras horas da manhã você se
levanta da cadeira bem cansado. Você está com dor
de cabeça. Você se sente drogado. Oe certo modo
CAPÍTULO 2
você está. Você acabou de deixar a televisão ser seu
mestre (RICHARDS JUNIOR, 1978, p. 23).
MENSAGENS SUBLIMINARES
saber “como técnicas de lavagem cerebral
estão sendo usadas por publicitários, políticos,
e pela imprensa” e colocar em prática um “plano
de cinco passos [que] irá ajudá-lo a protegera
mente da manipulação” (HEGSTAD, 19?4, p. ?).
Em Mind manipulators, afirma-se que
“sem nosso consentimento, e na maioria dos
casos sem nosso conhecimento, nossas
mentes têm sido invadidas e alteradas”,
uma vez que “muitas ações e pensamentos
que assumimos como espontâneos e
exclusivamente nossos em vez disso são
respostas a informações programadas em
nosso subconsciente” (HEGSTAD, 19?4, p. 5).
CAPÍTULO 2
“A NOÇÃO DO CRISTÃO
COMO UM SER
INDEFESO, INERTE E
PASSIVO DIANTE DAS
MENSAGENS MIDIÁTICAS
NÃO CORRESPONDE
AO OUE SE SABE
HOJE NAS CIÊNCIAS
DA COMUNICAÇÃO E
TAMPOUCO REPRESENTA
A COMPREENSÃO
ADVENTISTA DA
NATUREZA HUMANA.”
essa publicação. 0 segundo é de autoria de
E. Lonnie Melashenko e Timothy E. Crosby,
lançado pela editora adventista Pacific Press.
Em Remote controlled e The television
time bomb, os autores também constroem
um discurso de tom conspiratório de que a
mídia pode escravizar a mente. Acrescenta-
se à argumentação um vocabulário que
remete a um cenário pós-apocalíptico típico
da literatura de ficção cientifica: a mídia
pode transformar as pessoas em “zumbis”
enquanto é assistida (MELASHENKO; CROSBY,
1993, p. 61). 0 motivo é, novamente, a
convicção de que “quando você senta na
frente de seu televisor, você não está sendo Fonte: capa do livro Remote
Controlled1, de Joe L. Wheeler.
meramente entretido”, você está sofrendo
“lavagem cerebral” e “sendo reprogramado”
(MELASHENKO; CROSBY, 1993, p. 58).
?0
Os agentes desse domínio mental e
de lavagem cerebral sempre são os meios
de comunicação: “tudo o que cruza o limiar
da nossa consciência - rádio, televisão,
filmes, propagandas - transforma-nos ”
(HEGSTAD, 1974, p. 28). Crê-se que através
da ação subliminar da mídia o indivíduo vai
mudando de identidade e caráter, já que “os
eventos dos quais não temos consciência
são impressos mesmo assim (...) em nossa
mente” (HEGSTAD, 1924, p. 13). A violência, a
promiscuidade, a imoralidade e qualquer outro
tipo de conduta antiética e pecaminosa passa
a ser atribuída mais à capacidade da mídia
de conduzir ações e moldar pensamentos do
que à natureza má inerente ao ser humano no
contexto pós queda. Vale ressaltar que, para
boa parte da literatura até aqui analisada, o
mau comportamento e os maus hábitos da
CAPÍTULO 2
mídia são transmitidos a nós mesmo contra a
nossa vontade e ciência. A ideia aqui é que a
dimensão inconsciente da mente humana é
bem mais poderosa e influente no processo
de construção de identidade e de exercício da
vontade das pessoas do que a consciente. A
ideia é que o conteúdo midiático é o principal
instrumento deformadores do caráter e que,
por sua vez, “determina o destino eterno de
uma pessoa” [WHEELER, 1993, p. 16 e 1?).
A BALA MÁGICA EA
AGULHA HIPODÉRMICA
MENSAGENS SUBLIMINARES
estudos de comunicação influente nos EUA
entre os anos 1920 e 1960. Nessa escola
da comunicação, uma das compreensões
mais populares sobre o efeito da mídia foi o
da “Teoria Hipodérmica” ou “Teoria da Bala
Mágica” (ARAÚJO, 2002, p. 120-125).
Essa teoria tinha esse nome porque fazia
referência ao termo “agulha hipodérmica” (nome
técnico atribuído às seringas usadas em hospitais
para a infusão de medicamentos ou extração de
sangue). A lógica era que, assim como a infusão
de um medicamento era irreversível uma vez
que a agulha penetrasse nos vasos sanguíneos,
a mensagem da mídia também seria irresistível
uma vez que fosse transmitida. Portrás dessa
comparação estava a crença na noção de “massa”,
elaborada pelos pensadores” Gustave Le Bon
(1841-1931) e José Ortega y Gasset (1883-1955),
que enxergavam os grandes grupos humanos
na sociedade urbana contemporânea “como
multidões semisselvagens”, caracterizados por
“irracionalidade”, e que seriam guiados e moldados
pelas mensagens da mídia (MALDONADO;
FOLETTO; STRASSBURGER, 2014, p. 339 e 340).
A partir dos anos 1960, contudo, a
tradição de estudos norte-americanos
perdería força diante da ascensão dos Estudos
Culturais Ingleses e, a partir dos anos 1980,
da popularização da Teoria Latino-Americana
das Mediações. Essas duas escolas iriam
questionar a existência do conceito de
“massa”5 e se recusariam a tratar ouvintes,
leitores e telespectadores como reféns
da mídia. E com a perda de influência dos
estudos norte-americanos de comunicação,
caiu também a crença na habilidade
onipotente da mídia de imputar qualquer ideia,
CAPÍTULO 2
convencer qualquer pessoa e induzir qualquer
6 Hoje em dia o termo comportamento, como se acreditava.
“massa” não tem mais
Essas duas novas escolas ou abordagens
a credibilidade do
passado. Porisso.se
apontavam a ingenuidade da crença no poder
você quiser parecer infalível que os conteúdos e as mensagens da
alguém que está por mídia teriam sobre o indivíduo, concentrando-
dentro das discussões
atuais da pesquisa em
se em estudar as complexas e diferentes
comunicação, evite reações dos receptores e das audiências.
o termo “meio(s) de Apesar dessas mudanças que ocorreram
comunicação de massa”
em sua fala. Substitua-a
na história da pesquisa em comunicação nas
por“mídia(s)”. últimas décadas, a compreensão sobre o poder
da comunicação permaneceu basicamente
inalterada na literatura adventista. É possível
verificar nas publicações adventistas sobre
a mídia analisadas neste artigo menções
diretas ou indiretas à conceitos, pressupostos
e abordagens ligadas à Teoria Hipodérmica.
A noção do indivíduo como um ser indefeso,
inerte e passivo diante das mensagens da
mídia, típicas dos estudos de comunicação
norte-americanos dos anos 1930 a 1960, foi a
perspectiva adotada por boa parte da literatura
adventista sobre a mídia, estando presente até
hoje em diversos discursos da denominação.
MENSAGENSSUBLIMINARES
sobre o qual o diabo não tem poder.8 Sob a
perspectiva adventista, a vontade humana é
livre e determinante do destino pessoal.9
Portanto, existe um choque de visões sobre
o ser humano em questão, diante do qual parte
da literatura adventista sobre a mídia busca 1 “Sem o consentimento
CAPÍTULO 2
10 Termo de conotação há base bíblica para a crença na depravação e
sociológica usado por incapacitação total da vontade), por outro lado a
Ortega y Gasset para
qualificar o indivíduo
vontade humana não é isenta de tendências más
na “sociedade de massa” (pois as Escrituras apresentam uma humanidade
que, ao fazer um uso com natureza pecaminosa). Então, acreditar em
indevido da tecnologia, é
desumanizado, tornando-
uma manipulação todo-poderosa ao nível do
se não autêntico. Os inconsciente ou crerem uma fácil resistência
homens-massa são por parte de nossa vontade “soberana” são dois
aqueles que “vivem sem
esforço, abandonam-se,
extremos a serem evitados. Na compreensão
e deixam-se ir, em pura da natureza do ser humano em sua relação com
inércia” (ASSUMÇÃO, 2012, os conteúdos da mídia é preciso alcançar um
p.128).
meio termo que reconheça o livre-arbítrio ao
mesmo tempo em que aceite a existência de más
influências por parte do que lemos, ouvimos e
assistimos, afinal de contas é preciso lembrar
11 “Devemos ter sempre
que estamos em um contexto de conflito entre
em mente que estão em
operação seres invisíveis,
poderes espirituais do bem e do mal.11 A questão
tanto do mal como do aqui não é se as mensagens da mídia influenciam
bem, procurando ganhar o ou não (pois obviamente há influência), mas
controle da mente; agem
com invisível e eficaz
sim o quanto ela influencia e o quanto somos
poder. Anjos bons são capazes de resistir a essa influência. A exemplo
espíritos ministradores, da análise feita neste artigo, no discurso religioso
a exercer celestial
influência sobre o coração
o poder atribuído à mídia geralmente é muito
e a mente; ao passo que maior do que se apresenta na realidade, ao passo
o grande adversário, o que a capacidade do ser humano de exercer a
diabo e seus anjos,
livre-escolha é compreendida como sendo menor
estão continuamente
trabalhando para efetuar do que de fato é.
nossa destruição. Pois bem, retomando o fio da meada,
Conquanto devamos
vê-se que a noção do cristão como um
estar ativamente atentos
quanto a nossa exposição ser indefeso, inerte e passivo diante
aos assaltos dos inimigos das mensagens midiáticas, além de não
visíveis e invisíveis,
corresponder ao que se sabe hoje nas ciências
devemos estar certos de
que não poderão fazer- da comunicação, também não representa
nos mal sem haverem adequadamente a compreensão adventista
antes ganho nosso
da natureza humana. Algo que, na literatura
consentimento" (WHITE,
1887). adventista analisada neste artigo, ficaria mais
claro somente a partir do final dos anos 1990.
MFNRARFNÇÇIIRI IMINARPR
0 principal exemplo dessa guinada é o livro
Media values, de Daniel Reynaud, publicado
pela Avondale Academic Press em 1999. Nele
não se verifica a presença do discurso de
natureza subliminar ao se referir aos efeitos
da mídia sobre a mente humana. Ao contrário:
o livro enaltece a capacidade de autonomia do
ser humano diante da mensagem da mídia e
questiona o poder controlador das tecnologias
da comunicação e suas mensagens. Em Media
values, procura-se ressaltar o poder do receptor
e da audiência de negociarem sentidos e
fazerem decisões conscientes e livres.
REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
ARAÚJO, C.A. Apesquisa norte-americana. In: HOHLFELDT,
A.; MARTINO, L; FRANÇA, V. (0rgs.). Teorias da comunicação:
MENSAGENS SUBLIMINARES
MALDONADO, A.; FOLETTO, R.; STRASSBURGER, T. Mass
Communication Research. In: CITELLI, A.; BERGER, C.;
BACCEGA, M. A. et al. [Orgs.J. Dicionário de comunicação:
CAPÍTULO 2
WHITE, E. 0 grande conflito. Tatuí: Casa Publicadora
Brasileira, 2005.
saiba mais
http://bit.ly/2gxE0iT
Rodrigo Follis
Doutor em Ciências da Religião com bolsa Capes/MEC e mestre em Comunicação Social pela
Universidade Metodista de São Paulo. Professor nos cursos de Teologia e Comunicação Social no
Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). Diretor da Unaspress.
E-mail: rodrigo.follis@ucb.org.br
Marcelo Dias
E-mail: marcelo.dias@ucb.org.br
Você já deve ter se deparado com notícias
sobre como fãs fazem loucuras por causa dos
seus ídolos. Um exemplo recente, ocorrido
em 2016, foi o de um grupo de adolescentes
que passou quase seis meses na fila à espera
de um show, simplesmente para serem os
primeiros a entrar e, assim, conseguir ficar bem
perto do cantor. Muitas piadinhas foram feitas
Fãs do cantor Justin Bieber
e, mesmo assim, eles continuaram firmes em
acampam no Sambódromo
seu propósito: ver de perto seu cantor favorito, do Rio de Janeiro para o show
aquele que lhes conferia um sentido para a vida. em 2017.
Copyright © 2016 Folha de S.P. Todos
Rir desse tipo de gente é fácil, mas te os direitos reservados.
convidamos a pensar sobre esse caso como algo
mais profundo. Sabe o que significa para eles
estar naquela fila? Aqui é que essa notícia fica
ainda mais interessante: o fato de estarem ali é a
constatação de que a identidade deles é definida
por seguir aquele cantor! 0 que isso quer dizer?
Simples. Eles são fãs e isso dá identidade a eles.
Antes de os acusarmos, é importante dizer que
isso também acontece com todo mundo. Inclusive
com você! 0 que muda é o local que buscamos a
nossa identidade. Quer exemplos? Então lá vai. Os
grupos de interesse que nos envolvem definem
nossa identidade: você gosta de futebol? Isso
faz parte de sua identidade. Seu time de futebol é
parte de quem você é. Você tem irmãos? Isso faz
parte de sua identidade. Você gosta muito de um
cantor? Isso faz parte de você.
É impressionante pensar que hoje seja
possível ter nossa identidade formada a partir
de um cantor midiático que mora a mais de
seis mil quilômetros de distância! No passado,
nossos avós e bisavós viviam em comunidades
bem fixas. As cidades eram menores, as
pessoas da rua se conheciam, até tinham o
hábito de sentar na calçada para conversar
CAPÍTULO 3
(loucura, né?j. Na verdade, todos moravam
naquela mesma região quase que a vida toda.
Eram raras pessoas novas naquela comunidade.
Dessa forma, todos tinham em comum muitas
crenças e um estilo de vida bem parecido. Isso
permitia com que as suas identidades não
sofressem mudanças tão bruscas e constantes.
Pois bem, como você sabe, hoje o mundo
é um local bem diferente, não é? Mesmo se a
sua cidade não for grande, você tem acesso ao
mundo todo através de rádio, televisão, telefone,
internet e por aí vai. Em outras palavras, você
conhece, mesmo que somente pelos meios de
comunicação, várias formas diferentes de ser e se
portar no mundo. Você tem acesso a informações
e opções de estilo de vida que seus avós nunca
imaginaram ter. Realmente, creio que você
concorda que o mundo está bem diferente hoje do
que no passado. Mas ainda falta discutirmos as
implicações de ter nossa identidade definida por
aquele cantor famoso que mencionamos no início
desse texto. E, como temos demostrado, podemos
tirar várias lições desse caso.
Uma das questões que observamos
é a fragilidade da construção de nossas
identidades nesse novo mundo. Como assim?
Pense conosco: esse cantor hoje é famoso,
assim como outros no passado o foram,
correto? Mas, a verdade é que essa fama
passará. E, na sociedade da informação e da
comunicação na qual vivemos hoje, a mudança
está cada vez mais rápida. Repare só: quantos
cantores e músicas você gostou no passado,
mas hoje nem se lembra da existência? Vários,
né? Viu, a velocidade da sociedade atual te
pegou e você nem mesmo se deu conta disso.
Apenas parou de ouvir esses cantores, sem
rapítui n 3
discutir o que é ser adventista (importante
isso, viu!]. Por último, cabe discutirmos quais
os limites da contextualização do evangelho
(em resumo, essa última parte se questiona
com questões como: até onde podemos ir
nesse mundo atual, sem perder a essência
de ser quem somos, como cristãos? Como se
adaptara nova sociedade midiática e continuar
a ser “um povo segundo a Bíblia”?].
AS IDENTIDADES
(RELIGIOSAS) NA IDADE MÍDIA
Para Campos (2008], um pesquisador
brasileiro muito importante, as mudanças na
mídia proporcionaram o pano de fundo para
que ocorressem algumas transformações
na “produção, transmissão e recepção da
mensagem religiosa”. A sociedade atual não
usa mais a mídia como um instrumento, muito
pelo contrário, nós nos articulamos através
dos meios de comunicação. Quer um exemplo?
Antes, o telefone servia para conversar com
outras pessoas, mas nossos relacionamentos
eram pessoais e presenciais. Hoje, nossos
telefones estão cada vez mais inteligentes e,
devido à internet que eles possuem, nem mesmo
precisamos nos conhecer pessoalmente ou
estar no mesmo local geográfico para termos
longas conversas e mesmo amizades que
consideramos verdadeiras. Viu só? Antes o
telefone fixo era um meio para marcar uma
conversa. Ninguém seria “zoado” por não
carregar seu telefone fixo a todo momento (isso
nem era possível!]. Nem mesmo por não estar
com ele a todo o tempo para responder a galera
- Oi tudo bem?
CAPÍTULO 3
longe. Como nem todo mundo tinha ou ficava
ao lado dos telefones fixos o tempo todo, a
gente dava um jeito e nem pensava nisso.
Se precisávamos conversar com alguém
e o telefone não atendeu, iríamos até a casa
dele ou esperaríamos até o dia seguinte. Hoje
acontece o efeito oposto! Já que todo mundo
tem um celular e está sempre online, vivemos
nossas vidas a partir dessa lógica. É isso
que queremos dizer quando afirmamos que
os meios comunicacionais agora são a base
das relações humanas, e não mais meros
ajudantes (PUNTEL, 2010).
A pessoa que pediu seu contato pode até
pensar: que estranho, como assim alguém não
tem WhatsApp? Notou? Você é obrigado a ter
esse instrumento comunicacional para não
ser considerado “por fora”. A depender do seu
grupo, você é obrigado, mesmo que não pense
assim, a ficar seis meses na fila esperando um
show. Todo mundo vai. Você gosta. Isso te dá
identidade. 0 que é uma fila por seis meses?
E note, não estamos condenando
nenhum desses meios de comunicação ou de
entretenimento. É legal todas essas coisas, elas
fazem parte de quem somos como sociedade.
Não tem nada de erado com elas em si, afinal, a
busca de identidade é algo que todos fazemos.
0 problema está apenas na questão de quão
profunda e duradora essas identidades serão.
Vamos fazer um exercício de recordação: quantos
cantores do passado você gostava e nem gosta
mais? Você tinha Orkut? (Se não tinha, acredite,
todos tinham, igual Facebook, mas hoje ninguém
se lembra dele.) E por aí vai. Todas essas coisas
foram importantes no momento em que elas
aconteceram, mas elas acabaram. Será que tudo
MnncDMinAnc uíniAruiccin
na vida tem que sertão frágil e passageiro assim?
Bem, segure essa questão, a gente já volta nela.
Vamos discutir primeiro a importância dos meios
de comunicação na propagação de opções tão
mutáveis de identidade.
Embora não tenha sido apenas por
causa dos meios de comunicação que a
sociedade se modificou, acreditamos que tais
transformações sociais foram acentuadas
devido à introdução dessas tecnologias, que
acabaram por gerar importantes “produtos”,
tais como o jornal, o rádio, o cinema, a TV e a
internet (KLEIN, 2006, p. 21; POSTMAN, 1994,
BERGER, 2002). É essa análise que nos auxilia
a entender a afirmação de Peter Berger e Anton
Zijderveld (2012), importantes estudiosos da
sociedade atual, de que essas tecnologias são
parte integrante da construção das identidades
do mundo atual. Essa nova construção se
forma e adquire sentido e status nas práticas
e vivências cotidianas, produzindo sentido em
sua organização social (CASTELLS, 2002).
0 avanço dos meios de comunicação nos
traz coisas maravilhosas. Conseguimos conversar
com pessoas em segundos. Reduzimos o espaço
e aqueles que estão distantes parecem estar
perto, devido a vídeo-chamadas ou mesmo
ligações telefônicas. E isso é algo muito bom!
Entretanto, nem tudo são rosas. Passamos
a definir nossas identidades através de uma
quantidade cada vez maior e mais superficial
de fontes. Nunca recebemos tantas opções
como hoje. São muitas mesmo. Estima-se que
hoje, através da internet, tenhamos mais amigos,
contatos, relacionamentos e versões de nós
mesmos como nunca tivemos em toda a história
da humanidade.
Essa quantidade de opções nos permite, em
diferentes momentos de um mesmo dia, caminhar
de um grupo para o outro com facilidade grandiosa,
o que Bauman (2001) considera como uma
“liquidificação" de nossas identidades. Um termo
bem complicado, né? Mas o que esse importante
pesquisador quis dizer é: não temos mais formas
fixas em nossas relações. Lembra que dissemos,
ali em cima, que nossos pais e avós tinham
relações mais duradoras, que eram para a vida
toda? Pois bem, Bauman (2001) afirma que isso
está cada vez mais raro, pois as opções do mundo
atual são tantas que não podemos, mesmo se
quisermos, ficar parados.
Aqui, o maior perigo é sermos tragados por
essa nova realidade, e deixarmos de ser parte
de uma comunidade, vivendo cada dia mais
como “se o mundo não importasse”. 0 problema
não é nos preocupar conosco, isso até pode
ser bom, o erro está quando esquecemos que
nossa missão é viver em comunidade e a amar
a todos como a nós mesmos. E olha só, tem
muitas pessoas por aí bem egoístas. Mas você
não deveria ser uma delas. Nossa sociedade
parece forçar a barra para que todos nós
vivamos como se ninguém mais importasse, só
“eu mesmo”. Geramos cantores famosos que
nos levam para a fila a espera de um show. Mas
isso é muito superficial.
Cada vez menos temos nossa identidade
fixada a grupos duradouros, tal como em uma
religião (BERGER, 2002, p. 26). Em outras
palavras, os meios de comunicação têm coisas
boas. Eles nos aproximam de quem amamos se
estivermos longes geograficamente. Mas, ela
também nos dá tantas opções que podemos
acabar nos perdendo. Corremos o perigo de ter
0 CRISTIANISMO
92 NO MUNDO DA COMUNICAÇÃO
A antropologia cultural é uma área de
estudo que nos lembra que todos temos status
e papéis na sociedade que determinam a nossa
identidade. A expressão “status” não quer dizer,
necessariamente, que somos importantes, mas
qual posição ocupamos em um determinado
sistema social. Isso porque as sociedades têm
certas expectativas comportamentais para cada
status. Se temos exemplo? Claro que sim! Se
você é um professor no Brasil (seu status] existe
a expectativa de que você dê aulas, provas e
notas (esses seriam seus papéis sociais, ou seja,
o que se espera de seu comportamento],
Um ponto aqui é importante deixar claro:
as pessoas têm mais do que um status. Sabe o
professor do exemplo acima? Então, ele também
pode ser pai (outro status], filho (outro status),
CAPÍTULO 3
“SE VOCE NOS
PERGUNTAR: QUAL A
MANEIRA CORRETA DE
SER CRISTÃO EM UM
MUNDO DOMINADO
PELO INDIVIDUALISMO
E PELA COMUNICAÇÃO?
NOSSA RESPOSTA SERÁ
APENAS UMA: SEJA
BÍBLICO.”
diretor do clube de desbravadores (mais um
status). E, em cada um deles, a pessoa modifica
seu modo de agir. Quando ele estiver cuidando
do filho, ele agirá de maneira diferente do que
quando estiver na escola dando aulas.
É assim que todos funcionamos na
sociedade, nos associando a uma diversidade de
status pelos quais transitamos constantemente.
Alguns papéis sociais são mais pessoais do
que outros baseado na intimidade envolvida
nos relacionamentos. 0 relacionamento entre o
vendedor de uma loja e você como consumidor
não envolve muita intimidade. Em todos esses
casos, usamos máscaras na interação com
outras pessoas. Somos algo que não é nossa
totalidade, mas que não deixa de ser quem
somos. Mas o que acontece entre os membros
da igreja? 0 status de membro carrega alguns
papéis sociais que envolvem a expectativa de
relacionamentos próximos entre as pessoas e
uma série de comportamentos.
Garanto que você já ouviu alguém dizer
que o mundo e sua cultura estão entrando
na igreja. Ficamos imaginando o que isso
significa. Será que existe alguém que
não seja cultural? Que não faça parte “do
mundo”? Se eu e você, que somos culturais e
vivemos no mundo, estamos na igreja, então
é normal “o mundo entrar na igreja”. Não é
verdade? Nos comunicar em um determinado 1 Esse mesmo conceito de
CAPÍTULO 3
Na verdade, o que alguns se preocupam
é que elementos culturais que não estejam
de acordo com a Bíblia possam estar fazendo
parte da identidade de alguns (ou vários)
daqueles que se dizem cristãos. Essa é uma
preocupação legítima! Mas, como pode um
cristão brasileiro, outro na Ucrânia e outro
em Papua Nova Guiné, portanto de culturas
bastante diferentes, terem identidades
igualmente bíblicas? Será que a cultura de
um país, que é bem diferente do outro, não
será uma influência para decidirmos o que
consideramos bíblico ou não?
No chamado Concilio de Jerusalém
(Atos 15) os cristãos do primeiro século,
conduzidos pelo Espírito Santo, perceberam
que era possível ser genuinamente cristão e
ainda pertencera uma determinada cultura.
Isso quer dizer que é possível desenvolver
um relacionamento com Deus e viver pelos
mesmos princípios e valores, mesmo que
se expressando de maneiras diferentes. Da
mesma maneira, o movimento adventista,
desde muito cedo, entendeu que a sua
missão era mundial (KNIGHT, 2005; 2000).
Ser adventista é mais do que dizer que
temos crenças em comum: é entender que
os valores comuns geram diversidade de
expressões culturais. Isso significa que a
nossa identidade, como adventistas, não
deve ser primariamente baseada no que
fazemos ou deixamos de fazer. Precisamos
ser mais do que isso! Não necessariamente
você é adventista se você come ou não queijo,
vai ou não a um local, veste esta ou aquela
roupa. 0 que importa é a razão por trás dessas
decisões e o fato dela estar alinhada com a
CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
0 que tudo isso tem a ver com os meios de
comunicação e com aquele cantor famoso que
abordamos no começo deste texto? Como vimos,
a mídia expressa e ajuda a formara cultura.
Esportes, música, acontecimentos atuais não
são intrinsecamente maus. São apenas parte de
nossa busca de identidade dentro de um mundo,
esse sim, mau devido ao pecado de nossos
primeiros pais. Desde então buscamos nossa
identidade. Na primeira parte deste capítulo
argumentamos que muita coisa mudou devido
aos meios de comunicação. Falamos que a
velocidade vista hoje acaba por tornar nossos
relacionamentos frágeis e sem continuidade.
Hoje gostamos e somos queridos, amanhã
descartamos e somos descartáveis. Parece que
ninguém está mais seguro. Nossa cultura mudou,
vivemos em um mundo culturalmente frágil e
que precisa de esperança.
Com isso em mente, como devemos nos
relacionar com a cultura a nossa volta? Evitando
as expressões artísticas e culturais que se
chocam com valores bíblicos. E o erro aqui é achar
que a discussão está apenas relacionada a quem
produz o material. Se minha igreja produz, então
é bíblico. Se o cantor fulano, que não frequenta
minha igreja, produz, então não é. Se o filme é
de Hollywood, então não é de Deus. Se é feito
por um irmão da minha igreja, então deve estar
tudo certo. Queríamos muito que o mundo fosse
assim, tão simples de ser julgado. Mas ele não
é. Tem coisas boas “lá fora” e tem muita coisa
errada e não bíblica sendo pregada nos púlpitos de
nossas igrejas. Precisamos estar bem embasados
biblicamente para decidir.
CAPÍTULO 3
realidade de “a igreja para mim” mas “eu para a
igreja”. Assim, desenvolvemos uma identidade
cristã relevante e santificada. Estaremos no
mundo, mas não seremos do mundo.
Até mesmo dentro da igreja é possível
viver sem um propósito profundo e realmente
relevante. É possível viver na fila, à espera
do próximo grande evento, que durará
segundos, mas nos fará esperar por seis
meses. Queremos a emoção do momento, não
o comprometimento de uma vida dedicada
ao serviço do outro e ao amor a todos que
estiverem ao nosso alcance. Mesmo na
igreja, sem usar a mídia, sem ver nenhum
filme ou seriado, poderemos “perdertempo
precioso”, pois não estamos verdadeiramente
convertidos para a cruz de Cristo.
Não deve haver uma divisão entre religião
e cultura porque não devemos imaginar que o
que acreditamos está totalmente desconectada
da maneira como vivemos aqui na Terra. A
cosmovisão cristã é a de um jeito de ser no
mundo. 0 que não é uma opção é 1) viver no
passado como se fosse uma era superior,
evitando qualquertecnologia apenas por elas
“serem modernas”; 2) viver exclusivamente no
futuro como se todas as decisões pertencessem
a um tempo que ainda virá, assim, deixamos de
perceber que, sim, tudo a nossa volta importa,
pois Jesus está voltando e precisamos viver isso.
Mas longe de nos tirar de nossa cultura, vamos
ser jogados nela, para clamar de todas formas,
que o nosso “Redentor vive, e que por fim se
levantará sobre a terra” (Jó 19:25).
Quando existe uma dimensão cultural
que estimula um viver passivo, individualista e
líquido, a cultura, seja ela religiosa ou secular,
REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
100
CAPÍTULO 3
. Em busca de identidade: o desenvolvimento
das doutrinas Adventistas do Sétimo Dia. Tatuí: Casa
Publicadora Brasileira, 2005.
saiba mais
http://bit.ly/lnv2sKd
o adventista e a ficção televisiva
redescobrindoaartede
CONTAR HISTÓRIAS
Lizbeth Kanyat
CAPÍTULO 4
a capacidade de rememorar e recontar histórias
conhecidas. Ao fazer uma releitura do passado,
acabam transformando-se em novas versões e,
por consequência, histórias novas.
No geral, as narrativas são transmitidas por
vários tipos de linguagens. A linguagem televisiva,
sobre a qual estamos estudando, é uma entre
outras, tais como a linguagem imagética, a
linguagem escrita, a linguagem oral. Contudo,
todas elas partem da linguagem verbal, pois ela
se desenvolve junto ao pensamento conceituai,
uma vez que a fala é racional e o pensamento
manifesta-se por meio da linguagem. A conexão
entre a linguagem e o pensamento possibilita
que nomeemos as coisas que passamos a
conhecer. Dessa forma, as palavras representam
objetos, estados, ações e desejos (VIGOTSKI,
2005]. Pelo sinal ou pelo desenho, o objeto
adquire uma existência mental mesmo fora
da sua presença. A palavra chama no mesmo
instante a imagem mental da coisa que evoca,
conferindo-lhe a presença, mesmo que esteja
ausente (MORIN, 1923).
0 conhecimento que temos do mundo
é mediado pela linguagem. A realidade
‘pura’ é inapreensível, pois nós interagimos
com ela por meio de signos, nomeando as
coisas, as experiências e narrando-as para
outras pessoas. Portanto, a realidade é
semiotizada por nós e para nós. Eco (1992, p.
136) exemplifica esse conceito da seguinte
maneira: “Nosso relacionamento perceptual
com o mundo funciona porque confiamos em
histórias anteriores. Não poderiamos perceber
inteiramente uma árvore se não soubéssemos
(porque outras pessoas nos disseram) que ela é
o produto de um longo processo de crescimento
CAPÍTULO 4
OS ADVENTISTAS EA FICÇÃO
Conhecendo as oportunidades de reflexão
que a ficção proporciona, os autores bíblicos e o
próprio Jesus Cristo usaram este tipo de narrativa
para se comunicar com o público de sua época.
0 gênero da “parábola” é um exemplo disso. Por
ser uma narrativa ficcional, a parábola busca a
projeção do mundo real no mundo imaginário e, por
isso, é predominantemente figurativa - que utiliza
figuras de linguagem para expressar um sentido
não literal. Vejamos um exemplo em 2 Samuel
12:1-?. 0 profeta Natã repreende Davi usando
uma história ficcional para provocar reflexão no
governante: “Dois homens viviam numa cidade,
um era rico e o outro, pobre. 0 rico possuía muitas
ovelhas e bois, mas o pobre nada tinha, senão
uma cordeirinha que havia comprado. Ele a criou, e
ela cresceu com ele e com seus filhos. Ela comia
junto dele, bebia do seu copo e até dormia em seus
braços. Era como uma filha para ele. Certo dia, um
viajante chegou à casa do rico, e este não quis
pegar uma de suas próprias ovelhas ou dos seus
bois para preparar-lhe uma refeição. Em vez disso,
preparou para o visitante a cordeira que pertencia
ao pobre.” A Bíblia diz que Davi encheu-se de ira e
respondeu a Natã: “Juro pelo nome do Senhor que
o homem que fez isso merece a morte! [...]. Então
Natã disse a Davi: Você é esse homem!”
As parábolas podem ser interpretadas por
meio de uma leitura superf icial e literal do texto
ou podem ser compreendidas pelo leitor que
vai além das aparências para buscar a conexão
dessa história com o mundo real. Na parábola
do semeador (Lc 8], por exemplo, Jesus conta a
história de um agricultor e o seu ofício. A história
pode ser compreendida no seu sentido literal,
CAPÍTULO 4
0 movimento milerita, e posteriormente
o adventista, buscava combater o rótulo
de complicação e mistério que envolvia as
profecias bíblicas usando desenhos, diagramas
e gráficos. As imagens eram consideradas uma
estratégia didática que tornavam as profecias
mais acessíveis e, ao mesmo tempo, respeitava
a essência bíblica, simbólica e iconográfica
em sua natureza. “No final das contas, as
ilustrações de bestas, chifres e estátuas
não eram consideradas fruto da criatividade
e imaginação, mas uma conversão fiel da
descrição textual da Bíblia” (NOVAES, 2016, p.
101). Sobre esse mesmo assunto, para David
Morgan (1999, p. 152), “no caso dos gráficos
adventistas, essa transposição da visão para
o texto significava um entrelaçamento entre
textos bíblicos e formas visuais na fabricação
de uma interpretação sistemática da profecia.
Os diagramas combinavam signos gráficos,
alfabéticos e numéricos em somente um campo
visual. As formas de representação discrepantes
estavam integradas de tal forma que uma pessoa
poderia ler as imagens e ver a palavra falada.” 0
autor ainda considera que, para Bates e seus
companheiros adventistas em 1840, “escrever
a visão significava primeiro transcrever em texto
(cumprido em Habacuque) e depois visualizá-la
uma vez mais em imagem pelo gráfico de Fitch.
[...) Na verdade, seus gráficos proviam os meios
para ler [plena e adequadamente] as Escrituras.”
0 adventismo deu abertura a imagens
autorais a partir de uma ilustração alegórica feita
pelo pioneiro médico Merritt Kellog (1832-1922)
para Tiago White nos anos 1820. A composição
apresentava a história da queda e redenção de
Adão e Eva, e deveria ser “lida” da esquerda para
CAPÍTULO 4
BREVE PANORAMA
AUDIOVISUAL ADVENTISTA
PRODUÇÃO DE FICÇÃO
NA DIVISÃO SUL-AMERICANA
Título
Ano IASD Formato5 Gênero Temporalidade
original
Amigos y
TV Nuevo Tiempo Chile Série Sitcom Contemporânea
Hermanos
Meet
Adventist Heritage Ministry Média-
William Drama Histórica
- North American Division metragem
Miller
Meet
Adventist Heritage Ministry Média-
Joseph Drama Histórica
- North American Division metragem
Bates
The Record
General Conference Websérie Sci-Fi Época
Keeper
122 0 Silêncio USB - Associação Sul Curta-
Drama Contemporânea
de Lara Paranaense metragem
El Último Misión del Lago Titicaca - Longa-
Drama Histórica
Testigo Union Peruana metragem
El Método Média-
Nuevo Tiempo Perú Drama Contemporânea
de Cristo metragem
Média-
0 Resgate Divisão Sul Americana Drama Contemporânea
metragem
5 Classificação conforme
a Instrução Normativa n°.
36, de 14 de dezembro de
2004, da Agência Nacional
de Cinema -Ancine.
CAPÍTULO 4
É padrão do mercado audiovisual a inserção
de ficção na grade de programação televisiva.
Depois do conteúdo informativo, as produções
ficcionais são as que ocupam mais tempo de tela
nas emissoras de televisão aberta na América
Latina. Acompanhando essa tendência, a Nuevo
Tiempo Chile veiculou duas séries, uma delas se
apropriando de um gênero popular de sitcom, ou
comedia situacional. Outra produção ousada foi
a websérie The Record Keeper (2014) produzida
no gênero sci-fi, que teve seu lançamento
Cena dawebsérie The cancelado. Salvo estas duas produções, as
record keeper produzido
em 2014.
demais obras são do gênero drama. Também
se destaca na ênfase em médias-metragens,
produções de duração superior a quinze minutos
e inferior a setenta minutos. Apenas uma das
produções trata de uma história bíblica [The
Record Keeper). Analisando a temporalidade da
narrativa, foram identificadas cinco produções
históricas, isto é inspiradas em fatos ocorridos
no passado, e seis histórias que transcorrem
na contemporaneidade retratando a conflitos e
dramas da jornada cristã atual.
Se por um lado pontuamos que a filmografia
da igreja na América do Sul no gênero ficcional
é recente, por outro é importante registrar o uso
frequente de dramatizações, encenações ou
z pequenos esquetes como recursos ilustrativos
em programas televisivos não ficcionais, tais
I liram Edson
como documentários ou televangelismos.
Alguns exemplos são a série evangelística 0
Sétimo Dia: revelações das páginas perdidas da
história, produzida pela Rede Novo Tempo e a LLT
Productions, onde breves dramatizações são
Cartaz da produção
Meet Hiram Edson realizadas para ilustrar o tema em estudo. Ou,
lançado em 2012. os documentários 0 menino que vendia doces e
entregava sonhos (2012 - Rede Novo Tempo de
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Promocional do
documentário O menino
Percebe-se, portanto, o despertar da que vendia doces e
IASD para a ficção televisiva como um recurso entregava sonhos
lançado em 2012.
comunicativo potente! Na última década, a igreja
na América do Sul passa a superar a postura de
rejeição em relação aos programas ficcionais,
investindo na profissionalizando da estrutura
comunicacional. Entre as instituições de ensino
superior adventistas da região, Argentina, Peru e
Brasil ofertam juntos sete cursos de bacharelado
nas diversas áreas da comunicação social,
inclusive o curso de Rádio e Televisão que forma
profissionais especializados na criação de
programas ficcionais e não ficcionais.
Por fim, vale assinalar à perspectiva de
crescimento da produção ficcional. Em nota
oficial sobre o lançamento do telefilme Como
tudo começou, a Divisão Sul Americana reitera o
uso de ficção audiovisual para o cumprimento da
missão: “A participação nessa tarefa pode se dar
por meio da distribuição de livros e revistas, por
meio das redes sociais, de programas de rádio e
televisão, de filmes já produzidos ou que ainda
serão desenvolvidos nos próximos anos, bem
como pela vida consagrada de adoradores fiéis” (0
USO DE FILMES, 2016). Aficção audiovisual é uma
linguagem particularmente consumida por jovens,
que buscam nela elementos para construir sua
identidade e cosmovisão. Este é precisamente
um grupo demográfico para o qual a igreja dedica
pouca atenção. Diante disso, acredita-se que seja
fundamental a produção de programas ficcionais
que possibilitem ao jovem refletir sobre suas
escolhas, repensar seus valores, testar suas
crenças e, por fim, o inspirem a construir sua
identidade em harmonia com a vontade divina.
REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
CANALE, F. 0 princípio cognitivo da teologia cristã: Um
estudo hermenêutico sobre revelação e inspiração.
Engenheiro Coelho: Unaspress, 2011.
CAPÍTULO 4
CINCO
O adventista e os filmes
MUDANÇAS DE PARADIGMA E
PERSPECTIVAS PARA 0 FUTURO
Bruno Ribeiro Nascimento
Mestre ern Teologia pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC); Especialista
E-mail:w brunocruzz@hotmail.com
... ■■
A Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD)
possui uma relação ambivalente com a arte
fílmica. Contudo, a posição histórica adventista
a esse respeito se alterou com o passar dos
anos. Da condenação categórica contra o
consumo de filmes ficcionais, a IASD passou a
utilizá-los como ferramenta de evangelização
e de divulgação de sua mensagem no século
21. Pode-se alegar que à medida que os
adventistas avançaram na compreensão sobre
a relação que um cristão deve manter com
a cultura pop, avançou também a reflexão
teológica sobre o assunto, assim como a
frequência da utilização do meio fílmico como
ferramenta de disseminação da mensagem
adventista. Neste capítulo, pretendemos
demonstrar, mesmo que de maneira breve, os
caminhos que o cristianismo, em geral, e o
adventismo, de maneira específica, galgaram
para amadurecer sua relação com a 2a arte.
Para isso, vamos nos organizar em três
partes: na primeira, 1] apontamos a relação
que os cristãos protestantes, de forma
geral, mantiveram (e em muitas instâncias
ainda mantêm) com a arte fílmica. De certa
forma, é possível perceber que a atitude dos
adventistas no começo do século 20 reflete a
do contexto protestante, de uma perspectiva
mais generalizada; em seguida, 2) explicamos
a relação histórica dos adventistas com os
filmes de ficção, sublinhando como ela se
modificou ao longo dos anos; por fim, em
nossas considerações finais, 3) afirmamos a
importância da arte fílmica para a propagação
do evangelho e vislumbramos algumas
possíveis projeções e/ou perspectivas para o
uso desta entre os adventistas.
CAPÍTULO 5
AARTE FÍLMICA
NO PROTESTANTISMO
0 ADVENTISTA E OS FILMES
dos principais nomes no aprimoramento da
“montagem” e na utilização de movimento de
câmera e posicionamento de iluminação que
^SJUNE 18
são empregadas até hoje (DANCYNGER, 2003).
Ao mesmo tempo, ele é conhecido também
por obras como O Nascimento de uma Nação
(1915) - primeiro longa-metragem com técnicas
avançadas de posicionamento de câmera e de
edição - embora com teor altamente racista; e
Intolerância (1916) - filme que, parcialmente, foi
uma resposta às críticas a obra de 1915.
Mesmo diante de um contexto favorável, 18000 People 3000 Horses
Cost S500.000.00
já no seu início, havia também aqueles que WORTH K.W A SEAT
distanciavam a nova expressão artística da
religião cristã. A partir do crescimento da Cartaz de lançamento
do filme 0 nascimento
indústria fílmica e do aumento do número de
de uma nação publicado
roteiristas, no começo do século 20, houve em 1915.
uma evidente separação entre os filmes
134
de ficção, os filmes com temas religiosos
e os filmes com temáticas variadas,
especialmente as adaptações de obras
DWGRIFFITH’S
literárias. Em decorrência desse crescente COLOSSAL SPECTACLE
0 ADVENTISTA E 0S FILMES
e crenças” de uma crescente audiência que
busca por conteúdos de qualidade.1 Por outro
lado, a Sherwood Pictures, parceira da Affirm 1 Disponível em: chttp://
bit.ly/2qMV5Y4>. Acesso
Films, produziu quatro filmes em seu catálogo,
em: 1? mai. 201?.
todos com temática eminentemente cristãs.
Liderada pelos irmãos Kendrick, a produtora é um
ministério da Igreja Batista Sherwood, na Geórgia,
EUA. 0 filme 0 quarto de guerra (2015), por
exemplo, foi líder de bilheterias na semana em que
foi lançado e chegou a faturar quase 68 milhões
de dólares apenas nos EUA. Outras iniciativas
como a Pure Flix, provedora de filmes cristãos via
streaming, surge e fomenta o crescimento de uma
indústria de filmes cristãos.
CAPÍTlll fl R
mudanças culturais que os circundam, de maneira
que a sua opinião sobre os filmes de ficção se
altera com o tempo. Wheeler (1989, p. 21) afirma
que “a compreensão adventista inicial do certo
e do errado foi fortemente condicionada pelo
aspecto cultural, bem como por fatores de tempo”.
Podemos aplicar esse conceito à relação dos
adventistas com a arte fílmica.
De uma perspectiva mais abrangente,
de acordo com Moon (1988), a relação dos
adventistas com a arte fílmica pode ser dividida
em três fases. A primeira, datada entre as
décadas de 1910 e 1935, pode ser denominada
de “atitudes de formação”. Nessa fase, proibições
como assistir filmes de ficção ainda não são
oficiais - apesar de boa parte dos autores
desse período estarem “convencidos de que a
resposta para o adventista era a abstinência
13?
total” (MOON, 1988, p. 6). Na segunda fase, de
1935 a 1932, denominada “fase das decisões”,
tal proibição surge com uma publicação da
Associação Geral dos Adventistas do Sétimo
Dia de 1932. Ela votou no dia 10 de março, por
unanimidade, o documento Principles and
Standards in the Use of Motion Pictures (IASD,
1932). No texto, é afirma-se que “as imagens não
são erradas apenas porque se movem. 0 filme é
simplesmente uma reprodução cinematográfica
animada. Há uso legítimo de filmes para fins de
educação, iluminação e recreação” (IASD, 1932,
p. 1). Segundo o documento, haveria, assim, um
uso “correto” das “imagens em movimento”. No
entanto, ele aponta que a resistência adventista
à 2a sétima arte era contra o conteúdo ficcional
veiculado por ela: “Há, antes de tudo, uma
distinção fundamental entre imagens naturais,
ou imagens da vida real e imagens de tramas
0 ADVENTISTA E OS FILMES
comoção geral de desconfiança dos meios de
comunicação. Em 1951, lemos: “Vê-se desde
logo que o adventista deve pensar duas vezes
antes de introduzir em seu lar um instrumento
tão dúbio [a televisão], Esta questão é tão
importante que deve ser feita assunto de
fervorosa oração, antes de introduzirmos em
nosso lar semelhante objeto” (DELAFIELD, 1951,
p. 4], 0 artigo prossegue citando o exemplo de
um jovem ministro da Califórnia que, ao visitar
uma família adventista de sua igreja local,
encontra-os não em meditação ou reposto, “mas
agrupada ao redor do aparelho de televisão
novinho em folha, a apreciar avidamente um
longo filme de Hollywood” (DELAFIELD, 1951, p.
4). Assim, um dos principais problemas com a
televisão está justamente na facilidade que um
adventista possui para assistira um “longo filme”
de ficção dentro de sua casa.
Em suma, em tais publicações, os
adventistas eram aconselhados a evitar assistir
produções fílmicas ficcionais de qualquertipo.
Mesmo filmes com temáticas cristãs não eram
vistos com bons olhos. Por exemplo, um editorial
da Review and Herald traduzido e publicado na
Revista Adventista sobre os filmes de Hollywood
com temáticas cristãs (os clássicos Ben HureOs
Dez Mandamentos] afirmava categoricamente
que os adventistas não deveríam assisti-los
(WOOD, 1961], 0 autor enumera possíveis
justificativas utilizadas para o consumo
desse material: “Há os que têm dito que não
é necessário privarem-se os adventistas dos
chamados valores culturais encontrados no
cinema3; que os membros da igreja deveríam
assistir a ‘bons’ filmes, evitando os ‘maus’; que é
melhor ver ‘bons’ filmes do que sentir-se privado”
CAPÍTULO 5
“A RELAÇÃO DA
IASD COM OS
FILMES
■ I SE JrfkMa
■»« w» «MPItan ALTERA
I
CONSTANTEMENTE E,
PODEMOS IMAGINAR,
AINDA PROMETE SE
DESENVOLVER COM O
PASSAR DOS ANOS.”
[WOOD, 1961,p. 2). No entanto, a conclusão
do autor é que tais pontos de vista devem ser
reprovados, principalmente em se tratando de 3 É importante lembrar
CAPÍTULO 5
tantos parecem acreditar” (SCHEFFEL, 1982,
p. 13). Nesse sentido, a religião apresentada
nos filmes de ficção demonstra-se prejudicial
por aparentar um caráter de “deturpação”
ou “contrafação” daquilo que poderia ser
reconhecido na religião cristã de maneira mais
explícita.
Como era de se esperar, com o passar
dos anos, os adventistas passam a nutrir uma
opinião diferenciada a respeito dos filmes de
ficção. As matérias da Revista Adventista, a partir
da década de 1920, por exemplo, se tornavam
cada vez mais favoráveis ao consumo dos filmes
de ficção. Essa afirmação, contudo, era feita
com a ressalva de que os jovens precisam de
discernimento para escolher entre bons e maus
filmes. Apesar de ainda ser possível encontrar
matérias críticas sobre filmes ficcionais, era
tendência considerar que bons filmes podem
ser utilizados para uma recreação sadia: “Há
como sabemos sobejamente, filmes excelentes
para o propósito de educação, ilustração e
recreação” (EDITORIAL, 1980, p. 6). Assim, “no
caso da televisão, se o filme é instrutivo, não há
problema (a não ser que ele seja um obstáculo
a frequência aos cultos ou a execução de
trabalhos relevantes), pois o ambiente do lar,
quando cristão, é ‘um pedacinho do Céu na Terra”’
(EDITORIAL, 1980, p. 6). Em outras palavras, o
editorial comenta a existência de bons filmes
que passam na TV; contudo, esse status só
poderá se manter a partir do momento que estes
não sejam obstáculos prioridades da vida cristã.
A ideia de que “sabemos que existem bons
filmes” se tornou comum quando as matérias da
Revista Adventista abordam a relação que a IASD
deve manter com a TV e com os filmes de ficção.
0 ADVENTISTA E OS FILMES
De uma perspectiva completamente oposta
às anteriores, é interessante notar que, antes
da década de 1980, a IASD já produzia filmes
de ficção! Em 1969, por exemplo, A Vitória Final
(41 min] foi um filme dirigido por Leroy Beskow
e produzido por Arturo Lescano, em Cosquín, na
Argentina. Depois de produzido, a Divisão Sul
Americana procurou afinara obra, dublá-la, e
distribuir para toda a América do Sul, inclusive no
Brasil. 0 filme dramatizava os eventos finais do
Grande Conflito como costumava ser idealizado
pela escatologia adventista das décadas de 1960
e 1920. De forma ficcional, a obra dramatiza os
acontecimentos relativos às últimas pragas, a
marca da besta, a perseguição e a Segunda
Vinda de Jesus. 0 filme caiu no gosto do público
adventista nas décadas de 1920 e 1980, sendo
apresentado em conferências evangelísticas e
em instituições adventistas ao redor do Brasil,
de acordo com edições da Revista Adventista da
década de 1980.
0 exemplo acima exemplifica muito bem
a mudança de paradigma entre os adventistas
a respeito da arte cinematográfica ficcional,
apresentando uma iniciativa diametralmente
oposta àquela promulgada na resolução de 193?.
De acordo com as 28 Crenças Fundamentais
Adventistas, há um incentivo positivo no sentido
de que “as nossas diversões e entretenimento
devem corresponder aos mais altos padrões
de gosto e de beleza cristãos" (IASD, 2008, p.
346); essa afirmação é diferente das antigas
resoluções que apontavam listas de proibições
e alertas sobre os perigos dos meios de
comunicação. Nas revisões presentes nos
Manuais da IASD de 2010 e 2015, os textos
sobre “Meios de Comunicação” se mostraram
CAPÍTULO 5
menos negativos e mais positivos em relação
ao uso que os adventistas podem fazer de tais
4 Borges ainda é instrumentos em seus momentos de lazer-
responsável desde 2006 diferente das edições anteriores a 2010, como a
por um blog chamado
“Bons Filmes” onde ele
de 2005 e de 2000, por exemplo. Mesmo que se
faz indicações de bons afirme que o “inimigo de Deus está utilizando os
filmes de ficção que meios de comunicação com intensidade nunca
os adventistas podem
vista” (BORGES, 2016, p. 50], reconhece-se a
assistir. Disponível em:
<http://www.bonsfilmes. possibilidade de escolher bons filmes de ficção
criacionismo.com.br>. (BORGES, 2016, p. 66-62] - algo totalmente
Acesso em 8 maio 2012.
impensável entre as décadas de 1930 a I960.4
Com essa perspectiva inovadora em
mente, os adventistas passaram a produzir
filmes de ficção de forma efetiva. 0 primeiro
longa-metragem brasileiro adventista foi 4
Última Batalha (2005,90 min). 0 filme, gravado
em Cascavel (PR], foi dirigido pelo dentista
João Stéfan - que trabalhou mais de uma
145
década em sua produção, vendendo imóveis e
Jesus Esta Voltando. permutando serviços para concretizara obra.
Voei Está Preparado?
De acordo com a Revista Adventista da época,
A Última Batalha tem como “objetivo inicial
reavivar espiritualmente a igreja. Mas, além
disso, através da projeção na mídia, o longa-
metragem vem despertando nas pessoas o
interesse em estudar as profecias do Apocalipse,
e também ler 0 Grande Conflito, livros em que
o filme foi baseado” (SIMÕES, 2005, p. 33],
Além disso, nos últimos cinco anos, a IASD
0 primeiro longa-metragem adventista brasileiro
patrocina e fomenta a produção de obras
ficcionais sobre temáticas adventistas e cristãs.
Capa do DVD A última 0 filme Tell the World (“Como Tudo Começou”],
batalha lançado em dirigido por Kyle Portbury (2016,150 min), por
2005.
Copyright © 2005, Novo exemplo, conta a história dos primórdios da
Tempo. Todos os direitos IASD; Opostos (2012,50 min), escrito e dirigido
reservados.
porTuiu Costa, produzido em parceria com a
Adventist Communication Training e o Centro
0 ADVENTISTA E OS FILMES
Universitário Adventista de São Paulo, campus
Engenheiro Coelho (Unasp-EC), conta a história
de um garoto de rua que se tornou docente de
uma universidade. Outra obra muito recente
é o filme de ficção 0 Resgate: Salvação ao
Extremo, dirigido por Alexandre P. M. Alto (201?,
55 min), utilizado como estratégia da IASD para o
evangelismo da Semana Santa de 2012.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
CAPÍTIII n R
e comunicacionais da instituição. Ainda há, sem
dúvidas, muito para aprendera respeito desse
gênero artístico. 0 reconhecimento de um
passado, de certa forma, temeroso em relação
à ?a arte não deve limitar as perspectivas para
o futuro; nem devem os antigos argumentos,
sujeitos à uma época e mentalidade específicos,
tomar frente das produções cinematográficas
adventistas. 0 caminho mais seguro é conferir
força e dedicação às novas perspectivas nutridas
pela denominação com o intuito de promulgara
mensagem do advento a todo mundo.
REFERÊNCIAS
BORGES, M. Nos bastidores da mídia: como os meios de
comunicação afetam a mente. Tatuí: Casa Publicadora
147
Brasileira, 2016.
14S
NOVAES, A. 0 problema adventismo-televisão: uma análise
do pensamento adventista sobre a TV a partir da tipologia
de H. Richard Niebuhr em Cristo e cultura. Tese. Doutorado
em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, 2016. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/
handle/handle/18881.
http://bit.ly/2ublmkP
0 adventista e a literatura de ficção
PRODUÇÃO E CRÍTICA LITERÁRIA NO
ADVENTISMO BRASILEIRO
Clacir Virmes Junior
Mestre em Ciências das Religiões pela Universidade Federai da Paraíba [UFPB], Especialista em
Teologia Bíblica pelo Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia sediado na Faculdade
Adventista da Bahia [SALT-FADBA], Bacharel em Teologia [SALT-FADBA]; e Bacharel em Sistemas
de Informação [2005] pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC).
E-mail: clacir.junior@adventista.edu.br
“Literatura” talvez seja um dos termos
com maior multiplicidade de significado e um
dos mais difíceis de definir, especialmente em
referência a um “estudo científico da literatura”
(DAVIS, 2002; EAGLETON, 2006; MOISÉS, 2012).
Fala-se de literatura para referir-se simplesmente
ao objeto livro tanto quanto para se falar sobre
todo o corpo de escritos de um determinado
período (por exemplo, “literatura medieval”) ou
como sinônimo de gênero literário (por exemplo,
“literatura policial”). Contudo, os estudos literários
referem-se ao termo literatura no sentido
das obras, normalmente livros, que contêm
narrativas, reais ou imaginárias. Esses livros são
classificados em gêneros e subgêneros. As duas
classificações mais gerais, pelo menos no senso
comum, distinguem entre obras não ficcionais de
obras ficcionais.
No adventismo, a grande preocupação tem
sido com a última categoria, especialmente por
conta das declarações de Ellen G. White (TORRES,
2013; 2014); nesta ocasião, contudo, não nos
deteremos as afirmações da autora. 0 que nos
interessa é pensar em como a Igreja Adventista
do Sétimo Dia (IASD) lidou com a questão da
literatura ficcional no passado e como podemos
lidar com ela atualmente. É provável que um dos
maiores problemas entre os adventistas a esse
respeito seja o conceito de “ficção”, conforme
entendido por muito tempo no discurso popular
- como algo mentiroso, irreal, não verdadeiro -, e
o uso que ele adquiriu tecnicamente dentro dos
estudos literários.
Devido a essas questões, gostaria de
convidá-lo para pensar um pouco sobre a relação
entre os adventistas, em particular, com a
literatura ficcional. Para isso, em primeiro lugar,
CAPÍTULO 6
vamos analisar a possibilidade de conversarmos
1 Veja um breve histórico sobre Teologia a partir de produções literárias
deste periódico e seu ficcionais, com o intuito de contextualizar o
impacto no adventismo
brasileiro no artigo de
tema. Em segundo lugar, tentaremos recapitular
Marcos De Benedicto e brevemente a relação entre os adventistas e
Michelson Borges [2006, a literatura ficcional no Brasil, especialmente
p. 8-13) intitulado “Um
século de história’’.
através das páginas da Revista Adventista (RA)1,
órgão oficial de divulgação da IASD no Brasil.
Porfim, refletiremos sobre os desafios e as
possibilidades da literatura ficcional na IASD.
LITERATURA E TEOLOGIA
CAPÍTULO 6
latiram com o fervor da negativa que deram.
Os habitantes de Thulcandra não sabiam que
Maleldil, o Jovem, criara e ainda governava o
mundo?” (LEWIS, 2010, p. 90). Assim, durante
a narrativa, fica implícita a ideia de que quem
governa Malacandra é o Oyarsa, mas que ele
é subordinado a Maleldil, o verdadeiro criador.
Deve-se levarem conta o fato de Lewis estar
trabalhando com concepções medievais, nas
quais havia uma rígida hierarquia no mundo,
uma linha de comando de Deus às criaturas
irracionais. Contudo, ao fim e ao cabo, Maleldil, o
Jovem, é a maneira de referir-se a Jesus dentro
do universo ficcional criado pelo autor.
0 mais notável é o final do diálogo entre
o Oyarsa de Malacandra e Ransom. Ele diz que
Maleldil ousou coisas espantosas na batalha
contra o Torto e que essa era “uma questão que
gostaríamos de examinar” [LEWIS, 2010, p. 165).
Lewis ecoa as palavras de 1 Pedro 1:12: “A eles
foi revelado que, não para si mesmos, mas para
vós outros, ministravam as coisas que, agora, vos
foram anunciadas por aqueles que, pelo Espírito
Santo enviado do céu, vos pregaram o evangelho,
coisas essas que anjos anelam perscrutar.” No
contexto da carta de Pedro, essas “coisas que os
anjos anelam perscrutar” é o significado da vida,
morte e ressurreição de Jesus. É interessante
que Ransom não tem oportunidade de responder
ao anseio do Oyarsa. Com essa alusão, Lewis
espera que aqueles que não foram a Malacandra
descubram o que Maleldil fez em Thulcandra
através do registro bíblico. Assim, o foco do autor
é levar seus leitores a conhecer o evangelho.
Note os temas que são discutidos nesse
breve exemplo que exploramos até aqui: a
teologia do grande conflito, a existência de
0 ADVENTISTA EA
LITERATURA DE FICÇÃO
CAPÍTULO 6
religiosos, a menos que apreciem a leitura atenta
da Palavra de Deus.” Ela continua: “Este Livro
contém as mais interessantes histórias, indica o
caminho da salvação por meio de Cristo, e é o seu
guia para uma vida mais elevada e melhor. Todos
declarariam ser ele o livro mais interessante
que já manusearam, se a sua imaginação não se
houvesse pervertido por provocantes histórias
de índole fictícia.”
A atitude geral de repúdio e extrema
cautela para com a literatura ficcional perdurou
visivelmente até a década de 1990 entre os
adventistas. Ao longo desses anos, expressões
de desaprovação à literatura ficcional eram
frequentes. Por exemplo, no início da década
de 1970, dois artigos abordam a questão da
ficção de maneira negativa. Para o autor, ficção
é igual a mentira e aquele que desenvolvia o
gosto por histórias fantásticas na infância e
na juventude “não raro termina seus dias num
hospício ou numa cadeia. Isto quando não são
levados prematuramente pela morte” (MACEDO,
1971a, p. 15). Entre os possíveis males que
sobreviríam aos leitores de literatura ficcional
estava a decepção, a revolta, a corrupção da
mente, que inevitavelmente levaria a ações
más, e a perda do discernimento entre o certo e
o errado (MACEDO, 1971b, p. 14-15).
Uma década depois, outros dois artigos
voltaram à questão. Independentemente de
ser ficção científica, ficção política ou ficção
policial, o efeito da literatura ficcional jamais era
desenvolver ou defender “virtudes apreciáveis”.
Apelando para as definições do dicionário, o
autor declara que “ficção não é outra coisa senão
escrito ou tema fantasioso, imaginário, ilusório,
aparente, fabuloso; ato ou efeito de simular. E
CAPÍTULO 6
“UMA VEZ QUE 0
ADVENTISMO SE ABRE
PARA UMA RELAÇÃO
MAIS POSITIVA COM
A LITERATURA,
ESPECIALMENTE
A LITERATURA
FICCIONAL, É POSSÍVEL
DESENVOLVER UMA
RELAÇÃO MAIS
FRUTÍFERA E CRÍTICA
EM RELAÇÃO A ELA.”
fundamental não é se a obra é ou não de ficção,
mas nos valores que estão sendo passados ao
leitor e seu efeito sobre o intelecto.” Ao final, a
autora destaca o problema do ensino da literatura
na educação adventista; ela propõe uma série de
perguntas norteadoras para a escolha e o uso da
literatura. Contudo, talvez o apelo mais sensato
feito por ela seja o dever do professor de “formar
uma consciência crítica no aluno, projetando 4 Emjaneirodoano
seguinte (REVISTA
sempre os elevados valores cristãos em
ADVENTISTA, 1992, p. 29),
contraposição aos falsos valores apresentados ou o livro Projeto Sunlight, de
defendidos por certo autor” (GAZETA, 1991, p. 45).4 June Strong (1986), era
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
168
BARRETO, D.; CARDOSO, M.; FOLLIS, R. [Orgs.J. Crônicas do
Reino. São Paulo: Daikoku, 2014.
CAPÍTULO 6
DE BENEDICTO, M.; BORGES, M. Um século de história.
Revista Adventista, v. 101, n. 1, p. 8-13, jan., 2006.
Cultrix, 2012.
http://bit.ly/2tbvJRj
0 adventista e os quadrinhos
UM BREVE RELATO SOBRE A RELAÇÃO
DO ADVENTISTA COM A 9° ARTE
Felipe Carm
Mestrando em Língua e Literatura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP); Especialista
em Teologia Bíblica (2014) pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC);
e Bacharel em Teologia (2012) pela mesma instituição. Atua como redator na Imprensa
Universitária Adventista (Unaspress] e como professor da Faculdade Adventista de Teologia no
Unasp-EC. E-mail: felipe.carmo@ucb.org.br
Allan Novaes
RELIGIÃO NAS
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Mesmo entre os fissurados pelas histórias
em quadrinhos, dificilmente alguém falaria de
maneira tão natural sobre a relação destas com
a religião. Entre os evangélicos, inclusive, é
ainda mais incomum afirmar que as histórias
em quadrinhos possuem essa relação. Contudo,
quando nos aprofundamos no estudo desse
tema, chegamos a um ponto em que, com muita
dificuldade, não poderiamos associar uma coisa
à outra. Poucos estudiosos se demoram, de fato,
no estudo das intersecções entre a religião e
as histórias em quadrinhos. Mesmo assim, as
n AOVFNTISTA F OS QUADRINHOS
poucas relações estabelecidas são dignas de
credibilidade. A maioria deles procura mapearas
diversas maneiras que esses dois elementos se
encontram na arte sequencial (REBLIN; BRAGA
JR„ 2015; GARRET, 2008; REYNOLDS, 2008; 1 No primeiro capítulo deste
KNOWLES, 2008). 0 esforço acadêmico de livro, tratamos o conceito
de Teologia do Cotidiano
tais estudiosos não se inclina às histórias em
com mais cuidado a partir
quadrinhos como objeto de culto religioso. Para da perspectiva do mesmo
eles, esse gênero representa apenas um entre autor. Se você quiser
entender esse conceito
diversos ramos da literatura que também está
com mais atenção, sugiro
interessado em assuntos religiosos. que retorne ao primeiro
No contexto brasileiro podemos eleger luri capítulo e, posteriormente,
A. Reblin (2010; 2012; 2013; 2014a; 2014b; volte às nossas
considerações sobre as
2015) como um dos estudiosos mais engajados histórias em quadrinhos.
no estudo das histórias em quadrinhos de uma
perspectiva religiosa. Ele aponta às possíveis
intersecções que podem serfeitas entre
essas duas áreas e explica o “tipo” de religião
que podemos encontrar nelas. Para o autor, a
religiosidade que evidenciamos nesse gênero
costuma se relacionar ao cotidiano da sociedade
sem ligação com uma instituição religiosa
específica. Isso significa que as histórias
em quadrinhos apresentam uma “Teologia
do Cotidiano”1; ou seja, elas são capazes de
representar práticas religiosas de um ponto de
vista popular, em conformidade com os medos,
as esperanças, a moral e as expectativas
religiosas da sociedade. De uma perspectiva
ainda mais específica, Reblin (2014a) sugere
que a religião pode ocorrer nas histórias em
quadrinhos de quatro maneiras distintas: 1)
como opinião veiculada por uma instituição
religiosa; 2) como temas religiosos, de uma
perspectiva mais abrangente; 3) como ilustração
contextual; e 4) como símbolos ou metáforas do
sagrado. Daqui em diante, vamos nos referir a
cada uma delas separadamente.
ràpítiii n 7
RELIGIÃO INSTITUCIONAL - Uma instituição
religiosa, ou mesmo uma religião específica,
pode se utilizar das histórias em quadrinhos
para propagar as suas crenças. Aquelas que
são idealizadas por uma instituição costumam
carregar um conteúdo religioso de cunho mais
sistematizado, e corresponde às crenças e
dogmas promulgados por essa instituição. Por
exemplo, recentemente, na Itália, o papa Francisco
ganhou uma história em quadrinhos (25 páginas)
com o título Papa Francesco afumetti [“História
em Quadrinhos do Papa Francisco”). A edição tem
Fonte: Ilustração de capa de como objetivo ilustrar a vida do papa de maneira
Papa Francesco afumetti, n° divertida, além de apresentar sua mensagem,
3, publicada em 2013 pela
Edizione Master
às crianças. Essa história não pretende apenas
© 2013 Edizione Master, inc., Todos divertir o público infantil; é objetivo dos católicos,
os direitos reservados.
como instituição religiosa, familiarizar as crianças
com a figura do pontífice, além de introduzir
alguns conceitos do catecismo a elas.
Esse conteúdo pode tomar formas mais
gerais, abarcando o conjunto de crenças de
uma religião específica. Em 2011, por exemplo,
a editora Geográfica lançou uma Bíblia em
quadrinhos intitulada Bíblia em Ação: A História
da Salvação do Mundo (252 páginas). Embora
não esteja filiada a uma instituição, esse
material traz mais de 200 narrativas bíblicas
em ordem cronológica, introduzindo o leitor ao
livro sagrado do cristianismo - assim como sua
crença central: a salvação da humanidade no
sacrifício de Jesus Cristo. Outro exemplo está na
história intitulada Nuvem de Estrelas: Venerável
Fonte: Ilustração de capa da Mestre Hsing Yün: Uma vida dedicada ao
Bíblia em Ação,publicada em
budismo (14? páginas), lançada pela Escrituras
2011 pela Editora Geográfica
© 2011 Editora Geográfica, inc.,Todos Editora em 2006, sobre a biografia de um mestre
os direitos reservados.
budista. Para o mestre, a história em quadrinhos
sobre sua vida é convidativa aos jovens
0 ADVFNTISTA F 03 01JAORINHOS
leitores e representa uma maneira agradável
de comunicar os ensinamentos budistas. Um
trabalho de alta qualidade artística, produzido
por Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa, foi Kardec [12?
páginas), em 2011, em que é retratada a história
do pioneiro do espiritismo, Allan Kardec, com o
foco na sua conversão à religião espírita.
0 ADVENTISTA E OS QUADRINHOS
narrativa sem, contudo, ser mencionado nela.
Ao invés de falar expressamente sobre religião,
a história quadrinhos poderá mencioná-la por
meio de símbolos ou figuras metafóricas. Um
personagem poderá representar algum elemento
comumente relacionado à religião, mesmo
sem fazer menção a ela. Um exemplo dessa
perspectiva é a figura do Superman! Para muitos,
não é novidade o fato de este personagem
representar uma figura messiânica nas histórias Ilustração de Alex Ross
em quadrinhos (WALLS, 2009; WAID, 2009; retirada do álbum Peace
on Earth [“Paz da Terra”],
KOLOVIC, 2012); é consenso que o Superman publicada em 1999 pela DC
está protagonizando um papel religioso nas suas Comics
O 1999 DGComics, inc., Todos os
superaventuras. Podemos afirmar, inclusive, direitos reservados.
que existem muitas características de sua
mitologia que fazem referência ao conceito
de “Messias” das religiões judaico-cristãs,
como, por exemplo: o nome Kal-el no hebraico
(’pjr’psj pode sertraduzido como “todo Deus”,
ou “completamente Deus”, uma competência
semelhante à de Jesus Cristo (Jo 8:19,28; 14:9;
Hb 1:1-8); nos quadrinhos, na língua do planeta
natal do Superman, Kal-el significa “criança da
estrela”, uma designação que também pode
ser associada ao nascimento de Cristo e à
aparição da estrela no Oriente (Mt 2:2); além
disso, assim como Jesus Cristo, o Superman
possui uma paternidade supraterrestre e ambos
representam, em suas narrativas, a esperança
para a salvação da humanidade.
Quando afirmamos que o Superman
Fonte: Ilustração de capa da
protagoniza um papel messiânico, não queremos série All-Star Superman, no 10,
alegar que pretende substituir a figura de Jesus publicada em 2008 pela DC
CAPÍTULO 7
me tirou das drogas”, “0 Superman me libertou
do cigarro”, ou ainda “0 Superman me curou
de um câncer”. 0 fato de simbolizar o Messias
apenas demonstra que as pessoas permanecem
deslumbradas com a possibilidade de um
salvador para a humanidade. É justamente por
esse motivo que o Superman só poderá ser uma
metáfora religiosa que representa a figura de
Jesus Cristo, mas nunca poderá substitui-lo na-
vida do cristão. Nas palavras de Garrett (2008,
p. 22), os super-heróis “não são, de fato, tais
figuras [das crenças cristãs], e qualquer ingênua
tentativa de dizer que ‘Jesus é o Super-Homem’,
ou sugerir uma profunda verdade teológica
coordenada em qualquer narrativa proveniente
da cultura popular, nos conduzirá ao pesar. As
HOs não foram escritas para substituir a Torá, a
escola dominical ou as lições de midrash.”
Resumindo, as histórias em quadrinhos
possuem um potencial religioso muito variado.
Elas podem ser utilizadas por instituições
religiosas com o objetivo de propagar suas
doutrinas de maneira sistematizada; inclusive,
elas podem expressar os fundamentos básicos
de uma religião específica - cristianismo,
budismo, espiritismo etc. Além disso, as histórias
em quadrinhos também poderão abarcar
temas religiosos, que não necessariamente
estão incluídos na agenda evangelística de
uma denominação. Seriam temas de cunho
mais popular, preocupados com as frustrações
e esperanças do cotidiano. As histórias em
quadrinhos também podem apresentar algumas
ilustrações contextuais que demonstram a
inevitável presença da religião na vida dos
personagens. Por fim, a religião pode ser
expressa por meio de símbolos ou metáforas nas
n afivfkitirta f nç m iAnRiNi-inç
histórias em quadrinhos, de maneira a traduzir às
páginas da revista alguns conceitos relacionados
à fé religiosa, mas expresso em linguagem de
entretenimento.
OSADVENTISTAS
E AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
CAPÍTIII O?
“COMO GENERO DA
LITERATURA COM
POTENCIAL TEOLÓGICO
PARA A PREGAÇÃO,
AS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS PODEM
PROTAGONIZAR
COMO FERRAMENTA
EVANGELÍSTICA A
TODAS AS FAIXAS
ETÁRIAS.”
em quadrinhos eram associadas à delinquência
juvenil. Elas representavam uma ameaça
às crianças por introduzirem o assunto da
criminalidade e conduzi-las a um mal caminho. A
Revista Adventista costumava usar estatísticas
que sugeriam o aumento da criminalidade
como resultado do consumo das histórias em
quadrinhos. Em 195? lemos: “A qualidade de
menino ou menina que vocês são, manifesta-se
pelo que vocês fazem. Uma pessoa não pode
gastar o tempo com revistas de quadrinhos
e ainda assim ter um espírito e um coração
puros.” A edição complementa: “Mais ou menos
um ano atrás, certo menino que frequentava
a escola paroquial, matou a tiro uma senhora
vizinha que lhe recusou qualquer coisa que êle
pedia. Quando a polícia foi a casa dêle a fim de
prendê-lo, êle estava sentado lendo uma revista
de quadrinhos, dizendo: ‘Foi isto que me levou a
fazertal coisa’” (WHEELER, 195?, p. 30)
Outra perspectiva demonizante foi a
classificação das histórias em quadrinhos como
literatura de baixa qualidade. Costumava-se alegar
que esse gênero de entretenimento possuía
conteúdo para ignorantes e que eram indignos
de comporá biblioteca dos cristãos adventistas.
Além de não ensinar coisas espirituais, o consumo
desse material poderia resultar em deficiências
mentais, além da consequente falta de cultura.
Dentre as duas citadas, essa correspondia à
ênfase negativa mais frequente na Revista
Adventista: “Às vezes ouvimos pais dizerem: Meu
filho era tão bonzinho e desde que começou a ler
as tais revistas em quadrinhos, virou a cabeça
e só pensa em malandragens com idéias de
‘mocinhos’. Agora não quer estudar nem ler bons
livros” (HOLTZ, 1963, p. 9-10).
CAPÍTULO 7
Embora fossem as opiniões mais
influentes entre os adventistas sobre as
histórias em quadrinhos, essas ênfases não
perduraram, se não até o final da década de
1980. No início dos anos de 1990, elas nunca
mais apareceram na Revista Adventista e
assim perduram até hoje. Podemos afirmar
que elas se perderam, mas que possuiu um
papel determinante nas relações iniciais dos
Fonte: Revista Adventista, abr. adventistas com as histórias em quadrinhos.
1977
© 19?? Casa Publicadora Brasileira,
Com o passar dos anos, o adventismo
inc., Todos os direitos reservados. passou a encarar as histórias em quadrinhos
de uma perspectiva missiológica. Durante um
período de aproximadamente 60 anos (1960-
201?) - período que ainda permanece vigente
-, a IASD adotou as histórias em quadrinhos de
maneira sacralizada, enfatizando a sua linguagem
como potencial evangelístico entre os mais jovens.
Contudo, ao mesmo tempo que o gênero dos
quadrinhos era utilizado para propagara crença
adventista, surge uma outra ênfase negativa,
distinta daquelas citadas anteriormente.
Um evento interessante dentro dessa
perspectiva ocorreu nos editoriais da Revista
Adventista. No final da década de 19?0, a revista
costumava inserir no início de suas edições
uma breve “tirinha”, ou “charge”, sobre o tema
Tirinha do cartunista principal daquela edição. Esse material em
brasileiro Luís Sá publicada
na revista Nosso Amiguinho
quadrinhos, contudo, possuía uma finalidade
© 1954 Casa Publicadora apenas propagandista. Em outras palavras, elas
Brasileira, inc., Todos os direitos
reservados. eram inseridas no editorial apenas para chamar
atenção a um artigo da revista, normalmente de
cunho doutrinário ou outro mais polêmico. Essa
prática durou pouco tempo (aproximadamente
três anos, 19??-1980), e nunca mais foi repetida
nas edições posteriores da Revista Adventista
por motivos desconhecidos.
0 ADVENTISTA E OS QUADRINHOS
“esses filmes vão cumprindo uma ‘agenda’ que
-----------------------------
parece ser a mesma: substituir a crença nos
antigos deuses pela idolatria dos ‘novos deuses’,
mitologizando a ideia de que existe um verdadeiro •1844a
filho de Deus.” Assim, “quanto mais distração e
distorção houver no caminho dos filhos de Deus,
melhor para aquele que já foi derrotado pelo
grande Herói e que não quer ninguém do lado
vencedor” (BORGES, 2013, p. 21).
No fim das contas, os adventistas
permanecem dessa maneira: por um lado, são
capazes de pensar estratégias evangelísticas
e educacionais para a utilização das histórias
em quadrinhos; por outro, ainda acreditam que Fonte: Capa de revista em
quadrinhos 1844.
o material produzido fora da igreja representa
um plano conspiracional de Satanás para uma
rebelião contra Deus. Hoje em dia, a partir do
190
número de pesquisas desenvolvidas até então,
é difícil prescrever uma previsão a respeito do
futuro das histórias em quadrinhos no contexto
adventista. Mesmo assim, essa breve avaliação
histórica no contexto brasileiro foi suficiente
para demonstrar que a opinião da IASD sobre o
assunto varia com o passar dos anos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
CAPÍTULO ?
Esse mesmo fato também é evidente no
contexto adventista. Desde a década de 1950,
no Brasil, a IASD já publicava histórias em
quadrinhos para comunicar aos leitores mais
jovens as suas crenças particulares. Essa
perspectiva, dentre as anteriores, representa
uma das diversas demonstrações de como a
religião ocorre de maneira institucional nas
histórias em quadrinhos.
Contudo, no contexto adventista, a relação
com as histórias em quadrinhos possui um
histórico de inimizades - pelo menos nas
primeiras décadas em que eram mencionadas.
No início, elas eram classificadas como material
de baixa cultura e de má influência moral. Embora
essas ênfases não existam mais com a força
que possuíam no passado, permanece a noção
de que as histórias em quadrinhos seculares
fazem parte de uma agenda satânica para
dominar a mente do cristão. É difícil afirmar com
certeza a respeito do futuro desta última opinião.
Ainda assim, podemos sugerir a possibilidade
de que ela, à semelhança das anteriores,
seja desconsiderada, e outras opiniões mais
equilibradas surjam daqui por diante.
Ainda há muito para aprender acerca das
histórias em quadrinhos e de seu potencial
como literatura na instituição adventista - e
ainda mais sobre os benefícios das produções
fora do ambiente denominacional. As diversas
abordagens à religião, assim como a amplitude
de temas e estilos que as histórias em
quadrinhos possuem, encontram-se em fase
embrionária entre os adventistas. Como gênero
da literatura com potencial teológico para a
pregação, as histórias em quadrinhos podem
protagonizar como ferramenta evangelística
0 ADVENTISTA E OS QUADRINHOS
a todas as faixas etárias; com capacidade de
abordara mensagem do segundo advento das
formas mais variadas possíveis.
REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
BORGES, M. Superman: Uma Paródia de Jesus Cristo.
Revista Adventista, p. 21, jul. 2013.
192
CARMO, F.; HUF, A. Uma análise dos operadores
argumentativos nas tirinhas da Revista Adventista. In:
XI Conferência Brasileira de Comunicação Eclesical,
2016, São Paulo. Anais da XI Conferência Brasileira de
Comunicação Eclesical. Centro Universitário Adventista de
São Paulo, Engenheiro Coelho, 2016.
0 ADVENTISTA E 0S QUADRINHOS
REBLIN, I. A.; BRAGAJR.,A. (Orgs.J. Religiosidades nas
histórias em quadrinhos. Leopoldina: Aspas, 2015.
Leopoldo, 2012.
CAPÍTULO 7
WALLS, J.; TALLON, F. Super-Homem e o Reino dos Céus: a
surpresa da teologia folosófica. In: IRWIN, William [Coord.].
Super-heróis e a filosofia: verdade, justiça e o caminho
socrático. São Paulo: Madras, 2009.
http://bit.ly/2vae3XU
0 adventista e os games
EXPANDINDO 0 EVANGELHO À
LINGUAGEM DO ENTRETENIMENTO
Fábio Augusto Darius
Doutor e Mestre em Teologia Histórica pela Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, (EST).
Graduado em História pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Docente no Centro
Universitário Adventista de São Paulo [UN ASP-EC). E-mail: fabio.darius@unasp.edu.br
Gabriel Ferreira
OS GAMES NO CONTEXTO
HISTÓRICO DE ELLEN G. WHITE
0 ADVENTISTA E OS GAMES
a própria tecnologia, com o advento do
telégrafo, em 1844, acabou possibilitando aos
estadunidenses uma espécie de alargamento
de suas fronteiras comunitárias e tudo o
que essa mudança implicou. Isso incluiu em
grande medida o turismo, que aos poucos foi
preenchendo certos espaços antes ocupados
pelo entretenimento doméstico, como a
leitura, música ou jogos de roda além da já
mencionada percepção geral pelos esportes.
Nesse ponto, cabe aqui uma observação:
“esportes” e “jogos” eram provavelmente
atividades semelhantes no século 19. Afinal,
dificilmente poderíam ser encontrados certos
jogos esportivos que não fossem praticados
ao ar livre além daqueles condenados por
White. Contudo, embora ela e outros escritores
a ela contemporâneos fossem favoráveis
ao exercício físico, “criticando a natureza
sedentária do morador da cidade” (BRADEN,
1988, p. 205], um viajante inglês, William Baxter,
comentou acerca dos estadunidenses: “os
americanos parece-me, dedicam muito pouco
tempo à diversão inocente, e aquela recreação
que é tão benfazeja à saúde. Dia após dia eles
assediam seus corpos e mentes nos cavalos
ou no armazém, fazendo do trabalho uma
escravidão” (BRADEN, 1988, p. 205],
Para fazer aqui um contraponto, “no
início dos anos 1850 aumentou o número
de pastores, médicos e intelectuais
argumentando que o jogo é fundamental para
o desenvolvimento físico e moral do indivíduo”
(GROVER, 1992, p. 9). (É interessante notar
que pouco depois, em 1863, Ellen G. White
teve sua famosa visão que deu início à
Reforma da Saúde.) Certamente, a crítica
CAPÍTULO 8
acima ecoa o contexto histórico do seu
período. Afinal, “depois de 1850, a classe
média vitoriana moldou cada vez mais a ideia e
a prática do lazer como respostas diretas aos
seus medos de instabilidade política" (CLARK,
1996, p. 1). Ainda de acordo com Clark:
0 ADVENTISTA E OS GAMES
Guerra Mundial. Quem sabe isso explique em
parte as motivações inglesas para a prática
de jogos e esportes — simplesmente para
relaxar em face de tamanhos problemas —
enquanto os americanos ainda não tinham
uma cadeira no grande jogo das nações e,
portanto, podiam usufruir de sua juventude já
com menos traumas da Guerra da Secessão.
Dessa forma, a classe média inglesa
encontrou no lazer e no jogo uma justificativa
para seu uso sem que este fosse associado
ao ócio em si mesmo, além de integrar o
esporte à obediência, tanto ao técnico, ao
time e ao país — que mais do que nunca não
precisava de uma sublevação interna.
Portanto, a prática dos jogos no século 19
vitoriano é uma construção da classe média
inglesa; classe recém estabelecida a partir da
Revolução Francesa. Contudo, pode ser mais do
que isso. De acordo com Heggie (2016, p. 125]:
CAPÍTULO 8
dos homens das classes menos favorecidas. A
partir dessa percepção acerca dos esportes
e jogos no século 19, talvez agora fique mais
claro observar os motivos pelos quais Ellen G.
White não era favorável à prática, preferindo
as recreações serenas onde fosse possível
sempre manter o foco nas coisas do alto. 0 que
2 “Na esperança de ocorreu a partir disso na história da igreja é o
imprimir vividamente que se sabe: em grande medida por conta dos
no espírito dos crentes
coríntios a importância
escritos dela, todo e qualquer jogo foi mal visto,
do firme autocontrole, independentemente de sua proposta.
estrita temperança Assim contextualizando, é exercício bastante
e persistente zelo no
serviço de Cristo, Paulo
interessante, inclusive, focar o uso literal da
em sua carta a eles faz palavra “games” em sua obra, puramente a
destacada comparação título de curiosidade — visto que o assunto que
entre a milícia cristã e as
celebradas maratonas
tratamos aqui, materialmente, difere dos jogos da
que se realizam em época de White. 0 termo aparece ao menos 103
intervalos fixos, próximo vezes ao longo de seus livros e compilações, sob
de Cortino. De todos
os jogos [gomes]
os mais variados aspectos e usos (WHITE, 200?, p.
instituídos entre os 309)2, quase sempre sob a égide da necessidade
gregos e romanos, era de temperança e domínio próprio, características
a maratona a mais
também da vida cristã como única salvaguarda
antiga e mais altamente
considerada.”
aos engodos do inimigo. É notório o texto bíblico
em que o apóstolo Paulo compara a vida cristã
a uma corrida, passagem comentada por White
(WHITE, 200?, p. 314).
Em alguns casos, o termo utilizado é game
of life, ou “jogo da vida” — o mesmo termo,
inclusive, que dá nome ao famoso jogo da Estrela,
de bastante sucesso em 1980 e ainda hoje
comercializado. Contudo, o jogo da vida de Ellen
G. White nada parece ter de lúdico. Segundo ela,
em um texto chamado “perigos para a juventude”:
n AnVFNTIÇTA F DÇ r.AMFÇ
manifestam ambição para realizar seu objetivo e
realizar o seu fim desejado; mas na empresa da vida
eterna, onde tudo está em jogo, e sua felicidade eterna
depende de seu sucesso, eles agem como indiferentes
como se não fossem agentes morais, e outro estava
jogando o jogo da vida para eles, e eles não tinham
nada para fazer, a não ser esperar o resultado. Oh,
que loucura! Que loucura! Se todos manifestarem
esse grau de ambição, zelo e fervor, pela vida eterna
que manifestam em suas atividades mundanas, eles
serão vencedores. Cada um, eu vi, deve obter uma
experiência para si, agir bem e fielmente em sua parte
no jogo da vida. Enquanto Satanás está observando 3 No Conselhos a Pais,
Professores e Estudantes
sua oportunidade quando o cristão está desprotegido,
ela deixará muito claro
para aproveitar as preciosas graças, o cristão terá um
que todas as coisas, até
conflito severo com os poderes das trevas para mantê- mesmo jogos lúdicos
las; ou se eles perderam por falta de vigilância uma devem ficar abaixo das
Escrituras e da vida
graça celestial, para recuperá-la (WHITE, 1945, p. 149).
208 devocional: “Poder-me-ia
referira capítulo após
CAPÍTULO 8
“A IASD TEM FEITO
ONS ESFORÇOS AO
PROPICIAR JOGOS
INTERESSANTES QUE
MANTENHAM O FOCO NA
MISSÃO, EMBORA AINDA
SEJAM EMBRIONÁRIOS
E COM ORÇAMENTO
LIMITADO.”
companheirismo ligará o coração dos professores
e dos alunos, e a escola será um deleite para todos
[WHITE, 2002b, p.191).3
0 ADVENTISTA E 0S GAMES
digitais (tendo seu início nos anos 50 e se
consolidando no mercado a partir da década de
80 com os “fliperamas” e primeiros consoles de
videogames) e os jogos pervasivos (trazendo os
jogadores das telas dos seus computadores de
volta para o mundo tridimensional, misturando
assim a experiência física com a virtual).
São poucos hoje os que não acreditam
no crescente potencial das mídias sociais
para o avanço do evangelho. A Igreja
Adventista do Sétimo Dia (IASD) possui
programas no rádio há décadas e sempre
investiu na televisão, hoje possuindo seu
próprio canal. Nem é preciso dizer sobre sua
atuação na internet. Será possível pensar o
mesmo em relação à igreja e os jogos? De
acordo com Carlos Magalhães (201?), em
artigo publicado por um portal adventista de
notícias, a conclusão parece ser inequívoca:
92% dos jovens dedicam-se a jogos de
computador ou videogames; 40% dos
jogadores são mulheres; 68% dos jogadores
tem até 18 anos; 33% jogam nos celulares.
Contudo, sua fonte é de 2014 e nada indica
que este número diminuiu. É quase certo
que tenham aumentado. Como fechar os
olhos diante de tal realidade? Entendemos
atualmente que 20% da igreja é formada
por jovens, sendo a maioria composta por
mulheres (FOLLIS; NOVAES; DIAS, 2015).
Embora possua uma relação em grande
parte negativa com os jogos (BORGES, 2006),
em geral, a IASD, recentemente, tem passado
por um período de maturação em relação a
eles. Embora reconheça o caráter prejudicial
de alguns, os adventistas reconhecem que
essa realidade não pode ser desconsiderada,
e que o gênero dos games é mais amplo e
inclusivo do que poderíam imaginar (MIRANDA,
2009; CARMO; FERREIRA, 2016). Nesse
contexto, a instituição não apenas deixa de
“demonizar” os games, mas investe energia
e criatividade para a produção de materiais
dessa categoria.
Por exemplo, no ano de 1972, sob a direção
geral do Pr. Wilson Sarli, a Casa Publicadora
Brasileira (CPB) decidiu dar uma chance aos
jogos analógicos, visto que precisavam criar
produtos para o mercado infantil e juvenil. A
tarefa de criar e liderar a produção destes
jogos recaiu sobre Erlo Kõhler, diretor do
Propaganda de Jornadas
Bíblicas na Revista Adventista, departamento de arte na época, que acabou
edição de set., 19??. criando praticamente 50 novos produtos, sendo
Copyright © 1977 Revista Adventista,
Todos os direitos reservados. que destes, 3 foram os jogos aprovados para
prosseguir com produção imediata: os jogos
de tabuleiro 3 em 1 Jornadas Bíblicas, o jogo
de cartas Quarteto Bíblico e caixas de Quebra-
cabeças bíblicos, todos ainda sendo vendidos
até hoje. É interessante ressaltar que foi nesta
reunião diretiva que foi aprovado pelo Pr. Wilson
Sarli juntamente com o diretor financeiro e de
vendas o “novo logo” da CPB que existe até
hoje (tendo este sofrido recentemente uma
atualização na parte tipográfica).
Em conversa portelefone, Kõhler disse
que “a ideia [da criação destes jogos) era de uma
Embalagem do Quarteto,
Copyright © 2015 Casa Publicadora forma resumida passar para a criança, jovem e
Brasileira, Todos os direitos reservados.
adulto, o contato com o Antigo Testamento, os
evangelhos e especificamente o livro de atos”.
De agosto a dezembro de 1972, entre a própria
produção de jogos feita pela CPB e por outras
gráficas especializadas que criavam jogos para
a Estrela, foram produzidos mais de uma dezena
de jogos analógicos, tais como A Arca de Noé
0 ADVENTISTA E OS GAMES
(um jogo de tabuleiro com 49 perguntas, com o
objetivo do jogador convidar um amiguinho não
adventista e juntos responderem a perguntas
na ordem cronológica bíblica, dando assim às
crianças conhecimento da criação até ao dilúvio);
3 caixas de quebra-cabeças; 3 jogos da coleção
Quarteto Bíblico; um jogo de “bingo bíblico”
intitulado de Colitoc; 2 dominós bíblicos e, por fim,
a joia da coroa, que foi o jogo Jornada Bíblica que
trazia 3 tabuleiros — a história de Israel, a vida de
Jesus e os apóstolos — em uma caixa só. Todos
os estes jogos, suas regras e mecânicas, foram
criados por Erlo Kõhler e ilustrados por vários
designers, entre eles o uruguaio Heber Pintos,
criador da “Turma do Noguinho”, mais tarde
conhecida como “Turma do Nosso Amiguinho”.
Em seu segundo mandato de 1995 a 2000, o
Pr. Wilson Sarli autorizou a reedição de alguns
destes jogos que as lojas online e físicas da CPB
vendem até hoje. Sem sombra de dúvida, foi um
investimento grandioso e uma aposta nunca
antes feita neste nicho de mercado.
A conversa pessoal com o diretor de arte
octogenário Erlo Kõhler nos conduziu a uma
deliciosa viagem ao túnel do tempo. No entanto,
nem tudo são flores: 40 anos depois da criação
destes jogos, nada diferente e moderno foi feito,
no que se trata de jogos analógicos clássicos
ou modernos. Kõhlerterminou inferindo
que “se talvez fosse criado um setor [na CPB]
dedicado à criação de jogos, assim como
existe a MusiCasa para produções musicais,
muitos outros designers e criadores de jogos
poderíam contribuir nesta frente. Eles iriam
levar aprendizado e experiências essenciais
às famílias e amigos que querem conhecer a
verdade enquanto se divertem de forma salutar”.
CAPÍTULO 8
De fato, a indústria dos jogos cresceu tanto
nos últimos anos que costuma faturar mais que o
cinema e a música, juntos. 0 Brasil, por exemplo,
desde 2012, experimenta na pele o crescimento
desenfreado e contagiante dos chamados “board
games”—jogos de tabuleiro modernos cujos
game designers são seguidos por legiões de
fãs, à semelhança de atores e escritores, pois
lançam cada vez mais títulos que combinam um
5 Para ter mais equilíbrio quase perfeito entre o design gráfico,
informações sobre a mecânicas de jogos e os mais variados temas.
produção de jogos de
tabuleiro no mundo,
Triste é saber que ao fazer uma pesquisa extensa
visite cboardgamegeek. pela maior base de dados online do mundo de
com>. jogos de tabuleiro,5 existem menos de 100 jogos
com temas Bíblicos cadastrados.
Voltando aos jogos atuais, Cleandro Viana
lançou, juntamente com Leandro Viana, um jogo
eletrônico bem popular, inclusive nos cultos
JA, chamado “Quem quer ser um milionário no
Céu?” 0 jogo, obviamente baseado no programa
Show do Milhão, por sua vez baseado no
estadunidense Who Wants to be a Millionaire?,
consiste em responder adequadamente 12
questões. Como resultado, ao invés de ganhar
um milhão, o vencedor ganha o Céu. Para
cada resposta certa, em vez de uma soma em
dinheiro, o jogador recebe um fruto do Espírito.
Interface do jogo Quem quer
ser um milionário no Céu?
Respondendo incorretamente uma pergunta, o
Copyright ® 201? Jogos Bíblicos, jogo acaba e ele precisa começar outra vez. 0
Todos os direitos reservados.
jogo, no entanto, apesar de angariar popularidade
no início dos anos 2000, nada mais é que uma
versão virtual adaptada dos jogos bíblicos
baseados em memorização, com a finalidade
de fomentar a leitura das Sagradas Escrituras.
Contudo, ao produzir o citado jogo, Viana se
apropriou, ao mesmo tempo, de um interessante
jogo televisivo e do universo computacional.
n ATIVFMTIÇTA F ÍK FAMFF
Ninguém, entre jovens e adultos, questionou sua
utilização, mesmo na igreja.
Outro importantíssimo exemplo é o
primeiro aplicativo denominacional Heroes,
que pode ser baixado para iOS e Android. Neste
game, vários heróis podem ser percebidos, a
partir de suas características, de acordo com
a própria descrição do Google Play: Abraão, “0
Pai de Nações”; Esther, “A Rainha da Coragem”;
Ruth, “A Sábia Viúva”; David, “0 Exterminador”;
Daniel, “0 Visionário”; Jesus, ”0 Leão de Judá”;
Peter, “A Rocha”; Maria M, “Tomb Raider”;
Mary, “A Guardiã”; John, “0 Filho do Trovão”;
Paul, “0 Viajante”. Atualmente, o jogo ainda se
mantém praticamente nos mesmos moldes,
embora sob diferente forma, mantendo
um estilo bem estilizado de perguntas e
respostas. Por fim, pode ser citado o game
PitCairn, também desenvolvido no estilo de
perguntas e respostas, desenvolvido pelo Interface de Heroes retirada
do site Notícias Adventistas,
White Estate Inc., EUA. 0 jogo foi baseado na Copyright O 2013-201? Igreja
vida e obra de Ellen G. White; ele possui uma Adventista do Sétimo Dia, Todos os
direitos reservados.
qualidade superior em termos de design e
trilha sonora, além de possuir um sistema de
pontos — entretanto, o jogo ainda se encontra
disponível apenas em língua inglesa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
CAPÍTULO A
esportes) como perda de tempo. Em virtude
da necessidade de aplicar esforços para o
desenvolvimento do país, atividades variadas
que não estivessem associados ao trabalho eram
consideradas como ociosas e desnecessárias.
Mesmo Ellen G. White, ao se utilizar do termo
“jogo” (“gome”), costumava aplicá-lo a situações
das mais variadas. Falar dejogos hoje em dia
não é uma tarefa fácil em virtude das milhões de
possibilidades e mecânicas desenvolvidas com
o passar dos anos. Ainda assim, devemos estar
cientes dos conselhos de Ellen G. White e procurar
por jogos que não retirem o foco daquilo que é
realmente importante.
A IASD tem feito bons esforços ao
propiciar jogos interessantes que mantenham
o foco na missão, embora ainda sejam
embrionários e com orçamento limitado.
É preciso, portanto, pensar em novas
possibilidades, visto que aqueles que
possuímos estão baseados em perguntas
e respostas. Inclusive o conceito de
“gamificação" poderia ser melhor utilizado
para aplicativos de auxílio a leituras bíblicas.
Fica evidente que o universo é grande e ainda
carece ser explorado. Em todo caso, a IASD
pode manter uma visão otimista sobre a sua
relação com os jogos, mas precisa ter em
mente que as iniciativas mencionadas aqui
representam apenas o primeiro passo.
REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
BORGES, M. Nos bastidores da mídia: como os meios de
comunicação afetam a mente. Tatuí: Casa Publicadora
Brasileira, 2006.
0 ADVFNTISTA F OS GAMFS
BRADEN, D. R. Leisure and Entertainment in America.
Detroit: Wayne State University Press, 1988.
218
FOLLIS, R.; NOVAES, A.; DIAS, M. [Orgs.J. Sociologia
CAPÍTIII n R
. Conselhos aos professores, pais e estudantes.
5. ed. Tatuí: CPB Casa Publicadora Brasileira, 200?a
http://bit.ly/2tbSnZL
0 adventista e a música pop
DEFINIÇÕES, PRECONCEITOS E
PRÁTICAS ECLESIÁSTICAS
Joêzer Mendonça
CAPÍTULO 9
ao mercado adolescente e caracterizadas pela
mistura de tradições e influências musicais de
gêneros (SHUKER, 1999; MENDONÇA, 2014).
Dessa forma, a música pop é um termo “guarda-
chuva”, que abriga diferentes gêneros musicais,
como rock, pop, música eletrônica, reggae, rap,
funk, hip-hop etc. Além dos estilos estrangeiros,
no Brasil a música pop também inclui alguns
estilos de pagode, sertanejo e axé-music. Essa
abrangência se explica por que a música pop
é produzida dentro de um sistema comercial,
gravada e divulgada com tecnologia moderna,
veiculada pelo aparato midiático moderno de
TV, rádio, cinema, revistas e internet, destinada
Capado álbum We are the world.
ao entretenimento e cruzando limites sociais e
culturais [FRITH, 2004;JAN0TTIJR, 2005). Essas
características podem favorecera produção de
canções simplistas, vulgares e repetitivas. Por
outro lado, nem a força das mídias nem o comércio
musical impedem a criação de músicas com alto
grau de complexidade e sofisticação artística.
De modo geral, a música pop é vista
como produto descartável, de refrões fáceis
que repetem versos sobre o amor (SHUKER,
1999, p. 192-193). Entretanto, o universo da
música popular é bem mais vasto, incluindo
canções que perduram por gerações,
apresentando diferentes graus de técnica
vocal e instrumental, e abordando temas
sociais, religiosos e políticos. A indústria
Capa do álbum Live Aid.
da música pop também organizou shows
de arrecadação milionária de fundos para
o combate à fome, como o We Are the World
[“Nós somos o mundo”) e o Live Aid [“Ajuda ao
vivo”), e vários artistas pop estão envolvidos
em ajuda humanitária, preservação dos
recursos naturais e em campanhas contra
OADVENTISTAEAMÚSICAPOP
a discriminação e a pobreza. Mesmo assim,
paira sobre a música pop a crítica de ser palco
de estrelismo, além de estimular a histeria de
fãs e o comportamento de risco.
Quando a indústria musical se consolidou
no começo do século 20, também se
consolidaram argumentos para depreciara
música popular em relação à “música séria”,
termo usado para identificara música erudita.
Tornaram-se célebres as teorias de Theodor
Adorno (1941), filósofo alemão bastante crítico
à música pop e ao seu ouvinte. Ele considerava
Theodor Adorno (1903-1969)
que a música popular era a música do “inculto”;
que a música pop era padronizada, mecânica,
sem vida; mera mercadoria apreciada por
espectadores frustrados. Perry Meisel (2015,
p. 66) observa que o julgamento de Adorno
“deriva de uma maneira eurocêntrica de medir
tudo o que é musical segundo os estilos dos
tempos clássicos”; além disso, algumas críticas
de Adorno à música popular soam anacrônicas,
isto é, estranhas ao contexto atual, e já foram
contestadas por outros estudos. Contudo, seu
modelo de crítica à música popular continua
presente em muitas argumentações.
Em outubro de 2010, por exemplo, o
cantor adventista Leonardo Gonçalves
participou do show de Ed Motta. Ambos
cantaram a música “Isn’t she lovely?’’ (“Ela
não é um amor?”], feita pelo ícone da música
pop americana Stevie Wonder, em homenagem
ao nascimento de sua filha. Embora a letra
desta canção seja um agradecimento a Deus,
Leonardo Gonçalves (membro da IASD) foi
criticado porter participado de um show de
música secular. Em abril de 2009, o violinista
e maestro adventista Paulo Torres, spalla
CAPÍTULO 9
da Orquestra Sinfônica do Paraná (também
membro da IASD), acompanhou o cantor
Andrea Bocelli em apresentação musical no
Domingão do Faustão, programa da TV Globo.
Apesar de Andrea Bocelli ter entoado canções
do repertório secular, a participação do
violinista não foi criticada.
Esses episódios exemplificam o caráter da
diferenciação que costumamos atribuir à música
clássica e à música popular. Em ambos os casos,
dois adventistas participaram de apresentações
musicais de cantores seculares. No entanto, para
alguns de seus irmãos de fé, um dos cantores
esteve em um “show”, enquanto o outro esteve
em um “concerto”. Foram utilizadas palavras
diferentes para contrastar o significado de algo
que, a rigor, representa a mesma coisa: uma
exibição musical.
22?
OS ADVENTISTAS
EA MÚSICA POPULAR
Historicamente, os adventistas se
utilizam da música popular de várias maneiras.
Urias Smith e Tiago White, por exemplo, ao
selecionarem cânticos para os primeiros
hinários adventistas, incluíram versões
evangélicas da canção popular “Old Folks
at Home" (“Velhos amigos em casa”) e do
canto folclórico “Bonnie Eloise”, ambos
presentes no atual Hinário Adventista com
os títulos “Saudade” e “Oh, Quão Doces as
Novas”, respectivamente. Isso não significa,
Partitura da música Oldfolks
at home. de fato, que eles trouxeram estilos dançantes
e adaptaram temas românticos ou até
moralmente reprováveis ao movimento
CAPÍTULO 9
Adventista, H. B. Scott falava sobre “músicas
prejudiciais” e afirmava que o jazz causava
desordens fisiológicas. Duas décadas depois,
havia um novo vilão musical: o rock’n’roll! 0 líder
de jovens e desbravadores John Hancock (1958,
p. 14] julgou que o Diabo estava manipulando
“este novo entretenimento musical”, cuja
sensualidade e ritmo estavam a um passo dos
“diabólicos dançarinos de terras pagãs” - note
que, bem antes do cantor Raul Seixas, já havia
quem apontasse que o Diabo era o pai do rock.
Os primeiros textos de pastores
adventistas a respeito de música popular não
abordam propriamente a música do jazz e do
rock, mas sim as danças como efeito físico
e imoral dessa música. Contudo, eles não
mencionavam que muitos ouvintes preferiam
escutar o jazz em vez de dançar, e que vários
compositores desenvolveram canções e
performances bastante refinadas. A partir dos
anos 19?0, contudo, os autores adventistas
passaram a conferir mais atenção ao efeito
físico e psicológico que a música exerce
sobre as pessoas. Nessa época, a simples
demonização da música popular foi substituída
pelo uso da ciência como fonte de autoridade
para alertar sobre as consequências perigosas
de se escutar ritmos como o rock. 0 músico
e professor Harold Lickey (19?1] escreveu
uma série de artigos sugerindo que a natureza
selvagem do rock causava o problema de
comunicação entre as gerações. Compositora
de obras eruditas, Margarita Merriman (19?2,
p. 4; 1973] afirmou que um ritmo repetitivo
como o rock “leva à hipnose em vários níveis
[e] quando combinado com a síncope, o corpo
reage com movimentos sensuais”, e avaliou
OADVENTISTAEAMÚSICAPOP
que o rock era uma ameaça à saúde física e
espiritual dos indivíduos.
Em geral, a maior parte dos autores
adventistas que escrevem sobre música têm
utilizado três referências básicas: a Bíblia, os
textos de Ellen G. White e a ciência. Na visão de
H. Lloyd Leno (1976, p. 164), para que a igreja
desenvolva uma filosofia adequada para a
música seria necessário abandonar “opiniões
predominantes, gostos pessoais e até a
opinião de profissionais do campo da música”.
Para Leno, a Bíblia demonstrava os princípios
fundamentais da vida cristã, o Espírito de
Profecia ampliava os ensinos bíblicos, enquanto
a ciência esclarecia as respostas da natureza
humana aos estímulos musicais. Esse triplo
recurso acabou fundamentando as críticas
mais recentes à música pop, mas nem sempre
serviu como ferramenta para argumentações
mais corretas e convincentes. Em vários casos,
a combinação desses recursos é muitas vezes
controversa e carregada de interpretações
imprecisas e descontextualizadas de textos
bíblicos, proféticos e científicos.
Nos anos 1980, alguns autores
adventistas afirmavam que o rock causa perda
“quase instantânea de 2/3 da força muscular”
e sua fórmula rítmica repetitiva junto com
instrumentos como a bateria altera toda a
química corporal, “sem contar os elementos
de transe e hipnose que contém”, e também
mencionavam a contestada experiência de
Dorothy Retallack com plantas que gostaram
de música clássica, mas “com rock da banda
Led Zeppelin algumas secaram e morreram”
(ARAÚJO, 1995, p. 28-30). Esse modelo de
abordagem à cultura pop, ao rock ou à música
secular que recorre a mensagens subliminares,
ocultismo e experimentos científicos sem
mérito acadêmico ainda comparece em uma
parte da bibliografia adventista nacional.
Alguns teólogos também se equivocaram
ao corroborar informações do campo da
ciência para falar de música pop. Samuelle
Bacchiocchi (2000, p. 236; 241], por exemplo,
com o intuito de demonstrar que a música
pop é uma ameaça à saúde, escreveu que o
rock eleva a pressão sanguínea, a pulsação, a
produção de adrenalina e que a tensão causada
pela dissonância e sua acentuação sincopada
estimulam hormônios que alteram o estado da
consciência e atrapalham a digestão. A essa
questão, o teólogo adventista Ed Christian
(2003, p. 82] respondeu que esses efeitos não
advêm exclusivamente do rock, mas também
de cantar hinos com bastante entusiasmo ou
assistir e participar de esportes. Se as pessoas
ficam com os músculos mais relaxados ao ouvir
música popular, ocorre um efeito semelhante
após uma boa caminhada ou depois de se
cantar um hino preferido com vigor, pois isso
tudo se trata de reação natural do nosso corpo.
Se até teólogos experientes cometeram
intepretações incorretas de informações
científicas, então o mesmo discernimento
que aconselhamos para a escolha da música
adequada deve ser usado também para a
pesquisa de material científico sobre música. Por
outro lado, é inegável que os autores adventistas
evidenciam uma legítima preocupação com as
consequências do tempo dedicado à escuta
de música e com o tipo de canção usada para
o entretenimento. Ellen G. White (1999, p. 506]
escreveu que “a música é o ídolo adorado por
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
ADORNO, T. On popular music. In: LEPPERT, R. (Ed.). Essays
on music. Berkeley; Los Angeles: University of California
Press, 2002.
236
CAPÍTULO 9
LICKEY, H. Rock music analyzed. Review and Herald, v. 148,
n. 48, p. 7-8,1971.
http://bit.ly/2u64nAy
0 adventista e a mulher na mídia
ENCONTROS E DESENCONTROS NA
CONSTRUÇÃO DO FEMININO
Betina Bordin Pinto
Mestra em Comunicação pela Universidade Paulista (Unip), jornalista e professora nos cursos
de Jornalismo e Rádio TV no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unaspj
E-mail: betinabpinto@gmail.com
Certa noite me deparei com uma
propaganda de televisão que me chamou a
atenção. Era um comercial sugestivo para as
férias que orientava sobre a importância de
fazer a revisão do carro, como trocar o óleo
ou os pneus, para garantira segurança de
uma viagem. 0 enredo mostrava um cliente
na loja fazendo um comentário sobre uma
atendente, dizendo que “elas” (as mulheres)
“não entendem muito de carro”. Contudo, no
mesmo instante, o cliente é surpreendido por
uma mulher mecânica cuidando de seu carro.
0 que mais me admirou, contudo, foi o fato de
a mecânica representar uma “mulher comum”;
ou seja, ela não estava vestindo roupas
insinuantes ou fazendo insinuações sensuais.
Quando percebi isso, voltei a refletir
sobre como a mídia é uma ferramenta
poderosa para disseminar conceitos, idéias e
padrões! Ainda assim, me recordei de como
esses padrões têm machucado mulheres ao
longo dos anos. 0 mesmo pensamento me
conduziu à associação, que está se tornando
cada vez mais forte, entre a mídia e a religião
e como isso impacta a vida das mulheres
cristãs. Como sabemos, historicamente, as
mulheres cristãs costumam ser alocadas a
um patamar de subordinação e, por vezes,
de servidão em relação aos homens no
cristianismo. No entanto, parece que, aos
poucos, essa realidade de violência e
subjugação da imagem feminina começa a
mudar - em primeiro lugar, na sociedade,
como vimos no comercial, e, em segundo
lugar, entre os cristãos.
Antes de falarmos sobre essa mudança
- que apareceu depois de muita luta -,
CAPÍTULO 10
precisamos entender como surgiu e como se
dá a relação de amor e ódio entre a mulher
e a mídia, além de compreender como a
religião entrou nesse processo. Para tanto,
é preciso ir às raízes dessa questão afim de
entender um pouco sobre a maneira pela qual
os encontros e desencontros dessa relação
contribuíram para a construção dos cenários
sociais que temos hoje a respeito da mulher
e, sobretudo, da mulher cristã.
1 Em 190í,o arqueólogo
britânico sir Arthur Evans
descobriu a civilização NOS BASTIDORES
minoica, que teve seu
auge na Grécia entre os
DA CONSTRUÇÃO SOCIAL
séculos 2? e 11 a.C. Ele
afirmou tratar-se de uma
Ao longo das décadas, inúmeras
sociedade matriarcal.
A Civilização Minoica pesquisas foram realizadas para compreender
tinha como base a a construção das relações sociais entre
religião cretense, que
homens e mulheres. Há estudiosos que
se fundamentava nas
adorações às divindades
defendem que as sociedades primitivas eram
femininas. Muitas dominadas ideologicamente por homens, e
outras civilizações outra corrente de pesquisadores que prefere
apresentaram e/
ou apresentam
basear suas investigações na existência
características de uma de um sistema familiar matriarcal, centrado
sociedade matriarcal: na figura da mãe - aliás, descobertas
Celta, Ilha de Malta,
Elan. Na América do
arqueológicas1 reforçam esta última versão,
Sul, por exemplo, as que costuma não ser aceita por muitos
índias que dominavam pesquisadores. No entanto, ao se discutir
a região próxima ao
Rio Amazonas-as
sobre as raízes históricas da constituição das
icamiabas - eram sociedades, o historiador Jorge Miklos (2011,
riquíssimas em ouro. 0 p. 2] nos alerta para uma compreensão mais
nome - “Amazonas” -
clara sobre a figura da mulher na sociedade.
nome dado às mulheres
guerreiras pelos gregos - 0 pesquisador destaca um ponto que não
foi dado em homenagem pode ser ignorado nesse cenário: “0 ser
a elas, após terem
humano é um ser social, um ser de relações
derrotado invasores
espanhóis, em 1541. e de interações. 0 ser humano se constrói
(CUNHA, 2015, p. 20], mediante um processo de socialização. Nesse
capítulo m
entre homens e mulheres, a pesquisadora
encontrou ao longo da história o modelo
de “dominação” e outro de “parceria”; um
baseado na imposição, na subjugação,
na desvalorização, e o outro, firmado na
colaboração e na valorização das diferenças
complementares. As pesquisas de Riane Eisler
motivaram outros estudiosos a compreender as
raízes dos problemas que vivemos hoje. Maria
Aparecida Cunha (2015), por exemplo, nos
instiga a considerar que, durante a construção
dessas funções sociais de dominação,
inúmeros signos e ícones ligados à religiosidade
e à arte foram alterados em seus significados,
no sentido de justificara soberania masculina,
contraposta à imagem da mulher como um
indivíduo submisso e inferior.
Na verdade, a análise feminina dos fatos
ficou à margem das pesquisas por muitos anos.
De acordo com o arqueólogo americano James
Adovasioeto/. (2009) o homem foi quem realizou
os primeiros estudos arqueológicos e estampou
suas próprias impressões em cada descoberta!
Apenas no século 20 foram corrigidos alguns
equívocos na ocasião em que as mulheres
começaram a participar das escavações.
Dogmas antigos começaram a ser questionados.
No entanto, a importância da mulher no processo
social ficou comprometida, pois a humanidade
passou a observá-la de maneira deturpada,
como objeto de consumo masculino e, dessa
visão, advém as mais cruéis formas de violência.
Entender e tratar a mulher como um
indivíduo submisso e inferior é, obviamente,
uma maneira de violentá-la. Na compreensão
mais ampla do significado de violência,
o filósofo e teólogo argentino Miguel
NAS ENTRELINHAS
00 DISCURSO MIDIÁTICO
CAPÍTULO 10
contexto, cria-se uma “imagem” da mulher que
passa a ser divulgada pela mídia.
Esses estereótipos criados pela mídia
reforçam o pensamento de Edgar Morin (1997),
sociólogo, filósofo e antropólogo francês. Ele
desvela o “modelo de mulher” apresentado
2 0 conceito de cultura de pelos meios de comunicação, afirmando
massa utilizado nessa que a mídia se preocupa em fazer duas
pesquisa é o idealizado
por Edgar Morin [2002,
abordagens para a “imagem da mulher”, dentro
p. 16), que a define de um formato desenvolvido pela cultura
como sendo "produzida de massa2: uma que se limita ao “domínio
segundo as normas
das artes domésticas; e a outra que aborda
maciças da fabricação
industrial; propagada o universo do bem-estar-conforto que se
pelas técnicas de difusão desenvolve sob controle feminino”. Em outras
maciça; destinando-
palavras, os “modelos” apresentados pela
se uma massa social,
isto é, um aglomerado
mídia sobrecarregam a mulher de conceitos e
gigantesco de indivíduos responsabilidades que só cabem a ela, com o
compreendidos aquém bem-estar do lar, por exemplo.
e além das estruturas
internas da sociedade.
Marcondes Filho (1988, p. ?9), outro
[...] Acultura de massa estudioso da comunicação, fala sobre
integra e se integra ao exclusão e sentimento de marginalização
mesmo tempo numa
realidade policultural;
por parte de quem não se enquadra nesse
faz-se conter, controlar, estereótipo: “Aquele que não se adapta a
censurar (pelo essas normas tem a sensação de estar sendo
Estado, pela Igreja) e,
simultaneamente, tende
marginalizado, excluído, acometido do que se
a corroer, a desagregar denomina sentimento de culpa na cultura, isto
as outras culturas." é, sofre por ser muito alto, muito baixo, muito
gordo, careca, feio; por não ter o penteado
da moda, a roupa da época, o carro novo.
Tudo isso por sua vez gera uma compulsão:
render-se ao imperativo do podertotalitário
dos modismos, que atinge, evidentemente,
os mais fracos com mais facilidade.” Nesse
contexto, o autor afirma que há uma
construção mental que funciona na cultura
como norma à qual todos se sentem coagidos
a se submeter. Isso é violência “invisível”, ou
AADVENTISTAEO
FEMININO NA MÍDIA
CAPÍTULO 10
surgem como instrumentos pelos quais a
mensagem pode ser simplificada na tentativa
de alcançar um grande número de pessoas
ao mesmo tempo. A utilização dos meios de
comunicação pelas igrejas tornou-se condição
3 Disponível em <http:// fundamental de existência e manutenção
bit.ly/2rGKVcS> . Acesso das atividades religiosas. Ao entender esse
em: 10 abr. 201?
cenário, precisamos refletir sobre a maneira
como essa “ferramenta”, a mídia, é usada pelo
segmento religioso para retratara mulher.
Nesse contexto, a Igreja Adventista do
Sétimo Dia (IASD) também se utiliza dos meios
de comunicação para propagar sua mensagem.
A Rede Novo Tempo de Comunicação3 é o canal
oficial da IASD. 0 primeiro programa da igreja
na televisão brasileira, no entanto, foi ao ar em
novembro de 1962, na TVTupi, em São Paulo.
0 programa, Fé para hoje, era transmitido
apenas nesse estado. Em 1981, foi ao ar o
primeiro programa diário em rede nacional
pela Rede Manchete, chamado Encontro com a
vida, com duração de 5 minutos. Com o passar
dos anos, essa estrutura começou a ganhar
força e a igreja passou a investir na produção
de mais programas. Em 1995 aconteceu a
primeira transmissão ao vivo, via satélite, da
NOVO TEMPO
CANAL DA ESPERANÇA
Holanda para o Brasil e no final de 1995 surgiu
o Sistema Adventista de Comunicação (SISAC).
Marca do canal Novo Tempo. Todos os órgãos de comunicação da igreja
deveríam estar sob o mesmo teto. Estava
nascendo o que mais tarde seria chamado de
Rede Novo Tempo de Comunicação; ela passou
a sertransmitida a quase todas os estados
brasileiros e até fora do país.
Agrade da emissora, que iniciou
timidamente com poucos programas, possui
atualmente conteúdo para todos os públicos.
rAPÍTin n m
“A MULHER ÀINDÀ
PRECISA SER MAIS
RECONHECIDA COMO
‘PESSOA’ DOTADA
DE INTELIGÊNCIA,
CONHECIMENTO
E CAPACIDADES
— EM VEZ DE SER
RESTRINGIDA APENAS
AO SENTIMENTALISMO E
ÀS ATIVIDADES DO LAR.”
edições, selecionadas de acordo com o número
de visualizações no YouTube5, pois não há um
lugar específico onde as edições se organizem 5 Disponível em <http://bit.
por mês e ano. ly/2qCtlNM>. Acesso em:
2mai., 2017.
No programa Consultório de família
procura-se oferecer um espaço para a reflexão
das atitudes e posturas que influenciam
na educação familiar e no relacionamento
conjugal, entre outros aspectos. Nele, foi
possível perceber que existe falta de temática
voltada para a mulher como “pessoa”, mesmo
no mês em que se comemora o dia da mulher
- dos 11 programas analisados de 2011 a
2015, apenas 2 deles tinham esse foco
específico: “Os desafios da mulher” e a “Série
só para mulheres”. Essa ausência de conteúdo
talvez ocorra porque esse não é o objetivo do
programa, como abordamos anteriormente.
252
Com o passardos anos, o posicionamento
do programa com relação ao comportamento
feminino considerado como “adequado” se
Trecho do programa Consultório
altera. 0 programa oscila e diverge entre de Família transmitido pelo
dois contextos: a “mulher independente e canal Novo Tempo.
batalhadora” e a “mulher submissa ao marido”.
No programa “Casamento e submissão” (2011),
por exemplo, enfatiza-se que o caminho mais
seguro para a mulher na relação é a submissão,
e que essa representa a vontade de Deus para
ela (BLOCO 1= 3’38”; 10’40”; BLOCO 2= 5’20”;
BLOCO 3= 2’). Em outro sentido, no programa
intitulado “A mulher e a família” (2013), embora
seja mencionada como a responsável pela
educação dos filhos, a mulher deve sonhar
com a conquista de uma profissão (15’;
20’52”; 23’55”; 28’05”; 32’30”) - embora essa
atividade necessite ser abandonada pela
função de mãe com a chegada dos filhos.
CAPÍTULO 10
No geral, a imagem da “mulher-mãe”, ou
seja, aquela que cuida dos filhos e a do marido,
é a principal responsável pelo bem-estar do lar,
mesmo que trabalhe fora e enfrente duplas ou
triplas jornadas. E, ainda que seja considerada
uma “apoiadora” do marido, ela é apresentada
como um ser dependente, com a necessidade
de ter um homem ao seu lado.
0 programa Sempre Mulher não faz mais
parte da grade de programação da NT. Ele ficou
no ar por quatro anos e depois migrou para a
Rádio NT e, continua sendo, exclusivamente,
voltado ao público feminino. Embora o
programa não fale sobre a mulher ser submissa
ao homem de maneira explícita, também
não diz que ela pode se apoiar no esposo e
contar com ele como parceiro. Em todas as
edições analisadas ela foi exaltada, de alguma
253
maneira, à imagem da “mulher-mãe”. Em uma
edição sobre a autoestima, por exemplo (com
15.478 visualizações), a dica do dia foi sobre
maternidade, aconselhando a mulher sobre o
momento em tirar o filho do peito e se aproximar
do marido: “Você é mãe mas também é mulher,
precisa cuidar do seu filhos sem esquecer do
marido”. Os assuntos discutidos durante o
programa, vez ou outra, entram em discursos
de igualdade e valorização, tais como: salários
iguais, força feminina e divisão de tarefas, mas
de maneira tímida.
No geral, o programa também diverge
em opiniões de forma discreta. Enquanto era
veiculado pela televisão, o programa não falou
sobre submissão, mas mostrou uma mulher
que se submete a padrões de beleza, necessita
do esposo em certo grau e passa a viver para si
apenas depois que os filhos crescem. Por outro
CAPÍTULO 10
A RA, nos artigos analisados, foi sutil
em muitos aspectos, e se preocupou em
retratar a imagem da mulher como alguém
que precisa ser determinada, ter iniciativa,
ser espiritual e amar ao próximo. Além
desses aspectos, também foram frisados
a humildade, a sensibilidade, a intuição, a
necessidade de ser dona do próprio destino,
poderosa, influenciadora e emocional -
diferente do homem, racional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
OADVENTISTAEAMULHER NA MÍDIA
pesquisadores e estudiosos da teologia e da
comunicação engajados nessa atividade.
REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
ADOVASIO, J.M; SOFFER, 0.; PAGE, J. Sexo invisível. São
Paulo: Record, 2009.