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* Publicado originalmente como QUEIROZ, M. I. P. de. Uma categoria rural esquecida. Revista
Brasiliense (São Paulo), n.45, p.83-97, 1963.
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ao passo que a vida da família do fazendeiro era uma vida de isolamento e de uma
reclusão mais ou menos completa, a classe inferior dos habitantes do campo e que
se compunha de pequenos sitiantes ou de camaradas e de agregados dos fazendeiros
vivia... em uma como que completa promiscuidade; pois que não só toda a família,
homens e mulheres, juntos, se ocupavam da maior parte dos serviços, e estavam com
os vizinhos em relações muito contínuas; porém, ainda ocasiões havia em que, sob
o nome de mutirões, todos esses vizinhos se reuniam para ir ajudar a alguns deles
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que se viam com o seu serviço mais ou menos atrasado ou que tinham urgência de
concluir um serviço qualquer; auxílio esse, que, embora muitas vezes reiterado, eles
entretanto nunca deixavam de prestar; e de prestá-lo da melhor vontade; porque,
além da certeza de que todos tinham da retribuição quando dela precisassem, esses
mutirões, cujo resultado era às vezes de importância imensa para aqueles que os
faziam, convertiam-se ao mesmo tempo para todos em um dia de verdadeira festa...
(Resende, 1944, p.190-1).
Assim, enquanto a vida de uma fazenda “era, como acima já disse, uma
vida de reclusão e de isolamento” (Resende, 1944, p.192), esta outra se defi-
nia pela solidariedade vicinal e apresentava outros traços que continuaram a
caracterizá-la: a tarefa agrícola executada pelos braços familiares, inclusive
os femininos, o que dava à mulher uma vida muito mais livre, diferente
da prisão nas casas-grandes; a falta de uma divisão do trabalho digna de
menção, que impossibilitava a prática de uma coordenação mais complexa
de tarefas e, conseqüentemente, tornava desnecessária grande reflexão
sobre os trabalhos a ser executados; a igualdade de todos os membros da
comunidade, derivada de sua igual posição social e das tarefas iguais que
desempenhavam; a vida levada em comum pelos vizinhos, em tal continui-
dade de relações que o magistrado mineiro fala até em “promiscuidade...”.
Raramente esse estilo de vida, no entanto, deu lugar a comunidades
florescentes, raramente se institucionalizou de maneira clara, não che-
gando a permitir que se generalizasse uma vida rural bem organizada nas
áreas de agricultura de subsistência. Os laços de vizinhança rompiam-se
com facilidade por fatores os mais variados, tendo como resultado uma
desorganização social que chegava às raias da anomia. O que impediu
que as formas de ajuda mútua, como o mutirão, dessem sempre todo o
rendimento econômico que tinham em potencial e evoluíssem para uma
economia de mercado. A igualdade básica entre os vizinhos, que todos
tentavam ciumentamente resguardar, foi um dos focos maiores de disputa
e de desorganização. Todavia, quando um indivíduo da comunidade pôde
se impor aos outros, mercê de suas qualidades pessoais, fazendo vigorar
nela alguma disciplina, a desorganização encontrou barreiras.
Os fatores que determinaram a persistência desse gênero de vida até
nossos dias foram vários. Em primeiro lugar, a vasta extensão de terras
desocupadas permitia aos indivíduos sem recursos se instalar onde bem
quisessem, vivendo do que lhes proporcionavam as roças. Em segundo, a
constante falta de braços num país em expansão fazia que fossem sempre
absorvidos quaisquer excedentes de população que viessem gravar a situa-
ção dos bairros. A falta de numerário concorria também para desequilibrar
qualquer desenvolvimento, pela desproporção entre os trabalhos em an-
damento e o dinheiro necessário para pagá-los. Principalmente no campo,
as camadas menos abastadas viam-se forçadas a viver de seus produtos,
trocando-os na feira por outros de que necessitassem, o dinheiro raramente
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tendo curso muito difundido no interior do país e não podendo ser acumu-
lado nos tradicionais “pés-de-meia” camponeses. Nessas condições, não era
possível contratar mão-de-obra, nem alargar plantações, nem pensar em
modernizações de agricultura – isto é, não era possível a evasão do círculo
da economia fechada. Esta constituiu, pois, o inevitável de milhares de
famílias rurais que, embora possuíssem alqueires e mais alqueires doados
em sesmaria, não dispunham do dinheiro necessário para pô-los a render
economicamente.
A importância numérica dessa categoria de trabalhadores rurais até hoje
não pode ser calculada com precisão. Os bairros são comunidades de habi-
tação dispersa, centralizados por pequeno núcleo de meia dúzia de casas
em torno de igrejinha ou capela; para atingir todas as casas são necessárias
caminhadas longas por picadas, e os recenseadores desdenham fazê-las –
limitam-se a perguntar no núcleo quantos habitantes mais ou menos há por
ali. Os questionários de recenseamento só se referem a “estabelecimentos
agropecuários” compreendidos como agricolamente organizados e normal-
mente produtivos em nível comercial; quedam desprezadas as humildes
roças, que passam a “não existir” oficialmente.
Dessa circunstância se origina a constatação paradoxal efetuada por
Domício de Figueiredo Murta para o estado de Minas Gerais: comparan-
do a população do estado com o baixo índice do consumo, conclui que
“inexistem, teoricamente, 3.600.000 habitantes, caso a sua sobrevivência
dependesse exclusivamente dos produtos analisados”; isto é, a produção
reconhecidamente existente, a produção oficial do estado de Minas Gerais,
só alimentaria 53% da população total, que é de 8 milhões de habitantes.
O que equivale dizer que os 3.600.000 referidos vivem em economia de
subsistência (Murta, 1961, p.78).
Caio Prado Júnior afirma que somente 27,2% da área total brasileira é
constituída por grandes propriedades monocultoras; seu engano é apontar
o restante como “desabitado” (Prado Júnior, 1960, p.184). O cálculo da
área cultivada não tem de ser feito em função somente das propriedades
economicamente rendosas, mas em função da quantidade de população
existente comparada com o consumo alimentar oficial, como efetuou Do-
mício de Figueiredo Murta; a “sobra” pertencerá ao regime de agricultura
de subsistência. Ou melhor, calculando-se um mínimo necessário para a
sobrevivência, verificar se os alimentos dados como consumidos no Brasil
chegariam para nutrir a quantidade de habitantes constatada pelos recen-
seamentos, ou se uma parte destes seria “teoricamente inexistente”, como
foi constatado para Minas Gerais.
Para Jacques Lambert, “ao passo que as grandes culturas de exportação co-
brem apenas três milhões e meio de hectares, as culturas de víveres ocupam
quatorze milhões” (Lambert, 1959, p.141). Poder-se-á argüir que também
colonos de fazendas podem possuir suas roças, pois uma das modalidades
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Em Itapetininga, por exemplo, Oracy Nogueira cita 7,05% de estabelecimentos empenhados
em agricultura em grande escala e 92,95% em agricultura em pequena escala.
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está todo ocupado, podem existir grandes tratos ainda vazios, à espera de
maior proliferação dos herdeiros...
Essa situação vem de longe. Em 1858, o jornal O Araripe, editado no
Crato, pedia uma medida do governo que
vedasse a subdivisão da propriedade territorial na região, pois esta se transformava
em centenas de sitiocas, multiplicando as questões em torno das aguadas: nos in-
ventários, os bens imóveis deveriam ser adjudicados a um só herdeiro, ou vendidos
a um só comprador, que pagasse a cada herdeiro, em dinheiro de contado, o que
lhe coubesse (Pinheiro, 1950, p.123).
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da maioria das famílias abastadas, ricas em terras, porém, as mais das vezes desti-
tuídas de dinheiro, que não compram senão o indispensável e obtêm de sua pro-
priedade o essencial para satisfazer suas necessidades (Rüe, p.33-4).
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Nossa definição de sitiante difere da que é efetuada por Nícia Lecocq Müller, pois não
englobamos entre eles aqueles que pagam um aluguel qualquer pela terra.
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Mesmo quando há, por acaso, assalariados, todos “vivem como se uma
só família fossem, distinguindo-se pouco os patrões dos empregados, os
mandantes dos mandados, muitos dos quais intimamente se tutelam”,
explica Zenon Fleury Monteiro (1926, p.59).
A situação de trabalho é sempre idêntica, pois mesmo os donos de
grandes domínios “são eles próprios que trabalham a terra, recorrendo ao
proletariado remunerado apenas quando o serviço aumenta demasiado,
em determinadas épocas ano” (Monteiro, 1926, p.58). Wilson Lins notou
a mesma identidade de vida no médio São Francisco, “todos vestiam o
mesmo gibão de couro, moravam nas mesmas casas de taipa, comiam
a mesma carne-seca com farinha grossa e rapadura salobra” (Lins, p.35).
Nossas pesquisas no interior da Bahia mostraram condições coincidentes.
No estado de São Paulo, o gênero de vida dos sitiantes não difere. Oracy
Nogueira observou, no município de Itapetininga, que 70% dos habitantes
rurais moram em casas de sapé e piso de terra batida, caixotes fazendo as
vezes de móveis, latas vazias substituindo vasilhame; de tal modo que
colhe-se a impressão de que ou nunca foi superada a miséria generalizada constatada
por Saint-Hilaire, no primeiro quartel do século XIX, ou a ela se retomou por toda
parte, depois de surto de prosperidade (Nogueira, 1962, p.150-1, 155).
Outros estudiosos que se têm interessado pelo meio rural, como An-
tonio Candido de Mello e Souza e José Vicente Freitas Marcondes,3 eram
impressionados com essas mesmas circunstâncias. Não foram diferentes as
observações feitas ainda este ano por uma equipe de alunas da Faculdade
de Filosofia, Ciências Sociais e Letras que, sob nossa orientação, efetuaram
pesquisas de “bairro” no município de Paraibuna.
A tese de doutoramento de Antonio Candido de Mello e Souza focalizou
a ruína econômica dos “bairros” paulistas diante do avanço da civilização
industrial. O caboclo não recusa o progresso, pelo contrário; e isso o esmaga.
Vivendo num estreito círculo de trocas, percebe a invasão de suas feiras
por objetos produzidos industrialmente (para só falar desse fator de desor-
ganização econômica e social, proveniente da civilização urbana, embora
existam inúmeros outros) e passa a sentir a necessidade de um excedente de
produção que lhe permita adquirir tais utilidades. Tende então a abandonar
a policultura, que lhe garantia a subsistência, pelo cultivo de um produto
só, cujo preço ouviu dizer que está em alta; deixa de lado o artesanato e
todas as outras atividades complementares de sua economia. Não alcança,
todavia, o resultado almejado; na feira, os objetos são sempre mais caros do
que os cruzeiros que conseguiu ganhar. E, o que é trágico, não colhe mais
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Antonio Candido de Mello e Souza realizou pesquisas no município de Bofete e interior de
Mato Grosso, encontrando situações básicas semelhantes. José Vicente Freitas Marcondes
desenvolve suas pesquisas em cinco municípios do vale do Paraitinga.
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Observações efetuadas por uma equipe de alunas nossas, da Seção de Ciências Sociais da
Faculdade de Filosofia e Letras da USP, em julho de 1962.
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a sorte, há uma parte que fica em vaivém durante algum tempo, ganhando
dinheiro fora de seus pagos para regressar assim que imaginam ter alcançado
o suficiente para melhorar de vida; retornando ao Sul quando os meios se
esgotaram, com o intuito de refazer o pecúlio. Parte regressa definitivamente
ao Nordeste, parte se estabelece definitivamente no Sul. Qual a importância
numérica do retorno ou da fixação? Não existem dados a respeito.
Seja para os nordestinos, seja para os paulistas, a emigração ou a pe-
netração da civilização moderna no interior dos estados não têm como
conseqüência apenas a degradação econômica. Indo para a cidade ou obri-
gados a trabalhar para terceiros, a posição social dos sitiantes também se
altera. Nos “bairros”, todos têm o mesmo status social, a estratificação social
é incipiente, a liderança (que nunca é hereditária, e que não se confunde
com a posse de maior quantidade de bens) se define pelos dotes pessoais,
geralmente. Quando os integrantes de uma estrutura igualitária como essa
abandonam a agricultura de subsistência pelo lugar de assalariado, seja rural,
seja urbano, integram-se em estrutura diferente, estratificada em vários graus
segundo o poder econômico, e nela vão ocupar o nível inferior da escala
social. Passam a viver num mundo em que o homem não galga posições
pelas suas qualidades intrínsecas, reconhecidas pelos que o rodeiam e o
conhecem de perto; mas sim pelo poder econômico que soube enfeixar nas
mãos, adquirido seja como for... Além da degradação econômica, sofrem
os sitiantes também degradação social. Passam a viver, outrossim, num
universo para o qual não foram preparados, pois os valores da vida rural
são inteiramente diferentes dos valores da vida urbana.
O que sucede no estado de São Paulo aponta um triste caminho ao
sitiante, o caminho da ruína sem remédio. O desenvolvimento econômico
excessivamente rápido de certas regiões do país tem igual resultado, por
atrair um número muito elevado de braços que desertam as lides agrícolas
dos “bairros” atrás da miragem de salários elevados e de enriquecimento
fácil; os que permanecem, insuficientes para ganhar a vida das famílias,
sofrerão também abaixamento de seus níveis de vida, sem falar na falta de
gêneros para vilarejos e povoados, nos quais parte da população depende
também das pequenas roças dos sitiantes circunvizinhos. Nas cidades, o
acúmulo de uma mão-de-obra mal preparada para a vida urbana tende a ser
excelente meio de cultura para a formação de vagabundos e degenerados.
Desequilibrada a vida do campo, para grande parte da população, poder-
se-á manter o ritmo do desenvolvimento econômico geral?
Muito se fala em reforma agrária ultimamente, e os projetos vão dos mais
radicais aos mais moderados (Marcondes, 1962, p.45).5 As medidas pro-
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José Vicente Freitas Marcondes mostra que, de 1946 a 1958, vinte projetos foram apresen-
tados ao Congresso Nacional especificamente sobre reforma agrária, dentro dos 213 que
diziam respeito a modificações ligadas à propriedade agrícola e assuntos correlatos.
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Nossa equipe de alunas averiguou em Paraibuna que o auxílio da Caixa Rural existente só
é acessível a quem já possua um pecúlio, isto é, uma ínfima minoria.
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Analisamos esse caso, comparando-o com o que se passa nos “bairros” paulistas em desorga-
nização, no artigo Désorganisation des petites communs brésiliennes. Cahiers Internationaux
de Sociologie (Paris), v.XXVIII, 1960.
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Essas práticas comunitárias não existem apenas ao nível da labuta agrícola. O próprio trabalho
feminino de bordados e tecidos se beneficia delas. Assim, a mulher que sabe tecer no tear
contribui com seu trabalho, aquela que plantou o algodão entra com a matéria-prima, e o
produto auferido com a venda do pano ou da rede é dividido entre ambas. Comportamentos
como esses desaparecem todas as vezes que a solidariedade do “bairro” se desfaz.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LAMBERT, J. Os dois Brasis. Ministério da Educação e Cultura: Rio de Janeiro,
1959. p.95
LINS, W. O médio São Francisco. 2.ed. Salvador: Livraria Progresso. p.26-7.
MARCONDES, J. V. F. Revisão e reforma agrária (Quatro Estudos). São Paulo, 1962.
p.15, 53.
MONTEIRO, Z. F. À margem dos Carirys. São Paulo: Helios, 1926. p.51-2, 62.
MÜLLER, N. L. Sítios e sitiantes no estado de São Paulo. São Paulo: Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1951.
MURTA, D. de F. Nota prévia sobre a estrutura agrária de Minas Gerais. Revista
Brasileira de Ciências Sociais (Belo Horizonte), v.1, n.1, p.78, 1961.
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