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Cat Sap176 PDF
Cat Sap176 PDF
chama os espíritos
dos bonecos
mamulengos em Glória do Goitá
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A música é que chama os espíritos dos bonecos
mamulengos em Glória do Goitá
176
2012
sala do artista popular
S A P museu de folclore edison carneiro
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Presidência da República Apoio
Presidenta: Dilma Vana Rousseff
Prefeitura Municipal
Ministério da Cultura de Glória do Goitá
Ministra: Marta Suplicy
realização
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2 0 1 2
sala do artista popular
Setor de Pesquisa Produção de trilha sonora
S A P museu de folclore edison carneiro
Alexandre Coelho
Programa Sala do Artista Popular
EQUIPE DE PROMOÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO
Marylia Dias, Magnum Moreira e Sandra Pires
COORDENADORA A Sala do Artista Popular, do Centro Nacional de Folclore e O CNFCP, além da realização da pesquisa etnográfica e de
Maria Elisabeth Costa
Cultura Popular/CNFCP, criada em maio de 1983, tem por objetivo documentação fotográfica, coloca à disposição dos interessados
PESQUISA E TEXTO constituir-se como espaço para a difusão da arte popular, trazendo o espaço da exposição e produz convites e catálogos, providenciando,
Raquel Dias Teixeira ao público objetos que, por seu significado simbólico, tecnologia de ainda, divulgação na imprensa e pró-labore aos artistas no caso de
confecção ou matéria-prima empregada, são testemunho do viver e demonstração de técnicas e atendimento ao público.
Fotografias
Francisco Moreira da Costa fazer das camadas populares. Nela, os artistas expõem seus trabalhos, São realizadas entre oito e dez exposições por ano, cabendo
M987 A música é que chama o espírito dos bonecos : mamulengos estipulando livremente o preço e explicando as técnicas envolvidas a cada mostra um período de cerca de um mês de duração.
Edição e revisão de textos em Glória do Goitá / pesquisa e texto de Raquel Dias na confecção. Toda exposição é precedida de pesquisa que situa o A SAP procura também alcançar abrangência nacional, recebendo
Lucila Silva Telles Teixeira.-- Rio de Janeiro : IPHAN, CNFCP, 2012.
Lucia Santalices artesão em seu meio sociocultural, mostrando as relações de sua artistas das várias unidades da Federação. Nesse sentido, ciente do impor-
36 p. : il. -- (Sala do Artista Popular ; n. 176). produção com o grupo no qual se insere. tante papel das entidades culturais estaduais, municipais e particulares,
DIAGRAMAÇÃO
Lígia Melges
ISSN 1414-3755 Os artistas apresentam temáticas diversas, trabalhando maté- o CNFCP busca com elas maior integração, partilhando, em cada
Luana Santos (estagiária) Catálogo etnográfico lançado durante a exposição rias-primas e técnicas distintas. A exposição propicia ao público não mostra, as tarefas necessárias a sua realização.
realizada no período de 4 de outubro a 4 de novembro apenas a oportunidade de adquirir objetos, mas, principalmente, Uma comissão de técnicos, responsável pelo projeto, recebe e
APOIO DE PRODUÇÃO de 2012.
Dirlene Regina Santos da Silva
a de entrar em contato com realidades muitas vezes pouco familiares seleciona as solicitações encaminhadas à Sala do Artista Popular,
1. Teatro de boneco – Pernambuco. 2. Fantoche. ou desconhecidas. por parte dos artesãos ou instituições interessadas em participar
projeto de montagem e Produção da Mostra 3. Artesão - Pernambuco. I. Teixeira, Raquel Dias, org.
Em decorrência dessa divulgação e do contato direto com das mostras.
Luiz Carlos Ferreira II. Série.
o público, criam-se oportunidades de expansão de mercado para
CDU 792.97(813.4) os artistas, participando estes mais efetivamente do processo de
valorização e comercialização de sua produção.
“A música é que chama os espíritos dos bonecos”:
mamulengos em Glória do Goitá
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armazenamento, revelação e ocultação dos bonecos e das jovem ou idoso. Outro elemento primordial é a memorização
situações dramáticas” (RIBEIRO, 2010:53). Atualmente, de um repertório básico que é “reinventado” no próprio ato
a iluminação da torda é elétrica e o som da brincadeira de brincar.
possui amplificação. É interessante notar que uma marca fundamental do
mamulengo no contexto local é a interlocução entre as falas
dos bonecos e da audiência, que “reconhece seus elementos,
dialogando com propostas familiares de encenação” (ALCU-
RE, 2007:19). A busca pelo riso da audiência e a improvisação
são outros elementos básicos.
Os bonecos dão corpo a figuras que denotam histórias e
experiências imbricadas no contexto social da Zona da Mata.
As passagens e figuras possuem uma base que é recorrente
em diferentes mamulengos, mas a criação e a reinvenção são
comuns (AZEVEDO, 2001).
funciona como um interlocutor entre os bonecos e a audi-
ência (o público). Entre outras características, os bonecos possuem nome,
Os toadores, em geral, dominam diferentes gêneros idade, personalidade, relações sociais, às vezes família, pro-
musicais (baião, xote, coco, ciranda) e instrumentos (san- fissão, cantigas próprias, loas que costumam dizer quando se
fona, triângulo, ganzá e bombo), e as loas são utilizadas na apresentam. A dramaturgia, a encenação, a música, tudo
marcação das entradas, saídas e danças dos bonecos. parte do personagem. Um mamulengo pode reunir em torno
À frente da torda posicionam-se os tocadores e a figura Ao conduzir as histórias e passagens das figuras, o ma- de 50, 100 bonecos. Os tipos são vários: os bichos, como
(“personagem”) do Mateus, um brincador com o rosto mulengueiro deve ser capaz de impostar seu tom de voz de a cobra e o boi; os seres fantásticos, como a morte e o diabo;
“pintado” com farinha branca, que responde aos bonecos e diferentes maneiras, para fazer as vezes de mulher, homem, as autoridades, como os políticos, o padre, o fazendeiro,
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o inspetor, os militares; as mulheres casadas, viúvas, moças da torda há também um contramestre e/ou ajudante, que literalmente levava coices do mestre que intentava expulsar para os moradores do sítio em que vivia e aprendeu a confec-
solteiras, moças valentes; os rapazes e os velhos namoradores, entrega e também manipula alguns bonecos. o “intruso” (RIBEIRO, 2010:89). O grande conhecimento cionar bonecos. Aos quinze, teve seu primeiro mamulengo
valentões, covardes, espertos, malandros, cornos e bêbados; de Zé de Vina sobre o brinquedo faz dele uma figura muito completo, que possuía mais de setenta bonecos (ABREU;
os profissionais, como o professor, o fiscal e o médico; violei- reconhecida na região. Como ele não confecciona os ma- ALCURE; PACHECO, 1998).
ros e cantadores; caboclinhos e índios; xangozeiros, espíritas mulengos, compra-os de diversos bonequeiros da região. Zé Lopes diz ter aprendido quase tudo o que sabe de
e pretos velhos, e muitos outros (ALCURE, 2007:29). É interessante notar que, como nos relata Adriana Schneider mamulengo com Zé de Vina. Porém, diferentemente de seu
Alcure (2007), Zé de Vina exerceu dezenas de profissões mestre, tem na brincadeira seu principal meio de sustento.
O dono do brinquedo é quem possui e mantém sua diferentes até sua aposentadoria, pois nunca conseguiu so- Talvez seja pelo fato de que junto a sua esposa e filhos, além
estrutura, a torda, os bonecos, além de ser o responsável breviver exclusivamente do da apresentação do Mamulengo Teatro do Riso, que possui
pelos contratos, organização, transporte, alimentação e pa- mamulengo. Atualmente, desde 1982, também confecciona e vende os bonecos.
gamento dos demais mamulengueiros. Em geral, o dono é ainda possui e brinca com
também o mestre do mamulengo, quem manipula o boneco seu Mamulengo Riso do
e coloca as figuras. Povo em Lagoa de Itaen-
Desse modo, o mestre é quem domina uma série de téc- ga, cidade em que vive,
nicas de manipulação, de entoação de diferentes vozes, das vizinha à Glória de Goita.
passagens e loas de cada figura; enfim, a habilidade e capaci- Nascido na década
dade de improvisação e comicidade faz com que o processo O Mestre Zé de Vina nasceu na década de 40 e desde de 50, Zé Lopes também
de aprendizado e reconhecimento de um mestre seja longo. sua infância “perseguia” o mamulengo e acabava ajudando conviveu com o mamu-
Não é por acaso que “um mamulengo torna-se conhecido os folgazões em atividades como a montagem da empanada, lengo desde sua infância.
através de seu mestre mamulengueiro. É por conta de seu o cuidado com o boneco, e assim foi constituindo seu saber Ao assistir a brincadeiras
talento que o público interessa-se em assistir a brincadeira e na vivência com os mamulengueiros antigos (Alcure, realizadas nas redondezas
Zé Lopes
é a sua habilidade que será avaliada, louvada ou condenada” 2007). Conta que, nessa época, o aprendiz era chamado de de Glória do Goitá, passou
(ALCURE, 2007:169). Além do mestre, geralmente dentro coiceiro, já que ao espiar a brincadeira dentro da empanada, a improvisar apresentações
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Zé Lopes participou conjunto de bonecos que representam tradições regionais, Devido a alguns desentendimentos, atualmente Zé Lo- mesma pessoa pode ser as duas coisas. O primeiro é um
da criação do Museu do como uma casa de farinha ou uma brincadeira de cavalo- pes não faz mais parte da associação e do Museu, mas sua artesão que domina a arte de esculpir e finalizar os bonecos;
Ma mu lengo de Gló- marinho. O lugar é visitado por turistas e também pela esposa, uma filha, um filho e sua nora sim. Os 14 associados o segundo possui as habilidades e domínios necessários para
ria do Goitá em 2002. população local. que, em geral, se identificam como Nova Geração, se dividem brincar com eles.
O projeto Mamulen- para recepcionar os visitantes e limpar o espaço. Relatam ter
go, o Boneco Brasileiro, aprendido a arte de confeccionar mamulengo com Mestre Zé [...] mamulengueiro é aquele que trabalha manipulando
apoiado pelo Programa Lopes, em geral por meio das oficinas o boneco, nem todo mamulengueiro faz
de Artesanato Solidário ao longo de dois anos. Já a iniciação o boneco, só que ele dá vida ao boneco.
em Glória do Goitá e do aprendizado sobre “manipulação E bonequeiro é aquele que faz, por mim
Olinda, que teve como e dar vida” aos bonecos foi feita pelo mesmo, eu acho que vou morrer bone-
coordenador o pesquisador e bonequeiro Fernando Augus- Mestre Zé de Vina, também por meio queiro! (José Maurício da Silva Gomes)
to Santos, visava à revitalização do mamulengo e realizava de oficinas. Os artesãos gravaram em
oficinas em que os mestres de mamulengo passavam seus áudio os ensinamentos do mestre, com Os bonequeiros da associação pro-
conhecimentos aos jovens. O Museu foi instalado num as histórias, loas e toadas das passagens duzem bonecos de fio, de luva e de vara
grande e privilegiado espaço, o antigo mercado municipal da do mamulengo. e bonecos de escultura inteira.
cidade. No mesmo ano, foi fundada a Associação Cultural A maioria dos associados con- Os bonecos de fio possuem fios
de Mamulengos e Artesãos de Glória do Goitá. fecciona bonecos, mas apenas alguns ligados a uma pequena construção de
No museu, dispostos em mesas, bases diversas ou sabem manipulá-los e brincam com madeira que permitem sua manipula-
pendurados, ficam em exposição uma série mamulengos. o Mamulengo Nova Geração. ção. Tais bonecos, em geral, são feitos
A maioria são bonecos à venda confeccionados pelos atuais Pode-se dizer que bonequeiro e mais para a venda. Na associação, há
associados. Contudo, há também alguns bonecos mais anti- mamulengueiro são duas categorias também alguns outros bonecos, como o
gos, feitos por outros mamulengueiros, algumas caricaturas diferentes, que não necessariamente se “caboclo de lança”, que são de escultura
de bonecos bem grandes, e também algumas estruturas com encontram dissociadas, ou seja, uma inteira como um objeto de “decoração”.
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Os bonecos feitos também para venda, mas que efeti- pernas (BORBA FILHO, 1987). “Os bonecos de escultura
vamente brincam o mamulengo, em geral são os de luva, inteira são ou totalmente rígidos ou têm uma articulação
vara e de escultura inteira. Os bonecos de luva possuem controlada apenas indiretamente, no movimento geral da
a cabeça de mulungu montada sobre um camisolão de pano. escultura. Os que contam com essa articulação geralmente
Seus movimentos são feitos pelas mãos do mamulengueiro, a tem em um ou nos dois braços” (KAISE, 2010:64). Esses
que introduz os dedos indicador na cabeça e polegar e médio bonecos muitas vezes possuem outros elementos, como
nos braços. armas e enxadas.
Os bonecos de vara são movimentados por meio de É interessante notar que os bonecos do mamulengo
compridas varetas, que sustentam sua verticalidade e lhe podem possuir outras técnicas de manipulação, como por
proporcionam outros movimentos, como a articulação das exemplo a articulação da boca por meio do controle de um
Burrinha. Maurício Patatá. Edjane Caboclo de Lança. Edjane
Diabo. Jailson Xibana. Maurício Quitéria. Jacilene Pássaro e Véia. Bila Bila Simão. Zé Lopes
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fio que interliga a mesma aos olhos, figuras, que poderão até ser com os nomes de meus filhos. Então, é bonita, mas aquilo não faz gracejo, aquilo é somente pra
ou outros tipos de articulação de reconhecidas e incorporadas tem bonecos por aí no mundo com os encher o movimento. Porque ali ela é a mulher de Mané
olhos, quadris, braços, pernas etc. em outros brinquedos. nomes das minhas duas filhas”, conta Paracu, então tem que sair uma boneca bonita daquela
Um importante ponto a ser A narrativa do bonequei- Jacilene Felix Lima. (Zé de Vina, apud AZEVEDO, 2011:77).
ressaltado é a diferença existente ro Almir Barbosa dos Santos Outro diferencial pode haver em
entre os bonecos criados para atuar nos diz um pouco mais sobre alguns tipos de materiais usados nos
no mamulengo e aqueles feitos para tais especificidades dos ma- adornos e detalhes dos bonecos. Por
a venda. mulengos: “Quando a gente exemplo, nos bonecos para venda, só se
Os mamulengos para brincar faz uma peça, a gente faz do utilizam cabelos e barbas de materiais
devem ser feios, pois sua fisionomia começo ao fim; coloca alma, sintéticos. Já em figuras de brinquedo
caricata ‒ como os grandes narizes nome, espírito, carinho, de- Almir Fiscal. Genilda com frequência usam-se pelos de crina
ou os olhos esbugalhados ‒ é um dicação, amor, tudo nela. de cavalo, de bode ou mesmo cabelo
dos elementos que ajuda a provo- A gente sente o poder da linguagem do boneco, se a gente humano. É comum também tais figuras possuírem uma
car o riso da audiência, de quem não passar isso para ele, não tem alma no espetáculo”. maior quantidade de acessórios, como chapéus e óculos, e
assiste à brincadeira. Além disso, Já os bonecos destinados à venda são feitos, proposital- carregarem algum outro elemento ou objeto, como armas
tais bonecos devem ser fiéis às ca- mente, mais bonitos e delicados e, mesmo quando carregam e cassetetes.
racterísticas físicas e ao vestuário o nome de um personagem tradicional do mamulengo,
da figura e, às vezes, demandam não têm a mesma obrigação de corresponder fisicamente O boneco pra mamulengo bonito também não presta.
outros mecanismos de articulação a determinado imaginário. Mesmo quando os bonecos são Boneco pra mamulengo só presta é boneco feio, porque
para a apresentação. É importante feitos para venda, o elo estabelecido entre o artesão e suas quando o boneco feio chega em cima, já tá fazendo
notar que, além das figuras ditas criações é grande. “Às vezes, a gente faz um boneco e fica o povo rir antes que ele fale. Quanto mais ele é feio daquele
tradicionais, é sempre possível que tão apegada a ele que não temos coragem de colocar ele para jeito, mais a gente tem que procurar o ritmo dele. Ele é
Seu Angu. Jaison um mamulengueiro crie outras venda. Só pra você ter uma ideia, tem boneco que já batizei mal aguniado, é todo cheio de frescura. Aquela Quitéria Doente e Doutor. Bila
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Na entrevista concedida à pesquisadora Débora Aze- deve corresponder às características físicas e temperamentais A maioria dos artesãos da associação relata ter conhecido
vedo, o mamulengueiro Zé de Vina falava das diferenças de tais figuras. Diante de toda essa complexidade, é possível o mamulengo desde criança, seja nas brincadeiras de sítio,
entre o que ele chama de “fazer boneco” e “fazer figura de perceber que os bonecos em sua materialidade carregam no tempo das moradas dentro das terras dos engenhos, seja
brinquedo”. Mestre Zé de Vina também foi o interlocutor diversas perspectivas sociais e simbólicas. nas apresentações nas ruas e praças públicas.
da pesquisa realizada uma década antes pela antropóloga Todos iniciaram o apren-
Adriana Schneider Alcure, que destacou outra interessante dizado de confecciona r os
divisão entre as “figuras de brinquedo”: bonecos direta ou indiretamen-
te pelas oficinas ministradas por
Zé de Vina, por exemplo, divide seus bonecos em duas clas- Zé Lopes. Os que não estavam
sificações: os bonecos “principais” e os bonecos de “samba”. presentes aprenderam posterior-
Os bonecos “principais” fazem uma estreita relação entre mente a partir de algum parente
a forma e a fisionomia do boneco em si, e o personagem que havia participado.
que o define. Estes bonecos não poderão representar outros Genilda Félix de Lira par-
personagens, porque são de fato um determinado persona- ticipou das of icinas e logo Genilda Joelma
gem. […] Os bonecos de “samba”, como notei no decorrer começou a ensinar sua irmã,
das apresentações que assisti, podem variar, assumindo, Joelma Félix de Lira, que por a divisão do nariz, daí eu cortava e fazia o nariz, depois
até mesmo, um ou mais personagens durante o brinquedo. sua vez, ao falar desse processo os olhos, riscava, desenhava, mas agora nem preciso. Já faço
de repasse disse: sozinha, sem riscar, sem nada.
A autora chama ainda a atenção para o fato dos bo-
necos de samba de maneira nenhuma serem considerados A minha irmã pegava a madeira Depois que Joelma aprendeu a fazer, repassou para seu
secundários na brincadeira. Além disso, a seleção de quais e dizia “Jô, arredonda a cabeça”. pai, Genaro Félix de Lira, e sua outra irmã, Jacilene, que
figuras poderão ser revezadas pelo mesmo boneco não é Ai, eu arredondava a cabeça, hoje além de fazer os bonecos, também brinca de mateus e
aleatória, e sim feita de modo tal que determinado boneco Pantel. Lucinéia Goiaba. Jacilene Fulô do Mundo. Bila riscava um quadradinho para toca ganzá à frente da torda.
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Depois, eu fui pro mamulengo mais ele, ficar andando nar. Porque a gente ensina a botar a mão. A manipular, Edjane relata que, quando
com o mamulengo, comecei a brincar com ele. É muito aprende. Ensinar a dançar com os bonecos, aprende. Mas via Quitéria dançando “de ves-
difícil você aprender as histórias do mamulengo, não é para aqueles gracejo, aquelas coisa, aquilo o camarada puxa tido, toda formosa”, achava que
qualquer um não. Eu sempre ficava na torda, lá, escutando de si próprio. a boneca era gente de verdade.
os bonecos, vendo as loas, os personagens, tudinho! “Tinha um vestido de cetim,
Essa fala do Mestre Zé de Vina confirma a opinião de brilhoso, umas flores na cabeça,
Os depoimentos de Bila ‒ “eu aprendi vendo”, “ficava Bila de que o mamulengo “não é para qualquer um, não”. cabelo longo e liso, e ela girava
na torda, lá, escutando os bonecos, vendo as loas” ‒ ou de Ou seja, o processo de aprendizagem do brincar, do tornar- pra lá e pra cá e dançava!”
Genaro – “eu comecei a fazer vendo as meninas fazendo, aí se um mamulengueiro, além de não linear, exige diversas Edjane viu seu irmão aos dez
cheguei, peguei um pedaço de pau” ‒ caracterizam a princi- habilidades de quem aprende. anos “seguir” Mestre Zé Lopes,
pal forma de aprendizagem, seja dos mamulengueiros mais A irmã de Bila e atual presidente da associação, Edjane mas ela só se interessou aos
antigos, seja os da nova geração. Maria Ferreira de Lima, conta que, quando pequena, via dezessete, a partir das oficinas.
Débora Azevedo (2011) relata que a construção do o mamulengo na festa da padroeira da cidade, Nossa Senhora Hoje, pensa que esse fascínio
Jacilene Genaro aprendizado tanto do bonequeiro quanto do mamulengueiro da Glória: que Quitéria provocava nela
sempre foi especialmente amparada na relação cotidiana por quando criança possa ter feito
José Edvan Ferreira de Lima, o Bila, é o único que já era redes de socialização familiares ou de vizinhança, por meio Mamulengo, quando eu era pequeninha, eu não gostava com que seu traço na madeira
bonequeiro e mamulengueiro antes do projeto do Museu. da observação e da prática. Atualmente, as oficinas amplia- não, porque eu tinha uma raiva quando a boneca Quitéria do rosto do mamulengo seja
ram as oportunidades deste repasse do saber. Em entrevista demorava para sair, porque eu só queria ver ela, dançando mais feminino. “Eu acho que
Eu comecei eu tinha nove anos, andava com mestre Zé à pesquisadora, Zé de Vina afirma: e virando. Eu não entendia que Quitéria e Simão é para era isso, a fixação que eu tinha
Lopes. Eu aprendi assim, vendo ele fazer boneco. Eu sou encerrar o mamulengo. Eles demoravam, demoravam, naquela boneca no mamulengo
muito curioso e eu via ele fazendo na frente da casa dele. Ninguém ensina ninguém a brincar de mamulengo. demoravam, e mainha dizia vamuzimbora! Aí a gente saía, que dançava. Hoje eu só viso
Fui lá, peguei os moldes de madeira e comecei a fazer os O camarada aprende vendo. Se ele vir e for curioso, vai e eu saía arretada porque não via a Quitéria! a Quitéria, as bonequinhas
meus. Aí ele pegou e me chamou para fazer na casa dele. marcando aquilo. Porque não tem jeito do cabra ensi- saem sempre feito ela.” Quitéria. Bila
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A maioria dos bonequeiros trabalha a maior parte do sentações da brincadeira do
tempo em suas casas, em meio a outras atividades domésti- mamulengo que também são
cas. No período que passam na associação, aproveitam para periódicas. Além da renda ex-
fazer determinados acabamentos, como a pintura e a costura. tra, é comum se escutar sobre
A maior parte dos artesãos tem outra profissão como fonte os benefícios “terapêuticos”
de renda, mesmo por que a renda com a venda dos bonecos de se trabalhar esculpindo
não é regular, tendo maior saída durante feiras (como a Fe- o mulungu, como fala Ge-
nearte), festivais (como o Sesi Bonecos do Mundo), ou datas nilda: “Eu gosto demais! É
específicas, como o carnaval, acompanhando então as apre- uma terapia. [...] Eu pego um
boneco e começo a esculpir e
esqueço tudo. Quando você tá
fazendo o boneco aqui, você
não pensa em nada, só nele,
esquece os problemas da vida!”
Marines Tereza do Nascimento
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Essa peça de luva que eu faço tem três partes, a cabeça,
Maurício
as duas mãos, o resto é a roupa. [...] Aí eu lixo, tem a parte
de emassar, aí depois a parte de pintar. Quando eu termino
de pintar vem o processo que é a costura, aí depois que eu
corto, vem a costura, aí vou terminar a peça.
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etapa da montagem da peça, as roupas
são vestidas e/ou coladas nos bonecos.
O texto de Adriana Schneider Al-
cure sobre a maneira como se procede
o movimento entre o imaginar e o fazer
artesanal de Mestre Zé Lopes, retrata
muito bem elementos e situações que
também se passam no cotidiano de
outros bonequeiros.
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a galeria de tipos que compõe o universo do mamulengo. Passagem de Bambu e a Morte ‒ Mas eu tô vendendo. Eu vou contar uma historia pra
É claro, a criação de personagens também ocorre. Zé Lopes você, eu tive um sonho tão gostoso.
gosta de experimentar e criar bonecos a partir de ideias que Como costuma acontecer nas passagens da brincadeira, ‒ Mas que sonho foi esse, rapaz?
vai amadurecendo, mas também corta aleatoriamente, os diálogos, loas e toadas das figuras se intercalam. Bambu é ‒ Eu sonhei que eu ia me casar, ela vinha toda de bran-
dando feição a um boneco até encontrar uma forma que uma figura de pele muito clara, pálida, cuja fisionomia frágil co, ela é linda. Mateus, o que eu faço pra ela aparecer, e
lhe convenha (Alcure, 2007:231). contrasta com sua apresentação como “o mais corado de sua tal sonho virar realidade?
casa” e “vendedor de sangue”. ‒ Canta que ela aparece, que o sonho realiza!
“Isso vem da cabeça da gente. Quando você começa
a fazer um boneco, você já olha pro taco da madeira e você Sua entrada em cena acontece, na maioria das vezes depois Aí ele começa a cantar:
já sabe o que vai fazer. Você imaginou, criou e jogou na de entoado um canto que relata um sonho que teve com eu vi a morte pescando, com a foice e um jererê,
madeira”, diz Edjane. a Morte. Bambu aparece dançando no primeiro refrão em oh, morte, tu não me mata, vai matar as mulher,
coro da música que foi entoada. A Morte aparece em cena olelê ô, oh, bambu, olha a morte atrás de tu,
de fato e é um boneco de luva esculpido com uma grande olelê ô, oh, bambu, olha a morte atrás de tu.
cabeça e grandes dentes. Ela carrega uma foice em uma A morte quer me matar, a morte quer me matar,
das mãos e passa o tempo todo entrando e saindo da cena, com todo cuidado e carinho,
investindo contra Bambu com sua foice sem ter sucesso oh, morte, sossega o bote,
(Ribeiro, 2010:312). morte, deixa eu criar meus filhinhos,
olelê ô, oh, bambu, olha a morte atrás de tu...
Bila explica como se dá o desenrolar dessa passagem, Aí tem várias cantigas que o mamulengo vai fazendo
quando Bambu tenta vender seu sangue para Mateus: com essas personagens, até na hora que a morte vem,
mata ele e o Diabo leva.
‒ Rapaz, mas tu tá tão amarelo, quem vai querer
teu sangue? Bambu. Jailson | Morte. Bila
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É importante destacar o papel da música, pois ela es- que o boneco dorme e só acorda quando a gente chama ele, ser brabo, ele quer dar lapada, cacetada Vamos dizer assim, é a cara do nordestino [Caroquinha],
trutura a passagem e apresenta sua sequência narrativa, sua a música é que chama os espíritos dos bonecos. Eu acho que em quem juntar na frente dele, [...] é é a cara das pessoa que trabalha na roça. A mulher dele
letra e ritmo, e intercalada com as loas, oferece uma sensação cada boneco, cada personagem tem um espírito” (Gilberto autoridade. Ele é inspetor e chega assim: [Catirina] é lavadeira de pano, tem a trouxinha de pano
de aproximação de Bambu com a Morte que é gradativa Souza Lopes da Silva, o Bel, filho de Zé Lopes). Mateus, eu sou o inspetor Peinha, o que na cabecinha dela, ela tem 16 meninos, a maior parte numa
(RIBEIRO, 2010), numa combinação de traços dramáti- aconteceu aí, quem matou quem, tira lapada só que ele fez. Ela vai pra uma dança porque, na-
cos e cômicos. A audiência Algumas outras a calça e siga na minha frente. Que é quele tempo, a festa que se tinha no sítio era o maracatu, o
participa ativamente na mo- figuras do Mamulengos isso, rapaz? É pra não correr, não quero mamulengo, pastoril, essas brincadeiras do sítio. Então ele
vimentação da Morte atrás Nova Geração ver ninguém na minha frente correr nu. disse que ela é um amor,
de Bambu, nas incertezas Aí vai, quem matou quem? Não, rapaz, que ela nunca vai pra uma
e expectativas acerca do Narrativas de Bila Goiaba matou um aqui. Mas porque tu dança, que ele ama ela.
destino da f igura. O al- Goiaba. Bila não ficaste em cima do homem, rapaz, Mas ela é diferente, é es-
voroço, a tensão, o medo, Porque no mamulengo tem deixaste o homem correr? Aí ele diz assim: petaculosa, gosta de farra,
o alívio, as gargalhadas, várias coisas, tem a ma- Sargento, vamos fazer uma ronda dentro gosta de namorar, então ela
tudo isso é despertado neste cumba, tem a procissão de da torda, peguei ele aqui, ele mijou e tá é muito diferente do que ele
episódio da brincadeira. Nossa Senhora, tem o va- fedendo danado aqui, aí ele pega outra fala pros pessoal. Então você
Imaginar essa passa- lente, o brigão, o tocador boneca, fica metendo cacete no outro espera, porque ele fala tão
gem permite visualizar a de viola, então tem tudo, boneco, e Mateus fala: não, rapaz, não bem dela, e é outra coisa que
alma que os bonequeiros tem policial, tem sargento, é essa não, eu vi ele ali, tava no muro aparece. [...] Aí vai sempre
declaram colocar dentro de porque antigamente não era do cemitério, não sei o que está fazendo ficando nessa brincadeira...
um boneco, exatamente no policial, era o exército que ali, então é a historia rolando dele, é um
instante em que ela é desper- tomava conta das coisas, por personagem muito bonito, e no final de Tem o Cego e a Guia, que
tada pela brincadeira. “Tem isso que existe o sargento e o tudo ele apanha de Goiaba . é um personagem muito
uma tradição [...] que diz João Carcundo. Jailson inspetor Peinha. Ele quer Inspetor Peinha e Sargento. Bila Caroquinha e Catirina. Bila engraçado. [...] A hora que O Cego e a Guia. Bila
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no mamulengo dava meia-noite em
Burrinha. Maurício
Notas Bibliografia
ponto, eles colocavam esse persona-
1 O Museu está situado no sítio da Malícia, localidade que pertence ABREU, Maria Clara Cavalcanti de; PACHECO, Gustavo; ALCURE,
gem: da meia-noite pro dia, já vem a Zé de Bibi, um dos vencedores do prêmio Rodrigo Melo Franco Adriana Schneider. Teatro do riso: mamulengos de Mestre Zé Lopes.
o Cego e a Guia, da meia-noite pro de Andrade, do Ministério da Cultura, em 2009. Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, Centro Nacional
dia, já vem o Cego e a Guia [toada]. de Folclore e Cultura Popular, 1998. (Sala do Artista Popular, 74).
2 Realizado pela Associação Cultural de Amigos do Museu
O ceguinho tá vendo o moço, veio de Folclore Edison Carneiro (Acamufec), por meio de convênio ALCURE, Adriana Schneider. Mamulengos dos mestres Zé Lopes e
firmado com o Ministério da Cultura, o Promoart contou Zé de Vina: etnografia e estudo dos personagens. 2001. 240 f.
tirar foto da gente, que coisa boa, o
com a gestão conceitual e metodológica do Centro Nacional de Dissertação (Mestrado em Teatro) - Centro de Letras e Artes, UNIRIO,
ceguinho pede uma esmolinha pra Folclore e Cultura Popular (CNFCP). Rio de Janeiro, 2001.
ele. O cego diz assim: moço, me dê _____. A Zona da Mata é rica de cana e brincadeira: uma etnografia
uma esmolinha pelo amor de Deus, do mamulengo. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia) - Programa
se quiser me dar dinheiro, se não de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, UFRJ, Rio de Janeiro, 2007.
quiser me dar, vai pro inferno, que se
AZEVEDO, Débora Silva de. Nas redes dos donos da brincadeira:
dane mesmo. Então fica insultando
um estudo do mamulengo da Zona da Mata pernambucana. 2011.
Praxedes, Xoxa e bebê. Bila as pessoas. Aí a Guia: não é assim Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências
que pede esmola não. ‒ É como que Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2011.
pede então, guia, me explica aí. ‒ Chega perto dele com
calma que ele ajuda você. BORBA FILHO, Hermilo. Fisionomia e espírito do mamulengo. 2. ed.
Rio de Janeiro: Inacen, 1987.
É na hora que ele chega perto da pessoa e pede de novo: RIBEIRO, K. H. T. A dialogicidade do Mamulengo Riso do Povo:
interações construtiva da performance. 2010. Dissertação (Mestrado
moço, me dê uma esmolinha pelo amor de Deus, se não em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Artes, Instituto de Artes,
quiser me dar, tá bom também. Aí o cara pega e dá esmola Universidade de Brasília, Brasília, 2010.
pra ele, porque pediu direito.
Viúva e Professor Tiridá. Mestre Tonho de Pombos
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