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Universidade de São Paulo

Escola de Comunicações e Artes


Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo

ESTRUTURA DA JORNADA DO HERÓI NO RPG


ELETRÔNICO: UMA ANÁLISE DO CASO UNDERTALE

Larissa de Lima Francez

São Paulo
2018

I
Larissa de Lima Francez

ESTRUTURA DA JORNADA DO HERÓI NO RPG


ELETRÔNICO: UMA ANÁLISE DO CASO UNDERTALE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


como requisito para obtenção do grau de
Bacharel em Comunicação Social - Habilitação
em Publicidade e Propaganda da Escola de
Comunicações e Artes da USP.

Orientação: Prof. Dr. João Anzanello Carrascoza

São Paulo
2018

II
Larissa de Lima Francez

Estrutura da Jornada do Herói no RPG eletrônico: uma análise do caso Undertale

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do grau de


Bacharel em Comunicação Social da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Orientador: Prof. Dr. João Anzanello Carrascoza

_______________________________________________________
Prof. Dr. João Anzanello Carrascoza
Orientador

_______________________________________________________

_______________________________________________________

Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo (ECA-USP)

São Paulo, ______ de __________________ de 2018.

III
Agradecimentos

Ao professor Dr. João Carrascoza pela orientação, conselhos e pelo incentivo durante
o processo mesmo quando dar um passo atrás foi minha decisão mais acertada.
Aos meus familiares e amigos que acompanharam não só no decorrer da realização
deste trabalho como principalmente em outros importantes momentos. Eles sabem em quais.

IV
"There is only one solution to this.
Prove yourself.
Prove to me that you are strong
enough to survive!" [Toriel]

V
RESUMO

Lançado em 2015 pelo desenvolvedor independente Toby Fox, o jogo eletrônico


Undertale ganhou reconhecimento no meio gamer indie. Como expoente do gênero Role-
Playing-Game, o jogo aprofunda as relações do personagem-jogador com a história e seus
personagens num universo ficcional e definido. No entanto, o fator que contribuiu para sua
expansão e sucesso foi exatamente a multidimensão de sua trama narrativa, construída a
partir das ações do jogador num mundo amplo de possibilidades. Através de um estudo de
caso, este trabalho pretende analisar as relações entre a narrativa ficcional de Undertale com o
conceito da jornada cíclica ou o "Monomito", segundo o antropólogo Joseph Campbell e a
obra de Christopher Vogler. O estudo propõe uma comparação entre o conceito da Jornada do
Herói aplicada às narrativas de RPG eletrônico tradicionais e a maneira como se verifica e se
constrói em Undertale através das interações do jogador. Em conjunto com referências
teóricas, este trabalho visa contribuir e justificar a construção da narrativa interativa de
Undertale a partir do conceito do Monomito.

Palavras-chave: RPG, Jogo eletrônico, Estrutura narrativa, monomito, Undertale

VI
ABSTRACT

Released in 2015 by the independent game developer Toby Fox, the electronic
videogame Undertale has gained recognition among the indie game media. As an example of
the Role-Playing-Game genre, the game deepens the relations between the character-player
with the story and its characters on a fictional and defined universe. However, the factor that
contributed to its expansion and success was exactly the multidimension of its narrative plot,
built on the player’s actions on a wide world of possibilities. Through a case study method,
this work intends to analyze the relations between Undertale’s fictional narrative with the
concept of cyclical journey or the “Monomyth”, according to the anthropologist Joseph
Campbell and the works of Christopher Vogler. This study proposes a comparison between
the concept of the Hero’s Journey applied to traditional electronic RPG narratives and the
way it is verified and built in Undertale through the player’s interactions. In conjunction with
theoretical references, this work aims to contribute and justify the construction of Undertale’s
interactive narrative based on the concept of the Monomyth.

Keywords: RPG, Electronic game, Narrative structure, monomyth, Undertale

VII
SUMÁRIO

1. Introdução …....….…………………………………………………………………….9
2. O Conceito do Monomito ............................................................................................11
2.1.Estrutura do Monomito de Campbell ..........................................................................11
2.1.1. Partida ..............................................................................................................12
2.1.2. Iniciação ..........................................................................................................13
2.1.3. Retorno ............................................................................................................15
2.2.Jornada do Escritor e as releituras do Monomito ........................................................17
2.2.1. Primeiro Ato.....................................................................................................19
2.2.2. Segundo Ato ....................................................................................................20
2.2.3. Terceiro Ato ....................................................................................................21
2.3.Apresentação dos Arquétipos na Jornada do Herói .....................................................22
3. Jornada do Herói no jogo eletrônico de aventura ........................................................26
3.1.Conceito de Jogo e Definição do Círculo Mágico ......................................................26
3.2.Construção Narrativa no jogo de aventura: o caso The Legend of Zelda ...................27
4. A Construção Narrativa de Undertale .........................................................................31
4.1.Apresentação ...............................................................................................................31
4.2.Elementos de jogabilidade ...........................................................................................32
4.2.1. Mecânicas de Batalha ......................................................................................32
4.2.2. Principais regiões do mundo explorável .........................................................35
4.3.Principais personagens ................................................................................................35
4.4.Interação e agência do jogador na determinação de finais alternativos ......................39
5. Estudo de Caso: A Narrativa de Undertale sob o modelo da Jornada do Herói ..........43
5.1.Rota Pacifista ...............................................................................................................43
5.2.Rota Genocida .............................................................................................................48
6. Considerações Finais ...................................................................................................51
7. REFERÊNCIAS ..........................................................................................................53
8. ÍNDICE DE IMAGENS ..............................................................................................56

VIII
1. Introdução

Em Setembro de 2015, o lançamento do jogo eletrônico Undertale, obra do


desenvolvedor independente Toby Fox, movimentou o nicho de videogames para
computador. Inicialmente anunciado para as plataformas Windows e Mac OS X, o game
recebeu um sem-número de recepções positivas e colecionou prêmios e avaliações estreladas
em sites especializados que alçaram o mesmo a um status de novo clássico1.
Muito por conta deste sucesso inesperado e apesar de seu recente lançamento, alguns
fatores colaboraram para que o trabalho de Fox se tornasse objeto de inúmeras análises
teóricas e jornalísticas, acadêmicas ou não. Seu apelo nostálgico com referências a jogos da
era 8-bit e mecânicas inovadoras de jogabilidade contribuíram fortemente para esta
profundidade analítica, mas o ponto mais significativo talvez tenha sido seu potencial
narrativo-interativo.
A possibilidade de provocar diferentes cenários finais como consequência de suas
ações durante o jogo não é um fenômeno novo aos videogames. No entanto, Undertale se
utiliza deste potencial para construir sua narrativa e transformar cada experiência de jogo em
uma trama única, convertendo o jogador não apenas em espectador passivo, mas como ator
principal cujos atos determinarão a conclusão daquela jornada.
Dentre as dezenas de possibilidades de finais para Undertale, destacam-se três
categorias prevalecentes, a ser tratadas por Rota Neutra, Rota Pacifista e Rota Genocida, cada
qual definida pelas ações do jogador. Uma vez que o game se define como “O Jogo RPG em
que você não tem que destruir ninguém”2, na contramão dos jogos onde o principal objetivo
costuma ser derrotar o máximo possível de inimigos, este fator de possibilidades é
exatamente o que abre o leque de cenários finais.
Para este trabalho, serão consideradas as duas rotas antagônicas, Pacifista e Genocida:
enquanto a última consiste em destruir toda e qualquer criatura do jogo, a primeira é
alcançada ao não ferir um personagem sequer, além de aprofundar relacionamentos com
certas figuras de alguma importância.

1
O portal Metacritic deu ao jogo a pontuação de 92/100, sendo que a nota mais alta concedida por
eles a um jogo é 96/100. Ranking disponível em <http://www.metacritic.com/browse/games/release-
date/available/pc/metascore>
2
UNDERTALE! The RPG game where you don’t have to destroy anyone”; como definido no site
oficial do jogo, disponível em <https://undertale.com/>

9
Tendo em vista estes dois focos principais de análise, será então possível prosseguir
para o aprofundamento da visão narrativa do jogo à luz do conceito narratológico do
Monomito. Proposta por Joseph Campbell (1989), a estrutura cíclica conhecida por Jornada
do Herói se mostra um ponto comum aos mitos e jornadas mitológicas, com um núcleo
composto pela partida, iniciação e retorno.
Tendo em base este conceito e os escritos de Christopher Vogler (2006) a respeito da
estrutura mítica, este trabalho busca explorar sob tal estrutura, através de um estudo de caso,
as jornadas paralelas das rotas Genocida e Pacifista em Undertale e em que medida os
conceitos do Monomito se aplicam aos heróis destas jornadas, em diálogo com as variáveis
particulares ao RPG que possibilitam esta construção interativa-narrativa.

10
2. O Conceito do Monomito

Primeiramente é necessário expor o conceito central à Jornada do Herói e seu


surgimento como referencial teórico. As primeiras definições do conceito narratológico do
Monomito foram desenvolvidas pelo antropólogo Joseph Campbell em 19493, que em sua
obra “O Herói de Mil Faces” identificou elementos comuns às narrativas mitológicas e
religiosas, os quais aproximavam tais narrativas dos ritos de passagem de diversas culturas. A
partir desta jornada cíclica através da qual o indivíduo alcança a maturidade espiritual - e, de
certo modo, também a maturidade social -, Campbell foi capaz de apontar o ciclo
narratológico da trajetória do Herói:

O herói é o homem da submissão autoconquistada. Mas submissão


a quê? Eis precisamente o enigma que hoje temos de colocar diante de nós
mesmos. Eis o enigma cuja solução, em toda parte, constitui a virtude
primária e a façanha histórica do herói. [...] Portanto, a paz, assim como a
guerra, a mudança e a permanência, são armadilhas. Quando chega o dia em
que seremos vencidos pela morte, ela vem; nada podemos fazer, exceto
aceitar a crucifixão — e a conseqüente ressurreição —, ou o completo
desmembramento — e o conseqüente renascimento. (CAMPBELL, 1989,
p.29)

Assim sendo, o Herói mítico do monomito atravessa os limiares de sua jornada para
que, ao fim desta, possa renascer como um novo indivíduo. Estes limiares, além dos estágios
que o protagonista deve atravessar para alcançar esta plenitude, foram divididos por
Campbell em três etapas, estas também remanescentes da questão dos ritos de passagem. Tais
estágios e as peculiaridades do conceito do monomito na visão primordial do autor serão
tratadas a seguir, sendo eles a Partida, a Iniciação e o Retorno.

2.1 Estrutura do Monomito de Campbell

Dentro deste caminho de transformação do Herói mítico, cada conto ou mito pode
experimentar as três etapas da Jornada de forma livre. A estrutura das fases da aventura não é
necessariamente linear, assim como a duração de cada uma não segue um padrão definido:
sua importância está na maneira como afeta o desenvolvimento psicológico do protagonista
em direção a seu destino de renascimento. Tendo isto em vista, pode-se expor os estágios da
Jornada da seguinte forma:

3
Data da primeira publicação da obra.

11
2.1.1. Partida

O Chamado da Aventura: A partir de distintas circunstâncias, o Herói recebe a


anunciação da aventura, que o coloca em conflito com forças incompreendidas. Estas
circunstâncias podem ser um erro, um acaso, ou mera ação do destino. De qualquer forma, o
protagonista é confrontado com um mundo desconhecido, situação que pode ser física ou
representativa de um estado psicológico interno que o indivíduo é ainda incapaz de
compreender. Este confronto é o que dá início a narrativa e obriga o Herói a colocar-se em
movimento em direção a sua transformação.

A Recusa do Chamado: Não é incomum que, neste momento, o protagonista sinta-se


inclinado a recusar tal convocação. Evocando mais uma vez os aspectos psicanalíticos do
Monomito, o indivíduo pode sentir-se incapaz de superar as limitações da psique para o
crescimento. O Herói pode estar atado à sua zona de conforto, à segurança proveniente do
familiar, do conhecido. Porém, somente a partir da aceitação do desafio é que poderá alcançar
todo seu potencial e retornar mais sábio e preparado.

O Auxílio Sobrenatural: Após a aceitação do chamado, o Herói se depara com a


primeira figura primordial para sua trajetória. Esta figura protetora é quem lhe fornecerá os
amuletos ou ferramentas de proteção para seguir em frente em sua jornada, de forma a
enfrentar os obstáculos que está fadado a encontrar. Muito embora o Herói seja a figura
central da jornada mítica, o qual sofrerá a grande transformação que o define como tal, seu
caminho é rodeado pela presença de outros indivíduos que desempenham funções necessárias
a seu crescimento. Não raro, esta presença protetora pode tratar-se de um Herói anterior que,
tendo cumprido seu caminho de renascimento, consegue concluir o ciclo e fornecer a outros
aquilo de que precisam em suas próprias jornadas.

A Passagem do Primeiro Limiar: Com a colaboração de sua figura protetora, o


Herói pode alcançar enfim os limites de seu mundo conhecido. Este primeiro limiar,
encabeçado pela figura do Guardião do Limiar - a respeito deste e outros arquétipos da
narrativa mítica, discutiremos no próximo capítulo - representa o horizonte do universo
seguro do protagonista. Para além dele, o desconhecido oferta ao Herói o perigo de se
abandonar sua zona de conforto. Porém, abandonar este estado seguro é necessário à jornada:
“E, no entanto, somente ultrapassando esses limites, provocando o outro aspecto, destrutivo,

12
dessa mesma força, o indivíduo passa, em vida ou na morte, para uma nova região da
experiência” (CAMPBELL, 1989, p.90) As forças opostas a que o autor se refere são,
justamente, os aspectos destrutivo e protetor da figura do Guardião: ao mesmo tempo em que
guarda o Herói dos perigos exteriores, também testa sua preparação para os desafios que o
aguardam. Ultrapassar este estágio e superar o aspecto da segurança é necessário para dar
seguimento à aventura e por conseguinte ao desenvolvimento do Herói.

O Ventre da Baleia: A simbologia do renascimento torna a ser revisitada a partir do


estágio após a travessia do limiar. Ao atravessar o obstáculo e superar o julgamento do
Guardião do Limiar, o protagonista é lançado ao desconhecido ao auto-destruir-se para nascer
de novo. Esta passagem por um estado de morte simbólica representa a travessia do Herói por
seu interior, por um estado de ser e não-ser, a viagem de autoconhecimento característica do
monomito. Após este mergulho no limbo que o permite renascer, o protagonista supera seu
mundo conhecido, consolida sua travessia do Limiar e alcança o início da segunda etapa de
sua jornada.

2.1.2. Iniciação

O Caminho de Provas: A sucessão de provações após a travessia do Herói pelo


Primeiro Limiar marca o início do segundo Ato. Usualmente o mais memorável estágio dos
mitos-aventura (Campbell, 1989), trata-se do caminho de testes em que o Herói deve provar
seu valor e, com o auxílio sobrenatural representado pelo Mentor e seus agentes, aproximar-
se de seu objetivo final.
É nesta fase que podem e costumam ocorrer pequenas buscas paralelas à Jornada
principal. Múltiplas vitórias e barreiras que o Herói deve atravessar consolidam este Mundo
Especial como o caminho de provações em que o indivíduo será preparado para o
renascimento, em oposição ao Mundo Comum.

O Encontro com a Deusa: Neste estágio, a estrutura de Campbell evoca a figura da


“Mãe Universal”, o casamento místico entre a consciência e o cosmos, imputando ao
universo material (e consequentemente ao mundo concreto da Jornada) os atributos femininos
da proteção e da presença que nutre, mas que é também cruel e ameaçadora. Estes valores são
representados mais ao final do caminho de provações na figura da Deusa, o teste final para
que o Herói, através de seu coração nobre e valoroso, prove-se digno das bênçãos da

13
eternidade. Apesar da questão do gênero do Herói na aventura, o autor também propõe tal
estágio para a Jornada da Heroína que conquista seu valor imortal, como Deusa.

A Mulher como Tentação: Esta é para o Herói uma etapa de provações e tentações,
de caráter físico ou trazendo uma perspectiva de recompensa e/ou prazer, que possam afastá-
lo do caminho da jornada. Ao passo que o estágio anterior representou a assimilação dos
atributos do gênero oposto, nesta fase o desafio é não endeusá-los ou marginalizá-los,
atingindo o equilíbrio e superando a tentação que o impede de seguir em frente na jornada.

A Sintonia com o Pai: Neste estágio o Herói confronta os valores passados, em geral
materializados em uma figura paterna, e que devem ser atravessados e superados para que
seja possível compreender o seu papel único na construção do restante de seu caminho.
A figura arquetípica do pai cruel remete também aos ritos de iniciação coletados por
Campbell, e apresenta a ruptura com o passado, o papel que o Herói deve assumir. Esta
representação do pai ao mesmo tempo pune e ensina, e através de ambos gera transformação.
É dele o controle sobre a vida e a morte. Para prosseguir, existam ou não laços familiares, o
filho deve amadurecer para reconhecer-se no pai.

A Apoteose: Após a compreensão do masculino e do feminino, e da reconciliação


com a figura paterna, o Herói pode alcançar o estado da Apoteose (literalmente, o “elevar-se
ao estado de divindade”). Ele é capaz de absorver o conhecimento divino, as noções de
realização plena, da criação e da eternidade. É o momento que precede o início de seu
retorno, que reforça o seu renascimento espiritual e o prepara para as próximas etapas.

A Benção Última: O Herói consegue enfim alcançar seu objetivo. Pôde transcender o
estado terreno, ampliou sua consciência. Para ser merecedor das bênçãos da eternidade e do
tesouro final, porém, é necessário alçar-se à sua maior estatura: é preciso fazer sacrifícios, de
forma a encontrar em si e nos passos de sua jornada a sua conquista, seu conhecimento. “Essa
fonte de vida constitui o núcleo do indivíduo, e este a encontrará dentro de si mesmo — se
puder retirar as camadas que a recobrem” (CAMPBELL, 1989, p.231).

14
2.1.3. Retorno

A Recusa do Retorno: Após enfim terminar sua busca, o Herói deve iniciar uma
nova sucessão de etapas, agora de retorno, para encerrar o círculo completo da estrutura
monomítica. Tendo alcançado seu objetivo, é agora seu dever voltar ao ponto inicial trazendo
consigo a recompensa alcançada (não necessariamente um tesouro físico, mas muitas vezes
subjetivo e/ou abstrato, ou ainda um objeto concreto de valor simbólico). Esta “busca” de
retorno pode ser inclusive tão ameaçadora quanto o caminho de ida: as etapas que se seguem
a partir de agora trarão ao herói sucessivas tentações e testes a seu processo de
amadurecimento.
Um destes testes é já neste primeiro estágio, em que o Herói pode sentir-se deslocado
ou apresentar resistência ao iminente retorno ao seu ponto de partida, com seus cenários
ordinários e tão distantes do novo mundo maravilhoso de experiências vividas após a
Travessia do Limiar. Por representar uma grande responsabilidade, este papel de mensageiro
retornando à comunidade pode parecer para o Herói um grande peso, que ele talvez não se
sinta digno de carregar.

A Fuga Mágica: Neste estágio, pode ocorrer ao Herói que seu retorno possua uma
etapa de ameaça e perseguição. Isto porque em algumas histórias a obtenção da recompensa
não ocorreu com pleno consentimento das forças do plano sobrenatural (que, tivessem
concedido sua benção, neste momento auxiliariam no retorno), ou então a jornada pode não
ter agradado a alguma destas forças. Assim, deste estágio em diante, pode ser vital ao Herói a
presença de outras personagens da narrativa, que lhe prestarão auxílio na perseguição.
Campbell (1989) apresenta diversos exemplos, em especial de contos folclóricos,
comprovando a importância deste estágio na estrutura dos mitos de diversas culturas e
reforçando o papel ativo do Herói em seu sucesso perante as forças sobrenaturais.

O Resgate com Auxílio Externo: Dando seguimento aos acontecimentos passados


no estágio anterior, este ponto da jornada traz o papel ativo de forças externas necessárias
para consolidar o retorno do Herói e trazê-lo de volta a seu mundo inicial. É nesta etapa que o
Herói deve libertar-se de seu ego para poder recuperar a si mesmo - permite-se ser
dependente do auxílio sobrenatural que o acompanha desde o início.
Este resgate é o momento crucial que antecede a consumação do retorno: é o estágio
diretamente anterior à travessia de separação entre os dois mundos da narrativa.

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A Passagem pelo Limiar do Retorno: A respeito da travessia do Limiar de Retorno,
Campbell apresenta a importante noção de ligação entre os dois mundos da jornada:

As aventuras do herói se passam fora da terra nossa conhecida, na


região das trevas; ali ele completa sua jornada, ou apenas se perde para nós,
aprisionado ou em perigo; e seu retorno é descrito como uma volta do além.
Não obstante — e temos diante de nós uma grande chave da compreensão
do mito e do símbolo —, os dois reinos são, na realidade, um só e único
reino. O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que
conhecemos. E a exploração dessa dimensão, voluntária ou relutante,
resume todo o sentido da façanha do herói. (CAMPBELL, 1989, p.242)

Assim, o mistério da travessia é exatamente o reconhecimento de que os dois mundos


experienciados pelo Herói tratam-se, então, de duas diferentes configurações de um mesmo
reino. Esta constatação vai ao encontro da ideia de que parte importante da jornada acontece,
em especial, na esfera da psique. É esta a maior transformação à qual o Herói deve
sobreviver: o amadurecimento de seu próprio psicológico, através da jornada mítica, em
direção a aquilo que deve se tornar.
Assim, é esta a missão do Herói neste estágio: ao retornar a seu cenário cotidiano, ele
só terá obtido o sucesso se for capaz de transmitir aos seus próximos o aprendizado e a
recompensa adquiridos no mundo místico. Esta travessia é, assim, dolorosa e custosa ao
eleito, que deve mais uma vez provar ser digno de tais conhecimentos à medida que precisa
reaproximar-se do mundo que deixou para trás.

Senhor dos Dois Mundos: Caso o Herói em questão possua características


transcendentais ou místicas, como poderes mágicos ou bênçãos espirituais, este estágio é
literal: em diversas narrativas míticas este é o ponto em que a consciência ampliada do
escolhido lhe permite transitar entre os dois mundos conhecidos. Este momento é repleto de
importância e valor simbólico, e proporciona aos que o observam um momento de
contemplação divina.
No caso de heróis com características mais humanas, em mitos afastados de
simbologia sobrenatural, e ainda no aspecto psicológico do acontecimento, este estágio da
estrutura mítica representa um ponto de equilíbrio entre o material e o espiritual, entre os
mundos interno e externo do Herói. Ele agora é capaz de viajar entre estes dois aspectos da
consciência e, graças a isso, representar um ator benéfico aos seus semelhantes e à
comunidade à qual retorna.

16
Liberdade para Viver: Ao final da jornada, o Herói alcança a liberdade - e o direito -
de viver plenamente. E isto só pode se dar por meio de sua libertação definitiva do temor da
morte, como bem dispõe Campbell:

O alvo do mito consiste em dissipar a necessidade dessa ignorância


diante da vida por intermédio de uma reconciliação entre consciência
individual e vontade universal. E essa reconciliação é realizada através da
percepção da verdadeira relação existente entre os passageiros fenômenos
do tempo e a vida imperecível que vive e morre em todas as coisas.
(CAMPBELL, 1989, p.266)

Tanta importância é concedida ao equilíbrio entre Vida e Morte exatamente porque é


nesta sinergia que reside o grande valor a ser absorvido pelo Herói mítico em qualquer
cultura. O renascimento é em si o seu grande tesouro, a transformação que lhe permite
transcender à consciência divina, a tornar-se sobre-humano. O antigo deve perecer para que o
novo exista, e o Herói teve então de deixar seu passado morrer para que pudesse renascer
transformado, vitorioso da jornada e portador do tesouro maior que é o conhecimento.
A estrutura monomítica coletada e apresentada por Joseph Campbell é repleta de
riqueza simbólica e, apesar de suas figuras sobrenaturais, muito fala sobre a evolução
psicológica e social da consciência humana. O amadurecimento da consciência e a noção de
renovação para o mundo através da jornada pessoal são, pois, os principais aspectos desta
estrutura, que proporciona um completo e subjetivo ponto de vista sob o qual podem ser
observadas as narrativas.

2.2 Jornada do Escritor e as releituras do Monomito

Influenciado pelo trabalho de Joseph Campbell em “O Herói de Mil Faces” e durante


seu período como analista de histórias na Companhia Walt Disney, o roteirista norte-
americano Christopher Vogler desenvolveu em forma de memorando um Guia Prático aos
estágios do Monomito. Mais tarde, transformou este guia em um material mais extenso para a
produção e análise de histórias, exercendo influência sobre executivos e produtores da
indústria cinematográfica e também roteiristas, redatores e romancistas4.
Neste material, Vogler apresenta uma releitura condensada da Jornada do Herói em
12 estágios, também divididos em três atos, que amplia as possibilidades de aplicação da
estrutura do Monomito para a análise de histórias em diversas mídias contemporâneas.

4
Este material é o livro “A Jornada do Escritor: Estruturas Míticas para Escritores”, de autoria de
Christopher Vogler (2006); originalmente publicado no ano de 1998, pela Michael Wiese Productions.

17
Sob esta ótica, a nova estrutura explora largamente o papel dos Arquétipos de
influência Junguiana na construção da narrativa, abordando a forma como todos os
personagens que orbitam o Herói desempenham papéis necessários ao desenrolar da jornada.
Desde a primeira proposta do Monomito de Campbell, a Jornada do Herói apresenta-
se como uma estrutura cíclica, onde o ponto final do retorno é exatamente a conciliação com
o ponto inicial e a reintegração do Herói à sua comunidade. Vogler também retoma este
conceito, mas apresenta uma estrutura em forma de diagrama (VOGLER, 2006, p. 22-23) que
guia-se nos chamados pontos de ruptura da narrativa para contornar o problema de
conceituar a Jornada do Herói como puramente linear:

Figura 1: diagrama de metas e atos da Jornada do Herói.


[Fonte: VOGLER, 2006, p. 24]

A partir desta representação, é possível compreender os atos apresentados por Vogler


não como perfeitamente cíclica e linear, mas como possuindo pontos de virada que, segundo
o nome, mudam a direção da narrativa em direção a uma nova meta, que deve ser alcançada
naquele ato antes de uma próxima ruptura (clímax) da história e uma nova mudança de
direção, assim seguindo até o objetivo final.
Tendo em vista esta estrutura de atos e clímaces, os estágios da Jornada de Herói e
sua divisão em três atos como propostos por Christopher Vogler são então os seguintes:

18
2.2.1. Primeiro Ato

Mundo Comum: Assim como no Monomito de Campbell a Jornada do Herói


consiste neste Herói sendo apresentado ao mundo sobrenatural e misterioso que há para lá da
fronteira do Limiar, também para Christopher Vogler esta dicotomia entre os dois mundos é
um dos pontos centrais da Jornada. Neste primeiro estágio, é apresentado o Mundo Comum,
o ambiente no qual o Herói está inserido no início de sua história, e que fará contraste com o
novo, como chama Vogler, Mundo Especial.

Chamado à Aventura: É apresentado ao Herói o desafio que ele deve enfrentar. A


perspectiva de uma aventura, um problema que deve ser resolvido; uma situação que deve
colocá-lo em movimento. A partir deste chamado, o Herói não mais pode permanecer em seu
Mundo anterior, pois há uma situação fora do comum cuja resolução depende dele. “O
Chamado à Aventura estabelece o objetivo do jogo, e deixa claro qual é o objetivo do herói
[...]” (VOGLER, 2006, p.38).

Recusa do Chamado: Este é o momento de relutância, da hesitação por parte do


Herói. Ele ainda se encontra numa posição em que pode recuar, pode desistir da jornada que
ainda não se iniciou plenamente. O temor do desconhecido o limita, e o Herói deve ser
confrontado por uma nova influência para retirá-lo desta situação de recusa. Isto pode ocorrer
através de algum novo acontecimento que o atinja pessoalmente, ou ainda pela influência
encorajadora de um Mentor, algo que consiga motivá-lo diretamente.

Encontro com o Mentor: Neste estágio, é apresentada ao Herói a figura auxiliadora


do Mentor, que em muito lembra a imagem do Auxílio Sobrenatural do Monomito de
Campbell. A sinergia entre o Herói e seu Mentor (ou múltiplos Mentores) é um importante
ponto da jornada e exerce grande influência durante toda a história, não apenas neste ponto.

A relação entre Herói e Mentor é um dos temas mais comuns da


mitologia, e um dos mais ricos em valor simbólico. Representa o vínculo
entre pais e filhos, entre mestre e discípulo, médico e paciente, Deus e o ser
humano. (VOGLER, 2006, p.39)

O Mentor é a figura que deve prestar orientação ao Herói e auxiliá-lo a enfrentar o


desconhecido, seja através de conselhos e instruções e/ou com a ajuda de objetos mágicos.

19
No entanto, em certo ponto, o Mentor deve separar-se do Herói, pois não pode guiá-lo até o
final: este deve encontrar seu caminho sozinho.

Travessia do Primeiro Limiar: Neste ponto, o Herói enfim se compromete


totalmente com seu chamado e atravessa o Primeiro Limiar, adentrando o Mundo Especial da
aventura. Esta é a passagem para o segundo ato da história, o momento em que o Herói
domina seu medo e começa efetivamente a agir em busca de seu objetivo. É o ponto sem
retorno, a partir de onde não é mais possível voltar atrás, e quando a Aventura
verdadeiramente se inicia.

2.2.2. Segundo Ato

Testes, Aliados, Inimigos: Este primeiro estágio do segundo ato costuma ser o mais
extenso da história. O Herói, tendo atravessado o Limiar e acessado o Mundo Especial, deve
enfrentar testes e desafios. Neste percurso, será apresentado a Inimigos e Aliados, e também
às regras regentes do Mundo Especial, que em muito irão contrastar com os costumes que lhe
eram usuais no Mundo Comum. Vogler (2006) cita cenários como bares, saloons e
restaurantes, que podem servir como ambientações comuns a situações cotidianas e
desenvolvimento dos novos personagens apresentados (p.40).

Aproximação da Caverna Oculta: O Herói enfim se aproxima da nova fronteira da


jornada, próximo ao objetivo de sua busca. O que é chamado de Caverna Oculta é o ponto
mais ameaçador do Mundo Especial, que pode ser o antro de um inimigo, ou algo
semelhante. Ao aproximar-se deste local apavorante, o Herói atravessará o segundo grande
Limiar, em mais um ponto de virada da história. Enquanto aguarda para adentrar esta nova
ruptura, trata-se do estágio da Aproximação. O Herói deve preparar-se para enfrentar a maior
ameaça encontrada até então, e em algumas situações, confrontar o perigo da morte.

Provação: Nesta etapa, o Herói é levado ao extremo. Deve confrontar diretamente


seu maior temor e a possibilidade da Morte. É um momento de suspense e tensão, onde pode
não ficar claro se ele viverá ou morrerá. E este momento crítico é necessário: como foi
apresentado por Campbell, o Herói deve morrer (ainda que uma morte simbólica, ou a o fim
subjetivo de uma situação) para que possa ser transformado através do renascimento.

20
Esse é um momento crítico em qualquer história. É uma Provação
em que o herói tem de morrer ou parecer que morre, para poder renascer em
seguida. É uma das principais fontes da magia do mito heróico. As
experiências dos estágios precedentes levaram a platéia a se identificar com
o herói e seu destino. O que acontece com ele está acontecendo conosco.
Somos encorajados a viver com ele esse momento de iminência de morte.
Nossas emoções são temporariamente deprimidas, para poderem reviver no
‘quando o herói retorna da morte’. O resultado desse reviver é uma sensação
de entusiasmo e euforia. (VOGLER, 2006, p.43)

Recompensa: Tendo enfrentado e superado o perigo mortal, o Herói pode se apossar


da recompensa que buscava. Este tesouro pode ou não ser representado por um objeto
concreto, podendo surgir como um conhecimento ou experiência. Pode também aparecer a
resolução de um conflito. Ao ter sobrevivido à Provação, o protagonista enfim pode
conquistar e assumir o título de Herói.

2.2.3. Terceiro Ato

Caminho de Volta: Aqui se inicia o Terceiro Ato da aventura, e o Herói deve


confrontar as consequências de seu embate na etapa da Provação. Caso não alcançado a
reconciliação com forças superiores, o Herói pode enfrentar uma perseguição. Assim, o
caminho de volta pode ser quase tão ameaçador quanto o primeiro percurso. Este é o
momento da decisão do retorno, quando fica claro que o Mundo Especial deve ficar para trás
e que o Herói ainda possui testes e desafios a enfrentar.

Ressurreição: Antes de efetivar seu retorno ao Mundo Comum, o Herói deve


atravessar um novo encontro com a Morte e enfrentar um novo renascimento. Ele é mais uma
vez colocado à prova para que seja esclarecido se conseguiu aprender o que deveria com a
Provação e sua primeira ameaça da morte. Este é seu último teste, sua transformação última,
à qual o Herói deverá sobreviver para retornar ao seu mundo com o conhecimento e
experiência dos quais necessita. Como expõe o autor: “O herói se transforma, graças a esses
momentos de morte-e-renascimento, e assim pode voltar à vida comum como um novo ser,
com um novo entendimento” (VOGLER, 2006, p. 45).

Retorno com o Elixir: Elixir, nas palavras de Vogler, é “uma poção mágica com o
poder de curar” (2006, p. 46). Em seu retorno ao Mundo Comum, o Herói deve trazer consigo
uma recompensa, um tesouro ou um conhecimento, materializados neste Elixir que nomeia
este estágio. Embora possa ser um objeto concreto, muitas vezes o objetivo da busca inicial, o

21
Elixir pode também ser representado pela experiência da aventura, uma lição aprendida,
aquilo que ele traz de volta de sua jornada e que completa o ciclo - caso contrário, o Herói
está fadado a repetir sua busca.

2.3 Apresentação dos Arquétipos na Jornada do Herói

Os Arquétipos são os personagens que povoam a Jornada, as figuras que movem a


narrativa através de seus estágios. Para explicar este conceito, que tem origem na ideia de
inconsciente coletivo, Vogler retoma os estudos de Carl G. Jung:

Assim que entramos no mundo dos contos de fadas e dos mitos,


observamos que há tipos recorrentes de personagens e relações[...] Ao
descrever esses tipos comuns de personagem, símbolos e relações, o
psicólogo suíço Carl G. Jung empregou o termo arquétipos para designar
antigos padrões de personalidade que são uma herança compartilhada por
toda a raça humana. (VOGLER, 2006, p.48)

Assim como os mitos brotam do inconsciente coletivo, os Arquétipos são tipos de


personagem fazendo constantes aparições em diferentes culturas e épocas. Vogler reforça a
importância de se conhecer a universalidade dos arquétipos, depositando aí boa parte do
ofício do escritor (2006, p. 48).
Além disso, o autor também indica que os arquétipos não se tratam de papéis fixos e
permanentes, mas sim funções desempenhadas pelos personagens ao longo da história para a
obtenção de certos efeitos narrativos. Assim, um mentor não necessariamente será um Mentor
do início ao fim, um Camaleão ou Sombra podem também transitar entre diferentes papéis.
“Olhando os arquétipos dessa maneira, como funções flexíveis de um personagem e não
como tipos rígidos de personagem, é possível liberar a narrativa.” (VOGLER, 2006, p.48)
Em seguida, Vogler também propõe que uma outra forma de analisar os arquétipos é
de enxergá-los como facetas da personalidade do Herói, e de sua construção como
personagem. Esta abordagem será retomada mais à frente, ao discutir os pontos da Jornada na
narrativa do jogo eletrônico Undertale, quando terá grande importância a seguinte proposição
do autor:
Os outros personagens representam possibilidades para o herói —
boas ou más. Às vezes um herói percorre uma história reunindo e
incorporando a energia e os traços de outros personagens. Aprende com eles
e vai fundindo tudo até chegar a ser um ser humano completo, que pegou
algo de cada um que foi encontrando pelo caminho. (VOGLER, 2006, p.49)

22
Com isto em vista, Christopher Vogler apresenta uma listagem de Arquétipos mais
comuns e úteis ao processo de escrita. São figuras que aparecem com mais frequência nas
narrativas e serão exploradas mais a fundo, embora claramente não sejam as únicas possíveis.
São padrões comuns fundamentais, a partir dos quais podem ser construídos personagens
segundo as mais diversas necessidades dos gêneros narrativos. São as figuras do Herói,
Mentor, Guardião de Limiar, Arauto, Camaleão, Sombra e Pícaro.

Herói: O Herói é, em si, o papel que se dispõe a sacrificar-se em benefício dos outros.
Embora ligada à ideia de protagonista, o Herói desempenha o papel do sacrifício de si
mesmo. Seu propósito narrativo é proporcionar uma identificação com o público: é a partir
dele que acontecerá a experiência da história. Devem possuir características universais, de
forma que nos identifiquemos com ele, porém não ser meras caricaturas. “Como qualquer
verdadeira obra de arte, eles precisam, ao mesmo tempo, de universalidade e originalidade.”
(VOGLER, 2006, p. 53). O Herói tem por funções o crescimento, a ação e o sacrifício, e ele
é quem deve confrontar a morte durante a Jornada.

Mentor: O Arquétipo do Mentor é expressado nos personagens que guiam e


protegem o Herói e lhe fornecem orientação, auxílio e muitas vezes certos dons
sobrenaturais. Frequentemente são relacionados à inspiração divina, e podem também ser
personagens que, já tendo experimentado seus próprios caminhos heroicos, agora são capazes
de guiar novos aspirantes a Herói. Por tratar-se de uma figura que tem por função transmitir
ao mais jovem o conhecimento e sabedoria, possui uma relação direta com as figuras paterna
e/ou materna. Têm por funções orientar, presentear, motivar e também podem agir na
consciência interior do Herói. Por ser uma função flexível, como os outros arquétipos, o
papel de Mentor pode ser desempenhado por outros personagens da narrativa.

Guardião de Limiar: Os Guardiões de Limiar são figuras que parecem ameaçadoras


à primeira vista, porém, se o Herói for capaz de compreender seu papel, podem ser superados
e inclusive revelar-se valiosos aliados. Isto porque são, conforme explica o nome, Guardiões
de marcos importantes da jornada, que devem proteger o caminho daqueles que não forem
merecedores. Representam as neuroses do ego, obstáculos comuns que devem ser
atravessados, e não desempenham necessariamente um papel de antagonistas ou vilões.
Possuem a função de testar, comprovar que estamos prontos para a mudança que se segue.
Qualquer mudança gera resistência, e o Guardião do Limiar representa esta resistência ao

23
testar a determinação do herói, que deve mostrar que é digno de superá-lo e seguir em frente,
e encontrará seus próprios meios para lidar com isto.

Arauto: O Arquétipo do Arauto representa a energia da mudança, indica a


aproximação de um desafio ao Herói. O Arauto traz o chamado, põe a narrativa em
movimento à medida que torna impossível ao Herói manter a ordem presente das coisas,
forçando sua ação. Esta figura serve como alerta, como uma indicação do que está por vir,
fornecendo motivação e desafiando o Herói. O Arquétipo pode ou não ser desempenhado por
uma pessoa, uma vez que fenômenos naturais ou acontecimentos podem ter a mesma função.

Camaleão: A figura do Camaleão representa a energia instável, do mistério. Não fica


claro para o Herói ou o público quem ele realmente é, uma vez que faz parte de sua essência a
constante transformação, o aspecto fugidio. É comum ao Herói que esta figura pareça
mutável, difícil de ser compreendida, suas intenções duvidosas porém de certa forma
encantadoras. Muitas vezes pode ser representada em um interesse amoroso, com ações
dúbias que deixam o protagonista no escuro. O Camaleão representa, em âmbito psicológico,
as energias mutáveis do animus e anima, essências do masculino e do feminino
respectivamente. Podem ser energias construtivas ou destrutivas ao Herói, dependendo de sua
capacidade de compreensão. Possui a função narrativa de implantar suspense, dúvida e
mistério. Mudanças de aparência podem representar possíveis mudanças de identidade e
intenção. A máscara de Camaleão pode ser desempenhada por diversos tipos de personagens,
de acordo com as necessidades da história.

Sombra: O Arquétipo da Sombra representa a energia do lado obscuro, aspectos


reprimidos da personalidade. Antagonistas e inimigos são frequentemente representados por
esta função, uma vez que representam o outro lado do conflito do Herói. Pode ser uma força
de potencial destrutivo, se não for compreendida corretamente. Sua função dramática é a de
apresentar um desafio ao Herói, um conflito que deve ser confrontado. Mesmo o Herói, que
possui um potencial interno de autodestruição, pode apresentar este Arquétipo em
determinados momentos da narrativa, em especial quando se afasta de sua disposição original
do sacrifício em direção ao egoísmo e ao temor. A figura da Sombra pode assumir outros
papéis, inclusive desempenhando qualidades heroicas. Assim, não se trata apenas de uma
figura negativa, mas pode ainda ter seu potencial destrutivo harmonizado e compreendido em
seus aspectos positivos, de transformação e liberação daquilo que estava reprimido.

24
Pícaro: O Pícaro é o arquétipo que representa o desejo de mudança, a energia da
travessura e da brincadeira. Apresenta-se principalmente em figuras de aspecto humorístico.
Serve à função dramática de alívio cômico, alivia tensões e traz mais luz ao clima da história
caso este pareça demasiadamente sério e obscuro. Podem ser aliados do Herói, criados da
Sombra ou aparecer como forças independentes. Suas armas são a astúcia, através da qual
desafia a ordem vigente e traz a mudança, e o humor. O Pícaro muitas vezes é um catalisador
da mudança de outro, sem necessariamente mudar muito sua própria essência.

********

Compreender os Arquétipos fornece uma maneira mais completa de enxergar os


papéis desempenhados por cada personagem dentro da história. Ao analisar as etapas da
Jornada do Herói nos jogos clássicos de Role-Playing-Game e também no caso especial do
jogo eletrônico Undertale, será necessário ter em mente as estruturas arquetípicas para
compreender o comportamento e a função de cada personagem na construção e na motivação
da narrativa.

25
3. Jornada do Herói no jogo eletrônico de aventura

3.1 Conceito de Jogo e Definição do Círculo Mágico

O gênero Role-Playing-Game (ou apenas RPG) de jogos eletrônicos, do qual faz parte
o título Undertale do desenvolvedor Toby Fox (2015), incorpora à mídia audiovisual do
videogame aspectos dos RPGs de mesa tradicionais5. Ambas as versões, eletrônica ou
analógica, podem ser reconhecidas como “jogo” de acordo com a definição para “o ato de
jogar” (“play”) proposta na obra “Homo Ludens” por Johan Huizinga (1949)6:

Here we have at once a very important point: even in its simplest


forms on the animal level, play is more than a mere physiological
phenomenon or a psychological reflex. It goes beyond the confines
of purely physical or purely biological activity. It is a significant
function-that is to say, there is some sense to it. In play there is
something "at play" which transcends the immediate needs of life
and imparts meaning to the action. All play means something.
(1949, p.1)

Assim, grosso modo, podemos concluir que o ato de jogar possui alguma coisa “em
jogo”, tem por função significar algo. Sobre a experiência do jogo e discorrendo sobre o
conceito de Huizinga, Araujo (2016) traz o seguinte:

Um jogo eletrônico, assim como qualquer tipo de jogo ou atividade


análoga, pressupõe em sua essência que os participantes irão aderir
a um conjunto de regras. Desde uma brincadeira de pique-pega, em
que um participante deve sair em busca dos outros, até um
complexo jogo de cartas, em todos os casos existe um elemento
que conecta a experiência de jogo e a torna consistente: o fato dele
ser executado num espaço próprio, um mundo onde as regras do
jogo sobrepõem os demais fundamentos no mundo externo. (2016,
p.363)

Este “espaço próprio”, comentado pelo autor, expõe mais uma ideia definida por
Huizinga e necessária à conceituação de “jogo”: o elemento do círculo mágico. Este Círculo
Mágico do Jogo trata-se do ambiente abstrato (embora possa ser delimitado por barreiras
físicas, sua definição é subjetiva) que é regido pelas regras e premissas do jogo. É o espaço
onde o jogo ocorre, à parte das leis do mundo real, e necessário para que ele aconteça.

5
O role-playing-game ou Jogo de Interpretação de Papéis (RPG) é um tipo de jogo, usualmente
colaborativo, em que os presentes assumem os papéis de personagens na criação de uma narrativa,
que é influenciada pelas decisões dos jogadores e regida por um sistema de regras definidas.

6
Originalmente publicado em 1938.

26
A respeito das experiências no Círculo Mágico, Vicente Mastrocola (2012) diz:

Apesar de ser um espaço diferente do cotidiano, as experiências


realizadas dentro do círculo mágico representam algo para aqueles
que participaram delas – envolve experiências e significados que
permanecem com o indivíduo, que por sua vez as carrega de volta
para o cotidiano, que nada mais é do que um outro espaço da sua
vida. (2012, p.23-24)

Desta forma, fica claro que o ambiente do jogo, embora distinto do mundo real, não
está livre de implicar efeitos neste último. O jogo significa algo para o indivíduo que joga, e
este transfere para seu cotidiano comum elementos daquilo que absorveu em sua experiência
lúdica. Nisto é possível traçar um paralelo com o Monomito como proposto por Campbell e
Vogler: o jogador, na posição de Herói, traz consigo o Elixir, a recompensa da Jornada, em
seu retorno do Mundo Especial ao Mundo Comum, onde aprendeu lições valiosas. Esta
constatação será de suma importância tópicos à frente, quando será discutida a experiência do
jogador em Undertale.

3.2 Construção Narrativa no jogo de aventura: o caso The Legend of Zelda

Em 1986, foi lançado para o console Nintendo Entertainment System (NES)7 o jogo
Zelda No Densetsu, ou The Legend of Zelda, desenvolvido pela Nintendo Company e criado
por Shigeru Miyamoto e Takashi Tezuka. O título, caracterizado como um game de ação-
aventura, foi o primeiro do que viria a ser uma das franquias de maior sucesso da empresa e
uma referência em jogos de action RPG.
Enquanto os RPGs de videogame normalmente apresentam (seguindo o modelo dos
RPGs de mesa) um esquema de combate em turnos, o subgênero conhecido como action
RPG em geral traz um sistema de ação em tempo real. Sobre o jogo original The Legend of
Zelda, segundo Ribeiro (2017), “Até os dias atuais existem debates se o game se encaixa no
gênero RPG ou se é um jogo de Ação/Aventura com elementos de RPG. Porém alguns
críticos preferem o classificar como Action-RPG”.
Com o passar dos anos, o desenvolvimento tecnológico das plataformas de videogame
possibilitaram a criação de novos títulos para a franquia, que puderam através de interfaces
inovadoras adicionar novas camadas à interatividade permitida pelo jogo. Artifícios como a
tela sensível ao toque do portátil Nintendo DS ou os sensores de movimento dos consoles
Nintendo Wii e seu sucessor Wii U tornam mais imersiva a experiência do jogador nos títulos

7
Originalmente lançado no Japão como Nintendo Family Computer ou Famicom.

27
produzidos pela Nintendo para suas plataformas. Consequentemente, o aumento no
engajamento aumenta o potencial significativo da trama e permite uma construção narrativa
mais aprofundada.
Dos personagens pixelizados de The Legend of Zelda (1986) aos gráficos mais
evoluídos do título The Legend of Zelda: Breath of the Wild (2017), a Nintendo conseguiu
construir uma mitologia muito bem definida, numa cronologia não-linear, conectando os 19
títulos da série8, cada um com um enredo diferente. O potencial narrativo da franquia é tanto
que a trama foi adaptada para uma série em quadrinhos do tipo mangá e aprofundada em um
livro-enciclopédia, posterior ao lançamento de The Legend of Zelda: Skyward Sword (2011) e
explicativo dos detalhes da cronologia até então.
Como histórias de aventura, os títulos da franquia The Legend of Zelda apresentam
claras influências da estrutura monomítica, inclusive fazendo uso na narrativa de termos
como “Herói”, “Guardião” e outras referências arquetípicas. De forma geral, a cronologia da
série se divide em universos alternativos de acordo com o resultado de alguns eventos, mas
mantém seus elementos principais no decorrer da lenda, sendo eles:

● Criação do universo e da Triforce


O mundo foi criado por três Deusas: Din, Nayru e Farore. Din, a deusa do poder,
criou a terra. Nayru, deusa da sabedoria, criou a ordem. E Farore, deusa da coragem, criou a
vida. Antes que deixassem o universo recém-criado por elas, as três deusas criaram e
confiaram à deusa Hylia a Triforce: um amuleto mágico formado por três triângulos
dourados. Capaz de conceder um desejo a quem possuir as três virtudes das deusas (Poder,
Coragem e Sabedoria), a Triforce pode desmembrar-se em três caso seu portador não
apresente o equilíbrio entre as três qualidades. A relíquia elege três indivíduos para possuir
cada uma de suas virtudes individuais, os quais reencarnam através dos tempos.

● Link, o Herói
Principal protagonista dos jogos da franquia, Link é o Herói do mundo fantástico de
Hyrule, onde a história acontece. Portador da Triforce da Coragem e da lendária Master
Sword, uma poderosa e mítica espada.

8
Do primeiro título The Legend of Zelda (1986) até o mais recente até o momento, The Legend of
Zelda: Breath of the Wild (2017), sem considerar os relançamentos.

28
● Princesa Zelda
Reencarnação da deusa Hylia, Zelda é a princesa de Hyrule e possui a Triforce da
Sabedoria. Além de dar nome à franquia, a personagem é o principal catalisador dos eventos
que ocorrem nos jogos.

● Ganondorf e Ganon
O senhor das trevas Ganondorf é o portador da Triforce do Poder. Tem por objetivo
conquistar Hyrule. Utiliza o poder da Triforce para tornar-se a fera Ganon: uma criatura que é
a manifestação material do Mal absoluto.

Considerando estes elementos principais da mitologia, e também possuindo novos


elementos como raças e cenários recorrentes, a cronologia continua com a criação de
diferentes enredos para os títulos que sucederam o primeiro jogo da franquia. Sempre
seguindo estruturas narrativas que ecoam, para mais ou para menos, a Jornada do Herói, a
série da Nintendo apresenta já nestes elementos principais algumas formas arquetípicas,
independentemente do título em questão.
Link, cujo nome literalmente significa “elo” é, obviamente, a figura do Herói, que se
entrega ao sacrifício para salvar o mundo de Hyrule e a preciosa e sábia Princesa Zelda. Esta,
por sua vez, é uma Camaleão, representante da energia misteriosa e mutável da anima para
Link, mas pode também em algumas ocasiões mostrar-se uma Aliada ou Mentora, portadora
de sabedoria e instrução. Ganondorf personifica a Sombra, a energia reprimida e a faceta
obscura da personalidade. Ele é a ameaça à aventura de Link, mas a história compreende a
importância de seu papel no universo de Hyrule e não o limita ao papel de vilão: embora
represente a escuridão, Ganondorf é uma das três peças vitais ao equilíbrio da Triforce.
Desta forma, The Legend of Zelda é uma franquia que obtém até hoje sucesso em sua
talvez inconsciente construção mitológica moldada sobre as figuras arquetípicas. Em
complemento a isso, o enredo de cada jogo segue, à sua maneira, a construção básica do
Monomito, conforme analisada por Vogler (2006). Seguindo uma narrativa de aventura
tradicional, os títulos da série costumam seguir uma estrutura em três atos, referenciando a
Partida, Iniciação e Retorno de Campbell (1989).
Primeiramente, é apresentado o Mundo Comum do Herói, que se depara então com
um desafio (por exemplo, a missão de resgatar a Princesa Zelda); o qual será aceito, mas não
sem alguma hesitação ou circunstância que o atrase.

29
O Herói terá então o seu encontro com o Mentor, o qual, por tratar-se de um jogo de
fantasia, costuma ser um ser místico ou com poderes sobrenaturais. Numerosas raças mágicas
povoam as narrativas de The Legend of Zelda, como fadas, criaturas aquáticas (os Zoras) ou
seres com aparência quase humana, mas semelhantes a elfos, os Hylians. Após o Herói
atravessar uma divisão entre seu Mundo Comum e o universo mágico da aventura, estas e
outras criaturas representam grande parte de seus novos aliados e inimigos na etapa de testes.
Auxiliado pelos conhecimentos que absorveu com seu Mentor e coletou no decorrer
da jornada, o Herói pode iniciar seu caminho em direção à provação final. Somente após
enfrentar e derrotar sua maior ameaça é que ele pode alcançar a Recompensa que buscava.
Muitas vezes este papel de prêmio definitivo cabe à Master Sword, a espada lendária do
Herói, mas pode também ser o retorno de Zelda e a restauração do equilíbrio do universo.
Em geral, após a derrota do vilão o retorno do Herói ao seu Mundo Comum pode se
dar sem grandes conflitos na trama principal. Porém, seguindo as estruturas de Campbell
(1989) e Vogler (2006), o fato de tratar-se de um videogame de ação permite que neste
retorno o jogador enfrente alguns inimigos ainda por derrotar, ou finalize buscas e missões
menores ainda não terminadas.
Com a resolução dos conflitos e o retorno da recompensa ao Mundo Comum (como a
Master Sword sendo empunhada por seu portador e protetor do mundo de Hyrule, Link), o
protagonista consolida seu conquistado papel como o Herói que se sacrifica ao colocar-se em
risco pelo bem do universo, e a ordem é restaurada.

Figura 2: Link retira a lendária Master Sword, sua Recompensa, de seu pedestal, no título The
Legend of Zelda: Breath of the Wild. [Fonte:Nintendo, 2017]

Em qualquer título da franquia, o objetivo da jornada de Link é sempre o mesmo,


embora sob óticas distintas. É a missão final de qualquer história de aventura: a utopia já
consolidada de “salvar o mundo”. E é precisamente neste aspecto que a trama de Undertale
vai divergir e renovar as narrativas interativas em RPG.

30
4. A Construção Narrativa de Undertale

4.1. Apresentação

Lançado originalmente para Microsoft Windows e Mac OS X em Setembro de 2015 e


recepcionado internacionalmente com críticas extremamente positivas9, o game Undertale
(também referido como UNDERTALE ou UnderTale) tornou-se um fenômeno entre os
apreciadores de jogos independentes. Seguindo este sucesso, foram anunciadas versões para
consoles de mesa como Playstation 4, o portátil PS Vita e até mesmo o revolucionário
Nintendo Switch, além de edições especiais de colecionador. Esta mobilização dos
desenvolvedores somente comprova a relevância e o ar de renovação que o título trouxe ao
meio gamer indie10, baseados principalmente no potencial narrativo da trama e mecânicas
inovadoras utilizadas de forma conectada à história.
O jogo se inicia com um prólogo, que contextualiza o ambiente onde o jogo acontece.
São apresentadas as duas raças que coexistem no círculo mágico de Undertale: Humanos e
Monstros. Também é citado que ambos os povos ocasionalmente entraram em guerra, e, após
uma longa sucessão de batalhas, os Humanos saíram vitoriosos. Através de magia, os
vencedores confinaram os Monstros ao Subterrâneo, selados por uma barreira mágica.
Muitos anos após a guerra entre os Humanos e os Monstros, no ano de 201X (o ano é
assim transcrito no jogo para não esclarecer exatamente a época em que a história se passa),
uma criança humana sobe o Monte Ebott, uma montanha conhecida por que aqueles que
tentam escalá-la jamais retornam. A criança, que subira o Monte por razões misteriosas,
despenca por um buraco e cai. É aí que a história começa.
A jornada do protagonista se inicia nas Ruínas, o primeiro reino do Subterrâneo (mais
serão introduzidos no decorrer da história), onde conhece a violenta flor falante Flowey e a
sábia Toriel. O objetivo principal proposto pelo jogo é escapar do Subterrâneo, sobreviver à
hostilidade dos monstros e voltar para casa. Porém, como será exposto mais à frente, os
meios pelos quais o jogador fará isso ficam inteiramente à sua escolha, depositando nele a
liberdade de manipular os rumos da narrativa - e o fardo de lidar com as consequências.

9
A versão para computadores do game recebeu uma nota de 92/100 do portal Metacritic, que baseia
sua pontuação nas resenhas de diversos críticos mundo afora. Disponível em
<www.metacritic.com/game/pc/undertale>.
10
Refere-se aos jogos de produção independente, com menor investimento e menos divulgação,
porém com uma base de fãs altamente engajada.

31
4.2. Elementos de jogabilidade

Em relação a jogos de computador, a obra de Jesper Juul (2005) define jogabilidade


(gameplay) como a maneira em que o jogo é jogado à medida que os desafios do mesmo são
confrontados. A jogabilidade é, então, a interação entre as regras do jogo e a determinação do
jogador em progredir na experiência da melhor forma possível (p. 56).
As mecânicas de jogabilidade presentes em Undertale relacionam-se de forma
profunda com a sua construção narrativa. O título apresenta um sistema de batalha em turnos,
em que os embates com os inimigos possuem turnos alternados entre o protagonista e o
monstro confrontado. Desta forma, o jogador deve estrategicamente estudar os movimentos
de seu inimigo e analisar seu comportamento, para proceder da melhor maneira em sua vez
de agir. Durante o confronto, são consideradas as variáveis LV (e EXP), HP e a ALMA
(SOUL) do protagonista, que é a partícula em formato de coração vermelho que é controlada
pelo jogador na batalha.
Em relação ao progresso fora de batalha, o jogo é formado principalmente de uma
combinação entre a exploração dos mapas disponíveis, diálogo com NPCs (non-playable-
characters, ou personagens-não-jogáveis) e resolução de quebra-cabeças.
Também é de grande importância a possibilidade de SAVE (salvar o progresso) do
jogo, uma vez que este conceito comum aos games é conhecido por alguns personagens, em
uma quebra da quarta parede, e afeta profundamente a narrativa.

4.2.1. Mecânicas de Batalha

Figura 3: Tela inicial de batalha em Undertale.


Fonte: Toby Fox [2015]. Disponível em <https://undertale.com/about/>

32
Dentro do ambiente de batalha, que é iniciado ao encontrar algum monstro, o jogador
possui quatro alternativas principais de ação: FIGHT (lutar), ACT (agir), ITEM (utilizar um
item) ou MERCY (compaixão). Além disso, são mostradas em todos os embates as variáveis
HP e LV, sendo que esta última traz em si a variável implícita EXP. O coração vermelho, que
é a partícula controlável pelo jogador neste ambiente, representa a SOUL (alma) do
personagem.

● FIGHT
FIGHT é a principal ação de luta. Permite ao jogador causar dano em monstros para
diminuir sua energia e consequentemente derrotá-los. Ao ser selecionada, mostra um ponteiro
que alterna por uma escala horizontal. Dependendo do ponto em que o jogador aciona o
ponteiro, o ataque causará mais ou menos dano ao oponente.

● ACT
ACT permite que o jogador realize uma ação sem o uso de violência. Diferente do
sistema de FIGHT, que segue um padrão, ACT acionará uma lista de opções que varia de
acordo com o oponente enfrentado. Para alguns será abraçar, conversar ou fazer carinho,
entre outras alternativas. De acordo com as ações escolhidas em ACT, o comportamento
posterior do oponente mudará, alterando o rumo da batalha.

● ITEM
ITEM possibilita o uso de um item que o jogador carregue consigo em seu inventário,
o que consome um turno de batalha. Eles são em sua maioria itens de cura, para recuperar a
energia do personagem e impedir que o mesmo seja derrotado sofrendo dano. Porém, podem
possuir também efeitos secundários, especialmente em relação ao comportamento dos
monstros.

● MERCY
A opção MERCY pode ser utilizada somente em algumas situações, quando foi
alcançado o estágio na batalha em que o monstro não deseja mais lutar. Consiste em conceder
misericórdia ao oponente, finalizando o embate sem derrotá-lo.

33
● SOUL
O coração vermelho controlado pelo jogador em batalha é a materialização da Alma,
ou SOUL, do personagem. No contexto de Undertale, Alma é a essência de um ser, seja ele
Humano ou Monstro. As Almas tomam a forma de um coração, com cores variáveis
(vermelho é a cor da Alma do protagonista), sendo que as Almas de Humanos têm a ponta
para baixo e as dos Monstros possuem a ponta virada para cima. Enquanto a Alma de um
humano sobrevive após a morte do indivíduo, a Alma de um Monstro desaparece
completamente junto com seu corpo quando morre.
É explicado que duas Almas, de um monstro e de um humano, quando unidas, podem
atravessar a barreira mágica que separa o Subterrâneo da Superfície. Já sete Almas humanas
possuem o poder de destruir a barreira por completo.
Uma alma humana é extremamente mais forte que as Almas dos monstros: nem
mesmo a união das Almas de todos os monstros do Subterrâneo igualam o poder de uma
única Alma humana. O conceito SOUL/Alma possui um papel determinante no enredo de
Undertale, e será novamente citado durante a narrativa,

● HP
HP (Hit points ou Health points, pontos de dano ou de energia) é uma mecânica
comum dos RPGs e representa a quantidade de pontos de dano que o personagem pode sofrer
sem ser derrotado (causando um Game Over, fim de jogo, e levando o jogador de volta ao
último ponto de progresso salvo.

● LV e EXP
Em RPGs tradicionais, LV e EXP referem-se a Level e Experience (nível e pontos de
experiência, respectivamente), sendo que mais inimigos derrotados e maior progresso dentro
do jogo fornecem Experiência que se converte em novos Níveis de poder alcançados. Esta
também é, supostamente, a definição seguida por Undertale, até o momento em que, próximo
ao fim do jogo, são explicados os verdadeiros significados das siglas. Tratam-se
respectivamente de Level of Violence (nível de violência) e Execution Points (pontos de
execução). Uma vez que ambas as variáveis evoluem com a execução de oponentes, o
conceito explicita que estes níveis aumentam de acordo com a opção do jogador em seguir ou
não um caminho violento. Ambas as variáveis são determinantes do final do jogo que o
jogador conseguirá, e mais sobre seus efeitos será discutido mais à frente.

34
Por último, pode-se citar o conceito de Determinação (DETERMINATION) que é
citado numerosas vezes durante o enredo. A Determinação é o poder que permite às Almas
persistirem após a morte, e está ligado à possibilidade de salvar a evolução do jogador: dentro
do Círculo Mágico de Undertale, o ser com maior Determinação é o único capaz de salvar o
jogo, no sentido de gravar seu progresso.

4.2.2. Principais regiões do mundo explorável

Undertale toma lugar no reino do Subterrâneo - em nenhum momento o mundo da


Superfície, reino dos Humanos, é visitado durante o jogo. Dentro do Subterrâneo
(UNDERGROUND, que dá nome ao jogo, Undertale significando Conto do Subterrâneo) há
uma divisão em quatro regiões principais, com uma quinta locação especial que é
precisamente a região do limiar entre o mundo dos Monstros e dos Humanos. Trata-se das
Ruínas/Ruins (ruínas de um reino antes povoado pelos monstros), Snowdin (uma região
tomada pela neve), Waterfall/Cachoeira (que tem por principal cenário a queda d’água que
lhe dá nome) e Hotland (uma terra de lava). Em quinto lugar, o castelo do Rei dos Monstros
está conectado à barreira entre o Subterrâneo e a Superfície.
Nesta ordem, o jogador pode transitar entre as regiões e explorá-las segundo um certo
nível de liberdade. É possível também voltar para trás, com exceção das Ruínas, que após
deixadas não podem mais ser visitadas. Cada região possui seus NPCs próprios, quebra-
cabeças específicos e oponentes únicos a se derrotar. Em cada uma delas existe um número
pré-definido de inimigos existentes - e esta quantidade, única para cada cenário, tem seu
papel na determinação do final do jogo.

4.3. Principais personagens

No decorrer da história, o jogador toma o papel de um protagonista sem gênero


definido. Os diálogos referem-se a ele (a criança que caiu do Monte Ebott) como “a criança
caída” (the fallen child) e utilizando o pronome de gênero indefinido do inglês, they/them.
Considerando esta particularidade da língua inglesa, e uma vez que a língua portuguesa não
possui um pronome de igual sentido, ao descrever os estágios da jornada este trabalho se
referirá à personagem principal como “ela”, em referência ao gênero feminino da palavra
“criança”. Quando considerado o indivíduo que joga, será usado sempre o gênero masculino
da palavra “jogador”.

35
Além do protagonista, outros 9 personagens possuem papéis importantes na narrativa:
Flowey, Toriel, Sans, Papyrus, Undyne, Alphys, Mettaton, Asgore e Asriel. Além disso, uma
décima adição deve ser feita à lista: Chara, personagem que apresenta uma contraparte da
personagem principal, e assim como ela, é uma criança humana que caiu do Monte Ebott em
direção ao Mundo Subterrâneo.

● Flowey
Flowey, a Flor, é o primeiro personagem importante encontrado pelo jogador. Com
um tema musical alegre e animado, possui a aparência de uma flor amarela inofensiva, porém
logo se revela uma criatura impiedosa e violenta, que engana e tenta matar o jogador já em
sua primeira demonstração de como funciona um combate. Manipulador, Flowey é um dos
personagens que possui conhecimento sobre a mecânica de se salvar o progresso do jogo.

● Toriel
Toriel é a cuidadora das Ruínas, onde vive cuidando dos monstros que lá habitam e
garantindo que nenhum outro Humano caia no Subterrâneo. Com a aparência semelhante a
um bode bípede, é gentil e maternal, servindo como uma guia para o protagonista em seu
progresso nas Ruínas após a queda. Seu nome, Toriel, faz referência à palavra Tutorial,
reforçando seu papel como orientadora e protetora. Salva o protagonista em seu primeiro
encontro com Flowey.

● Sans
O misterioso Sans, o Esqueleto, é um personagem curioso e de certa forma cômico.
Recepciona o protagonista após atravessar o portão que separa as Ruínas da terra nevada de
Snowdin. Seus diálogos não possuem letras maiúsculas e utilizam somente a fonte gráfica
Comic Sans, de onde vem seu nome. Preguiçoso e desleixado, tem uma personalidade irônica
e gosta de fazer piadas. No entanto, possui momentos atipicamente sérios que lhe concedem
uma aura de mistério.

36
● Papyrus
Também um esqueleto e irmão de Sans, Papyrus tem seu nome da fonte utilizada em
seus diálogos, Papyrus11. De forma oposta ao irmão, fala somente com letras maiúsculas
(caixa alta), como se estivesse gritando. Seu objetivo próprio é capturar um humano e assim
poder ser incluído na Guarda Real dos monstros. Porém, sua inocência, ingenuidade e
comportamento distraído o tornam alheio às coisas. É confiante e carismático e se afeiçoa ao
protagonista apesar de este ser um humano.

● Undyne
Com aparência semelhante a um peixe, Undyne inicialmente é mostrada somente com
uma armadura completa que cobre totalmente seu corpo. Líder da Guarda Real e uma
poderosa defensora dos Monstros, é fiel aos seus valores e, apesar de sua posição como
guerreira, é uma pacifista e tem grande senso de justiça.

● Alphys
Parecida com um dinossauro, Dra. Alphys é a cientista real de Asgore, o Rei dos
Monstros. Vive em um laboratório afastado em Hotland, tem uma personalidade tímida e
insegura. Apaixonada por animes e mangás humanos, tem uma postura autodepreciativa
apesar de sua inteligência e dos feitos que a levaram a sua posição como cientista real. Possui
um passado misterioso e nutre sentimentos românticos por Undyne.

● Mettaton
Criado por Alphys, Mettaton é um robô possuidor de Alma. Na realidade, é um
fantasma que ganhou um corpo robótico construído por sua criadora. É a celebridade-estrela
do entretenimento do Subterrâneo, e possui um show de televisão, além de uma rede de hotel
e restaurante e uma legião de fãs apaixonados.

● Asgore
Asgore Dreemurr é o Rei dos Monstros e comandante supremo do Subterrâneo.
Apesar de não ser especialmente cruel ou vilanesco, Asgore representa o papel de antagonista
durante boa parte do enredo de Undertale, uma vez que possui o objetivo de coletar sete
Almas humanas (através da morte de seus portadores) para destruir a barreira mágica que

11
Tanto Papyrus quanto Comic Sans são fontes largamente utilizadas que em geral vêm incluídas
nos pacotes básicos de instalação dos sistemas Microsoft Windows e Mac OS.

37
aprisiona os monstros no Subterrâneo. Já teve um relacionamento amoroso com Toriel, com
quem teve um filho e herdeiro, Asriel Dreemurr, e adotou uma criança humana, Chara.

● Asriel
Filho biológico de Asgore Dreemurr e Toriel, assim como ambos, Asriel possui a
aparência semelhante a um bode. Quando o enredo do jogo se inicia, Asriel já é falecido,
assim como Chara, uma criança humana que foi adotada por seus pais e criada a seu lado
como irmãos. Costumava ser uma criança doce e amável, e confiava muito em sua irmã
adotiva e companheira. Os dois se envolveram em uma tentativa de escapar do Subterrâneo
que culminou na morte de ambos, e após o ocorrido, Asriel foi ressuscitado em um corpo
físico sem uma Alma. Isto o torna incapaz de sentir amor ou empatia, tornando-se uma
criatura terrível. Sua nova forma física é Flowey, a Flor, um ser maldoso e cruel por ter sido
privado de sua Alma.

● As Crianças Caídas: Chara e Frisk


Durante a narrativa são apresentadas duas crianças humanas que caíram no
Subterrâneo: Chara e Frisk, que funcionam como facetas de uma personalidade e apresentam
qualidades e motivações opostas, porém complementares.

Chara: Chara é uma criança que foi até o Monte Ebott por razões desconhecidas em
algum momento entre a criação da barreira mágica e o ano de 201X, quando se passa a
história principal. Após a queda, foi adotada por Asgore Dreemurr e Toriel e criada junto a
seu filho biológico, Asriel Dreemurr.
Após se intoxicar acidentalmente com flores envenenadas, Chara convence seu irmão
adotivo a levá-la para visitar a Superfície mais uma vez. Após a morte de Chara, sua Alma é
absorvida pelo corpo de Asriel e os dois dividem o controle sobre o corpo do monstro. Com a
união das duas almas, os dois conseguem atravessar a barreira mágica. Após um conflito
entre ambos (em que Chara desejava destruir os humanos usando o poder da união dos dois,
mas Asriel relutava), os humanos acabam por matar tanto Chara quanto Asriel. A tragédia
traz desesperança ao povo do Subterrâneo e afasta definitivamente Asgore e Toriel, que
abandona o castelo para viver nas Ruínas.

38
Frisk: Frisk é o protagonista do jogo Undertale. Após cair no Subterrâneo por
acidente, embarca numa jornada para retornar à superfície. Antes dele, seis outras crianças
desceram ao mundo dos monstros e tentaram voltar, sem sucesso. Durante todo o jogo, seu
nome real é um mistério sendo que só é revelado que a personagem se chama Frisk em um
dos finais alternativos. Seu gênero também é incerto.
A personalidade do personagem principal é totalmente ambígua. Diferentemente do
protagonista de The Legend of Zelda, Link, que é por natureza um verdadeiro Herói de
essência bondosa, a construção de Frisk acontece de acordo com as ações do jogador.
Consideradas as variáveis de jogabilidade já analisadas presentes em Undertale, como
LV e EXP, as escolhas do indivíduo constroem a personalidade de Frisk - seu potencial
violento, ou não, depende totalmente de como o jogador opta por agir durante os combates.
Frisk é o único personagem capaz de salvar o progresso no jogo, por conta de seu alto
poder de Determinação.

4.4. Interação e agência do jogador na determinação de finais alternativos

No ano de 2006, o ranking de 100 Melhores Jogos de Todos os Tempos desenvolvido


pelo portal IGN elegeu em segundo lugar o título Chrono Trigger12 (1995). Lançado pela
produtora Square para o console de mesa Super Nintendo, o RPG de aventura tinha a
proposta de representar uma revolução para a plataforma e o mundo dos jogos até então.
Apreciado por apresentar uma narrativa profunda e coerente e um visual inovador para a
época, o título proporciona 14 diferentes finais para o jogador de acordo com as ações
tomadas no decorrer do jogo.
Este aspecto interativo, onde as escolhas do jogador afetam diretamente o enredo, é
um importante ponto da construção narrativa de Undertale. Assim como acontece em Chrono
Trigger e muitos outros títulos onde a multiplicidade de finais possíveis está presente, a
interação entre o jogador e o jogo impulsiona a história e proporciona ao indivíduo a
sensação de agência e papel de sujeito ativo da experiência no círculo mágico.
Joe Neeves (2016), ao tratar dos efeitos da interatividade na narração de videogames,
expõe a importância de um personagem jogável de personalidade em branco de forma que o
jogador possa projetar nele sua própria personalidade: “In order for a player to feel connected
to a playable character, they must be able to act entirely as they wish. Often, this is achieved

12
O jogo também conseguiu figurar em outras posições entre os 100 melhores em outros anos. O
ranking do ano de 2006 está disponível em <http://top100.ign.com/2006/001-010.html>.

39
through a first-person camera, and a silent or quiet protagonist.” (NEEVES, 2016, p. 11). É o
que ocorre em Undertale, onde o protagonista silencioso e quase totalmente impessoal
concede ao jogador liberdade de projetar nele suas próprias intenções e ações.
A acadêmica Janet H. Murray (2003) expõe o ambiente dos computadores (e
consequentemente o dos jogos de computador) como um meio procedimental e participativo,
espacial e enciclopédico. Estes aspectos relacionam-se diretamente com o potencial interativo
e imersivo das mídias digitais e a construção de mundos dentro destas. Sobre estas definições
e o aspecto interativo destes ambientes, Murray explica (2003):

Achamos os ambientes procedimentais atraentes não apenas porque


eles exibem comportamentos gerados a partir de regras mas
também porque podemos induzir o comportamento. Eles reagem às
informações que inserimos neles. [...] É isso que, na maioria das
vezes, se pretende afirmar quando dizemos que os computadores
são interativos. Significa que eles criam um ambiente que é tanto
procedimental quanto participativo. (2003, p.80)

Mais especificamente sobre o caso de Undertale, e a influência do papel do jogador e


da habilidade de salvar o jogo na construção do enredo e definição dos finais, F. L. Geerts
(2017) explica que diferentes fragmentos da narrativa surgem de acordo com as ações do
jogador, o que afeta inclusive a personalidade assumida pelo protagonista (p. 22).
Na prática, a definição dos finais de Undertale se dá por uma mensuração dos valores
obtidos pelo jogador para suas mecânicas de LV e EXP. Isto significa que, quanto maior o
número de inimigos derrotados (através da luta, causando dano), maior a EXP adquirida e
mais alto o LV alcançado. Sobre os finais específicos de Undertale, Geerts (2017) também
conta que as rotas possíveis não possuem nomes canônicos e explícitos no jogo em si (p.22),
mas sim recebem títulos pelos quais são conhecidas entre os fãs. Assim, de acordo com a
quantidade de oponentes destruídos, pode-se expor os finais possíveis de Undertale em três
divisões de finais principais:

● Rotas Neutras (Neutral Routes)


A Rota Neutra, que tem várias subdivisões de acordo com variáveis menores (como
quais personagens são poupados/derrotados ou não), é a rota mais comum encontrada pelos
jogadores em Undertale. Um dos finais neutros acontecerá caso os requerimentos para se
conseguir as outras Rotas não sejam preenchidos até o final do jogo. Alguns pontos comuns
são compartilhados pelas numerosas variações do final neutro: os monstros permanecem
selados no Subterrâneo enquanto o protagonista escapa de volta para a Superfície.

40
● Rota Pacifista Verdadeira (True Pacifist Route)
Considerada o “final feliz” ou o “final verdadeiro” do jogo (por ser o único final que
apresenta os créditos completos do mesmo), a Rota Pacifista exige que alguns requerimentos
sejam completados para ser alcançada. Além de não matar nenhum dos monstros que
encontrar no Subterrâneo, podendo somente derrotá-los sem violência e através do diálogo, o
jogador deve já ter terminado o jogo alguma vez através da Rota Neutra. Por fim, os
personagens principais Papyrus, Alphys e Undyne devem ser transformados em aliados. Ao
fim desta rota, a barreira mágica é destruída e o protagonista Frisk e os monstros podem
atravessar a fronteira e retornar à Superfície.
Para que esta rota tenha sucesso, o jogador não pode ter completado uma Rota
Genocida antes. Caso isto ocorra, o resultado será um final Pacifista sem Alma (Soulless
Pacifist) em decorrência dos eventos da Rota Genocida, o que altera por completo o
significado do final “feliz” da Rota Pacifista Verdadeira.

● Rota Genocida (Genocide Route)


Por fim, a brutal Rota Genocida é considerado como o “final ruim” de Undertale. Para
que ocorra, o jogador deve obrigatoriamente matar todo e qualquer monstro existente no
Subterrâneo (como já citado, cada região possui um número pré-definido de monstros
possíveis, e para alcançar este final, todos devem ser encontrados e destruídos). Qualquer
personagem, inclusive aqueles que em outras rotas podem tornar-se aliados, também devem
ser dizimados. Uma vez que a maioria dos monstros acaba morrendo e o protagonista nesta
Rota é um cruel genocida, uma boa parte da narrativa não é revelada a ele, o que deixa de
lado muitos detalhes da história real do jogo.

Considerando estas três rotas principais, é possível situar a narrativa de Undertale


dentro dos conceitos propostos por Campbell (1989) e Vogler (2006) para a estrutura do
Monomito - e também em que medida esta narrativa subverte as noções presentes no RPG
eletrônico e de ação tradicional, materializadas na figura mítica do “Herói salvador do
mundo”. Para isto, serão desconsiderados os finais da Rota Neutra, uma vez que a abertura de
possibilidades desta Rota torna difícil a observação de pontos em comum a todas as variações
de finais. Para uma melhor análise dos estágios da Jornada do Herói nas Rotas Pacifista
Verdadeira (daqui em diante tratada somente como Rota Pacifista) e na Rota Genocida, será
considerado o modelo de Vogler (2006) em 12 etapas. Recapitulando:

41
1. Os heróis são apresentados no MUNDO COMUM, onde
2. recebem um CHAMADO À AVENTURA.
3. Primeiro, ficam RELUTANTES OU RECUSAM O
CHAMADO, mas
4. num Encontro com o MENTOR são encorajados a fazer a
5. TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR e entrar no Mundo
Especial, onde
6. encontram TESTES, ALIADOS E INIMIGOS.
7. Na APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA, cruzam um
Segundo Limiar,
8. onde enfrentam a PROVAÇÃO.
9. Ganham sua RECOMPENSA e
10. são perseguidos no CAMINHO DE VOLTA ao Mundo
Comum.
11. Cruzam então o Terceiro Limiar, experimentam uma
RESSURREIÇÃO e são transformados pela experiência.
12. Chega então o momento do RETORNO COM O ELIXIR, a
bênção ou o tesouro que beneficia o Mundo Comum.
(VOGLER, 2006, p.46. Grifos do autor)

42
5. Estudo de Caso: A Narrativa de Undertale sob o modelo da Jornada do Herói

5.1. Rota Pacifista

Logo no início do jogo, é apresentado o prólogo que conta a história da Superfície e


do Subterrâneo. Conhecemos as duas raças, Humanos e Monstros, que coexistem na história,
e descobrimos sobre a Guerra que se passou entre ambas, culminando no aprisionamento dos
monstros no Subterrâneo. Também é brevemente apresentada a imagem da Primeira Criança
Caída, Chara. Esta é a apresentação do Mundo Comum, onde Monstros e Humanos vivem
separados. É onde somos apresentados a nosso Herói/Heroína, Frisk (cujo nome ainda não é
revelado), a Criança Caída, que sobe o Monte Ebott no ano de 201X.
O Chamado à Aventura ocorre precisamente quando Frisk cai no subterrâneo. A
queda, aparentemente acidental, é a responsável por apresentar a ela o desafio de retornar à
superfície. Logo em seguida a protagonista tem seu primeiro encontro com Flowey, a Flor:
uma criatura manipuladora e cruel que tenta matá-la.
Aqui acontece o primeiro ponto de atenção em relação ao modelo em 12 estágios:
Frisk é salva de Flowey por Toriel, sua Mentora, antes que a Recusa do Chamado se
manifeste. Assim, a recusa acontecerá após o Encontro com o Mentor, que se dá no momento
em que a Cuidadora das Ruínas salva a protagonista de um terrível destino.
Apesar de resgatada e protegida por Toriel, Frisk sente-se totalmente inclinada a
seguir com seu chamado. Ela é, aqui, o que Vogler apresenta como um herói voluntário
(2006), sendo que a hesitação perante seu chamado parte de outro personagem, no caso,
Toriel:

Enquanto muitos heróis manifestam medo, relutância ou recusa,


nesse estágio, outros não hesitam e não mostram nenhum medo.
São os heróis voluntários, que aceitaram, ou até procuraram, o
Chamado à Aventura. [...] No entanto, o medo e a busca
representados pela Recusa do Chamado encontrarão sua expressão
até mesmo nas histórias de heróis voluntários. Outros personagens
manifestarão medo, advertindo o herói e o público sobre o que
pode vir a acontecer no caminho futuro. (VOGLER, 2006, p.118)

A cuidadora oferece a Frisk uma vida confortável, tranquila e segura com ela em sua
casa nas Ruínas. Porém, a protagonista deve seguir sua missão de voltar para a Superfície, e
segue insistindo em deixar Toriel.

43
Muito embora Frisk esteja em um mundo mágico, diferente do ambiente onde vivia
com os humanos, as Ruínas podem ser vistas como um apêndice ao Mundo Comum, uma vez
que ainda permanece um senso de conforto e segurança para a Heroína.
O Encontro com o Mentor se iniciara no momento que Toriel salvou Frisk de Flowey,
e se estende por todo o percurso das Ruínas. Em uma espécie de guia passo-a-passo do jogo,
a sábia cuidadora orienta a protagonista pelos numerosos enigmas espalhados pelo mundo
dos monstros, apresentando-a ao sistema de combate e encorajando-a a ter compaixão com os
outros monstros que encontrar. Toriel também fornece a ela um celular, um artefato para se
manterem em contato. Aqui é onde as duas Rotas opostas se diferenciam: seguir a Rota
Pacifista pressupõe que o jogador obedeça os conselhos de Toriel, e livre-se dos
enfrentamentos com os oponentes através do diálogo e da empatia. Assim, para o restante do
enredo, assumiremos que o jogador desenvolva sem falhas a Rota Pacifista, não causando
dano a nenhum monstro, nem mesmo aos “chefões”, monstros mais poderosos.
Novamente, é neste estágio que ocorre a Recusa do Chamado, por parte de Toriel. Ao
perceber que a insistente humana não desistirá de deixar as Ruínas em busca de uma saída do
Subterrâneo, a cuidadora reafirma o perigo que Frisk correrá quando estiver longe de sua
proteção. É um aviso ao jogador: como o personagem, que materializa as ações do indivíduo,
não mostra sinais de relutância, o próprio jogo, na forma de Toriel, adverte o jogador sobre a
dificuldade em completar a jornada que se mostra à frente.
Neste momento Toriel, que até então representava o primeiro Mentor, assume a
máscara/arquétipo de Guardião de Limiar. Ela impõe à protagonista um obstáculo para seguir
na aventura, ao anunciar que selará para sempre o portão que separa as Ruínas do restante do
Subterrâneo. Frisk é obrigada então a enfrentar Toriel, a quem consegue provar sua
resistência em luta. Assim, após demonstrar sua capacidade de sobreviver sozinha e sem
causar mal algum, a Mentora permite que sua discípula abandone as Ruínas e siga sua
jornada - não sem reforçar que, depois de atravessar o portão, ela jamais poderá voltar.
Este é o momento da Travessia do Primeiro Limiar, o momento em que a aventura
verdadeiramente se inicia. Portando um celular para manter-se em contato com sua mentora e
os conhecimentos que adquiriu nas Ruínas, Frisk segue sozinha em direção ao Mundo
Especial do Subterrâneo.

44
Então se inicia o estágio de Testes, Aliados e Inimigos, que por tratar-se de um jogo
RPG de aventura é naturalmente a etapa mais longa da narrativa. Frisk atravessa as três
regiões do Subterrâneo; Snowdin, Waterfall e Hotland, e nelas conhece os personagens que
povoarão sua aventura, acompanharão sua jornada e contribuirão para a formação de seu
caráter e personalidade. Uma vez que o jogador está empenhado em seguir tendo Compaixão
de todos os monstros, não é sem desafios que Frisk segue sua aventura, uma vez que os
monstros temem a criança humana, que representa o Outro, e muitos se dedicam
verdadeiramente a matá-la. No entanto, através de sua determinação e do apoio dos aliados
que conquista durante a narrativa, a protagonista se mantém firme em seu objetivo de retornar
para a Superfície.
Ainda neste estágio de testes, Frisk conhecerá os cômicos Irmãos Esqueletos, Sans e
Papyrus. Ambos se tornarão seus Aliados. Enquanto Papyrus é um claro Pícaro com seus
momentos de Guardião de Limiar, uma vez que planeja capturar a criança humana, Sans é
uma figura coberta de mistério. Sua face brincalhona e picaresca inicial dá espaço para a
energia de um Camaleão, cujas intenções e habilidades não são completamente conhecidas.
Há ainda a intimidadora figura de Undyne, líder da Guarda Real e completamente
determinada em capturar a criança humana e levá-la a seu líder, o Rei dos Monstros Asgore
Dreemurr. Ela age aqui principalmente como um Arauto, anunciando o perigo real que está
por vir (a intenção do Rei dos Monstros em aniquilar a protagonista), além de demonstrar que
nem todos estarão dispostos a aceitá-la como seus primeiros amigos. Durante a narração,
Asgore é uma energia de Sombra, sempre à espreita através de personagens como Undyne.
Ela é também uma competente Guardiã de Limiar, perseguindo o jogador através de
Waterfall e impedindo-o de seguir a partir de certo ponto a menos que a derrote - o que só
acontece através da solidariedade e compreensão, quando Frisk lhe refresca com um copo
d’água já que a Guardiã, que tem a forma de um peixe, começa a desidratar na fronteira da
terra quente de Hotland.
Após Undyne, a protagonista conhece o Laboratório Real dos monstros e sua cientista
principal, Dra. Alphys, de forma reptiliana. Encantada pelo mundo dos humanos, ela
simpatiza desde o início com Frisk (e já acompanhava sua jornada desde Snowdin através de
câmeras). Para conquistar o apreço da protagonista, Alphys comanda que sua criação, o robô
Mettaton, pareça ser uma máquina assassina de humanos - apenas para que Alphys pudesse
salvá-la. Assim, Metatton, um pícaro dedicado e uma celebridade no mundo dos monstros,
segue o papel de Guardião de Limiar e impõe novos desafios à protagonista.

45
Após enfrentar Metatton, descobrir e perdoar as intenções de Alphys, Frisk é
informada pela cientista de que precisará da Alma do Rei Asgore para atravessar a barreira
mágica, ou seja, deverá matá-lo. É onde se inicia a Aproximação da Caverna Oculta, com a
heroína seguindo caminho em direção ao castelo do Rei dos Monstros e seu desafio final.
No percurso, é revelada a história de Asgore, Toriel, seu filho Asriel e do Primeiro
Humano Caído, através de fragmentos. Este caminho prepara o terreno para o iminente
confronto entre Frisk e o Rei, e a importância deste momento para o futuro de Humanos e
Monstros.
Quando a heroína enfim encontra Asgore, tem início a sua Provação. O Rei destrói a
opção de Compaixão do sistema de batalha, obrigando o jogador a efetivamente lutar por sua
vida, pela primeira vez. Asgore é o oponente mais forte encontrado até então, e existe o risco
de o jogador ser derrotado em algumas ocasiões antes que seja capaz de compreender os
movimentos e ataques do inimigo. Antes que o Rei seja derrotado, ele e a protagonista
conseguem reconciliar-se e compreendem que ambos não precisam lutar. Porém, quando as
perspectivas começam a se mostrar positivas para os personagens, Flowey aparece e mata
Asgore com um golpe, levando embora sua Alma.
É iniciado então um combate com Flowey, a verdadeira Sombra, que é enfim
derrotada e tem sua vida poupada por Frisk, que demonstra sua compaixão. Flowey, a grande
ameaça, desaparece.
Até este momento, a jornada pode ser considerada uma Rota Neutra de Undertale. Em
questão de narrativa, o objetivo ainda não foi alcançado - Frisk continua incapaz de voltar
para casa. Para que a Rota Pacifista seja consumada e a estrutura do Monomito se complete, a
heroína deve iniciar seu caminho de retorno, após derrotar a Sombra na sua Provação.
A Recompensa é, então, a amizade conquistada com os Monstros do Subterrâneo e a
possibilidade de voltar atrás e terminar sua aventura. O tesouro de Frisk é não só ter escapado
da crueldade de Flowey com vida, mas a chance de reverter a trágica morte de Asgore e fazer
a diferença na vida de seus novos amigos. A partir daí, a protagonista inicia seu Retorno, o
estágio do Caminho de Volta. Após explorar a história do Mundo Especial e aprofundar seus
relacionamentos de amizade, ela descobre mais sobre a origem de Flowey e o passado de
Alphys (que foi responsável pela criação da flor ao injetar a Determinação do falecido
príncipe Asriel em uma planta).

46
Durante este retorno, Vogler (2006) reforça que o Herói pode sofrer algum tipo de
perseguição e retaliação por parte das forças inimigas (p. 190). É exatamente o que ocorre a
Frisk, que quando tudo parece bem para ela e seus amigos, é novamente perseguida por
Flowey, que não fora totalmente derrotado. A protagonista recebe uma ligação anônima e é
transportada novamente para o castelo onde lutou com Asgore. Lá, encontra seus aliados, que
fazem o possível para impedir um novo combate, incentivando a heroína. Porém, a harmonia
do grupo dura pouco: Flowey surge e prende todos eles. Como Vogler explica: “O vilão
também pode roubar de volta o Elixir, ou raptar um dos amigos do herói em retaliação. Isso
pode conduzir a história a um episódio de salvação ou a uma perseguição — ou a ambos.”
(VOGLER, 2006, p. 191).
Em seu novo combate definitivo, Frisk atravessa sua Ressurreição: embora Flowey
esteja em sua forma mais poderosa, possuindo o poder de numerosas almas de monstros, a
amizade e a confiança da heroína e seus amigos é mais forte. Ela liberta seus aliados, um a
um, chegando inclusive a libertar a forma original de Flowey como o Príncipe Asriel, que se
arrepende e reconcilia com a protagonista, reconhecendo que não podia culpá-la pelo que
acontecera a ele e o Primeiro Humano. A Ressurreição de Frisk é plenamente literal: durante
esta batalha, caso sua energia chegue a zero com os danos causados por Asriel/Flowey, sua
Alma (representada pelo coração vermelho) se recusa a morrer e permanece inteira,
permitindo que a personagem siga lutando para resgatar seus aliados. Tanto a heroína, Frisk,
como seu antagonista, a Sombra Asriel/Flowey, são transformados pela experiência da
ressurreição vivida pela protagonista.
Após o momento de compreensão entre Frisk e ele, Asriel destrói completamente a
barreira mágica do Subterrâneo. A heroína agora está livre para retornar para a Superfície, e
conquistou a liberdade não só para si mas também para todo o povo dos monstros, que agora
estão livres de seu aprisionamento. O Retorno com o Elixir é a volta para casa possuindo este
novo presente, a liberdade e a amizade conquistada com os monstros. São dadas ao jogador
duas alternativas: ele pode permanecer no Subterrâneo vivendo com a protetora Toriel, ou
retornar à Superfície seguido por seus novos aliados. De qualquer forma, Frisk alcançou seu
objetivo e conseguiu voltar para casa - seja onde for.

47
Figura 4: O final feliz de Frisk e seus novos amigos.
Fonte: Toby Fox [2015]. Disponível em <http://undertale.wikia.com/wiki/True_Pacifist_Route>

5.2. Rota Genocida

O enredo de Undertale segue os mesmos estágios da Rota Pacifista na apresentação


do Mundo Comum (o mundo de humanos e monstros de Frisk, a criança caída) e do Chamado
da Aventura (a queda de Frisk no Subterrâneo). Porém, cabe uma atenção especial ao prólogo
da história, onde é citada brevemente a queda do Primeiro Humano Caído, a quem
conheceremos como Chara, que fora criada como filha pelos reis Asgore e Toriel. Embora a
Rota Pacifista forneça mais material de narrativa, a rota Genocida expõe em mais detalhes a
trágica história de Chara e Asriel, e impõe seus efeitos sobre a experiência do jogador.
Como para completar a Rota Genocida é necessário matar todo e qualquer monstro
existente no Subterrâneo, consideramos que o jogador preenche este requisito ao lutar e
vencer em todos os seus confrontos, além de perseguir todos os oponentes que povoam o
mundo dos monstros. Aqui Undertale mostra que, embora cruel e imoral, esta rota é
inovadora em relação às narrativas de RPG tradicionais: seu protagonista não é um herói
disposto ao sacrifício, mas sim um matador implacável.
Neste ponto é possível observar uma primeira divergência em relação à Rota
Pacifista: é muito claro que o objetivo do “herói” (este será o termo utilizado para o
protagonista, embora nesta Rota ele não represente este arquétipo, e sim o papel de Sombra,
enquanto atravessa os estágios de sua Jornada do Herói) não é o retorno para casa, e sim a
destruição de todos os monstros habitantes do Subterrâneo.

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Considerando isto, a Recusa do Chamado se dá quando Toriel insiste para que Frisk
fique nas Ruínas a seu lado, assim como faz na Rota Pacifista. Porém, enquanto na Rota
Pacifista Toriel é a agente da Recusa do Chamado por impedir Frisk de explorar o
Subterrâneo, aqui ela o faz por impedir que Frisk siga para matar todos os monstros - embora
o faça inconscientemente, sem conhecer a essência cruel e assassina que é construída pelo
jogador na protagonista através de suas ações.
Embora Toriel tente desempenhar o mesmo papel de Mentor que presta a Frisk na
Rota Pacifista, quem realmente representa o Encontro com o Mentor da protagonista aqui é
Chara. A primeira criança humana aos poucos começa a possuir o corpo de Frisk, guiando-a
com um ímpeto assassino. Flowey, que nesta Rota aparenta simpatizar com a maldade da
personagem, também faz o papel de Mentor em algumas situações.
A Travessia do Primeiro Limiar é o momento em que Frisk mata Toriel quando esta
tenta selar o portão das Ruínas. Com sua morte, Frisk está livre para espalhar destruição no
mundo dos monstros e incapaz de completar uma Rota Pacifista novamente.
O estágio de Testes, Aliados e Inimigos não apresenta aqui as mesmas possibilidades
de relacionamentos e conexões com aliados que existem na Rota Pacifista. Assustados pela
ameaça de Frisk, os monstros estão evacuando as três regiões do subterrâneo e os poucos que
restam são incapazes de escapar da fúria assassina da protagonista. Assim, esta etapa poderia
quase ser chamada de “Testes e Inimigos”, uma vez que consiste apenas em Frisk seguindo
em seu objetivo de dizimar todos os monstros e derrotando seus oponentes, muitos inocentes.
A Aproximação da Caverna Oculta ocorre à medida que Frisk, possuída por Chara,
alcança a casa de Asgore. Diversos sinais nos diálogos (como mudança de cores nas falas e
mesmo o estilo de narração) dão pistas de que Chara está controlando a protagonista. Assim,
o enredo começa a anunciar e preparar o caminho para o embate definitivo e inevitável: o
confronto entre Chara e Frisk pelo domínio do corpo físico da criança humana.
O estágio da Provação se dá por ação de Sans. O esqueleto, um pícaro e fiel aliado na
Rota Pacifista apesar de sua aura misteriosa, nesta Rota é um Guardião de Limiar implacável
e poderoso. Sans avalia as ações da protagonista até então e constata que, por seus altos EXP
e LV (Poder de Execução e Nível de Violência), deve ser punida pelo mal que causou aos
monstros. Este é o grande embate da Rota Genocida, a primeira batalha realmente difícil e
arriscada para Frisk. Ao sobreviver à luta com o esqueleto, a personagem conquista sua
Recompensa, ao alcançar o maior LV possível e o status de assassina invicta.

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O Caminho de Volta ao Mundo Comum é, de fato, o início do retorno de Chara ao
mundo. Frisk encontra Asgore e o confronta, derrotando-o em um só golpe com o apoio de
Flowey, que age como um aliado. Porém, a flor em seguida implora à protagonista que não o
mate, mas ele é apenas um obstáculo em direção aos objetivos da dupla Frisk e Chara, e
também é assassinado.
Neste ponto é explicitada a perseguição de Chara no Caminho de Volta. A
personagem enfim surge em sua forma individual, manifestando-se diretamente ao jogador.
Chara explica que o que a trouxe de volta ao mundo foi a determinação e o empenho de Frisk
em seu objetivo. Ela então oferece ao jogador duas alternativas: apagar o mundo do jogo para
que ela e Frisk possam ir a outro lugar espalhando destruição, ou não fazê-lo.
Qualquer uma que seja a opção escolhida pelo jogador, o resultado é o mesmo: caso
ele concorde em destruir o universo e juntar-se a Chara, a própria interface gráfica do jogo
sofre falhas e parece ser destruída. Caso ele negue, Chara reforça que o jogador nunca esteve
realmente no controle de Frisk, e o universo de Undertale é destruído da mesma maneira.
Assim, o jogo é fechado.
Para prosseguir a narrativa, o jogador deve reabrir o jogo. Uma vez que o “mundo” do
mesmo foi destruído, será exibida somente uma tela preta com sons e onde nada ocorre. Caso
aguarde por 10 minutos, Chara aparecerá, oferecendo ao jogador uma chance.
Eis o momento da Ressurreição: quando o mundo parecia perdido, a oferta de Chara
permite que o jogador, através de Frisk, retorne ao jogo. Porém, ele foi transformado pela
experiência, uma vez que suas ações terão consequências permanentes. Para aceitar a oferta,
o jogador deve concordar em ceder a Chara sua Alma, o que transformará suas experiências
futuras de jogo para sempre - ao menos até que uma limpeza completa nos arquivos de
registro do jogo seja realizada. O jogador vivencia seu Retorno com o Elixir: ele retorna ao
mundo que Chara trouxe de volta, portando a chance de começar tudo novamente.
Na prática, porém, o que acontece é que este início não é tão limpo quanto parece. As
ações do “herói” na Rota Genocida possuem consequências, e, uma vez que cedeu sua alma,
todas as Rotas realizadas em seguida terão alguns aspectos da narrativa alterada. O jogo dá
pistas de que a maléfica Chara assumiu o controle do corpo de Frisk, e mesmo caso uma Rota
Pacifista seja completada, é sugerido que a amizade construída entre a personagem e seus
aliados é falsa, e ela continua firme em seu objetivo de destruir os monstros do Subterrâneo.

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6. Considerações Finais

Em seu prefácio à segunda edição de A Jornada do Escritor, Christopher Vogler


(2006) explicita o dilema de se adaptar seu modelo monomítico às narrativas interativas. “A
interatividade sempre esteve entre nós — todos fazemos várias associações de hipertextos
não-lineares em nossas mentes, mesmo quando ouvimos uma história linear.” (p. 21). Como
uma narrativa interativa de caráter participativo onde o jogador tem um importante papel na
construção do enredo, Undertale retorna a esta questão, e o presente estudo alcançou
resultados satisfatórios em relação às conexões entre a trama do jogo e as estruturas do
monomito. Os aspectos próprios à mídia dos videogames não constituíram, assim, um
empecilho à dissecação do enredo com a Jornada do Herói como modelo de análise.
Conforme continua Vogler (2006):

Na verdade, a Jornada do Herói se presta muito bem ao mundo dos


jogos de computador e experiências interativas. As milhares de
variações sobre o paradigma, elaborado através dos séculos,
oferecem infinitas ramificações a partir das quais infindáveis redes
de histórias podem ser construídas. (2006, p.21)

Em suma, é possível concluir que a trama de Undertale não somente apresenta, à sua
maneira, os estágios da estrutura proposta por Campbell (1989) e Vogler (2006) para o
monomito, como também subverte conceitos comuns às narrativas de RPG tradicionais. Fica
claro que, em suas duas Rotas de ação aqui analisadas, o roteiro do jogo apresenta pontos de
atenção que divergem da maioria das narrativas de títulos de videogame semelhantes.
Embora as reviravoltas e a não-linearidade de estágios na Rota Pacifista representem uma
diferenciação, muito mais expressiva é a divergência do roteiro na Rota Genocida, onde o
“Herói” parte em uma jornada de crueldade e assassinato.
Ao apresentar a experiência de um protagonista moralmente devastado como o sujeito
da Jornada do Herói, o enredo de Undertale propõe que o observador abstenha-se de juízos de
valor em relação aos escrúpulos de seu personagem principal. Embora o jogador possa optar
pelo “final feliz” ao completar uma Rota Pacifista, ambos os finais são possíveis e reais -
tudo dependerá de suas ações.

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O conceito de círculo mágico do jogo proposto por Johan Huizinga (1949) também
tem grande importância neste ponto, uma vez que explicita o ambiente subjetivo onde o jogo
toma lugar como um cenário em que as leis do mundo real não possuem valor. O jogador que
decide seguir a Rota Genocida e causar a destruição no Mundo Subterrâneo no jogo não é,
necessariamente, um assassino no mundo real: suas ações no jogo não possuem
consequências em seu mundo externo como indivíduo.
Em relação à jornada, porém, as consequências são inevitáveis. Uma parte relevante
do conceito de ritos de passagem e amadurecimento de Campbell (1989) expõe a importância
da compreensão de que a Jornada transforma a todos e implica um aprendizado por parte do
sujeito. Mastrocola (2012) também retorna a isto ao falar do Círculo Mágico, esclarecendo
que elementos da experiência lúdica são transferidos ao cotidiano externo do indivíduo.
As quebras de quarta parede e a discussão da dicotomia moral entre as rotas Pacifista
e Genocida explicitam no jogador um dilema e implica aos observadores uma atitude
reflexiva. A narrativa de Undertale não só se constrói ao redor do senso comum do
Monomito, podendo ser analisada à luz das teorias sobre o mesmo, mas também explora suas
próprias possibilidades, na medida em que propõe uma ponderação sobre os ramos possíveis
na construção de uma história através das ações do jogador.

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REFERÊNCIAS

Livros, artigos e teses

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XV SBGames – São Paulo, SP – 8 a 10 de Setembro de 2016. Disponível em
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Save Mechanic. Tese de Mestrado. Universidade de Utrecht. 2017. Documento PDF.
Disponível em <https://dspace.library.uu.nl/handle/1874/351188>. Acesso em 07/06/2018.

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MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: O futuro da narrativa no ciberespaço.


Tradução de Elissa Khoury Daher e Marcelo Fernandez Cuzziol. São Paulo: Editora Unesp,
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Videogames

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Nintendo. The Legend of Zelda. 1986.


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________. The Legend of Zelda: Twilight Princess. 2006.
________. The Legend of Zelda: Skyward Sword. 2011.
________. The Legend of Zelda: Breath of the Wild. 2017.

Square Co. Chrono Trigger. 1995.

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ÍNDICE DE IMAGENS

Figura 1: diagrama de metas e atos da Jornada do Herói…………………………………....18


Figura 2: Link retira a lendária Master Sword, sua Recompensa, de seu pedestal, no título
The Legend of Zelda: Breath of the Wild……………………...…………………………….30
Figura 3: Tela inicial de batalha em Undertale……………………………………………...32
Figura 4: O final feliz de Frisk e seus novos amigos………………………………………..48

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