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MANUAL DE ABORDAGEM DE

DEPENDÊNCIAS QUÍMICAS

Organização: Frederico Duarte Garcia

Assisitência editorial: Alessandra Assumpção

Revisão: Natália Figueiredo

Imagem da capa: Thi Rohrmann, Pedra, 70x50cm, 2013

Design editorial: Fernanda Moraes e José Arnaldo Mendes | UTOPIKA EDITORIAL

Garcia, Frederico Duarte (Organizador)


Manual de abordagem de dependências químicas / Frederico
Duarte Garcia.
Belo Horizonte. Utopika Editorial, 2014.

384p.
ISBN 9788567783000

CDU 610

Endereço para contato:


Centro Regional de Referência em Drogas da UFMG – CRR-UFMG
Avenida Professor Alfredo Balena, 190/ Sala 235
CEP 30130-100 – Belo Horizonte – MG – Brasil
Telefone (31)3409-9785/3409-9786
E-mail: crrdrogas.ufmg@gmail.com / sam@medicina.ufmg.br
SUMÁRIO

Sobre os autores
p.7

Prefácio
p.15

Parte I. Conceitualização, epidemiologia e legislação

Capítulo 1. Conceito de drogas e seus padrões de uso


Frederico Garcia | Nina Ramalho Alkmin
p.19

Capítulo 2. Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo


Frederico Garcia | Lucas Barroso
p.33

Capítulo 3. Bases para uma política pública sobre álcool,


tabaco e outras drogas baseada em evidências
Valdir Ribeiro Campos
p.47

Capítulo 4. Políticas públicas e a assistência integral


do paciente com dependência química
Daniela Conceição dos Santos
p.59

Capítulo 5. Aspectos do Estatuto da Criança e do Adolescente e o uso de drogas


Renato César Cardoso | Luiz Filipe Araújo
p.67

Capítulo 6. O papel conselho tutelar na abordagem da


criança e adolescente usuários de drogas
Renato César Cardoso | Luiz Filipe Araújo
p.77
Parte II. Aspectos clínicos dos transtornos do uso de drogas

Capítulo 7. Efeitos somáticos e alterações clínicas do álcool, tabaco e da maconha


Luciana Diniz Silva | Tatiana Bering | Marta Paula Pereira Coelho
Tamyres Tania Martins Marques | Naiara Cristina de Oliveira Souza
p.91

Capítulo 8. Alterações clínicas características do uso de crack


Luciana Diniz Silva | Kiara Gonçalves Dias Diniz | Daniel Gonçalves Dias Diniz
Lucas de Freitas Virgílio
p.109

Capítulo 9. Adolescência: desenvolvimento normal e associada ao uso de drogas


Maila de Castro L. Neves | Marina de Souza Maciel
p.121

Parte III. Abordagem farmacológica dos transtornos do uso de drogas

Capítulo 10. Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de álcool


Valdir Ribeiro Campos
p.135

Capítulo 11. Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack


Thiago Gatti Pianca | Diego Barreto Rebouças | Guilherme Luis Menegon
Felix Henrique Paim Kessler
p.151

Capítulo 12. Terapias farmacológicas para os transtornos do uso da maconha


Silas de Oliveira Tavares
p.179

Capítulo 13. Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de tabaco


Rodolfo Braga Ladeira | Patrícia Maria da Silva Roggi
p.201
Parte IV. Atenção integral e abordagem psicossocial
dos transtornos de substância

Capítulo 14. Abordagem integral do paciente com dependência química:


em vista da construção de um modelo clínico
Frederico Garcia
p.217

Capítulo 15. A hospitalização do paciente com dependência química:


critérios clínicos e modalidades de internação para a alta de usuários de drogas:
internação voluntária, involuntária e compulsória
Frederico Garcia
p.235

Capítulo 16. Aconselhamento motivacional em usuários de drogas:


conceito, princípios, estratégias e aplicações
Lívia Pires Guimarães | Neliana Buzi Figlie
p.247

Capítulo 17. Terapia cognitivo comportamental na abordagem do


transtornos de uso de tabaco
Patrícia Maria da Silva Roggi | Maíra Ferreira Nogueira da Gama
Raika Lidiane Marques Rodrigues | Isadora Oliveira Wittickind
Fernando Silva Neves | Frederico Garcia
p.255

Capítulo 18. Abordagem terapêutica dos familiares do usuário de drogas


Ana Paula Ribeiro | Orestes Diniz | Fernanda Toledo
p.269

Capítulo 19. Avaliação neuropsicológica do usuário de drogas


Frederico Garcia | Alessandra Assumpção | Ana Paula Ribeiro Lafaiete Moreira
p.279

Capítulo 20. A inserção do enfermeiro na abordagem do dependente químico


Amanda Márcia dos Santos Reinaldo
p.295
Capítulo 21. Avaliação das condições sociais do usuário de drogas:
limitações, potencialidades, interesses e expectativas
em relação à sua reinserção social
Moisés de Andrade Júnior
p.307

Capítulo 22. Reinserção social em usuários de drogas:


conceitos, princípios, estratégias e aplicações
Alessandra F. A. Assumpção | Ana Cecília Alves Cardoso | Monaliza Ângela Rocha
Sâmara Araceli Faria Araújo | Frederico Garcia
p.325

Capítulo 23. Gerenciamento de casos em usuários de drogas:


conceitos, princípios, estratégias e aplicações
Alessandra F. Almeida Assumpção | Maíra Glória de Freitas Cardoso
André Augusto Corrêa de Freitas | Frederico Garcia
p.337

Capítulo 24. Redução de danos no Brasil: desafios e perspectivas


Lívia Guimarães Pires | Moisés de Andrade Júnior
p.349

Capítulo 25. Rede de Atenção ao dependente químico:


dispositivos de saúde e de assistência social
Alessandra F. Almeida Assumpção | Nina Alkmim | Lucas Barroso
Marinna Garcia Barbosa de Figueiredo | Amanda Machado | Frederico Garcia
p.363
Sobre o Organizador:
Frederico Garcia é professor adjunto do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de
Medicina da UFMG. Tem doutorado em Biologia Celular e Molecular obtido na Université de
Rouen, na França e pós-doutorado na mesma instituição. Durante sua estada na França foi
Chefe de Clínica na Universidade de Rouen e no Centro Hospitalar Universitário de Rouen.
Obteve o título de especialista em psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria após
concluir sua residência no Hospital das Clínicas da UFMG. Obteve o Attestation de Formation
Spécialisée da Universidade de Strasburgo. Recebeu o prêmio de pesquisa da World Federa-
tion of Societies of Biological Psychiatry em 2013.

Sobre os autores:
Alessandra F. Almeida Assumpção: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em
Medicina Molecular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Psico-
logia pela UFMG (2012) e graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Espírito
Santo (2005). É preceptora em Neuropsicologia Clínica no Ambulatório de Dependências
Químicas e comportamentais do Hospital das Clínicas/UFMG e integrante do Centro Regional
de Referência em Drogas da UFMG.

Amanda Machado: Graduanda em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais.


Aluna de iniciação científica do Centro Regional de Referência em Drogas da UFMG.

Amanda Márcia dos Santos Reinaldo: Doutora em Enfermagem Psiquiátrica. Espe-


cialista em Pesquisa para Estudo do Fenômeno das Drogas na América Latina- CICAD/OEA.
Docente da Escola de Enfermagem da UFMG. Coordenadora do CRR/UFMG/ Escola de En-
fermagem. Líder do Grupo de Pesquisa Saúde Mental Álcool e outras Drogas- Diretório de
Grupos do CNPq.

Ana Cecília Alves Cardoso: Graduanda em Medicina pela Universidade Federal de Minas Ge-
rais. Possui experiência nas áreas de neurociências e psiquiatria, atuando principalmente nos
seguintes temas: cognição, esquizofrenia, neuropsicologia e dependência química.

Ana Paula Ribeiro: Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012). Espe-
cialista em Neuropsicologia pela Faculdade de Medicina de Minas Gerais (2013). Integrante
do Centro Regional de Referência em drogas (CRR - UFMG).

André Augusto Corrêa de Freitas: Graduando do curso Medicina pela Universidade


Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Psiquiatria, com ênfase nos seguintes
temas: esquizofrenia, cognição, qualidade de vida, dependência química.

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Daniel Gonçalves Dias Diniz: Graduando do curso Medicina pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Aluno de Iniciação Científica do Ambulatório de Hepatites Virais do Instituto
Alfa - HC - UFMG. Monitor do curso a distância de Eletrocardiografia - CETES - UFMG.

Daniela Conceição dos Santos: Advogada, coordenadora do Centro POP, professora


de Legislação Aplicada e Participante da Equipe Técnica de Elaboração do Projeto Crack é
Possível Vencer do Município de Contagem e Colaboradora do CRR.

Diego Barreto Rebouças: médico psiquiatra

Felix Henrique Paim Kessler: Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (2005). Especialista em Psiquiatria da Infância e Adolescência pela
UFRGS (2011), atuando principalmente nos seguintes temas: genes candidatos, transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade, dependência química e crianças e adolescentes. Mé-
dico Contratado do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, atua no Serviço de Psiquiatria da
Infância e Adolescência, atendendo crianças e adolescentes com problemas relacionados
ao uso de substâncias psicoativas na Unidade Álvaro Alvim.

Fernanda Toledo: Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.


Estagiária em projeto de extensão do CRR no Hospital das Clínicas (2013) - UFMG.

Fernando Silva Neves: Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal de


Minas Gerais (1997), residência em psiquiatria pelo IPSEMG, mestrado em Biologia Celular
pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006) e doutorado em Biologia Celular pela Uni-
versidade Federal de Minas Gerais (2008). Atualmente é professor adjunto do departamento
de saúde mental da faculdade de medicina da UFMG, coordenador do serviço de psiquiatria
do Hospital das clínicas da UFMG, coordenador do NTA (Núcleo de transtornos afetivos do
HC/UFMG) e orientador permanente do programa de pós-graduação em neurociências da
UFMG.

Guilherme Luis Menegon: Médico psiquiatra

Isadora Oliveira Wittickind: acadêmica de psicologia. Bolsista da PROEX.

Kiara Gonçalves Dias Diniz: Nutricionista pela Fundação Universidade de Itaúna


(2011). Mestranda em Ciências Aplicadas à Saúde do Adulto, área de concentração em
Ciências Aplicadas ao Aparelho Digestivo, pela Faculdade de Medicina da UFMG. Atualmente
participa do Grupo de Pesquisa em Hepatites Virais Crônicas do Instituto Alfa de Gastroen-

8
terologia do Hospital das Clínicas da UFMG, do Grupo de Pesquisa em Transplante Hepático
do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da UFMG e do Grupo de Pes-
quisas do Ambulatório de Dependência Química da Faculdade de Medicina - UFMG.

Lafaiete Moreira: Psicólogo pela Universidade Federal de Minas Geriais (2010). Mestre
pelo Programa de Pós Graduação em Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da UFMG
(2013). Colaborador do Laboratório de Investigações Neuropsicológicas do Instituto Nacional
de Ciências e Tecnologia em Medicina Molecular da UFMG. Neuropsicólogo do Instituto
Jenny de Andrade Faria de Atenção à Saúde do Idoso. Desenvolve trabalhos nas áreas de
Neuropsicologia do envelhecimento, Sintomas Comportamentais e Psicológicos das Demên-
cias e Neuropsicologia das Dependências Químicas.

Lívia Pires Guimarães: Psicóloga pela FUMEC, Especialista em Criminologia pela PUC-
MINAS / ACADEPOL, Especialista em Gestão Pública em Organizações de Saúde pela UFJF,
Especialista em Dependência Química pela UNIFESP, Mestre em Educação, Cultura e Orga-
nizações Sociais pela UEMG / FUNEDI.

Lucas Barroso: Graduando em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais


(UFMG). Aluno bolsista de iniciação científica pela PRPq/Bolsa para Doutores Recém-Con-
tratados, na área de psiquiatria, com ênfase em dependência química e comportamento ani-
mal.

Lucas de Freitas Virgílio: Graduando do curso Medicina pela Universidade Federal de


Minas Gerais. Participa de pesquisas nos seguintes temas: esquizofrenia, qualidade de vida,
cognição e hepatites virais.

Luciana Diniz: Professora Adjunta do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de


Medicina da UFMG. Médica Assistente do Ambulatório de Hepatites Virais do Instituto Alfa
- HC – UFMG. Membro do Grupo de pesquisas do Ambulatório de Dependência Química da
Faculdade de Medicina - UFMG.

Luiz Filipe Araújo: Professor Assistente de Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito
e Prática Jurídica da Universidade Federal de Viçosa. Coordenador do Curso de Direito na
mesma Universidade. Doutorando em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais (2013). Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2012). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Viçosa
(2008).

Maila de Castro L. Neves: Possui graduação em Medicina pela Faculdade de Medicina


da Universidade Federal de Minas Gerais (2003), Residência Médica em Psiquiatria pela Fun-

9
dação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (2004), Residência Médica em Psicoterapia
pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (2006), Mestrado em Ciências Bioló-
gicas: Farmacologia Bioquimica e Molecular pela UFMG (2006), Doutorado em Ciências da
Saúde: Medicina Molecular (2008). É professora Adjunta de Psiquiatria da Faculdade de
Medicina da UFMG. Atualmente é membro da diretoria da Associaçao Mineira de Psiquiatria
na Comissão de Educação Continuada. Tem experiência nas áreas de Psiquiatria, Intercon-
sulta Psiquiátrica, Genética Molecular e Neuroimagem, atuando principalmente nos seguintes
temas: cognição social, neuroimagem e comportamento suicida.
Maíra Ferreira Nogueira da Gama: Psicóloga Clínica formada pela UFMG. Colaboradora
do CRR/UFMG.
Maíra Glória de Freitas Cardoso: Possui graduação em Psicologia pela Universidade
Federal de Minas Gerais (2012). Atualmente é psicóloga (unidade AVE) do HOSPITAL DAS
CLÍINICAS e pesquisadora voluntária - Laboratório de Investigações em Neurociência
Clínica da UFMG. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Neuropsicologia

Marina de Souza Maciel: Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas


Gerais.

Marinna Garcia Barbosa de Figueiredo: Graduanda em Psicologia pela Universidade Fe-


deral de Minas Gerais.

Marta Paula Pereira Coelho: Nutricionista pelo Centro Universitário Newton Paiva.
Atualmente realizandoatendimento nutricional em consultório particular e atendimento nu-
tricional voluntário no Ambulatório de Dependência Química da Faculdade de Medicina –
UFMG e Ambulatório de Hepatites Virais– UFMG.

Moisés de Andrade Júnior: Possui graduação em Psicologia pela UFMG (2005), mes-
trado em Psicologia pela UFMG (2008) e é doutorando em Psicologia pela mesma universi-
dade. Possui especialização em Dependência Química pela UNIFESP (2013)

Monaliza Ângela Rocha: Possui o título de técnica em Química (COLTEC/UFMG - 2001)


e graduação em Ciências Biológicas Licenciatura Noturno (UFMG - 2010). Atualmente é bol-
sista de apoio técnico de nível superior no INCT de Medicina Molecular da UFMG. Cursa o
quarto período do curso de Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais, atuando prin-
cipalmente nos seguintes temas: dependência química, artrite reumatóide, transplante car-
díaco, angiogênese e inflamação.

Naiara Cristina de Oliveira Souza: Graduanda da Faculdade de medicina da UFMG.


Monitora bolsista da disciplina Epidemiologia.

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Neliana Buzi Figlie: Psicóloga pela Universidade São Marcos, Especialista em Depen-
dência Química, Mestre em Saúde Mental e Doutora em Ciências pela UNIFESP. Professora
e Pesquisadora Sênior na UNIAD/INPAD, Orientadora no Curso de Pós-Graduação em Psi-
quiatria na UNIFESP.

Nina Alkmin: Graduanda em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade Ferderal


de Minas Gerais. Aluna bolsista pela FAPEMIG de iniciação científica. Experiência na área
de psiquiatria, com ênfase no tema dependência química.

Orestes Diniz: Psicólogo Clínico, Doutor em Psicologia Clinica (PUC-Rio), Mestre em Psi-
cologia Social (UFMG), Especialista em Terapia de Família Professor Adjunto IV (UFMG).

Patrícia Maria da Silva Roggi: Psicóloga do Ambulatório de Dependência Química do


Hospital das Clinicas da UFMG. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Neurociências
da UFMG.

Raika Lidiane Marques Rodrigues: Graduanda de Psicologia da UFMG.

Renato Cardoso: Professor Adjunto, em dedicação exclusiva, na Faculdade de Direito da


Universidade Federal de Minas Gerais, nos cursos de Direito, de Ciências do Estado e no
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor
em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008) e Mestre em Filo-
sofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2004). Bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais (2001), Bacharel em Relações Internacionais pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2001).

Rodolfo Braga Ladeira: Médico Psiquiatra do Serviço Médico de Urgência do IPSEMG.


Especialista em Dependência Química pelo Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Mestre
pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Pesquisador Colabora-
dor do Laboratório de Neurociências (LIM-27), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas da FMUSP.

Sâmara Araceli Faria de Araújo: Graduação em Medicina pela Universidade Federal


de Minas Gerais. Tem experiência na área de Psiquiatria, com ênfase em Dependências Quí-
micas.

Silas de Oliveira Tavares: Médico psiquiatra. Preceptor do ambulatório de Dependên-


cias Químicas do HC/UFMG.

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Tamyres Tania Martins Marques: Graduanda do curso Medicina pela Universidade
Federal de Minas Gerais.

Tatiana Bering: Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Ciências Aplicadas à Saúde


do Adulto desenvolvendo o projeto no Ambulatório de Hepatites Virais HC- UFMG. Atual-
mente é Professora Temporária no curso de Nutrição da Universidade Federal de Viçosa .Nu-
tricionista Mestre em Ciência de Alimentos pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2012), graduação pela Universidade Federal de Viçosa (2010).

Thiago Gatti Pianca: Psiquiatra, especialista em psiquiatria da infância e adolescência


pela UFRGS. Médico Contratado do Hospital de Clinicas de Porto Alegre. Doutorando no
Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria da UFRGS.

Valdir Ribeiro Campos: Médico Psiquiatra, especialista em Dependência Química pela


Unidade de Pesquisa em Álcool e Outras Drogas/ Instituto Nacional de Políticas Públicas do
Álcool e Outras Drogas- UNIAD/INPAD e Doutor pelo Departamento de Psiquiatria e Psico-
logia Médica da Universidade Federal de São Paulo- UNIFESP. Membro da Comissão de Con-
trole do Tabagismo, Alcoolismo e uso de Outras Drogas da Associação Médica de Minas
Gerais- CONTAD/AMMG.

12
PREFÁCIO

Frederico Garcia

É com grande satisfação que apresento o Manual de Abordagem


de Dependências Químicas. Este livro é fruto do trabalho coletivo de todos
os tutores e colaboradores dos cursos de formação do Centro Regional de
Referência em Drogas da UFMG no ano de 2013. Ele compõe uma das ativi-
dades de perenização do conhecimento do Projeto de Implantação do
CRR/UFMG e esperamos que ele seja útil na multiplicação do conhecimento
sobre este tema.

Partimos de uma visão bio-psico-social da questão do uso de dro-


gas. Esta visão demanda uma abordagem multidisciplinar, que leve em
conta os aspectos multifatoriais do tema. É por isto que o livro aborda
apectos clínicos, psicoterapêuticos, sociais e legislativos.

Cada um dos capítulos deste livro corresponde a um ou mais


temas abordados em sala de aula e foram redigidos para serem o mais
abrangente e didáticos possível. Esperando que este manual seja lido por
profissionais de áreas diferentes (saúde, assistência social, educação,
defesa civil, jus-tiça...) optamos, muitas vezes, por simplificar a linguagem e
alguns conceitos para torná-los mais acessíveis. Nos pontos, ou termos,
que nos pareceram pouco claros inserimos pequenos balões na lateral das
bordas para que nossos leitores possam se referenciar. Outras informações
sobre os temas poderão ser obtidas no site do CRR/UFMG
(crr.medicina.ufmg.br).

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Espero que este livro possa servir como referência para todos os
profissionais envolvidos na abordagem do usuário de drogas e seus
familiares.

Gostaria de agradecer a todos os autores e colaboradores que


participaram e acreditaram neste projeto. Agradeço também a toda a
equipe do Centro Regional de Referência em Drogas da UFMG (CRR-UFMG)
que pelo excelente trabalho que desenve tornou possível não apenas a pu-
blicação deste livro, mas, também os projetos que propusemos no ano de
2013. Agradeço a Secretaria Nacional de Politica sobre Drogas – SENAD,
nosso financiador e fomentador de projetos inovadores nesta área. Ao Pro-
fessor Humberto Correa, meu muito obrigado por ter sempre incentivado e
apoiado projetos científicos e de extensão no Departamento de Saúde
Mental e na Faculdade de Medicina. Devo ainda um agradecimento
particular a Alessandra Assumpção que ajudou com toda a logística, na
construção e formatação deste livro.

Boa leitura!

16
1o

1
PARTE 1
Conceitualização, epidemiologia
e legislação
Capítulo 1

Conceito de drogas e seus padrões de uso


Frederico Garcia
Nina Ramalho Alkmin
Conceito de drogas

Droga é definida, segundo a Organização Droga: substância não pro-


duzida pelo organismo que tem
Mundial de Saúde, como qualquer substância não propriedades de atuar sobre
produzida pelo organismo que tem propriedades de um ou mais de seus sistemas,
causando alterações em seu
atuar sobre um ou mais de seus sistemas, causando funcionamento.

alterações em seu funcionamento. Algumas dessas


substâncias produzem ações benéficas ao organismo e
são usadas como medicamentos no tratamento de
doenças e outras substâncias, produzem efeitos nocivos,
tóxicos ou venenosos causando malefícios a saúde.

As drogas psicoativas

As drogas que interferem no psiquismo são


chamadas psicotrópicas ou psicofármacos. Estas
substância psicoativas são basicamente de três tipos: 1.
Inibidoras, como os anestésicos, analgésicos opióides,
ansiolíticos, benzodiazepínicos e antipsicóticos; 2.
Ativadoras do psiquismo, que agem aumentando a
vigília e reduzindo o apetite o sono e a fadiga, como a
cafeína, cocaína e anfetaminas e ainda os antidepressivos
que normalizam o humor sem elevar a vigília; 3.
Pertubadoras do psiquismo, atuam causando delírios,
alucinações e outras distorções perceptivas, dentre elas
temos o LSD, os chás e a psilocibina. (Tabela 1)
Manual de abordagem de dependências químicas

Alguns psicofármacos depressores e estimulantes são


utilizados como drogas de abuso e podem causar dependência
química: anfetaminas, cocaína, nicotina, álcool, benzodizepínicos e
solventes inorgânicos.

Tabela 1
Tipos de drogas segundo a classificação de efeito no
sistema nervoso central. Descrição do efeito de cada grupo
Inibidoras Ativadoras Alucinógenas
(Psicolépticas) (Psicoanalépticas) (Psicodislepticas)
Álcool Cocaína/Crack LSD

Benzodiazepínicos Cafeína Cogumelos

Maconha Tabaco Ecstasy

Barbitúricos Anfetaminas Maconha


Solventes ou GHB Chá-Santo-Daime
Inalantes
Quetamina Modafinila Chá-de-Lírio

Opióides Chá-de-Trombeta

Cactos
Causam diminuição global da São as drogas que causam As drogas perturbadoras
atividade do SNC. Há uma um aumento da atividade causam fenômenos
tendência à redução da cerebral, sobretudo em psíquicos anormais como
atividade motora, da certos grupos de neurônios. os delírios e as alucinações.
reatividade à dor e da As drogas estimulantes
ansiedade. É comum um induzem um estado de
alerta exagerado, causando
efeito euforizante no início
diminuição do sono e do
do uso e posteriormente apetite, sensação de energia
de sonolência e menor fadiga; Uma
aceleração do pensamento
e da fala; taquicardia,
aceleração do pulso e
aumento da pressão arterial

20
Conceito de drogas e seus padrões de uso

Os efeitos descritos acima resultam da ação das drogas


psicotrópicas sob o sistema de gratificação e recompensa do
cérebro. O uso repetido da droga causa a fixação de memórias de
longo prazo que podem levar a aparição da fissura e diminuem o
potencial inibitório do cérebro, causando a perda do controle do
uso da droga.

Drogas lícitas e ilícitas

Segundo a lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Brasil,


2006), em seu artigo 1o, “consideram-se como drogas as substâncias
ou os produtos capazes de causar dependência, assim como espe-
cificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodica-
mente pelo Poder Executivo da União”. O paragrafo 2o dessa lei
determina que “Ficam proibidas, em todo o território nacional, as
drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de
vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas
drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar,
bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações
Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de
plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.”
Drogas lícitas são aquelas que podem ser comer- Droga lícita: substância que
causa efeitos psicoativos que
cializadas de forma legal, podendo ser submetidas a algum podem ser comercializada de
forma legal, podendo ser sub-
tipo de restrição ao uso. Exemplos de restrição ao uso são: metida a algum tipo de re-
o álcool e o tabaco, que não podem ser vendidos a menores strição ao uso.
e alguns medicamentos que não podem ser vendidos sem
receitas médicas especiais.
Drogas ilícitas são aquelas cuja produção, fabrica- Drogas Ilícitas: são aquelas
cuja produção, fabricação,
ção, aquisição, comércio, fornecimento, armazenagem, são aquisição, comércio, forneci-
mento, armazenagem são
proibidas por lei. As drogas ilícitas são enumeradas nas Lis- proibidas por lei e estão lis-
tas de Substâncias Sujeitas a Controle Especial da Agência tadas na Lista de Substâncias
Sujeitas a Controle Especial da
Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, conforme a ANVISA.
portaria número 433 de 12 de maio de 1998.

21
Manual de abordagem de dependências químicas

Uso de drogas e dependência química

Um ponto inicial para a compreensão da dependência


química é a diferenciação entre o transtorno de uso de drogas e
a dependência química. A falta de distinção entre os dois termos
é fonte de confusão e mal entendidos entre profissionais da saúde
e pacientes.
Intoxicação por droga:
Estado consequente ao uso de
O uso de uma droga pode ocorrer fora do con-
uma substância psicoativa e texto de uma dependência química. Nem todo usuário
compreendendo perturbações
da consciência, das faculdades de drogas é dependente de uma droga. O uso de drogas
cognitivas, da percepção, do
afeto ou do comportamento, ou pode ser feito voluntariamente, buscando-se os efeitos
de outras funções e respostas
psicofisiológicas. As pertur-
psicoativos da droga. O usuário consome a droga para
bações estão na relação direta obter os efeitos psicoativos da intoxicação pela droga, tal
dos efeitos farmacológicos agu-
dos da substância consumida, e como prazer, sensação de ebriedade, relaxamento ou al-
desaparecem com o tempo, com
cura completa, salvo nos casos
teração do senso percepção. Enquanto não está sob o
onde surgiram lesões orgânicas
ou outras complicações.
efeito da droga, o usuário tem a sua capacidade decisional
Capacidade decisional: preservada e consegue escolher entre usar ou interrom-
capacidade de tomar decisões
a partir da análise dos fatos
per o uso da droga a qualquer momento.
sem ser influenciado por fa-
tores externos (ex.Drogas psi-
A dependência química (Tabela 2) é um transtorno
cotrópicas) ou internos (ex. caracterizado pelo uso descontrolado da droga, marcado
Doenças mentais)
Síndrome de Dependência
por uma alternância entre alívio durante o uso da droga
Química: Conjunto de fenô- e grande sofrimento na ausência ou na perspectiva de im-
menos comportamentais, cog-
nitivos e fisiológicos que se possibilidade do uso de uma substância.
desenvolvem após repetido
consumo de uma droga psicoa-
tiva, tipicamente associado ao
desejo poderoso de tomar a
droga, à dificuldade de contro-
lar o consumo, à utilização per-
sistente apesar das suas
consequências nefastas, a
uma maior prioridade dada ao
uso da droga em detrimento de
outras atividades e obrigações,
a um aumento da tolerância
pela droga e por vezes, a um
estado de abstinência física.

22
Conceito de drogas e seus padrões de uso

Tabela 2
Critérios propostos para a caracterização de um comportamento
de dependência ou comportamento aditivo. Adaptado de Goodman, 1990

Dependência é caracterizada pela presença de:

A - Repetidos insucessos de resistir à impulsão de realizar um comportamento específico.


B - Sentimento de tensão antes de iniciar o comportamento.
C - Sentimento de prazer ou alívio em realizar um comportamento.
D - Pelo menos cinco dos elementos seguintes:
Preocupação constante ligada a um comportamento ou com as suas atividades preparatórias.
Frequência maior ou duração mais longa de um comportamento que é previsto inicialmente.
Perda de tempo significativa com a preparação, realização ou recuperação dos efeitos de um compor-
tamento.
Esforços repetidos para reduzir ou controlar um comportamento.
Comprometimento das atividades sociais, profissionais ou de lazer em prol do comportamento.
Persistência do comportamento apesar das consequências negativas (bio/psicossociais e econômicas)
geradas pelo comportamento.
Tolerância ao comportamento.
Agitação ou inquietação caso o comportamento não seja realizado.

Classificação categorial dos


transtornos relacionados ao uso de substâncias

De acordo com as classificações categoriais, os transtor-


nos de uso de substância são classificados de maneira independente
a partir do padrão de uso e suas consequências (Figura 1).

23
Manual de abordagem de dependências químicas

Figura 1
Classificação categorial dos transtornos relacionados ao uso de
substâncias. No modelo categorial existia a ideia de que o uso e a
intoxicação por drogas não trariam consequências negativas ao usuário.
Contudo, têm-se cada vez mais evidências de que qualquer uso de drogas
está associado a consequências biológicas, psicológicas e sociais.

Uso

Intoxicação aguda

Uso nocivo

Síndrome de dependência

Consequências somáticas/psíquicas/sociais/econômicas

O uso esporádico de substâncias era considerado


anteriormente conduta de baixo risco, pois acreditava-se que ele
não acarretaria consequências evidenciáveis em termos biológicos,
psicológicos ou sociais.
Uso Nocivo ou Abusivo de
drogas: Modo de consumo de
A segunda categoria é o uso nocivo ou abusivo de
uma droga que é prejudicial à uma substância. Nessa categoria, o uso de uma substância
saúde. As complicações podem
ser físicas (por exemplo, he- está associado a consequências físicas, mentais e sociais
patite consequente a injeções
de droga pela própria pessoa),
evidentes, mas ainda existe o controle sobre a decisão do
psíquicas (por exemplo, episó- uso da droga.
dios depressivos secundários a
grande consumo de álcool) ou Na terceira categoria, considerada a mais grave,
sociais (por exemplo, dificul-
dades financeiras, conjugais, está a dependência à substância. Essa é caracterizada por
profissionais e problemas com
a justiça).
um consumo descontrolado, pela presença da síndrome
de abstinência e pela coexistência de complicações clíni-
cas severas.

24
Conceito de drogas e seus padrões de uso

A Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da


Organização Mundial de Saúde (OMS) (Tabelas 3 e 4), e o Manual
Diagnóstico Estatístico de Doenças Mentais (DSM-IV), da Ameri-
can Psychiatric Association (APA), propõem o diagnóstico catego-
rial dos padrões de uso de substâncias segundo esses níveis. Há uma
divisão diagnóstica em ambos os códigos internacionais, entre in-
toxicação aguda, uso nocivo e dependência (OMS, 1993) (American
Psychiatric Association, 1994).

Tabela 3
Critérios diagnósticos do CID-10 para uso nocivo (abuso) de substância

• O diagnóstico requer um dano real à saúde física e mental do usuário.


• Os padrões nocivos de uso são, frequentemente, criticados por outras pessoas
e estão associados a consequências sociais diversas de vários tipos.
• O uso nocivo não deve ser diagnósticado, se a síndrome de dependência,
um transtorno psicótico ou outra forma específica de transtorno relacionado
ao uso de drogas ou álcool estiver presente.

25
Manual de abordagem de dependências químicas

Tabela 4
Critérios do CID-10 para dependência de substâncias

Presença de três ou mais dos seguintes sintomas


em qualquer momento durante o ano anterior:
• Um desejo forte ou compulsivo para consumir a substância;
Dificuldades para controlar o comportamento de consumo de substância

em termos de início, fim ou níveis de consumo;


• Estado de abstinência fisiológica, quando o consumo é suspenso ou reduzido,
há consumo da mesma substância (ou outra muito semelhante) com a
intenção de aliviar ou evitar sintomas de abstinência;
• Evidência de tolerância, segundo a qual há a necessidade de doses crescentes
da substância psicoativa para obterem-se os efeitos anteriormente
produzidos com doses inferiores;
• Abandono progressivo de outros prazeres ou interesses devido ao consumo
de substâncias psicoativas, aumento do tempo empregado em conseguir
consumir a substância ou recuperar-se dos seus efeitos;
• Persistência no consumo de substâncias, apesar de provas evidentes de consequências
prejudiciais, tais como lesões hepáticas, causadas por consumo excessivo de álcool,
humor deprimido, consequente de um grande consumo de substâncias, ou
perturbação das funções cognitivas relacionadas com a substância.

Uma rápida análise dos padrões de consumo,


segundo esta escala de gravidade, pode levar à
interpretação errônea de que o uso esporádico de
substâncias não teria consequências danosas ao
indivíduo e que a dependência, ou terceiro nível, seria
aquele mais grave e mais danoso ao indivíduo. Essa
visão, no entanto, tem sido desconstruída. Hoje se tem
evidências científicas de que nenhum padrão de
Inócuo: que não é prejudicial consumo de substâncias é isento de riscos ou seja inócuo.
A intoxicação aguda pelo álcool, por exemplo, pode
causar acidentes de trânsito e suas consequências são
tão graves quanto aquelas presentes em um indivíduo
com a síndrome da dependência já estabelecida.
26
Conceito de drogas e seus padrões de uso

Além disso, o álcool tem uma ação tóxica para ascélulas


hepáticas e neurônios. Ainda que as consequências
tardem a aparecer, qualquer exposição às drogas leva a
modificações do metabolismo e do funcionamento
celular. Seguindo esta corrente, na quinta edição do DSM V: Lista de critérios clíni-
cos para o diagnóstico e
Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM-V), transtornos psiquiátricos da
Associação Americana de
(APA 2012), os critérios de dependência de substâncias Psiquiatria (APA). Está em sua
foram revisados. A dicotomia entre os diagnósticos de quinta edição.

abuso e dependência, presente em sua quarta edição,


deixou de existir, dando lugar à avaliação da severidade
do quadro de abuso da substância. As novas classifica-
ções diagnósticas são: dependência leve, dependência
moderada e dependência grave (American Psychiatric
Association, 2013).

A dependência química é um transtorno crônico e recidivante


Circuito de Recompensa: Cir-
cuito cerebral envolvido na per-
A dependência química pode ser entendida cepção da sensação de prazer
e recompensa. Faz parte do
como um transtorno psiquiátrico resultante das alte- Sistema Límbico e é composto
pela área tegmentar ventral;
rações causadas pela droga no circuito de recompensa núcleo acumbens; e córtex pré-
(Figura 2), das alterações neurotóxicas persistentes e de frontal. Todas as drogas agem
neste circuito estimulando os
modificações no processamento de funções cognitivas. neurônios e aumentando a pro-
dução, liberação ou a inibição
da receptação do neurotrans-
missor dopamina. Estes
processos podem resultar no
aumento da dopamina nas
sinapses.
Neurotóxica: Ação tóxica
sobre os neurônios. Trata-se
do efeito negativo de certas
drogas sobre os neurônios po-
dendo causar alterações quími-
cas, celulares e até mesmo a
morte neuronal.

27
Manual de abordagem de dependências químicas

Figura 2
A ação das drogas na liberação de dopamina no circuito
de recompensas, via mesocorticolímbica

As bases neurobiológicas das modificações comportamentais


em dependência química

A dependência química é um transtorno crônico e recidi-


vante caracterizado pela compulsão para procurar e consumir a
substância, a perda de controle em limitar o consumo da
substância e surgimento sofrimento físico e emocional quando o
acesso à substância química é impedido, configurando a síndrome
de abstinência.
As drogas de abuso atuam no SNC através de
mecanismos diferentes, causando uma ampla gama de efeitos. A
partir de diferentes mecanismos, que tem como ponto comum o
aumento da dopamina da via na via mesocorticolímbica (Figura 2)
(West, 2006). Essa via se projeta da área tegmentar ventral para o

28
Conceito de drogas e seus padrões de uso

núcleo accumbens e para o córtex frontal, compondo o chamado sis-


tema de recompensa.
A maioria das drogas de abuso, como o álcool, os opióides
e a nicotina influenciam a concentração de dopamina no sistema
de recompensa de forma indireta, pelo bloqueio do controle inibi-
tório dos neurônios gabaérgicos na área tegmentar ventral. Já a co-
caína e as anfetaminas atuam diretamente no núcleo accumbens,
impedindo o processo natural de recaptação da dopamina na fenda
sináptica, aumentando a concentração desse neurotransmissor no
espaço extracelular. Esses dois mecanismos causam um aumento
do número de impulsos dopaminérgicos no núcleo accumbens. Essa
alteração bioquímica é responsável pelas sensações de prazer e eu-
foria sentidas pelo usuário e é o reforçador positivo para o com-
portamento de autoadministração da droga (KOOB et al., 1998).
Não é apenas o prazer gerado pela estimulação
da via dopaminérgica que mantém o estado de depen-
dência do indivíduo. A evitação dos sintomas desagradá- Disforia: sensação ou estado de
veis, como disforia, ansiedade e irritabilidade, mal-estar, ansiedade ou tristeza.
experimentados na abstinência da droga, é uma grande Síndrome de Abstinência:
Conjunto de sintomas cuja
propulsora da manutenção do uso compulsivo da droga gravidade é variável que ocor-
rem quando da interrupção ab-
(Koob et al., 1998). Os sintomas de abstinência decorrem soluta ou relativa do uso de
provavelmente de alterações neurotóxicas e persistentes uma substância psicoativa
consumida de modo prolon-
nos neurônios (WESt, 2006). gado. O início e a evolução da
síndrome de abstinência são
limitadas no tempo e depen-
dem da categoria e da dose da
substância consumida imedi-
atamente antes da parada ou
da redução do consumo. A sín-
drome de abstinência pode se
complicar pela ocorrência de
convulsões.
Uso compulsivo: modo de uti-
lização da droga que não se
consegue resistir ou conter.

29
Manual de abordagem de dependências químicas

Funções cognitivas: conjunto


dos processos mentais usados
O córtex pré-frontal, integrante do sistema de re-
no pensamento e na percepção compensa, é o local de processamento de muitas funções
e, em último caso, na apren-
dizagem. São funções cogniti- cognitivas, como a atenção, a memória de trabalho, a tomada
vas: a percepção, a atenção, a
memória, a linguagem e as de decisão e o autocontrole (ou controle inibitório). todas
funções executivas. essas funções estão de alguma maneira, comprometidas nos
pacientes com dependências químicas. Destaca-se, dentre
Controle inibitório: habilidade
de controlar ou evitar um com-
essas funções, o controle inibitório, entendido como a habili-
portamento. dade de controlar ou evitar um comportamento, principal-
mente quando esse não é vantajoso ou é inadequado.
Pacientes com dependências químicas, apesar
dos sinais evidentes e devastadores causados pelos efeitos
da droga, possuem uma reduzida habilidade de inibir o
uso excessivo da substância. A disfunção de regiões es-
pecíficas do córtex pré-frontal estão também relaciona-
Anosognosia: Distúrbio neu-
ropsicológico que impede o
das ao desenvolvimento da fissura e da anosognosia ou
doente de perceber e adminitr negação/ desconhecimento da própria dependência quí-
que tem uma doença, mesmo
que ela seja notória. mica (GOLDStEIN E VOLKOW, 2011).
Além dos efeitos neurobiológicos devem-se considerar
também os efeitos neurotóxicos das drogas. Esses efeitos levam a
modificação de receptores, morte neuronal, alteração de circuitos
e perda de função cerebral. A perda de função pode levar a
mudan-ças de comportamento e alterações de longo prazo das
funções executivas do paciente.
Devido às lesões cerebrais e à alteração de cir-
cuitos cerebrais ocorre o aparecimento de sintomas tais
Fissura: O reflexo de um estado
de motivação orientado para o
quais os da fissura e da perda de controle inibitório do
consumo de drogas desen- uso da droga. Esses sintomas persistem mesmo após a
cadeado por pistas ambientais
(ex. Exposição a situações de extinção do efeito da droga e vão se acentuando com o
uso de droga ou odores da
droga) e internos (ex. Ansiedade,
uso continuado da droga. Assim sendo, pode-se consi-
tristeza, imagens mentais, ex- derar a dependência química como um transtorno carac-
pectativas de um resultado pos-
itivo do uso de drogas). É um terizado pelas constantes recaídas, resultado da fissura e
estado subjetivo que integra a o
desejo do uso da droga. da perda de controle do uso da droga. É uma doença de
curso crônico e de grande impacto na vida familiar,

30
Conceito de drogas e seus padrões de uso

social, emocional e profissional do paciente dependente químico.


Os impactos e prejuízos provenientes da dependência podem ser
agravados pelas mudanças no padrão de uso, pelas comorbidades
psiquiátricas associadas à dependência, pelas novas drogas introdu-
zidas no mercado ilegal e, por vezes, pelo envolvimento do indiví-
duo com a criminalidade (SzUPSzyNSKI E OLIVEIrA, 2008).

Conclusão

todas as drogas psicotrópicas agem no cérebro causando


modificações nos neurônios e circuitos cerebrais. Estas modifica-
ções causam efeitos sentidos a curto prazo e que passam com o
término do efeito da droga. O uso repetido de drogas causa lesões
nos neurônios e circuitos cerebrais. Estas alterações podem
modificar permanentemente o circuito de recompensa causando a
dependência química, que é uma doença crônica caracterizada pela
fissura e pela perda de controle inibitório do uso da droga.

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32
Capítulo 2

Epidemiologia do uso de drogas


no Brasil e no mundo
Frederico Garcia
Lucas Barroso

Introdução

Epidemiologia: Ciência que


A epidemiologia através dos estudos epidemioló- estuda quantitativamente a
gicos contribui para o estudo dos transtornos do uso de distribuição dos fenômenos de
saúde/doença, e seus fatores
drogas. Ela nos permite melhor compreender quantas condicionantes e determinantes,
nas populações.
pessoas estão implicadas no uso de drogas, qual o perfil
dessas pessoas e qual o impacto das drogas na vida delas.
Essas informações são de grande importância, para a ava-
liação de pacientes, pois nos permitem prever quais os
perfis de risco para o uso de drogas, como para o plane-
jamento do uso dos recursos em prevenção e tratamento.

Obtenção de dados epidemiológicos

Os estudos epidemiológicos nos transtornos de uso de


drogas obtêm informações através de levantamentos de dados e de
indicadores epidemiológicos indiretos.
Manual de abordagem de dependências químicas

Levantamentos

Os levantamentos epidemiológicos são pesquisas que


usam como metodologia de obtenção de dados, entrevistas
padronizadas de pessoas representativas de uma amostra
significativa da população a ser estudada. Na interpretação desses
estudos é muito importante a compreenção de: 1. Qual é à
população avaliada, para se entender a que pessoas aquelas
informações se referem (ex. população geral, adolescentes,
presidiários); 2. O período de coleta dos dados; 3. O tipo de
agravo das condições de saúde causado pelas drogas (ex. uso na
vida, no último ano, no mês, uso abusivo ou dependência; 4. O
instrumento ou escala utilizado para avaliar o agravo de saúde.

Indicadores de dados indiretos

Os indicadores epidemiológicos indiretos sobre o uso de


drogas são informações não obtidos por um levantamento e que
também refletem o padrão do uso de drogas de abuso por uma
determinada população. Esses dados são obtidos em relatórios ou
bancos de dados governamentais. Dentre estes dados podemos
citar o número de óbitos por overdose, número de apreensões e
quantidade de droga apreendida, número de hospitalizações por
dependência química, indicadores de violência.

Prevalência e incidência

Dentre os diversos indicadores epidemiológicos


Prevalência: número total de
dois têm grande importância: 1. prevalência; 2. in- casos ou à proporção de casos de
uma doença em uma população
cidência. A prevalência corresponde ao número total em um momento específico.
de casos ou à proporção de casos de uma doença em
uma população, em um momento específico. A

34
Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo

incidência corresponde ao número total ou a propor- Incidência: número total ou a


proporção de novos casos em
ção de novos casos em uma população em um de- uma população em um determi-
nado período de tempo.
terminado período de tempo.

Epidemiologia do uso de drogas no mundo

Álcool e tabaco
O álcool e o tabaco continuam sendo as drogas mais
con-sumidas no mundo. Estima-se que 48% da população
mundial adulta seja usuária de álcool e 29% de tabaco. Isso
corresponde a dois bilhões e 1,1 bilhões de adultos
respectivamente (Anderson, 2006). No ano de 2005, o consumo
anual de álcool era de 6,13 litros por cada habitante acima de 15
anos. Sabe-se que o uso de drogas é influenciado pelas leis de
mercado. O uso de drogas lícitas é tão disseminado, atualmente,
pela grande disponibilidade e os baixos custos dessas drogas. O
uso abusivo de álcool resulta em 2,5 mi-lhões de mortes a cada
ano, ou seja, 4% das mortes no mundo, numa proporção de
quatro mulheres para cada homem (WHO, 2011). O tabaco é
responsável por 6 milhões de mortes por ano no mundo. Dessas
600 mil são de pessoas não fumantes expostas a fumaça do tabaco
na família ou no trabalho. Mais de 80% dos fu-mantes vivem em
países de baixa ou média renda. Apesar do con-sumo de tabaco
ter diminuído um pouco nos últimos dez anos, ele continua
crescendo entre mulheres jovens (WHO, 2013).

Drogas ilícitas
No mundo, estima-se que entre 167 milhões e 315
milhões de pessoas entre 15 e 64 anos (3.6% a 6.9% da população
mundial dentro desse grupo) usou alguma droga ilícita no ano
anterior a 2011 (UNODC, 2012). Desde 2008, houve um
aumento de 18% no número total de pessoas que usaram alguma
35
Manual de abordagem de dependências químicas

droga ilícita, (UNODC,2012) reflexo, principalmente, do aumento


da população mundial e da facilidade de acesso a essas
substâncias. A distribuição do consumo das diversas drogas ilícitas
não é feito de maneira uniforme. Na Europa e na Ásia, predomina
o uso de opióides, nas Américas a maior demanda é por cocaína,
na África por maconha (UNODC,2013).

Gráfico 1
Evolução do número de usuários e dependentes de drogas
ilícitas no mundo 1990-2001 a 2010. Adaptado de UNODC,
2012

O uso de maconha aumentou globalmente, sendo a


droga ilícita mais utilizada no mundo. Estima-se que a maconha
seja consumida por 125 a 203 milhões de pessoas no mundo,
sendo a maior prevalência de usuários na África Central e Oci-
dental (12.4% da população entre 15 e 64 anos). Estimulantes se-
melhantes à anfetamina são altamente difundidos pelo mundo,
com 0,7% da população sendo estimada já ter se utilizado de
alguma anfetamina no último ano a pesquisa. A maior prevalência
de uso é na Oceania, com até 1,2% da população entre 15 e 64
anos.

36
Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo

O uso de opióides no mundo permanece estável. Cerca


de 16.5 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos, com aumento
desde 2009 na Ásia. Em 2009, a prevalência anual de uso de
cocaína era de 0,3% a 0,5% (14.2 a 20.5 milhões) da população
mundial entre 15 e 64 anos. O uso de cocaína decaiu entre 2010 e
2011, principalmente na América do Norte (1.5% para 1.2%) e
Europa Central e Ocidental (1.3% para 1.2%). O uso de ecstasy
(methylenedioxymethamphetamine (MDMA)) também vem
decaindo, com pequeno aumento de uso na Europa (0.7%),
associado aos jovens de idade entre 15 e 34 anos (UNODC,
2012). Desde 2009, a prevalência do uso da maconha, opióides e
opiácios subiu, enquanto a prevalência do uso de cocaína,
anfetaminas e substâncias do grupo do ecstasy apresentaram um
declínio (UNODC, 2012). Essas variações fizeram com que a
prevalência do uso de drogas ilícitas e de dependentes se
mostrassem estáveis nos últimos anos (UNODC, 2012).
No ano de 2011, estima-se que 211 mil mortes foram
associadas ao uso de drogas ilícitas. A maior parte dessas mortes
ocorreu na população jovem e está relacionada à violência. Em
2008 haviam 16 milhões de usuários de drogas injetáveis dos quais
três milhões desses (18.9%) eram HIV positivo. A infeção pelo
vírus HIV está correlacionado tanto ao uso de drogas injetáveis
quanto o comportamento sexual de risco apresentado por alguns
usuários de drogas. Quase 7.4 milhões (46.7%) de usuários de
drogas são infectados com hepatite C e 2.3 milhões com hepatite
B (UNODC, 2013).

37
Manual de abordagem de dependências químicas

Gráfico 2
Tendências mundiais na prevalência do uso de diferentes drogas
de 2009 a 2011. Adaptado de UNODC, 2012

Prevalência de dependência química no mundo

Enquanto houve um aumento na prevalência de usuá-


rios de drogas ilícitas, o número de usuários que são classificados
como dependentes permaneceu estável. Estima-se que 15.5
milhões a 38.6 milhões de pessoas respondam aos critérios de
classificação para dependência a drogas, ou seja, 12% dos usuários
mundiais (UNODC, 2012).

Fator de Risco: Qualquer situ-


açãoo que aumente a probabil- Fatores de risco
idade de ocorrência de uma
doença ou agravo à saúde.
Algumas pessoas são mais susceptíveis à continuação ou a um uso
mais intenso de drogas que outras (EMCDDA, 2000). Os indica-
dores são de que a experimentação e o uso intermitente entre jovens

38
Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo

estão ligados à curiosidade, ao comportamento de aceitação pelo grupo


ou estilo de vida, assim como a viabilidade e oportunidade (Tabela
1). A experiemntação drogas não pode ser considerado como
“normal” durante a adolescencia, exigindo acompanhamento para
avaliar se ele será atenuado ou extinto com o tempo.
Problemas mais graves com drogas costumam estar as-
sociados com dificuldades individuais ou familiares e
circunstâncias sociais e/ou econômicas adversas. Esses são fatores
sociais comumente ligados a problemas mentais ou de
criminalidade (LLOyD, C 1998). Pode-se argumentar também
que com o aumento do uso de drogas pela população geral, mais
pessoas com problemas sociais ou psicológicos, venham a se
tornar dependentes (EMCDDA, 2002).
Tabela 1
Fatores de risco associados ao uso de drogas no mundo.
Adaptado de E.M.C.D.D.A; 2002
• Idade - aumento até a terceira idade.
• Sexo - masculino.
• Estilo de vida - frequentar bares, festas, boates.
• Precocidade - iniciação em comportamento “adulto”: sexo, fumo,bebidas e drogas
• Alta renda.
• Morar em áreas urbanas - maior para drogas ilegais.

• Habitar áreas de alta prevalência e viabilidade de drogas.


• Imagem positiva do uso de drogas entre colegas.
• Uso de álcool ou tabaco
• Uso de droga por pais
Fatores de risco associados à dependência a drogas
• Características individuais - incluindo genética, metabolismo e personallidade.
• Problemas familiares.

• Baixo status social, marginalização ou desemprego.


• Outros problemas sociais e psicológicos - dificuldades escolares,
baixa autoestima, depressão.
• Primeiro uso em idade precoce.
• Exposições repetidas à droga - especialmente em grupos vulneráveis.
• Falta de informação clara e relevante quanto aos problemas de saúde

relacionados ao uso da droga.

39
Manual de abordagem de dependências químicas

Epidemiologia do uso de drogas no Brasil;

Incidência e prevalência do uso de drogas e dependência

Álcool e tabaco

também no Brasil o álcool e o tabaco têm importante


impacto negativo na saúde da população. Segundo o último
Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD, 2013) 50%
da população brasileira adulta consumiu álcool no ano de 2012.
No mesmo estudo descreve-se uma ligeira redução do consumo
de álcool com relação ao levantamento feito em 2006. Contudo, o
número de pessoas que bebem uma ou mais vezes por semana
aumentou de 20% na população adulta, saltando de 45% para
54% em 2012. Entre as mulheres o aumento de usuárias de álcool
pelo menos uma veze por semana foi maior, aumentando de 29%
para 39%, ou seja, um aumento de 34,5% (LENAD, 2013).
Apesar do uso de tabaco ter diminuído de 2006 para 2012,
o Brasil tem ainda 15,6% da população geral que é tabagista. Sendo
que 3,4% é de adolescentes. A idade de início do uso de tabaco no
Brasil é de 16,2 anos e a idade de uso regular de 17,4 anos. A
prevalência do tabagismo passivo é estimada em 70 milhões de
brasileiros. Do ponto de vista regional a região sul é a mais
acometida pelo tabagismo (20,2% da população) e a menos
atingida é a região nordeste com 14,2% da população. A
prevalência de homens tabagistas é quase o dobro da de mulheres
sendo 21% e 13%, respectivamente. As classes sociais mais baixas
são as mais atingidas pelo tabagismo sendo que as classes D e E
têm uma prevalência de 22,9% e 19%, respectivamente contra
10,9% e 12,7% das classes A e B respectivamente (LENAD, 2013)

40
Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo

Dependência de álcool e tabaco no Brasil

Segundo o LENAD, em 2013, 17% dos consumidores


de álcool no Brasil eram abusadores ou dependentes. Isso
corresponde a 12 milhões de habitantes. A dependência ao álcool
é mais frequente entre homens do que em mulheres, na proporção
de 10,5% e 3,6%, respectivamente. O uso problemático de álcool
está associado a uma maior prevalência de depressão. No Brasil
41% dos bebedores problemáticos apresentaram um episódio
depressivo na vida contra 25% da população geral. Dos fumantes
72% apresentam critérios de dependência ao tabaco (LENAD,
2013).
Drogas ilícitas

O uso de drogas ilícitas no Brasil ainda não é regra, mas


é tão importante quanto de drogas lícitas. A estimativa de uso na
vida inteira, na população adulta, é de 22.8%. A prevalência de
uso anual em 2005 foi 10.3% (GALDUrÓz et al., 2005;
CArLINI et al., 2005).
Os dados do levantamento nacional (CARLINI et al.,
2005) apontam para um aumento do uso de maconha, solventes,
cocaína, anfetaminas, benzodiazepínicos, alucinógenos, crack,
anabolizantes e barbitúricos. Ao se comparar diferentes faixas
etárias, observa-se que a prevalência do uso de maconha (17%) e
solventes (10.8%) é maior entre as idades de 18 e 24 anos,
enquanto que cocaína (5.2%) e anfetaminas (4%) possuem maior
prevalência entre a população com idades de 25 a 34 anos.
O uso de maconha em todas as faixas etárias é, em
média, três vezes maior em homens do que em mulheres. O uso
tem início entre os 12-17 anos, com pico na terceira década (17%),
reduzindo em seguida (5.6%). Estima-se ainda que 1.24% da
população atende aos critérios para dependência a maconha.

41
Manual de abordagem de dependências químicas

A prevalência para usuários de cocaína durante a vida é


de 2.9% (1.459.000) da população geral (CArLINI et al., 2005),
chegando a 3% entre estudantes (ANDrADE et al., 2010). O uso
de crack é mais prevalente no sexo masculino (3.2%) na faixa de
25-34 anos, estimando-se que 1.2% (2.3milhões) da população usa
ou já usou crack (ANDrADE et al., 2010).
O uso de anfetaminas é predominante no sexo feminino,
com prevalência populacional de 3.2% (1.605.000 pessoas), sendo
que 0.15% dessa população atende aos critérios de dependência. O
uso de opiácios corresponde a 1.3%, equivalente a uma população
de 668.000 pessoas, com predomínio de uso por mulheres sobre
os homens. É estimado que 1% da população já tenha feito uso de
algum alucinógeno durante a vida.
A região com maior prevalência no uso de qualquer droga
ilícita na vida, é o Nordeste (27,6%), seguido pelo Sudeste (24.5%),
Centro-Oeste (17%), Sul (14.8%) e Norte (14.4%).

Fatores de risco

No Brasil, diversas condições influenciam no aumento


da probabilidade de uma pessoa vir a utilizar qualquer substância
psicoativa (CANAVEz et al., 2010). Destacam-se fatores indivi-
duais, familiares, ambientais e culturais. O modo como cada fator
irá interferir com a chance de cada pessoa usar ou não e vir a se
tornar um dependente, dependerá sobretudo de sua capacidade de
resiliência (CANAVEz et al., 2010).
Entre os fatores individuais de risco temos a insegurança,
insatisfação com a vida, sintomas depressivos, curiosidade e busca
de prazer, sensação de invulnerabilidade entre outras características.
Essas características atuam facilitando a aceitação ao uso de drogas
pelo indivíduo, e o tornando mais disposto a utiliza-las. (SEIBEL
E JUNIOr, 2001).

42
Epidemiologia do uso de drogas no Brasil e no mundo

Entre os fatores de risco que predispõem ao uso abusivo


de drogas destacam-se: 1. o convívio com usuários destas
substâncias; 2. a aceitação social do uso; 3. a carência de relações
afetivas genuínas e de apoio familiar; 4. a violência doméstica
(CANAVEz et al., 2010; ANDrEtA, 2005).Sanchez et al. (2005)
relatam que o consumo de drogas ilícitas é cinco vezes maior
entre familiares de usuários, que dos não usuários. Encontraram
também que há envolvimento sério de um ou mais membros da
família com pelo menos uma droga, com destaque para álcool e
cigarro. (SANCHEz et al., 2002).

Conclusões

O uso de drogas licitas e ilícitas no Brasil e no mundo


ainda não é a regra, mas atinge níveis preocupantes. Considerando
apenas as drogas ilícitas, a prevalência é mais baixa não
ultrapassando uma, em cada dez pessoas no mundo. Contudo, o
impacto epidemilógico das drogas é muito significativo e resulta m
um custo humano e econômico muito elevado. O uso de drogas
tem importante impacto negativo na sociedade. Não somente
pelas mortes violentas, mas também pelo agravamento das
condições de saúde e pela perda de qualidade de vida.
A dependência química é uma doença passível de
prevenção, desde que se tome medidas para postergar ou evitar a
exposição à droga.

43
Manual de abordagem de dependências químicas

Referências

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45
Capítulo 3

Bases para uma política pública sobre álcool,


tabaco e outras drogas baseada em evidências

Valdir Ribeiro Campos

Introdução

Os problemas relacionados ao consumo de ál-


cool, tabaco e outras drogas são um grave problema de
saúde pública. A Organização Mundial de Saúde (OMS,
2001) relata que cerca de 10% da população dos centros Prevalência: Número total de
urbanos de todo o mundo consomem abusivamente dro- casos de uma determinada
doença existentes numa popu-
gas, independentemente da idade, sexo, nível de instrução lação em um determinado mo-
mento temporal; Proporção da
e poder aquisitivo, sendo que o álcool e tabaco possuem população que tem uma
maior prevalência de uso global, trazendo consequências doença
tempo.
em um determinado

graves para a saúde pública mundial. Há uma tendência UNODC: United Nations Office
mundial que aponta para o uso cada vez mais precoce de oncritório
Drugs and Crimes (Es-
das Nações Unidas
substâncias psicoativas, sendo que tal uso ocorre de sobre Drogas e Crimes). É uma
agencia especializada da
forma cada vez mais pesada. O último relatório do Nações Unidas que presta con-
UNODC - Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes sultoria dirigida e coordenada
para responder a questões
aponta uma tendência de aumento do consumo de dro- relacionadas ao tráfíco ilegal,
abuso de drogas, crimes e pre-
gas sintéticas e de prescrição (UNODC, 2013). venção de crimes.

No Brasil essa realidade não é diferente. Estudos realiza-


dos pelo Centro Brasileiro de Informações sobre drogas psicotró-
picas da Universidade Federal de São Paulo-CEBrID-UNIFESP
mostra, sistematicamente, que a cada ano o consumo de álcool e
Manual de abordagem de dependências químicas

outras drogas tem sido cada vez mais precoce entre estudantes do
ensino fundamental e médio. Entre essa população, a idade média
para o início do consumo de álcool e tabaco é por volta dos 12 anos
de idade e o início do uso de outras drogas, tais como a maconha,
a cocaína e o crack, ocorre por volta dos 13 e 14 anos de idade
(CArLINI et al., 2010).
O uso de drogas gera vários efeitos danosos
para a saúde. Esses danos vão depender de quanto da
substância é utilizada, de que forma e com que padrão
de uso levando a efeitos tóxicos e a dependência. Entre
as consequências diretas e indiretas do consumo de dro-
gas destacam-se os acidentes de trânsito, as agressões, de-
pressões clínicas, distúrbios de conduta, ao lado de
HIV: Vírus da Imunodeficiência
comportamento de risco no âmbito sexual e a transmis-
adquirida. A infecção pelo
vírus pode causar a AIDS, ou
são do vírus HIV e da hepatite B e C pelo uso de drogas
síndrome de imunodeficiência injetáveis. Por outro lado, os efeitos danosos da depen-
adquirida.
dência no contexto social, gera desarmonia familiar, vio-
lência doméstica, abuso infantil, separação, delitos,
abandono escolar, faltas ao trabalho, desemprego e inca-
pacidade para vida.
Para conter esses prejuízos, os governantes necessitam
tomar decisões com base em consensos na forma de lei, regras e
regulações. O conjunto dessas medidas define políticas públicas
(LArANJEIrA; rOMANO, 2004). Apesar dos impactos sociais
relacionados ao consumo e dependência de álcool, tabaco e outras
drogas (AtOD), as estratégias de prevenção, tratamento e políticas
públicas, ainda são muito deficientes, sendo que muitas vezes os re-
cursos são alocados de forma inadequada. Além disso, percebe-se
ainda que há uma grande lacuna entre o que é comprovadamente
eficaz, segundo as pesquisas, e o que de fato se faz, tanto na prática
clínica quanto em relação às políticas de prevenção e controle social
(DIELH et al., 2012).

48
Bases para uma política pública sobre álcool, tabaco e outras drogas baseada em evidências

O modelo geral de causas do consumo de álcool,


tabaco e outras drogas

Um modelo de compreensão causal e de medidas de pre-


venção para o consumo de álcool, tabaco e outras drogas, com
base em evidências científicas, foi desenvolvido por Birckmayer
e colaboradores em 2004. Segundo esse modelo, o desejo de con-
sumir a droga pelo indivíduo cria uma demanda que estimula a
oferta, sujeito as leis do mercado (lei da oferta e da procura ou
demanda). Além do mais, com um maior potencial de gerar lucro
e competitividade, a consequência seria o aumento da demanda
por meio de promoções. A disponibilidade representa um dos
componentes fundamentais do consumo de substâncias psicoati-
vas. Quanto maior a disponibilidade, maior as chances do con-
sumo de drogas. Dessa forma, sem disponibilidade, não pode
haver uso ou problemas associados. A acessibilidade a AtOD,
por sua vez, depende de fatores ligados a leis vigentes (federais,
estaduais ou municipais), fiscalização e punições (Figura 1). Assim,
a disponibilidade econômica está relacionada ao preço que se paga
para obter o álcool, tabaco ou outras drogas, a disponibilidade de
varejo ou comercial é a facilidade de compra e acessibilidade à
drogas por meio do mercado formal e informal, a disponibilidade
social que não envolve dinheiro e as drogas são obtidas através
de familiares e amigos.

49
Manual de abordagem de dependências químicas

Figura 1
Modelo Geral de causas do uso de álcool, tabaco e outras drogas.
Adaptado de Birckmayer et. al. 2004.

Prevenção ao uso de álcool, tabaco e outras drogas


Fator de Risco: Qualquer situ-
ação o coisa que aumenta a Os fatores associados ao alto potencial de uso
probabilidade de ocorrência de
uma doença ou agravo à saúde. de drogas são denominados “fatores de risco”. Por outro
lado, aqueles que puderam ser associados com reduzido
Fator de Proteção: Situação
ou coisas que protegem o indi-
potencial ao uso de drogas chamam-se “fatores de proteção”
víduo de fatos que poderão (Tabela 1). Os fatores de risco para o uso de álcool e ou-
agredí-lo física, psíquica ou so-
cialmente, garantindo um de- tras drogas são características ou atributos de um indi-
senvolvimento saudável.
víduo, grupo ou ambiente de convívio social, que
contribuem para aumentar a probabilidade da ocorrên-
cia desse uso. Por sua vez, se tal consumo ocorre na
comunidade, é no âmbito comunitário que terão lugar
as práticas preventivas de maior impacto sobre a vul-
nerabilidade e o risco. Fatores de risco e de proteção

50
Bases para uma política pública sobre álcool, tabaco e outras drogas baseada em evidências

podem ser identificados em todos os domínios da vida: nos pró-


prios indivíduos, em suas famílias, em seus pares, em suas escolas
e nas comunidades, e em qualquer outro nível de convivência so-
cioambiental (FIGLIE, BOrDIN, LArANJEIrA, 2004).

Tabela 1
Fatores de risco ou de proteção conhecidos para o
desenvolvimento de uso de drogas

Fatores de Risco Fatores de Proteção

• Ambientes domésticos caóticos, especial- • Fortes laços com a família


mente aonde os pais abusam de substân- • Pais experientes em monitorar com regras
cias ou sofram de doenças mentais claras de conduta dentro da unidade familiar
• Paternidade ineficiente, especialmente e envolvimento dos pais na vida de seus filhos
com crianças com temperamentos difíceis • Fortes laços com instituições sociais como
e desordens de conduta a família, a escola, e organizações religiosas
• Falta de entrosamento entre pais e filhos • Adoção de normas convencionais sobre uso
e déficit de nutrição de drogas
• Comportamento inapropriado de timidez e • Sucesso escolar
agressividade em sala de aula • Outros fatores como a disponibilidade de
• Insucesso escolar drogas, padrões de tráfico de drogas, e
• Habilidades de enfrentamento social po- crenças de que o uso de drogas é normal-
bres mente tolerado também influenciam o número
• Amizade com adolescentes com compor- de jovens que começam a usar drogas
tamentos inadequados
• Percepções de aprovação de comporta-
mento de uso de droga na escola, entre os
colegas e no ambiente comunitário

Ambientes e domínios da vida

As ações preventivas podem ser realizadas em diversos


ambientes como, por exemplo, a comunidade, a escola e as empre-
sas. Para cada um desses domínios existem fatores de risco e fatores

51
Manual de abordagem de dependências químicas

Programa de prevenção:Pro-
gramas que visam evitar a ex-
de proteção. Um programa de prevenção planejado deve co-
posição de uma pessoa ou um meçar definindo o ambiente de onde vão partir as ações
grupo de pessoas a um fator
de risco e aumentar o impacto e a partir de então quais os domínios deverão ser traba-
dos fatores de proteção com o
objetivo de se evitar um agravo
lhados. A prevenção visa diminuir os fatores de risco e
de saúde ou doença. aumentar os fatores de proteção para cada um dos do-
mínios de vida definidos como foco do programa de pre-
venção. Em cada um desses ambientes existem diferentes
domínios, cujas ações preventivas podem ser direciona-
das (Tabela 2).

Tabela 2
Diferentes domínios de direcionamento de ações preventivas

Domínio Individual: refere-se aos fatores relacionados a um indivíduo específico -


sua carga genética; seu funcionamento psicológico; suas habilidades psicológicas
e sociais.
Domínio de Pares: refere-se aos fatores relacionados a um grupo de indivíduos
que tem estreita convivência entre si: seus hábitos; seus valores; seus comporta-
mentos e estilo de vida.
Domínio familiar: refere-se aos fatores relacionados aos hábitos, regras, definições
de papéis na família.
Domínio Escolar: refere-se aos fatores relacionados às regras, papéis, relaciona-
mentos entre os diversos membros da escola (alunos, diretores, professores, coor-
denadores).
Domínio Social: refere-se aos fatores relacionados ao ambiente coletivo - as regras,
os relacionamentos entre as diversas facções da sociedade, as políticas públicas
de restrição de venda de bebida, etc.

Intervenções preventivas

A prevenção voltada para o uso abusivo e/ou dependência


de álcool e outras drogas pode ser definida como um processo de
planejamento, implantação e implementação de múltiplas estratégias
voltadas para a redução dos fatores de vulnerabilidade e risco es-

52
Bases para uma política pública sobre álcool, tabaco e outras drogas baseada em evidências

pecíficos, também de fortalecimento dos fatores de proteção


que implica, necessariamente, em inserção comunitária das prá-
ticas propostas, com a colaboração de todos os segmentos so-
ciais disponíveis, buscando atuar dentro de suas competências,
para facilitar processos que levem à redução da iniciação no con-
sumo, do aumento desses em frequência e intensidade, e das
consequências do uso em padrões de maior acometimento global
(FIGLIE, BOrDIN, LArANJEIrA, 2004).
O compartilhamento de responsabilidades, de forma
orientada às praticas de efeito preventivo, também não deve abrir
mão da participação dos indivíduos diretamente envolvidos com o
uso de álcool e outras drogas, na medida em que devem ser impli-
cados como responsáveis por suas próprias escolhas, e como agen-
tes e receptores de influências ambientais (MArLAtt, 1999).

Relacionamento familiar

Programas de prevenção podem fortalecer os fatores de


proteção entre crianças pequenas, ensinando aos pais habilidades
para melhor comunicação na família, disciplina, leis e regras fami-
liares consistentes, e outras habilidades que os pais devem ter. As
pesquisas também mostraram que os pais devem tomar maior co-
nhecimento e ter mais participação na vida de seus filhos como,
por exemplo, falar com eles sobre drogas, monitorar as suas ativi-
dades, saber quem são seus amigos e compreender seus problemas
e preocupações.

Relacionamento entre colegas

Programas de prevenção focalizam o relacionamento de


cada um com os colegas, desenvolvendo habilidades e competência

53
Manual de abordagem de dependências químicas

social, que envolvam melhoria da capacidade de comunicação, me-


lhoria de relacionamentos positivos entre colegas e comportamen-
tos sociais e habilidades de resistência para recusar a oferta de
drogas.

O ambiente escolar

Os programas de prevenção também têm como objetivo


a implementação do desempenho acadêmico e o estreitamento dos
laços entre a escola e o aluno, oferecendo a eles maior identidade e
capacidade de realização, reduzindo a probabilidade de abandono
escolar. A maior parte dos currículos inclui o apoio a bons relacio-
namentos entre colegas
e uma educação desenvolvida de modo a corrigir a falta
de percepção de que a maior parte dos alunos está usando drogas.
As pesquisas mostraram também que, quando as crianças entendem
os efeitos negativos das drogas (físicos, psicológicos e sociais) e per-
cebem a desaprovação do uso de drogas dos seus colegas e da fa-
mília, tendem a evitar o início do uso de drogas.

O ambiente comunitário

Os programas de prevenção trabalham no nível comuni-


tário com organizações cívicas, religiosas, de execução de leis e po-
líticas públicas governamentais, através de mudanças na
regulamentação política, esforços de mídia de massa e programas
comunitários amplos. Os programas comunitários devem incluir
novas leis e a melhoria das anteriores, restrições à propaganda, e
zonas escolares sem droga - todas desenhadas para oferecer um
ambiente seguro e livre delas.

54
Bases para uma política pública sobre álcool, tabaco e outras drogas baseada em evidências

Políticas públicas para o álcool e outras drogas

Entende-se por política pública de prevenção de uso de


droga, qualquer esforço ou decisão de autoridades governamentais
e não governamentais para minimizar ou prevenir problemas rela-
cionados ao consumo de AtOD. Essas ações são divididas em duas
categorias para as drogas lícitas (álcool e tabaco): alocatória e regu-
latória (BABOr et al., 2003; DUAILIBI, 2007). A alocatória está
relacionada com as campanhas educativas e tratamento do depen-
dente. A regulatória está relacionada com as leis que regulam os
preços e taxação de bebidas e cigarros, idade mínima para compra
de álcool e tabaco, horário de funcionamento de bares, proibição
parcial ou total de propagandas de bebidas e tabaco. Para as drogas
ilícitas as ações são centradas e discutidas em relação a: repressão,
fiscalização, prisão, descriminalização, despenalização ou legalização
(Figura 2).

Figura 2
Políticas públicas para redução da mobimortalidade do uso abusivo
de álcool e outras drogas. Adaptado de Babor, 2003

Alocatórias Regulatórias
Campanhas educativas. Leis que regulam os preços e
Tratamento para o dependente. taxação de bebidas alcoólicas e
compra de tabaco.
Restrição do horário de funciona-
mento de locais de venda e idade
mínima para compra.
Proibição de propagandas.

Outras medidas
Repressão
Fiscalização
Prisão
Descriminalização
Despenalização ou legalização
55
Manual de abordagem de dependências químicas

Efetividade: Capacidade de Um estudo da OMS com especialistas de nove


produzir um efeito, que pode
países para avaliar o custo-efetividade de diferentes políti-
ser positivo ou negativo. Con-
sequentemente, o que é efe-
tivo não necessariamente écas preventivas relacionadas ao consumo de bebidas al-
eficiente ou eficaz.
coólicas é composta das dez melhores práticas com base
na evidência de efetividade, existência de suporte cientí-
fico, possibilidade de transposição para diferentes cultu-
ras, custos com implementação e sustentação. Dessas
práticas, cinco são regulatórias do controle do álcool,
quatro do controle do beber e dirigir e uma de terapêu-
tica, do tipo intervenção breve para bebedores pesados
(DUAILIBI, 2007).
Com o objetivo de reduzir a morbimortalidade do uso
abusivo de álcool e outras drogas, o ministério da saúde elaborou
algumas diretrizes tais como: investimento em ações educativas e
informativas sobre o álcool, drogas, acidentes e violência; campa-
nhas preventivas sobre dirigir alcoolizado, tipo: se beber não dirija,
tolerância zero no trânsito, implementação de políticas de redução
de danos para o uso de álcool e outras drogas (MINIStÉrIO DA
SAÚDE, 2006).

Tabela 3
Políticas públicas para redução da morbimortalidade
do uso abusivo de álcool. Adaptado de Babor, 2003.

Regulatórias do controle de álcool Regulatórias do beber e dirigir


1. Estabelecimento e fiscalização de idade 1. Redução do limite da concentração de
mínima legal para a compra de bebidas al- álcool no sangue permitida para dirigir
coólicas 2. Suspensão administrativa da licença de
2. Monopólio governamental das vendas de motoristas que dirigem alcoolizados
bebidas no varejo 3. Estabelecimento de postos de fiscaliza-
3. Restrição de horários ou dias de venda ção de sobriedade
4. Restrições de densidade dos pontos de 4. Política de “tolerância zero” quanto ao
venda de álcool dirigir alcoolizado por vários anos no licen-
5. Criação de impostos para o álcool ciamento de motoristas novatos

56
Bases para uma política pública sobre álcool, tabaco e outras drogas baseada em evidências

Considerações finais

Há evidências de que a disponibilidade de álcool, tabaco


e outras drogas, a promoção e propaganda, as leis e normas sociais,
estão de forma direta ligadas ao consumo e aos problemas relacio-
nados. O aumento do preço e taxação diminuem o consumo de ál-
cool e tabaco e os problemas associados. Intervenções no
ambiente/comunidade mostram melhor relação custo-efetividade
do que as intervenções direcionadas ao indivíduo. Políticas eficazes
requerem que leis e normas sejam cumpridas, intervenções para
prevenção e promoção da saúde, e acesso a tratamento de quali-
dade. O processo de tratamento deve estar atrelado a vários com-
ponentes disponíveis na comunidade, tais como: serviços de saúde
mental e tratamento de doenças infectocontagiosas, serviços voca-
cionais, serviços de atendimento à criança e família, serviços edu-
cacionais, transporte, habitação, assistência legal (National Institute
of drug abuse, 2012) (Figura 3).

Figuras 3
Componentes do tratamento integral do abuso de drogas

57
Manual de abordagem de dependências químicas

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58
Capítulo 4

Políticas públicas e a assistência integral


do paciente com dependência química
Daniela Conceição dos Santos

Introdução

As políticas públicas brasileiras começaram a ter Políticas públicas: direitos


assegurados constitucional-
relevância a partir de 1988, em que os direitos fundamentais mente ou que se afirma graças
foram instituídos. O direito à saúde e à assistência é es- aosociedade
reconhecimento por parte da
e/ou pelos poderes
sencial à pessoa humana, garantindo qualidade de vida e públicos enquanto novos dire-
itos das pessoas, comunidades,
o desenvolvimento pleno da sociedade. coisas, ou outros bens matérias
ou imateriais. São conjuntos de
Assim, uma das formas de se garantir o acesso programas, ações e atividades
a princípios basilares do nosso Estado democrático de desenvolvidas pelo Estado di-
reta ou indiretamente que visam
direito se dá através das políticas públicas que podem ser assegurar determinado direito.
consideradas como diretrizes, princípios norteadores do Direitos fundamentais: são
os direitos humanos positiva-
poder público e que estabelecem regras e procedimentos dos em um determinado orde-
namento jurídico. No Brasil os
nas relações entre poder público e a sociedade. direitos fundamentais são es-
As políticas de saúde e assistência abordam dire- tabelecidos na constituição e
estão divididos em três dimen-
trizes para o acesso aos serviços de prevenção, tratamento, sões: 1. Individuais, civis e
políticos; 2. Sociais, econômi-
reabilitação e reinserção social, contribuindo assim para cos e culturais; e 3. Difusos e
que as pessoas tenham melhores condições de vida, bem coletivos.
como possam construir novos projetos de vida ante as vul-
nerabilidades existentes em nossa sociedade.
O presente capítulo tem por objetivo demonstrar que o
ordenamento jurídico brasileiro estabelece leis e princípios que ga-
Manual de abordagem de dependências químicas

rantem o direito à saúde e a assistência, entretanto há a necessidade


de eficácia de seu acesso e de conhecimento de tais institutos para
que se possa realizar de forma qualificada o atendimento e enca-
minhamento de seus usuários. Por outro lado, cabe aos usuários
exigir a tutela dos direitos essenciais à sua dignidade, fazendo com
que o Estado cumpra seu dever de guardião da Carta Magna.

Políticas públicas de saúde e saúde mental

O direito à saúde é direito de todos, sendo essencial à ma-


nutenção da vida, já que previsto como direito fundamental. Ante
a evolução da sociedade, o conceito de saúde alcançou novos sen-
tidos, abrangendo tanto o corpo como a mente dos indivíduos.
Desta feita, as políticas públicas de saúde foram instituídas com o
objetivo de proteger bens jurídicos essenciais à pessoa humana,
quais sejam: a vida e à saúde.
Sistema Único de Saúde – O ordenamento jurídico brasileiro prevê a pre-
SUS: conjunto de ações e
serviços de saúde, prestados venção, proteção, recuperação e reabilitação frente aos
por órgãos e instituições públi-
cas federais, estaduais e mu- riscos encontrados, assim com a implantação do Sistema
nicipais, da Administração
direta e indireta e das fun-
Único de Saúde (SUS), que é organizado com base nas leis
dações mantidas pelo Poder 8.080/1990 e 8.142/1990, cabe ao Estado cumprir com
Público.
Descentralização: transfer-
o direito à saúde, previsto constitucionalmente. Ademais,
ência do poder de decisão possui como diretrizes a responsabilidade descentralizada,
sobre a política pública do
nível federal para os estados e a hierarquização e a participação da comunidade.
municípios.
Descentralização: transfer-
ência do poder de decisão
sobre a política pública do
nível federal para os estados e
municípios.

60
Políticas públicas e a assistência integral do paciente com dependência química

Insta salientar que o SUS tem como base os


princípios da Universalidade: que garante o direito a Universalidade: princípio do
SUS que garante o direito a
todos os cidadãos; Equidade: garante o direito à saúde todos os cidadãos.
de forma igualitária, considerando suas especificidades; Equidade: princípio do SUS
Integralidade: em que as ações são desenvolvidas para que garante o direito à saúde
de forma igualitária e con-
ofertarem a promoção da saúde, prevenção e riscos siderando suas especificidades.
ante seus agravos, recuperação e assistência. Integralidade: Princípio do SUS
que garante que as ações são
Com o intuito de tratar o uso de álcool e drogas desenvolvidas para ofertarem a
promoção da saúde, prevenção
como saúde pública, em 2003 foi publicado pelo Minis- e riscos ante seus agravos, recu-
tério da Saúde, a Política de Atenção Integral a Usuários peração e assistência.
de Álcool e Outras Drogas.
Já no que pertine à saúde mental, após a luta antimanico-
mial que propôs diversas mudanças no sistema psiquiátrico, pode-
se destacar a Lei 10.216/01, que dispõe sobre a proteção e os
direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais redirecio-
nando o modelo assistencial em saúde mental. Ademais, é um
grande marco para os usuários e dependentes de álcool e outras
drogas, pois prevê ações para o atendimento a eles.
Vale registrar a possibilidade de modalidades de interna-
ções que deverão ser procedidas, depois de esgotadas às medidas
extra-hospitalares e de laudo médico circunstanciado. São elas:
· Internação voluntária: aquela que se dá com o consenti-
mento do usuário;
· Internação involuntária: aquela que se dá sem o consenti-
mento do usuário e a pedido de terceiro;
· Internação compulsória: aquela determinada pela justiça.
Lado outro, no intuito de não afastar tais usuários da so-
ciedade, tem-se como objetivo proporcionar atendimento qualifi-
cado em equipamentos não hospitalares de internação, tais como
o Centro de Atendimento Psicossocial - CAPS, em especial, o
CAPS AD (Cento de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) que
tem como “{...} objetivo atendimento à população, realizar o acompanha-
mento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer,

61
Manual de abordagem de dependências químicas

exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários”.


(Portal. Saúde. gov.br)
Outro marco importante para o atendimento aos usuários
de álcool e outras drogas é o Programa Nacional de Atenção Co-
munitária a Usuários de Álcool e Outras Drogas, instituído através
da Portaria GM/MS 816/2002 no âmbito do SUS, que tem por ob-
jetivo:

Art. 1º. {...}


I. Articular as ações desenvolvidas pelas três esferas de governo des-
tinadas a promover a atenção aos pacientes com dependência e/ou
uso prejudicial de álcool ou outras drogas;
II. Organizar e implantar rede estratégica de serviços extra-hospitalares
de atenção aos pacientes com esse tipo de transtorno, articulada à
rede de atenção psicossocial;
III. Aperfeiçoar as intervenções preventivas como forma de reduzir
os danos sociais e à saúde, representados pelo uso prejudicial de álcool
e outras drogas;
IV. realizar ações de atenção/assistência aos pacientes e familiares, de
forma integral e abrangente, com atendimento individual, em grupo,
atividades comunitárias, orientação profissional, suporte medicamen-
toso, psicoterápico, de orientação e outros;
V. Organizar/regular as demandas e os fluxos assistenciais;
VI. Promover, em articulação com instituições formadoras, a capaci-
tação e supervisão das equipes de atenção básica, serviços e progra-
mas de saúde mental locais. (Portaria GM/MS 816/2002)

Em 2004, a Portaria GM/MS 2.197/2004 instituiu a Po-


lítica Nacional de Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras
Drogas, também por intermédio do SUS, que deve ser desenvolvido
de forma descentralizada, pelos municípios, estados, Distrito Fede-
ral e governo federal, observando-se a intersetorialidade entre a
saúde mental e a atenção primária à saúde.
Ademais, visando à possibilidade de atendimento emer-
gencial dos usuários de álcool e outras drogas, a Portaria 2.629 de
2009, prevê a internação de curto prazo em hospitais gerais.

62
Políticas públicas e a assistência integral do paciente com dependência química

Além dos vários marcos legais supramencionados, des-


taca-se também a lei 11.343/06 que prevê medidas para preven-
ção ao uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e
dependentes de droga, repressão à produção não autorizada e ao
tráfico ilícito de drogas, bem como define crimes.
Convém ressaltar que tal legislação aborda inovações,
pois dispõe acerca da distinção entre usuários, dependentes e tra-
ficantes, a aplicação de medidas sócio-educativas a serem aplica-
das pelos Juizados Especiais Criminais para dependentes e
usuários, e não mais sujeitos à pena privativa de liberdade, man-
tendo assim a caracterização do porte de drogas, entrementes
aquele que estiver sob regime de pena privativa de liberdade de-
verá ter atendimento ofertado pelo sistema prisional, ademais
prevê o aumento do tempo de prisão para os traficantes e tipifica
o crime de financiador, bem como, prevê benefícios fiscais para
iniciativas de prevenção.
Desta feita, conclui-se que o acesso e a efetividade de tais
políticas é de suma importância para que direitos fundamentais a
pessoa humana sejam observados, bem como para que os princí-
pios em nossa Carta Magna sejam garantidos.

Política de assistência

Ao se analisar a evolução da assistência constata-se que


foi a partir da Constituição de 1998 que a mesma adquiriu relevân-
cia, se tornando um direito social a ser prestado para aqueles que
dela necessitarem, independentemente de contribuição, e estabele-
cendo diretrizes para as políticas públicas, deixando assim o caráter
assistencialista até então instituído.
Por sua vez, em 1993, a Lei Orgânica da Assistência Social
– LOAS foi instituída asseverando que a mesma tenha a participa-
ção da população, bem como tenha a descentralização político-ad-

63
Manual de abordagem de dependências químicas

ministrativa. Ademais, a implementação do Sistema Único da As-


sistência Social – SUAS que resultou de deliberação da IV Confe-
rência Nacional de Assistência Social, efetivou a assistência social
como política pública, universalizando os acessos e a responsabili-
dade estatal, prevendo a sua organização em todo o território na-
cional, identificando os problemas sociais e os recursos financeiros
necessários, aumentando assim a cobertura social, garantindo bem-
estar e proteção a todos aqueles que dela necessitarem.
Assistência Social: faz parte
do sistema de Seguridade So-
Já a Política Nacional de Assistência Social –
cial no Brasil definido pela Con- PNAS/004, aprovada pelo Conselho Nacional de Assis-
stituição Brasileira e pela
LOAS. Tem como função a tência Social – CNAS, unificou conceitos e procedimen-
manutenção de uma política
social destinada ao atendi-
tos em todo o território nacional, estabelecendo ações a
mento das necessidades bási- serem desenvolvidas, baseadas nos princípios da univer-
cas dos indivíduos em prol da
família, maternidade, infância, salidade de direitos sociais, supremacia de atendimento,
adolescência, velhice, amparo
às crianças e adolescentes car- igualdade de direitos de acesso ao atendimento sem ne-
entes, promoção da Integração
ao mercado de trabalho, habil-
nhuma discriminação, respeito à dignidade, autonomia
itação e reabilitação das pes- dos cidadãos aos seus direitos e divulgação dos benefí-
soas portadoras de deficiência
e a promoção de sua inte- cios, serviços, programas e projetos assistenciais.
gração a vida comunitária.
Nessa vereda, a norma operacional básica do SUAS –
NOB/SUAS regulamenta a gestão pública da política de assistência
social, considerando-se a descentralização político – administrativa
e o financiamento.
Insta registrar que a tipificação Nacional de Serviços
Socio-assistenciais – 2009, padronizou os serviços sócio-assisten-
ciais, organizando-os conforme os níveis de complexidade do Sis-
tema Único de Assistência Social.
No que tange ao enfrentamento ao uso e dependência de crack
e outras drogas, a Política de Assistência Social ganhou grande impor-
tância na medida em que as ações devem ser intersetoriais, conforme pre-
coniza o Decreto 7.179/2010 e pelo programa “Crack é Possível Vencer”.
Para que haja enfrentamento das vulnerabilidades existen-
tes, é necessária a implantação de diversas políticas públicas, consi-
derando-se as especificidades dos territórios, garantindo assim aos

64
Políticas públicas e a assistência integral do paciente com dependência química

usuários o acesso à ações preventivas, socioeducativas, pautadas no


fortalecimento comunitário e familiar.
Desta forma, seja na proteção básica através do Centro de
Referência da Assistência Social - CRAS; que oferta serviços sócio-as-
sistenciais às famílias em situação de vulnerabilidades sociais, bem
como na proteção especial, através do Centro de Referência Especiali-
zado da Assistência Social - CREAS que oferta serviços especializados,
destinados a famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e
social, por violação de direitos; e o Centro de Referência Especializado
para População em Situação de Rua - Centro POP, que oferta serviço es-
pecializado para população em situação de rua devem ter obser-
vância, precipuamente, na prevenção e reinserção social dos
usuários e dependentes de crack, conjuntamente com suas famílias
oportunizando a construção de novos projetos de vida frente às
vulnerabilidades existentes.
Salienta-se também que é necessária a capacitação con-
tinuada dos profissionais de tais equipamentos, para que ante a
complexidade do uso de crack e outras drogas possam desenvol-
ver intervenções efetivas e não baseadas em posturas moralistas.
Assim, como se vê a política de assistência é de suma re-
levância para que o atendimento a usuários e dependentes de crack
e outras drogas seja qualificado. Ademais, tal política coaduna com
as demais políticas sendo, dessa forma, dever do Estado garantir o
acesso a tais serviços.

Conclusão

Desde a Constituição de 1988 as políticas públicas vêm


modificando-se consideravelmente, possibilitando condições míni-
mas de proteção a direitos essenciais à pessoa humana.
Nesse sentido, constata-se que o direito à saúde e a assis-
tência são direitos essenciais, previstos em nossa Carta Magna,

65
Manual de abordagem de dependências químicas

assim a não observância de tais direitos opõe-se aos preceitos cons-


titucionais nela previstos.
Ademais, torna-se necessário o conhecimento das legisla-
ções brasileiras acerca de saúde, assistência, bem como segurança
pública para que todos os setores possam disseminar tais informa-
ções, contribuindo assim para a prevenção, tratamento, reinserção
social e o enfrentamento ao tráfico de drogas, na medida em que
afetam a todos os cidadãos.
Por fim, observa-se que ante as legislações já existentes e
direitos já garantidos, basta-se a sua efetividade, todavia muito ainda
há que se conquistar para que o acesso a tais políticas possam re-
presentar as reais necessidades de nossa sociedade, ofertando ser-
viços qualificados e oportunizando melhores condições de vida.

Referências

BrASIL. Constituição Federal de 1988. In:Pinto, Antônio Luiz de


toledo;Windt,Márcia Cristina Vaz dos Santos; Céspedes, Lívia. Vade Mecum Com-
pacto, 3ª Ed.São Paulo; Saraiva, 2010.
BrASIL. Leis 10.216, de 06 de abril de 2001; 11.343, de 23 de agosto de 2006.
BrASIL. Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Disponível
em HttP://www.mds.gov.br.htm>Acesso em: 20 de Nov. 2010.
BrASIL. Ministério da Saúde. A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral
a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Brasília. Ministério da Saúde, 2004.
BrASIL. Portaria GM/MS 336, de 19 de fevereiro de 2002, 816, de 30 de abril
de 2002;2.197, de 14 de outubro de 2004;384, de 5 de julho de 2005;1..612, de
09 de setembro de 2005.
BrASIL. Política Nacional sobre Drogas. Brasília. Presidência da república, Se-
cretaria Nacional sobre Drogas, 2010.

66
Capítulo 5

Aspectos do
Estatuto da Criança e do Adolescente
e o uso de drogas
Renato César Cardoso
Luiz Filipe Araújo

Introdução

Marco fundamental na história brasileira, a Constituição


de 1988 trouxe modificações importantes, em inúmeros aspectos
do tratamento jurídico que até então recebiam as mais diversas
questões, promovendo mudanças profundas no ordenamento pá-
trio. No que tange à garantia de direitos à infância e à adolescência,
assim como ao tratamento das questões relativas às drogas, em seus
mais variados âmbitos, não foi diferente.
De fato, com o novo marco legal de 1988, novidades sig-
nificativas são incorporadas e assistimos a uma verdadeira revolução
na forma de normatizar tudo o que diz respeito à criança e ao ado-
lescente. Mudanças que já vinham tomando corpo no cenário jurí-
dico internacional, e.g. a doutrina de proteção integral, acabam
sendo incorporadas definitivamente ao direito brasileiro:

“A doutrina de proteção integral inspira-se na normativa


internacional, materializada em tratados e convenções, especialmente
os seguintes documentos: a) Convenção das Nações Unidas Sobre os
Manual de abordagem de dependências químicas

Direitos da Criança; b) regras Mínimas das Nações Unidas para a Ad-


ministração da Justiça da Infância e da Juventude (regras de Beijing);
c) regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Pri-
vados de Liberdade; e d) Diretrizes das Nações Unidas para a Preven-
ção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de riad).” (CUry,
GArrIDO & MArÇUrA, 2002, p. 21).

No plano da Constituição, portanto, passamos a encontrar


dispositivos diversos que nos interessam especialmente; em seu ca-
pítulo VII – cuja redação atual foi dada pela Emenda Constitucional
nº 65, de 2010 – o texto da Carta Magna se dedica especificamente
ao tema da família, da criança, do adolescente, do jovem e do idoso.
Uma breve análise do capítulo revela preceitos constitucionais que
tocam em pontos nevrálgicos da temática aqui exposta. Seu artigo
226, já de início, estabelece que: “A família, base da sociedade, tem
especial proteção do Estado” e que: § 8º “O Estado assegurará a
assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram,
criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas re-
lações”.
O artigo 227, por sua vez, dispõe: “É dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimen-
tação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à digni-
dade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discrimi-
nação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º O Estado
promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do
adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não
governamentais, mediante políticas específicas (....)”.
O mesmo artigo constitucional, em seu parágrafo terceiro,
estabelece os aspectos a serem abrangidos pelo direito à proteção
especial; entre outras medidas, dispõe em seu inciso I “a idade mí-
nima de quatorze anos para admissão ao trabalho”; no IV estabe-
lece a “garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de

68
Aspectos do Estatuto da Criança e do Adolescente e o uso de drogas

ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por


profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar espe-
cífica”; em seu inciso V comanda “obediência aos princípios de bre-
vidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida pri-
vativa da liberdade”; enfim, em seu inciso VII, propugna por “pro-
gramas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao
adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas
afins.”
Dando seguimento e aprofundamento às reformas ini-
ciadas com a Constituição, cabe destacar a aprovação, em 13 de
julho de 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
pela Lei nº 8.069, que passou a vigorar a partir de 14 de outubro
do mesmo ano. Em sede de lei ordinária, o ECA tem por escopo
dar concretude aos dispositivos da Constituição que asseguram
às crianças e aos adolescentes direitos concernentes a todas as di-
mensões do desenvolvimento humano. O papel do ECA na re-
gulamentação e realização dos preceitos constitucionais foi
imprescindível: “Apesar de toda a inovação no que tange à assis-
tência, proteção, atendimento e defesa dos direitos da criança e
do adolescente, constantes na Constituição Federal, esses não po-
deriam se efetivar se não regulamentados em lei ordinária. Se
assim não fosse, a Constituição nada mais seria do que uma bela,
mas ineficaz carta de intenções.” (VErONESE, 2008, p.10)
Em substituição ao antigo Código de Menores, a lei n.
6.697, de 10 de outubro de 1979, o ECA trouxe avanços indiscutí-
veis: passam a viger as doutrinas da proteção integral, especial e
prioritária para crianças e adolescentes, reconhecendo-se a esses
como pessoas em desenvolvimento, sujeitos de direitos e merece-
dores de reconhecimento especial por parte do Estado e da socie-
dade: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais à pessoa humana, assegurando-se-lhes, por lei ou por
outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes fa-

69
Manual de abordagem de dependências químicas

cultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social


em condições de liberdade e dignidade” (NOGUEIrA, 1996, p.12).
Agora em regime de responsabilidade compartilhada, família, so-
ciedade e Estado passam a ter que assegurar a proteção destes
novos sujeitos de direitos. Veja-se, quanto a isso, o art. 70 do ECA:
É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos
direitos da criança e do adolescente.
Com efeito, apesar de hoje parecer-nos absolutamente
correto e justo que assim o seja, nem sempre o tratamento dado às
crianças e adolescentes foi pautado por esses princípios. O citado
Código de Menores, que ditava a disciplina, era focado na sanção e
não no cuidado e proteção, não reconhecendo àqueles aos quais se
dirigia a condição de sujeitos mínimos de direitos, e contribuindo,
decisivamente, para a perpetuação das condições de indignidade em
que viviam inúmeras crianças e adolescentes. Adotava a perniciosa
doutrina da “situação irregular”, não abrangendo assim a todos os
menores, com o intuito de protegê-los, mas apenas àqueles órfãos
ou infratores, com fito primeiro de vigiá-los.
Partindo de pressupostos e paradigmas inteiramente dife-
rentes, com o objetivo de estabelecer dispositivos para a proteção
integral da criança (até doze anos incompletos) e o adolescente
(entre os doze e dezoito anos), o ECA estabelece que: “gozam de
todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem pre-
juízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,
por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a
fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espi-
ritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” (art. 3º).
O ECA também veio garantir, em seu artigo 4º, absoluta
prioridade na efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência fa-
miliar e comunitária, às crianças e aos adolescentes, estabelecendo
como dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do

70
Aspectos do Estatuto da Criança e do Adolescente e o uso de drogas

poder público assegurá-los. O parágrafo único do mesmo artigo


esclarece do que se trata essa garantia de prioridade: “a) primazia
de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) pre-
cedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pú-
blica; c) preferência na formulação e na execução das políticas
sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas
áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.”
Ponto importante, que não pode ser olvidado, foi o reco-
nhecimento da condição peculiar da criança e do adolescente como
“pessoas em desenvolvimento” pela Constituição, em seu artigo
227, V, refirmado e reforçado no ECA, em seu art. 6º, nos seguintes
termos: “Na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins so-
ciais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e
deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e
do adolescente como pessoas em desenvolvimento.”
Para além da mudança de enfoque, também a mudança de
terminologia que vemos com a implementação do ECA merece ser
destacada, haja vista que contribuiu, significativamente, no esforço
de mitigar alguns dos estigmas que cercam muitas crianças e ado-
lescentes, em especial os marginalizados. A começar pelo próprio
termo “crianças e adolescentes”, que substituiu “menores”, pas-
sando pelo uso de “ato infracional” no lugar de “crime” ou “delito”,
ou de “medida socioeducativa” no lugar de “punição” ou “pena”,
nota-se profundo esforço de desconstruir inúmeros preconceitos
que, não obstante, em muitos casos ainda perduram.
reconhecidas como pessoas humanas em processo de de-
senvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais,
garantidos na Constituição e nas leis, as crianças e adolescentes pas-
sam a ter reconhecidos seus direitos à liberdade, ao respeito e à dig-
nidade (art. 15).
A tabela a seguir (Tabela 1) sintetiza de forma esquemática
as mais importantes inovações introduzidas pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente, comparativamente à legislação anterior:

71
Manual de abordagem de dependências químicas

Tabela 1
Comparação do Código de Menores com o ECA
adaptado de BRANCHER (2000, p. 126)
ASPECTO CÓDIGO DE MENORES ECA
Doutrinário Situação irregular Proteção integral
Caráter Filantrópico Política pública
Fundamento Assistencialista Direito subjetivo
Centralidade local Judiciário Município
Executivo União/estados Município
Decisório Centralizador Participativo
Institucional Estatal Co-gestão
Organizacional Piramidal Rede
Gestão Monocrática Democrática

Importante destacar que o ECA, em seu art. 19, estabelece


de forma direta a previsão legal de que: “toda criança ou adoles-
cente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e,
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência
familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas
dependentes de substâncias entorpecentes.” Nesta esteira, o art. 98
comanda que se apliquem medidas de proteção à criança e ao ado-
lescente que são aplicáveis sempre que os seus direitos forem amea-
çados ou violados, indistintamente I) em caso de ação ou omissão
do Estado; II) em caso de falta omissão ou abuso dos pais ou res-
ponsáveis; III) em razão de sua conduta.
As medidas de proteção que devem ser determinadas pela
autoridade competente, nestes casos de ameaça ou violação a direitos,
variam grandemente conforme o caso concreto. Entre elas temos
desde o simples encaminhamento aos pais ou responsáveis, mediante
termo de responsabilidade, até a requisição de tratamento médico,
psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial ou
mesmo a inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio,
orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos (art.101).

72
Aspectos do Estatuto da Criança e do Adolescente e o uso de drogas

A importante questão do acesso à justiça, no caso das


crianças e adolescentes, é abordada no ECA a partir do título VI,
art. 141, que diz: “É garantido o acesso de toda criança ou adoles-
cente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judi-
ciário, por qualquer de seus órgãos”. A assistência gratuita, (§ 1º),
bem como a isenção de custas e emolumentos nas ações judiciais
da competência da Justiça da Infância e da Juventude (§2) também
são garantidas. A criação da Justiça da Infância e da Juventude, re-
gulada no art. 145 e seguintes, diz que os estados e o Distrito Fe-
deral poderão criar varas especializadas e exclusivas da infância e
da juventude, cabendo ao Poder Judiciário estabelecer sua propor-
cionalidade por número de habitantes, dotá-las de infra-estrutura e
dispor sobre o atendimento, inclusive em plantões. A sua compe-
tência, explicitada no art.148, vai desde conhecer representações
promovidas pelo Ministério Público, para apuração de ato infracio-
nal atribuído a adolescente, aplicando as medidas cabíveis ou con-
ceder a remissão, como forma de suspensão ou extinção do
processo, até conhecer pedidos de adoção e seus incidentes ou
ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos
afetos à criança e ao adolescente. também é de sua competência
conhecer ações decorrentes de irregularidades em entidades de
atendimento, aplicando as medidas cabíveis.

Justiça da infância e da juventude

O movimento de implementação da justiça da infância e


da juventude pode ser mais bem explicado com a aplicação da co-
nhecida teoria das “três ondas do acesso à justiça”: Na primeira
onda, temos o acesso à justiça expandido pela garantia de assistência
jurídica gratuita e a expansão de serviços jurídicos à parcela despri-
vilegiada da sociedade, removendo os obstáculos econômicos exis-
tentes no Poder Judiciário. O segundo momento desse processo

73
Manual de abordagem de dependências químicas

vem no sentido de estabelecer à incorporação dos interesses cole-


tivos e difusos, tornando mais simples e eficaz a tutela de interesses
de grande parcela da população. Por fim, a terceira onda, ainda em
processo de concretização, se caracteriza pela maior informalidade,
busca da celeridade e da prevenção, preocupação maior pela efeti-
vação dos direitos fundamentais e das garantias constitucionais.
(CAPPELLEttI; GArtH, 2002)
Nesse sentido: “A Lei 8069/90 já atendeu a primeira onda
do acesso à justiça, ao conferir o direito a um Defensor Público,
que poderá inclusive exercer a função de Curador Especial, na tutela
dos Direitos da Criança e do Adolescente, conforme consta nos ar-
tigos 124, III, 142, parágrafo único, 148, parágrafo único, alínea f,
18 6, §2º e 190, I e II. A segunda onda do acesso à justiça também
foi alcançada na justiça infanto-juvenil, pois a Lei 8069/90 prevê a
possibilidade de proteção de interesses difusos e coletivos da infân-
cia e juventude nos artigos 208 e seguintes. A tutela dos interesses
metaindividuais de crianças e adolescentes foi tão prestigiada que a
competência da justiça infanto-juvenil prevalece até mesmo sobre
a competência das Varas de Fazenda Pública, na forma do artigo
148, IV, da Lei 8069/90. O grande desafio atual é atender aos ob-
jetivos almejados na terceira onda do acesso à justiça, buscando dar
efetividade as garantias constitucionais em favor de crianças e ado-
lescentes.” (VALVErDE, 2010, p. 4).
Enfim, muito há ainda que avançar na realização dos ideais
da Constituição e do ECA, no que diz respeito à concretização dos
direitos das crianças e adolescentes dignos de respeito e proteção,
enquanto pessoas em desenvolvimento que são. Mais do que apon-
tar os problemas, tentou-se mostrar que os caminhos já existem,
que as garantias já estão transformadas em direitos e que cabe-nos
agora buscar efetivá-los. O desafio, diário e hercúleo, nem sempre
superado com sucesso, não pode ser contudo abandonado: em jogo
temos nada menos que o destino de uma geração.

74
Aspectos do Estatuto da Criança e do Adolescente e o uso de drogas

Referências

BrANCHEr, Leoberto Narciso. Organização e gestão do sistema de garantia


de direitos da infância e da juventude. In: KONzEN, Afonso Armando (coord.)
et al. Pela Justiça na Educação. Brasília: FUNDESCOLA/MEC, 2000.
CAPPELLEttI, Mauro; GArtH, Bryant. Acesso à justiça. tradução de Ellen
Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002.
CUry, MArÇUrA & GArrIDO. Estatuto da criança e do adolescente ano-
tado. São Paulo: revista dos tribunais, 2002.
NOGUEIrA, Paulo Lúcio. Estatuto da criança e do adolescente comentado. 3
ed. São Paulo: Saraiva,1996.
SArAIVA, João Batista da Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indife-
rença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil.
2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005.
VALVErDE, tadeu Antonio. ADOÇÃO INtUItU PErSONAE, 2010,
http://www.abmp.org.br/media/files/biblioteca/00002574_tadeu_valverde_ado
cao_intuitu_personae_abmp.pdf, acessado em 01/12/2013.
VErONESE, Josiane rose Petry. O estatuto da criança e do adolescente e os
direitos fundamentais. São Paulo: Edições AMPM, 2008.

75
Capítulo 6

O papel conselho tutelar na abordagem


da criança e adolescente usuários de drogas
Renato César Cardoso
Luiz Filipe Araújo

Introdução

Os últimos vinte e cinco anos da história brasileira não re-


presentam apenas um período de redemocratização pela via eleito-
ral, mas marcam também o início de uma série de mudanças
estruturais no campo da sociedade, da política e do direito. Se a so-
ciedade brasileira passou a respirar os ares da liberdade política,
pouco a pouco as próprias instituições desses três campos passaram
a acompanhar essa nova vida. A década de 90 do último século foi
no campo jurídico, repleta de alterações legislativas que se fizeram
sentir na sociedade. Nesse contexto encontraremos o Estatuto da
Criança e do Adolescente.
temos nesse período a criação de modelos jurídicos que
superam a visão reducionista de um indivíduo abstrato: o cidadão
para o Código Civil, o criminoso para o Código Penal. Legislações
que em tamanha abstração se esqueceram das individualidades e
particularidades que compõem o corpo social. Com a Constituição
da república de 1988 tivemos a possibilidade de reconhecimento
de novos atores e interesses na vida brasileira: o consumidor, o
jovem, o idoso, a mulher em vulnerabilidade, o direito ao meio am-
Manual de abordagem de dependências químicas

biente, o direito das cidades, e o que nos interessa neste momento:


a criança e o adolescente. Vejamos o que dispõe a Constituição
sobre o interesse dos menores de idade e dos jovens:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
Pode-se dizer que redemocratização implica, necessaria-
mente, em ampliação das possibilidades de participação, atuação e
proteção da sociedade civil nas questões públicas. No regime polí-
tico anterior podia-se perceber uma relação paradoxal sobre os re-
gramentos jurídicos: ou encontrávamos concentração desmedida
ou completo descaso em relação aos projetos e planos sobre como
lidar com certos setores sociais, ou seja, legislações que implicavam
intervir junto à sociedade civil, como no caso da educação, família,
crianças, adolescentes, jovens, idosos, indígenas, portadores de ne-
cessidade especiais1.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 13 de julho


de 1990) é marco normativo para a construção de uma nova pers-
pectiva sobre como o Estado, através do direito, compreende as
parcelas que compõem a sociedade civil. O ECA, como é comu-
mente conhecido, representa a primeira legislação brasileira que cria
os chamados microssistemas jurídicos2, onde as normas jurídicas
de um diploma legal não tratam de apenas uma relação específica,
mas de um complexo de relações jurídicas.
Dito através de outra perspectiva, compreende-se os sujeitos
de direito na sua complexidade existencial e com o devido tratamento

78
O papel conselho tutelar na abordagem da criança e adolescente usuários de drogas

de suas necessidades e singularidades. Exemplificando, não se vê o


menor de idade apenas como um incapaz para os atos da vida civil ou
como criminoso em potencial, mas como um sujeito de direito que de-
manda toda uma forma particular de cuidado para o desenvolvimento
de suas faculdades, no seio de uma família saudável e harmônica.

Sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente

Se por um lado o ECA representa um microssistema jurí-


dico, por outro ele inaugura um sistema misto de proteção à popu-
lação infanto-juvenil. Nesse sentido, há a estruturação de um
Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, como foi
consagrado pela resolução nº 113 do Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente – CONANDA. Este sistema pode ser dividido
em três grandes frentes de atuação: promoção, controle e defesa
dos interesses da Criança e do Adolescente. tal sistema possui uma
intrincada estrutura que se desenvolve entre os entes da federação
(União, Estados, Municípios e Distrito Federal). Para ilustrar tal
complexidade segue representação gráfica do mesmo3:

Gráfico 1
Promoção, Controle e Defesa dos interesses da Criança e do Adolescente

79
Manual de abordagem de dependências químicas

Destacaremos apenas os órgãos que mais nos


interessam neste momento. No plano das políticas pú-
blicas encontram-se as figuras dos Conselhos de Direito,
nos três âmbitos da federação, quais sejam: CONANDA –
Conselho Tutelar: O Conselho
Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, Tutelar é um órgão público cole-
giado da esfera municipal, de
CEDCA – Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adoles- caráter deliberativo, executivo
cente e CMDCA – Conselho Municipal de Direitos da Criança e do e(nãofiscalizador. É permanente
pode ser dissolvido),
adolescente. Em especial, encontramos o Conselho Tutelar, o autônomo (não pode sofrer
qualquer ingerência no cumpri-
qual constitui-se em um órgão essencial do Sistema de mento de suas atribuições), não
Garantia dos Direitos (resolução nº 113 do CO- jurisdicional (não integra o
Poder Judiciário e nem a ele
NANDA), tendo sido concebido pela Lei nº 8.069, de 13 está subordinado), sendo encar-
regado pela sociedade de zelar
de julho 1990, para desjudicializar e agilizar o atendi- pelo cumprimento dos direitos
da criança e do adolescente.
mento prestado à população infanto-juvenil.
Poder-se-ia dizer que o Conselho tutelar veio desjudicializar
para agilizar o atendimento e a defesa dos interesses das crianças e
dos adolescentes, em uma parceria entre sociedade civil e poder pú-
blico. Inegavelmente, no regime anterior havia uma concentração
excessiva de funções no chamado Juiz de Menores do antigo Código
de Menores de 19794, em que esse detinha a competência e a decisão
para questões relativas ao infanto-juvenil5. Por mais proeminente
que seja a figura do poder judiciário após a Constituição de 1988,
necessário se faz aperfeiçoar a forma de atuação do poder público
por um princípio de organização racional da estrutura burocrática
do Estado. Está aí o relevante papel do Conselho tutelar na atual
ordem constitucional.
Nesse sentido a natureza jurídica do Conselho tutelar é
bastante peculiar, pois não é órgão vinculado ao Poder Judiciário,
mas sim de natureza administrativa, como esclarece Wilson Doni-
zeti Liberati e Públio Caio Bessa Cyrino na obra Conselhos e Fundos
no Estatuto da Criança e do Adolescente. O Conselho tutelar constitui
“uma instituição de direito público, de âmbito municipal, com ca-
racterísticas de estabilidade e independência funcional, desprovido
de personalidade jurídica”6. Isso implica dizer que participa do con-
80
O papel conselho tutelar na abordagem da criança e adolescente usuários de drogas

junto das instituições do Poder Público brasileiro, estando, portanto


obviamente subordinado às leis vigentes no país.
O conselho tutelar tem sua primeira elaboração legislativa
no Estatuto da Criança e do Adolescente nos artigos 131 e seguin-
tes. Os Conselhos tutelares, hoje, têm sua regulamentação com-
plementada pelo CONANDA7, através da competência normativa
que lhe é atribuída por lei, em que regulamenta de forma comple-
mentar a forma de criação e funcionamento dos Conselhos tute-
lares através da resolução Nº 139 de 17 de Março de 2010. tal
regulamentação se faz necessária pois, em pesquisa empreendida
pelo próprio CONANDA, foi revelada a inexistência de Conselhos
tutelares em cerca de 10% dos municípios brasileiros e graves de-
ficiências no funcionamento da maioria dos já constituídos8.

O conselho tutelar

Neste breve estudo sobre o Conselho tutelar abordare-


mos três dos seus aspectos centrais: sua estrutura, em especial a fun-
ção do Conselheiro; as atribuições do Conselho tutelar, em especial
como órgão essencial à proteção da população infanto-juvenil e o
elo entre Sociedade Civil e Estado; e, por fim, a função social do
Conselho tutelar.

Estrutura do conselho tutelar

Como claramente enuncia o art. 131 do Estatuto da


Criança e do Adolescente, o Conselho tutelar é órgão permanente
e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar
pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. tal
órgão será criado na proporção mínima de um conselho para cada
cem mil habitantes por município ou entidade administrativa, como

81
Manual de abordagem de dependências químicas

no caso do Distrito Federal. Já a resolução 139 do CONANDA


prevê que o Conselho tutelar deverá de preferência ser vinculado,
administrativamente, ao órgão da administração municipal ou, na
inexistência desse, ao gabinete do prefeito ou ao governador, caso
seja do Distrito Federal. tal previsão é extremamente importante
para fixar a necessidade de apoio do Poder Executivo na estrutura-
ção material dos Conselhos tutelares.
Deve-se desde já destacar que os Conselhos tutelares são
órgãos especialmente locais, ou seja, municipais ou distritais; não
se encontrará semelhante estrutura no âmbito estadual ou federal.
Porquanto, nesses o importante é a fixação de política pública es-
tratégica, a qual será empreendida pelo CEDCA – Conselho Esta-
dual de Direitos da Criança e do Adolescente e CONANDA –
Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, res-
pectivamente.
Em cada município haverá, no mínimo, um Conselho tu-
telar na proporção de 1 (um) Conselho a cada 100.000 habitantes.
Cada conselho será composto de no mínimo cinco membros, es-
colhidos pela comunidade local para mandato de três anos, permi-
tida uma recondução. Desde já, vale a pena mencionar que se trata
de escolha e não eleição. Isso implicou até mesmo em alteração le-
gislativa, que visou facilitar a deliberação para compor tal órgão. tal
opção se deve às dificuldades enfrentadas pela maioria dos municí-
pios em se organizar administrativamente. Assim, a já mencionada
resolução 139 estipula que, preferencialmente, a escolha se dará
por sufrágio universal, ou seja, por todos os eleitores do munícipio.
todavia, de maneira complementar, o processo de escolha
dos conselheiros será disciplinado por lei municipal e será realizado
sob a responsabilidade do Conselho Municipal dos Direitos da
Criança e do Adolescente, com a fiscalização do Ministério Público
(art. 139, ECA). Ainda por lei municipal haverá disposição sobre
local, dia e horário de funcionamento do Conselho tutelar, inclusive
quanto a eventual remuneração de seus membros (art. 134, ECA).

82
O papel conselho tutelar na abordagem da criança e adolescente usuários de drogas

Para a candidatura a membro do Conselho tutelar, serão


exigidos três requisitos: (a) reconhecida idoneidade moral; (b) idade
superior a vinte e um anos e (c) residir no município (art. 133, ECA).
Ainda quanto aos requisitos para candidatura a conselheiro, a re-
solução 139 sugere critérios a serem levados em conta pelas legis-
lações locais, quanto aos requisitos adicionais à candidatura, como
por exemplo: I - a experiência na promoção, proteção e defesa dos
direitos da criança e do adolescente; II - formação específica sobre
o Estatuto da Criança e do Adolescente, sob a responsabilidade do
Conselho dos Direitos da Criança e Adolescente local; e III - com-
provação de conclusão do ensino fundamental.
Esse enquadramento estabelece presunção de idoneidade
moral ao conselheiro tutelar e assegurará prisão especial, em caso
de crime comum, até o julgamento definitivo. Para além da respon-
sabilidade criminal, há que se mencionar as consequências em caso
de quebra das obrigações do conselheiro. A destituição do conse-
lheiro deve ser prevista por lei municipal, em especial nos seguintes
casos: descumprimento de suas atribuições; prática de atos ilícitos;
conduta incompatível com a confiança dada pela comunidade; den-
tre outras estipuladas no art. 40 da resolução nº 139 do CO-
NANDA.

Atribuições do conselho tutelar

O artigo 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente


elenca as atribuições do Conselho tutelar. Comentaremos algumas
delas no que tange aos aspectos jurídicos. O Conselho tutelar deve
atender as crianças e adolescentes nas hipóteses de ação e omissão
dos responsáveis, sociedade e Estado; quando aplicará as medidas
protetivas do art. 101, I a VII. Estas são, de forma geral, medidas
administrativas que visam o encaminhamento, orientação e requi-
sição da criança e adolescente em situação de vulnerabilidade.

83
Manual de abordagem de dependências químicas

Um aspecto interessante é que o Conselho tutelar não


pode aplicar por força própria a perda de guarda, destituição de tu-
tela, suspensão e destituição do poder familiar. Esses são casos em
que, pela gravidade das consequências, as decisões devem ter res-
paldo do Poder Judiciário; também não pode o Conselho tutelar
aplicar a medida de família substituta sem semelhante autorização
judicial. Vale ainda destacar que a criança que praticar algum ato in-
fracional (ato previsto como contravenção penal ou crime) será en-
caminhada ao Conselho tutelar e estará sujeita às medidas de
proteção previstas no art. 101; já o adolescente que pratica ato in-
fracional está sujeito a 7 (sete) medidas socioeducativas que também
serão aplicadas pelo Poder Judiciário e não pelo Conselho tutelar,
sendo eles: prestação de serviço à comunidade; obrigação de reparar
o dano; liberdade assistida ou vigiada; internação; advertência; se-
miliberdade e medida específica de proteção.
Existem ainda algumas garantias legais para o exercício da
atividade do Conselho tutelar que visam fortalecer a autonomia e
independência da função. Por exemplo, quem embaraça a atuação
do Conselho pratica crime previsto no art. 236 do ECA, com pena
de 6 meses a dois anos de detenção. Cabe também destacar que o
Conselho tutelar detém a capacidade para legitimamente represen-
tar perante o Ministério Público, em quaisquer circunstâncias que
se encontrem violações de direitos da criança e do adolescente.
As decisões e medidas adotadas pelo Conselho tutelar,
certamente poderão ser revistas pela autoridade judiciária, como
deixa claro o Art. 5º, da Constituição, mas o próprio ECA reforça
a questão em seu art. 137. todavia, não pode o juiz, de ofício, ou
seja, autonomamente, rever a decisão do Conselho tutelar. tal cir-
cunstância somente pode ocorrer por requerimento de quem tenha
legítimo interesse, devido ao princípio da inércia jurisdicional que
rege a atividade da magistratura. Destarte, sempre que necessário
poderá o Ministério Público ou outro interessado pleitear a revisão
do ato do Conselho tutelar.

84
O papel conselho tutelar na abordagem da criança e adolescente usuários de drogas

Função social do conselho tutelar

Para além dos aspectos meramente normativos é impor-


tante compreender a atuação do Conselho tutelar como um elo de
conexão entre Sociedade Civil e o Poder Público, conforme desta-
cou-se no início do presente texto. Veja-se que a legislação não con-
cebeu a função como mera carreira do funcionalismo público
burocrático. O Conselho tutelar recebe a estrutura, enquanto uma
função sui generis, que não se enquadra como servidor público stricto
sensu, mas sim como cargo honorífico que presta serviço de utili-
dade pública. A equiparação com o servidor público surge em casos
específicos, tais como nos casos de desacato, desobediência ou
quando o conselheiro comete peculato - apropriação ou desvio de
valores ou bens em virtude de sua função.
O ponto central neste diálogo democrático entre Socie-
dade Civil e Estado reside no carácter representativo e não-político
que o Conselho tutelar recebe em seu tratamento pela legislação
brasileira. tal fato distingue essa instituição de quaisquer outras que
tenham sido concebidas na história institucional do Brasil. Certa-
mente, somente a partir dos influxos de participação dos movimen-
tos sociais e organizações não governamentais, a partir da década
de setenta e oitenta, foi possível a estruturação dos Conselhos tu-
telares de forma plural e que, em tese, adequa-se às finalidades de
igual consideração e respeito do Estado Democrático de Direito.
Como toda instituição humana é passível de distorções e
falhas, assim também ocorre com os Conselhos tutelares. Por es-
tarem inseridos nas questões locais, muitos acabam sendo influen-
ciados pela pequena política municipal; não raras são as vezes que
se utiliza a função de conselheiro tutelar como ponte de projeção
social para futuros cargos políticos. Enquanto no exercício de fun-
ção pública administrativa, deve o conselheiro atuar com impessoa-
lidade e imparcialidade nos termos do art. 37 da Constituição.
todavia, não há previsão expressa quanto à desincompatibilização,

85
Manual de abordagem de dependências químicas

ou seja, afastamento da função até 3 (três) meses antes do pleito


eleitoral, situação que mereceria atenção do Poder Legislativo.
Apesar das possíveis distorções, o Conselho tutelar possui
um papel importantíssimo de concretização das políticas de prote-
ção integral da população infanto-juvenil no Brasil. Acima de tudo,
deve-se destacar que as qualidades que devem estar concentradas
no conselheiro tutelar estão além das de um mero servidor público,
em especial no que toca à sensibilidade e percepção da realidade do
outro. Exige-se uma grande capacidade de alteridade e compreen-
são das demandas específicas da criança e do adolescente.
Por fim, faz-se necessário destacar: os deveres normativos,
como os do art. 319 da resolução nº 139 do CONANDA, expres-
sam apenas uma pálida sombra das características que devem estar
presentes na difícil atuação do conselheiro tutelar. Por isso, trata-se
de uma instituição que merece respaldo do poder público e noto-
riedade pela sociedade civil, pois possibilita a construção de um fu-
turo melhor para aqueles que em uma geração anterior estariam
desamparados e negligenciados pelo Estado brasileiro.

Notas

1
Para marcar esse paradoxismo na legislação brasileira veja-se o cunho “civiliza-
dor” do Estatuto do Índio - Lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973 – e intuito
garantidor do Estatuto da Igualdade Racial – Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010.
2
tEPEDINO, Gustavo (Coord). Problemas de Direito Civil. rio de Janeiro: reno-
var, 2001. Pág. 1 e segs.
3
GADELHA, Graça apud Alexandre rocha Araújo. Responsabilização no contexto
do Sistema de Garantia de Direitos de Belo Horizonte: a posição do Conselho tutelar.
Dissertação de Mestrado. 114p. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2009.
Pág. 50.
4
Lei nº 6697, de 10 de outubro de 1979. Bem como o antigo Código Mello Mat-
tos (Decreto Nº 17.943-A de 12 de outubro de 1927).
5
Para um breve percurso histórico da legislação nos primórdios da republica cf.
FErrEIrA, Laura Valéria Pinto. Menores Desamparados da Proclamação da República
ao Estado Novo. Disponível em: http://www.ufjf.br/virtu/files/2010/05/artigo-
86
O papel conselho tutelar na abordagem da criança e adolescente usuários de drogas

7a5.pdf. Acesso em: 08/12/13.


6
Vide LIBErAtI, Wilson Donizeti; CyrINO, Púbio Caio Bessa. Conselhos e fun-
dos no Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros, 1993. Pág. 107.
7
Criado com a lei 8.242 de 12 de Outubro de 1991.
8
Como demonstra a pesquisa “Conhecendo a realidade” (CONANDA, 2006)
9
Art. 31. No exercício de suas atribuições, o Conselho tutelar deverá observar
as normas e princípios contidos na Constituição, na Lei nº 8.069, de 1990, na
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, promulgada pelo
Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990, bem como nas resoluções do
CONANDA, especialmente:
I - condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos;
II - proteção integral e prioritária dos direitos da criança e do adolescente;
III - responsabilidade da família, da comunidade da sociedade em geral, e do
Poder Público pela plena efetivação dos direitos assegurados a crianças e adoles-
centes;
IV - municipalização da política de atendimento à crianças e adolescentes;
V - respeito à intimidade, e à imagem da criança e do adolescente;
VI - intervenção precoce, logo que a situação de perigo seja conhecida;
VII - intervenção mínima das autoridades e instituições na promoção e proteção
dos direitos da criança e do adolescente;
VIII - proporcionalidade e atualidade da intervenção tutelar;
IX - intervenção tutelar que incentive a responsabilidade parental com a criança
e o adolescente;
X - prevalência das medidas que mantenham ou reintegrem a criança e o adoles-
cente na sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível, em família
substituta;
XI - obrigatoriedade da informação à criança e ao adolescente, respeitada sua
idade e capacidade de compreensão, assim como aos seus pais ou responsável,
acerca dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma
como se processa; e
XII - oitiva obrigatória e participação da criança e o adolescente, em separado
ou na companhia dos pais, responsável ou de pessoa por si indicada, nos atos e
na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção, de modo que
sua opinião seja devidamente considerada pelo Conselho tutelar.

87
Manual de abordagem de dependências químicas

Referências

FErrEIrA, Laura Valéria Pinto. Menores Desamparados da Proclamação da República


ao Estado Novo. Disponível em: http://www.ufjf.br/virtu/files/2010/05/artigo-
7a5.pdf. Acesso em: 08/12/13.
GADELHA, Graça apud Alexandre rocha Araújo. Responsabilização no contexto do
Sistema de Garantia de Direitos de Belo Horizonte: a posição do Conselho tutelar.
Dissertação de Mestrado. 114p. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2009.
p.50.
LIBErAtI, Wilson Donizeti; CyrINO, Púbio Caio Bessa. Conselhos e fundos no
Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros, 1993.
tEPEDINO, Gustavo (Coord). Problemas de Direito Civil. rio de Janeiro: renovar,
2001. p.1 e segs.

88
1o

2 89
PARTE 2
Aspectos clínicos dos transtornos
do uso de drogas
Capítulo 7

Efeitos somáticos e alterações clínicas do


álcool,tabaco e da maconha
Luciana Diniz Silva
Tatiana Bering
Marta Paula Pereira Coelho
Tamyres Tania Martins Marques
Naiara Cristina de Oliveira Souza

“Das Utopias
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!”
Mario Quintana

Introdução

O uso abusivo e a dependência ao álcool e a outras drogas


ilícitas são considerados problemas relevantes de saúde pública. O
consumo abusivo de álcool é apontado como uma das principais
causas de mortalidade e morbidade da população mundial. Ainda,
o uso abusivo de álcool associa-se a consequências graves no âm-
bito social (WHO, 2007). Cerca de dois bilhões de pessoas conso-
Manual de abordagem de dependências químicas

mem bebidas alcoólicas e mais 76 milhões de pessoas têm proble-


mas relacionados ao alcoolismo. Dados da OMS estimam que 2,3
milhões de mortes prematuras por ano se relacionam ao uso nocivo
do álcool, o que corresponde a 3,7% da mortalidade global
(SCHUCKIt, 2009).
O II Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas Psicotrópicas
(CArLINI et al., 2007) mostrou que o álcool é a substância lícita
mais utilizada nas 108 maiores cidades do Brasil. Do total de 7.939
indivíduos entrevistados, 74,6% faziam uso de álcool e 12,3%
foram diagnosticados como dependentes dessa substância. A pre-
valência do tabagismo foi de 44% e 10% para o uso durante a vida
e para dependência do tabaco, respectivamente. Nesse mesmo es-
tudo, verificou-se que 22,8% dos indivíduos estudados, a maioria
do sexo masculino, já havia feito o uso de substâncias ilícitas du-
rante a vida. No Brasil, observa-se que a droga ilícita de maior
consumo e de maior acessibilidade é a maconha (8,8%), seguida
pelos solventes (6,1%), os benzodiazepínicos (5,6%), a cocaína
(2,9%) e o crack (1,5%). Segundo estudos publicados no relatório
mundial sobre drogas de 2007, da Organização das Nações Uni-
das (ONU), no Brasil, foi detectado aumento do uso de cocaína
e de maconha, que se modificaram de 0,4% no ano de 2001 para
0,7% em 2005 e de 1% no ano de 2001 para, aproximadamente
3% em 2005, respectivamente.
Diversos fatores que determinam o início do
consumo de substâncias têm sido elencados, dentre eles
Hedonismo: busca pelo prazer.
destacam-se o hedonismo, a curiosidade, o alívio da dor,
do sofrimento e o desejo de vivenciar novas experiências
(BrAJEVIć-GIzDIć et al., 2009). Os episódios depres-
sivos têm sido associados ao abuso de substâncias
(BUKStEIN, et al., 1989).
Além dos transtornos psiquiátricos, várias comorbidades
clínicas associam-se ao uso abusivo e dependência de álcool e dro-
gas não álcool.

92
Efeitos somáticos e alterações clínicas do álcool,tabaco e da maconha.

Consequências clínicas associadas ao uso de álcool

O espectro de anormalidades associadas ao uso abusivo


de álcool é enorme. Dentre eles destacam-se aumento do risco car-
diovascular, do risco de câncer, de adoecimento, aumento da trans-
missão de Doenças Sexualmente transmissíveis (DSt) e HIV (sexo
desprotegido e injeção de drogas) e aumento da violência e de aci-
dentes. No Brasil, o álcool é responsável por cerca de 60% dos aci-
dentes de trânsito e é considerado uma das causas de morte
descritas em 70% dos laudos cadavéricos de mortes violentas
(MArQUES; rIBEIrO, 2002).
Mais de sessenta e um tipos de doenças relacionadas ao
uso abusivo de álcool foram descritos na literatura médica. Muitas
dessas comorbidades repercutem sobre o trato gastrointestinal. Isso
faz que o alcoolismo seja causa frequente de internação nos serviços
de gastroenterologia. Nesses casos, os pacientes são admitidos com
quadros graves de dependência de álcool e, na maioria das vezes, já
acompanhados por doenças associadas ao uso dessa substância.
Dentre os possíveis diagnósticos envolvidos, destacam-se a doença
hepática alcoólica, que pode estar ainda na fase assintomática ou já
ter atingido o estágio mais avançado (cirrose hepática e hepatocar-
cinoma), pancreatites (aguda ou crônica) e diversos tipos de câncer
como de esôfago e de estômago (WHO, 2007). Vale ressaltar que
muitas dessas situações evoluem para complicações graves e irre-
versíveis.

93
Manual de abordagem de dependências químicas

Tabela 1
Resumo das principais consequências clínicas
associadas ao uso do álcool

• Alterações neurológicas (SHERLOCK, 2011)


Síndrome de Wernicke-
Síndrome de Wernicke-Korsakoff
Korsakoff: também conhecida Doença cerebelar
como encefalopatia alcoólica. Atrofia cerebral
Trata-se de uma neuropatolo-
gia relacionada a deficiência de Neuropatia periférica
vitamina B1 (tiamina). Esta sín- • Alterações cardiológicas (SHERLOCK, 2011)
drome é caracterizada pela
tríade de sintomas: paralisia de Arritmias, hipertensão arterial
movimentos oculares, alte- Cardiomiopatia
rações da marcha e confusão
mental (desorientação tem-
Doença cardíaca isquêmica
poro-espacial e amnésia an- Complicações hematológicas
terógrada). • Alterações musculares e esqueléticas (SHERLOCK, 2011)
Miopatia
Osteoporose
• Alterações gastrointestinais (GONÇALVES, 2012)
Hepatopatias (esteatose, cirrose hepática e hepatite)
Esteatose: acúmulo anormal e
reversível de lipídeos (gordura) Pancretite crônica
nas células hepáticas. É um Úlcera e gastrite
precursor de doenças hepáticas
mais graves como a cirrose Neoplasias (boca, língua, esôfago, estômago e fígado)
hepática. • Alterações nutricionais (MAIO, et al., 2000)
Deficiência de micronutrientes (vitamina B12, folato, tiamina, piridoxina,
niacina, riboflavina, magnésio, zinco, cálcio) e macronutrientes (proteína)
Desnutrição
• Alterações hematológicas (PALADINO, 2000)
Anemia megaloblástica e anemia ferropriva
trombocitopenia
• Alterações pulmonares (GONÇALVES, 2012)
Incidência aumentada de tuberculose e de pneumonias bacterianas

Intoxicação aguda pelo álcool

A intoxicação pelo álcool determina o surgimento de


sinais e sintomas que são caracterizados pela depressão do sis-
tema nervoso central. Inicialmente, há sintomas de euforia leve,
94
Efeitos somáticos e alterações clínicas do álcool,tabaco e da maconha.

evoluindo para tontura, ataxia e incoordenação motora, Ataxia: incoordenação pa-


tológica dos movimentos do
passando para confusão e desorientação. Pode alcançar corpo.
graus variáveis de rebaixamento do nível de consciên-
cia, inclusive evoluir com estupor e coma (MArQUES; Estupor: alteração da cons-
ciência marcado pelo entor-
rIBEIrO, 2002). A intoxicação aguda provoca altera- pecimento das faculdades
cognitivas acompanhado de al-
ções variáveis do comportamento e do afeto, tais como terações motoras e sensitivas.
excitação e alegria, irritabilidade, agressividade, depres- Coma:
cia.
Estado de inconsciên-

são e ideação suicida. Ainda, alterações cognitivas estão


presentes como lentificação do pensamento, prejuízo
da concentração, raciocínio, atenção e julgamento. Há
maior susceptibilidade para acidentes automobilísticos,
agressões físicas, suicídios e homicídios e outros aci-
dentes (LArANJEIrA et al., 2000).
A correlação entre níveis sanguíneos de álcool (mg%),
alterações clínicas e condutas a serem adotadas estão descritas
no Tabela 2.

95
Manual de abordagem de dependências químicas

Tabela 2
Níveis plasmáticos de álcool (mg%), manifestações clínicas e condutas

Alcoolemia Quadro clínico Conduta


(mg%)
30 Euforia e excitação alterações Ambiente calmo.
leves da atenção. Monitoramento dos sinais vitais.
50 Incoordenação motora discreta Ambiente calmo.
alteração do humor personalidade Monitoramento dos sinais vitais.
e comportamento.
100 Incoordenação motora pronunciada Monitoramento dos sinais vitais.
com ataxia diminuição da concen- Cuidados intensivos à manutenção
tração, piora dos reflexos sensitivos das vias aéreas livres.
e piora do humor. Observar risco de aspiração do vômito.
200 Piora da ataxia, náusea e vômitos Internação.
Manutenção das vias aéreas livres.
Observar risco de aspiração.
Administração intramuscular de tiamina.
300 Disartria, amnésia, hipotermia e estu- Internação.
por (estágio I). Cuidados gerais para a manutenção
da vida.
Administração intramuscular de tiamina.
400 Coma/óbito (bloqueio respiratório Emergência médica.
central). Cuidados intensivos para a
manutenção da vida.
Seguir diretriz apropriada para a
abordagem do coma.

Fonte: MARQUE;RIBEIRO, 2002

Síndrome de abstinência: Síndrome de abstinência do álcool


Conjunto de sintomas cuja
gravidade é variável que ocor-
rem quando da interrupção ab-
soluta ou relativa do uso de
A cessação da ingestão crônica de álcool ou sua
uma substância psicoativa con- redução pode levar ao aparecimento de um conjunto de
sumida de modo prolongado. O
início e a evolução da síndrome sinais e sintomas definidos como síndrome de abstinência
de abstinência são limitadas no
tempo e dependem da catego- do álcool (SAA) (MArQUES; rIBEIrO, 2002).
ria e da dose da substância con-
sumida imediatamente antes da
parada ou da redução do con-
sumo. A síndrome de abstinên-
96
cia pode se complicar pela
ocorrência de convulsões.
Efeitos somáticos e alterações clínicas do álcool,tabaco e da maconha.

Os sinais e sintomas mais comuns da SAA são: Delirium Tremens: estado con-
fusional que ocorre durante a ab-
agitação, ansiedade, alterações de humor (irritabilidade, stinência de álcool em indivíduos
dependentes dessa substância. É
disforia), tremores, náusea, vômitos, taquicardia, hiper- caracterizado por confusão men-
tensão arterial, entre outros. Ocorrem complicações tal, desorientação, ideação per-
secutória, delírios, ilusões,
como: alucinações, o Delirium Tremens (Dt) e convulsões alucinações (tipicamente visuais
de animais), inquietude, tremores,
(LArANJEIrA et al., 2000). Os sintomas, em geral, re- sudorese, taquicardia e hiperten-
lacionam-se ao desenvolvimento da adaptação do cére- são. A instalação do delirium
tremens ocorre 48 horas ou mais
bro à exposição crônica do álcool e variam quanto à após a cessação ou redução do
consumo de álcool e pode durar
intensidade e à gravidade. por mais de uma semana.

A SAA tem uma duração média de sete a 10 dias e a maior


parte dos dependentes (70% a 90%) apresenta SAA entre leve a
moderada, que ocorre no período de 24 a 36 horas após a inter-
rupção da ingestão do álcool. Contudo, alguns pacientes podem de-
senvolver sintomas e complicações mais graves, inclusive evoluir
para o óbito (LArANJEIrA et al., 2000). A mortalidade gira em
torno de 1% (MArQUES; rIBEIrO, 2002).
Vários fatores influenciam o aparecimento e a evolução
dessa síndrome, entre eles destacam-se a vulnerabilidade genética,
o gênero, o padrão de consumo de álcool, as características indivi-
duais e os fatores socioculturais (LArANJEIrA et al., 2000).
De acordo com a Classificação Internacional das Doen-
ças (CID), da Organização Mundial de Saúde (OMS), existem cri-
térios para o diagnóstico da SAA, que estão descritos na Tabela 3
(MArQUES; rIBEIrO, 2002).

97
Manual de abordagem de dependências químicas

Tabela 3
Critérios para o diagnóstico da Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA)

Estado de abstinência (F10.3)


A. Deve haver evidência clara de interrupção ou redução do uso de álcool, após uso repetido,
usualmente prolongado e/ou em altas doses.
B. Três dos sinais devem estar presentes:
(1) tremores da língua, pálpebras ou das mãos quando estendidas;
(2) sudorese;
(3) náusea, ânsia de vômitos ou vômitos;
(4) taquicardia ou hipertensão;
(5) agitação psicomotora;
(6) cefaleia;
(7) insônia;
(8) mal-estar ou fraqueza;
(9) alucinações visuais, táteis ou auditivas transitórias,
(10) convulsões tipo grande mal.
Fonte: LARANJEIRA et al., 2000

A gradação da SAA varia entre nível I (leve a moderado) e


nível II (grave). O nível I é caracterizado por agitação psicomotora
leve e é caracterizado por tremores finos de extremidades; sudorese
facial discreta; episódios de dor de cabeça; náusea sem vômitos; sen-
sibilidade visual sem alteração da percepção auditiva e tátil, ansiedade
leve sem episódios de violência. O tratamento pode ser feito ambu-
latorialmente. Contudo, o nível II associa-se à agitação psicomotora
intensa, com tremores generalizados, sudorese profusa, cefaleia, náu-
sea e vômitos, sensibilidade visual intensa e quadros epiletiformes
agudos ou relatados na história pregressa. Nesse quadro, o paciente
apresenta desorientação e ansiedade intensa. Diante de indivíduos
com características de SAA, nível II, o tratamento deve ser feito me-
diante hospitalização (LArANJEIrA, et al., 2000).
SAA é responsável por um aumento significativo na
morbidade e mortalidade relacionadas à ingestão de álcool e é um
dos critérios diagnósticos da síndrome de dependência de álcool
(MACIEL, et al., 2004).
98
Efeitos somáticos e alterações clínicas do álcool,tabaco e da maconha.

O tratamento tem como objetivo o alívio dos sintomas


existentes, a prevenção, quadro graves acompanhados por convul-
sões e delirium. Além desse aspecto, torna-se essencial estimular e
direcionar o paciente para o tratamento da dependência química
(LArANJEIrA, 2000).
É muito importante o acompanhamento desses pacientes
por uma equipe interdisciplinar e multiprofissional, em que vários
profissionais da saúde atuam em benefício do paciente, sendo ne-
cessário também o suporte para os familiares (LArANJEIrA, et
al., 2000).

Síndrome de dependência do álcool

A Síndrome da Dependência do Álcool é um transtorno


psiquiátrico com repercussões individuais, sociais e econômicas gra-
ves (GIGLIOttI et al., 2004).
No Brasil, a prevalência varia de 3% a 10% na população
adulta, sendo que o álcool é considerado a substância psicotrópica
mais consumida no país (MONtEIrO et al., 2011). Em 2002, ocor-
reram 4.580 e 515 óbitos, nos indivíduos do sexo masculino e fe-
minino, respectivamente (LEON, 2007). O uso compulsivo de
álcool ocasiona redução da qualidade de vida para o indivíduo e
seus familiares e, ainda, associa-se à atitudes antissociais (MON-
tEIrO et al., 2011). Na Tabela 4, encontram-se as características da
Síndrome de Dependência do Álcool (SDA).

99
Manual de abordagem de dependências químicas

Tabela 4
Elementos essenciais para o diagnóstico da Síndrome de
Dependência do Álcool (SDA)

Estreitamento de repertório: o indivíduo utiliza a bebida com flexibilidade,



mas depois aumenta a frequência do consumo, aumentando a quantidade
e com o passar do tempo, torna-se compulsivo e incontrolável.
• Relevância do comportamento de busca pela bebida: o indivíduo prioriza

o ato de beber que se torna superior à família, ao trabalho e aos amigos.


• Aumento da tolerância ao álcool: há necessidade do aumento das
doses para obter o mesmo resultado das doses menores.
• Sintomas repetidos de abstinência: se tornam mais intensos de acordo
com a gravidade da dependência.
• Alívio ou evitar sintomas de abstinência pelo aumento da ingestão da bebida, que é
sintoma importante dessa síndrome sendo mais evidente com a progressão do quadro.
• Consciência subjetiva da compulsão para beber no sentido de aliviar
os sintomas da abstinência.
• Reintegração da síndrome após abstinência: ocorre após longos períodos de
abstinência, seguidos de uma recaída retornando para o quadro antigo de dependência.

Fonte: GIGLIOTTI et al., 2004

O diagnóstico de dependência de álcool é feito quando há


um padrão de consumo desproporcional da substância evidenciado
durante um ano. também é necessário três ou mais das seguintes
manifestações: desejo forte ou senso de compulsão para consumir
a substância; dificuldade em controlar o comportamento de con-
sumir a substância em termos de início, término ou níveis de con-
sumo; e estado de abstinência quando o uso da substância cessou
ou foi reduzido (MONtEIrO et al., 2011).
O tratamento pode ser feito ambulatorialmente ou por
meio de hospitalização (MONtEIrO, 2011). Ainda, o plano tera-
pêutico pode englobar outros tipos de intervenção como “Alcoóli-
cos Anônimos” (AA) em que a dinâmica é baseada na terapia de
grupo. É primordial que o suporte terapêutico envolva o indivíduo
e seus familiares.

100
Efeitos somáticos e alterações clínicas do álcool,tabaco e da maconha.

Consequências clínicas associadas à dependência da nicotina

O tabagismo é uma doença causada pela depen- Tabagismo: síndrome de de-


dência à nicotina, droga presente em qualquer derivado pendência ao tabaco.
do tabaco, seja cigarro, charuto, cachimbo, cigarro de
palha ou fumo de rolo. A nicotina exerce sua ação au-
mentando as concentrações de dopamina, que por sua
vez, induz a sensação de prazer, relaxamento e redução
do estresse, o que acaba por levar a dependência. Além
disso, a nicotina ocasiona diversos efeitos prejudiciais à
saúde (CUNHA et al., 2007). Dentre eles, destacam-se au-
mento do risco de doenças cardiovasculares, doenças pul-
monares, aumento do risco de câncer, osteoporose,
úlceras gástricas e influência sobre a fertilidade (BrASIL,
2001).
A nicotina ao atuar sobre o coração ocasiona aumento
da frequência cardíaca, da contração do coração e da vasocons-
trição coronária (artérias responsáveis pela irrigação sanguínea do
coração). Esses efeitos acarretam diminuição do fluxo sanguíneo
para órgãos nobres como o coração e o cérebro. Essas alterações
determinam o surgimento de lesões nesses órgãos alvo: infarto
agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral (AVC). A fumaça
do cigarro também contém o monóxido de carbono (CO), gás
que dificulta a chegada de oxigênio às células, aumentando ainda
mais os riscos de doenças isquêmicas. Alguns estudos apontam
que o consumo de tabaco é responsável por 45% dos óbitos por
doença coronariana (infarto do miocárdio) e 25% das mortes por
doença cerebrovascular (WHO, 1996; DOLL, 1994; U.S. SUr-
GEON GENErAL, 1989; rOSEMBErG, 2002 apud BrASIL,
2003b). Ainda, alterações nos vasos sanguíneos e aumento da
agregação plaquetária, situações que elevam, consideravelmente,
o risco de trombose, também são identificadas (CUNHA et al.,
2007).

101
Manual de abordagem de dependências químicas

A nicotina ocasiona broncoconstrição, isto é, dificulta a


passagem de ar para esse órgão. Ainda, eleva a produção de muco,
o que pode ocasionar bronquite crônica obstrutiva e acomete cerca
de 80% dos fumantes. Ao longo do tempo, devido às continuas
agressões, ocorre à instalação de processo inflamatório crônico, as-
sociado a fatores genéticos e acarreta lesão alveolar (responsável
pelas trocas gasosas), resultando assim em enfisema pulmonar. Essa
doença tem grandes repercussões na saúde do indivíduo, como por
exemplo, dispneia (falta de ar), hipóxia (diminuição da oxigenação
dos tecidos), cianose (coloração azulada da pele) e alterações do
formato do tórax (tórax globoso). (LOPEz et al., 2004)
O uso do tabaco está relacionado à taxa de mortalidade
por câncer duas vezes maior em fumantes do que em não fumantes,
sendo o tabagismo responsável por 90% dos casos de câncer de
pulmão (VOLKOW, 2006).
Na gestação, o uso de nicotina pode ocasionar alterações
como prematuridade, baixo peso ao nascer, alterações na placenta
e, após o nascimento, pode provocar alterações do sistema respira-
tório e do desenvolvimento neurológico da criança (Abordagem e
tratamento do Fumante, Brasil, et al., 2001).
As consequências do tabagismo passivo também devem
ser consideradas. Alguns estudos apontam que os não-fumantes,
cronicamente expostos à fumaça do tabaco, têm 30% de risco de
desenvolver câncer de pulmão e 24% de risco de desenvolver doen-
ças cardiovasculares a mais que os não-fumantes não expostos
(WHO, 1996; DOLL, 1994; U.S. SUrGEON GENErAL, 1989;
rOSEMBErG, 2002 apud BrASIL, 2003b). A exposição de crian-
ças pequenas e, especialmente bebês, à fumaça do cigarro dos pais
aumenta em 50% o risco infecção respiratória baixa, como pneu-
monia e bronquite (BrASIL, 2007).
Deve-se enfatizar que sempre há benefícios diretos e indi-
retos para quem deixa de fumar, independente da idade ou do sexo.
Como exemplo, após três semanas sem fumar a respiração se torna

102
Efeitos somáticos e alterações clínicas do álcool,tabaco e da maconha.

mais fácil e a circulação melhora; após um ano o risco de morte por


infarto do miocárdio se reduz à metade e, após cinco a 10 anos o risco
de sofrer infarto será igual ao das pessoas que nunca fumaram; após
20 anos sem uso do tabaco o risco de desenvolver câncer de pulmão
será igual ao das pessoas que nunca fumaram (BrASIL, 2001).

Consequências clínicas associadas ao uso da maconha

A maconha ocasiona efeitos narcóticos e aluci- Narcótico: que causa sono e


nógenos, isto é, sintomas de bem-estar que reforçam seu faz adormecer.
uso continuado é o principal motivo pelo qual essa droga
é utilizada como droga de abuso. Seu uso é amplamente
difundido no mundo e a maior importância dessa droga
está no fato de que ela, muitas vezes, torna-se o passo
inicial no caminho da dependência química, já que muitos
usuários de outras drogas, como cocaína e crack, relatam
a maconha como primeira droga ilícita de abuso.
A maconha é preferencialmente fumada a partir da com-
binação de diversas partes da planta na forma de cigarros de fabri-
cação caseira “baseados”, em cachimbos ou narguilés. Podem
também ser ingerida (folhas mascadas) ou preparada com alimentos
(infusões ou chá de folhas, caules ou bolos). A biodisponibilidade
da substância nesses casos é maior, e os efeitos mais tardios, mas
mais intensos e duradouros (LArANJEIrA, et al., 2000).
O tempo de ação varia de duas a quatro horas, depen-
dendo da qualidade e da quantidade de substância utilizada. O me-
tabolismo do tetrahidrocanabinol (tHC) é principalmente hepático,
mas também pulmonar, com formação de derivados canabinóides
ativos, com grande afinidade lipídica, concentrando-se rapidamente
em cérebro e gônadas. A eliminação de metabólitos pode ser pelas
fezes ou pela urina. Os canabinóides são detectáveis na urina até
sete dias após o uso de um cigarro (FILHO et al., 2001).

103
Manual de abordagem de dependências químicas

Manifestações clínicas

São manifestações comumente relatadas: relaxamento, eu-


foria, alegria e aumento da acuidade dos sentidos, associados à dis-
torção com relação à orientação temporo-espacial, diminuição do
senso crítico e da capacidade executiva, podendo ocorrer também
prejuízos na coordenação dos movimentos, distúrbios de equilíbrio
e fala arrastada (FILHO et al., 2001).
Ainda, alguns sintomas somáticos são identificados: taqui-
cardia, xerostomia, congestão de conjuntivas, alterações da pupila
e dificuldade de acomodação visual, aumento do apetite, náusea,
vômitos e aumento relativo da libido (desinibição, com consequente
facilitação do desempenho sexual).

104
Efeitos somáticos e alterações clínicas do álcool,tabaco e da maconha.

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107
Capítulo 8

Alterações clínicas características do uso de crack


Luciana Diniz Silva
Kiara Gonçalves Dias Diniz
Daniel Gonçalves Dias Diniz
Lucas de Freitas Virgílio

Introdução

Apesar do uso de crack ainda não ser o maior


problema de saúde pública, associado ao uso de drogas,
a prevalência do uso dessa droga tem crescido no Brasil
Prevalência do uso de
nos últimos dez anos. A prevalência do uso de crack era de crack: cresceu de 0,4% em
2001, para 0,7% em 2004,
0,4% em 2001, 0,7% em 2004 e 0,85% em 2013 (FIO- para 0,85 em 2013.
CrUz, 2013). A dependência ao crack instala-se rapida-
mente, e em muitos casos, assume uma forma
devastadora do ponto de vista somático, social e psico-
lógico.

O crack e a cocaína
Crack: substância derivada da
Crack (também chamado de craque) é uma cocaína que pode ser fumada.
Seus efeitos diferenciam-se do
droga, geralmente, fumada feita a partir da mistura clori- da cocaína por serem de início
drato de cocaína com bicarbonato de sódio e amonia. É mais rápido e de duração mais
curta.
uma forma impura de cocaína e não um subproduto. O
Manual de abordagem de dependências químicas

nome deriva do verbo “to crack”, que, em inglês, significa


“quebrar”, devido aos pequenos estalidos produzidos
pelos cristais (as pedras) ao serem queimados, como se
quebrassem (BAStOS, 1997; LANDry, 1994).

Alterações clínicas produzidas pelo uso do crack

O uso do crack pode desencadear sintomas gra-


Delírio: modificação do pensa-
mento marcada por uma falsa ves de agressividade, de delírios e alucinações, além de acar-
crença irrefutável a argumen-
tação lógica. retar prejuízos importantes à saúde física e mental do
Alucinações: são percepções
sensoriais reais de um objeto
indivíduo (LArANJEIrA et al., 2001; GUINDALINI et
que não existe. al., 2006).
Quando o crack é fumado, a fumaça contendo a
substância atinge o pulmão, é absorvida e a cocaína é
transportada pela corrente sanguínea até o cérebro. A co-
caína é distribuída pelo organismo por meio da circulação
Metabolismo: conjunto de
transformações químicas sanguínea e, por fim, uma vez metabolizada, é eliminada
feitas nas moléculas que en-
tram no organismo para neu- pela urina. Sua ação no cérebro é responsável pela de-
tralização ou eliminaçãoo de
uma droga.
pendência.
Dentre as consequências clínicas do uso do
Paranoia: sentimento de des-
crack destacam-se doenças pulmonares, comorbidades
confiança persistente, exces- psiquiátricas (psicose, paranoia, alucinações) e doenças
sivo, mal fundamentado e
irremovível pela argumentação cardíacas (DIrEtrIzES GErAIS MÉDICAS PArA
lógica.
ASSIStÊNCIA INtEGrAL AO CRACK, 2011).
Dessa maneira, o espectro de alterações clínicas associadas
ao uso do crack é variado (Tabela 1) e observam-se desde alterações
locais, como queimaduras e bolhas em pontas dos dedos (Figura 1),
podendo se associar às lesões graves em vias respiratórias que amea-
çam a vida dos indivíduos (rIBEIrO et al., 2010).

110
Alterações clínicas características do uso de crack

Tabela 1
Efeitos e manifestações clínicas relacionadas ao uso do crack/cocaína

Cardíacas
Angina do peito, Arritmias cardíacas, Cardiomiopatia dilatada, Edema agudo de pulmão,
Hipertensão arterial, Hipertrofia de ventrículo esquerdo, Infarto agudo do miocárdio,
Má-formações cardíacas (CIA, CIV e pulmonar), Miocardite, Rotura de aorta
Gastrointestinais
Colite isquêmica, Isquemia intestinal, Perfuração gastroduodenal
Obstétricas
Baixo peso para a idade gestacional, Descolamento prematuro de placenta,
Microcefalia, Prematuridade
Neurológicas
Atrofia cerebral, Convulsões, Dor de cabeça, Hemorragia cerebral,
Infarto cerebral, Vasculite Cerebral
Pulmonares
Bronquilote obliterante, Crack lung, Edema pulmonar, Exacerbação de asma,
Pnemomediastino, Pnemopericárdio, Pneumotórax
Otorrinolaringológicas
Alterações do olfato, Ceratite, Erosão do esmalte do dente, Perfuração de septo nasal,
Rinite crônica, Sinusite osteolítica, Ulceração gengival
Psiquiátricas
Ansiedade, Delírio, Depressão, Paranoia, Psicose, Suicídio
Endócrinas
Hiperprolactinemia
Renais
Insuficiência renal aguda (rabdomiólise)
Outras
Defeito do epitélio da córnea, Hipertermia, Morte súbita, Neuropatia óptica, Priaprismo

Adaptado de ANDRADE FILHO et al., 2001.

111
Manual de abordagem de dependências químicas

Figura 1
Lesões cutâneas por queimadura nas pontas dos dedos de
características de usuários de crack

Alterações cardíacas associadas ao uso de cocaína/crack

Os sintomas cardiovasculares são os mais com-


prometedores e ameaçadores à vida de usuários de crack.
Angina: dor no peito de início Dentre esses, destacam-se angina, cardiomegalia, infarto
agudo.
agudo do miocárdio (ASLIBEKyAN et al., 2008;
MArAJ et al., 2010), arritmias, isquemia miocárdica
aguda, hipertensão arterial, ruptura da aorta, morte súbita
entre outros (JONES et al., 2003; AFONSO et al., 2007;
MArAJ et al., 2010).
Nos Estados Unidos, o uso abusivo de cocaína é consi-
derado causa frequente de dor torácica em adultos e jovens, e é
responsável por 25% dos infartos do miocárdio em pessoas com
menos de 45 anos de idade (QUrESHI et al., 2001). O uso da
cocaína está relacionado aos efeitos tóxicos agudos e crônicos,
sendo que dos atendimentos hospitalares, cerca de 5% a 10%

112
Alterações clínicas características do uso de crack

tem como causa o uso da cocaína (ASLIBEKyAN et al., 2008;


MArAJ et al., 2010).
O efeito alfa-adrenérgico, produzido pelo bloqueio da re-
captação de noradrenalina causa vasoconstrição coronariana
(LANGE et al., 1989), sendo assim, a cocaína estimula o sistema
nervoso central, ocasionando o aumento da pressão arterial e a ace-
leração dos batimentos cardíacos (MArAJ et al., 2010). Além desse
aspecto, seu uso promove a agregação plaquetária e formação de
trombos no local e, em longo prazo, acelera a aterosclerose e pro-
duz hipertrofia ventricular esquerda (HOLLANDEr, 1995).

Figura 2
Aumento do trabalho cardíaco, sob efeito da cocaína, com redução do
aporte de glicose e oxigênio para o coração, aumentando assim o risco
de isquemia, arritmias e infarto agudo do miocárdio (RIBEIRO et al., 2010).

113
Manual de abordagem de dependências químicas

A terapia utilizada em quadro agudo de dor torácica é ba-


seada em administração de oxigênio suplementar, aspirina, nitratos
e benzodiazepínicos, quando o paciente apresenta taquicardia, hi-
pertensão ou ansiedade. O paciente deve ficar em observação clí-
nica por 24 horas que se seguem à admissão hospitalar. Já no caso
de infarto agudo do miocárdio induzido pelo uso de cocaína/crack
deve-se seguir o tratamento para dor no peito pelo efeito da
cocaína, recomendado pela American Heart Association (AHA)
(rIBEIrO et al., 2010).

Alterações pulmonares associadas ao uso de cocaína/crack

A cocaína exerce efeito estimulatório agudo sob o aparelho


respiratório, quando em pequenas doses, e depressão respiratória no
caso do uso excessivo. Por sua vez, o crack é a substância ilícita mais
associada às complicações respiratórias que exigem internação hos-
pitalar. As alterações pulmonares estão associadas à via de adminis-
tração da droga, quantidade e frequência do uso e das características
individuais de cada usuário. Ainda, em função da inexistência de con-
trole de qualidade na produção da droga, a variedade de produtos
utilizados em sua produção também determina dano pulmonar
(tErrA FILHO, 2004; LArANJEIrA et al., 2010).
Usuários de crack podem evoluir com várias complica-
ções, desde queimadura da faringe e das vias aéreas, até pneumonias
e infecções secundárias (rIBEIrO et al., 2010). A apresentação clí-
nica é variada, incluindo sintomas inespecíficos ou diretamente re-
lacionados ao dano pulmonar, presentes após 1 a 12 horas do uso
(LArANJEIrA et al., 2010). As manifestações são compostas por
dor torácica, dispneia, tosse com escarro enegrecido, expectoração
sanguinolenta, chiado e febre. Quadros de asma podem ser induzi-
dos ou exacerbados em função da ocorrência de broncoespasmo
(tErrA FILHO, 2004).

114
Alterações clínicas características do uso de crack

Geralmente, os usuários inspiram profundamente e, em


seguida, executam a manobra de Valsalva para acentuar a absorção
e os efeitos da droga. Essas manobras provocam aumento da pres-
são intra-alveolar e desencadeiam ruptura alveolar. Complicações
semelhantes são menos observadas em fumantes de maconha
(VANDEr KLOOStEr e GrOOtENDOrSt, 2001). Dessa
maneira, o enfisema bolhoso, às vezes ocorre em sua forma grave
nos usuários de cocaína, de maconha (JOHNSON et al., 2000) e de
metilfenidato intravenoso (SCHIMIDt et al., 1991).
Dentre as complicações pulmonares subagudas relaciona-
das ao uso da cocaína, incluem-se edema pulmonar, “pulmão do
crack”, pneumonite intersticial e bronquiolite obliterante com pneu-
monia de organização (BOOP) (DEVLIN et al., 2008).
O “pulmão do usuário de crack” é caracterizado pela dis-
pnéia aguda, acompanhada por baixa concentração de oxigênio no
sangue, febre, expectoração sanguinolenta e insuficiência respira-
tória (FOrrEStEr et al., 1990). Do ponto de vista anátomo-pa-
tológico, observa-se lesão alveolar, hemorragia alveolar e infiltração
de células inflamatórias intersticiais e intra-alveolar (DEVLIN et al.,
2008).

Alterações gastrointestinais associadas ao uso de cocaína/crack

As alterações gastrointestinais associadas ao uso


de cocaína são menos comuns que as pulmonares e car-
díacas. Após o uso da droga, o usuário pode apresentar
dor abdominal, náusea, vômito e diarreia com sangue
(tIWArI et al., 2006). O uso de cocaína por qualquer via
Xerostomia: boca seca.
de administração produz xerostomia, bruxismo e redução Bruxismo: contração da man-
díbula causando o ranger dos
da motilidade gastrointestinal. Além dessas alterações, a dentes.
cocaína induz isquemia e vasoconstrição, que podem re-
sultar em ulceração gastrointestinal, perfuração e colite

115
Manual de abordagem de dependências químicas

isquêmica. Úlceras associadas à cocaína são distribuídas, principal-


mente na primeira porção do duodeno e na curvatura maior e re-
gião pré-pilórica do estômago (LArANJEIrA et al., 2010).
Lesões no fígado também estão relacionadas ao uso da
droga. A cocaína ocasiona necrose hepatocelular com aumento das
aminotransferases. Contudo, como usuários de cocaína, comu-
mente fazem uso abusivo de álcool, na maioria das vezes é difícil
determinar o impacto isolado de cocaína/crack na função hepática.
Sabe-se que a ingestão concomitante de álcool pode sensibilizar
os hepatócitos a danos pela cocaína (LArANJEIrA et al., 2010;
PErINO et al., 1987; PONSODA et al., 1999).

Alterações renais associadas ao uso de cocaína/crack

A função renal pode ser influenciada pelo uso


de cocaína/crack. Dentre os mecanismos implicados na
disfunção renal, destacam-se alterações hemodinâmicas,
anormalidades na síntese da matriz glomerular, vasocons-
Rabdomiólise: quebra rápida
de músculo esquelético devido
trição e rabdomiólise. Esse último evento refere-se à des-
a lesão no tecido muscular. truição de células musculares e se associa à vasocontrição
arterial grave, ao aumento da atividade do sistema ner-
voso autônomo simpático e hipertermia. A disfunção
renal pode ocasionar insuficiência renal aguda, que nor-
malmente responde ao tratamento conservador, porém
pode ser necessária diálise (HOSSEINNEzHAD et al.,
2011).

Caso clínico ilustrativo do desafio na abordagem do


usuário de cocaína/crack: padrão de uso – poliuso

Vida real - caso clínico do Ambulatório de Dependência Química


(FM/UFMG)

116
Alterações clínicas características do uso de crack

Paciente, sexo masculino, trinta e oito anos, usuário de


drogas injetáveis (UDI), etilista de longa data e portador do vírus
da hepatite C (VHC), iniciou o uso abusivo de álcool (280
gramas/dia) e de tabaco (20 maços/ano) aos 10 anos de idade, que
foram seguidos pelo consumo de maconha. Aos quatorze anos, co-
meçou a fazer uso de cocaína inalável e injetável. A partir de deze-
nove anos, iniciou adicção ao crack em doses progressivamente
elevadas, concomitantes ao etilismo e ao uso de maconha. Em 2012,
foi detectada infecção pelo VHC, por meio do teste rápido para
rastreamento da hepatite C. Essa infecção foi confirmada pela pro-
pedêutica complementar: reação em cadeia de polimerase positiva;
Genotipagem: genótipo 1 subtipo a. Contudo, aos trinta e dois anos
de idade, o paciente já apresentava sinais de hepatopatia avançada
com varizes esofagianas de fino e médio calibre e gastropatia pró-
pria da hipertensão portal. Encaminhado ao Serviço de Dependên-
cia Química para abordagem e tratamento da adicção. Nesse
momento, relatou sintomas de humor deprimido, ideação suicida e
tentativa de autoextermínio. A conduta psiquiátrica baseou-se na
prescrição de fluoxetina e benzodiazepínico, na entrevista motiva-
cional e no incentivo à interrupção do uso de drogas. Em função
de instabilidades na estrutura familiar e emocional e da dependência
crônica de psicoestimulantes, cursou com irregularidade o uso da
medicação prescrita, recaídas em relação ao uso de drogas e sinto-
mas de abstinência.

Conclusões:

n Crack é forma impura de cocaína, constituído de uma


mistura de pasta de cocaína com bicarbonato de sódio.
nO crack é uma droga ilícita amplamente usada, que causa
dependência e acarreta prejuízos importantes à saúde física e mental
do indivíduo.

117
Manual de abordagem de dependências químicas

O crack é utilizado principalmente fumado. A fumaça tó-


n

xica dessa substância atinge o pulmão, vai à corrente sanguínea e


chega ao cérebro. É distribuído pelo organismo por meio da circu-
lação sanguínea, sendo eliminado pela urina.
O espectro de alterações clínicas associadas ao uso do crack
n

é variado e observam-se desde alterações locais como queimaduras


e bolhas em pontas dos dedos, podendo se associar às lesões graves
em vias respiratórias que ameaçam a vida dos indivíduos.
Dentre as consequências do uso dessa droga destacam-
n

se doenças pulmonares, comorbidades psiquiátricas (psicose, para-


noia, alucinações) e doenças cardíacas.
Os sintomas cardiovasculares são os mais compromete-
n

dores e ameaçadores à vida de usuários de crack. Esses sintomas


são causados, principalmente, pelo efeito alfa-adrenérgico e de es-
timulação do sistema nervoso central pela cocaína.
No aparelho respiratório, a cocaína exerce efeito estimu-
n

latório agudo quando em pequenas doses, e depressão respiratória


no caso do uso excessivo. A apresentação clínica é variados, in-
cluindo sintomas inespecíficos ou diretamente relacionados ao dano
pulmonar.
As alterações gastrointestinais associadas ao uso de co-
n

caína são menos comuns. O uso de cocaína produz xerostomia,


bruxismo e redução da motilidade gastrointestinal. Após o uso da
droga, o usuário pode apresentar dor abdominal, náusea, vômito e
diarreia com sangue.
Sabe-se que a ingestão concomitante de álcool pode sen-
n

sibilizar os hepatócitos a danos pela cocaína. Porém, como usuários


de cocaína comumente fazem uso abusivo de álcool, na maioria das
vezes é difícil determinar o impacto isolado de cocaína/crack na
função hepática.
A cocaína pode provocar disfunção renal por meio de
n

alterações hemodinâmicas, anormalidades na síntese da matriz glo-


merular, vasoconstrição e/ou rabdomiólise.

118
Alterações clínicas características do uso de crack

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120
Capítulo 9

Adolescência:
desenvolvimento normal e associado
ao uso de drogas
Maila de Castro L. Neves
Marina de Souza Maciel

Introdução

A adolescência é uma etapa em que os indiví-


duos experimentam novos interesses e desejos, observam
mudanças físicas em seus corpos e se deparam com
maior liberdade, independência e responsabilidade (Glad-
win et al., 2011). Apesar de definições distintas, a adoles-
Puberdade: idade em que o in-
cência compreende o período do início da puberdade, até divíduo adquire maturidade
que o indivíduo assuma seu papel social como adulto sexual e se torna apto para a
procriação.
(BLAKEMOrE et al., 2010). A adolescência é um pe-
ríodo crítico da vida, quando falamos do uso, abuso e de-
pendência de drogas.
Diversos fatores parecem colaborar para que adolescentes
estejam especialmente propensos a experimentar drogas (ArNEtt,
1992). Adolescentes são indivíduos com a personalidade em for-
mação e influenciáveis por hábitos de grupos aos quais gostariam
de pertencer (DAyAN et al., 2010). A adolescência é um período
da vida em que nem todas as partes do cérebro estão completa-
mente formadas (MILLEr E COHEN, 2001). Adolescentes são
Manual de abordagem de dependências químicas

impulsivos e não calculam bem os riscos de suas ações (rEyNA E


FArLEy, 2006), têm uma tendência a querer experimentar coisas
novas e transgredir, como forma de se afirmar (DAyAN et al., 2010).
Além de mais propensos ao uso inicial, cérebros de indi-
víduos durante a adolescência são sensíveis aos danos causados por
drogas (CLArK et al., 2008) e parecem ter maior sensibilidade para
se tornarem dependentes (WONG et al., 2013). Além disso, a de-
pendência iniciada em estágios precoces do desenvolvimento parece
ser especialmente grave e influenciar fortemente a personalidade e
os padrões cognitivos desses adolescentes (GLADWIN et al., 2011).
Usar drogas durante a adolescência pode acarretar danos irreversí-
veis durante a vida adulta (MAttHEWS, 2010).
O objetivo do presente capítulo é discutir as particulari-
dades do funcionamento cerebral durante a adolescência, forne-
cendo arcabouço teórico para pensarmos como aspectos
cognitivos, comportamentais e sociais podem predispor o adoles-
cente a usar e se tornar dependente de drogas; e como as drogas
vão influenciar o desenvolvimento de um indivíduo ainda em for-
mação.

Neurodesenvolvimento

A adolescência é um dos eventos mais dinâmicos de cres-


cimento e desenvolvimento humano. Após a proliferação neuronal
na primeira infância, o cérebro reestrutura-se a partir do início da
puberdade até vinte e quatro anos de idade, especialmente o córtex
pré-frontal (CPF) (ArAIN et al., 2013). O cérebro do adolescente
passa por alterações morfológicas dramáticas, que incluem mudan-
ças na expressão de neurotransmissores e nos padrões de conecti-
vidade (StUrMAN & MOGHADDAM, 2011). A adolescência é
uma fase da vida humana com especial plasticidade cerebral. O
termo “plasticidade” refere-se à significativa capacidade neuronal

122
Adolescência: desenvolvimento normal e associado ao uso de drogas

para aquisição de novas competências. Os neurocircuitos podem


ser formados, refinados ou enfraquecidos durante a plasticidade, e
esse processo pode ser influenciado por exposição ambiental a
agentes potencialmente tóxicos. Uma parcela significativa do cres-
cimento e desenvolvimento cerebral que ocorre na adolescência é
a construção e fortalecimento de neurocircuitos regionais, resul-
tando em amadurecimento do CPF para controle do movimento,
resolução de problemas, espontaneidade, memória, linguagem, con-
trole de impulsos, comportamento social e sexual. Por sua vez, o
processo de maturação, consolidação e reconstrução contínua do
CPF, pode predispor o adolescente a busca por novidades, inclusive
drogas (tAU & PEtErSON, 2010).
Dentre os neurotransmissores, a dopamina, a serotonina e
a melatonina, exercem papel fundamental no amadurecimento do cé-
rebro na adolescência. A dopamina modula a resposta emocional, a
capacidade de experimentar prazer e dor e o controle do movimento.
Durante a adolescência, ocorre uma tendência à diminuição de do-
pamina, o que pode estar relacionado a mudanças de humor e difi-
culdade de regular as emoções. A serotonina, também reduzida nesse
período, desempenha papel significativo no controle dos impulsos,
nas alterações de humor e na ansiedade. Por fim, a melatonina, regu-
ladora dos ritmos circadianos e do ciclo sono vigília, pode aumentar
a necessidade de sono entre os adolescentes (ArAIN et al., 2013).
Estruturas límbicas estão envolvidas na expressão das
emoções e motivação, relacionam-se a sentimentos de prazer, com-
portamentos de recompensa, como alimentação e sexo. Além disso,
o sistema límbico regula as funções relacionadas ao armazenamento
e recuperação de eventos que evocam forte resposta emocional.
Estudos de neuroimagem revelam que os adolescentes são mais
propensos a serem influenciados por suas emoções nas tomadas de
decisão (ArAIN et al., 2013).
O CPF está associado ao pensamento abstrato, à mode-
ração do comportamento em situações sociais complexas; recebe

123
Manual de abordagem de dependências químicas

inputs sensoriais e orquestra pensamentos e ações a fim de alcançar


metas. É uma das últimas regiões cerebrais a completar a maturação
e está relacionado à imaturidade comportamental de alguns adoles-
centes (KOLB et al., 2012). Estudos de ressonância magnética de-
monstram que ocorre mielinização nos lobos frontais ao longo da
adolescência, permitindo, assim, melhor fluxo de informações entre
as regiões cerebrais. A maturação do CPF parece fornecer refina-
mento à tomada de decisões, antes direcionada hegemonicamente
por estruturas límbicas, possibilitando controle de impulsos e adia-
mento de recompensas.
Ocorre também a maturação funcional do corpo caloso
– feixe de fibras nervosas que ligam os hemisférios cerebrais – per-
mitindo ao indivíduo o acesso a uma gama completa de estratégias
analíticas e criativas para responder aos dilemas complexos que pos-
sam surgir na vida do adolescente (ArAIN et al., 2013).
Dentre os fatores que influenciam a maturação cerebral
durante a adolescência, destacam-se: hereditariedade, insultos pré-
natais e pós-natais, estado nutricional, padrões de sono, farmaco-
terapia e intervenções cirúrgicas durante a primeira infância, estresse
físico, mental, econômico e psicológico, abuso de drogas e exposi-
ção a hormônios sexuais (ArAIN et al., 2013).

Desenvolvimento cognitivo e comportamental

Durante a adolescência os seres humanos irão adquirir


muitas habilidades cognitivas. Por volta dos doze anos, há um de-
créscimo dos pensamentos concretos e, a partir dessa idade, o ado-
lescente demonstra capacidade para pensamentos abstratos,
visualização de resultados potenciais e compreensão lógica de causa
e efeito. A capacidade de pensar, hipoteticamente, sobre conceitos
e hipóteses é o que Jean Piaget chamou de estágio operacional for-
mal. Essas habilidades fornecem ao adolescente o status de discutir

124
Adolescência: desenvolvimento normal e associado ao uso de drogas

sobre política, ética, poesia, filosofia e ciência. Esses aspectos de


desenvolvimento correlacionam-se com a maturação parcial do
CPF (BLAKEMOrE et al., 2010). Segundo Kohlberg, é a partir de
tais capacidades que os homens podem internalizar um código
moral que oriente suas vidas (KrEBS & DENtON, 2005).
O comportamento adolescente segue uma lógica muito
peculiar. A partir de suas habilidades cognitivas crescentes, os ado-
lescentes começarão a questionar a lógica vigente, perguntas que,
muitas vezes, são fontes de angústia e tornam o adolescente cen-
trado em si e em seus dilemas pessoais. Os adolescentes são indiví-
duos socialmente sensíveis, muito preocupados com que os outros
pensam, querem ser aceitos e tornam-se influenciados pela opinião
do grupo.
Entretanto, embora estejam em seu pico de força física,
resistência e função imunológica, as taxas de mortalidade entre os
15 e 24 anos são três vezes maiores quando comparadas a crianças
de 10 a 14 anos (ArAIN et al., 2013).
Adolescentes tem uma tendência a assumir mais e maiores
riscos do que os indivíduos em qualquer outra idade, culminando
em comportamentos como sexo desprotegido, delitos, comporta-
mento perigoso no trânsito e uso de drogas. Estudos neurospico-
lógicos indicam que os adolescentes têm dificuldades de tomada de
decisão, são muito influenciados por informações emocionalmente
competentes, e não utilizam de maneira adequada informações re-
levantes sobre mensuração do risco de suas ações. Esse perfil cog-
nitivo pode levar a escolhas de risco (GLADWIN et al., 2011).
O núcleo accumbens – parte do sistema de recompensa
do cérebro, localizado no sistema límbico – é responsável pelo pro-
cessamento de informações relacionadas à motivação e recom-
pensa. Estudos de imagem cerebral têm demonstrado que essa
região é altamente sensível em adolescentes, com rápido envio de
impulsos de ação quando confrontados com a oportunidade de
obter algo desejável. Por exemplo, os adolescentes são mais vulne-

125
Manual de abordagem de dependências químicas

ráveis a tornarem-se dependentes de nicotina, álcool e outras subs-


tâncias psicoativas, uma vez que o sistema límbico e outras regiões
que governam impulsos e motivações não se encontram totalmente
desenvolvidos (rOBINSON et al., 2011).
A auto-regulação – definida como a gestão das emoções
e motivação – tem por objetivo o controle e direcionamento do
comportamento para enfrentar os desafios do meio ambiente e tra-
balhar em direção a um propósito consciente. Envolve também o
controle de emoções intensas, de impulsos e da gratificação atra-
sada. Um início mais precoce da puberdade aumenta a janela de
vulnerabilidade, tornando os adolescentes mais suscetíveis a assumir
riscos que afetam sua saúde e desenvolvimento ao longo da vida.
O controle comportamental parece estar relacionado às funções
executivas, que por sua vez podem estar relacionadas à maturação
do CPF, que só se completa por volta dos vinte e cinco anos
(ArAIN et al., 2013).

Uso de drogas

O uso de drogas é um exemplo de comportamento de


risco que é particularmente preocupante na adolescência. Os fatos
amplificam o problema, adolescentes têm perfil cognitivo, especial-
mente propenso a experimentar drogas e tem risco maior de se tor-
narem dependentes. Além disso, parece haver uma forte associação
entre a idade de início e o risco de desenvolver problemas relacio-
nados ao uso de drogas (GLADWIN et al., 2011).
Monteiro e colaboradores, em 2012, realizaram um inqué-
rito epidemiológico, nas escolas públicas de teresina-Piauí, com
196 adolescentes. Foi obtida uma prevalência do consumo de dro-
gas ilícitas de 17,9%. Os fatores relacionados ao uso de drogas pelos
adolescentes estão relacionados aos locais que frequentam, tais
como: casa de amigos (42,9%), boates e bares (34,3%). As drogas

126
Adolescência: desenvolvimento normal e associado ao uso de drogas

consumidas pelos adolescentes foram maconha (60%), crack (20%),


solventes (11,4%) e outras (17,6%) (MONtEIrO et al., 2012).
Modelos animais sugerem que após o uso de drogas, possa
ocorrer uma sensibilização neural em adolescentes que leva a com-
portamentos de busca mais impulsivos, difíceis de controlar volun-
tariamente. Além disso, o uso de drogas pode causar prejuízos
permanentes nas funções executivas e dificuldade em controlar im-
pulsos (GLADWIN et al., 2011). É como se os indivíduos fossem
fadados a permanecer adolescentes para sempre.
A adolescência é um período crítico para exposição à ni-
cotina, com aumento da probabilidade de dependência. As causas
provavelmente são múltiplas. Evidências sugerem que essa predis-
posição possa ser influenciada por aumento na transmissão sero-
toninérgica na presença de nicotina em adolescentes (BANGA B
& COMMONS, 2011). Além disso, durante a adolescência, ocorre
uma facilitação da transmissão dopaminérgica, pelo maior desen-
volvimento dos sistemas glutamatérgicos excitatórios. Os sistemas
gabaérgicos inibitórios, entretanto, permanecem subdesenvolvidos.
Neuroanatomicamente, a transmissão dopaminérgica origina-se na
área tegmental ventral em direção ao núcleo accumbens e a nicotina
aumenta a liberação de dopamina. Hipotetiza-se, desse modo, que
os adolescentes exibem maior recompensa da nicotina (ArAIN et
al., 2013; NAtIVIDAD et al., 2011). Finalmente, exposição à nico-
tina durante adolescência pode comprometer o desenvolvimento
do cérebro e causar prejuízos cognitivos, especialmente em funções
executivas, que persistem durante a vida adulta (COUNOttEA et
al., 2011).
A adolescência é o período em que a maioria dos indiví-
duos tem sua primeira exposição ao álcool, sendo o consumo etílico
excessivo muito comum durante essa fase (GUErrI & PASCUAL,
2010). Adolescentes e adultos respondem ao álcool de maneira di-
ferencial. Adolescentes tem menor sensibilidade a prejuízos moto-
res, mas maior a hipotermia induzida pelo álcool. O uso compulsivo

127
Manual de abordagem de dependências químicas

de grandes quantidades de álcool na adolescência está relacionado


a lesões cerebrais potencialmente duradouras (MAttEWS, 2010).
A maconha é a droga ilícita mais consumida entre os
adolescentes, podendo seu uso crônico perturbar o papel regula-
dor do sistema endocanabióide, que desempenha papel funda-
mental para o refinamento neuronal durante esse período da vida.
Em modelos animais, demonstrou-se que essa exposição causa
prejuízos em longo prazo em componentes específicos de apren-
dizagem e memória. Ademais, afeta a reatividade emocional, cau-
sando efeitos mais brandos sobre o comportamento de ansiedade
e efeitos mais pronunciados sobre o comportamento depressivo.
Aumenta também o risco de desenvolvimento de sintomas psi-
cóticos e pode predispor o abuso de outras substâncias ilícitas
(GLEASON et al., 2012).
Um estudo epidemiológico realizado em 2003, com
crianças e adolescentes em situação de rua, de 27 capitais brasi-
leiras, confirma a disponibilidade e o consumo de derivados de
cocaína no Brasil. O consumo de crack foi mencionado em 22 ca-
pitais e os maiores índices de uso recente (uso no mês) dessa subs-
tância foram observados em São Paulo, recife e Curitiba (entre
15 e 26%), seguidas de Natal, João Pessoa, Fortaleza, Salvador e
Belo Horizonte (entre 8 e 12%) (NOtO et al., 2003). Estudos
com modelos animais sugerem que adolescentes têm maior sen-
sibilidade a alguns efeitos da cocaína, ratos machos adolescentes
têm maiores respostas locomotoras do que os adultos após a ad-
ministração aguda de cocaína. Ativação aguda dos neurônios por
cocaína induz mudanças no comportamento, em longo prazo, ati-
vando complexos de transcrição. A transmissão dopaminérgica é
um potencial mediador do risco de adição à cocaína na adoles-
cência (CAStEr & KUHN, 2009).

128
Adolescência: desenvolvimento normal e associado ao uso de drogas

Grupos de maior risco

A adolescência parece ser uma fase da vida muito pro-


pensa a que indivíduos tenham contato e experimentem drogas.
Entretanto, apenas uma porcentagem desses indivíduos vai se tor-
nar dependentes. Esse grupo de risco parece compartilhar vulne-
rabilidades genéticas, comportamentais e sociais. Estudos com
gêmeos mostram a importância dos fatores genéticos para vulne-
rabilidade a dependência de maconha, álcool e nicotina (PALMErA
et al., 2012). Outros fatores de risco descritos são traços de perso-
nalidades disfuncionais, comorbidades psiquiátricas, ambientes des-
favoráveis, com cuidados parentais insuficientes (zEINALI et al.,
2011). Além disso, adolescentes submetidos a adversidades crônicas
na infância, como abuso e negligência podem ser particularmente
vulneráveis a oportunidade de usar drogas, abusar e se tornar de-
pendentes. Dessa forma, combater abuso e negligência na infância
também é uma forma de prevenção de uso e dependência de drogas
(BENJEtA et al., 2012).
Exposição precoce à drogas pode ter consequências severas.
O abuso de drogas no período pré-natal pode aumentar a impulsividade
durante a adolescência. Estudos sugerem que a deficiência do sistema
dopaminérgico e do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal pode estar re-
lacionada à insuficiente inibição comportamental (ArAIN et al., 2013).

Conclusões

Os adolescentes são uma população de risco para uso de


drogas e podem ter mais problemas relacionados ao uso de
substâncias e os efeitos cerebrais desse uso são especialmente
deletérios. Precisamos conhecer as particularidades do
funcionamento cognitivo comportamental dos adolescentes para
planejar medidas de prevenção e tratamento do uso de drogas
direcionadas à essa população.
129
Manual de abordagem de dependências químicas

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131
1o

3 133
PARTE 3
Abordagem farmacológica dos
transtornos do uso de drogas
Capítulo 10

Terapias farmacológicas para os transtornos


do uso de álcool
Valdir Ribeiro Campos

Introdução

O álcool (etanol) é uma droga depressora do SNC. Isso


decorre de sua ação em vários sistemas neurotransmissores cere-
brais: Gabaérgicos, Glutamatérgicos, dopaminérgicos, serotoninér-
gicos e opióides endógenos, além dos canais de cálcio das
membranas celulares.

O sistema gabaérgico
GABA: Ácido gama-
Existem vários subtipos de receptores GABA. O aminobutírico. O GABA é um
álcool potencializa o efeito dos receptores GABA A, que neurotransmissor inibidor do
sistema nervoso.
controla a entrada de cloro para o interior da célula.
Quando o etanol interage com esse receptor, ocorre uma
potencialização de abertura de canais de cloro. O influxo
desse íon torna a célula menos excitável e de difícil des-
polarização. Os dois longos tratos GABAérgicos identi-
ficados são os neurônios que se projetam a partir do
corpo estriado para a substância negra e as células de
Purkinge que se projetam para o cerebelo. Existem ainda
Manual de abordagem de dependências químicas

interneurônios GABAérgicos locais no córtex cerebral,


cerebelar, bem como, hipotálamo. As ações nesses locais, explicam
os efeitos clínicos da intoxicação alcoólica, como alterações mo-
toras (decorrente da ação na substância negra e corpo estriado),
incoordenação (ação no cerebelo) e comportamentais emocionais
(ação no hipotálamo) (HOFFMAN & tABAKOFF, 1996; LO-
WINSON et al., 2005; KUMAr et al., 2009).

O sistema glutamatérgico

O glutamato é o principal neurotransmissor excitatório do


cérebro. Seu principal receptor é o NMDA. O álcool parece intera-
gir diretamente com o receptor NMDA e inibir a ação do glutamato.
A ação do álcool em receptores glutamatérgicos presentes no hi-
pocampo está clinicamente associada ao fenômeno do blackout. A
ação no lócus cerúleos está associada à deficiência na atenção e re-
gulação do ciclo sono-vigilia (HOFFMAN & tABAKOFF, 1996;
LOWISON et al., 2005; KUMAr et al., 2009).

O sistema opióide

Pesquisas indicam que a ação do álcool no sistema opióide


leva ao aumento de beta opióide e esses estimulam a liberação de
dopamina na área tegmentar ventral e núcleo accumbens. O sistema
beta endorfinas é o mais relevante na produção de efeitos reforça-
dores positivos do uso de álcool (tABAKOFF & HOFFMAN,
1996; LOWISON et al., 2005; KUMAr et al., 2009 ).
Vários estudos comportamentais têm mostrado que o re-
ceptor 5Ht3 estaria relacionado à necessidade de ingerir álcool, in-
toxicação e dependência (LOVINGEr, 1999; KUMAr et al., 2009).

136
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de álcool

Canais de cálcio

Os canais de cálcio, voltagem dependentes, desempenham


uma importante função na despolarização e repolarização da célula e
na atividade celular de liberação de neurotransmissores. O álcool age
principalmente no canal de cálcio subtipo L inbindo a abertura desses
canais. O menor influxo de ions positivos para a célula torna-a menos
excitável, além de inibir a liberação de neurotransmissores. Os canais
de cálcio L estão em maior quantidade no cerebelo e isso poderia ex-
plicar as alterações motoras como incoordenação da marcha, deficiên-
cia na atenção e regulação do sono-vigilia. (LIttLEtON & LIttLE,
1994; LOWISON et al., 2005; KUMAr et al., 2009).

Adaptação cerebral ao consumo de álcool

O consumo crônico de álcool leva a mudanças adaptativas no


cérebro o que poderia explicar a tolerância, abstinência, compulsão para
beber e recaída (LIttLEtON & LIttLE, 1994; HOFFMAN & tABA-
KOFF, 1996, KOOB & VOLKOW, 2010). Medicamentos que agem
revertendo esses mecanismos neuroquímicos, juntamente com manejos
psicológicos e comportamentais, têm se mostrado efetivos e ajudado
muitos indivíduos a se livrarem do álcool a terem uma vida mais produtiva.

Terapia farmacológica

O consumo de álcool que, inicialmente, é considerado inó-


cuo pode evoluir para fases de consumo perigoso, abusivo (nocivo) e
por fim, resultar na instalação da dependência de álcool em grau leve,
moderado ou grave. O tratamento dos problemas relacionados ao
consumo de álcool pode ser realizado ambulatorialmente ou no hos-
pital conforme a gravidade da intoxicação e dependência (Figura 1).

137
Manual de abordagem de dependências químicas

Desintoxicação alcoólica
Tratamento de desintoxi-
cação: também chamado de O tratamento de desintoxicação é o primeiro está-
tratamento de abstinência.
Esta forma de tratamento é
gio do tratamento e pode ser indicado para pacientes de-
feita com a interrupção aguda pendentes ou não de álcool. Consiste num período entre
do consumo de uma droga e o
tratamento sintomático dos uma a duas semanas em que o indivíduo irá se abster de
sintomas de abstinência a
droga. Quando bem feito e álcool em ambiente protegido pela família ou por equipe
acompanhado por uma equipe
multidisciplinar esta forma de
multiprofissional. Esse período costuma ser relativa-
tratamento diminui o sofri- mente mais difícil para indivíduos com maior gravidade
mento do paciente em inter-
romper o uso da droga e de se da síndrome de dependência devido ao aparecimento da
engajar em um projeto terapêu-
tico para o período pós-desin- síndrome de abstinência. Inicialmente, pacientes intoxicados
toxicação. por álcool devem ser avaliados clinicamente e laborato-
Abster: interromper o uso por
completo.
rialmente para exclusão de alterações hidroeletrolíticas,
Síndrome de Abstinência:
hemodinâmicas e infecções que, geralmente são gerado-
Conjunto de sintomas cuja ras de delirium justificando-se assim o estado confusional
gravidade é variável que ocor-
rem quando da interrupção ab- em que os pacientes normalmente se apresentam devido
soluta ou relativa do uso de
uma substância psicoativa às complicações clínicas.
consumida de modo prolon-
gado. O início e a evolução da
O tratamento dos quadros de intoxicação alcoó-
síndrome de abstinência são lica consiste basicamente em cuidados clínicos para os
limitadas no tempo e depen-
dem da categoria e da dose da casos com e sem complicações clínicas, com administra-
substância consumida imedi-
atamente antes da parada ou
ção de dieta, reposição hídroeletrolítica e de tiamina. A
da redução do consumo. A sín- dose de tiamina na primeira semana, caso o paciente
drome de abstinência pode se
complicar pela ocorrência de apresente náuseas e vômitos, deverá ser parenteral na
convulsões.
dose de 300 mg/dia e a partir da segunda semana esta
Delirium: perturbação da con-
sciência com redução da ca- dose poderá ser oral até o final da segunda semana. Deve-
pacidade de direcionar,
focalizar, manter ou deslocar a
se evitar administrar glicose hipertônica, isoladamente
atenção. Alteração na cog- sem que se administre tiamina pelo menos 30 minutos
nição, como déficit de
memória, desorientação, per- antes (Laranjeira et al., 2000; Marques & ribeiro, 2002).
turbação da linguagem. O
Delirium se desenvolve em um Tiamina: vitamina B1. Esta
curto período de tempo (horas vitamina auxilia no bom fun-
ou dias) te tem uma tendência cionamento do sistema ner-
a flutuar durante o dia sendo voso central, dos músculos e
que os sintomas são mais in- do coração e auxilia no meta-
tensos no final do dia. Tem bolismo da glicose. Sua defi-
como causa uma alteração do ciência pode ocasionar lesão
funcionamento transitória do cerebral e em pacientes depen-
cérebro. Deve ser diferenciado dentes de álcool a Síndrome de
de “delírio” o sintoma psicótico Wernicke-Korsakoff (ver capí-
(ver definição no capítulo 8)
138
tulo 8)
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de álcool

Nos casos de agitação psicomotora e heteroagressividade,


recomenda-se a administração de haloperidol IM de 30/30 minutos
até sedação, contenção cuidadosa, nos casos em que isso for neces-
sário, e supervisão de equipe de enfermagem de 15/15 minutos
(Laranjeira et al., 2000; Marques & ribeiro, 2002). Após a desinto-
xicação, o paciente pode evoluir para a síndrome de dependência
do álcool. Alguns instrumentos, como o questionário CAGE,
podem ser utilizados para identificar casos de problemas com o uso
de álcool e triagem para serviços especializados, e esclarecimento
do diagnóstico de dependência de álcool (Figura 1).

Síndrome de abstinência do álcool

A síndrome de abstinência do álcool (SAA)


instala-se em 90% dos pacientes dependentes de álcool
e os sintomas surgem 24 horas após a última dose. Se
Sinais autonômicos: con-
não tratado, o quadro pode evoluir para a forma grave junto de sinais que surgem
nas primeiras 72 horas, cursando com sinais autonômicos devido a liberação de adrena-
lina na corrente sanguínea.
mais intensos, tremores generalizados, alucinações au- Podem surgir: tremores,
taquicardia, hipertensão arte-
ditivas e visuais, desorientação temporo-espacial, con- rial, sudorese.
vulsões e delirium tremens (Dt) (Laranjeira et al., 2000;
Marques & ribeiro, 2002) (Tabelas 1 e 2).

139
Manual de abordagem de dependências químicas

Tabela 1
Sintomas que compõe a síndrome de abstinência leve a moderada

Conjunto de sinais e sintomas da síndrome de abstinência leve/moderada:


Biológicos: leve agitação psicomotora, tremores finos de extremidades,
sudorese facial discreta, episódios de cefaléia, náuseas sem vômitos, sensibili-
dade visual, sem alteração da sensibilidade tátil e auditiva.
Psicológicos: contato com o profissional está preservado, encontra-se
lúcido e orientado no tempo e espaço, o juízo crítico da realidade está
mantido, apresenta ansiedade leve, não relata qualquer episódio de
violência dirigido a si ou a outrem.
Comorbidades: ausência de comorbidades clínica e/ou psiquiátricas
detectadas ao exame geral

Tabela 2
Síndrome de abstinência grave

Conjunto de sinais e sintomas da síndrome de abstinência grave:


Biológicos: agitação psicomotora intensa, tremores generalizados,
sudorese profunda, cefaleia, náuseas com vômitos, hipersensibilidade visual,
quadro epileptiformes recentes ou descritos a partir da história pregressa.
Psicológicos: contato com o profissional de saúde está alterado,
encontra-se desorientado no tempo e espaço, o juízo crítico da realidade
está comprometido, apresenta uma ansiedade intensa, com episódios de
violência contra si e outrem, apresenta-se delirante, com pensamento
descontínuo, rápido e de conteúdo desagradável, observam-se
alucinações táteis e/ou auditivas.
Comorbidades: com complicações e/ou comorbidades clínicas e/ou
psiquiátricas detectadas ao exame geral.

O tratamento no nível primário de saúde (ambulatório,


Programa de Saúde da Família- PSF) deve ser a primeira escolha.
Além de menos custoso, não interrompe a vida do indivíduo, favo-
recendo sua permanência no trabalho e vida familiar. A abordagem
hospitalar destina-se a aqueles com SAA grave com complicações
clínicas, por tratar-se de um ambiente protegido e mais seguro para
manejar tais complicações. Casos de SAA sem outras doenças psi-
140
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de álcool

quiátricas e com outras doenças mentais devem receber tratamento


no mesmo local do diagnóstico de base (Figura 1).
O tratamento medicamentoso da SAA visa
reestabelecer o organismo que está em desarmonia de-
vido a falta do álcool. Medicamentos de escolha para tra- Diazepan/lorazepan: medi-
cações benzodiazepínicas.
tar esse período entre uma a duas semanas são: diazepam São agonistas gabaérgicos e
agem nos mesmos receptores
até 40 mg/dia, em caso de hepatopatia, lorazepam na em que age o álcool. Por
terem uma meia-vida maior
dose de até 6 mg/dia. A dose deve ser reduzida na se- que o álcool ajudam a evitar
gunda semana. Caso o paciente apresente sintomas psi- os sintomas de abstinência.
cóticos, sem alterações de nível de consciência, o
haloperidol 5 mg por dia pode ser utilizado.
Após o período de reequilíbrio do organismo dos sinto-
mas da abstinência pode ser necessário à utilização de medicações
que ajudem o paciente a manter-se abstinente (Laranjeira et al., 2000;
Marques & ribeiro, 2002).
Nos últimos anos as intervenções farmacológicas têm-se
concentrado na reabilitação e prevenção de recaídas, através das
suas ações sobre o desejo compulsivo para beber e na perda do
controle sobre a bebida, com a finalidade de manter a abstinência
obtida na desintoxicação. Avanços importantes têm ocorrido atra-
vés da introdução de novos agentes farmacológicos e, em especial,
drogas com propriedades de reduzir o desejo intenso pela bebida
(Jupp & Lawrence, 2010).
Por outro lado, a dependência do álcool possui taxas ele-
vadas de transtornos ansiosos e depressão, que podem influir no
prognóstico do paciente, já que os mesmos podem recair em res-
posta aos níveis de ansiedade e depressão exacerbados. Portanto, o
tratamento eficaz desses sintomas com agentes farmacológicos es-
pecíficos podem resultar numa redução do consumo de álcool e
dos problemas associados.
Os principais objetivos das intervenções farmacológicas
nos transtornos relacionados ao álcool são: reverter os efeitos far-
macológicos do álcool; tratar e prevenir as complicações da absti-

141
Manual de abordagem de dependências químicas

nência do álcool; manutenção da abstinência e prevenção das re-


caídas, por meio da redução do desejo para ingerir álcool; redução
do consumo ao tornar a ingestão de álcool desagradável e trata-
mento da comorbidade psiquiátrica (volpicelli et al., 2001).

Figura 1
Dinâmica de encaminhamento para tratamento
da intoxicação alcoólica na rede

Sensibilizantes ao álcool

Dissulfiram
Esta medicação atua inibindo a enzima hepática acetoal-
deído-desidrogenase (ALDH), que catalisa a oxidação do acetal-
deído em acetato, subprodutos do metabolismo do álcool. O
aumento dos níveis sanguíneos de acetaldeído provoca uma reação
aversiva caracterizada clinicamente por rubor facial, cefaleia pulsátil,
náuseas, vômitos, dor torácica, palpitações, taquicardia, fraqueza,
turvação visual, hipotensão arterial, tontura e sonolência. Nas rea-

142
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de álcool

ções graves, os pacientes podem exibir delirium, infarto do miocár-


dio, arritmias cardíacas, insuficiência cardíaca congestiva, depressão
respiratória e convulsões (SUH et al., 2006) A maioria dos casos fa-
tais ocorre em pacientes que tomam mais de 500 mg por dia de dis-
sulfiram e que consomem 90 ml de álcool por dia (por exemplo:
03 a 04 doses de destilados). Deve-se evitar o consumo de bebidas
alcoólicas, produtos que contenham álcool (vinagre, enxaguante
bucal) e os aplicados sobre a pele, até duas semanas após a última
dose de dissulfiram (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al.,
2010).

Indicações
Os pacientes que mais se beneficiam com o uso de dis-
sulfiran são aqueles motivados, sem doenças físicas graves, estáveis
do ponto de vista social e que necessitam de um auxílio externo
para ajudar na sua decisão de interromper o uso de álcool. Para o
uso dessa medicação o paciente deve assinar um termo de consen-
timento livre e esclarecido (tCLE) explicando os objetivos, indica-
ções, contraindicações, precauções e reações adversas caso o álcool
seja ingerido concomitantemente. A supervisão do tratamento por
um familiar ou profissional de saúde favorecem a adesão ao trata-
mento (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2011).

Contraindicações
As principais contraindicações ao dissulfiram são: doença
vascular cerebral, doença cardiovascular, doença pulmonar grave,
insuficiência renal, cirrose com hipertensão porta, aterosclerose
oculta, transtornos psicóticos, transtornos depressivos, neuropatia
periférica, distúrbios convulsivos idiopáticos, síndromes mentais
orgânicas e gravidez (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al.,
2010).

143
Manual de abordagem de dependências químicas

Precauções de uso do dissulfiram


As principais precauções a serem adotadas com a prescri-
ção de dissulfiram são as interações com o uso concomitante dos
antagonistas dos receptores α-adrenérgicos ou β-adrenérgicos e va-
sodilatadores, que são medicações utilizadas na regulação da pressão
arterial. O dissulfiram pode ser empregado nos pacientes com his-
tória de convulsões, associadas à abstinência, desde que seja des-
cartada a presença de um distúrbio convulsivo idiopático. Nos
pacientes que exercem atividades que necessitam de atenção (por
ex., operar máquinas) deve-se tomar as devidas precauções (tais
como, restringir inicialmente nos finais de semana e na hora de dei-
tar a medicação), já que o dissulfiram pode provocar sonolência.
Caso a sonolência persista depois de três dias de tratamento a me-
dicação deve ser interrompida. Antes de prescrever o dissulfiram é
importante solicitar provas de função hepática devido a um efeito
hepatotóxico idiossincrático raro, porém potencialmente fatal.
Além disso, os sintomas sugestivos de hepatotoxicidade e os exames
sanguíneos devem ser repetidos à cada 2 semanas, 3 e 6 meses e
duas vezes no ano, durante o tratamento com dissulfiram. Geral-
mente, a hepatotoxicidade ocorre nos primeiros três meses de tra-
tamento. (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2010).

Orientações clínicas
A dose habitual é de 250 mg ao dia em dose única diária,
após um intervalo de pelo menos 24 horas sem beber. Alguns
pacientes podem beneficiar-se com doses de 500 mg ao dia.
(CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2011).

Interações medicamentosas
O dissulfiram interfere com a biotransformação dos se-
guintes medicamentos: warfarina, fenitoína, isoniazida, rifampicina,
diazepam, clordiazepóxido, imipramina e desipramina, cujos níveis
plasmáticos devem ser monitorados junto com o tempo de pro-

144
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de álcool

trombina (naqueles pacientes tratados com warfarina) (DIEHL et


al., 2011).

Agentes anti-fissura

O craving ou fissura é um fenômeno fisiológico que sofre


influência de fatores ambientais, sociais e emocionais, que contri-
buem para a inabilidade dos dependentes ficarem abstêmios, vul-
nerabilizando-os para a recaída (Laranjeira e col., 1996).

Naltrexona
Indicações
A naltrexona atua como um antagonista competitivo nos
receptores opióides. A administração de antagonistas opióides pode
reduzir o consumo de álcool através do bloqueio pós-sináptico dos
receptores opióides µ, δ e κ nas vias mesolímbicas. Os antagonistas
opióides devem ser usados como parte de um programa de trata-
mento que inclua aconselhamento ou psicoterapia. Portanto, são
pouco eficazes quando usados isoladamente. O oferecimento de
intervenções psicossociais (por ex., aconselhamento, treinamento
de habilidades sociais, prevenção de recaída e entrevista motivacio-
nal) associado às intervenções farmacológicas aumentam a eficácia
e a adesão ao tratamento (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL
et al., 2011).

Contraindicações
As principais contraindicações a naltrexona são: hepatite
aguda, insuficiência hepática, dependência de opióides ou abstinên-
cia de opióides, necessidade de usar opióides. O uso na gravidez é
considerado contraindicação relativa, que deve ser levado em con-
sideração os riscos e benefícios do tratamento (CAStrO & BAL-
tIErI, 2004; DIEHL et al., 2011).

145
Manual de abordagem de dependências químicas

Precauções
O aumento leve dos níveis séricos das transaminases não
contraindicam o seu emprego. Entretanto, a monitorização mensal
dos valores da bilirrubina e das transaminases séricas nos três pri-
meiros meses, e depois a cada três meses é de suma importância.
Monitorizações mais frequentes devem ser indicadas, quando as
transaminases estiverem elevadas. O naltrexona deve ser suspenso,
quando as elevações das enzimas hepáticas persistirem, salvo se os
aumentos forem brandos e atribuídos ao consumo atual de álcool.
(CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2011)

Orientações clínicas
A posologia recomendada é 50 mg diários. Para diminuir
a gravidade dos efeitos adversos pode-se iniciar com 25 mg diários
nos dois primeiros dias, aumentando a dose para 50 mg diários
se for tolerada. Nas doses acima de 50 mg diários pode induzir
hepatotoxicidade dose-dependente, o que contraindica o seu uso
em pacientes com hepatite aguda e insuficiência hepática. Os prin-
cipais efeitos adversos são: náuseas, cefaleia, vertigem, ansiedade
e irritabilidade, fadiga, insônia, vômitos e sonolência (CAStrO
& BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2011). Para aumentar a ade-
rência ao tratamento, solicita-se ao paciente ingerir a medicação
pela manhã (por ex., junto com o desjejum), principalmente
quando o paciente bebe ao anoitecer.
Para os pacientes com história prévia de abuso de heroína
é necessário de pelo menos um período mínimo de sete dias de abs-
tinência, com vista a prevenir a síndrome de abstinência. Nos pa-
cientes tratados com metadona recomenda-se um período de
abstinência maior (dez a quatorze dias). Nos pacientes dependentes
de opióides, a naltrexona pode ser administrado por pelo menos
seis meses (CAStrO & BALtIErI, 2004; DIEHL et al., 2011)

146
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de álcool

Interações medicamentosas
As interações medicamentosas de maior relevância clínica
são as seguintes medicações: uso concomitante com dissulfiram,
devido ao potencial dos efeitos hepatotóxicos de ambos os medi-
camentos; tioridazina, com piora da letargia e sonolência, pacientes
que necessitam de medicamentos para controle da dor (deve-se
priorizar outros analgésicos não-opiáceos). Os pacientes que serão
submetidos a cirurgias eletivas e analgésicos, contendo opióides no
pós-operatório devem ser alertados para suspenderem a natrexona
pelo menos 72 h antes da cirurgia. (Diehl et al., 2011)

Acamprosato
Indicações
Acamprosato (acetil-homotaurinato de cálcio) é a outra
medicação aprovada para o tratamento da dependência de álcool.
Estudos recentes sugerem que sua eficácia decorra de antagonismo
na neurotransmissão do receptor N-Metil-D-Aspartato (NMDA).
O acamprosato diminui o fluxo de cálcio e a eficácia pós-sináptica
desses neurotransmissores excitatórios (NMDA), diminuindo, por-
tanto a excitabilidade neuronal. É uma droga segura que não inte-
rage com o álcool ou o diazepam, e parece não ter nenhum
potencial de causar dependência. (Castro & Baltieri, 2004; Diehl et
al., 2011)

Contra indicações
Insuficiência hepática e gravidez (CAStrO & BAL-
tIErI, 2004)

Orientações clínicas
A dose usual é de 1998 mg (dois comprimidos de 333 mg
três vezes ao dia) para um peso corporal acima de 60 kg. Não deve
ser prescrito para indivíduos com insuficiência hepática ou renal.
Ensaios clínicos utilizaram o medicamento por seis a doze meses.

147
Manual de abordagem de dependências químicas

(WILDE & WAGStAFF,1997; CAStrO & BALtIErI, 2004;


DIEHL et al., 2010)

Considerações finais

A ação do álcool altera as estruturas cerebrais e seu fun-


cionamento. Essas mudanças ocorrem ao longo do tempo e
podem levar a prejuízos no comportamento, visto em abusadores
e dependentes de álcool. A identificação do estágio do problema,
tratamento inicial da SAA, de complicações clínicas e comorbi-
dades, pode proporcionar um melhor direcionamento dentro da
rede de assistência aos usuários com problemas associados ao
uso de álcool.

148
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de álcool

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149
Capítulo 11

Terapias farmacológicas para os


transtornos do uso de cocaína e crack
Thiago Gatti Pianca
Diego Barreto Rebouças
Guilherme Luis Menegon
Felix Henrique Paim Kessler

Existem vários modelos teóricos que tentam conceituar


os transtornos relacionados ao uso de substâncias, por exemplo,
atra-vés de manuais diagnósticos como o DSM-V. Do ponto de
vista comportamental e neurobiológico, uma das definições mais
aceitas é descrita por Nora Volkow, atual diretora do National
Institute of Drug Abuse (EUA), e George Koob, na qual a
dependência quí-mica é um transtorno crônico e recidivante que é
caracterizado por compulsão para procurar e consumir a
substância, perda de controle em limitar o consumo da substância
e surgimento de estado emocional negativo, quando o acesso à
substância química é impedido, configurando uma síndrome de
abstinência, que envolve também aspectos motivacionais (KOOB,
2010).
A administração repetida de drogas leva o cérebro a mu-
danças neuroadaptativas agudas e crônicas. tendo em vista a pro-
gressiva alteração neuroquímica da dependência, devem ser
considerados tratamentos farmacológicos para auxiliar no trata-
mento da dependência em si e para as comorbidades psiquiátricas,
que geralmente acompanham os problemas relacionados às drogas.
Manual de abordagem de dependências químicas

Neurocircuitos na dependência química

O principal sistema alvo de todas as drogas é o sistema de


recompensa cerebral. A principal via do sistema de recompensa é
a via mesocorticolímbica, uma via dopaminérgica que tem origem
na área tegmental ventral no mesencéfalo e projeta-se para o núcleo
accumbens, no sistema límbico, e para o córtex pré-frontal.
As drogas atuam nesse local de forma direta (o sistema
dopaminérgico em si) ou indireta (outros sistemas de neurotrans-
missores que interferem no sistema dopaminérgico). Assim, o estí-
mulo do núcleo accumbens, que inclui receptores opioides,
desencadeia uma sensação de prazer que reforça comportamento
de busca pela droga e torna-se cada vez mais saliente, enquanto o
córtex pré-frontal pode agir de forma inibitória, porém com o uso
crônico de drogas de abuso pode progressivamente se tornar mais
hipofuncionante. Além do sistema de recompensa, ocorrem neu-
roadaptações nos sistemas de aprendizagem e memória (KOOB;
VOLKOW, 2010; PULCHErIO et al., 2010)
A ação da cocaína ocorre por bloqueio de uma proteína
pré-sináptica (transportador de dopamina) responsável pela recap-
tação de monoaminas, principalmente da dopamina; no entanto,
também há ação na serotonina e noradrenalina, e nas outras mo-
noaminas. Com o uso repetido, o sistema vai se “acostumando”,
criando tolerância – aí, é necessário o uso de quantidades cada vez
maiores para obtenção do efeito desejado. Esses fenômenos acon-
tecem tanto mais rápido quanto a droga chega e sai da fenda sináp-
tica. O crack, por conta da via de administração, tem um início de
efeito em oito a dez segundos, com duração de 5 a 10 minutos, ou
seja, a maior rapidez de efeito entre as vias de administração da co-
caína, e consequentemente um potencial de causar dependência
maior que outras drogas (PULCHErIO et al., 2010).

152
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

Embasamento de tratamento Síndrome de Abstinência:


Conjunto de sintomas cuja
gravidade é variável que ocor-
rem quando da interrupção ab-
Um dos principais focos do tratamento para soluta ou relativa do uso de
uma substância psicoativa
pacientes dependentes de cocaína e crack é a síndrome consumida de modo prolon-
de abstinência, que pode ser dividida nas seguintes fases: gado. O início e a evolução da
síndrome de abstinência são
Crash: Início em 15 a 30 minutos após o uso e limitadas no tempo e depen-
dem da categoria e da dose da
duração de 8 horas até 4 dias. Caracteriza-se por sinto- substância consumida imedi-
mas depressivos, podendo apresentar também ansie- atamente antes da parada ou
da redução do consumo. A sín-
dade, paranoia e fissura ou craving (intenso desejo de drome de abstinência pode se
complicar pela ocorrência de
voltar a usar drogas). Após a fissura inicial, instala-se convulsões.
hipersonia, com despertares intermitentes e também a Hipersonia: sono ou sonolên-
cia excessivos.
hiperfagia. relacionada com depleção de monoaminas
Hiperfagia: aumento do
na fenda sináptica. apetite.
Síndrome Disfórica Tardia: Início em 12 a 96
horas e duração de 2 a 12 semanas. Nos primeiros
quatro dias há a presença de sonolência e de fissura,
anedonia, irritabilidade, problemas de memória e idea- Anedonia: incapacidade de
sentir ou perceber o prazer.
ção suicida, ocorrendo recaídas frequentes por conta
da busca por alívio desses sintomas.
Extinção: Há uma melhora progressiva nos sinto-
mas disfóricos, que podem inclusive cessar por completo.
A fissura torna-se intermitente (Marques et al., 2012).
Contudo, os estudos desenvolvidos com psico-
fármacos para o uso no tratamento da dependência de co-
caína/crack não costumam enfocar somente nos sintomas
de abstinência, mas na síndrome como um todo. A maioria
dos autores cita que a fissura por essa droga é bastante
potente e, assim como a própria abstinência, costuma ser
vinculada a uma diminuição de ação no sistema dopami-
nérgico. Por isso, teoricamente, ambas poderiam ser ame-
nizadas através do uso de medicações. Assim, inicialmente,
pensou-se que terapêuticas com agonistas dopaminérgicos Agonista: substância que se
liga a um receptor e estimula a
poderiam, ao mimetizar efeitos farmacológicos e compor- sua ação.

153
Manual de abordagem de dependências químicas

tamentais, controlar melhor os sintomas de abstinência


e, consequentemente a fissura, funcionando como um
tipo de “reposição controlada” ou substituição da
droga, com a vantagem de ter menos potencial aditivo
e poderiam criar tolerância aos efeitos da cocaína. Con-
tudo, isso ainda não está totalmente evidente na litera-
tura para o tratamento da dependência de cocaína, ao
passo que terapêuticas com agonistas são eficazes para
dependência de nicotina e opióides (rush; Stoops,
Opióide: substância que é seme-
lhante ou derivada ao ópio. 2012).
De forma complementar, procurou-se identi-
Antagonista: substância que
se liga a um receptor e inibe
ficar antagonistas da cocaína, que, na vigência do uso,
sua ação. poderiam bloquear os efeitos desejados da droga, e le-
variam a uma redução no comportamento de busca e
de consumo. É o exemplo da naltrexona, que é um an-
tagonista de receptores opióides, utilizado no trata-
mento da dependência de heroína. No entanto, o risco
que se corre é que a redução no efeito positivo pode
levar ao aumento na quantidade do consumo (rUSH;
StOOPS, 2012).
Com base nessas teorias, muitos ensaios clínicos foram
realizados, e com diferentes hipóteses para os mecanismos de
ação das medicações testadas. Os principais desfechos avaliados
nesses estudos foram: desistência do tratamento (número de pa-
cientes que não completaram o tratamento, como forma de ava-
liar as possíveis recaídas, já que a maioria das desistências está
relacionada a esse fenômeno), aceitabilidade (número e tipo de
efeitos adversos), abstinência ou não (uso de cocaína através de
relato ou número de amostras de urina positiva); fissura, gravi-
dade da dependência, quantidade de cocaína utilizada e sintomas
psiquiátricos (avaliados por escalas específicas). Diferentes fár-
macos foram estudados através de estudos com diferentes me-
todologias, e uma forma de unificar os resultados dos estudos

154
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

parecidos é através de metanálises bem conduzidas, as Metanálise: tipo de estudo


científico que combina o resul-
quais analisam o resultado de vários estudos ao mesmo tado de vários estudos para
poder aumentar a confiabili-
tempo, a fim de se ter uma noção melhor da eficácia ou dade dos resultados obtidos.
não de um determinado tratamento. Do ponto de vista
científico, as metanálises são os melhores instrumentos
disponíveis para avaliar a eficácia de uma medicação para
um determinado transtorno. Nesse caso, juntam-se os
riscos relativos (rr), como se estudos menores, com
métodos parecidos se tornassem um estudo bem maior.
risco relativo é uma medida de força de associação entre
um fator em estudo (no caso, os tratamentos com fár-
macos) e um desfecho (no caso, aquilo que desejamos
com os tratamentos nos dependentes químicos, o que é
verificado através dos itens listados acima). Como é uma
razão, entre quantos dos tratados (o numerador), sobre
quantos dos não tratados (o denominador) tiveram o des-
fecho desejado, é preciso que a razão seja diferente que
1; afinal, se for igual a 1 significa que o numerador e o
denominador não têm diferença entre si e, assim, que tra-
tar ou não tratar não faz diferença. Se o desfecho é algo
positivo, como abstinência, espera-se que o numerador
seja maior e, assim, que a razão seja maior que 1. Se for
algo negativo, como desistência de tratamento, que seja
menor que 1. O Intervalo de confiança de 95%, conceito Intervalo de Confiança: in-
tervalo estimado de um
que vem junto do rr, mostra o espectro de valores que parâmetro estatístico.

o rr pode variar e, assim, também não pode “passar”


pelo 1 para que seja confiável. A má notícia é que ao se
fazer isso e se aumentar a qualidade e confiabilidade dos
achados relacionados à efetividade das terapêuticas tes-
tadas é que, muitas vezes, os resultados positivos são
difíceis de serem encontrados, sendo geralmente desani-
madores. Vamos ver a seguir o que mostram alguns des-
ses estudos e algumas dessas metanálises.

155
Manual de abordagem de dependências químicas

Antidepressivos

O consumo crônico de cocaína pode levar à de-


pleção de monaminas (dopamina, serotonina, noradrena-
lina), – o que poderia também estar associado aos sintomas
depressivos após o uso e à fissura do crash. Partindo dessa
premissa, dezenas de estudos com as diferentes classes des-
sas medicações vêm sendo realizados desde a década de
80, encontrando tanto resultados positivos quanto negati-
vos. Uma metanálise recente, robusta e altamente crite-
Cochrane: organização não
governamental, sem fins lucra-
riosa, realizada por Pani et al. através da Cochrane, analisou
tivos e sem fontes de financia- estudos que compararam diferentes antidepressivos com
mento internacionais, que tem
por objetivo contribuir para o placebo até julho de 2011 (PANI et al., 2012). O número
aprimoramento da tomada de
decisões em Saúde, com base de pacientes tratados ao final foi de 3551 pacientes.
nas melhores informações
disponíveis.
Quando comparado ao placebo, não houve melhor adesão
ao tratamento, nem diminuição da quantidade de cocaína
utilizada ou da gravidade da dependência, nem melhora na
qualidade de vida. Apenas em relação à melhora dos sin-
tomas antidepressivos foi observada melhora com o uso
dos antidepressivos. Esses resultados não foram melhora-
dos nem com associação de técnicas psicossociais. A con-
clusão que se tem diante desses dados é que, embora tenha
sido sugerida eficácia dos antidepressivos para tratamento
de dependência de cocaína per se, a síntese dos dados não
mantém tal premissa. Além disso, o efeito discreto em sin-
tomas depressivos, mesmo com todas as limitações, não
altera desfechos primários relacionados à dependência quí-
mica. Os autores da metanálise concluem que o benefício
do uso de antidepressivos na comorbidade entre depressão
maior e dependência química precisa ser melhor investi-
gado, mas que novas investigações com antidepressivos
para dependência química somente devem ser
conduzidas mediante uma “avaliação rigorosa da
relevância”.
156
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

Há uma limitação nos dados do benefício do uso de anti-


depressivos na comorbidade da dependência química com depres-
são maior inclusive pela possibilidade de sobreposição de sintomas
(6), embora a comorbidade seja frequente (rEGIEr et al., 1990).
Além disso, situações inerentes à dependência geram sentimentos
de vergonha e culpa, sintomas que também fazem parte da sín-
drome depressiva (rOUSANVILLE, 2004). Uma metanálise bus-
cou responder à dúvida relacionada à comorbidade – há benefício
no tratamento? Essa metanálise foi publicada no JAMA em 2004,
tendo estudado 848 pacientes em 14 ECr, com uma resposta de
52,1% no grupo que foi tratado com antidepressivos e de 38,1%
no grupo que recebeu placebo, demonstrando uma diferença entre
antidepressivos e placebo de 16,8% (IC95% 6,9%-26,7%) – signi-
ficativa, portanto, mas com heterogeneidade entre estudos de 51%,
que é alta, o que compromete em parte a comparação (8).
Embora os benefícios sejam discretos, na Uni-
dade de Internação especializada em usuários de crack
do Hospital de Clínicas de Porto Alegre temos como
rotina conduzir nossas condutas de acordo com as su-
gestões da metanálise do JAMA (NUNES 2004), que são JAMA: Jornal da Associação
as seguintes:diagnóstico de depressão maior comórbida Médica Americana.
deve ser estabelecido por 1) um breve período (poucos
dias) de observação de evolução de sintomas na
abstinência e/ou 2) distinção de sintomas depressivos pri-
mários ou secundários ao transtorno por uso de substân-
cias psicoativas através de dados da história do paciente.
Muitos deles apresentam histórico longo de depressão,
ou história familiar importante associada à depressão
grave, início dos sintomas antes do início das drogas, ou
sintomas depressivos importantes que ocorreram durante
períodos de abstinência das drogas. Nesses casos, inicia-
mos preferencialmente fluoxetina 20mg, adequando
doses conforme gravidade e duração de sintomas, por

157
Manual de abordagem de dependências químicas

conta de ser um dos antidepressivos disponíveis na rede pública de


saúde, pela melhor tolerabilidade e pelo fato de os antidepressivos
tricíclicos não terem mostrado vantagem adicional nos dados até
então disponíveis. Alguns autores sugerem que antidepressivos com
atuação na dopamina podem ser mais benéficos para usuários de es-
timulantes como a cocaína, especialmente para aqueles que referem
anedonia e falta de energia. Quando possível, utilizamos bupropiona
até 300mg ao dia por conta da vantagem teórica de produzir um
agonismo dopaminérgico – a metanálise da Cochrane, anteriormente
mencionada, incluiu os três principais estudos da bupropiona tota-
lizando 325 participantes; os resultados foram inconclusivos, sendo
que um dos motivos para isso foi a heterogeneidade dos estudos.

Agonistas dopaminérgicos

Uma metanálise recente da Cochrane realizada e publicada


por Amato et. al. buscou estudos que compararam esses agentes
(amantadina, bromocriptina, cabergolina, l-dopa/carbidopa, pra-
mipexol, pergolida e hydergine) com placebo até junho de 2011
(AMAtO et al., 2012). Na busca inicial, encontraram 442 artigos.
Desses, apenas 23 eram ensaios clínicos randomizados suficiente-
mente adequados que se enquadraram nos seus critérios de inclusão.
Há um pequeno benefício dos antagonistas dopaminérgicos em re-
lação ao placebo no desfecho abstinência no seguimento, com um
rr 0,57 (IC95% 0,35-0,93) baseado em quatro estudos e 166 pa-
cientes. Para outros desfechos estudados, como a gravidade da de-
pendência e sintomas psiquiátricos, houve resposta pior que o
placebo. Há algumas limitações, sendo uma das mais importantes
a grande variedade de diferenças nos critérios diagnósticos, méto-
dos de avaliação de desfechos e abordagens psicossociais aplicadas
em conjunto aos psicofármacos. Apesar disso, a avaliação de risco
de vieses mostra que a qualidade dos estudos é boa, sendo que a

158
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

qualidade da metanálise é classificada como moderada. No entanto,


apesar disso e dos efeitos discretos, além das vantagens teóricas,
esses achados não sustentam o uso desses agonistas dopaminérgi-
cos diretos de forma isolada, no tratamento da dependência de co-
caína. Nesses estudos não está incluída a bupropiona, que foi
abordada no tópico antidepressivos, embora o efeito principal dela
seja o agonismo dopaminérgico. Além disso, será importante no
futuro poder estratificar as amostras de usuários através da sin-
tomatologia apresentada, perfil de personalidade e comorbidade,
ou mesmo perfil genético, o que costuma ser chamado de estudos
farmacogenéticos. Dessa forma, poder-se-á distinguir melhor os in-
divíduos específicos que respondem ou não a determinadas medi-
cações como os agonistas dopaminérgicos.

Dissulfiram

Foi aprovado pelo FDA em 1951 para tratamento da de-


pendência de álcool baseando-se na inibição da aldeído desidroge-
nase, enzima envolvida na metabolização do acetaldeído em acetato,
levando ao acúmulo de aldeído, que é tóxico e causa a reação eta-
nol-dissulfiram quase imediatamente após ingestão de álcool. Além
dessa ação, observou-se, posteriormente que o dissulfiram também
inibe a dopamina beta-hidroxilase, enzima envolvida na metaboli-
zação da dopamina em noradrenalina, levando a um aumento na
disponibilidade de dopamina; associado a esse efeito, o dissulfiram
também inibe as carboxilesterases microssomal e plasmática, além
da colinesterase plasmática, enzimas responsáveis pela metaboliza-
ção da cocaína. Assim, o efeito final seria uma eliminação mais de-
morada e uma concentração plasmática maior da cocaína em
comparação à encontrada com o efeito do seu uso isolado. Isso le-
varia a uma exacerbação dos efeitos negativos da cocaína nos pa-
cientes dependentes, como sintomas psicóticos, ansiedade e

159
Manual de abordagem de dependências químicas

resposta cardiovascular, podendo desencadear uma sensação de


aversão à substância (PEtINAttI et al., 2008).
Em função disso, vários ensaios clínicos foram realizados
para testar a eficácia do dissulfiram em amostras de usuários de co-
caína/crack com e sem uso de álcool concomitante, e alguns de-
monstraram resultados interessantes. Contudo, uma metanálise
recente realizada por Pani et al. (2010), através da Cochrane analisou
estudos que compararam dissulfiram com placebo, com naltrexona
e com nenhum tratamento com placebo até janeiro de 2009. O pri-
meiro achado foi que há muita heterogeneidade entre os estudos, e
apenas alguns ensaios clínicos utilizaram cegamento, além de varia-
rem muito na aferição dos desfechos. Os dados sugerem uma maior
adesão ao tratamento dos pacientes que fizeram uso de dissulfiram,
mesmo que não estatisticamente significativo – 2 estudos, 87 par-
ticipantes, rr 0,82 (IC95% 0,66-1,03) e 1 estudo, 107 participantes,
rr 0,34 (IC95% 0,20-0,58); não agrupados por conta da heteroge-
neidade. Não foi possível agrupar os dados quanto à abstinência
porque as medidas de desfecho foram diferentes, e apenas um es-
tudo, com vinte pacientes, sugeriu um número médio de semanas
abstinente, favorecendo o grupo do dissulfiram: MD 4,50 (IC95%
2,93-6,07). Há algumas outras dificuldades adicionais que justificam
a baixa qualidade dos estudos com dissulfiram. O processo de cegar,
por exemplo, pode prejudicar o efeito de impedimento psicológico
causado pela ameaça dos potenciais efeitos (que se acredita ser parte
da eficácia da droga), uma vez que os pacientes podem testar se
estão usando o dissulfiram ingerindo álcool. Além disso, há uma
questão ética envolvida, pois é necessário informar ao paciente de
que ele está em uso da droga ativa por conta da potencial gravidade
do efeito etanol-dissulfiram. Assim, concluem que há pouca evi-
dência no momento que sustente o uso de dissulfiram para depen-
dência de cocaína (PANI et al., 2010).
Entretanto, na nossa prática clínica, uma vez que o dissul-
firam é uma medicação de baixo custo e já está bem estabelecida

160
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

sua eficácia para a dependência de álcool, na Unidade de Psiquiatria


de Adição do HCPA, costumamos utilizar essa medicação em pa-
cientes que possuem a comorbidade de dependência de crack e de
álcool. Sabe-se que a associação entre dependência de álcool e co-
caína é de até 85% e a utilização de álcool é um fator preditivo para
recaídas no uso de cocaína/crack (rEGIEr et al., 2007). Atentamos
para alguns pontos: informamos sobre a reação etanol-dissulfiram
e orientamos a não ingestão de nenhuma solução alcoólica; além
disso, orientamos a forma de utilizar a medicação através de um
contrato mais concreto de tratamento, pois implica inclusive riscos
à vida. Costumamos prescrever para pacientes em estágio motiva-
cional de ação; além disso, o comprometimento do entendimento
adequado dos riscos e a história de comportamentos impulsivos
importantes e de difícil manejo devem ser uma contraindicação ao
menos relativa (MArQUES et al., 2012). Visto que há uma reação
hepatotóxica idiossincrática rara, mas fatal, com pico de incidência
aos 60 dias de tratamento, é recomendável que se oriente procurar
um serviço de emergência no caso de surgimento de sinais de he-
patotoxicidade (febre, dor abdominal, icterícia) e que se solicite pro-
vas hepáticas a cada duas semanas nos primeiros 2 meses de
tratamento e, após, a cada 3 a 6 meses (BArtH; MALCOM, 2010).

Anticonvulsivantes

Os fármacos anticonvulsivantes têm sido consi-


derados para uso na dependência por cocaína baseando-se
na hipótese de que mecanismos de indução de convulsão
(mecanismo kindling) contribuem para dependência
(CrOSBy et al., 1991; KrANzLEr, 1995). A maioria dos
anticonvulsivantes potencializam a neurotransmissão inibi-
tória mediada pelo ácido gama-aminobutírico (GABA) (CzA- Ácido gama-aminobutírico
(GABA). Neurotransmissor an-
PINSKI et al., 2005; LANDMArK, 2007 ). Os neurônios tagonista.

161
Manual de abordagem de dependências químicas

GABA são parte do sistema dopaminérgico mesolímbico e a ati-


vação de receptores GABA, na área tegmentar ventral, diminui a
atividade dopaminérgica no núcleo acumbens (KOOB, 1997). O
efeito inibitório do GABA pode ser efetivo em bloquear aumen-
tos de dopamina extracelular induzidos por cocaína no núcleo
acumbens, que poderia levar a uma diminuição do reforço posi-
tivo no uso de cocaína e da auto-administração (CAMPBELL,
1999; KUSHNEr, 1999). (MINOzzI et al., 2008).
A carbamazepina, por exemplo, vem sendo utilizada em
diversas condições neurológicas e psiquiátricas, também vem sendo
testada para a dependência de cocaína, porém sua eficácia não foi
bem estabelecida e os estudos não favorecem seu uso. Já em 2002,
uma revisão sistemática realizada por Lima A.r., et al, mostrava a
falta de evidencia para o uso clínico da carbamazepina na depen-
dência de cocaína. Em 2009, foi realizada outra revisão sistemá-
tica, pelos mesmos autores, mostrando algum grau de maior
retenção no tratamento, porém sem significância estatística. (LIMA
et al., 2009).
Uma revisão sistemática publicada pela Cochrane (MI-
NOzzI et al., 2008) sobre uso de inúmeros anticonvulsivantes
na dependência de cocaína, demonstrou-se a falta de evidência
de efetividade desses. Os anticonvulsivantes avaliados foram
carbamazepina, gabapentina, lamotrigina, fenitoína, tiagabina,
topiramato e ácido valpróico. Vale a pena salientar que, em três
estudos, com a gabapentina e em dois com a fenitoína, o pla-
cebo se mostrou superior ao anticonvulsivante. Outra metaná-
lise (ALVArEz et al., 2010) mostrou que anticonvulsivantes
não têm sido eficazes no tratamento da dependência de co-
caína, em termos de retenção no tratamento e uso de cocaína.
Apesar dessas revisões sistemáticas e das metanálises não
recomendarem o uso de nenhum anticonvulsivante, são citados es-
tudos com amostras pequenas, controladas com placebo, indicando
uma ação positiva do topiramato na dependência de cocaína

162
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

(KAMPMAN et al., 2004). As doses utilizadas variam entre 200-


400mg, tendo-se melhores resultados com doses entre 300-400mg
(Johnson BA, 2005). Os efeitos adversos mais relatados são nervo-
sismo, alterações do raciocínio, dificuldade de memorização, náusea,
perda de peso, distúrbios de linguagem e distúrbios da concentra-
ção/atenção (GOrELICK et al., 2004).
Os anticonvulsivantes podem ter importante papel em pa-
cientes com comorbidade e com transtorno bipolar. O CANMAt
(Canadian Network for Mood and Anxiety treatments) realizou
uma força tarefa com recomendações para manejo de pacientes
com uso de substâncias e com transtorno bipolar (tB). Colocam
como primeira linha no tratamento de dependência/abuso de co-
caína e tB o uso de ácido valproico associado a lítio (níveis
séricos ≥ 0.8mEq/L para o Litio e ≥ 50 µg/mL para o ácido
valproico). Como segunda linha, indica o uso de lamotrigina
adjuntiva ou monoterapia (até 300mg/dia), lítio monoterapia,
ácido valproico adjuntivo ou monoterapia, quetiapina adjuntiva ou
monoterapia (dose média de 301,9mg/d), risperidona
monoterapia ou associação (dose média 3,1mg/dia) e citicolina
como terapia adjuntiva. Importante salientar que, apesar de
mostrar alguns estudos pequenos com resultados positivos, o
CANMAt não recomenda o uso de carbamazepina para
tratamento de tB e abuso/dependência de cocaína por falta de
evidencia clínica (BEAULIEU et al., 2012).

Antipsicóticos

É válido lembrar que o aumento de monoami-


nas, principalmente da dopamina em áreas específicas do
sistema meso-límbico está envolvido na recompensa e
auto-administração da droga (VOLKOW, 2003). teori- Antipsicóticos: medicações
camente, os antipsicóticos são candidatos para tratamento usadas para o tratamento de
sintomas psicóticos (delírios e
de dependência química por bloquearem receptores aluncinações). São antago-
nistas dopaminérgicos.

163
Manual de abordagem de dependências químicas

dopaminérgicos e contrabalancear o aumento de dopa-


mina relacionado ao uso da droga, tornando, assim, o uso
da mesma menos atraente. Entretanto, enquanto há um
aumento de dopamina em curto prazo, na abstinência
aguda e protraída, em longo prazo tende a ocorrer uma
diminuição da neurotransmissão dopaminérgica, relacio-
nada a uma downregulation (diminuição) de receptores
dopaminérgicos. Essa diminuição do tônus dopaminér-
Anedonia: incapacidade de gico pode levar à anedonia e aumentar a fissura, mantendo
sentir ou perceber o prazer.
o comportamento aditivo (KUHAr, 1996). Então, a efi-
cácia do uso de antipsicóticos poderia ser questionada,
pois por um lado ajudaria a diminuir os altos níveis de
dopamina relacionados à adição; porém, por outro lado,
poderia diminuir o tônus dopaminérgico e aumentar a
fissura e anedonia. Esses conceitos se aplicam bem aos
antipsicóticos típicos, que agem basicamente no sistema
Antipsicóticos atípicos: são dopaminérgico. Antipsicóticos atípicos, por sua vez, tam-
os psicóticos de segunda ge-
ração. Eles tendem a ter
bém agem (juntamente com o bloqueio dopaminérgico) sobre
menos efeitos colaterais e ou outros circuitos cerebrais, como no sistema serotoninérgico
tros efeitos que aqueles medi-
ados pelo antagonismo de (bloqueio 5-Ht2A/2C), o que tem sido considerado com in-
dopamina.
teresse para esse tipo de tratamento, dado o envolvimento da
neurotransmissão serotoninérgica na dependência química
(FILIP, 2005). Hipoteticamente, o bloqueio dopaminérgico
e serotoninérgico poderia ajudar a modular depressão e fissura
associado à abstinência e melhorar a adesão ao tratamento
(FILIP, ALENINA, BADEr, & PrzEGALINSKI,
2010; MCMAHON & CUNNINGHAM, 2001), tor-
nando o uso de antipsicóticos atípicos promissor no
tratamento de dependência de cocaína. Além disso, o
uso de cocaína pode desencadear a sensi-bilização de
receptores dopaminérgicos, levando a sinto-mas
“psicose-like” como paranoia e alucinações, o uso de
antipsicóticos melhorariam tais sintomas. Dentre os

164
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

mais estudados estão olanzapina, haloperidol, quetiapina e cloza-


pina, e vem aparecendo mais estudos com aripiprazol nos últimos
anos, porém sem metanálises que suportem o uso de antipsicóti-
cos para dependência de cocaína (AMAtO, MINOzzI, PANI,
& DAVOLI, 2007). Apesar da falta de evidências consistentes, é
válido comentar alguns pontos de alguns trabalhos citados.
Uma meta analise e revisão sistemática realizada por
Alvarez Y. et al. 2013, incluindo doze ensaios clínicos,
randomizados, duplo-cegos, controlados com placebo envolvendo
681 pacientes com risperidona, quetiapina, olanzapina, reserpina e
ritaserina mostrou que, em geral, antipsicóticos não aumentaram
retenção no tratamento ou diminuição do consumo de substâncias
em comparação com placebo. Apesar de não se ter chegado a um
desfecho estatisticamente significante, os autores especulam sobre
outros achados. Mostrou-se uma menor diminuição de fissura
com antipsicóticos em comparação ao placebo, particularmente
em relação à olanzapina. Atribuiu-se tal fato ao possível bloqueio
de receptores D2, levando a uma maior anedonia e depressão,
podendo aumentar significantemente a fissura e a chance de uso
da substância, favorecendo o resultado para o grupo placebo.
Entretanto, na revisão realizada por Amato, et al., 2007, mostrou-
se, em um estudo pequeno, benefício da olanzapina em relação ao
pla-cebo para controle de fissura (rEID, 2005). Além disso,
outros dois pequenos estudos mostraram melhora da ansiedade e
fissura comparando-se haloperidol e placebo (Berger, 1996) e
melhor que olanzapina para controle de sintomas psiquiátricos em
pacientes com comorbidade com esquizofrenia (SMELSON,
2006). Analisando-se abandono de tratamento, os antipsicóticos
mostraram marginalmente menos desistência em comparação a
placebo, sendo a risperidona a que mais contribui para a adesão
em resultados compatíveis com ou-tras revisões prévias (AMAtO
et al., 2007). É importante salientar que doses mais altas de
risperidona (8mg) mostraram uma diminuição na adesão ao
tratamento devido a efeitos colaterais (GrABOWSKI et al., 2000).
165
Manual de abordagem de dependências químicas

Um consenso interessante para o tratamento farmacoló-


gico do uso de drogas foi lançado pela Associação Britânica de Psi-
cofarmacologia, em 2012. Em relação aos antipsicóticos, limitam-se
em citar a revisão lançada pela Cochrane em 2007 e reforçam que
não há evidências suficientes para uso de antipsicóticos na depen-
dência de cocaína. Outro consenso realizado pela Associação Bra-
sileira de Psiquiatria, também de 2012, cita o uso de antipsicóticos
apenas em concomitância com sintomas psicóticos ou agitação ex-
trema, (sugerindo haloperidol 5mg) e salientando neurolépticos fe-
notiazinicos, tais como clorpromazina e levomepromazina, devem
ser evitados pela redução significativa do limiar convulsivo. Conti-
nua-se realizando estudos com antipsicóticos e buscando-se evi-
dências robustas para o uso dos mesmos na dependência de
cocaína/crack. recentemente alguns estudos com aripiprazol foram
realizados, porém sem resultados significativos para o uso na ma-
nutenção da abstinência e seguimento no tratamento (BrUNEttI
et al, 2012). Um estudo mostrou aumento do uso de cocaína com
o uso de aripiprazol (HANEy et al., 2011) e um estudo piloto mos-
trou benefícios do uso de aripiprazol e do ropinirol para fissura,
tendo apresentado o aripiprazol melhor resultado (MEINI et al.,
2011).
Como se sabe, na prática clínica, os antipsicó-
ticos são utilizados, principalmente em pacientes com
transtorno bipolar ou esquizofrenia, e o tratamento
dessas comorbidades é extremamente importante para
o sucesso no tratamento da dependência química, em
função da gravidade da sintomatologia e problemática
CANMAT: Canadian Network envolvida. Para esse fim, o CANMAT (BEAULIEU et al.,
for mood and anxiety treat-
ments – Rede canadense para
2012) cita dois antipsicóticos no tratamento do tB e
o tratamento de transtornos da dependência de cocaína, risperidona e quetiapina, já
do humor e ansiedade.
citados anteriormente.
Contudo, devido à ambivalência dos achados publicados,
o uso de antipsicóticos, especificamente para dependência à

166
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

cocaína, sem a comorbidade com outros transtornos psi-


quiátricos, deve ser feito de maneira individualizada, pois
alguns pacientes podem se beneficiar do controle dopa-
minérgico e outros piorar, com anedonia e depressão. No
nosso serviço, o uso de antipsicóticos é frequente, espe-
cialmente na internação, visando maior controle da agi-
tação psicomotora, impulsividade, agressividade,
sintomas de abstinência e, naturalmente, naqueles pacien-
tes diagnosticados com comorbidades psiquiátricas. Den-
tre as medicações mais utilizadas estão haloperidol,
clorpromazina, risperidona e olanzapina. tem-se prefe-
rência pela risperidona, em função de seus discretos re-
sultados na melhora da adesão ao tratamento. Utilizamos
haloperidol e clorpromazina em pacientes que não têm
condições financeiras de seguir um tratamento ambula- Haloperidol de depósito:
torial com risperidona. Utilizamos haloperidol de depósito medicação antipsicótica inje-
tável que substitui a medi-
para pacientes com baixa adesão e sintomas psicóticos. cação oral e é liberado durante
vários dias.
A olanzapina é utilizada especialmente quando pacientes
têm efeitos adversos com outros antipsicóticos (sintomas
extrapiramidais, maior risco de convulsão), para pacientes
com insônia importante, e para a potencialização de an-
tidepressivos em pacientes deprimidos. Costumamos ter
também bom resultado no manejo de agitação, agressi-
vidade e impulsividade no ambiente de internação, em
pacientes refratários a antipsicóticos típicos.

Psicoestimulantes
Psicoestimulantes: medica-
Psicoestimulantes podem ser definidos, em ter- mentos que causam um au-
mento de dopamina e
mos gerais, como medicamentos que produzem excitação produzem excitação psíquica.
Podem ser usados como
psíquica e comportamental; agindo, direta ou indireta- medicamentos de substituição
mente, no aumento da dopamina e noradrenalina na de drogas ilícitas estimulantes.

167
Manual de abordagem de dependências químicas

fenda sináptica, mecanismo similar ao da cocaína. A “terapia de


substituição” envolve a troca da substância psicoativa em abuso,
usualmente ilegal e usada várias vezes por dia, por uma droga legal,
administrada oralmente, em poucas tomadas por dia, mas com
efeito semelhante, menor potencial aditivo e menos riscos para a
saúde.
Os principais psicoestimulantes são os análogos de anfe-
tamina, a meta-anfetamina, o metilfenidato, o modafinil e o ar-
modafinil. Outras medicações podem ser citadas neste grupo como
supressores de apetite (mazindol, benzfetamina, fentermina, dentre
outros). Entretanto, existem outras medicações, não classificadas
como psicoestimulantes, porém com propriedades psicoestimu-
lantes (afetam receptação de catecolaminas), como alguns antide-
pressivos (bupropiona) e agonistas dopaminérgicos (levodopa)
(MArIANI et al., 2012).
A Cochrane realizou uma metanálise em 2010
(CAStELIS et al., 2010), avaliando a eficácia de psicoestimulantes
no tratamento da dependência de cocaína. Foram avaliados 6 fár-
macos (bupropiona, dexamfetamina, metilfenidado, modafinil,
mazindol, metanfetamina e selegina). Os resultados mostraram ev-
idência inconclusiva. Psicoestimulantes não diminuíram uso de co-
caína, fissura e adesão ao tratamento, porém uma maior quantidade
de pacientes atingiram abstinência sustentada em relação ao
placebo. Melhores resultados foram obtidos com dexanfetamina,
bupropiona e modafinil. Valendo salientar uma melhor resposta
com dexanfetamina e bupropiona, em pacientes com dependência
de cocaína e opióides. A revisão salienta que psicoestimulantes não
melhoraram sintomas depressivos. Em termos de efeitos adversos,
psicoestimulantes parecem ser seguros a curto-prazo e não induzi-
ram maiores taxas de desistência do tratamento em relação ao
placebo, porém há um possível risco cardio-vascular a longo prazo.

168
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)

Psicoestimulantes tem se mostrado eficazes para o trata-


mento de pacientes com tDAH em diversos estudos (KOEStErS,
2008; PEtErSON, 2008), entretanto sua eficácia em pacientes
com uso de substancias comórbido é controverso. Nos estudos ava-
liados, psicoestimulantes não melhoraram os resultados em relação
ao uso de cocaína. Um estudo com metilfenidato mostrou resulta-
dos positivos com a formulação de liberação rápida, com melhora
importante dos sintomas do tDAH, porém sem diferenças no uso
de cocaína (Schubiner et al, 2002). Estudos mostraram segurança
do metilfenidato em doses até 90mg/kg se coadministrado com co-
caína (Winhusen , et al, 2006). Pacientes usuários de cocaína com
coocorrência de tDAH que respondem ao tratamento são mais
propensos em ter diminuição do uso de cocaína comparado com
não respondedores (MArIANI et al., 2012). Esses resultados suge-
rem que o metilfenidato tem efeito terapêutico em pacientes com
uso de cocaína e tDAH, e que a melhora dos sintomas de tDAH,
pode melhorar os desfechos do paciente com dependência de co-
caína e tDAH comórbidos.

Anfetaminas

Um estudo (GrABOWSKI, 2001), mostrou benefícios


com a dextroamfetamina com doses entre 15 a 60 mg por dia. Um
grupo com doses entre 15 a 30mg e outro entre 30-60mg. O grupo
com menor dose teve melhor adesão no tratamento, enquanto que
o grupo com dose maior teve menor taxa de positividade no exame
toxicológico de urina. Quando comparados com os pacientes com
dependência de opióides e cocaína, as doses maiores (30-60mg por
dia) mostraram melhor benefício que o grupo com menor dose e
com placebo.

169
Manual de abordagem de dependências químicas

Em outro estudo (MArIANI, 2012), comparando com-


binação de topiramato com sais mistos de anfetamina de liberação
prolongada versus placebo, mostrou superioridade da combinação
em relação ao placebo na manutenção de abstinência (33,3% x 16,%
de abstinência). Importante salientar que ambos os grupos recebe-
ram intervenções comportamentais e as doses máximas utilizadas
foram de 150mg 2x por dia para o topiramato e 60mg por dia para
sais de anfetamina.

Modafinil e Armodafinil

O modafinil, assim como a cocaína, bloqueia a recaptação


de dopamina e noradrenalina, aumentando a concentração dessas
no cérebro e causando excitação do sistema nervoso central, porém
de forma mais branda (KArILA et al., 2008). Além disso, também
é capaz de aumentar a atividade do sistema glutamatérgico, geral-
mente deficitário pelo uso crônico de cocaína; podendo, com tal
compensação, bloquear os efeitos euforizantes da cocaína e prevenir
a reinstalação do comportamento de busca (KAMPMAN, 2010).
Apesar de não apresentar eficácia comprovada estatisticamente, al-
guns estudos mostraram resultados positivos com doses entre 200
e 400 mg, principalmente em pacientes com dependência de co-
caína e não dependentes de álcool (ANDErSON, 2009). O mo-
dafinil parece ser uma medicação bem tolerada e com um bom
perfil de efeitos adversos. Dentre os mais frequentes (correspon-
dendo a 5%) encontram-se dores de cabeça, náusea, nervosismo,
ansiedade, insônia, diarreia, dispepsia e vertigem (JOHNSON,
2005).

170
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

Cuidados com o uso de psicoestimulantes

Medicações psicoestimulantes têm potencial para uso in-


devido, abuso e dependência (WILENS, 2008). Uma avaliação do
risco de abuso deve ser feita no paciente que utiliza tais
medicações e o paciente deve ser informado sobre os riscos da
combinação de tais medicações e uso de substância. A cada consulta
o paciente deve ser investigado para possível abuso de psicoestim-
ulantes (de uma forma não ameaçadora). Alguns sinais de alerta
para abuso são: sintomas de intoxicação ou abstinência, exigências
de fármacos com rápido mecanismo de ação, “liberação prolongada
não funciona para mim”, perda repetitiva de prescrições, vários pre-
scritores, preocupação excessiva com estoques de medicação, pre-
scrições que acabam antes do tempo estimado, desenvolvimento
de novos sintomas cardiovasculares e desenvolvimento de psicose.
recomendações como formulações de liberação prolongada são
preferidas a liberação imediata e prescrição de pequenas quanti-
dades da medicação (com contagem de comprimidos) são impor-
tantes para evitar abuso. Em geral, deve-se enfatizar o uso regular
da medicação, e não quando necessário, criando segurança e pre-
visibilidade no manejo de tais medicações (MArIANI et al., 2012).
Em nosso serviço, tentamos utilizar o metilfenidato
quando há, no mínimo, uma forte suspeita do diagnóstico de
tDAH, que infelizmente é de difícil comprovação nessa população,
pela pouca confiabilidade dos relatos retrospectivos dos próprios
pacientes e de seus familiares. Mesmo atentando para evitar seu uso,
em pacientes com indícios de transtorno do humor bipolar, não
são raros, entre nossos pacientes, os que apresentam sintomas
maníacos no início do tratamento com metilfenidato, que é logo
descontinuado nessas situações, e, por esse motivo, associado ao
fato de ser uma medicação não disponível gratuitamente na rede
básica de saúde, que só o utilizamos em casos selecionados. Enfim,
apesar de não haver estudos com significância estatística para o uso

171
Manual de abordagem de dependências químicas

de psicoestimulantes, essas são medicações promissoras no trata-


mento. Uma recente revisão sobre o uso de psicoestimulantes, que
aborda o tema através de uma perspectiva translacional, e con-
siderando essa terapêutica como terapia agonista de reposição, sug-
ere que temos muito o que avançar nesse campo e que são
promissoras as possibilidades para o uso dessas medicações como
adjuvantes no tratamento da dependência de cocaína e crack
(rUSH et al., 2012)

Perspectivas futuras

Através dos avanços da bioengenharia e nanotecnologia,


sabe-se que existem inúmeras possibilidades de tratamentos farma-
cológicos, estimulação de regiões cerebrais através de eletrodos, e
criação de moléculas e outros elementos que poderão atuar no sis-
tema de recompensa cerebral, a fim de colaborar na terapêutica dos
usuários de cocaína. Entre as mais conhecidas e promissoras, atual-
mente, segundo Montoya, em um editorial publicado na Adicciones
em 2012, são as chamadas “vacinas”, uma vez que as substâncias
que atravessam a barreira hemato-encefálica e que atuam direta-
mente na neurotransmissão não têm mostrado resultados anima-
dores até então. Nesse sentido, a comunidade científica decidiu
caminhar para outro lado – está se estudando moléculas maiores e
mais complexas, que não atravessam a barreira e não tem ação cen-
tral aos produtos biológicos. Aparentemente, sua eficácia estaria re-
lacionada a interações com a droga ainda na corrente sanguínea,
impedindo-a de ultrapassar a barreira e de produzir a ação central,
não permitindo, assim, que ocorram seus efeitos agudos – a into-
xicação, a overdose e a abstinência – e também seus efeitos crônicos
– o desenvolvimento da dependência. Os produtos biológicos in-
cluem anticorpos, enzimas, vírus ou toxinas manipulados. Como a
adesão aos tratamentos também é um problema importante, a van-

172
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de cocaína e crack

tagem na utilização dessas terapêuticas é que, uma vez que a admi-


nistração acontece por vias parenterais e a duração do efeito cos-
tuma ser mais prolongada, tem-se mais controle sobre o real uso
ou não da medicação.
O efeito das vacinas é basicamente estimular o sistema
imunológico a identificar as drogas como um antígeno; como as
drogas são partículas muito pequenas, é preciso promover a conju-
gação com uma proteína antigênica, para que se forme um com-
plexo antígeno-anticorpo. Esse é um processo que muitas vezes
demora um tempo (por conta do estímulo necessário ao sistema
imunológico). A administração de anticorpos monoclonais, por sua
vez, tem a vantagem de não depender do estímulo ao sistema imu-
nológico para sua ação; no entanto, a duração do seu efeito é mais
curta, geralmente apenas algumas semanas, e varia muito entre in-
divíduos diferentes. Há a necessidade de se desenvolver anticorpos
que alcancem uma concentração mais alta e prolongada. Atual-
mente, sua utilidade é maior nas intoxicações agudas, pois pode blo-
quear a droga diretamente na corrente sanguínea. As enzimas, por
sua vez, seriam responsáveis por metabolizar a droga antes que ela
atingisse o cérebro e funcionariam melhor quando as concentrações
plasmáticas de droga fossem altas, quando as vacinas demorariam
muito a fazer efeito e quando os anticorpos monoclonais facilmente
se saturariam.
As vacinas já estão em fase clínica de testes, e estão apre-
sentando alguns resultados, mas nada conclusivo, ainda devido a
estudos em andamento. Novos produtos biológicos, cada vez mais
eficazes, surgirão a partir de pesquisas moleculares e genéticas.

173
Manual de abordagem de dependências químicas

Conclusão

Apesar de anos estudando medicações para tratamento da


dependência de cocaína, ainda não há tratamento farmacológico
específico e embasado em evidências científicas. Diversos estudos
realizados com anticonvulsivantes, antidepressivos,
psicoestimulantes, entre outros não mostraram evidências que
apoiassem o uso dessas medicações na manutenção da abstinência
ou outros desfechos relevantes. Esses resultados, entretanto, não
podem ser considerados conclusivos, uma vez que faltam estudos
com metodologia, suficientemente capaz de abarcar a
complexidade das diferenças individuais e controlar os potenciais
viéses a que estão sujeitos esses estudos, em função da extensa
problemática e inúmeros fatores externos/ambientais que
influenciam o consumo de substâncias psicoativas.

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177
Capítulo 12

Terapias farmacológicas para os


transtornos do uso da maconha
Silas de Oliveira Tavares

Introdução

A cannabis é a droga mais consumida no Brasil Cannabis: planta que produz a


maconha. Seu uso leva a
e no mundo. Seu uso leva a efeitos cognitivos significati- efeitos cognitivos significa-
tivos e está associado com di-
vos e está associado com diversas comorbidades psiquiá- versas doenças psiquiátricas e
tricas. Ainda assim, há crescentes movimentos com físicas mão.
como o câncer de pul-

demanda pela legalização do consumo dessa droga. So-


mente uma pequena parcela dos usuários procura trata-
mento. (2,3,9).
A cannabis é derivada basicamente de duas espécies de pe-
quenos arbustos: a Cannabis sativa – principal delas – e a Cannabis
indica. Produzida em praticamente todo o mundo, geralmente em
pequena escala e para suprir os mercados locais. A planta proces-
sada pode gerar três produtos:
1. Cannabis herbácea (flores e folhas secas) – popular ma-
conha ou marijuana, geralmente fumada, é a forma mais ampla-
mente consumida.
2. Haxixe (resina seca concentrada) – mais potente do que
a maconha, pode ser fumada ou mastigada.
3. Óleo de haxixe – consumido de várias formas, produto
com maior teor de canabinoides.
Manual de abordagem de dependências químicas

Seu uso é reconhecido há milhares de anos e o interesse


por essa substância tem aumentado nas últimas décadas devido à
identificação de um sistema canabinóide endógeno, localizado no
sistema nervoso central e em tecidos periféricos, que poderia servir
como alvo terapêutico (1,2,4).
Há também um crescente investimento no comércio da
cannabis e inúmeras campanhas pela legalização da droga que refor-
çam a alegação de que esta é uma substância natural com amplo es-
pectro de benefícios à saúde, sendo desprezados os prejuízos
associados ao seu consumo já comprovados cientificamente.
A legislação brasileira considera crimes, tanto o consumo
quanto a comercialização da cannabis. Até fevereiro de 2013, dezoito
estados norte-americanos aprovaram leis que permitem sua utiliza-
ção com finalidade medicinal. Baseados em estudos de pequeno
porte e baixa evidência científica, médicos podem prescrever can-
nabis para diversas finalidades. Alguns desses estados permitem,
além de comprar a substância, uma pessoa com receita médica pode
produzir uma determinada quantidade para consumo próprio. Já
existem lojas, algumas, inclusive, com serviço de entrega domiciliar.
Há páginas na internet em que é possível descobrir, entre diversos
tipos de cannabis, aquela que melhor atende às necessidades do
cliente, e também o direciona ao comerciante mais próximo de sua
casa. Estranhamente, a maioria dessas leis estaduais norte-america-
nas não estabeleceu mecanismos para a distribuição da substância
nem definiu instrumentos reguladores de sua qualidade e segurança
(WDr 2013).

Prevalência

De acordo com o recente levantamento de dados do World


Drug Report (2013), houve um pequeno aumento na prevalência de
usuários (180,6 milhões ou 3,9% da população com idade entre 15

180
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso da maconha

e 64 anos), em comparação com as estatísticas de 2009. As regiões


com prevalência do consumo de cannabis, maior que a média global
continua sendo a África Ocidental e Central (12,4%), Oceania
(10,9%), América do Norte (10,7%) e Oeste e Europa Central
(7,6%). O consumo de cannabis na América do Norte e na maior
parte da Europa ocidental e central é considerado estável ou em
declínio.
A América do Norte é a região que registra o maior vo-
lume de apreensões de cannabis, responsável por 69% das apreen-
sões globais da substância em 2011. Na América Latina e no Caribe,
a região com o segundo maior número de apreensões no mundo, a
maioria dos países observou um aumento, com destaque para a Bo-
lívia, Colômbia e Paraguai. No Brasil, o número de casos de apreen-
são foi praticamente o mesmo em 2010 e 2011 (885 e 878 casos,
respectivamente), mas a quantidade total de maconha apreendida
passou de 155 toneladas em 2010 para 174 toneladas em 2011, o
terceiro aumento consecutivo.
As Nações Unidas consideram que os dados oficiais a res-
peito do uso de cannabis no Brasil, possam estar subestimados tendo
em vista que o volume da droga apreendida no país está entre os
maiores do mundo. O segundo Levantamento Nacional de Álcool
e Drogas (Lenad), concluído em março de 2012, investigou o pa-
drão de consumo de cannabis no Brasil. Foram entrevistadas 4.607
pessoas a partir de 14 anos de idade em 149 municípios brasileiros.
Os resultados revelaram que 7% da população já experimentou can-
nabis, representando oito milhões de pessoas; entre os adolescentes,
4% confessaram uso pelo menos uma vez, e mais de 60% dos usuá-
rios experimentaram antes dos 18 anos de idade; 3% das pessoas,
número igual entre adolescentes e adultos, disseram ter consumido
a droga nos últimos 12 meses; mais da metade dos usuários, em
torno de 1,5 milhões de pessoas, consomem a droga diariamente;
o consumo entre homens é três vezes mais frequente do que entre
mulheres; mais de um terço dos usuários adultos foram identifica-

181
Manual de abordagem de dependências químicas

dos como dependentes; um terço dos adultos usuários não conse-


guiu abandonar a droga e 27% apresentaram sintomas de abstinên-
cia ao tentar parar. Quando perguntado a respeito da legalização da
cannabis, 75% não concordam, 11% concordam e 14% não tem opi-
nião formada.
Um estudo transversal de 3.398 motoristas descobriu que
4,6% deles atestaram positivo para alguma substância ilícita. Dentre
os positivos, 32% acusaram tetrahidrocanabinol (cannabis). Em
outro estudo no Brasil, testes de drogas em pacientes que foram
admitidos na sala de emergência após acidentes de trânsito mostra-
ram maior associação desses eventos com o uso de cannabis do que
de etílicos. (WDr, 2013).
As taxas de prevalência de consumo de cannabis nos EUA
estão associadas a variáveis sociodemográficas específicas. A droga
é mais prevalente entre os jovens (mais alto para os adultos acima
de 18 a 25 anos, seguido por aqueles de 26 e 34 anos, 12 a 17 anos,
35 a 49 anos e 50 anos ou mais); entre os homens, em comparação
às mulheres (11,4 e 6,7%, respectivamente); significativamente
maior entre separados ou divorciados em comparação com os ca-
sados (odds ratio 1.6). Não foi estabelecida associação significativa
entre nível educacional e prevalência do consumo de cannabis. (10).
Alguns países têm um consumo de canabinóides sintéticos
considerável. Esses são produzidos em diversos laboratórios de pe-
queno porte que os comercializam em pequenas embalagens de
plástico (semelhantes às de preservativos) ou potes plásticos. Não
há qualquer controle sobre as substâncias incluídas na mistura. A
aparência dos canabinóides sintéticos é muito semelhante à da can-
nabis. Em algumas embalagens, nos EUA, pode-se ler “impróprio
para consumo humano”, como forma de burlar as normas da Food
and Drug Administration (FDA). também são comercializados na
forma de balas, pirulitos e brownies. Os efeitos são semelhantes
aos da cannabis: elevação do humor, sensação de relaxamento e de
alteração de percepção. Efeitos colaterais incluem taquicardia, vô-

182
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso da maconha

mitos, agitação, confusão e alucinações. Podem levar, também, à


elevação da pressão arterial e à isquemia miocárdica. Há relatos de
casos de infarto do miocárdio causados pelo consumo de canabi-
nóides. Além disso, há indícios de que alguns desses produtos apre-
sentem potencial carcinogênico devido à presença de metabólitos
das substâncias contidas nos produtos.

Farmacologia da cannabis

A cannabis contém mais de 400 substâncias, incluindo mais


de 60 canabinóides, sendo o delta-9-tetrahidrocanabinol (tHC) seu
principal componente psicoativo. Estudos revelam que o teor de
tHC da cannabis aumentou significativamente, desde a década de
1960, de cerca de 1 a 5% a 10 a 15%, com provável associação com
o aumento das taxas de transtornos do uso da substância. (10)
Quando a cannabis é fumada, são produzidos
por pirólise mais de 2.000 compostos e de 20 a 50% do Pirólise: queima.
tHC é absorvido através dos pulmões. Devido ao me-
tabolismo hepático de primeira passagem, no caso de in-
gestão oral há redução da biodisponibilidade do tHC (2).
Quase todo o tHC absorvido liga-se a proteínas; é am-
plamente distribuído e acumula-se no tecido adiposo, a
partir do qual é liberado lentamente - apresenta meia-vida
longa e pode ser detectado na urina desde um dia até um
mês após o uso. O tHC atinge o cérebro dentro de min-
utos após a absorção e atravessa rapidamente a barreira
hemato-encefálica.
O tHC liga-se a dois receptores do sistema canabinóide
endógeno, denominados CB1 e CB2. Os primeiros localizam-se
em neurônios pré-sinápticos do sistema nervoso central e são
responsáveis pelos efeitos psicológicos e cardiovasculares agudos
do uso de cannabis. Os segundos são localizados no sistema ner-

183
Manual de abordagem de dependências químicas

voso periférico e atuam como moduladores de resposta inflama-


tória (1,2).
Os agonistas dos receptores CB (como o tHC) são inibi-
dores da neurotransmissão nas vias colinérgicas, gabaérgicas e gluta-
matérgicas. O uso crônico desses agonistas leva à redução do número
de receptores CB e à sua dessensibilização. O tHC ativa receptores
CB1 no sistema dopaminérgico mesolímbico que, hipoteticamente,
modula os efeitos de recompensa - reforço positivo da maioria das
drogas de abuso. As propriedades de reforço do tHC e a ocorrência
da síndrome de abstinência levam ao uso crônico de cannabis e
repetida estimulação do receptor de CB1, que, por sua vez, causa a
dessensibilização e down regulation dos receptores, resultando na tol-
erância aos efeitos do sistema nervoso central.
Inúmeros estudos científicos têm explorado os principais
aspectos do sistema endocanabinóide, que se mostra um modulador
importante das funções fisiológicas, não só no sistema nervoso cen-
tral, mas também nos sistemas nervoso autonômico, endócrino,
imunológico, digestivo, reprodutivo e cardiovascular (6-11).

Apresentação clínica e diagnóstico

Transtornos relacionados ao consumo de cannabis


Uma das particularidades da cannabis é o fato de que, assim
como os etílicos, alguns de seus usuários não apresentam problemas
notáveis relacionados ao seu consumo. Isso pode gerar a comum e
equivocada interpretação de que a cannabis é uma substância ino-
fensiva e sustentável (8). Nem sempre é clara a relação entre o uso
de cannabis e os problemas sociais, comportamentais ou psicológi-
cos, particularmente no contexto de associação com outras drogas.
Por fim, pacientes encaminhados ao tratamento por terceiros ten-
dem a negar consumo pesado ou problemas relacionados ao uso
de cannabis. (DSM V).

184
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso da maconha

Critérios diagnósticos
O mais recente Manual Diagnóstico e Estatístico de
transtornos Mentais (DSM V), ainda sem versão na língua portu-
guesa, considera que o diagnóstico de um transtorno de uso de
substância é baseado em um padrão patológico de comportamentos
relacionados ao consumo daquela substância que proporciona so-
frimento psíquico ou prejuízo clínico significativo. O DSM V clas-
sifica quatro grupos de critérios diagnósticos (em tradução livre):
incapacidade de controlar o uso, prejuízo social secundário, uso de
risco e critérios farmacológicos. Com relação ao último grupo, não
é necessário que ocorram sinais de tolerância ou de abstinência para
que seja diagnosticado um transtorno, mas a presença desses fenô-
menos associa-se a curso clínico de maior gravidade.
O transtorno relacionado ao uso de cannabis é classificado
como sendo leve, moderado ou grave, de acordo com a quantidade
de sintomas presentes. Outros especificadores são o tempo de abs-
tinência (dividido em inicial e sustentado, tendo como referência 3
e 12 meses) e o fato dessa ocorrer em ambiente seguro, caso acon-
teça em local com restrição de acesso à droga. A gravidade de um
transtorno relacionado ao uso de uma substância varia com o
tempo e reflete a intensidade e frequência do uso num dado mo-
mento. É importante lembrar que o termo dependência (ou adic-
ção) não é utilizado na nova classificação do DSM V, que observa,
principalmente, o transtorno causado pelo uso e considera o amplo
espectro de gravidade encontrado na prática clínica.

Intoxicação
A intoxicação por cannabis caracteriza-se por al-
terações psicológicas e comportamentais problemáticas
que surgem durante ou logo após o uso da substância -
prejuízos de coordenação motora, euforia, ansiedade, sen-
sação de lentificação do tempo, alterações de juízo e isola-
mento social. Sinais clínicos incluem hiperemia conjuntival, Hiperemia conjuntival: ver-
melhidão dos olhos.

185
Manual de abordagem de dependências químicas

Hiperexia: aumento do apetite. hiperexia, xerostomia, taquicardia. O estado de intoxicação


Xerostomia: boca seca.
instala-se minutos após o uso, no caso de inalação, ou
após horas, no caso de ingestão oral. Os efeitos duram
cerca de três a quatro horas. Como a maior parte dos ca-
Liposolúvel: solúvel em gor- nabinóides é lipossolúvel (incluindo o delta-9 tHC), os
dura.
efeitos poderão persistir ou recorrer por até 24 horas de-
vido à liberação lenta do tecido adiposo e à circulação
enterohepática.
Efeitos do uso da cannabis:
Efeitos de recompensa: hipersexualidade, sensação de len-
tificação do corpo, aumento da auto-confiança e grandiosidade,
risos imotivados, hilaridade, loquacidade, introspecção ou aumento
da sociabilidade, sensação de relaxamento, aumento da percepção
de cores, sons, texturas e paladar.
Sintomas somáticos: taquicardia, hiperemia conjuntival,
hipotermia, tontura, alterações de psicomotricidade, redução da
acuidade auditiva, aumento da acuidade visual, broncodilatação, hi-
potensão ortostática, aumento do apetite, xerostomia, midríase, so-
nolência.
Alterações psiquiátricas: despersonalização, desrealização,
tristeza, alterações sensoperceptivas, crises de ansiedade, irritabili-
dade, paranoia, prejuízo da atenção, da memória de curto prazo e
do julgamento. (12)
Provavelmente associada aos efeitos diretos da
intoxicação crônica pelo tHC, alguns usuários de can-
Síndrome Amotivacional: nabis apresentam a chamada Síndrome Amotivacional, ca-
síndrome caracterizada por
anedonia, desinteresse, aprag-
racterizada por anedonia, desinteresse, apragmatismo,
matismo, passividade, apatia, passividade, apatia, improdutividade, empobrecimento
improdutividade, empobreci-
mento intelectual e retração intelectual e retração social. Pode ocorrer em níveis di-
social. Pode aparecer em
usuários de maconha, sobre- ferentes de gravidade, persistir por várias semanas e até
tudo adolescentes após algum
tempo de uso da droga.
anos após cessação do uso. (13)

186
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso da maconha

Síndrome de abstinência

Quadros de abstinência foram observados em


estudos de coorte com humanos e reproduzidos em mo-
delos com animais. Os principais sintomas da abstinência
Síndrome de abstinência da
de cannabis são ansiedade, irritabilidade, humor depres- maconha: ansiedade, irritabi-
sivo, inquietação, alterações do sono, pesadelos, dores lidade, humor depressivo, in-
quietação, alterações do sono,
musculares, cefaleia, taquicardia, hiporexia e sintomas pesadelos, dores musculares,
cefaleia, taquicardia, hiporexia
gastrointestinais. A maior parte tem início durante a pri- e sintomas gastrointestinais.
meira semana de interrupção do consumo, mas podem
aparecer nas primeiras 24 horas, e são resolvidos após al-
gumas semanas. Vários desses sintomas foram relatados
em 61-96% de usuários crônicos de cannabis, e o trata-
mento farmacológico com o objetivo de amenizá-los po-
deria reduzir o risco de lapsos e recaídas. (1,2,14)

Comorbidades e Associações

Contrapondo a crescente campanha pela legalização da


cannabis, estudos científicos de relevância têm demonstrado diver-
sos prejuízos relacionados à substância, particularmente entre os
adolescentes.
Vários estudos reforçam a percepção de di-
versos especialistas de que o uso de cannabis precipita a
esquizofrenia e outros transtornos psicóticos, seja por uma Maconha e esquizofrenia: o
uso de cannabis precipita a es-
interação entre fatores genéticos e ambientais ou por quizofrenia e outros transtornos
psicóticos. A redução do con-
perturbar o desenvolvimento do cérebro, especial- sumo desta substância poderia
mente durante a adolescência, importante período de atrasar ou prevenir alguns casos
de psicose.
maturação neurológica. Há evidências de que a redução
do consumo dessa substância poderia atrasar ou pre-
venir alguns casos de psicose. tal redução poderia ser
relevante no curso da doença, já que o início precoce

187
Manual de abordagem de dependências químicas

de um quadro de esquizofrenia está associado ao pior prognóstico;


outros fatores, como história familiar ou sexo, são inalteráveis.
Mesmo que um quadro de psicose seja inevitável, atingir marcos de
desenvolvimento do final da adolescência, e início da vida adulta,
poderia ser de grande ajuda para o indivíduo ao possibilitar um
maior grau de funcionalidade pré-mórbida. (15)
Evidências de um estudo transversal confirmaram o sur-
gimento de sintomas psicóticos em pessoas previamente assinto-
máticas. Mais recentemente, zammit e colaboradores mostraram
em um levantamento de aproximadamente 50.000 recrutas suecas
que o uso de cannabis foi associado ao desenvolvimento da esqui-
zofrenia; isso reflete um artigo anterior sobre o mesmo grupo, em
que se observou aumento do risco em cerca de sete vezes após 50
episódios de uso da droga. Uma análise baseada em um estudo lon-
gitudinal, na Nova zelândia, mostrou que os usuários de cannabis
iniciados antes dos quinze anos tinham quatro vezes mais chances
de desenvolver esquizofrenia na idade de 26 anos; é notável que,
nesse estudo, um décimo dos usuários de 15 anos de idade desen-
volveu “transtorno esquizofreniforme” aos 26 anos. Como exem-
plo, o estudo de Weiser et al. abrangeu 270 mil adolescentes do sexo
masculino, dos quais 50.413 foram, especificamente questionados
a respeito de seu uso de drogas; os pesquisadores, usando um re-
gistro de internação psiquiátrica de base populacional, estabelece-
ram que o abuso de drogas na adolescência mais que dobra a taxa
de internações por esquizofrenia. Além disso, um estudo da Grécia
enfatiza que a exposição precoce na adolescência “pode aumentar
o risco de dimensões positivas e negativas de psicose subclínicas”.
(16)
Há também uma associação inversa entre psicose e canna-
bis. Um estudo da Nova zelândia demonstrou que perturbação
mental na idade de 15 anos, conduziu a um aumento do uso de can-
nabis aos 18 anos. A cannabis é a droga ilícita mais usada em pessoas
que sofrem de esquizofrenia. (16)

188
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso da maconha

Estudos também demonstram a associação entre o consumo


de cannabis e sintomas maniformes. Os usuários de cannabis apresen-
taram pontuação maior em escalas de avaliação de agressividade e de-
sinibição, em comparação com aqueles que interromperam o uso. (12)

Cannabis e o consumo de outras drogas

Consistente evidência revelou que o uso de cannabis quase


sempre precede o uso de outras drogas ilícitas, incluindo cocaína,
metanfetamina, alucinógenos (incluindo LSD e ecstasy), medica-
mentos obtidos ilegalmente, e os opiáceos, tais como heroína ou
de morfina.
Pesquisas a respeito do uso de drogas na adolescência nos
Estados Unidos, ao longo dos últimos trinta anos, têm demons-
trado, consistentemente, três tipos de relação entre cannabis e uso
de heroína e cocaína. Em primeiro lugar, quase todos aqueles que
experimentaram a cocaína e a heroína já haviam consumido uso de
álcool, tabaco e cannabis. Em segundo lugar, os usuários regulares
de cannabis tinham maior probabilidade de, futuramente, consumir
heroína e cocaína. Em terceiro lugar, quanto mais precoce o con-
sumo de cannabis, mais provável o uso futuro de heroína e cocaína.
Essas relações foram confirmadas em estudos longitudinais do uso
de drogas na Nova zelândia. (17)

Cannabis e complicações clínicas

Há evidência de que o uso prolongado de cannabis leva a


prejuízos cognitivos relacionados à organização e integração de in-
formações complexas, envolvendo vários mecanismos de processos
de atenção e memória. Pode haver déficit em processos de apren-
dizagem mesmo após períodos mais breves de tempo. (12)

189
Manual de abordagem de dependências químicas

Os usuários de cannabis que procuram tratamento comu-


mente relatam problemas na escola ou trabalho, dificuldades nos
relacionamentos em geral, culpa relacionada ao uso da droga, difi-
culdades financeiras, baixa energia, baixa autoestima, insatisfação
com o nível de produtividade, problemas no sono e na memória, e
baixa satisfação com a vida. O consumo de cannabis tem sido asso-
ciado com transtornos de conduta, tDAH e transtornos de apren-
dizagem. (18)
Um estudo australiano, baseado em registros hospitalares,
mostrou que o número de hospitalizações relacionadas com a can-
nabis aumentou naquele país entre os anos 1996 e 2006, com a
maior taxa observada entre indivíduos de 20 a 29 anos. Descobriu-
se que entre australianos, nessa faixa etária, cerca de 250 pessoas
por milhão, foram internadas devido aos problemas relacionados
com a cannabis (como psicose induzida, dependência, toxicidade e
outros transtornos por uso). Uma tendência semelhante foi obser-
vada no Canadá, onde a taxa de hospitalizações relacionadas com
a cannabis dobrou entre os anos de 1996 e 2005. (19)
Estudos têm mostrado que os fumantes regulares de can-
nabis apresentam mais sintomas de bronquite crônica. A competên-
cia imunológica também é prejudicada, aumentando as taxas de
infecções respiratórias, pneumonia e procura por serviços de saúde.
(18, 20, 21)
Há boas razões para acreditar que a cannabis pode causar
cânceres de pulmão e do trato aerodigestivo. A fumaça da maconha
contém muitos dos mesmos agentes cancerígenos presentes no
fumo do tabaco, que provocam câncer respiratório, sendo que al-
guns desses agentes se encontram em níveis ainda mais elevados.
Os fumantes de cannabis inalam mais profundamente do que os fu-
mantes de tabaco, retendo mais alcatrão e partículas, e os fumantes
crônicos de cannabis mostram muitas mudanças patológicas nas cé-
lulas pulmonares que costumam preceder o desenvolvimento de
câncer em fumantes de tabaco. Sidney, Quesenberry, Friedman e

190
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso da maconha

tekawa (1997) estudaram a incidência de câncer em 64.855 indiví-


duos durante 8,6 anos de acompanhamento. Homens que fumaram
cannabis tiveram um risco aumentado de câncer de próstata (rr =
3,1), da mesma forma que os ainda fumantes (rr = 4,7). Outro es-
tudo encontrou um risco aumentado de carcinoma da cabeça e pes-
coço entre os usuários de cannabis, em um estudo de 173 pessoas
com esse tipo de câncer e 176 controles. Um estudo de caso-con-
trole na tunísia com 110 casos de um hospital de câncer de pulmão
e 110 controles da comunidade mostrou associação com o con-
sumo de cannabis (Or = 8,2). Um estudo caso-controle da Nova
zelândia, que incluía 79 adultos com câncer de pulmão e idade in-
ferior a 55 anos e 324 controles comunitários (Aldington et al.,
2008) apontou uma relação dose-resposta entre os riscos de câncer
de pulmão e frequência do consumo de cannabis. Entre os usuários
mais frequentes de cannabis (um terço do total de usuários), houve
um risco 5,7 vezes maior de desenvolvimento de câncer de pulmão
(95% CI: 1,5, 21,6). (20)
Um estudo com 3.882 pacientes revelou risco aumentado
de 4,8 vezes de evolução para infarto agudo do miocárdio na pri-
meira hora após o uso. Esses resultados são consistentes com es-
tudos laboratoriais que demonstraram que fumar maconha afeta,
negativamente pacientes com doença cardíaca. (20)
A não ser quando há consumo crônico de grandes quan-
tidades de cannabis, raramente um usuário é acometido por emer-
gências clínicas ou psiquiátricas.

Complicações sociais do uso de maconha

Além dos distúrbios relacionados ao consumo de cannabis,


internações e episódios de tratamento, o uso de cannabis está as-
sociado a uma série de danos sociais, como, por exemplo, compor-
tamento violento. Um estudo de coorte da Nova zelândia,

191
Manual de abordagem de dependências químicas

observou que os indivíduos que preencheram critérios para o diag-


nóstico de dependência de cannabis foram 3,8 vezes mais propensos
ao comportamento violento do que aqueles sem dependência. Um
estudo de coorte mostrou que, aos 21 anos, mais de um quarto de
usuários pesados cannabis foi preso ou condenado por um delito re-
lacionado com o uso droga, em comparação com menos de 1% das
pessoas que não consumiram a droga mais de 10 vezes em sua vida.
As relações entre o uso de cannabis e violência devem-se também
às circunstâncias sociais em que a droga é obtida, isto é, os crimes
e violência são cometidos no contexto da busca pela substância, ou
simplesmente como uma função de envolvimento no estilo de vida
(por exemplo, lutas por território ou fracasso no pagamento de dí-
vidas). (19)
tem sido demonstrado que o uso de cannabis associa-se
com lesões e acidentes. É a droga ilícita mais frequentemente de-
tectada em condutores que foram feridos ou mortos em acidentes
com veículos automotores. Algumas pesquisas revelaram que mo-
toristas em uso de maconha são duas vezes mais propensos a en-
volverem-se em acidentes. A piora no desempenho cognitivo e
comportamental, principalmente em tarefas que requerem atenção
sustentada, pode justificar essas estatísticas. Um grande e recente
estudo transversal realizado na Espanha mostrou que o uso de can-
nabis nos últimos 12 meses está associado com aumento da proba-
bilidade de lesões não relacionadas ao trânsito. Da mesma forma,
um grande estudo retrospectivo na América do Norte descobriu
que os usuários de cannabis tiveram maiores chances de hospitaliza-
ções por lesões de todas as causas do que a população de não usuá-
rios. Além disso, o consumo de cannabis tem sido associado com
sintomas depressivos e ansiosos. Finalmente, o uso de cannabis du-
rante a adolescência tem sido associado a problemas relacionados
à vida escolar, incluindo baixo rendimento acadêmico, evasão e bri-
gas entre os alunos. (20, 21)

192
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso da maconha

Tratamento do transtorno do uso de cannabis

Um estudo australiano com um total de 490 participantes


revelou que as barreiras mais comumente relatadas para o trata-
mento de transtornos relacionados ao uso de cannabis foram a sen-
sação de que o tratamento não é necessário para reduzir o consumo,
sensação de incapacidade de interromper o consumo, desconheci-
mento das opções de tratamento e a opção em evitar um possível
estigma associado ao usuário de drogas que necessitam de trata-
mento. De longe, o facilitador mais citado foi melhorar a informa-
ção disponível. (22)
Alguns autores têm demonstrado que as propagandas
sobre tratamento e educação sobre os malefícios do uso continuado
podem aumentar as taxas de acesso e a motivação para participar
do tratamento. Um único estudo brasileiro mostrou que um serviço
de atendimento por telefone específico para usuários de cannabis
pode operar de forma eficaz tanto como um dispositivo de infor-
mação como de tratamento. (22). Os resultados de um outro estudo
sugerem que intervenções baseadas em acompanhamento pela in-
ternet podem ser uma forma eficaz de tratar usuários de cannabis.
(23)
É importante que seja realizado um rastreio a respeito do
consumo de substâncias psicoativas durante a entrevista de toda
consulta médica. Uma vez relatado o consumo de cannabis, para es-
clarecimento diagnóstico, deve-se perguntar a respeito do padrão e
gravidade do consumo; associação com outras drogas; fatores re-
forçadores e atenuadores do consumo; períodos de abstinência; ma-
nifestações de sintomas de abstinência e tolerância; incapacidades
associadas; comorbidades clínicas e psiquiátricas; histórias de tra-
tamento; motivação para o tratamento.
Mesmo que não haja evidente repercussão relacionada ao
consumo de cannabis, o usuário deve ser orientado a respeito dos
possíveis transtornos clínicos e psiquiátricos a que se expõe. Ha-

193
Manual de abordagem de dependências químicas

vendo o diagnóstico de transtorno relacionado à droga, após psi-


coeducação e aconselhamento, é importante avaliar as expectativas
e a motivação do paciente em interromper o consumo da substân-
cia. Uma ferramenta interessante é a entrevista motivacional, que
se trata de uma abordagem não confrontadora em que o entrevis-
tador, com postura empática e escuta reflexiva, conduz o próprio
paciente a assumir a responsabilidade pela mudança.
Deve-se traçar o prognóstico e planejar tratamento indi-
vidualizado, após observar a gravidade do quadro e necessidades
específicas do paciente. Principal método para tratamento da de-
pendência de cannabis é a terapia cognitivo-comportamental, que é
composta por uma combinação de abordagens destinadas a au-
mentar o autocontrole. técnicas específicas incluem explorar as
consequências positivas e negativas de uso contínuo, auto-moni-
toramento para reconhecer sintomas de fissura e identificar situa-
ções de risco para o uso, e desenvolvimento de estratégias para
evitar e saber lidar com situações de alto risco para uso. Um ele-
mento central desse tratamento é antecipar possíveis problemas e
ajudar os pacientes a desenvolver estratégias eficazes de enfrenta-
mento. As pesquisas indicam que as habilidades individuais apren-
didas através de abordagens cognitivo-comportamentais
permanecem após a conclusão do tratamento.
Alguns estudos demonstraram que as abordagens de tra-
tamento utilizando princípios de manejo de contingências, que en-
volvem a chance de ganhar incentivos de baixo custo, em troca de
amostras de urina livre de drogas, são eficazes na interrupção do
consumo de cannabis. (17)
O grupo de projeto de pesquisa sobre tratamento de Can-
nabis revelou, a partir de um grande estudo multicêntrico, que a te-
rapia de incremento motivacional tem se mostrado eficaz para tratar
transtornos relacionados ao consumo da substância. A terapia con-
siste em uma avaliação inicial, seguida de duas a quatro sessões in-
dividuais de tratamento. Na primeira sessão de tratamento, o

194
Manual de abordagem de dependências químicas

terapeuta fornece uma reposta da avaliação inicial, provocando a


discussão sobre o uso pessoal de drogas. As estratégias de enfren-
tamento para situações de alto risco são sugeridas e discutidas com
o paciente. Em outras sessões, o terapeuta acompanha a mudança,
revisa as estratégias de cessação em prática e incentiva o compro-
misso para a mudança ou manutenção da abstinência. (17)
O processo de recuperação é geralmente longo e são fre-
quentes os episódios de lapsos e recaídas. A inclusão da família é
útil para adesão do paciente - particularmente entre adolescentes -
e investigação do contexto em que o uso de drogas se instalou.
Há escassez de evidências científicas, com relação ao uso
de medicamentos para tratamento do transtorno relacionado ao
uso de cannabis. Os ensaios clínicos disponíveis pecam pelas limita-
ções metodológicas, como curto período de observação, ensaios
não-controlados, análises de população heterogêneas e números in-
suficientes de sujeitos de pesquisa incluídos, fatores que dificultam
quaisquer generalizações.
A toxicidade aguda da cannabis é extremamente baixa e não
há casos de morte por intoxicação confirmada na literatura. O tra-
tamento medicamentoso nesta fase é essencialmente sintomático.
Benzodiazepínicos podem ser úteis nos quadros ansiosos agudos.
Sintomas psicóticos e agitação psicomotora intensa podem ser
abordados com antipsicóticos.
Durante a fase de abstinência, em caso de síndrome amo-
tivacional, pode-se usar antidepressivos e psicoestimulantes. Exis-
tem dados que sugerem que o dronabinol, uma formulação oral de
tHC sintético, seria um candidato viável a farmacoterapia para o
tratamento de transtornos de uso de cannabis, particularmente nos
casos em que os sintomas de abstinência parecem ser uma barreira
para a cessação, mas ainda são necessários mais estudos para com-
provação de segurança e eficácia. (24, 25) O uso de carbonato de
lítio mostrou redução do uso de cannabis e amenização de sintomas
de abstinência, em estudos iniciais, assim como o uso de buspirona,

195
Manual de abordagem de dependências químicas

que mostrou redução de sinais e sintomas de fissura e do uso em si


(1,4). Um estudo com n-acetil-cisteína, na dose de 1200mg diários,
mostrou resultados promissores, que devem ser confirmados (5).
O mesmo ocorreu com gabapentina, também na dose de 1200 mg
diários. (6)
Estudos com bupriopiona 300mg/dia e divalproato de
sódio 1500/dia mostraram agravamento dos sintomas de abstinên-
cia à cannabis. Estudos com baclofeno e mirtazapina também não
sugeriram potencial para uso no tratamento dessa síndrome. (1,4)

Prevenção

A última revisão sobre cannabis da United Nations Office


on Drugs and Crime (UNODC) demonstra que a prevenção do
consumo de cannabis, não é somente um senso comum, mas é tam-
bém custo-efetiva. Para cada dólar investido em prevenção, há uma
economia de até dez dólares em tratamento. trabalhando de forma
mais ampla com as famílias, escolas e comunidades, os cientistas
descobriram formas eficazes de ajudar as pessoas a adquirir as ha-
bilidades e abordagens para impedir problemas de comportamento,
como o uso de drogas, antes que eles ocorram. Décadas de pesquisa
demonstram que há princípios fundamentais para a prevenção do
consumo de drogas. Por exemplo, de acordo com o Instituto Na-
cional de Abuso de Drogas dos EUA (NIDA), que realiza mais de
85% das pesquisas no mundo sobre abuso de drogas, os programas
de prevenção devem ter as seguintes características:
• Devem aumentar os fatores de proteção (por exemplo,

monitoramento parental, pais calorosos e auxiliadores, sucesso na


escola e participação em atividades extracurriculares) e reduzir os
fatores de risco (por exemplo, pares desviantes, insucesso escolar,
cuidador dependente químico, disponibilidade imediata de drogas
na comunidade e políticas que normalizam o uso de drogas);

196
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso da maconha

• Devem ser localizados e específicos para a comunidade,

adaptados para o público-alvo;


• São mais eficazes durante períodos específicos de mu-

danças, quando há mais riscos para os jovens, como transição do


ensino fundamental para o ensino médio;
• Devem ser implementados em várias configurações (por

exemplo, na escola e em casa), por longos períodos de tempo, com


subseqüentes sessões de follow-up, são mais eficazes.

197
Manual de abordagem de dependências químicas

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199
Capítulo 13

Terapias farmacológicas para os


transtornos do uso de tabaco
Rodolfo Braga Ladeira
Patrícia Maria da Silva Roggi

Introdução

A dependência de nicotina ou tabagismo é um Nicotina: substância absorvi-


da da fumaça do cigarro pelos
transtorno psiquiátrico que se caracteriza por fenômenos pulmões e que causa os efeitos
psicoativos do tabaco.
comportamentais, cognitivos e fisiológicos, induzidos
pela exposição contínua à nicotina. Entre os sintomas da
dependência à nicotina, há um forte desejo ou urgência
em consumir a substância, dificuldade de controlar o
consumo e utilização persistente, apesar da consciência
de seus malefícios. A presença de sintomas de abstinên-
cia, tais como a fissura, o humor disfórico ou deprimido,
a insônia, a irritação e uma sensação de tensão surge
quando da cessação abrupta ou redução da quantidade
de nicotina. O uso continuado do tabaco leva à depen-
dência e causa consequências psíquicas, somáticas, am-
bientais e sociais.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, o ta-
bagismo está entre os problemas prioritários de saúde pública e é a
maior causa de morte passível de prevenção atualmente, matando
mais de cinco milhões de pessoas em todo o mundo a cada ano e
Manual de abordagem de dependências químicas

mais de 200 mil, no Brasil. O tabagismo é fator de risco para seis


das oito principais causas de morte no mundo e se o considerarmos
isoladamente como uma causa de morte, ele se torna a terceira prin-
cipal causa, apenas atrás da cardiopatia isquêmica e da doença ce-
rebrovascular (WHO, 2008).
Portanto, é importante aumentar a consciência do bene-
fício da cessação do tabagismo e traçar estratégias para encorajar o
paciente a fazer uma tentativa de abandonar a dependência ao ta-
baco. Vários tratamentos têm se mostrado eficazes em reduzir o
uso do tabaco. O objetivo desse capítulo é discutir os principais tra-
tamentos farmacológicos para o tratamento do tabagismo, de modo
a esclarecer o profissional de saúde sobre a disponibilidade, as van-
tagens e desvantagens de cada um deles.

Tratamento farmacológico

Estima-se que 69% dos fumantes desejam parar de


fumar (CINCIrIPINI, 1997). É importante que os profissio-
nais de saúde questionem sobre o uso de tabaco com seus pa-
cientes. Os indivíduos fumantes devem ser encorajados a cessar
o tabagismo e deve ser oferecida ajuda para fazê-lo em todas
as oportunidades.
Uma intervenção mínima desejável na abordagem do
dependente de nicotina consiste em perguntar sobre seu con-
sumo diário de tabaco e problemas associados; investigar seu de-
sejo de interromper o consumo; aconselhar a cessação do uso;
discutir as alternativas de tratamento e oferecer assistência du-
rante o processo (MArQUES & rIBEIrO, 2003).
Uma vez determinado a interromper o uso, é fundamental
orientar o paciente a escolher uma data para parar, pois todos os
estudos mostram que marcar uma data aumenta a chance e que a
interrupção abrupta é mais eficiente que a interrupção gradual, em-

202
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de tabaco

bora os tabagistas pesados possam se beneficiar dessa segunda es-


tratégia (SCHOFIELD, 2006).
O paciente deve ser informado sobre os tratamentos far-
macológicos e não farmacológicos. Os tratamentos medicamento-
sos devem ser oferecidos a todos os fumantes acima de 18 anos,
que fumam mais de dez cigarros ao dia. Dentre os vários medica-
mentos, destacam-se a terapia de reposição de nicotina, a
bupropiona e a vareniclina (MIrrA et al., 2011).
A prescrição deve considerar o grau de dependência à ni-
cotina, a experiência pregressa com fármacos para tabagismo, a pre-
sença de comorbidades, além das contraindicações, perfil de efeitos
colaterais e precauções para o uso. Para o uso da reposição de ni-
cotina, é imperativo que o paciente interrompa o tabagismo logo
antes de iniciar o tratamento; nos demais, costuma-se marcar uma
data, geralmente dentro de oito dias, para que o indivíduo pare. A
duração recomendada para o tratamento de interrupção do taba-
gismo é de doze semanas. Entretanto, algumas evidências sugerem
que a manutenção por prazos maiores pode ajudar a evitar recaídas
em longo prazo. Um tratamento por período superior a doze se-
manas pode ser recomendado para fumantes que referem sintomas
persistentes de abstinência ou que tenham história de recaída após
suspensão da medicação, em tratamentos anteriores (MIrrA et al.,
2011).
As diretrizes para o tratamento do tabagismo mostram
que o tratamento pode ser eficaz. Enquanto aproximadamente
10% dos fumantes conseguem parar sem ajuda, o sucesso pode
au-mentar para cerca de 20 a 30% com as abordagens
farmacológicas e/ou não farmacológicas preconizadas (MIrrA et
al., 2011). Fiore e cols. (2008 PHS Guideline Update Panel, 2008)
conduziram uma metanálise de 83 estudos e observaram que a
porcentagem de abstinência em seis meses, com placebo, era por
volta de 13,8%. Essa chance praticamente triplicava com o uso de
Vareniclina na dose de 2mg/dia. Outros tratamentos em
monoterapia, que praticamente
203
Manual de abordagem de dependências químicas

dobravam a chance incluíam a terapia de reposição de nicotina


(trN), a própria vareniclina na dose de 1mg/dia, a bupropiona e
a nortriptilina.

Vareniclina
A Vareniclina é um agonista parcial dos receptores coli-
nérgicos nicotínicos alfa4beta2, que impede a ligação de nicotina a
eles e reduz a vontade de fumar. Mais eficaz que a bupropiona, ela
praticamente triplica chances de sucesso no tratamento (CAHILL
et al., 2013).
Está disponível no mercado brasileiro nas apresentações
de 0,5mg ou 1mg. Inicia-se o tratamento com 0,5 mg, 1 vez ao dia,
por três dias. No quarto dia, prescrever 0,5 mg, duas vezes ao dia.
Do 7º dia em diante, prescrever 1mg, duas vezes ao dia. É impor-
tante que o indivíduo marque uma data para parar de fumar que é
sugerida para oito dias após o início da medicação (MIrrA et al.,
2011).
A vareniclina apresenta um perfil relativamente seguro de
interações e de contra-indicações (apenas hipersensibilidade). En-
tretanto, deve-se ter cautela no uso em pacientes com história de
transtornos psiquiátricos associados. Alguns estudos sugerem agra-
vamento desses sintomas (incluindo suicídio) em indivíduos com
predisposição (AHMED, 2011; MOOrE et al., 2011). Embora uma
metanálise publicada em 2011 tenha mostrado um possível au-
mento do risco de eventos cardiovasculares graves, associados ao
uso desse medicamento, tal ocorrência não foi confirmada em es-
tudos metanalíticos posteriores (PrOCHASKA & HILtON, 2012;
WArE et al., 2013).
É necessário adequar dose em pacientes portadores de in-
suficiência renal grave que estejam em diálise. O uso de vareniclina
está inteiramente contraindicado em gestante.

204
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de tabaco

Terapia de reposição de nicotina


A terapia de reposição de nicotina está disponível no Bra-
sil em gomas, pastilhas e adesivos. todas elas reduzem os sintomas
da abstinência do tabaco e aumentam a chance de parar de fumar
em cerca de duas vezes (CAHILL et al., 2013) e grande parte do
insu-cesso deriva do uso incorreto. As gomas estão disponíveis na
apre-sentação de 2mg; as pastilhas, de 2mg e 4mg; e os adesivos,
de 21mg, 14mg, 7mg ou 15mg, 10mg ou 5mg.
Ao usar gomas ou pastilhas, inicia-se o tratamento com
a dose de 2mg (tabagistas pesados devem iniciar com a dose de
4mg). As gomas devem ser consumidas a cada uma ou duas
horas, em um total diário entre 10 a 15 unidades ao dia. Após 6
semanas, inicia-se a redução progressiva da dose, mas o trata-
mento deve ser mantido até a 14ª semana. Elas devem ser mas-
cadas lentamente para liberar a nicotina, até que se sinta um
gosto apimentado. O paciente deve estacionar a goma na gen-
giva por alguns minutos, para absorver a nicotina. Feito isso,
mascar novamente até sentir o gosto e repetir o processo por
30 minutos. A pastilha deve ser movida de um lado para o outro
da boca, sem mastigar, até que esteja totalmente dissolvida, em
20 a 30 minutos.
Ao optar pelo adesivo, inicia-se o tratamento com o de
15mg ou o de 21mg. A redução da dose deve realizar-se em in-
tervalo de quatro semanas e o período total de uso deve ser de 6
a 14 semanas (MIrrA et al., 2011). O adesivo deve ser aplicado
pela manhã, após o banho, em uma área do corpo seca e livre de
pêlos e mantido até o dia seguinte, quando deverá ser trocado
por um novo, a ser aplicado em local diferente do primeiro, para
evitar irritação (o efeito colateral mais comum). Os adesivos de
nicotina possuem a vantagem de serem fáceis de usar e os pa-
cientes aderirem bem a essa modalidade de tratamento. Vale lem-
brar que seu uso requer a abstinência total do tabaco desde o
início do tratamento.

205
Manual de abordagem de dependências químicas

recomenda-se abster-se do tabagismo ao iniciar a tera-


pia de reposição de nicotina (trN), devido ao risco de superdo-
sagem da mesma (MIrrA et al., 2011).
Contraindicações: Incapacidade de mascar a goma, úl-
cera péptica ativa (goma ou pastilha), dermatites nos locais de
aplicação dos adesivos, gravidez (adesivos), doenças cardiovas-
culares como arritmias graves, angina instável ou infarto agudo
do miocárdio recente (<4 semanas).

Bupropiona
A bupropiona é um antidepressivo que aumenta disponi-
bilidade sináptica da dopamina e noradrenalina (DIEHL, 2010).
tem sido utilizada no tratamento do tabagismo e praticamente
dobra as chances de sucesso no tratamento (CAHILL et al., 2013).
Encontra-se disponível no mercado brasileiro nas apre-
sentações de 150 mg ou 300 mg. Inicia-se o tratamento com 150
mg/manhã e aumenta-se a dose para um comprimido de 150 mg,
duas vezes ao dia, à partir do 5º dia. Geralmente, as doses são to-
madas no início da manhã e no início da tarde, para evitar um dos
possíveis efeitos colaterais, a insônia. Pode-se, ainda, utilizar o com-
primido de liberação lenta em uma única tomada pela manhã. É
importante que o indivíduo marque uma data para parar de fumar,
sugerida para o 8o dia, após o início da medicação (MIrrA et al.,
2011).
A bupropiona apresenta perfil ideal para pacientes que
temem o ganho de peso que costuma ocorrer nas primeiras sema-
nas de abstinência do tabaco ou pacientes que apresentam a de-
pressão como comorbidade.
É contraindicada em gestantes ou pacientes com história
de epilepsia ou com risco aumentado para convulsões (abstinência
alcoolica, traumatismo cranioencefálico, acidente vascular encefá-
lico, uso de medicamentos que reduzem o limiar convulsivo), pre-
sença de anorexia ou uso de inibidores da monoaminoxidase.

206
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de tabaco

Nortriptilina
A nortriptilina é um antidepressivo tricíclico que tem sido
utilizado no tratamento do tabagismo e dobra a chance de sucesso
(CAHILL et al., 2013).
Está disponível no mercado brasileiro nas apresentações
de 25, 50 ou 75 mg. No tratamento para o tabagismo, emprega-se
uma dose menor que para a depressão. Preconiza-se tomar 25mg,
preferencialmente à noite, em virtude do seu efeito sedativo. Assim
como no uso de outros medicamentos não nicotínicos, é impor-
tante que o indivíduo marque uma data para parar de fumar, o “dia
D”, que pode ser sugerido o 8o dia após o início do medicamento.
Apesar de não ser de primeira linha no tratamento do ta-
bagismo, a nortriptilina é uma medicação barata, geralmente dispo-
nível gratuitamente no serviço público de saúde brasileiro. Dentre
os tricíclicos, é o medicamento com perfil mais brando de efeitos
colaterais, principalmente em dose baixa, como a preconizada para
o tratamento do tabagismo. A nortriptilina apresenta um perfil ideal
para pacientes com problemas de insônia ou que precisam ganhar
peso, pois a sonolência e ganho de peso são efeitos colaterais espe-
rados para esse medicamento. Pacientes que apresentam a depres-
são como comorbidade também podem se beneficiar desta
indicação. Entretanto, para o tratamento da depressão comórbida,
costuma-se empregar uma dose diária maior, entre 50 e 150mg/dia,
que é ajustada segundo o resultado do exame de dosagem sérica da
nortriptilina.
É contraindicada em gestantes e nos quadros de cardio-
patia grave (p. ex., arritmia ou infarto agudo do miocárdio recente),
glaucoma de ângulo fechado, uso de inibidores da monoaminoxi-
dase e medicamentos que prolongam o intervalo Q-t. Sugere-se
cautela nos pacientes com retenção urinária, hiperplasia benigna da
próstata, hipertireoidismo, tumor cerebral, doenças psiquiátricas ou
risco aumentado para convulsões.

207
Manual de abordagem de dependências químicas

Outros medicamentos
Apesar de haver evidência científica de que a clonidina
seja superior ao placebo no tratamento do tabagismo, ela não deve
ser utilizada como primeira escolha, pelo seu potencial de provo-
car muitos efeitos colaterais (MIrrA et al., 2011). O uso de inibi-
dores seletivos da recaptação da serotonina, em monoterapia ou
da naltrexona não mostrou benefício no tratamento do tabagismo
(CAHILL et al., 2013).
A citisina é um agonista parcial dos receptores nicotínicos
alfa4beta2, semelhante à vareniclina, utilizada para o tratamento
contra o tabagismo na rússia e alguns países do antigo regime so-
cialista com resultados positivos (CAHILL et al., 2013).

Associação de medicamentos

Alguns estudos sugerem que o uso de adesivo de nicotina


associado a uma forma de liberação mais rápida de nicotina (goma
ou pastilha) pode aumentar as chances de sucesso, quando compa-
rado ao uso isolado de uma terapia de reposição de nicotina
(CAHIL et al., 2013). Entretanto, as evidências sobre a segurança
dessa associação são insuficientes para indicá-la como tratamento
de primeira linha (MIrrA et al., 2011).
Apesar de ser a única associação aprovada pelo FDA, o
uso do adesivo de nicotina associado à bupropiona não parece
mostrar benefício, quando comparado com o uso da terapia de
reposição de nicotina em monoterapia (CAHILL, 2013). Além
disso, deve-se ter cautela ao indicar essa associação que pode ele-
var a pressão arterial.

208
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de tabaco

Particularidades do tratamento em grupos especiais

Portadores de transtornos mentais


O tabagismo é comum entre os pacientes com transtornos
psiquiátricos, especialmente naqueles com transtorno depressivo,
transtornos de ansiedade e transtornos psicóticos. Um transtorno
mental não contraindica a cessação do tabagismo, pelo contrário:
o tratamento do tabagismo deve ser encorajado e acompanhado
pelo psiquiatra e demais profissionais de saúde mental (CAMPION
et al., 2008). O tratamento farmacológico do tabagismo nos pacien-
tes com transtornos psiquiátricos lança mão dos mesmos medica-
mentos utilizados para esse tratamento em outros fumantes, com
taxas semelhantes de sucesso (MIrrA et al., 2011). Entretanto, é
muito importante identificar alterações comportamentais e psíqui-
cas que possam estar relacionadas à síndrome de abstinência ou ao
tratamento medicamentoso - especialmente a vareniclina, que pode
estar associada à incidência de sintomas depressivos, ideação ou
comportamento suicida (MOOrE, 2011).

Idosos
A prevalência média do tabagismo em idosos é de 12%
(homens, 17% e mulheres, 9%) (INCA, 2011). Parar de fumar na
terceira idade pode melhorar a qualidade de vida, reduzir o risco de
um infarto do miocárdio, entre outros benefícios (Schofield, 2006).
O tratamento do tabagismo nessa faixa etária lança mão da mesma
abordagem utilizada para os mais jovens e com taxas de sucesso se-
melhantes (rICHErt, 2008). Entretanto, é importante estar atento
a maior possibilidade de comorbidades e maior risco de interações
medicamentosas (HALty, 2004). No tratamento de tabagistas
nessa faixa etária, é importante lembrar que as próteses dentárias
podem dificultar o uso de gomas de nicotina e, consequentemente,
a aderência à proposta terapêutica. Além disso, alterações da função
renal, comuns em idosos, demandam ajuste da dose de medicamen-

209
Manual de abordagem de dependências químicas

tos como bupropiona, vareniclina e da terapia de reposição de ni-


cotina (rICHErt, 2008).

Gestantes
Fumar durante a gravidez aumenta o risco de uma série
de problemas, incluindo o aborto espontâneo, diminuição do cres-
cimento fetal e prematuridade. Apesar disso, aproximadamente
30% das mulheres são fumantes quando engravidam e cerca de
23% continuam fumando durante a gravidez. O aconselhamento
para cessação do tabagismo durante a gravidez mostra aumento das
taxas de abstinência, mas o acompanhamento é importante, pois
uma recaída é comum após o nascimento do bebê. A farmacotera-
pia com reposição de nicotina deve ser considerada apenas quando
uma mulher grávida não conseguir parar com abordagens não far-
macológicas ou quando a probabilidade dos benefícios da cessação
do tabagismo superar os riscos do uso desse tratamento (MIrrA
et al., 2011). Nesse caso, as formulações de liberação intermitentes
de nicotina (goma de mascar ou pastilha) devem ser preferidas por
disponibilizarem ao feto uma dose total diária de nicotina menor
do que os dispositivos de liberação lenta (adesivo) (MACHADO &
LOPES, 2009).

Adolescentes
A adolescência é a época mais comum de início do taba-
gismo e cerca de 11% dos adolescentes brasileiros são fumantes
(INCA, 2011). O aconselhamento é a abordagem que parece ser a
mais efetiva nessa população, mas as taxas de cessação ainda são
muito baixas (MIrrA et al., 2011). É difícil conseguir a adesão de
indivíduos dessa faixa etária em programas formais de cessação do
tabagismo.

210
Terapias farmacológicas para os transtornos do uso de tabaco

Pacientes dependentes de álcool


O tabagismo é comum em pessoas com outras dependên-
cias, como a dependência ao álcool. O tratamento farmacológico,
nesse caso, lança mão dos mesmos medicamentos utilizados para
o tratamento do tabagismo em outros fumantes (MIrrA et al.,
2011), embora sejam menos eficazes quando comparados com
taxas de sucesso de fumantes sem problemas com álcool. Deve-se
considerar a abordagem concomitante do alcoolismo, uma vez que
parar de beber pode aumentar as chances de sucesso no tratamento
do tabagismo.

Portadores de doenças relacionadas ao tabagismo


A cessação do tabagismo é um dos componentes mais im-
portantes do tratamento da doença pulmonar obstrutiva crônica
(DPOC) e a única intervenção que diminui a sua progressão. O tra-
tamento farmacológico do tabagismo nos pacientes com DPOC
lança mão dos mesmos medicamentos utilizados para o tratamento
do tabagismo em outros fumantes (MIrrA et al., 2011).

Conclusões

É importante aumentar a consciência da importância da


cessação do tabagismo, principal causa de morte passível de pre-
venção. É necessário que o profissional de saúde conheça os tra-
tamentos disponíveis e ofereça ao indivíduo fumante a opção por
um tratamento medicamentoso adequado. Existem vários medi-
camentos para tratar o tabagismo, como a terapia de reposição de
nicotina, a vareniclina, a bupropiona e a nortriptilina, que são
prescritos, usualmente, por doze semanas. Independentemente da
abordagem farmacológica escolhida, é fundamental orientar o pa-
ciente a escolher uma data para parar, pois essa atitude aumenta
a chance de sucesso.

211
Manual de abordagem de dependências químicas

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213
1o

4
PARTE 4
Atenção integral e
abordagem psicossocial dos
transtornos de substância
Capítulo 14

Abordagem integral do paciente com


dependência química
Frederico Garcia

Uma abordagem integral do paciente com dependência


química é de extrema importância para seu reestabelecimento, rea-
bilitação e retorno a uma vida que lhe seja satisfatória.
Partindo de uma visão bio-psico-social da saúde, pode-se
entender por integralidade, o conceito do Sistema único de Saúde
(SUS), que postula que as ações integrais são aquelas nas quais as
ações são desenvolvidas para ofertarem a promoção da saúde, a
prevenção de riscos, ante seus agravos, recuperação e assistência
(BrASIL, 1990).
Ao menos três fatores podem influenciar a visão da inte-
gralidade na abordagem de um agravo de saúde. O primeiro são as
particularidades do agravo de saúde. O segundo trata da disponibi-
lidade dos recursos necessários para a promoção da saúde, preven-
ção de riscos, recuperação e assistência. Por último, a organização
dos serviços disponíveis.

Particularidades da dependência química

A dependência química é um transtorno psiquiátrico com-


plexo de causa multifatorial que se inicia após algum tempo de ex-
Manual de abordagem de dependências químicas

posição à droga (ver capítulo 1). As características que separam um


usuário de drogas de um paciente com dependência química são
claras e bem definidas (American Psychiatric Association, 2013). A
dependência química é caracterizada, sobretudo, pela perda de con-
trole do uso da droga; pelo favorecimento das atividades ligadas a
droga em relação a outras atividades sociais e de lazer; pelo surgi-
mento da fissura na ausência do uso da droga; e pela contração de
riscos com o uso da droga. todos esses fenômenos comportamen-
tais estão relacionados às modificações no funcionamento cerebral
causados pela droga. Essas modificações cerebrais são persistentes,
mesmo com a interrupção do uso da droga, o que nos permite dizer
que a dependência química é um transtorno crônico e que implica
em que o tratamento assuma como ponto de partida uma fragili-
dade neurofuncional do paciente com dependência química frente
à droga (National Institute on Drug Abuse, 2009).
Essas modificações cerebrais, hoje bem conhecidas e
comprovadas cientificamente, implicam em perdas cognitivas es-
pecíficas, as quais chegam a ser percebidas pelas pessoas que con-
vivem com o paciente (KOOB & VOLKOW, 2010). Os pacientes
com dependência química tendem a tolerar menos as emoções ne-
gativas e a frustração, são mais impacientes e impulsivos, e mantém
um funcionamento cognitivo marcado pela ambivalência, não so-
mente diante da droga, mas também diante de outras situações da
vida cotidiana (WOICIK et al., 2009). Essas modificações compor-
tamentais terminam por impactar as pessoas que estão próximas
ao paciente, como a família, amigos e os contatos profissionais.
Esse impacto das dependências químicas nos contatos so-
ciais pode ser observado, de um lado a ruptura total ou parcial das
relações afetivas do paciente, levando-o a certo isolamento social
ou a um reagrupamento com as pessoas que também usam drogas.
De outro lado, por uma adaptação da família à nova forma de agir
do paciente e que tem como consequência à aceitação do uso da
droga e do comportamento inadaptado do paciente. Essa última

218
Abordagem integral do paciente com dependência química

forma, também chamada de co-dependência, delimita o impacto


da dependência química nas relações sociais do indivíduo e a pos-
sibilidade de sofrimento da família ou das pessoas que convivem
com o paciente com dependência química (ver capítulo 18).
Consequentemente, esses impactos da dependência quí-
mica também podem causar sofrimento e agravos de saúde nos fa-
miliares (GrICHtING & BArBEr, 1989). Pode-se concluir,
então, que a dependência química é um transtorno crônico que
muda a forma do paciente de interagir com os estímulos ambientais
e com as pessoas que convivem com ele e que pode causar sofri-
mento para si e para aqueles que convivem com o paciente.

Disponibilidade de recursos para dependência química

A disponibilização de recursos públicos ou privados para


a prevenção e tratamento da dependência química depende de al-
gumas premissas (UNODC, 2003).
A primeira é que se reconheça a dependência química
como uma doença ou agravo de saúde.
Apesar de ela parecer uma premissa óbvia, por muitos
anos, o uso de drogas e a dependência química foram vistos por
um ponto de vista moral. Segundo esse modelo ou assim conside-
rando o uso de drogas, se inicia e se mantém como uma prática he-
donista e do exercício do livre arbítrio. O usuário/dependente
usaria a droga porque “quer”, para “aproveitar a vida” e que a in-
terrupção do uso da droga é apenas uma questão de “força de von-
tade”, “de caráter”, ou “de personalidade”. A consequência da
valorização moral do uso de drogas é que a disponibilização de re-
cursos para o tratamento da dependência química é considerado
desnecessário, pois a dependência não caracterizaria uma doença
ou agravo de saúde, mas apenas uma mera questão moral com re-
lação ao uso da droga. As evidências clínicas e de pesquisa, no en-

219
Manual de abordagem de dependências químicas

tanto, denotam claramente a existência de mudanças cognitivas e


comportamentais que caracterizam a dependência química como
um transtorno mental e, portanto como uma doença ou agravo de
saúde, problema que afeta a saúde dos usuários que dela padece.
A segunda premissa é que uma abordagem de prevenção,
tratamento e reabilitação da dependência química seja possível.
Aqueles, que atribuem a origem da dependência química a um
transtorno de personalidade psicopática ou antissocial, esbarram
na indisponibilidade de recursos terapêuticos para esses transtornos
(LEWIS, 1984). No entanto, sabe-se que, como na população geral,
alguns pacientes com dependência química também possuem esse
tipo de personalidade, no entanto a maioria dos pacientes com de-
pendência química não apresenta esse tipo de estrutura de perso-
nalidade. Além disso, diversos estudos, em diversas populações, já
demostraram que é possível intervir positivamente tanto na pre-
venção quanto no tratamento e na reabilitação do paciente com de-
pendência química. Esses cuidados permitem que os percentuais
significativos desses pacientes melhorem e possam retornar a uma
vida melhor, adaptada e sem drogas. Além desse bom resultado in-
dividual e familiar conseguido pelo tratamento do paciente com de-
pendência química, sabe-se que uma rede eficaz de tratamento
reduz a criminalidade relacionada à droga, ao desemprego, aos dis-
funcionamentos familiares, e um uso desproporcional dos serviços
de urgência médica, resultando em uma melhoria dos sistemas de
saúde e sociais de apoio aos pacientes (UNODC, 2003).
A terceira premissa é que a sociedade priorize o financia-
mento da abordagem de um determinado agravo frente a outros
agravos no momento da alocação de recursos. Se considerarmos
que os recursos para prevenção das dependências químicas e do
tratamento são ineficazes ou que o investimento gasto na aborda-
gem de um determinado problema de saúde tenha um baixo re-
torno para o indivíduo ou para a sociedade, a tendência é para que
tais recursos sejam alocados para o tratamento de outros problemas

220
Abordagem integral do paciente com dependência química

de saúde considerados “prioritários”. É neste momento que as evi-


dências clínicas e científicas podem contribuir para a definição in-
formada da alocação de recursos para o cuidado desses pacientes.
Ora, se a dependência química é uma doença que apesar de ser crô-
nica, ela é tratável e os tratamentos são eficazes, vale a pena alocar
recursos destinados à reabilitação e ressocialização do paciente quí-
mico. Contudo, os tratamentos para dependência química, assim
como os tratamentos para outras doenças crônicas, se mostram
mais eficazes, quando observados em longo prazo e, quando outros
fatores biológicos, psicológicos ou sociais são abordados concomi-
tantemente.
resumindo, para que mais recursos possam ser disponi-
bilizados para a prevenção e tratamento da dependência química,
precisamos reconhecê-la como um grave problema de saúde, pas-
sível de prevenção e tratamento e que as medidas de prevenção e
tratamento eficazes a curto, médio e longo prazo sejam disponibi-
lizadas pelos profissionais responsáveis pelo atendimento desses
pacientes.

A organização dos serviços disponibilizados

Assegurar abordagens eficazes e integralizadas de preven-


ção e tratamento da dependência química depende da boa organi-
zação dos serviços destinados a seu tratamento. retomando o
modelo biopsicosocial de saúde e as particularidades da dependên-
cia química, podemos perceber que, quando acontece uma a inte-
ração entre os serviços abordando aspectos biológicos, psicológicos
e sociais simultaneamente, é possível garantir uma abordagem in-
tegral do paciente com dependência química.
(A dependência química se caracteriza como um problema
de saúde com alterações biológicas, também como uma alteração
do funcionamento cerebral, doenças hepáticas, pneumopatias, des-

221
Manual de abordagem de dependências químicas

nutrição); psicológicas, como alteração das funções cognitivas, mo-


dificação da percepção das emoções, modificações da maneira de
perceber o mundo e de pensar); e sociais, como mudanças das re-
lações familiares, desemprego, problemas legais, exclusão social).
Dentro desta ótica, o tratamento integral de um dependente quí-
mico deveria incluir uma abordagem integrada dos três aspectos,
objetivando a melhor recuperação possível dentro do estado da arte.
Um dos problemas que podem surgir nessa abordagem in-
tegral das dependências químicas é a presença de visões distintas sobre
o problema de saúde resultante do uso de drogas entre os profissio-
nais, de cada um dos três setores, que deveriam se agregar para atuar
na recuperação da dependência química. É necessário ressaltar que se
cada um dos três setores envolvidos considerar o seu aspecto mais
preponderante ou exclusivo na gênese ou na abordagem do paciente
com dependência química, isso torna impossível a integração dos ser-
viços por dificultar adequadamente as abordagens biológicas, psico-
lógicas e sociais. Além disso, cada um dos três setores precisa da visão
e do modus operandi dos outros, para oferecer um cuidado integral e de
qualidade, que aperfeiçoe a eficácia e as chances de recuperação dos
dependentes químicos respeitando a sua subjetividade e individuali-
dade. Na prática clínica, podemos observar que esse trabalho em rede,
apesar de exigir esforços iniciais no sentido da mudança da forma ha-
bitual de trabalho e da ruptura das resistências, para abrir espaço para
os demais setores, se torna, na prática, muito mais enriquecedor para
todos os agentes envolvidos no cuidado do paciente.

Das evidências científicas do


tratamento do paciente com dependência química

As evidências científicas, no estado atual do conheci-


mento, nos leva a compreender a dependência química como uma
doença crônica e marcada por recaídas (National Institute on Drug

222
Abordagem integral do paciente com dependência química

Abuse, 2009). É verdade que em nossa clínica, observamos que


nem todos os casos de dependência química são crônicos e que al-
guns pacientes com o diagnóstico de dependência química recupe-
ram-se completamente após o tratamento. Contudo, a maioria
daqueles que desenvolvem uma dependência química sofrem várias
recaídas mesmo seguindo corretamente o tratamento e mantém
uma vulnerabilidade para recaídas por vários anos e em muitos
casos pela vida inteira. Como em outras doenças crônicas é impos-
sível de se predizer quando uma estratégia de tratamento para de-
pendência química irá alcançar a remissão completa.
As pesquisas também deixam claras algumas evidências
importantes (National Institute on Drug Abuse, 2009; UNODC,
2003, 2013):

1. Que a educação ou o encarceramento não corrigem a dependência


química. Não se trata simplesmente de uma questão de conhecimento
ou aprendizagem.
2. Que as consequências do abuso de drogas (ressacas, perda de tra-
balho, problemas com a justiça) aparentam ser estímulos importantes
para a entrada em um tratamento para dependência química.
3. Que o tratamento de dependência química não é apenas uma ques-
tão de se tornar estável e tirar as drogas do organismo. A taxa de re-
caída após os tratamentos de “desintoxicação” é quase as mesmas de
recaídas após o encarceramento.

A partir desses dados pode-se concluir que a dependência


química é mais bem tratada pela associação de tratamentos ambu-
latoriais, medicações, monitoramento e reabilitação, com o objetivo
de manter o paciente no programa de tratamento, para maximizar
e manter os benefícios do tratamento. O outro ponto que fica claro
é que o tratamento do paciente com dependência química, não se
encerra na interrupção do uso da droga. Além de ser mantido para
evitar a recaída, deve-se assegurar o tratamento das comorbidades
clínicas e psiquiátricas, a reabilitação psicossocial, a reinserção sócio-
profissional.
223
Manual de abordagem de dependências químicas

O processo de mudança como ponto de partida para a


abordagem integral do paciente com dependência química

Visando integrar os aspectos biopsicossociais da depen-


dência química à individualidade e a subjetividade de cada paciente,
que padece de dependência química, pode-se propor um modelo
integrador que reagrupe as premissas e os princípios supracitados.
Este modelo faz uso da ambivalência, um dos principais sintomas
da dependência química, e o processo de mudança como pontos
de partida.
A ambivalência é um processo natural, inerente ao ser hu-
mano e que surge nos momentos em que somos forçados a fazer
escolhas. A pessoa vivendo a ambivalência apresenta, simultanea-
mente, sentimentos ou cognições conflitantes, perante uma situa-
ção, pessoa ou objeto (ex. amor e ódio; admiração e repúdio). O
paciente com dependência química vive constantemente na ambi-
valência quanto à escolha da droga. Isto é, o dependente químico
tem consciência de que a droga tem um efeito negativo (degradação
biopsicosocial) em suas vidas, enquanto eles buscam a droga pelos
efeitos positivos (prazer, alívio) obtidos pelo seu uso. Apesar da
consciência desses dois efeitos, por causa das modificações cogni-
tivas o dependente químico acaba por ceder à balança decisional
em prol da droga.
Os professores William Miller e Stephen rollnick da
Universidade do Novo México nos Estados Unidos propõem um
modelo de mudança, que leva em conta a ambivalência e que é
dividido em cinco etapas (Figura 1) (MILLEr & rOLLNICK,
2013). Utilizaremos esse modelo como base para a proposição
de um modelo de atenção integral ao paciente dependente quí-
mico porque ele envolve um recurso importante no processo de
tratamento da dependência química que é a motivação do pa-
ciente em se tratar. A falta de motivação, chamada por alguns de
“resistência” ao tratamento é considerada um dos momentos em

224
Abordagem integral do paciente com dependência química

que a ambivalência predomina favorecendo o uso da droga e não


a sua interrupção de seu uso.
Nesse modelo terapêutico, o processo de mudança é divi-
dido em seis fases: pré-contemplação, contemplação, decisão, ação,
manutenção e recaída.
A fase de pré-contemplação é a etapa em que
a pessoa não consegue reconhecer as consequências e
o impacto da doença em sua vida. Nesta fase o discurso
do paciente é favorável ao uso da droga, ele tenta mini-
mizar suas consequências negativas e pela falta de mo-
tivação em interromper seu uso. O paciente apresenta Anosognosia: Distúrbio neu-
ropsicológico que impede o
uma anosognosia em relação a sua condição de depen- doente de perceber e adminitr
que tem uma doença, mesmo
dente e tende a culpabilizar os outros pela sua condição. que ela seja notória.
Na fase de contemplação, o paciente consegue reconhecer
as consequências negativas advindas do uso da droga e consegue
perceber que esse uso tornou-se um problema em sua vida. Como
a ambivalência ainda está presente o paciente tende a postergar uma
tomada de decisão ou de se implicar no processo de mudança.
A fase de tomada de decisão é a fase em que o indivíduo
vence a ambivalência e opta pela mudança de comportamento.
Nessa fase ele fixa datas, se instrumentaliza e começa a se preparar
para a interrupção do comportamento ou do uso da droga.
Na fase de ação o paciente se mobiliza e põe em ação as
técnicas que aprendeu na etapa anterior. Ele passa a evitar as situa-
ções que o colocam em risco de recair e interrompe o comporta-
mento ou o uso da droga. Surgem os auto-reforços, “eu sei que vou
dar conta”, “agora vai doutor, vou conseguir parar”, “eu sei que eu
vou ganhar da droga”.
A fase de manutenção é aquela que segue a interrupção
do comportamento ou uso da droga, na qual o paciente precisa rea-
bilitar-se e colocar em prática a construção de uma ressocialização.
Essa fase é marcada pelo medo da recaída e, eventualmente, algu-
mas recaídas.

225
Manual de abordagem de dependências químicas

A fase de recaída ocorre quando o paciente volta a se sen-


tir em ambivalência e não resiste ao comportamento ou uso da
droga. Como foi dito anteriormente, como a dependência química
é, em muitos casos, um transtorno crônico, ela será sempre marcada
pela presença de recaídas. É importante observar que tendo recaído,
o paciente não entra necessariamente na etapa de pré-contempla-
ção, podendo retornar a qualquer uma das fases do círculo.
Cabe se lembrar de que o processo não é linear, nem uni-
direcional. O paciente pode passar de uma fase a outra e retornar a
fase anterior ou uma ainda mais anterior. Ele pode também, entrar
no processo de mudança sem ter que passar por todas as fases.

Figura 1
O círculo de Diclementi e Prochasca, relativo ao processo de mudança
e ruptura com a ambivalência. É importante notar que as cinco fases
são uma divisão didática do problema e que o círculo não é unidirecional,
ou seja, o paciente pode evoluir e involuir na fase da mudança a
qualquer momento e que a recaída é considerada uma das fases de
mudança (Prochaska & Velicer, 1997).

226
Abordagem integral do paciente com dependência química

É muitas vezes útil simplificar de seis para quatro fases, e


assim podemos dividir na clínica o tratamento do paciente, segundo
as fases discutidas quatro fases: pré-contemplativa, contemplativa,
mudança e manutenção. Esta última será chamada a partir daqui de
reabilitação ao invés de manutenção, pois a reabilitação e ressocia-
lização são fundamentais para a manutenção da abstinência e para
a retomada de uma vida satisfatória do paciente (Figura 2).

Figura 2
Proposição de modelo técnicas e serviços, para um modelo
de atenção integral do paciente com dependência química a partir
dos princípios do processo de mudança. CAPS: Centro de Atenção
Psicossocial; HG: Hospital Geral; HEP: Hospital especializado em
psiquiatria; UBS: Unidade básica de saúde

P Pré-contemplação
O Redução de danos Consultório/equipe de rua
N
T
O Contemplação
S
Entrevista Motivacional/Projeto terapêutico Atenção básica/UBS
D
E
Mudança
E Tratamento especializado CAPS/Leitos em HG/HEP
N
T
R Reabilitação/Ressocialização
A
D Avaliação e reabilitação cognitiva/Reinserção Centro integrado de reabilitação psicossocial
A sócio/profissional/familiar

Dentro do modelo proposto o paciente pode entrar em


qualquer um dos serviços propostos. Uma vez avaliada a fase em
que ele se encontra, dentro do processo de mudança, ele será reen-
caminhado, quando necessário, ao serviço que seja mais bem ade-
quado para ele na fase de mudança, na qual ele se encontra. Assim

227
Manual de abordagem de dependências químicas

se maximizaria a eficácia de cada tipo de serviço e se adequaria


me-lhor o serviço à necessidade do paciente.
Um princípio básico para que possamos aceitar cuidados
e perceber que não estamos bem e, que o outro tem um “suposto
saber” que pode responder ou nos ajudar a recuperar nossa saúde.
Os pacientes que se encontram em pré-contemplação, devido a
sua anosognosia, não percebem a necessidade de tratamento e
tendem a não aceitar os cuidados prescritos pelos profissionais
implicados na atenção. Para alguns pacientes a oferta ou a
insistência para a realização dos cuidados podem ser vividas como
uma forma de agressão ou de violência e pode levá-los a recusa do
tratamento proposto e ao afastamento da oferta de tratamento.
Para aqueles pacientes que não estejam em risco de vida ou que
não apresentam uma urgência premente como uma convulsão,
desnutrição grave, ou distúrbios metabólicos, os serviços de
atenção aos dependentes químicos podem oferecer cuidados
indiretos que melhorem a sua qualidade de vida e previnam riscos
maiores para ele. A técnica que melhor aborda esse tipo de
cuidado é a chamada redução de danos (veja capítulo 24). A busca
da redução de danos facilita a aproxi-mação dos pacientes aos
serviços de tratamento de dependentes químicos e permite a
criação de uma aliança terapêutica, tornando possível o
encaminhamento a outros serviços. Os serviços de con-sultório e
abordagem de rua têm feito esse trabalho com bastante êxito.
Quando um paciente está na fase de contemplação, ele é
capaz de reconhecer em si um problema associado ao seu uso de
drogas. Mas nessa fase a ambivalência está ainda presente em um
nível que favorece o uso de drogas. É necessário ajudar o paciente
a desenvolver suas próprias motivações internas e ajudá-lo a perce-
ber as discrepâncias entre seus projetos e motivações, para que ele
inicie o processo de mudança. A consulta motivacional (veja capí-
tulo 16) é uma técnica muito eficaz para essa conscientização e pode

228
Abordagem integral do paciente com dependência química

auxiliar o paciente a encontrar suas motivações. Essa técnica pode


ser aprendida por profissionais de diferentes formações e as con-
sultas em geral são curtas (5 a 15 minutos) e frequentes (uma a duas
vezes por semana) até o paciente alcançar a fase de mudança. O
mais comum é que este paciente que ainda está na fase de contem-
plação procura os serviços de atenção primária ou secundária bus-
cando avaliação e tratamento de complicações do uso da droga (ex.
lesões cutâneas, sangramento nasal, hepatopatias, pneumopatias).
Nesse momento, é aconselhável que os serviços façam o rastrea-
mento do uso de drogas em todos os pacientes, fazendo uso da
anamnese e/ou escalas padronizadas. Uma vez detectado o uso de
drogas, a anamnese sobre o uso da droga deverá ser aprofundada
visando verificar a presença de uma dependência e, caso seja de-
tectada, uma abordagem motivacional seria indicada. No nosso
ponto de vista cabe, sobretudo, à atenção básica realizar essa abor-
dagem motivacional. Como se trata de consultas curtas para um pa-
ciente às vezes desmotivado a abandonar a droga, a maior
proximidade da Unidade Básica de Saúde (UBS) e a busca ativa com
os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) facilitariam a adesão ao
tratamento. Por outro lado, facilitando o trabalho da equipe de
saúde da família, certamente a mais habilitada a abordá-lo, uma vez
que o paciente entra nesse processo de mudança e de construção
de um projeto terapêutico integrado, já prevendo o acompanha-
mento desse paciente no momento da alta do serviço de reabilita-
ção. Por fim, porque a UBS será a unidade que auxiliará na
reintegração familiar e no acompanhamento do paciente e de seus
familiares caso aconteça que o paciente interrompa a atenção es-
pecializada.
Uma vez que o paciente rompe a barreira da ambivalência
e entra no processo de mudança ele precisa ser orientado, via pro-
jeto terapêutico, a buscar ajuda especializada, para poder escolher
os métodos de tratamento que lhe serão melhores, ou que responda
mais às suas necessidades (veja os capítulos seguintes). Neste mo-

229
Manual de abordagem de dependências químicas

mento entram os serviços especializados que podem ajudar o pa-


ciente. Os tratamentos variam de paciente para paciente, mas devem
envolver, obrigatoriamente uma abordagem biopsicosocial visando
à reabilitação e a reintegração do paciente no seu meio de origem.
Para alguns casos os serviços ambulatoriais são eficazes e podem
bastar. Para outros casos será necessário um período de internação
hospitalar para realização de um primeiro tratamento de abstinência
ou para o tratamento das complicações clínicas que o paciente apre-
sente. Para isso é fundamental que os Centros de Atenção Psicos-
social (CAPS) e os leitos hospitalares em hospital geral (HG), ou
em leitos hospitalares especializados em psiquiatria (HEP) estejam
disponíveis e capacitados a gerir os momentos de crise da maneira
mais humana e confortável para o paciente. Os pacientes que saiam
da crise devem ser encaminhados aos CAPS ou ambulatórios es-
pecializados em dependência química e, uma vez que o indivíduo
consiga se engajar em deixar a droga, ele pode ser encaminhado
aos serviços de reabilitação psicossocial e reinserção profissional e
familiar.
A última etapa do processo, excetuando as recaídas que
poderão ocorrer, é a manutenção. A manutenção do indivíduo de-
pendente químico longe do uso de droga passa pela criação de
novos valores motivacionais e o acompanhamento positivo das con-
quistas e progressos do paciente. Este é um processo ativo que de-
pende do paciente ter suas faculdades cognitivas reestabelecidas no
seu melhor nível possível. Nessa etapa do tratamento é necessário
um trabalho de avaliação e quantificação dos danos causados pelo
uso da droga e, um trabalho de reabilitação cognitiva e social para
que o paciente possa em um segundo momento, voltar a reintegrar
sua família e sua profissão, se assim o desejar. Este espaço, ainda a
ser criado dentro da rede de saúde pública, necessitaria de serviços
dedicados de neuropsicologia, terapia ocupacional e assistência so-
cial. Dentro desta proposição, denominou-se este espaço de Centro
de reabilitação Psicossocial (CrPS). Este tipo de centro já existe

230
Manual de abordagem de dependências químicas

em alguns países e integra, além do espaço de atendimento, abrigos,


apartamentos medicalizados, programas de trabalho protegido e
um trabalho específico com as famílias ou as pessoas que acolherão
o paciente na sua saída. Ao final do trabalho de reabilitação o CrPS
deveria realizar a ligação entre os serviços de tratamento e as UBS,
de maneira que uma vez que recebesse alta do serviço de reabilita-
ção, o paciente passaria a ser acompanhado pela equipe de saúde
da família, que atualizaria o projeto terapêutico e realizaria o acom-
panhamento de proximidade desse indivíduo.

Limitantes atuais para a implementação de um


programa de assistência integral ao dependente de drogas

No presente momento, três limitações maiores dificultam


a implementação de um programa integral de assistência ao depen-
dente de drogas. A primeira é a falta de recursos humanos capaci-
tados. A formação de profissionais de saúde, assistência social e
jurídica é fundamental para que todos os profissionais reconheçam
a dependência química como um transtorno mental, passível de tra-
tamento. tal formação possibilitaria aos agentes envolvidos no tra-
tamento, se instrumentalizar de maneira eficaz para prestar a melhor
assistência. A segunda limitante é a falta de leitos habilitados para
acolher, proteger e tratar os pacientes dependentes químicos. Com
o fechamento dos leitos, em hospitais especializados psiquiátricos,
sem sua substituição por leitos psiquiátricos em hospitais gerais,
criou-se um déficit de leitos especializados e equipes técnicas capa-
citadas para esse tipo de atenção. Além das equipes especializadas,
fluxos de referência e contra-referência, ainda não nos parecem in-
tegrados e por isso, muitas vezes, falham no encaminhamento e ga-
rantia da continuidade do tratamento do paciente, quando ele
retorna a seu domicílio. Como a rede assistencial ainda não está su-
ficientemente integrada, ao receber alta, o paciente é reenviado ao

231
Manual de abordagem de dependências químicas

domicílio sem que uma equipe de saúde da família, habilitada para


o tratamento do paciente com dependência química seja acionada.
Esse fato favorece a recaída e o retorno a pré-contemplação. Por
último, a falta do CrPS cria uma lacuna entre os serviços especia-
lizados, e o retorno a uma vida saudável para o paciente com de-
pendência química. A reabilitação psicossocial é uma etapa crucial
para que o indivíduo recobre todo o seu potencial ao trabalho e à
vida ativa em sua comunidade de origem.

Conclusão

Assegurar a integralidade da assistência do paciente com


dependência química é uma necessidade premente que atende às
diretrizes do SUS. A construção de um modelo de assistência inte-
gral a estes pacientes denota um grande respeito ao sofrimento
deles e de suas famílias e tem um impacto significativo sobre esse
problema de saúde, gerando uma sensação de bem estar e de estar
sendo assistido. Nesse capítulo propusemos um modelo de atenção
integral, que tenta utilizar os serviços já disponíveis na rede pública
e sugere a necessidade de se criar um novo tipo de serviço com ca-
racterísticas próprias para ser um CrPS. Esse modelo seria voltado
a um ponto de partida para a discussão, e para a criação, regionali-
zada e adaptada das realidades locais de atenção integral ao paciente
com dependência química.

232
Manual de abordagem de dependências químicas

Referências

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mental health disorders: DSM-5 (5th ed.). Washington, DC:: American
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Ed. United Nations, New York, 2003.

233
Capítulo 15

A hospitalização do paciente com


dependência química:
critérios clínicos e modalidades de internação,
para a alta de usuários de drogas:
internação voluntária, involuntária e compulsória
Frederico Garcia

Introdução

A hospitalização de pacientes com dependências


químicas é uma das formas de tratamento que pode ser eficaz
quando bem indicada e quando incluída dentro de um projeto
terapêutico bem estabelecido com o paciente.
Se por um lado alguns alegam que a hospitaliazação pode
ser necessária, e é o primeiro passo para o tratamento desses
pacientes, que estão em sofrimento, de outro lado alguns alegam
que o tratamento dito “forçado” não leva a nenhum resultado. Os
clínicos e os familiares de dependentes químicos se confrontam
com essas duas posições e muitas vezes acabam ficando em
dúvida de como agir ou sentindo culpa por ter tentado ajudar o
seu paciente ou parente.
A hospitalização de pacientes com dependências
químicas é uma modalidade de tratamento que deve ser
considerada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem
Manual de abordagem de dependências químicas

insuficientes para salvaguardar a segurança do paciente, de


terceiros ou quando a avaliação do risco para si ou para terceiros
for prejudicada. Quando bem indicada e realizada em boas
condições com uma equipe multidisciplinar, a hospitalização pode
ser um passo importante na recuperação do paciente com
dependência química. Contudo, a hospitalização não deve ser vista
como um tratamento isolado, mas sim integrada em um programa
integral de tratamento que comporte outras etapas como a
construção de um projeto terapêutico, a reabilitação cognitiva, a
reintegração sócio-familiar e a reabilitação profissional.
Neste capítulo, serão revistos os marcos legais, as moda-
lidades de hospitalização psiquiátrica, as indicações, as contraindi-
cações, e os critérios de alta de hospitalização de dependentes
químicos.

Marcos legais

A lei 10.216 de 2001, dispondo sobre a proteção e os direitos das pes-


soas portadoras de transtornos mentais

A dependência química, enquanto doença mental tem um


regime de hospitalização de pacientes que segue as mesmas normas
para as hospitalizações psiquiátricas regulamentadas pela lei
10.2016 de 2001 e que dispõe sobre a proteção e os di-reitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais (BrASIL, 2001).
Laudo: Documento médico- Segundo essa lei a hospitalização psiquiátrica
legal produzido em cumpri-
mento a encargo definido pela será realizada somente mediante um laudo feito por
autoridade competente. Difere
do atestado ou parecer que é o médico devidamente registrado no Conselho regional
documento resultante do pe-
dido da pessoa interessada.
de Medicina (CrM) do estado que localize o
estabelecimento de hospitalização. Esse laudo deve ser
circunstanciado, caracterizando os motivos da
hospitalização.
236
A hospitalização do paciente com dependência química: critérios clínicos e modalidades de internação...

A lei 10.216 prevê mecanismos de controle social Controle Social: instru-


mento democrático no qual
para a prevenção de possíveis abusos da hospitalização há a participação dos
cidadãos no exercício do
psiquiátrica. Segundo o artigo 8o dessa lei, toda interna- poder colocando a vontade
ção psiquiátrica deve ser comunicada ao Ministério Pú- social como fator de avali-
ação para a criação e metas
blico Estadual num prazo de setenta e duas horas pelo a serem alcançadas no âm-
bito de algumas políticas pub-
responsável técnico do estabelecimento em que ela ocor- licas.
reu. Cabe ao estabelecimento informar e garantir ao pa-
ciente o acesso a meios de comunicação para que o
Ministério Público possa ser contatado caso o paciente
julgue necessário.
A lei 10.216 foi posteriormente regulamentada pela por-
taria do Gabinete do Ministério da Saúde número 2.391, de dezem-
bro de 2002 que amplia os mecanismos de controle social. Nela é
descrito que os gestores estaduais do SUS devem constituir uma
comissão revisora das internações involuntárias compostas por um
membro do Ministério Público, uma equipe multiprofissional, re-
presentantes da sociedade civil tais quais membros de associações
de direitos humanos, usuários dos serviços de saúde mental e fa-
miliares. A comissão revisora efetua até o sétimo dia da internação
a revisão de cada internação psiquiátrica involuntária, emitindo
laudo de confirmação ou suspensão do regime de tratamento ado-
tado. Essa portaria além de reassegurar os princípios da lei 10.216,
define melhor as modalidades de hospitalização psiquiátrica e deixa
em aberto à regulamentação da modalidade “Internação Psiquiá-
trica Compulsória”.

Modalidades de hospitalização de dependentes químicos

A lei 10.216 define três modalidades de hospitalização psi-


quiátrica para tratamento de um transtorno mental mediante laudo
médico circunstanciado que justifique seus motivos: voluntária, in-
voluntária e compulsória (Tabela 1).

237
Manual de abordagem de dependências químicas

Tabela 1
Modalidades de internação psiquiátrica segundo a lei 10.2016, de 2001
e a portaria do gabinete do ministério da saúde 2.391, de 26 de
dezembro de 2002. CRM: conselho regional de medicina
Voluntária Involuntária Compulsória
Se dá com o consentimento Realizada sem o Determinada por medida
expresso do paciente consentimento expresso do judicial pelo juiz competente
paciente e a pedido de A alta se dá somente por
terceiro a condição que seja determinação judicial.
acompanhada de laudo de
médico registrado no CRM
justificando os motivos da
hospitalização.
A alta pode ser solicitada por
parente ou pessoa próxima
do paciente.

Hospitalização psiquiátrica
voluntária: é a hospitalização
A hospitalização psiquiátrica voluntária é aquela
que acontece quando o pa- que se dá com o consentimento expresso do paciente
ciente, civilmente capaz dá seu
consentimento autorizando a civilmente capaz. Nessa modalidade o paciente tem li-
hospitalização.
berdade para, a qualquer momento, solicitar a inter-
rupção da hospitalização e sua alta. A hospitalização
Hospitalização voluntária-
involuntária: a hospitalização
voluntária poderá tornar-se involuntária quando o paciente
voluntária pode se tornar invol- internado exprimir sua discordância com a manuten-
untária caso o paciente pelo
término da hospitalização ção da internação e houver critérios clínicos para a ma-
tendo critérios clínicos para
que a hospitalização seja man- nutenção da internação, devidamente justificados em
tida. laudo médico. Um exemplo disso é um paciente de-
primido, que exprime ideação suicida, que não tem su-
porte familiar ou assistencial no momento e que pede
alta da sua hospitalização voluntária. Nesse caso o
risco de passagem ao ato suicida é bastante elevado e
esse é um critério clínico para a manutenção da hos-
pitalização. Assim sendo, o médico pode optar por
converter a hospitalização voluntária em involuntária.

238
A hospitalização do paciente com dependência química: critérios clínicos e modalidades de internação...

A hospitalização psiquiátrica involuntária é aquela Hospitalização psiquiátrica


involuntária: é a hospitaliza-
que se dá sem o consentimento do usuário, e a pedido de ção que acontece sem o con-
sentimento do paciente,
terceiro, desde que consubstanciada por laudo médico porque seu transtorno mental
justificando os critérios clínicos que comprovem a hos- omente incapacita de julgar correta-
o contexto e os riscos.
pitalização involuntária. Dentre os critérios clínicos que São critérios para hospitaliza-
ção involuntária: 1. O paciente
justificam uma hospitalização involuntária estão: ter uma doença mental; 2. Os
recursos extra hospitalares
1. O paciente ter uma doença mental; 2. Os re- propostos forem insuficientes
cursos extra-hospitalares propostos forem insuficientes para salvaguardar a segurança
do paciente, de terceiros; e 3.
para salvaguardar a segurança do paciente e de terceiros; Risco para si ou para terceiros;
e/ou 4. a avaliação do risco
3. risco para si ou para terceiros; 4. A avaliação do risco para si ou para terceiros está
para si ou para terceiros está prejudicada. Segundo o pa- prejudicada
rágrafo 2o do artigo 8º da lei 10.216, ficou determinado
que a hospitalização involuntária poderá ser terminada
por solicitação escrita do familiar ou responsável legal,
ou quando estabelecido pelo médico especialista respon- Hospitalização psiquiátrica
compulsória: é a hospitaliza-
sável pelo tratamento. ção determinada por juiz com-
petente afim se preservar a
A hospitalização psiquiátrica compulsória é aquela vida ou a ordem pública.
determinada por medida judicial por juiz competente.
Um fluxograma dos procedimentos para hospitalização é
apresentado na Figura 1.

239
Manual de abordagem de dependências químicas

Figura 1
Fluxograma para avaliação da modalidade de hospitalização psiquiátrica.
Adaptado de Taborda, Baron e Neto
NÃO
Paciente é maior Obter autorização
de 18 anos ? do responsável legal

SIM

O paciente é esclarecido sobre a necessidade de hospitalização

Está em condições Está em condições


de formar opinião, SIM NÃO de formar opinião,
manifestar vontade, CONCORDA manifestar vontade,
compreender compreender
a natureza de a natureza de
sua decisão sua decisão

SIM NÃO SIM


NÃO

Internação Não
voluntária internação

Termo de Internação
consentimento involuntária

Comunicação ao
Ministério Público

Aspectos legais da hospitalização psiquiátrica


de crianças e adolescentes

O tratamento e a atenção à saúde de crianças e adolescen-


tes com uma dependência química constitui-se em direito à saúde
de natureza fundamental dessa população, que se encontra em con-
dição peculiar de desenvolvimento, e que a sua proteção envolve
diuturnamente a atuação dos integrantes do Sistema de Garantias
de Direitos. Tal questão foi detalhadamente avaliada no parecer da
consulta nº 6769 de 2010 do Conselho Regional de Medicina de
São Paulo (CREMESP, 2010).

240
A hospitalização do paciente com dependência química: critérios clínicos e modalidades de internação...

A hospitalização psiquiátrica de crianças e adolescentes é


juridicamente possível, desde que algumas condições especiais
sejam respeitadas. A primeira é o código civil brasileiro, que deter-
mina a capacidade jurídica dos indivíduos, a segunda no Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei 8.069/90), que estabelece
as particularidades e especificidades que devem ser respeitadas no
atendimento dessa população, para então aplicarmos as leis que
regem a internação psiquiátrica no Brasil, que determina os aspectos
médico e jurídico das diversas modalidades de internação, num
exercício de integração sistêmica dessas três esferas. Capacidade jurídica: é a pos-
sibilidade de uma pessoa física
Primeiro, necessita-se considerar a questão da ou jurídica de exercer pessoal-
capacidade e da incapacidade jurídica em razão da idade, mente os atos da vida civil,
isto é adquirir direitos e con-
conforme estabelecido no código civil, lembrando que trair deveres em nome próprio.
O estado brasileiro divide a
“a capacidade é a regra e a incapacidade é a exceção”. O três estados da capacidade ju-
rídica: Plena, Incapacidade rel-
artigo 3º do código civil estabelece que os menores de ativa, Incapacidade absoluta.
16 anos são “absolutamente incapazes”, ou seja, são su-
jeitos de direitos, porém, devido a idade, não atingiram o
discernimento para distinguir o que podem ou não fazer,
o que lhes é conveniente ou prejudicial. Portanto, podem
expressar sua vontade, mas não têm o poder decisório
que cabe ao seu responsável legal. O artigo 4º do código
civil estabelece que os indivíduos menores de dezoito e
maiores de dezesseis anos são “relativamente incapazes”,
ou seja, o exercício de seus direitos se realiza com a sua
presença, exigindo, apenas, que sejam assistidos por seus
responsáveis. Portanto, suas decisões devem ser referen-
dadas pelo responsável legal.
É essencial observarmos o que é estabelecido pelo ECA,
que por intermédio dos artigos 3º, 4º e 7º, §1º, assegura à crianças
e adolescentes a prioridade absoluta de atendimento em saúde, in-
cluindo aí, o tratamento em saúde mental, garantindo-o entre os
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, além dos princí-
pios de proteção integral.

241
Manual de abordagem de dependências químicas

Considerando-se o que é estabelecido pelo ECA e o pró-


prio código civil, alguns aspectos sobre as modalidades de interna-
ção psiquiátrica de crianças e adolescentes e algumas especificidades
na sua realização devem ser consideradas.
A modalidade de internação voluntária de hospitalização
só se aplica aos maiores de 16 anos, porque os menores de 16 anos
são, segundo as definições de capacidade civil, totalmente incapazes
de compreender a natureza de suas decisões e, portanto, não têm
como decidir sobre a recomendação de tratamento em regime de
internação.
Adolescentes entre dezesseis e dezoito anos podem opinar
sobre o regime de tratamento indicado, desde que acompanhados
de seus responsáveis legais. Nos casos de divergência de opiniões
entre os adolescentes e seus responsáveis legais, a opinião desses
últimos não pode substituir a decisão própria do paciente menor
de idade, devendo-se proceder à internação compulsória.
A internação involuntária é a que se dá a pedido de
terceiro, sem a concordância do paciente, quer porque não queira
o tratamento ou porque não tenha condições de expressar tal con-
sentimento (menores de 16 anos), e sempre mediante prévio laudo
médico circunstanciado. Esta é a modalidade de internação que se
aplica a todos os menores de dezesseis anos.
A internação compulsória deve ser realizada quando hou-
ver conflito de interesses entre o do paciente menor de idade (ab-
soluta ou relativamente incapaz) e de seus pais ou representante
legal, ou quando esses estiverem ausentes. É indispensável à prévia
manifestação do Ministério Público, senão para a obtenção da au-
torização para proceder a internação e para a nomeação de curador
especial (artigo 9º, II, CPC e artigo 142, ECA).
No que diz respeito à permanência de crianças e ado-
lescentes no mesmo ambiente hospitalar que pacientes adultos,
o ECA parte da presunção da existência de maior risco à popu-
lação infanto-juvenil, diante de possíveis situações de conflitos

242
A hospitalização do paciente com dependência química: critérios clínicos e modalidades de internação...

e de consequências de episódios violentos nas enfermarias.


Assim, crianças e adolescentes devem ser mantidos em áreas es-
pecialmente destinadas a essa população, separados dos adultos.
Assim sendo, é vedada a permanência de crianças e adolescentes
em leitos hospitalares psiquiátricos situados na mesma área de
abrigamento (quarto, enfermaria ou ala) de adultos, e mesmo a
convivência em atividades recreativas ou terapêuticas em am-
bientes comuns, exceto quando forem indicadas pelo médico, e
devidamente registradas em laudos, como providências úteis ao
tratamento em si, sob o ponto de vista do estrito interesse da
saúde do paciente (criança e do adolescente), e desde que haja a
prévia autorização de quem de direito (do responsável, na inter-
nação voluntária ou involuntária, ou do Juiz de Direito, na in-
ternação compulsória).
O ECA ainda garante no seu artigo 12 que “Os estabele-
cimentos de atendimento à saúde deverão proporcionar condições para a per-
manência em tempo integral de um dos pais ou responsável, nos casos de
internação de criança ou adolescente.” Este procedimento visa que o
auxílio dessa presença possa representar um benefício para a re-
cuperação da saúde do paciente, além de fiscalizar o tratamento
propriamente dito. Nos casos que por questões estritamente te-
rapêuticas e devidamente justificadas em laudo médico circuns-
tanciado, a presença de acompanhante seja prejudicial ao
tratamento. Sendo esta uma exceção, deverá ser solicitada a au-
torização judicial para que tal direito venha a ser suspenso, pelo
prazo indicado no parecer médico.

Indicações de hospitalização de dependentes químicos

A hospitalização de dependentes químicos segue os mes-


mos princípios de hospitalização de pacientes psiquiátricos. A fun-
damentação legal desses princípios está regulamentada pela lei

243
Manual de abordagem de dependências químicas

10.216 de 2001 da seguinte maneira “a hospitalização psiquiátrica


só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostra-
rem insuficientes” e já tiverem sido propostos.
No caso de internações voluntárias basta que estejam
presentes os critérios clínicos que justifiquem a necessidade da
hospitalização.
Com relação a hospitalização involuntária, segundo alguns
autores (taborda e col. 2008), dois critérios devem ser respondidos
para se justificar uma hospitalização nessa modalidade. O primeiro
é a presença de doença mental. O segundo é a presença de no mí-
nimo uma das situações a seguir: 1. risco de autoagressão; 2. risco
de heteroagressão ou de agressão à ordem pública; 3. risco de ex-
posição social; 4. Incapacidade grave de autocuidados. Partindo-se
do pressuposto que a dependência química é uma doença mental e
na presença de um desses fatores, uma hospitalização com o intuito
de proteger o paciente e de prevenir consequências negativas para
ele ou para a sociedade é justificada.
As hospitalizações devem ser pensadas como último re-
curso e corretamente justificadas, para trazer um benefício no tra-
tamento do paciente. O benefício pode ser em um primeiro
momento apenas paliativo, no caso de necessidade de tratamento
de comorbidades clínicas tais como pneumopatias, desnutrição, in-
fecções que comprometam a vida do paciente, ou, num segundo
momento, curativas, como tratamento de abstinência de uma subs-
tância, tratamento de comorbidades psiquiátricas, e construção de
um projeto terapêutico para o paciente.

Critérios de alta hospitalar

A alta hospitalar deve ser estabelecida assim que os crité-


rios que motivaram a hospitalização se extinguirem e não existir
mais justificativa clínica para a manutenção da hospitalização.

244
A hospitalização do paciente com dependência química: critérios clínicos e modalidades de internação...

No caso das hospitalizações involuntárias a alta pode ser


solicitada pelo familiar ou responsável legal pelo paciente. Nesses
casos cabe ao médico assistente informar sobre os riscos, benefícios
da interrupção da hospitalização e sobre a existência de indicações
para a manutenção dela.
No caso de hospitalizações compulsórias, o médico
assis-tente deve comunicar ao juiz a existência de critérios para
alta, através de um laudo consubstanciado e aguardar a decisão de
alta que será feita pelo juiz.
A alta das internações involuntárias e das voluntárias que
se tornaram involuntárias deverá ser comunicada ao Ministério
Público.

Conclusão

A lei 10.216, de 2001 e a portaria GM nº 2.391, de 26 de


dezembro de 2002 regulamentam os mecanismos legais para a rea-
lização de hospitalizações psiquiátricas. As mesmas normas se apli-
cam à hospitalização de pacientes com dependências químicas, visto
que esse transtorno também é uma doença mental. Um maior de-
talhamento existe na hospitalização de menores de 18 anos e deve
ser observado com atenção.
A hospitalização psiquiátrica é uma forma de tratamento,
que quando bem indicada, pode produzir benefícios maiores que
os malefícios e deve fazer parte da assistência integral dos
pacientes com dependências químicas. A pequena disponibilidade
de leitos, o desinvestimento nos leitos já existentes e a não criação
de novos leitos em hospitais gerais e especializados, podem
comprometer a integralidade da assistência do dependente
químico.

245
Manual de abordagem de dependências químicas

Referências

BrASIL, Portaria GM nº2.391, de 26 de dezembro de 2002. regulamenta o con-


trole das internações psiquiátricas involuntárias e voluntárias.
BrASIL, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o código civil brasi-
leiro.
BrASIL, Lei nº 10.216 de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os di-
reitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo as-
sistencial em saúde mental.
BrASIL, Lei nº8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente e dá outras providências.
BrASIL, Lei nº5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo
Civil Brasileiro.
CrEMESP, Parecer sobre a Consulta nº6.769 de 2010 perquirindo sobre a in-
ternação de menores d idade em hospital psiquiátrico.
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Emergências Psiquiátricas. In: QUEVEDO, J.; SCHMItt, r.; KAPCzINSKI,
F. 2ed. Porto Alegre: Artmed, 208. p.440.

246
Capítulo 16

Aconselhamento motivacional em usuários de drogas:


conceito, princípios, estratégias e aplicações
Lívia Pires Guimarães
Neliana Buzi Figlie

Introdução
Consulta motivacional: es-
A consulta motivacional é um estilo de aconse- tilo de aconselhamento cen-
lhamento centrado na pessoa, com foco na resolução trado na pessoa com foco na
resolução de problema da am-
do problema da ambivalência para a mudança. Surgiu bivalência para a mudança.

em 1983 e tem se mostrado particularmente útil para


pessoas ambivalentes, que querem e ao mesmo tempo,
não querem se comprometer a mudar determinado
comportamento. A ambivalência aqui, é compreendida Ambivalência: estado emo-
cional no qual a pessoa tem
como “um estado mental, no qual a pessoa tem senti- sentimentos coexistentes e
conflitantes a respeito de al-
mentos coexistentes e conflitantes a respeito de alguma guma coisa.

coisa” (FIGLIE, 2010). Inicialmente, em sua primeira


edição, a consulta motivacional concentrava-se em pes-
soas com problemas relacionados ao álcool e outras
drogas. Contudo, logo após suas primeiras publicações,
em 1985, várias outras pesquisas foram realizadas e
percebeu-se, então, que essa poderia ampliar seu campo
de intervenção, sendo encontradas pesquisas sobre
asma (SCHMALING & AFArI, 2001), traumatismo cra-
niano (BELL, 2005), saúde cardiovascular (BECKIE,
Manual de abordagem de dependências químicas

2006), odontologia (WEINStEIN, 2006), diabetes (WESt,


2007), dietas (BrUG, 2007), transtornos da alimentação e obesi-
dade (DUNN, 2006), família e relacionamentos (COrDOVA,
2005), jogo patológico (WULFErt, 2006), promoção de saúde
(ELLIOt, 2007), dentre outros.

Desenvolvimento

O surgimento da consulta motivacional (CM) é relativa-


mente recente e, talvez por isso, tem trazido confusões ao longo
do tempo. Na tentativa de proporcionar melhor compreensão da
abordagem, Miller e rollnick publicaram as dez coisas que essa
abordagem não é (MILLEr & rOLLNICK, 2009). Dentre as coi-
sas apontadas, os autores pontuam que a Consulta Motivacional
não é fácil, não é baseada no modelo transteórico e não é uma te-
rapia cognitivo-comportamental (tCC). talvez por isso, essa abor-
dagem tem sofrido adaptações ao longo do tempo e tenha sido
utilizada em conjunto com esses dois outros modelos. Essa pers-
pectiva é corroborada em um estudo de metanálise que concluiu
que, até meados de 2003, nenhum dos estudos publicados até então,
havia utilizado a CM pura e sim, em combinação, principalmente
com as tCC´s (BUrKE et al, 2003). Desde então, essa integração
vem sendo evidenciada tanto nos estudos, quanto na prática clínica
(ArKOWItz et al, 2011). Vale ressaltar que outro estudo recente
de metanálise, evidencia que a consulta motivacional mostra-se
equivalente a outros tratamentos superiores mediante a ausência de
tratamento; apresenta uma associação positiva, com menor tempo
dispendido, bem como sua eficácia (LUNDAHL et al, 2010).
A primeira edição do livro de EM foi desenvolvida a partir
da experiência de William Miller com pacientes alcoolátras e, por-
tanto, o livro é direcionado para problemas relacionados ao álcool
e drogas (MILLEr et al, 2001; MILLEr & rOLLNICK, 1991). A

248
Aconselhamento motivacional em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

partir de estudos crescentes, os autores têm revisado constante-


mente o modelo que fundamenta a CM e, portanto, sua estrutura
teórica atual é bem diferente daquela apresentada na primeira edi-
ção, além de sua utilização ter sido estendida a diferentes contextos
clínicos, não se restringindo apenas a comportamentos aditivos.
Buscando que os profissionais consigam ver-
dadeiramente compreender em que consiste a CM, os
autores convidam para que possamos compreender o
“espírito” dessa proposta, que envolve um estilo cola-
borativo, evocativo e com respeito pela autonomia do
paciente. A esse conceito, estão incorporados quatro
princípios, que são: parceria (feito “com” o cliente e
não “para” o cliente), aceitação (confiança absoluta,
afirmação e reforço positivo, apoio à autonomia e em-
patia acurada), evocação (evocar as forças que motivam
a pessoa, ao invés de persuadir) e compaixão (promo-
ver ativamente o bem-estar do outro, priorizando suas
necessidades). A partir desses conceitos, percebe-se
que a consulta motivacional trabalha de forma signifi-
cativa com a aliança terapêutica estabelecida entre o pro- Aliança terapêutica: relação
de confiança que pode se esta-
fissional e o cliente; da mesma forma, o estilo do belecer entre o paciente e o
terapeuta ou profissional de
profissional influencia na relação. saúde.

O termo “compaixão” é complexo, por abranger diferen-


tes formas de compreensão. Para a proposta da consulta motiva-
cional, trata-se de um termo novo e provocativo, a fim de tentar
consolidar entre os profissionais uma revisão em sua própria pos-
tura interna no trato com o cliente. No Brasil, de acordo com o
moderno dicionário da língua portuguesa Michaelis, a compaixão
é definida como “dor que nos causa o mal alheio” e é sinônimo de
comiseração, dó, pena e piedade (MICHAELIS, 1998). No seu sen-
tido etimológico, a compaixão é composta pelo prefixo “com”, que
traz a idéia de companhia, e o verbo “patior, pateris, passus sum”, que
significa sofrer, suportar. A compaixão é compreendida como o

249
Manual de abordagem de dependências químicas

sentimento que se compartilha com o semelhante (GOMES, 2010),


que, na ética se Schopenhauer, é a saída para o homem ser bondoso
e justo e romper com o egoísmo.
Na consulta motivacional, a compaixão parece vir para,
definitivamente, destituir o profissional do lugar de suposto saber,
para um lugar mais pessoal, que realmente é capaz de compreender
plenamente o que se passa na realidade do outro e se dispõe a estar
com esse outro. A aceitação, pressuposta na empatia, parece se tor-
nar mais real no processo. Daí a importância dos profissionais
terem claro esse conceito no sentido de evitar distorções pautadas
no assistencialismo e na perda da neutralidade.
Nessa perspectiva, a parceria do profissional é bastante
significativa, sendo reforçada nas bases relacionais da consulta
motivacional, que inclui seus processos de engajamento (estabe-
lecimento da aliança terapêutica), foco (desenvolvimento e ma-
nutenção da direção específica da conversa para a mudança),
evocação (extrair da pessoa os próprios sentimentos concernentes
ao propósito de mudança) e planejamento (construção de
“quando” e “como” mudar) como condição sine qua non para a
identidade da abordagem.
Assim, construídas essas bases, é possível o manejo da
consulta motivacional por meio de sua metodologia denominada
PArr (em inglês, OArS), que consiste em fazer perguntas abertas
para dar espaço para o cliente falar, afirmar com reforços positivos,
para que o profissional demonstre sua compreensão pelo cliente,
promover uma escuta reflexiva e resumir o assunto que foi discu-
tido para consolidar a escuta do profissional e organizar melhor as
ideias do cliente.
Alguns alertas, contudo, são feitos aos profissionais, para
que, na prática da consulta motivacional, não venham cair em algu-
mas armadilhas. Essas armadilhas são apresentadas sob a forma da
armadilha da avaliação (o profissional se preocupa demasiadamente
com a anamnese e investe pouco na relação), armadilha do espe-

250
Aconselhamento motivacional em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

cialista (o profissional demonstra poder dar todas as respostas, dei-


xando o cliente em um papel passivo), armadilha da rotulação (o
profissional se preocupa demasiadamente em dar um diagnóstico
de dependência química, mesmo que o cliente o rejeite ou não esteja
pronto para isso), armadilha do foco prematuro (o profissional se
concentra na prioridade do uso ou abuso de álcool e outras drogas
em detrimento de outras situações, que no momento podem se
mostrar mais relevantes para o cliente), armadilha da culpa (o pro-
fissional se deixa levar pela situação de buscar ou eleger culpados)
e a armadilha do bate-papo (a pouca compreensão que o profissio-
nal possa vir a ter sobre as perspectivas humanistas, podem fazer
com que ceda a conversas informais por muito tempo).
todas essas mudanças parecem ser um conjunto de estra-
tégias que somam esforços para dificultar uma atuação que os au-
tores nomeiam como “reflexo de endireitamento” (MILLEr &
rOLLNICK, 2013), que seria o desejo do profissional de tentar
corrigir no outro aquilo que lhe parece errado, modificando o curso
das ações a partir de suas próprias perspectivas. Essa atuação não
é coerente com a proposta da consulta motivacional, que convida
o profissional a construir em seu trabalho uma postura equilibrada
na tensão entre seguir o indivíduo e também, guiá-lo.
A consulta motivacional é considerada uma prá-
tica de intervenção breve, que tem como objetivo atingir Intervenção breve: psicote-
metas específicas em um curto período de tempo. Es- rapia de curta duração.
tudos demonstram que tanto a prática da consulta mo-
tivacional quanto a da psicoeducação, podem ser
estratégias úteis da diminuição de consumo de subs-
tâncias psicoativas em adolescentes que cometeram ato
infracional (ANDrEttA & OLIVEIrA, 2010) e que
intervenções breves para adolescentes na rede de saúde
em atenção primária reduzem a prevalência e a inten-
sidade de comportamentos de risco associados ao uso
de drogas em adolescentes (DE MICHELI, FISBErG

251
Manual de abordagem de dependências químicas

& FOrMIGONI, 2004). Outro estudo mostrou que 65% de jo-


vens usuários de crack, que foram acompanhados por telefone,
por meio da técnica de consulta motivacional e aderiram à pro-
posta, cessaram o uso da substância (BISCH et al., 2011). Desta
forma, percebe-se que as propostas de aconselhamento motiva-
cional não precisam se restringir ao setting terapêutico e podem
ser estratégias utilizadas em diversas ocasiões, tais como em fases
de pré e pós-tratamento.

Conclusão

A Consulta Motivacional ainda vem sofrendo modifica-


ções, porque alguns resultados não mostram efetividade por sofre-
rem forte influência do local e do profissional que a pratica
(MILLEr, 1983). A Consulta Motivacional é uma abordagem que
não pode ser considerada como um fim em si mesmo, uma obra
acabada, por tratar-se de uma formatação em processo. Este pro-
cesso vem sendo feito por meio de testes e adaptações com rigor
científico e almeja que, além da mudança no comportamento de
risco, a Consulta Motivacional se concretize no decorrer do tempo,
estabilizando assim, a ambivalência e agregando uma visão huma-
nista e construtiva nas modificações de comportamentos de risco.

252
Aconselhamento motivacional em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

Referências

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218-226, 2010.
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254
Capítulo 17

Terapia cognitiva comportamental na abordagem


dos transtornos de uso de tabaco
Patrícia Maria da Silva Roggi
Maíra Ferreira Nogueira da Gama
Raika Lidiane Marques Rodrigues
Isadora Oliveira Wittickind
Fernando Silva Neves
Frederico Garcia

Introdução

O tabagismo é um transtorno mental e comportamental


provocado pela perda do controle sobre o uso de nicotina, a des-
peito de consequências físicas, psicológicas ou sociais. Atualmente,
a dependência de nicotina é uma das principais causas de morte
evitável no mundo e tem motivado diversas ações para sua preven-
ção, combate, controle e tratamento.
Os métodos para tratamento do tabagismo
compreendem aspectos farmacológicos e psicológicos da
dependência química. Dentre os métodos farmacológicos
encontram-se os tratamentos de substituição nicotínica (e.g.
adesivos, gomas de mascar, balas entre outros) e para redução da
fissura à nicotina (e.g. bupropiona e vareniclina).
Atualmente os métodos psicológicos utilizados, para o
tratamento da dependência de nicotina baseiam-se no uso de
psicoterapias de variadas linhas e têm como objetivo informar,
Manual de abordagem de dependências químicas

motivar, abordar aspectos específicos da dependência e prolongar


os períodos de abstinência. Entre as témnimas pprmoteráormas
disponíveis, destaca-se a terapia Cognitivo-Comportamental
(tCC) que tem mostrado resultados mais eficazes que outras
intervenções psicoterapêuticas (HALL et al., 2011). Os programas
mais eficazes para interrupção do tabaco são aqueles que associam
métodos psicológicos e farmacológicos para a cessação do taba-
gismo (rEICHErt et al., 2008).
No presente capítulo, iremos apresentar os principais concei-
tos da teoria geral da tCC e em seguida algumas particularidades rela-
cionadas à sua aplicação para o tratamento da dependência de nicotina.

A terapia cognitivo comportamental: conceitos básicos

A tCC é uma abordagem psicoterápica proposta por


Aaron Beck, no início da década de 60 e é baseada no chamado
modelo cognitivo. Esse modelo foi, inicialmente, desenvolvido para
a compreensão da depressão, sendo posteriormente ampliado para
explicar outros transtornos psiquiátricos. Parte do princípio que as
emoções e comportamentos são influenciados pela interpretação
pelo sujeito dos eventos, e de que não são os fatos em si que
determinam o modo de sentir ou agir de um indivíduo.
Distinguem-se três níveis de cognições: os pensamentos
automáticos, as crenças intermediá-rias e as crenças centrais.
Pensamentos automáticos: O nível mais superficial e consciente são os
idéias ou imagens que surgem
rapidamente à consciência di- pensamentos automáticos. Esses pensamentos são ideias
ante das situações cotidianas
e não dependem da vontade da ou imagens que surgem rapidamente à consciência
pessoa. Desencadeiam re-
spostas emocionais, fisiológi-
diante das situações cotidianas e não dependem da von-
cas e comportamentais. tade do sujeito. tais pensamentos desencadeiam diver-
sas reações emocionais, fisiológicas e comportamentais.
Por isso, em muitos casos, é mais fácil identificar as rea-
ções que eles despertam do que o pensamento em si.

256
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

É importante notar que os pensamentos automáticos baseiam-se


em pressupostos nucleares mais profundos e estáveis.
As crenças intermediárias abrangem as atitudes, Crenças intermediárias: ati-
tudes, regras, expectativas e
regras, expectativas e suposições que influenciam o pen- suposições que influenciam o
samento, o sentimento e o comportamento do sujeito. pensamento, os sentimentos e
o comportamento do indivíduo.
As crenças intermediárias se apresentam de modo infle-
xível e imperativo e se traduzem em afirmações do tipo
“se.então” ou “deveria” (LEAHy, 2006). Elas apresen-
tam relação com as crenças centrais na medida em que
oferecem suporte à elas e expressam estratégias compen-
satórias para as crenças centrais negativas.
Num terceiro nível temos os pressupostos Pressupostos nucleares:
nucleares, básicos e estáveis que se desenvolvem natu- teorias ou hipóteses que
dirigem o processo de organi-
ralmente, em resposta às primeiras experiências de zação e estruturação de todas
as informações que adquirimos
vida. Os pressupostos nucleares diferem-se dos pensa- sobre o mundo e nos ajudam
mentos automáticos, pois são mais profundas e gene- nacia interpretação da experiên-
ou na construção do signifi-
ralizadas, ao contrário dos pensamentos automáticos cado da mesma.
que se constituem em níveis mais superficiais da cog-
nição (COrDIOLI, 2008). Elas são teorias ou hipóte-
ses pessoais que dirigem o processo de organização e
estruturação de todas as informações que adquirimos
sobre o mundo, e nos ajudam na interpretação da ex-
periência ou da construção do significado dela. Nesse
sentido, guiam a seleção da informação que a pessoa
procura ou à qual dá atenção e também influência na
recuperação da mesma. Consequentemente, essas
ideias tornam-se influências poderosas sobre os com-
portamentos e estados de ânimo da pessoa, quando de-
sencadeadas por um evento da vida que a pessoa
considera, de certo modo, similar ao acontecimento
original. Assim, essas crenças centrais são o modo fun-
damental como o sujeito se considera e avalia a si
mesmo, o mundo e sua experiência (CABALLO, 2003).

257
Manual de abordagem de dependências químicas

Porém, o significado que uma pessoa atribui a uma situa-


ção pode ser marcado por erros de compreensão da causa, do efeito
ou de suas implicações, na medida em que informações incoerentes,
com os significados já existentes, são ignoradas ou interpretadas er-
roneamente. Nesse sentido, o processo natural de atribuir signifi-
cado às experiências cotidianas pode ser causa de mal estar, visto
que essas cognições não correspondem ao que de fato acontece,
ou seja, elas são distorcidas. Essas distorções, somadas ou não às
resistências, às modificações e à adaptação podem predispor as pes-
soas em vulnerabilidades específicas e contribuir para o desenvol-
vimento de diversos problemas psicológicos.
Em todos os níveis de processamento das informações
podem ocorrer erros cognitivos, os quais são comumente classifi-
cados em:
Inferência arbitrária: tirar conclusões sem evidências ade-
n

quadas ou inclusive quando elas contradizem a conclusão;


Abstração seletiva: concentrar-se em um detalhe especí-
n

fico, extraído do contexto, não levando em conta outras caracterís-


ticas mais relevantes da situação;
Generalização excessiva: chegar a uma conclusão a partir
n

de um fato isolado;
Magnificação e minimização: exagerar ou minimizar o signi-
n

ficado de um acontecimento;
Personalização: assumir responsabilidade ou culpa por um
n

evento externo, quando não há nenhum fundamento para isso.


Supor que os eventos são todos sobre você sem saber de todos os
fatos, levar tudo para o lado pessoal;
Pensamento absolutista dicotômico: classificar todas as ex-
n

periências em categorias opostas;


Leitura da mente: adivinhar o que as pessoas estão pen-
sando ou sentindo;
Adivinhação: fazer previsões sobre os eventos futuros;
n

Catastrofização: dar por certo que o pior vai acontecer;


n

258
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

n
Visão em túnel: enxergar somente aspectos que confirmam
o próprio ponto de vista e ignorar ou menosprezar as informações
contrárias;
n
Supergeneralização: estender uma conclusão de um acon-
tecimento isolado para outras áreas do funcionamento.
No caso da dependência de tabaco, quando a pessoa está
fissurada e sente um desejo forte e incontrolável de fumar, crenças
permissivas são ativadas e impedem que o sujeito se lembre das ra-
zões para não usar o cigarro. Ocorre uma distorção cognitiva cha-
mada visão em túnel ou bloqueio mental (BECK, 1993). Esse erro
cognitivo ocorre quando o sujeito dá atenção e assimila preferen-
cialmente, apenas os estímulos favoráveis à fissura e/ou uso de
drogas, desconsiderando todos os outros estímulos, inclusive pen-
samentos alternativos ao uso da droga.
Uma das principais crenças disfuncionais observadas no
tabagista são as crenças acerca do cigarro. Essas se manifestam
desde o início ou até mesmo anteriormente ao uso. São crenças de
conteúdo antecipatório – se eu fumar serei aceito naquele grupo -, per-
missivo – hoje eu tive um dia estressante, mereço relaxar -, inconsequente
– só um trago não vai me fazer mal, entre outros que aumentem a pro-
babilidade do uso imediato. Indivíduos que apresentam tais crenças,
associadas a um perfil de baixa tolerância à frustração, diante de si-
tuações que envolvem estresse ou algum desconforto emocional
podem ter ativadas tais crenças permissivas e antecipatórias, as quais
tornam-se imperativas – preciso fumar agora para relaxar, caso contrário
algo pior pode acontecer.
Após o uso do tabaco, muitas dessas crenças acabam
sendo reforçadas pelos efeitos benéficos iniciais que a droga
proporciona – relaxamento, sensação de bem estar. O uso pro-
longado da nicotina aumenta o risco da instalação da depen-
dência química, na qual os efeitos maléficos e as consequências
prejudiciais já passam a superar os aspectos positivos iniciais.
Nesse estágio, um padrão comportamental já está instalado e

259
Manual de abordagem de dependências químicas

é sustentado por pensamentos automáticos, crenças interme-


diárias e nucleares.
As crenças passam a ser ativadas na maior parte do dia-a-
dia do sujeito e situações anteriormente neutras se transformam
em gatilhos poderosos para a urgência do consumo do tabaco –
chamada de fissura. Assim, a passagem por um local onde há ci-
garros disponíveis, a observação de outra pessoa fumando, o con-
tato com o cheiro do cigarro ou ainda estados emocionais como
ansiedade e depressão podem ser eliciadores da vontade de consu-
mir o cigarro, que só será aliviada de fato pelo próprio consumo.
Da mesma maneira, significados psicológicos passam a serem dados
às drogas – o cigarro é meu melhor amigo – o que estreita ainda mais a
relação dependente entre o sujeito e a substância.

Características, indicações e contra-indicações da TCC

O tratamento para cessação do tabagismo baseado na tCC


tem se mostrado bastante promissor. Dados nacionais apontam uma
eficácia variando de 65% a 79%, sendo que 62% dos ex-fumantes se
mantêm em abstinência 25 meses após o término do tratamento
(OLIVIA, FALCONE et al, 2005; AzEVEDO et al., 2009).
É importe destacar que a taxa de abstinência ao tabaco é
diretamente proporcional a duração do tratamento (FIOrE et al.,
2000; KILLEN et al., 2008) e sofre aumento quando a abordagem
de tCC é associada à farmacoterapia (KIM et col., 2012; AzE-
VEDO et al., 2009; StEAD et LANCAStEr, 2008).
Cessação do tabagismo: tem
como objetivo estimular o
O tratamento para cessação do tabagismo tem
abandono do tabaco e prevenir como objetivo estimular o abandono do tabaco e pre-
recaídas.
venir recaídas. Para tanto, é necessário que paciente e
terapeuta, juntos identifiquem e modifiquem o proces-
samento das informações nos três níveis de cognições
já citados. Nesse processo é fundamental que o paciente

260
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

seja ensinado a detectar situações de risco para fumar e a desenvol-


ver estratégias de enfrentamento para elas (SILVA, 2010). As situa-
ções de risco são ocasiões que o ex-fumante pode retornar ao uso
do tabaco e geralmente envolvem momentos de fragilidade.
De caráter pedagógico, a tCC visa inicialmente, ensinar
o paciente a estabelecer as relações entre seus pensamentos, emo-
ções e comportamentos (modelo cognitivo), identificar e avaliar pa-
drões nessas relações e finalmente a planejar mudanças
comportamentais.
Outro objetivo importante da terapia consiste em ajudar
o tabagista a desenvolver autonomia, na medida em que o estimula
a se tornar “seu próprio terapeuta” através da transmissão das téc-
nicas e métodos para os diversos contextos de vida do paciente.
A tCC apresenta sessões estruturadas, com base em uma
agenda. tal planejamento é estabelecido em colaboração entre te-
rapeuta e paciente a cada novo encontro. A primeira sessão geral-
mente é caracterizada pela escuta da demanda do paciente e a
construção de uma aliança terapêutica, bem como a socialização do
paciente aos procedimentos da tCC. As sessões subsequentes se
iniciam com uma breve atualização da semana, principalmente
quanto ao humor e uso da medicação. Em seguida, o terapeuta deve
fazer uma breve revisão da sessão anterior e relacioná-la com a ses-
são do dia ao construir a agenda. Nesse momento, o terapeuta deve
revisar a tarefa de casa, verificando o quanto o paciente foi capaz
de se apropriar da sessão anterior. Deve construir a agenda e dis-
cutir seus tópicos, realizando sempre um resumo do conteúdo dis-
cutido. Ao final, o terapeuta indica nova atividade para casa e pede
um feedback de como foi a terapia naquele dia. toda essa estrutura
é igualmente aplicável ao tratamento do tabagista em grupo ou in-
dividualmente.
Um dos elementos importantes que devem nortear a
opção do tratamento em seu formato individual ou grupal, é uma
avaliação inicial, que permita ao profissional de saúde conhecer o

261
Manual de abordagem de dependências químicas

perfil do paciente em termos do histórico do tabagismo, tentativas


anteriores de abandono do tabaco, nível de dependência de nico-
tina, além de outras co-morbidades psiquiátricas.
Quando o tratamento é realizado em grupo, os tabagistas
têm a oportunidade de perceber que existem outras pessoas com
os mesmos problemas e, a partir disso, criar uma rede de apoio so-
cial e de troca de experiências e informações. Esse suporte social
fornecido pelo grupo consiste no reforço das ideias de abandono
do tabaco que ajudam a aumentar a motivação dos participantes. A
coesão do grupo permite o desenvolvimento de pertença, a identi-
ficação de afinidades com os demais membros, a realização de ta-
refas pelo grupo, o que melhora a autoestima de seus participantes
(COrDIOLI, 1998).
O profissional deve trabalhar para fortalecer a
Auto-eficácia: percepção que auto-eficácia, ou seja, a percepção que o sujeito tem de
um indivíduo tem que é capaz
de fazer algo. A auto-eficácia que é capaz de abandonar o tabaco. Além disso, deve aju-
facilita a ação.
dar os tabagistas a resolverem problemas que podem de-
correr da abstinência, tais como irritabilidade, fissura e
humor negativo. No grupo, o paciente também deve ser
ajudado a resolver as ambivalências relativas ao abandono
do cigarro e ter suas razões para desejar a abstinência
sempre reafirmada, de modo a evitar que sua motivação
sofra um declínio, visando facilitar a sua decisão (rEI-
CHErt et col., 2008).
Inicialmente, a tCC em grupo é contra indicada em casos
nos quais se observa danos severos da cognição. Para os casos em
que há outras co-morbidades psiquiátricas, não há contraindicações
para o abandono do tabaco, mas deve-se tomar o cuidado de ga-
rantir que o paciente receba o acompanhamento adequado dos sin-
tomas de tais doenças.
Segundo Silva (2010), para a participação nos grupos de
tCC alguns fatores devem ser levados em consideração, tais
como:

262
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

n Pessoas de um mesmo convívio social intenso ou de mesma famí-


lia (parentes mais próximos) não devem fazer parte do mesmo
grupo terapêutico, pois há a possibilidade de excesso à exposição;
n Fatores como distância sócio-cultural e distância entre as idades
dos participantes devem ser considerados, tendo em vista não tor-
nar o grupo exageradamente heterogêneo;
n Preferencialmente os pacientes devem estar no mesmo estágio
motivacional para que não haja interferência negativa.

O tratamento segue uma sequência que se inicia com uma


explicação sobre o modo de funcionamento da psicoterapia e es-
clarecimentos sobre o modelo cognitivo, a chamada fase de psicoe-
ducação. A partir das informações fornecidas pelo paciente na
entrevista inicial, ocorre uma síntese e integração dos problemas
apresentados pelo paciente em termos cognitivos e comportamen-
tais. tal processo chama-se conceitualização de caso e é de funda-
mental importância para nortear o tratamento, na medida em que
contribuiu para a escolha das técnicas adequadas ao sujeito (BECK,
1993).
À medida que o tratamento tem uma sequência, tal for-
mulação é refinada e testada pelo terapeuta e paciente. Desse
modo são realizadas as primeiras hipóteses sob seus modos de
pensar, pelo estabelecimento de relação entre pensamento e as
reações comportamentais, emocionais e fisiológicas envolvidas
em uma determinada situação.
Após a exploração dos pensamentos automáticos, torna-
se mais clara a visualização das crenças mais profundas e, portanto,
o entendimento da estrutura do sujeito e o que vem gerando com-
portamentos prejudiciais a ele. Algumas crenças são características
de certos transtornos, determinando comportamentos e condutas
semelhantes.

263
Manual de abordagem de dependências químicas

Técnicas de tratamento

A abordagem da tCC combina intervenções cognitivas e


comportamentais. Entre as técnicas mais utilizadas para o trata-
mento do tabagismo, destacaremos algumas a seguir.
Como já apresentamos anteriormente, uma das
Psicoeducação: técnica que técnicas cognitivas do tratamento é a psicoeducação. Ela
tem como objetivo prover infor-
mações corretas ao paciente tem como principal objetivo fornecer ao paciente infor-
sobre sua doença, métodos de
tratamento e paliativos.
mações sobre a natureza da dependência química, os efei-
tos do uso do tabaco no organismo, os métodos de parar
de fumar. Ao aprender e entender o que sofre, o paciente
reduz sua possível ansiedade e insegurança em parar de
fumar, além de desenvolver habilidade de identificação
dos sinais e sintomas, podendo implementar estratégias
de enfrentamento das situações-problema.
O registro de pensamentos disfuncionais é uma técnica
cognitiva, na qual o paciente faz o registro dos pensamentos e cren-
ças negativas que são ativados em seu cotidiano, relacionando-os
com sua reação emocional e comportamental. Por meio de tal ati-
vidade, o paciente tem a oportunidade de conhecer e avaliar seu
modo de encarar as situações, além de planejar outras formas de
enfrentar situações nas quais costuma fumar (BECK, 1993).
É bastante comum que os tabagistas conservem crenças
que minimizem as desvantagens sobre o tabaco e o ato de fumar,
ao mesmo tempo, que maximizem as vantagens. Nesses casos, a
utilização da análise de vantagens e desvantagens é bastante útil,
pois permite ao paciente realizar uma avaliação mais real de tais ele-
mentos (BECK, 1993).
O treinamento em relaxamento é uma técnica comporta-
mental bastante aplicada no tratamento do tabagismo. Pacientes ta-
bagistas relatam fumar porque acreditam que o cigarro os acalma.
Por isso, ensinar técnicas de respiração ou de relaxamento muscular
permite que o paciente tenha conhecimento de um método mais

264
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

seguro para se acalmar, além de aprender como lidar com a fissura


que pode sentir nos primeiros dias sem fumar (BECK, 1993).
A Prevenção à recaída refere-se a um conjunto de técnicas
tanto comportamentais, quanto cognitivas, que têm por objetivo
evitar que o individuo retorne ao uso do cigarro após um período
de abstinência. Os métodos para evitar uma recaída devem ajudar
o ex-tabagista a identificar situações nas quais existe a possibilidade
de romper com a abstinência e a realizar um plano estratégico para
enfrentar tal situação sem o uso do tabaco (BECK, 1993).

Proposta de um protocolo de tratamento do tabagismo com TCC

No Brasil, o Ministério da Saúde, por meio do Instituto


Nacional do Câncer (INCA), estabeleceu o programa Deixando de
Fumar sem Mistérios (2007), tendo como base teórica a abordagem
cognitivo-comportamental. Este protocolo é constituído de quatro
sessões semanais, com duração média de 90 minutos cada. É reco-
mendado que os grupos tenham entre 10 a 15 participantes. Estas
sessões semanais são estruturadas de acordo com a agenda básica
de uma sessão de tCC e contam com técnicas de solução de pro-
blemas, psicoeducação, técnicas de prevenção de recaídas, treina-
mento de habilidades e de manejo do estresse. Após o tratamento
intensivo, os pacientes são alocados em sessões de manutenção que
acontecem, quinzenalmente e mensalmente até completar doze
meses. A seguir apresentamos um esquema didático de tais sessões.

265
Manual de abordagem de dependências químicas

Figura 1
Proposta de protocolo utilizada no programa do
Instituto Nacional do Cancêr
Sessões 1ª “Entender 2ª “Os primeiros 3ª “Como vencer 4ª “Benefícios
porque se fuma e dias sem fumar” obstáculos para obtidos após parar
como isso afeta permanecer sem de fumar
sua saúde” fumar”
Intervenções - Informação sobre o - Ensino de técnicas de - Revisão da sessão Troca de Experiências
tabagismo enfrentamento/solução anterior -Psicoeducação:
- Psicoeducação: de problemas par lidar -Troca de experiências: prevenindo recaídas
trabalhando a com a fissuro - como os que -Listagem dos
ambivalência Psicoeducação: o que parearam viveram benefícios a longo
- Apresentação dos é a síndrome de seus dias? prazo
métodos para parar abstinência - Listagem dos -Encorajamento aos
de fumar (abrupta ou - Modificação das benefícios de parar de que ainda não
gradual; redução ou cognições/descrição fumar pararam a contin-
adiamento) de pensamentos alter- - Informação sobre uarem tentando
-Tarefas: escolher o nativos construtivos possível ganho de - Tarefa: Pense numa
dia para parar de -Treino de assertivi- peso frase que expresse
fumar. dade para lidar com -Encorajar os que não sua razão mais forte
situações de estresse pararam de fumar. para não voltar a
-Revisão da sessão fumar. Escreva neste
anterior carão e guarde com
-Discussão das você.
experiências vividas
-Tarefas: técnica de
respiração profunda e
relaxamento.

Consideraçõe finais

Do mesmo modo que com outros transtornos


psiquiátricos, o tratamento do tabagismo com a tCC é baseado na
identificação e modificação dos pensamentos automáticos e das
crenças distorci-das, que geram os comportamentos e as emoções
disfuncionais (JAEGEr; OLIVEIrA; SCHrEINEr, 2003).
Além disso, o pa-ciente deve ser ensinado a desenvolver
estratégias de enfrentamento ao tabaco, de modo que tenha
condições de responder a gatilhos internos e externos de forma
mais adaptativa. Assim, o sujeito passa também a prevenir
possíveis recaídas e ser capaz de superar expe-
266
Terapia cognitiva comportamental na abordagem dos transtornos de uso de tabaco

riências e eventos difíceis, sem o uso do tabaco ou outra droga. É


importante notar que o tratamento para o abandono do tabaco é
um processo que envolve principalmente a motivação do sujeito,
bem como o fornecimento de suporte com informações e escuta
das dificuldades de cada tabagista.

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239, abr./jun. 2010.

268
Capítulo 18

Abordagem terapêutica dos familiares


do usuário de drogas
Ana Paula Ribeiro
Orestes Diniz
Fernanda Toledo

Introdução

Clínica da dependência
Estudos realizados, desde a década de oitenta,
química que inclui a terapia sugerem que a clínica de dependência química, que inclui a
de família: propicia maior en-
gajamento e aderência ao terapia de família e o suporte das redes sociais, quando
tratamento. Reduz a recaída e
permite a reestruturação dos comparada à intervenção individual, propicia um maior en-
comportamentos disfuncionais
familiares.
gajamento e aderência do paciente adicto ao tratamento.
Nessa abordagem, as taxas de recaídas ao uso de drogas
são reduzidas, os comportamentos disfuncionais familiares
são reestruturados, de maneira que favoreçam a reabilitação
psicossocial e cognitiva do usuário de drogas (ALEXAN-
DEr; PArSONS, 1982; COPELLO; tEMPLEtON;
VELLMAN, 2006; SANtIStEBAN et al., 2006; SLE-
NICK; PrEStOPNIK, 2009; LIDDLE et al., 2011;
rOWE, 2012; GUIMArÃES; ALELUIA, 2012). Esses
resultados positivos são decorrentes da compreensão do
início do abuso das substâncias psicoativas, a partir da aná-
lise dos padrões familiares do adicto e da identificação dos
fatores de risco e de proteção, que podem favorecer a
Manual de abordagem de dependências químicas

abstinência do indivíduo (FALS-StEWArt; O’FArrEL; BI-


rCHELEr, 2003; SCHENKEr; MINAyO, 2004). Assim, o ob-
jetivo deste capítulo é demonstrar a importância da inclusão da
família no tratamento do usuário de crack e outras drogas, apre-
sentando alguns resultados de estudos com diferentes modelos
de intervenção terapêutica, e as limitações dessa abordagem de
tratamento nas famílias dos usuários.

Perfil do usuário de drogas

Para tratar a família do usuário de crack é importante com-


preender algumas características comuns encontradas nesta popu-
lação. Segundo Duailibi, ribeiro e Laranjeira (2008) é comum que
o adicto seja um poliusuário, ou tenha antecedentes de consumo
de outras substâncias, em que o início do uso permeia a adolescên-
cia, através de drogas lícitas (álcool e tabaco). São pacientes com
piores indicadores sociais, que exprimem outros comportamentos
disfuncionais, tais como sexuais de risco e uso de agulhas injetáveis
compartilhadas, aumentando o risco de adquirir doenças como HIV
e Hepatite C. É comum se observar comorbidades psiquiátricas,
nos usuários e nos familiares sendo importante a identificação de
outras psicopatologias que concorram com a dependência compor-
tamental dos adictos. Além disso, apresentam baixa adesão e ade-
rência ao tratamento, sendo necessário um trabalho multidisciplinar
que visa à abstinência, com várias abordagens de tratamento, entre
elas a farmacoterapia, atendimento a família e encaminhamento
para grupos de apoio. todos esses aspectos devem ser considerados
para o tratamento, principalmente no que diz respeito ao sistema
familiar que tende a se tornar rígido e disfuncional, adotando um
comportamento controlador, indiferente e abandonador.

270
Abordagem terapêutica dos familiares do usuário de drogas

A família do dependente químico

Segundo Baptista, Cardoso e Gomes (2012), a instituição


família é responsável pela socialização de seus membros em que
suas relações transgeracionais (valores, crenças, afeto e conheci-
mentos passados de uma geração a outra) orientam a formação do
sujeito, influenciando diretamente em seus padrões de comporta-
mentos promovidos pelas características do seu núcleo familiar. É
uma característica comum das famílias dos dependentes químicos
serem disfuncionais, podendo transmitir normas sociais desviantes
aos filhos, em um discurso de negação e minimização para proteger
a estrutura do sistema familiar, desprezando os sentimentos e as
experiências positivas.
Pode apresentar ainda, uma inabilidade na educação dos
filhos, com um comportamento autoritário sobre a relação entre
os membros, utilizando-se de uma disciplina assertiva de poder, um
monitoramento negativo, uma inconsistência interparental, afeto
desengajado e inflexibilidade cognitiva, o que dificulta a individua-
lização do sujeito (SCHENKEr; MINAyO, 2004). Essa pseudoin-
dividualização pode gerar uma dificuldade do adicto de se distanciar
da família de origem, sendo comum o seu retorno para a casa dos
pais, deixando sua família nuclear constituída por esposa e filhos.
Em alguns casos, o usuário não constitui uma nova família man-
tendo-se na casa dos pais e tornando-se cada vez mais dependente
de ajuda externa. As relações entre os subsistemas conjugais e filiais
se tornam permeáveis, resultando em um excessivo apego a um dos
genitores, que acaba “facilitando” os comportamentos desviantes
do filho como uma linguagem de afeto. Nesses casos é comum en-
contrarmos no sistema familiar, um membro que se torna super-
protetor, e outro que acusa o adicto por seus comportamentos
disfuncionais (GUIMArÃES; ALELUIA, 2012).

271
Manual de abordagem de dependências químicas

Codependência

Além da transgeracionalidade, outros fatores re-


lacionados ao núcleo familiar influenciam o tratamento
do adicto. Segundo Kaufman e Brook (2004), o abuso de
substâncias é um importante fator que contribui para vá-
rios problemas familiares. Alguns membros da família
acabam se ajustando aos comportamentos disfuncionais
do dependente, que com freqüência não oferecem muita
resistência ao estilo de vida que o adicto imprime. Nesses
casos, os familiares podem propiciar um ambiente man-
tenedor dos comportamentos disfuncionais do depen-
Co-dependência: os fami-
dente químico, que levam ao uso de drogas e se tornam
liares se adaptam a dependên- co-dependentes (CArMO, 2003). Dessa forma, podemos
cia de propiciando um
ambiente mantenedor dos caracterizar o co-dependente como um indivíduo que
comportamentos disfuncionais
do dependente químico que apresenta e vive um comportamento disfuncional rela-
levam ao uso de drogas. cionado à dependência química de seu familiar e não tem
consciência de sua participação. Geralmente, quando se
sinaliza essa disfuncionalidade, tendem a resistir à res-
ponsabilidade de promover o vício do dependente e a de-
fender-se.

Modelos de intervenção baseada na família

Segundo rowe (2012), alguns fatores como a psicopato-


logia parental, conflitos familiares, a dependência de outros mem-
bros da família, são preditores do uso de drogas e início do abuso.
todavia, a família pode assumir um papel protetor positivo entre
os domínios do tratamento, auxiliando na redução do uso de subs-
tâncias psicoativas de seu familiar, sendo uma grande motivadora
para o adicto entrar e permanecer no tratamento (SCHENKEr;
MINAyO, 2004; KAUFMAN; BrOOK, 2004). Diante disso, dife-

272
Abordagem terapêutica dos familiares do usuário de drogas

rentes perspectivas teóricas podem orientar a formulação de inter-


venções baseadas na família e agrupam-se em quatro abordagens:
psicanalítica, comportamental, sistêmica e várias abordagens de sis-
temas/ecológicos. A abordagem psicanalítica foca em princípios de
funcionamentos inconscientes articulados no desejo e na lingua-
gem, propiciando a fundamentação da diferenciação psíquica, mas
manifestando sintomas no funcionamento familiar. As terapias fa-
miliares comportamentais, através da análise de contingências en-
fatizam a mudança de comportamentos e atitudes que favorecem
ao abuso de drogas, na tentativa de promover a abstinência do in-
divíduo, modificando o repertório para comportamentos positivos.
Na teoria de sistemas familiares a família é vista como um
sistema aberto em constante alteração na estrutura familiar, sendo
elas: individualização dos adultos; casamento; nascimento do pri-
meiro filho; família com filhos pequenos; família com filhos ado-
lescentes; “ninho vazio”- saída dos filhos de casa. trabalha com o
princípio da homeostase e retroalimentação – movimento que
tende a manter o equilíbrio do sistema se fechando para a retroali-
mentação negativa, e se atualizando com a retroalimentação positiva
(GUIMArÃES; ALELUIA, 2012). A abordagem sistêmica foca no
relacionamento familiar problemático que influencia o uso de dro-
gas, desenvolvendo novas interações que melhorem o funciona-
mento dos membros da família. E por último, a abordagem que
trabalha com vários sistemas ou modelos baseados ecologicamente
na família, visando alterar alguns fatores familiares disfuncionais,
bem como outros sistemas que envolvam o adicto através das redes
sociais (os doze passos, empregadores, amigos, instituições que pro-
movem o tratamento, etc.). Os objetivos fundamentais de todas
essas abordagens são semelhantes: utilizar o apoio da família para
importantes mudanças do estilo de vida e alterar aspectos disfun-
cionais do ambiente familiar. Entre estas destacamos na Tabela 1,
alguns estudos que demonstram a eficácia de modelos de terapia
baseadas na família que podem ser utilizados na intervenção clínica

273
Manual de abordagem de dependências químicas

dos adictos: Terapia de Família Multidimensional (MDFT); Terapia Mul-


tissistêmica (MST); Terapia de Família Funcional (FFT); Terapia de Família
Estratégica Breve (BSFT).

Tabela 1
Modelos de terapias baseadas na família
Modelos de terapias Conceitos Modelos Estudos Resultados
baseadas na família Teóricos
MDFT Endossada pelo National Institute Sistemas/ Liddle et al., Após 3 meses de tratamento,
for Drug Abuse (NIDA) e pela ecológicos 2011 87% de jovens tratados com
Substance Abuse and Mental MDFT se mantiveram
health Services Administration abstinentes comparado à 23%
(SAHMSA)(HUDGINS, 2009), é de Jovens que participaram do
um tratamento ambulatorial que tratamento tradicional.
trabalha com terapia de família,
individual, psicoeducação, vários
sistemas de intervenção sobre os
domínios: desenvolvimento inter
e intrapessoal; padrões transa-
cionais familiares, intervenção
com os membros influentes do
sistema extrafamiliar.
MST Trabalha múltiplos fatores de Sistemas/ Slesnick; 119 adolescentes que apresen-
risco que envolve o dependente, ecológicos Prestopnik, tavam problemas com álcool
entre eles a família e a comu- 2009 tratados com EBFT e FFT
nidade onde este está inserido. tiveram melhores resultados,
O objetivo implícito é de reestru- comparados aos jovens
turar o ambiente para reduzir os submetidos ao tratamento
comportamentos anti-sociais. tradicional quando analisados as
Um exemplo de MST é a Terapia recaídas ao uso de drogas após
Ecologicamente Baseada na 15 meses.
Familiar (EBFT).
FFT O tratamento visa alterar Comportamental Alexander; Melhoria da dinâmica familiar e
relações negativas da familiar Parsons, redução na reincidência da
e usa intervenções comportamen- 1982 delinquência dos adolescentes
tais para reforçar respostas tratados com FFT, quando
positivas, sendo uma eficaz comparados a outros programas
abordagem de resolução de de tratamento (Grupos Juvenis
problemas no seio da família no tribunal de Justiça, a Grupos
de Terapia Domiciliar, Terapia
psicodinâmica) ou nenhum
tratamento.
BSFT Baseia-se em estudos anteriores Sistêmica Santisteban Em ensaios clínicos do NIDA
que demonstram resultados et al., 2006 em oito locais diferentes, com
positivos usando estratégias de mais de 400 adolescentes
engajamento e estratégico usuários de drogas e famílias
estruturais, visando à demonstram que BSFT foi
reestruturação das interações uperior ao grupo terapia na
familiares e promovendo redução do uso de maconha.
mudanças significativamente
positivas na família.

274
Abordagem terapêutica dos familiares do usuário de drogas

Esses resultados demonstram que o envolvimento tera-


pêutico dos familiares podem ser um importante preditor da ade-
rência ao tratamento. Como descrito anteriormente, o abuso de
droga por um indivíduo, afeta todos os membros da família, in-
cluindo parceiros, filhos e outros não residentes em casa. E esses
precisam de ajuda, não só para lidar mais eficazmente com a droga
do abusador, mas também para lidar com suas angústias e resolver
seus próprios problemas, sendo que o estresse nas relações paren-
tais pode exacerbar o abuso de drogas e contribuir com as recaídas
(rOWE, 2012).

Limitações do tratamento com a família do dependente químico.

As maiores dificuldades da intervenção estão relacionadas


à família que por vezes abandona o adicto, e não o acompanha
desde o início do tratamento, sendo importante a equipe profissio-
nal investir na inclusão dos familiares na relação terapêutica (GUI-
MArÃES; ALELUIA, 2012). Outra limitação encontrada é a
duração do tratamento. A maioria dos estudos revela que as inter-
venções duram entre doze a dezoito meses. Considerando que a
dependência é uma doença crônica, com constantes recaídas, há
uma necessidade de que o tratamento seja contínuo para sua efeti-
vidade. Sendo assim os familiares e o adicto precisam manter o con-
tato com os profissionais em caso de retorno ao uso e abuso das
drogas. tanto a família, quanto os profissionais não devem esperar
resultados imediatos, embora a participação em um episódio inicial
de tratamento possa aumentar a probabilidade de sucesso em pro-
gramas posteriores, aumentando a motivação para o início do pro-
cesso de mudança (rOWE, 2012).

275
Manual de abordagem de dependências químicas

Discussão

Não podemos deixar de considerar a importância do en-


volvimento da família do dependente químico no tratamento. A fa-
mília é responsável por sua participação na comunidade através de
suas relações interpessoais, favorecendo a individuação do sujeito
pela retroalimentação positiva e negativa que caracteriza sua subje-
tividade. É improvável que fatores como os valores, crenças, afeto
e conhecimentos da família, não contribuam para a subjetivação do
indivíduo, sendo indispensável o entendimento do funcionamento
familiar, do estilo parental empregado, e da história da família com
o dependente. Da mesma forma, toda a família, sendo ela caracte-
rizada como um sistema, não pode se isolar completamente da rea-
lidade do adoecimento de seu membro. Esse está intrinsecamente
ligado a ela, e por isso, gera no ambiente familiar uma desordem
que precisa ser considerada na intervenção terapêutica. De fato,
todo modelo de tratamento que trabalhe com uma abordagem de
intervenção familiar, favorece em alguma medida a motivação do
adicto na terapia, possibilitando que este permaneça abstinente por
mais tempo. Apesar disso, não existem muitos programas de inter-
venção no sistema de saúde do país, mesmo considerando que a re-
lação custo benefício da terapia baseada na família garanta a
inclusão dessa abordagem terapêutica em unidades de saúde (MOr-
GAN; CrANE, 2010; COPELLO; tEMPLEtON; VELLMAN,
2006). Sugere-se que para aumentar a efetividade do tratamento dos
usuários de crack e outras drogas, se desenvolvam programas nas
instituições responsáveis que trabalhem com a prevenção e inter-
venções nas famílias.

276
Abordagem terapêutica dos familiares do usuário de drogas

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Manual de abordagem de dependências químicas

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278
Capítulo 19

Avaliação neuropsicológica do usuário de drogas


Frederico Garcia
Alessandra Assumpção
Ana Paula Ribeiro
Lafaiete Moreira

Introdução

A dependência química (DQ) é uma doença crônica ca-


racterizada por: (a) compulsão para procurar e utilizar drogas; (b)
perda de controle do limite de utilização; (c) surgimento de
emoções negativas associadas à privação de utilização da droga
(KOOB & LE MOAL, 2008); (d) recaídas ao uso de droga. A
quinta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (DSM-V) da Associação Americana de Psiquiatria,
estabelece critérios objetivos para o diagnóstico diferencial, sendo
a tolerância progressiva, os sintomas de abstinência e prejuízos
psicológicos e sociais associados ao uso abusivo da substância, os
fatores mais importantes a serem considerados na DQ. Dentre
esses prejuízos, as dificuldades no desenvolvimento profissional,
nos processos de aprendizagem, e nas relações interpessoais, estão
relacionadas com os comprometimentos cognitivos gerados pelo
uso contínuo de substâncias. Todos estes prejuízos dificultam o
tratamento e a reinserção social dos usuários de drogas.
A avaliação neuropsicológica pode ser utilizada para
investigar a extensão do prejuízo cognitivo, sendo uma ferramenta
importante para se desenvolver um plano de tratamento individua-
Manual de abordagem de dependências químicas

lizado. Partindo do pressuposto que a DQ é uma doença cerebral


crônica, com alterações que persistem por um longo tempo após a
abstinência, medidas que auxiliem na psicoeducação do usuário e
sua família, são importantes principalmente para a compreensão
de possíveis recaídas ao longo do tratamento.
Neste capítulo serão revistos os principais conceitos liga-
dos ao comprometimento neuropsicológico dos pacientes
usuários de drogas. Objetiva-se sensibilizar e instrumentalizar o
leitor a rastrear estas alterações nos pacientes com uma DQ.

Mecanismos neuropsicológicos da dependência química

A DQ é uma doença multifatorial definida por um pa-


drão mal adaptativo do uso de uma substância, associado neces-
sariamente a prejuízos clínicos e sociais significativos. A transição
para a dependência é facilitada por vulnerabilidades genéticas e
ambientais, combinadas à plasticidade neural que culmina em
com-portamentos associados à resposta da exposição às drogas
como recompensa natural (KALIVAS; O’BrIEN, 2008). Apesar
da exis-tência de critérios claros para diagnóstico da doença, os
mecanis-mos pelos quais ela ocorre ainda não são totalmente
compreendidos. Um dos modelos neuropsicológicos que tem
apresentado mais evidências de confiabilidade é o de Koob e Le
Moal (1997). Neste modelo a DQ é conceitualizada como um
ciclo crescente de desregulação do sistema recompensa do cére-
bro, que resultaria no uso compulsivo da droga. O processo de
dependência estaria relacionado, num primeiro estágio, a uma mu-
dança no continuum de contingências comportamentais, em que há
alterações da valência do reforçamento do estímulo, de positivo
para negativo. Na DQ ocorreria algo comparável à transição de
um transtorno do controle dos impulsos, em que o estímulo
desencadeador da resposta é positivo, para um transtorno

280
Avaliação neuropsicológica do usuário de drogas

compulsivo, em que o estímulo eliciador da resposta é negativo.


Esta transição ocorreria em três estágios: 1. preocupação/
antecipação; 2. abuso/in-toxicação e 3. fuga/emoção negativa
(KOOB; LE MOAL, 2008). A maior vantagem desse modelo é de
poder ser investigado em di-versos níveis, indo desde a
neurobiologia e neuropsicologia expe- rimental até psicologia
cognitiva social, o que permite uma abordagem translacional.
Em termos do substrato neurobiológico, Feltenstein e See
(2008) sugerem que o processo de dependência ocorre devido à
desregulação induzida pela droga no sistema de recompensa do
cé-rebro, na via mesolímbica (ver capítulo 1). Neste circuito algumas
drogas induziriam um aumento da estimulação dopaminérgica,
principalmente no striatum ventral e núcleo accumbens, gerando
sensações agradáveis que orientam o indivíduo ao comportamento
ativo e adaptativo como procurar abrigo, alimento e reprodução.
Certas drogas agindo sobre os circuitos de aprendizagem os
alterariam de modo a criar dependência, o que pode ser
demonstrado pela ativação experimental dos circuitos de
recompensa. (KALIVAS; O’BrIEN, 2008) O uso abusivo das
drogas sobrecarrega esse sistema, levando a um aumento na si-
nalização dopaminérgica do núcleo accumbens. Disso resultam
estimulos que motivam a ingestão de quantidades cada vez
maiores da droga, que levam a formação de associações mal
adaptadas produzindo sintomas clínicos, como abstinência, fissura
e vulnerabilidade à recaídas.

Alterações neuropsicológicas

Cada tipo de droga age por mecanismos neurobiológicos


específicos, afetando diferentes circuítos envovidos no ciclo de
desenvolvimento da dependência. A maioria das drogas de abuso
interfere na plasticidade neural, que também sofre influência de
outros estimulos com estímulos motivacionais e biológicos capa-

281
Manual de abordagem de dependências químicas

zes de estimular direta ou indiretamente a ação dopaminérgica do


circuito de recompensa (KALIVAS; O’BrIEN, 2008).
Os fatores mais importantes para a análise dos compro-
metimentos causados pelas diferentes drogas são: 1. tipo de droga;
2. Frequência de de uso (eventual (esporádico), abusivo
(repetidamente em dias diferentes) e crônico aqui chamado de
dependente (período prolongado); 3. dose consumida; 4. grau de
comprometidimento cognitivo; e 5. Número de hospitalizações.
Na prática, outro fator a ser considerado é que sujeitos
dependentes ou que utilizam drogas de forma abusiva, geralmente
usam mais de uma substância ao mesmo tempo. É importante
identificar qual é a droga mais utilizada. O uso uso de múltiplas
drogas dificulta a identificação e a avaliação de associações espe-
cíficas, entre tipos de drogas e domínios cognitivos distintos. De
forma geral, usuários de drogas apresentam alterações neuropsico-
lógicas na memória episódica, processamento de emoções e fun-
ções executivas, principalmente tomada de decisão. Tais alterações
dependem do tipo de droga utilizada, maconha, psicoestimu-
lantes, opióides e álcool. Já foram estabelecidas correlações entre
o uso de psicoestimulantes e álcool, com impulsividades e
flexibilidade cognitiva; entre a maconha e a metanfetamina com
memória prospectiva; e com a maconha e ecstasy com velocidade
de processamento e planejamento (Tabela 1).

282
Avaliação neuropsicológica do usuário de drogas

Tabela 1
Funções cognitivas comprometidas de drogas estimulantes e
inibidoras no Sistema Nervoso Central (SNC)

*Estudos não apresentam resultados.

Drogas estimulantes

Cocaína e Crack
Os usuários eventuais de cocaína e crack podem apre-
sentar comprometimentos significativos em comparação com
os grupos controle, nas seguintes funções: atenção sustentada e
alternada, memória espacial, controle inibitório e flexibilidade
cognitiva. Tais alterações levam a uma menor capacidade de
ajustar de forma rápida e flexível o comportamento com rapidez
podendo ter repercursões no desempenho das atividades do
cotidiano (COLZATO; HOMMEL, 2009; COLZATO; HUIZINGA;
HOMMEL, 2009; COLZATO et al., 2009). Em usuários
destas substâncias são observadas frequências maiores de

283
Manual de abordagem de dependências químicas

traços esquizotípicos, sugerindo uma provável disfunção


dopaminérgica.
Estudos indicam a alteração da impulsividade (FErNA-
NEz-SErrANO et al., 2012), em usuários eventuais de cocaína,
os quais apresentam maiores e menor desempenho em tarefas de
controle inibitório, e maiores índices de perseveração. Estas
alteração refletem possíveias disfunção orbitofrontal que influem
nas atividades de reforço de aprendizagem.
Vários autores descrevem compromentimento em
dependentes e usuários crônicos de cocaína apresentam
comprometimentos, na memória de trabalho, controle inibitório,
memória verbal, aprendizagem e memória, memória de curto
prazo e função psicomotora.
Além dessas alterações, foram encontrados comprometi-
mentos na capacidade de tomada de decisão (CUNHA et al., 2004),
no qual as escolhas desvantajosas no Iowa Gambling test (IGt)
foram associadas a altos níveis de disfunção social em relação ao
grupo controle, avaliado com a escala Social Adjustment Scale
(SAS). tal comprometimento pode ser indicativo de associação
entre dificuldade de tomada de decisão e maior disfunção social.
Em mulheres usuárias de cocaína observa-se um maior
comprometimento com relação à memória de trabalho,
flexibilidade cognitiva e controle inibitório (VAN DER PLAS et
al., 2009). Essa diferença de gênero pode ser importante na
criação de planos de tratamento específicos para mulheres.

284
Avaliação neuropsicológica do usuário de drogas

Drogas sintéticas estimulantes (MDMA/Ecstasy)


A produção e venda de substâncias psicoativas tem ocor-
rido nos últimos anos em diferentes países. Têm-se pouca
experiência clínica e farmacológica com estas novas drogas para
que se possam conhecer os impactos neurocognitivos (UNODC,
2013). As evidências em estudos com algumas dessas novas
drogas sugerem, que os danos causados por elas é significativo,
podendo em alguns casos desencadear mecanismos de destruição
neuronal em sistemas monoaminérgicos (apoptose).
O ecstasy (3,4 metilenedioximetanfetamina ou MDMA) causa
efeitos deletérios na cognição dos usuários mesmo com uma
pequena frequencia de uso. Tais alterações resultariam de um
efeito tóxico em neurônios do sistema serotoninérgico
(MCCARDLE et al.; 2004). O uso do ecstasy tem sido associado
com comprometimento persistente da memória e disfunção
psicológica. O comprometimento de memória (WARD; HALL;
HASLAM, 2006) persiste por até dois anos mesmoapós absti-
nência.
O uso eventual de drogas estimulantes foi associado ao
comprometimento de memória e as alterações serotoninérgicas. A
maior parte dos estudos indica comprometimento na memória, na
aprendizagem (HANSON; LUCIANA, 2004; MCCArDLE et al.;
2004; WAGNEr et al., 2013); comprometimentos visio-motores
(WAGNEr et al., 2013); atenção (MCCArDLE et al.; 2004; yIP;
LEE, 2005); memória verbal (BEDI; VAN DAM; rEDMAN,
2010; yIP; LEE, 2006) (tHOMASIUS et al., 2003); memória não
verbal (WArD et al., 2006; yIP; LEE, 2005) e na memória de curto-
prazo (MCCArDLE et al., 2004).
Nas funções executivas são observados comprometimen-
tos relativos à memória de trabalho (FISK et al., 2004; yIP; LEE,
2005), fluência verbal (yIP; LEE, 2005), na tomada de decisão
(QUEDNOW et al., 2007) e na velocidade de processamento
(HALPErN et al., 2004).

285
Manual de abordagem de dependências químicas

Estudos com ex-usuários de drogas estimulantes


mostram a persistência de altos níveis de impulsividade
(HALPErN et al., 2004; QUEDNOW et al., 2007), sintomas de-
pressivos (MCCArDLE et al.; 2004; WArD et al., 2006) e
sintomas ansiosos (WArD et al., 2006), especialmente em ex-
usuários.
Drogas inibidoras

Álcool
Embora alguns abusadores crônicos de álcool
mantênham o nível intelectual praticamente intacto, um grande
número deles apresentam alterações cognitivas correlacionadas
com a quantidade e frequência do uso do álcool, como: (a)
alterações cognitivas leves; (b) prejuízos cognitivos moderados; e
(c) danos neuropsicológicos mais severos, como a demência
persistente induzida pelo álcool e do transtorno amnéstico
persistente induzido pelo álcool (Síndrome de Korsakoff)
(CUNHA; NOVAES, 2004). As alterações mais frequentemente
encontradas são aquelas relacionadas à memória episódica
(COrLEy et al., 2011; CUNHA; NOVAES, 2004), to-mada de
decisão (CUNHA; NOVAES, 2004), controle inibitório
(BArDENHAGEM; OSCAr-BErMAN; BOWDEN, 2007;
CUNHA; NOVAES, 2004; HILDEBrANDt et al., 2004; KA-
rEKEN et al., 2013; NOEL et al., 2007; ), memória de trabalho
(CUNHA; NOVAES, 2004; HILDEBrANDt et al., 2004;
tHOMA et al., 2013), processamento visioespacial (CUNHA;
NOVAES, 2004; SCHOttENBAUEr; HOMMEr; WEIN-
GArtNEr, 2007), nas habilidades sociais (tHOMA et al., 2013),
velocidade psicomotora, velocidade do processamento, atenção, e
gera uma baixa ativação do Córtex Pré-Frontal (CPF) que pode
ser observada mesmo após meses de abstinência, devido a
atividade gabaérgica e serotoninérgica desta região.(ABErNAtH;
CHANDLEr; WOODWArD, 2012; CUNHA; NOVAES, 2004)

286
Avaliação neuropsicológica do usuário de drogas

Para avaliação de rastreio das funções associadas ao CPF,


indica-se o uso da Bateria de Avaliação Frontal que rastreia algum
déficit das funções executivas, relacionadas ao CPF, como o
planejamento, a tomada de decisão e o controle inibitório. Ainda
para avaliar as funções executivas, sugere-se o uso do Wisconsin
Card Sorting task (WCSt) e o Iowa Glambing task (IGt).
O uso eventual de álcool, mesmo na ausência de
intoxicação pela substância, causa alterações no controle inibitório
e memória episódica verbal (WOICIK et al., 2009). Os
comprometimentos cognitivos em dependentes de álcool se
assemelham a danos cerebrais difusos. Alguns desses déficits
desaparecem durante a abstinência, outros persistem mesmo após
anos, da última ingestão de álcool. (CUNHA; NOVAES, 2004)

Cannabis (Maconha)
A Cannabis, uma das drogas ilícitas mais utilizadas no
mundo, devido aos seus efeitos psicoativos e fisiológicos (bom
humor, euforia e relaxamento). Seu uso apresenta riscos quando
feito a longo-prazo. Estudos epidemiológicos, de que o seu uso
crônico está associado ao desencadeamento de esquizofrênia no
início da idade adulta.
Os endocanabinóides, um dos princípios ativos da ma-
conha, estão envolvidos na regulação das funções cognitivas, em
circuitos neuronais do córtex, nos neurônios do hipocampo e em
neurônios da amígdala. Sua ação atinge também o estriado e a
substância cinzenta periaquedutal (CASADIO et al., 2011). Apesar
de não haver evidências da alteração das funções cognitivas em
adolescentes, estudos revelam que em usuários pesados, ocorre
uma alteração da tempralidade, redução da volição e do desejo,
redução da atenção, da aprendizagem, e da capacidade de
processar e regular as emoções. Usuários crônicos de cannabis
apresentam uma diminuição bilateral do hipocampo e da
amígdala. uando comparados com a população geral estes
usuários podem não apresentar resultados inferiores em baterias
287
Manual de abordagem de dependências químicas

de avaliações neuropsicológicas, indicando que eles recrutam


redes neurais alternativas, como um mecanismo compensatório
durante a execução das tarefas.(CASADIO et al., 2011;
rAMAEKErS et al., 2011).
Mesmo sem estar sob o efeito da canabis, usuários
crônicos podem apresenta alterações na velocidade de
processamento de informações, na memória episódica e nos
processos atencionais.
Usuários eventuais de maconha apresentaram alterações
em processos atencionais e memória de curto-prazo. ( HEU-
NISSEN et al., 2012)

Heroína/opióides
A exposição crônica a opióides ocorre tanto em
pacientes em tratamento de dores crônicas, quanto por depen-
dentes químicos que a usam sem prescrição. Dependentes
crônicos de opióides apresentam comprometimentos durante o
período de abuso da droga (BALDACCHINO et al., 2012;
POrtENOy; FOLEy, 1986; VErDEJO-GArCIA et al., 2005)
em funções executivas, como flexibilidade cognitiva e memória de
trabalho e na memória de reconhecimento.
Dependentes e usuários crônicos de opióides apresentam
comprometimentos na memória de trabalho (BALDACCHINO et
al., 2012), memória de reconhecimento (ErSCHE; SAHAKIAN,
2007), fluência verbal, flexibilidade cognitiva (BALDACCHINO et
al., 2012) e planejamento (ErSCHE; SAHAKIAN, 2007).
Após abstinência prolongada, comprometimentos cogni-
tivos consistentes foram observados nas funções executivas (ErS-
CHE; SAHAKIAN, 2007), memória de reconhecimento e
aprendizagem. Ersche e Sahakian (2007) sugerem que mesmo após
alguns anos de abstinência, o comprometimento persistente pode
refletir a neuropatologia nos córtex frontal e temporal. tal fato é
importante para o planejamento personalizado de tratamento.

288
Avaliação neuropsicológica do usuário de drogas

Conclusão

A avaliação neuropsicológica é uma importante ferra-


menta para a avaliação e mensuração dos comprometimentos cog-
nitivos decorrentes do uso ou abuso de substâncias. O diagnóstico
precoce das perdas neuropsicológicas permite uma adequação do
programa de tratamento e o planejamento de ações terapêuticas
específicas para cada paciente. A avaliação neuropsicológica pode
pode oferecer informações que nos permitem compreender as
dificuldades de manutenção da abstinência e auxiliar na orientação
dos familiares dos usuários de drogas.

289
Manual de abordagem de dependências químicas

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293
Capítulo 20

A inserção do enfermeiro na abordagem do


dependente químico

Amanda Márcia dos Santos Reinaldo

Introdução

A dependência química deve ser observada sob diferentes


aspectos. trata-se de um quadro plural, em que intervenções pré-
determinadas a priori, nem sempre são ditosas quando se avalia que
existem padrões individuais de consumo que variam em intensidade
ao longo de um continuum, em que claramente se reconhecem ní-
veis de uso com ou sem problemas e abuso com complicações clí-
nicas e psíquicas. (StEFANELLI; FUKUDA; ArANtES, 2008)
As comorbidades associadas à dependência química são
desafios que demandam abordagem de diferentes profissionais e
especialidades. Os profissionais da saúde direcionaram suas ações
e esforços diante do impacto social produzido pelo consumo de
drogas, em especial o crack, mesmo considerando que o álcool se
mantém como a substância de maior impacto nos custos diretos e
indiretos da saúde no espectro das dependências químicas.
O II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas
(LENAD, 2013) estima que 11,7 milhões de pessoas sejam depen-
dentes de álcool no país. A pesquisa foi realizada com 4.607 mora-
dores (52% mulheres e 48% homens) de 149 municípios brasileiros,
Manual de abordagem de dependências químicas

sendo 9% deles menores de idade. Entre os adultos 54% dos en-


trevistados revelou consumir álcool regularmente, ou seja, uma vez
por semana ou mais. Em 2012, houve crescimento de 20% do uso
frequente de álcool, em relação ao estudo de 2006, quando 45%
das pessoas revelaram beber com regularidade. O aumento no per-
centual de homens que consomem álcool com frequência foi de
56% em 2006 para 64% em 2012. Entre as mulheres o aumento foi
de 29% para 39% da primeira para a segunda análise. Em geral
houve um aumento no consumo nas regiões brasileiras, exceto na
região Nordeste que se manteve estável.
Em relação ao consumo de cocaína e crack quase seis mi-
lhões de brasileiros (4% da população adulta) já experimentaram
alguma apresentação de cocaína na vida. O índice foi de 3% entre
adolescentes, representando 442 mil jovens. No último ano, a pre-
valência de uso dessa droga atingiu 2,6 milhões de adultos (2%) e
244 mil adolescentes (2%). Aproximadamente dois milhões de bra-
sileiros já usaram cocaína fumada (crack/merla e oxi) pelo menos
uma vez na vida – 1.4% dos adultos e 1% dos jovens. Um em cada
cem adultos usou crack no último ano, representando 1 milhão de
pessoas. O uso de cocaína fumada na adolescência foi mais baixo,
1% para o uso na vida (150 mil jovens) e 0.2% de uso no último
ano, cerca de 18 mil pessoas. (LENAD, 2013)
A partir desse cenário discutiremos a inserção do enfer-
meiro na abordagem do dependente químico a partir de três eixos
que se complementam: 1º Formação, 2º Pesquisa e 3º Abordagem
ao dependente químico.

1º Eixo: Formação

A Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de


Drogas (CICAD) criada pela Secretaria de Segurança Multidimen-
sional da Organização dos Estados Americanos (CICAD, 2011)

296
A inserção do enfermeiro na abordagem do dependente químico

tem como meta entre seus programas e projetos na área da depen-


dência química, introduzir nos currículos de graduação e pós-gra-
duação em enfermagem e demais profissões da saúde, disciplinas
relacionadas ao tema drogas, em mais de 170 universidades na Amé-
rica Latina e no Caribe, atingindo 15.000 estudantes por ano.
É uma meta audaciosa, mas factível diante do problema
social causado pelo consumo de drogas e o crescente gasto do sis-
tema de saúde com o tratamento dos dependentes químicos. Cabe
citar que mais de 70.000 enfermeiras foram treinadas em cursos pa-
trocinados pela CICAD nos últimos dez anos na América Latina e
Caribe e que o investimento anual para alcançar essa meta é em
torno de US$ 8.1 milhões por ano.
Nas últimas décadas, o abuso de substância tem sido re-
conhecido como uma prioridade na formação dos diversos profis-
sionais da saúde. Apesar desse reconhecimento pouca ênfase tem
sido dada ao ensino nessa área, fato observado em diferentes pes-
quisas realizadas no Brasil e no mundo. Em estudos quali e quanti-
tativos que se ocuparam do tema, os acadêmicos de enfermagem e
enfermeiros reconhecem uma deficiência em sua formação para
lidar com a questão. (rEINALDO, PILLON, 2007)
Segundo (Clarck, 1981) existem quatro impedimentos para
os profissionais da saúde realizarem o diagnóstico e o tratamento da depen-
dência química.
O primeiro impedimento é o cognitivo, que implica na falta
de conhecimento por parte dos profissionais, para identificar os
sintomas produzidos pelo uso de droga, comprometendo assim o
diagnóstico diferencial; o segundo está relacionado à atitude do pro-
fissional associada a uma visão negativa do usuário e do tratamento;
o terceiro a comunicação devido à resistência ao tratamento por parte
do dependente químico o que provoca nos profissionais de saúde
respostas pouco acolhedoras, e por fim o quarto impedimento de
ordem conceitual esse, por sua vez, está atrelado ao fato de que os
profissionais não avaliam a dependência química como uma doença

297
Manual de abordagem de dependências químicas

passível de diagnóstico e de tratamento. É uma visão interessante


que merece atenção.
Observa-se que os impedimentos identificados pelo autor
sugerem possibilidades de intervenção durante a formação do en-
fermeiro a partir de disciplinas com conteúdos pertinentes a área
que abordam: teorias, conceitos básicos e avaliação diagnóstica; ava-
liação e tratamento das comorbidades e tratamento farmacológico
e não farmacológico. (OMS, 1991)
Outra questão a ser trabalhada na formação do enfer-
meiro aponta para a identificação das crenças e atitudes desse pro-
fissional, frente ao fenômeno dependência química, que se reflete
na confiança em atender o dependente químico; nas atitudes em
relação ao prognóstico e à pessoa e no julgamento do modo de vida
do sujeito.
Esforços têm sido realizados na tentativa de oferecer ca-
pacitação para os enfermeiros para atuarem na abordagem do de-
pendente químico considerando a revisão das competências a serem
obtidas durante a graduação e o aperfeiçoamento dos profissionais
para suprir as deficiências da educação formal.
O enfermeiro deve se capacitar para desenvolver ações
tais como: realizar uma história adequada sobre o padrão de con-
sumo de substâncias psicoativas, implementar estratégias de inter-
venção e educação em saúde, avaliar os problemas associados ao
uso da substância, identificar o uso nocivo ou a dependência e ofe-
recer cuidados de saúde e apoio durante a reabilitação e prevenção
de recaídas.
tais mudanças podem ser conquistadas por meio de uma
política educacional de ensino sobre álcool e outras drogas na gra-
duação e na pós-graduação, integrando diferentes cenários de atua-
ção, ensino, assistência, pesquisa e extensão, bem como se faz
necessário fortalecer estratégias de enfrentamento da problemática
por parte de diversos setores da sociedade. (PILLON; SIQUEIrA;
SILVA, 2012)

298
A inserção do enfermeiro na abordagem do dependente químico

Um dos objetivos da capacitação profissional inclui a iden-


tificação precoce da dependência química pela utilização de ques-
tionários e inventários padronizados voltados à detecção dos
transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Como,
por exemplo, o CAGE (acrônimo referente às suas quatro pergun-
tas- Cut down, Annoyed by criticism, Guilty e Eye-opener) específico para
o álcool, e o Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test
(ASSISt) para o uso de outras drogas, favorecendo assim a abor-
dagem inicial e a compreensão dos aspectos biológicos, cognitivos
e psicossociais da dependência química, bem como estimular mu-
danças de atitudes dos enfermeiros em relação ao dependente quí-
mico e seu tratamento. (LArANJEIrA, 2003)

2º Eixo: Pesquisa

O avanço da profissão de enfermagem na América Latina


necessita que sejam desenvolvidos esforços e parcerias nacionais e
internacionais no âmbito da pesquisa.
A CICAD no âmbito do fomento a pesquisa, por meio
do Observatório Interamericano de Drogas apoia pesquisas na área,
com o objetivo claro de transformar a informação produzida em
dados úteis para os formuladores de políticas.
Em 1997, a CICAD, inicialmente com o apoio financeiro
do governo do Japão, e posteriormente com o dos Estados Unidos
e o Canadá, iniciou uma experiência única com algumas escolas de
enfermagem na América Latina. A meta foi preparar docentes e,
por meio deles, futuros enfermeiros para trabalhar na área da pes-
quisa visando a redução do uso e abuso de drogas, com atividades
relacionadas à promoção da saúde, prevenção e integração social.
(WrIGHt et al., 2005)
O “Primeiro Programa Internacional de Capacitação em
Pesquisa para Enfermeiros no Estudo do Fenômeno das Drogas

299
Manual de abordagem de dependências químicas

na América Latina” foi implementado, com o apoio técnico e fi-


nanceiro da CICAD, do governo do Canadá e da faculdade de en-
fermagem da Universidade de Alberta, em 2003. A duração do
programa, dividido em três partes, foi de um ano. A parte I foi im-
plementada na Faculdade de Enfermagem da Universidade de Al-
berta e compreendeu três módulos, que destacaram os seguintes
aspectos: módulo I. Saúde Internacional e o Fenômeno das Drogas;
módulo II. O Fenômeno das Drogas nas Américas; módulo III. meto-
dologias de pesquisa. (WrIGHt et al., 2005)
As pesquisas na área da dependência química desenvolvi-
das por enfermeiros ligados a centros de pesquisa e serviços de
saúde no Brasil e no mundo se ocupam de diferentes temas, entre
eles: modelos explicativos para o fenômeno do uso e abuso de dro-
gas, implicações sociais e familiares, modelos de atenção, avaliação
das políticas públicas para a área, formação e capacitação na gra-
duação e pós-graduação, pesquisas epidemiológicas e de avaliação
de serviços.
Observa-se hoje um crescimento significativo de pesqui-
sadores da enfermagem se debruçando sobre o tema, considera-se
esse movimento como um passo decisivo para a formação do en-
fermeiro e para a contribuição da profissão na elaboração de polí-
ticas públicas para a área.
No campo da pesquisa é importante considerar os princi-
pais fatores que reforçam a exclusão social do usuário de drogas.
De acordo com o Ministério da Saúde (2004), é importante avaliar
o impacto do uso de álcool e outras drogas no aumento da violência
urbana; os estigmas atribuídos aos usuários e que reforçam a segre-
gação social do mesmo; a inclusão do tráfico como alternativa de
trabalho e geração de renda e a ilicitude do uso que impede a par-
ticipação social de forma organizada na elaboração das políticas pú-
blicas para o setor.
As pesquisas no campo da enfermagem em dependência
química têm colaborado para a compreensão desse fenômeno, e

300
A inserção do enfermeiro na abordagem do dependente químico

devem considerar as mudanças estruturais que ocorreram no país


e no mundo nos últimos dez anos no que concerne ao tema.

3º Eixo: Abordagem ao dependente químico

Em relação à abordagem do enfermeiro ao dependente


químico, as estratégias e modelos assistenciais disponíveis à profis-
são têm como meta promover iniciativas no âmbito comunitário
bem como na assistência direta tanto ao indivíduo, quanto à família
e grupos específicos da comunidade. Atividades de vida diária
(AVD): são as tarefas que o in-
Cabe considerar o prejuízo presente no desen- divíduo realiza diariamente. Não
volvimento das atividades de vida diária dos usuários de secuidados
resume somente aos auto –
de vestir-se, alimentar-
drogas e suas implicações tardias, cabendo aos profissio- se, arrumar-se, tomar banho, e
pentear-se, mas engloba tam-
nais de saúde desenvolver iniciativas intersetoriais e in- bém as habilidades de usar tele-
fone, escrever, manipular livros,
terdisciplinares que deem conta não só da prevenção, mas etc além da capacidade de virar-
também do tratamento, reabilitação e da reinserção do see transferir-se
na cama, sentar-se, mover-se
de um lugar a
paciente. outro.

No tratamento do usuário de substância psicoativa deve-


se considerar o conceito de dependência química adotado; a sua as-
similação pela cultura e pela política de cada local; o tipo de
substância mais prevalente utilizada pela população que se quer cui-
dar; a motivação do indivíduo para o tratamento; a participação da
família desse sujeito; a sua rede social de apoio e os grupos sociais
de seu entorno. (GIGLIOttI, 2010)
Não existe apenas um modelo a seguir para o planeja-
mento de cuidados da enfermagem na área da dependência química.
Essa prática tem se desenvolvido de forma focalizada, de acordo
com as necessidades de repostas aos problemas de saúde das po-
pulações, pois está diretamente ligada ao sistema de saúde e cen-
trada nos cuidados gerais de atenção em saúde.
Modelos são simulações teóricas para explicar um fenô-
meno complexo e multifacetado. A abordagem ao dependente quí-

301
Manual de abordagem de dependências químicas

mico, guarda sua complexidade e o profissional pode avaliar o usuá-


rio sob diferentes aspectos ao mesmo tempo. O modelo explicativo
para o uso do álcool e outras drogas, atualmente mais utilizado em
nosso meio e que têm contribuído para modificações desse com-
portamento, têm se baseado no modelo biomédico, centralizado
nas formulações da psiquiatria, havendo possibilidade de abertura
para o contexto da saúde pública. (PILLON; LUIz, 2004)
Independente do modelo ou estratégia adotada é impres-
cindível identificar as boas práticas na dependência química, ou seja,
o que de fato funciona na prevenção de recaídas e no tratamento
em si. As abordagens devem ser baseadas em evidências e conside-
rar a individualização e a singularidade do sujeito. Deve-se trabalhar
pela disponibilidade de acesso aos serviços de saúde, considerando
a multidisciplinaridade, um plano de tratamento maleável e factível,
o tempo de permanência mínimo no serviço de internação, a psi-
coterapia individual e em grupo, a farmacoterapia e o tratamento
integrado da comorbidade.
A desintoxicação deve ser considerada no momento da
intervenção. O tratamento voluntário é desejável e a realidade do
tratamento involuntário deve ser acompanhada de perto para que
não ocorra violação de direitos, observada frequentemente quando
existe institucionalização.
O modelo moral deve ser descartado e o monitoramento
do consumo, a regulação do uso e a redução de danos devem ser
trabalhados de forma séria, por profissionais ou pessoas capacitadas
para isso. A proposta de internação para tratamento deve respeitar
a legislação vigente no país e o cardápio de opções terapêuticas
pressupõe o oferecimento de vagas para atendimento, levando-se
em conta as limitações das políticas locais para a área sem prescindir
das necessidades reais da população.
Para planejar e implementar a abordagem do dependente
químico, o enfermeiro utiliza ferramentas que já fazem parte de seu
cotidiano na clínica psiquiátrica, e que se adequam a dependência

302
A inserção do enfermeiro na abordagem do dependente químico

química, é recomendável porém que ele incorpore outras estratégias


que prescindem de formação e aperfeiçoamento.
A partir dessa perspectiva deve-se lançar mão de um
leque de intervenções psicoterápicas que envolvem diferentes
ações, entre elas podemos elencar: intervenção breve, terapia
cognitivo comportamental, entrevista motivacional, aconselha-
mento, acompanhamento terapêutico, gerenciamento de casos,
estratégia de redução de danos, visita domiciliar, psicoterapia de
grupo, terapia familiar, o vínculo, o relacionamento, a comuni-
cação e o ambiente terapêutico. Essas ações e estratégias de aten-
ção em saúde devem considerar a rede de atenção formal e
informal que constituem cenários privilegiados de abordagem do
dependente químico.

Considerações finais

O enfermeiro enfrenta os desafios da abordagem do de-


pendente químico a partir da visão de que esta para ser efetiva pres-
supõe a articulação com diferentes setores e o trabalho
interdisciplinar.
O aperfeiçoamento de suas competências; a formação
profissional e a condução de pesquisas são influenciadas pelas po-
líticas públicas no planejamento de suas ações. As relações do usuá-
rio com o seu habitat e família, as condições de saúde no país, a
relação do usuário com os serviços de saúde; e os avanços científi-
cos e tecnológicos da área, entre elas o campo da neurociência e
neuroimagem, apontam para o campo da intersecção de saberes e
práticas de diferentes profissões.
É necessário dar visibilidade às pesquisas realizadas por
centros de excelência da enfermagem no país e no mundo, criando
assim um arcabouço teórico consistente que sirva de sustentação
para nossos saberes e práticas nesse campo.

303
Manual de abordagem de dependências químicas

Enfim, é imprescindível ponderar e discutir os eixos que


apresentamos, encarando o círculo vicioso da dependência química
como algo passível de intervenção, e buscando abordagens possí-
veis para a dependência e o dependente químico que não nos leve
a digressão.

304
A inserção do enfermeiro na abordagem do dependente químico

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305
Manual de abordagem de dependências químicas

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cional De Ciência E Tecnologia Para Políticas Públicas De Álcool E Outras Dro-
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306
Capítulo 21

Avaliação das condições sociais do usuário de drogas:


limitações, potencialidades, interesses e
expectativas em relação à sua reinserção social

Moisés de Andrade Júnior

Contexto sócio-histórico do consumo


de drogas no Brasil e no mundo

A dependência química é considerada, hoje, um dos maio-


res desafios de saúde pública no mundo. Mobilizando profissionais
de diversas áreas, a discussão sobre o tema abrange a prevenção do
consumo de substâncias, estratégias de tratamento, políticas públi-
cas para promoção de saúde e intervenções nas condições sociais
que propiciam e fomentam o contato com as drogas. Dados recen-
tes apontam o crescimento constante do número de usuários de
drogas no mundo, e estima-se que apenas em 2011, entre 3,6 e 6,9%
da população teria feito uso de alguma substância ilegal no último
ano (UNODC, 2013). Dentro das estatísticas mundiais, a prevalên-
cia do uso de cannabis, opióides e opiácios apresentou acentuado
crescimento, enquanto substâncias como cocaína e derivados, an-
fetaminas e metanfetaminas, que apresentaram queda nos últimos
anos, voltaram a subir (UNODC, 2013). Contudo, é importante res-
saltar que as demandas por tratamento e o impacto de determinadas
Manual de abordagem de dependências químicas

substâncias variam nas diferentes regiões e países, sugerindo a in-


fluência de fatores históricos e culturais nos hábitos de consumo
dos indivíduos. As variações desse consumo, e sua gravidade rela-
tiva, implicam em diferentes abordagens de compreensão e enfren-
tamento do problema.
No Brasil, as estatísticas do consumo de substâncias apon-
tam que em 2005 cerca de 22,8% da população entre 12 e 65 anos
utilizou alguma droga na vida, excetuando-se o álcool e o tabaco –
um crescimento de 3,4% se comparado com dados de 2001
(Duarte; Stempliuk; Barroso, 2009). Dentre as substâncias consu-
midas, prevalece a cannabis como a droga ilícita mais utilizada na
vida (8,8%), seguida do uso de solventes (6,1%). Considerando-se
apenas as drogas ilícitas, a cocaína apresentou um consumo na vida
de 2,9%, e o crack, que tem sido alvo cada vez mais frequente de
políticas públicas sobre drogas, 0,7% (CArLINI et al., 2006b). Con-
tudo, os problemas causados pelo consumo abusivo e dependência
dessas substâncias – com sequelas sociais, físicas e psíquicas decor-
rentes do consumo a curto, médio e longo prazo – devem ser ana-
lisados em um contexto mais amplo, considerando-se as variáveis
sociais e econômicas envolvidas no processo.
tomando-se três das substâncias ilícitas mais abordadas
pelas políticas públicas sobre drogas no Brasil (a cannabis, a cocaína e
o crack), verifica-se nos dados disponíveis de 2005, que dentre a po-
pulação que experimentou cannabis uma vez na vida, 21,6% fizeram
uso dela no último mês. No caso da cocaína e crack, 13,8% e 14,3%
da população que utilizou essas substâncias, ao menos uma vez na
vida, fez uso delas no último mês, respectivamente (CArLINI et al.,
2006b). As discrepâncias entre uso na vida e uso no mês são impor-
tantes indicadores da gravidade do consumo de substâncias, ainda
que, analisadas isoladamente, essas estatísticas pouco dizem sobre os
contextos em que elas são utilizadas. Nesse sentido, é necessário con-
siderar as condições sociais em que o usuário se encontra para se
compreender o escopo geral do consumo de drogas no país: o sujeito

308
Avaliação das condições sociais do usuário de drogas: limitações, potencialidades, interesses e expectativas...

que se droga é atravessado por uma história e uma cultura, compar-


tilha valores da comunidade a qual pertence, e faz parte de grupos
sociais que influenciam sua relação com a substância.

Promoção da saúde e o uso de drogas

Dentro dessa perspectiva, a orientação mundial sobre a


promoção e manutenção da saúde é de que ela não pode ser alcan-
çada sem que sejam endereçadas suas determinantes sociais: isso
significa combater a desigualdade social, melhorar condições de
acesso a bens e serviços de saúde, promover políticas públicas de
prevenção e promoção da saúde, fomentar a economia e o acesso
a postos de trabalho, combatendo o desemprego, mas ao mesmo
tempo cuidando para que as condições de trabalho não atentem
contra a saúde dos indivíduos (WHO, 2012). Essas orientações, por
sua vez, estão em sintonia com a perspectiva de saúde que norteia
o SUS, qual seja, a saúde como um processo socialmente determi-
nado, e que demanda um atendimento integral ao indivíduo, consi-
derando-se como indicativo de saúde não apenas a ausência da
doença, mas também as condições socioeconômicas que cercam
pessoas, grupos e coletividades (MACHADO et al., 2007).
No que tange ao consumo de substâncias, a proposta de
atenção integral do SUS tem sido aplicada na compreensão do fe-
nômeno, considerado, portanto, efeito de condições históricas, so-
ciais e políticas, e que implicam em diferentes formas de uso, abuso
e dependência (PrAttA, 2009). Neste sentido, o fenômeno da
drogadição passa a ser considerado dependente de estratos sociais;
de condições de vulnerabilidade social; associados a contextos fa-
miliares que ora atuam como fator de proteção, ora de risco; final-
mente, considera-se, nas políticas públicas sobre drogas, sua relação
direta ou indireta com situações de violência, notadamente a vio-
lência urbana.

309
Manual de abordagem de dependências químicas

Para compreender com maior propriedade que condições


sociais cercam o usuário de drogas no Brasil, é necessário contex-
tualizá-lo em uma história de busca pelo prazer, propiciado pelo
consumo da substância, e políticas de repressão e perseguição, per-
petuadas ora por instituições religiosas, ora pelo Estado (ESCO-
HOtADO, 1999). A tentativa de reprimir o consumo de certas
substâncias psicotrópicas, contudo, não apenas foi insuficiente para
abolir seu uso, mas acabou por criar redes criminosas paralelas de
comercialização (tráfico), associando seu consumo com estratos so-
ciais definidos, e caracterizando determinados tipos de substâncias
a públicos sócio e economicamente demarcados, baseados no
preço, disponibilidade e cultura de consumo da droga (FrAGA,
2007).
Considerando-se apenas a maconha, droga mais utilizada
no Brasil e no mundo, sua demonização e repressão, iniciadas nas
décadas de 1920 e 1930, provocou o rápido recrudescimento do
aparato policial necessário para seu combate, mas popularizou-a
entre grupos de contestação e contracultura durante a ditadura mi-
litar (CArLINI, 2006a; trad, 2009). Com a criação de públicos seg-
mentados para o consumo de determinadas substâncias,
dependentes de sua disponibilidade no mercado (lícito e ilícito) e
do poder aquisitivo de seus usuários, criaram-se culturas da droga,
contextos sociais fontes de identificação e pertencimento de seus
consumidores, mas também alvo de estigmas sociais e representa-
ções sociais negativas (WHItE, 1996). Essas culturas da droga, por
sua vez, condicionaram hábitos de consumo e estratégias de prote-
ção contra os riscos de utilização da substância, baseadas em um
conjunto de cuidados e comportamentos compartilhados pelo
grupo (rIBEIrO; SANCHEz; NAPPO, 2010). Contudo, a difu-
são e popularização crescente de algumas drogas, como o crack,
inicialmente consumido por uma população socialmente mar-
ginalizada (e por muito tempo considerado, por esse motivo, uma
droga “de gueto”); ou seja, substâncias consideradas baratas e de

310
Avaliação das condições sociais do usuário de drogas: limitações, potencialidades, interesses e expectativas...

rápido efeito, têm ampliado as condições de consumo e população


consumidora, pluralizando os contextos sociais de sua utilização.
tal fato acabou exigindo do Estado novas formas de pensar a de-
pendência química, dissociando-a da condição de criminalidade e
propondo políticas públicas que abarcassem sua prevenção nos
muitos ambientes em que é consumida, ao mesmo tempo promo-
vendo tratamentos baseados em um modelo de atenção construído
em rede, interdisciplinar e intersetorial (ALVES, 2009; MA-
CHADO, MIrANDA, 2007). O resultado dessa complexificação
dos ambientes e população consumidora, portanto, significou
novos desafios a qualquer programa de prevenção e tratamento da
drogadição.

Consumo de substâncias e condições sociais determinantes

Inseridas na discussão sobre os contextos Vulnerabilidade Social:


situações de marginalização
plurais da drogadição, encontram-se as condições de socioeconômica, com o desfa-
vorecimento e precariedade
vulnerabilidade social, que possuem um papel impor- nas condições de participação
tante no consumo de substâncias no Brasil. Por condi- política, acesso ao mercado
de consumo e acesso a bens e
ções de vulnerabilidade social, compreendem-se, serviços sociais e de saúde,
criando condições de maior
principalmente, situações de marginalização socioeco- risco e exclusão sociais.
nômica, com o desfavorecimento e precariedade nas
condições de participação política, acesso ao mercado
de consumo e acesso a bens e serviços sociais e de
saúde, criando condições de maior risco e exclusão so-
cial. Estão incluídos nesta categoria moradores de rua,
indivíduos em condição de pobreza ou pobreza ex-
trema, sem acesso a condições sanitárias adequadas,
mas também portadores de HIV com pouco ou ne-
nhum acesso a tratamento, jovens em conflito com a
lei, crianças em situação de rua, dentre outros (PAIVA,
2007; PAULILO, JEOLÁS, 2000; PAULILO et al., 2001;

311
Manual de abordagem de dependências químicas

PErEIrA; SUDBrACK, 2008; DUAILIBI; rIBEIrO; LA-


rANJEIrA, 2008). Neste sentido, condições socioeconômicas
cumprem papel importante na compreensão do perfil dos usuá-
rios de crack e outras drogas.
No caso específico do crack, condições como pobreza,
desemprego, baixa escolaridade e ausência de vínculos familiares
seguros, sugerem ser determinantes importantes para o consumo.
Em estudos sobre a “cultura do crack” em São Paulo, o uso da
substância, próprio desse perfil sociodemográfico, foi caracterizado
como, predominantemente, compulsivo e com alarmante taxa de
poliuso, notadamente o álcool, maconha e cocaína, consumidos na
tentativa de diminuir os efeitos negativos do crack (combinação
com substâncias depressoras como a maconha ou álcool) ou inten-
sificar os efeitos positivos (combinação com a cocaína) (NAPPO;
OLIVEIrA, 2008; FILHO et al., 2003). resultados semelhantes
foram encontrados em pesquisa no rio de Janeiro, onde também
predominam as condições de baixa escolaridade e desemprego no
perfil sociodemográfico do usuário de crack (VArGENS; CrUz,
SANtOS, 2011).
Ainda no contexto do uso dessa substância, encontra-se
em aberto a discussão sobre os fatores sociais predisponentes ao
seu consumo. Em algumas pesquisas, a influência de parentes usuá-
rios de psicotrópicos (notadamente o álcool e o cigarro), especial-
mente durante o início da adolescência (10-13 anos de idade), a
relação com amigos que já consomem substâncias e o ambiente de
transgressão que cerca seu uso são variáveis comuns surgidas da in-
vestigação dos motivos do primeiro uso de substâncias, que são,
em sua maioria, o cigarro, o álcool e a maconha, rapidamente esca-
lonados para o consumo do crack (SANCHEz; NAPPO, 2002;
SANDrA; HENrIQUES JÚNIOr; ANDrADE, 1996). Neste
sentido, é importante considerar que quanto mais precoce o uso,
mais grave a intensidade do consumo adulto, e mais compulsivos
os hábitos de uso, pior a adesão ao tratamento e pior o prognóstico

312
Avaliação das condições sociais do usuário de drogas: limitações, potencialidades, interesses e expectativas...

e recuperação (DUAILIBI, rIBEIrO, LArANJEIrA, 2008;


KANDEL, yAMAGUCHI, CHEN, 1992; MArQUES, CrUz,
2000; PEIXOtO et al., 2010). O consumo de crack, contudo, não
significa uma percepção distorcida de seus riscos e danos à saúde –
ao contrário, a quase totalidade dos dependentes químicos do crack
tem consciência de seus perigos, mas o prazer obtido pela substân-
cia, a influência social e pressão do grupo (especialmente no caso
de adolescentes), o escapismo proporcionado pela substância e de-
mais fatores biológicos e psicológicos envolvidos em sua utilização
são mais influentes e decisivos na disposição de continuar utilizando
a droga (CArLINI, 2006b; trad, 2009; WHItE, 1996).

Contexto social e família

Ampliando a discussão para os fatores socioeconômicos,


que contextualizam o consumo de drogas e condições de vulnera-
bilidade social, é importante considerar também a relação da família
no processo de drogadição e recuperação. No caso da população
adulta, a conjunção do estado civil solteiro, a baixa escolaridade e
baixa condição socioeconômica surgem com frequência nas esta-
tísticas de consumo de substâncias ilícitas (NAPPO, OLIVEIrA,
2008; FILHO et al., 2003, VArGENS, CrUz, SANtOS, 2011),
sendo a presença ou ausência da família um importante dado qua-
litativo para a compreensão da relação entre esse sujeito e a droga.
A família é aqui compreendida como um sistema dinâmico de re-
lações, em que o afeto assume posição de destaque, visto que são
os laços de intimidade e cumplicidade os responsáveis por agregar
os indivíduos de uma mesma família (SILVEIrA, SILVA, 2013).
São, inclusive, as forças e dinâmicas dessa rede intrafamiliar que
permitiriam ao indivíduo lidar e se proteger de forças externas (in-
terfamiliares), considerando-se a existência de pressões de grupos
sociais na decisão de um indivíduo em experimentar ou persistir no

313
Manual de abordagem de dependências químicas

uso de determinada substância (WHItE, 1996; SANCHEz,


NAPO, 2002). A influência da família, ou seja, sua presença ou au-
sência na vida do indivíduo propicia fatores de risco ou proteção
ao consumo de substâncias.
Dentre os fatores de risco, destacam-se a ausência de vín-
culos familiares positivos; a ausência de valores morais e hábitos
saudáveis; o exemplo pelo consumo de substâncias (mesmo as líci-
tas, como álcool ou cigarro) de parentes; e a permissividade em re-
lação ao uso de substâncias e comportamentos de transgressão.
Dentre os fatores de proteção, sobressai a promoção de autonomia
e independência dos indivíduos mais jovens da família; laços fami-
liares afetivos e positivos, sem descuidar de medidas disciplinares
claras e efetivas; e o diálogo aberto e compreensivo entre seus in-
tegrantes (SILVEIrA, SILVA, 2013; SILVA, 2011).

O contexto social do consumo de


substâncias entre crianças e adolescentes

No caso da criança e do adolescente, a família assume im-


portância fundamental na compreensão da relação que eles estabe-
lecem entre si, o mundo e a droga. No âmbito do consumo de
drogas entre crianças e adolescentes, verificou-se um início muito
precoce do consumo do álcool (início entre os doze anos), crack
(início entre os treze anos) e maconha (início entre os treze anos)
– dados do Brasil. Apenas na região Sudeste, o uso dessas substân-
cias entre estudantes do ensino fundamental e médio, foi de 68,7%,
0,8% e 6,6%, respectivamente (GALDUrÓz, 2004). A gravidade
do consumo dessas substâncias no organismo da criança e do ado-
lescente, ainda em desenvolvimento, implica na importância de se
conhecer os contextos de seu uso e de que forma o ambiente social
que as cercam contribuem para o aumento do risco, para o uso ou
sua proteção. Para além do aspecto biológico da droga, as variáveis

314
Avaliação das condições sociais do usuário de drogas: limitações, potencialidades, interesses e expectativas...

sociais que cercam a criança e o adolescente precisam ser conheci-


das para a construção de propostas de intervenção e, principal-
mente, reinserção social, considerando que os ambientes
pauperizados e de pouca perspectiva de crescimento pessoal, edu-
cação, emprego na vida adulta, proteção de direitos básicos e acesso
a bens e serviços de saúde contribuem para a experimentação e uso
da droga, dificultando a proposta de um tratamento ou intervenção
(trAVErSO-yÉPEz, PINHEIrO, 2002). Ou seja, as más con-
dições de infraestrutura e de vulnerabilidade social, a que certas
crianças e adolescentes estão expostas, contribuem para aumentar
o risco do contato com a droga (SAPIENzA, PEDrOMÔNICO,
2005). Quando se considera a situação de rua, o quadro é ainda
mais grave: 31% das situações do primeiro episódio de uso de
uma droga ilegal aconteceu depois da situação de rua, contra
19,1% para aqueles que iniciaram o uso antes, sendo que a maioria
dos casos iniciou-se por curiosidade ou através de amigos. A
escola, aqui, também oferece dados importantes sobre o contexto
de consumo dessas crianças e adolescentes: a ausência de vínculo
escolar mostrou-se um fator fortemente associado ao consumo de
drogas em situação de rua, sendo que a diferença do consumo de
drogas (uso no mês e uso diário) entre aqueles frequentando a
escola (42,1%) e aqueles que não a frequentam (83,8%) ou nunca
frequentaram (81,7%) é de pra-ticamente o dobro. A família, por
sua vez, ocupa um papel central sobre a situação de consumo de
substâncias por crianças e adolescentes em situação de rua, sendo
que, dentre aqueles que moravam com a família, apenas 19,7%
utilizavam drogas diariamente, contra 72,6% dos que não
moravam com suas famílias (NOtO et al., 2003). Esses dados
sugerem orientações importantes sobre a construção de
programas de prevenção com crianças e adolescentes em situação
de rua, indicando o papel tanto da escola quanto da família para a
prevenção do consumo de substâncias.
Uma hipótese plausível é a de que tanto a escola quanto a
família podem ser fatores de proteção do contato com as drogas,
315
Manual de abordagem de dependências químicas

desde que construídas como um ambiente saudável, que promova


a resiliência desta população aos riscos do consumo de substâncias,
auxiliando na construção de um indivíduo menos vulnerável ao
risco social presente em determinados ambientes (SAPIENzA,
PEDrOMÔNICO, 2005; DELL’AGLIO, SANtOS, 2011). Os va-
lores que atravessam a constituição familiar e, na medida em que
oferece um espaço de trocas sociais, também a escola, propiciam à
criança e ao adolescente um conjunto de valores, significados e sen-
tidos que lhes permitem considerar a droga sob um olhar mais crí-
tico, a despeito de influências extrafamiliares ou pressão de grupos
para sua experimentação. Como núcleo dos primeiros aprendizados,
conhecimentos e crenças, tanto a escola quanto a família desempe-
nham um papel importante na construção da identidade da criança
e do adolescente, sendo, portanto, corresponsáveis (quando não
responsáveis diretos, pelo mau exemplo e má influência) pelo pri-
meiro contato do indivíduo com a droga e seu uso contínuo
(MAFtUM, 2008; PAIVA, rONzANI, 2009).

Consumo de substâncias e violência urbana

Dentre as condições sociais que cercam o consumo de


psicotrópicos, a violência, tanto doméstica quanto urbana, surge
como variável importante para se conhecer os desafios à todo pro-
jeto de política pública, em que o contexto social da cidade – con-
siderado o âmbito público e político da vida do indivíduo por
excelência – é posto em evidência. O problema, contudo, está para
além da violência empreendida pelo tráfico, mas envolve também
a relação entre o usuário e a rede de relações construídas pelo trá-
fico, bem como o comércio, cada vez mais descentralizado de pro-
dução, venda e consumo da droga. Nessa condição de mercado da
droga, o crack surge como figura de destaque, na medida em que
potencializa os lucros (principalmente pela quantidade, isto é, vo-

316
Avaliação das condições sociais do usuário de drogas: limitações, potencialidades, interesses e expectativas...

lume de venda, do que pela qualidade ou preço da droga) e recru-


desce os conflitos entre traficantes, chefes de boca, usuários e po-
lícia, instaurando o que se convencionou chamar de “guerra do
tráfico” (SAPOrI, SENA, 2012).
Neste sentido, o risco da violência associada ao uso de
drogas pode ser compreendido por aspectos distintos: pela violên-
cia do tráfico, vinculado à frequência do usuário de ambientes ur-
banos onde a violência é uma forma de exercer poder e manter a
ordem; pela violência proveniente de indivíduos sob o efeito de en-
torpecentes; e pelas muitas formas de violência, algumas mais sutis
do que outras, perpetuadas pelo usuário e por aqueles mais próxi-
mos que o cercam – a violência intrafamiliar, autoinfligida ou per-
mitida como recurso para compra da droga, como é o caso da
violência sexual fonte da prostituição para financiar a adição (SIL-
VEIrA et al., 2013a).
No caso da violência perpetuada pelo usuário, a investi-
gação de seu nexo causal, isto é, de que forma a violência é cons-
truída no contexto social desses indivíduos e quais são seus
provocadores – mostra uma rede complexa em que estão envolvi-
das: a) a fissura pela droga (e a angústia e ansiedade provocadas por
ela), b) as mudanças comportamentais causadas pela substância, e
c) a violência causada por outrem (familiares, amigos, polícia, pro-
fissionais de saúde, etc), física ou psicológica, decorrentes de uma
visão moralista e estigmatizante do usuário (MINAyO, DESLAN-
DES, 1998). Assim colocado porque a concepção moralista da adi-
ção ainda é uma realidade entre a população brasileira, tanto entre
o meio leigo (PELUSO, BLAy, 2008) quanto no meio acadêmico
(MARTINS et al, 2010), e que acaba por atribuir uma causalidade
moral para a doença do indivíduo – adjetivos como “drogado”,
“vaga-bundo”, “malandro”, etc, fazem parte de uma concepção
estereo-tipada da dependência química, ligada à falha de caráter ou
falta de força de vontade. Os resultados desse fenômeno de
estigmatização ou seja, o preconceito, por um lado, e a discrimi-

317
Manual de abordagem de dependências químicas

nação, por outro, especialmente entre profissionais de saúde,


implicam em barreiras: a) para a prevenção, no sentido de obstruir
a percepção sobre os reais causadores da drogadição, b) para o
tratamento, já que significam uma escuta enviesada do sujeito e
repleta de preconcepções sem fundamento clínico, e c) para a
promoção de uma ética de atenção integral, que considera os
processos sociais como participantes tanto na causalidade da
doença quanto na promoção da saúde (SILVEIrA et al., 2013b).

Perspectivas de reinserção social

Considerando-se as múltiplas condições sociais que cer-


cam o usuário de drogas no Brasil, que direções podem ser tomadas
a partir delas, tendo em vista a reinserção social do indivíduo? Antes
de mais nada, é preciso considerar a necessidade de se melhorar as
condições socioeconômicas que fomentam e contribuem para o
consumo de substâncias. O perfil sociodemográfico dos usuários
de crack e outras drogas indicam uma relação íntima entre condi-
ções de vulnerabilidade social: situação de rua, pobreza, baixa es-
colaridade, laços familiares inexistentes ou rompidos, vítimas de
violência e infração de direitos. Ainda que o consumo de substân-
cias exista em todos os estratos sociais, são nessas condições sociais
pauperizadas que ele tem um impacto maior nas políticas de saúde
pública. O indivíduo privado de direitos básicos, excluído social-
mente, deve ser o alvo primeiro das políticas de saúde sobre drogas.
A reinserção social, neste sentido, implica no reestabelecimento das
relações sociais positivas do sujeito, reconstruindo as perdas cau-
sadas pela droga e resgatando a noção de cidadania do usuário. Para
tanto, melhorar as condições socioeconômicas de contextos de po-
breza e violência é um importante passo para produzir a reinserção
social dos usuários de drogas presentes nesta população, preferen-
cialmente através da criação de uma legislação robusta e que abar-

318
Avaliação das condições sociais do usuário de drogas: limitações, potencialidades, interesses e expectativas...

que de forma efetiva os diferentes contextos sociais de proliferação


do consumo de substâncias, buscando eliminar os focos de desi-
gualdade social (MOrEttI-PIrES, CArrIErI, CArrIErI,
2008).
Por esses motivos, a reinserção social do usuário é um pro-
cesso longo e gradativo, que envolve a articulação dos poderes pú-
blicos com a família e sua (re) organização para existir como um
fator de proteção. Igualmente, envolve a articulação com a escola,
no caso de crianças e adolescentes, a sociedade e serviços públicos
de saúde. Em relação a esse último, faz-se necessária a contínua am-
pliação e sofisticação da rede de tratamento, aumentando seu es-
copo e ofertas de cuidado, permitindo um trabalho cada vez mais
individualizado e atento às particularidades de cada indivíduo em
seu contexto social mais amplo. Finalmente, no que se refere aos
profissionais de saúde que trabalham com a dependência química,
é de suma importância sua permanente capacitação para o trabalho.
Nesse ponto, ainda há um longo caminho a se seguir, já que nem
sempre os profissionais que trabalham na rede de atenção à saúde
estão preparados para abandonar certos modelos tradicionais de
cuidados baseados no biologicismo normalizador (MOrAES, 2008;
PINHO et al., 2009). Considerar as condições sociais do usuário de
drogas, portanto, significa considerar o sujeito de seu cuidado um
indivíduo atravessado por uma história, inserido em um meio social
que contribui para sua saúde ou seu adoecimento. Somente a partir
dessa compreensão, orientada por uma ética de atenção integral, é
possível transformar positivamente sua realidade social.

319
Manual de abordagem de dependências químicas

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323
Capítulo 22

Reinserção social em usuários de drogas:


conceito, princípios, estratégias e aplicações
Alessandra F. A. Assumpção
Ana Cecília Alves Cardoso
Monaliza Ângela Rocha
Sâmara Araceli Faria Araújo
Frederico Garcia

Introdução

A reabilitação psicossocial é um processo formado Reabilitação Psicossocial:


processo composto por ativi-
por um conjunto de atividades capazes de maximizar as dades capazes de maximizar as
oportunidade de recuperaçãoo
oportunidades de recuperação de indivíduos e minimizar de indivíduos e minimizar os
os efeitos desabilitadores da cronificação das doenças, efeitos desbilitadores da
cronificação das doenças.
por meio do desenvolvimento de insumos individuais, fa-
miliares e comunitários conforme a Organização Mundial
de Saúde (OMS, 2001). Assim estabelecida, a reabilitação
psicossocial torna-se uma condição imprescindível para
que o tratamento de dependentes químicos se dê de
forma efetiva. O conceito estabelecido pela OMS é um
parâmetro importante por ter alcance e abrangência mun-
diais, uma vez que não existe um consenso em relação à
caracterização desse termo.
É importante ressaltar que todo o tratamento dispen-
sado ao dependente químico, além de concomitante ao pro-
Manual de abordagem de dependências químicas

cesso de reabilitação psicossocial, deve ser acompanhado de


psicoterapia realizada por profissionais especializados e apoiado
pela farmacoterapia, conforme necessidade individual de cada
paciente.
Por meio desse texto, buscamos abordar algumas formas
de aplicação dos conceitos existentes em reabilitação psicossocial
no tratamento dos dependentes químicos, assim como no auxílio
para os seus familiares.

Objetivos da reabilitação psicossocial

Os objetivos principais da reabilitação psicossocial, se-


gundo a OMS (2001) e o Department of Health (England) and the de-
volved administrations (2007), são:

npromover o empoderamento dos dependentes químicos;


nprevenir e combater o estigma e a discriminação;
ndesenvolver competências pessoais e sociais dos dependentes;
ncriar um sistema de suporte integrado e continuado;
nrever regularmente os planos e objetivos do tratamento com o paciente;
nprover aconselhamento e informação a respeito do uso indevido de
drogas;
nrealizar intervenções no sentido de reduzir os danos relacionados ao
uso de drogas;
nprevenir recaídas;
najudar na resolução de problemas sociais, como problemas familiares,
habitacionais e empregatícios.

Uma característica importante da reabilitação psicossocial


é que ela pode ser desenvolvida nos mais diversos âmbitos em que
os dependentes químicos vulneráveis ou com algum tipo de com-
prometimento estejam inseridos, tais como na sua família, na co-
munidade e/ou nos diversos serviços que o dependente frequenta
(BACHrACH, 1992).

326
Reinserção social em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

Como a reabilitação psicossocial do paciente com


dependecia química objetiva, a sua integração à sociedade, faz-se
necessário também o preparo da própria comunidade a que ele
pertença, de forma que seja recebido sem discriminações e reta-
liações. É desejável que se crie um ambiente favorável e livre de
hostilidades para que ele possa desempenhar seu papel na
sociedade de maneira independente (BErtOLOtE, 2001). Isso
se dá por meio da valorização das características positivas do
paciente com dependencia química. Esta valorização deve ser
acompanhada do apoio de toda uma estrutura psicossocial de
longa duração, desenvolvida com o intuito de que a reinserção se
estabeleça de maneira sólida e dura-doura (SArACENO, 2006).
A reabilitação psicossocial deve ser desenvolvida para a
atingir os paceintes dependentes químicos de maneira bastante
particular. Deve-se considerar que cada paciente apresenta-se em
determinada situação específica e tem suas próprias peculiaridades.

Profissionais atuantes na área

Não há um consenso a respeito de qual profissão seria


mais adequada para a realização da reabilitação psicossocial. Ber-
tolote (2001), afirma que ainda não existe definição de profissões
nem habilidades profissionais ou sociais que abordem a
reabilitação psicossocial. O exercício da reabilitação é composto
por práticas fragmentadas efetuadas por diferentes profissionais,
construindo assim um processo complexo e multifacetado.
A literatura registra como profissões mais comuns na atua-
ção em ações de reabilitação psicossocial, psiquiatras, psicólogos,
enfermeiros, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais (JOrGE
et al, 2006; VILArES, 1999; BONADIO, 2010; MANOEL et al.,
2010). Saraceno (1996) propõe que a reabilitação psicossocial en-
volva todos os profissionais e atores envolvidos no processo de

327
Manual de abordagem de dependências químicas

saúde-doença: não só a equipe de saúde, como os seus usuários e


toda a comunidade.
Para um processo de reabilitação psicossocial ser efetivo,
é imprescindível a presença de pessoas treinadas que estejam
prontas a auxiliar a pessoa em recuperação a acreditar na sua real
possibilidade de mudança e melhora, nos momentos em que ela
venha a perder a confiança no processo e em si mesma
(ANtHONy, 1993). Percebe-se, assim, o valor do apoio familiar
e dos cônjuges, ao longo de todo o processo, uma vez que ele é
longo, contínuo e não linear (GAGNE et al., 2007).

A prática da reabilitação psicossocial

Vários princípios norteiam e auxiliam a prática da reabili-


tação psicossocial, embora não exista um consenso em torno de
sua padronização. tal peculiaridade deve-se ao fato de que os pro-
jetos terapêuticos e os programas de reabilitação propostos são de-
senvolvidos para serem aplicados a diferentes indivíduos, caso a
caso. Sendo assim, deve sempre ser elaborada uma proposta con-
dizente com as particularidades do dependente químico e do meio
em que ele se encontra. ressalta-se novamente que é desejável que
todo o processo seja realizado por uma equipe multiprofissional,
de modo que a intervenção seja feita da maneira mais completa e
eficiente possível (SArACENO, 2006).
Normalmente, o processo inicia-se com uma abordagem
voltada ao indivíduo, na qual deve ser realizada uma detalhada
anamnese, seguida por exames clínicos apropriados. É imprescin-
dível que nesse momento o profissional não se restrinja ao enfoque
biológico e patológico da condição do dependente químico. Deve-
se iniciar, então, uma avaliação psicossocial sistemática e abrangente,
na qual possa ser estabelecida uma relação das condições físicas
com toda a história de vida do indivíduo, bem como com suas ca-

328
Reinserção social em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

racterísticas pessoais e com o meio onde vive. Essas informações


serão de fundamental importância para a construção de um plano
terapêutico individual a ser estabelecido e seguido.
Uma estratégia relevante durante toda a abordagem é a
tentativa de resgatar a auto-estima do paciente com dependecia
química, já que normalmente, neste momento, ele sente-se
desvalorizado e inferiorizado devido à posição em que se encontra
diante da sociedade (Anthony, 1993). Priorizar os pontos fortes e
positivos do paciente que está em sofrimento psíquico é
importante para que ele consiga ver-se novamente como alguém
capacitado e útil à comunidade. Isto diminui seu sentimento de
desvalorização, que muitas vezes é reflexo da forma como ele
passa a ser tratado pelas outras pessoas de maneira geral.
A avaliação inicial do paciente pode ainda utilizar
questionários padronizados, que são importantes ferramentas usa-
das com o intuito de estimar, de forma mais precisa, o grau de com-
prometimento do indivíduo (BONADIO, 2010). A partir do
somatório dessas informações pode-se determinar qual o melhor
plano terapêutico a ser seguido.
Dentre os questionários utilizados encontra-se a UrICA
(University of Rhode Island Change Assesment), que foi formulado para
a aplicação em usuários de substâncias ilícitas, tais como maconha,
cocaína, crack e solventes, com o objetivo de avaliar o aspecto mo-
tivacional de mudança comportamental do indivíduo. Outro ques-
tionário bastante útil nessa abordagem é o SF-36 (Medical Outcomes
Study36 – Item short – Form Health Survey) que visa uma avaliação
geral da qualidade de vida do paciente. É possível ainda a aplicação
do ASI-6 (Addiction Severity Index), uma escala de gravidade e de in-
tensidade da dependência química, que consiste em uma entrevista
semiestruturada desenvolvida pelo Center for Studies of Addiction da
Filadélfia, EUA, e que é entendida como a avaliação do grau de
complicações decorrentes do abuso e da dependência de drogas.
Avalia, ainda, os efeitos do uso dessas substâncias na ocupação, nas

329
Manual de abordagem de dependências químicas

relações sociais e na saúde do indivíduo. Constitui um instrumento


clínico padronizado, de alta confiabilidade e sensibilidade, no exame
do perfil do dependente químico e da severidade de seus problemas
em diferentes contextos.
Seguindo a avaliação inicial, uma ampla gama de recursos
pode ser utilizada nas práticas de reabilitação, como elementos me-
diadores desse processo: psicoeducação, reabilitação vocacional,
grupos operativos, oficinas terapêuticas, atendimento familiar e su-
porte social (OMS, 2001; BONADIO, 2010). As intervenções ar-
tísticas também constituem uma estratégia terapêutica usada na
reabilitação de dependentes químicos (VALENtE, 2005). tais re-
cursos estão dispostos a seguir, na Tabela 1.

Tabela 1
Estratégias e técnicas utilizadas na prática da reabilitação
psicossocial para dependentes químicos
TÉCNICA DESCRIÇÃO

Psicoeducação • Intervenção em que o paciente recebe informações sobre a etiologia do seu diagnóstico,
como funciona, as possibilidades de tratamento, o prognóstico, dentre outras (COLOM, 2004);
• Visa tornar o dependente químico um colaborador ativo, aliado dos profissionais de saúde
(JUSTO & CALIL, 2004);
• Instrumentos: esclarecimentos, folders educativos, livros com linguagem acessível a leigos,
filmes, etc;
• Busca-se a auto-identificação de pensamentos e comportamentos disfuncionais e/ou
distorcidos que gerem sofrimento e aflição e o conhecimento das consequências e fatores
desencadeantes e mantenedores dos problemas (FIGUEIREDO, 2009).

Reabilitação vocacional • Processo destinado a auxiliar o dependente químico a retomar e manter uma atividade
produtiva, segundo suas possibilidades (MOWBRAY et al, 1997);
• Trabalha-se em torno da postura de prontidão para o trabalho, da empregabilidade
(capacidade de funcionamento adequado da pessoa frente a uma situação de trabalho) e da
superação de barreiras ao trabalho (baixo nível de escolaridade, poucas oportunidades locais
de emprego, estigma dos empregadores);
• Objetiva-se o desenvolvimento e aperfeiçoamento educacional e pessoal, treinamento de
habilidades voltadas para o retorno ao mercado de trabalho – elaboração de currículos,
preparação para entrevistas e pesquisa de vagas disponíveis (BONADIO, 2010).

Grupos operativos • Técnica de trabalho em grupo que propicia um aprendizado aos participantes por meiode uma
leitura crítica da realidade, com postura de investigação, com abertura para dúvidas e inquietações;
• Os participantes assumem diferentes papéis e posições diante das tarefas propostas,
contando com a presença de um:
a) coordenador - que faz intervenções, indagações, problematizações, estabelece articulações entre
as falas dos participantes e direciona o grupo para a realização das tarefas;

330
Reinserção social em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

TÉCNICA DESCRIÇÃO

Grupos operativos b) observador - registra o que ocorreu no encontro, faz o resgate da história do grupo e, posterior-
mente, analisa os pontos emergentes, a movimentação do grupo em torno das tarefas e os papéis
assumidos pelos participantes (Bastos, 2010).

Oficinas terapêuticas •Realização de atividades em grupo que proporcionam aos participantes a expressão de sentimen-
tos e problemas, a realização de atividades produtivas e a prática da cidadania;
•São promotoras da socialização e da inserção social;
•Destacam-se as oficinas expressivas (expressão plástica, corporal, verbal e musical)
e as oficinas de atividades geradoras de renda (MINISTÉRIO DA SAÚDE - BRASIL, 2004).

Arte terapia •O uso da arte como terapia consiste na elaboração de material artístico sem preocupação es-
tética, mas com a finalidade de expressar sentimentos, com caráter catártico;
•Possibilita que o indivíduo se reorganize internamente, através do caráter regenerador da arte;
•Pode ser manifestada sob a forma de pintura, música, teatro, dentre outras (VALENTE, 2005).

Atendimento familiar •Devido às dificuldades e imposições requeridas para cuidar do familiar, faz-se necessária
à disponibilização de apoio e orientação aos familiares do dependente químico;
•Terapia familiar e visitas domiciliares (observação do relacionamento familiar e
identificação de membros chaves no processo de reabilitação) são algumas das
estratégias utilizadas (JORGE et al, 2006).

Suporte social •A rede social é o conjunto de vínculos e intercâmbios interpessoais do dependente químico,
cujo reconhecimento permite o planejamento de intervenções a serem realizadas até mesmo
por ele próprio, com o objetivo de ativá-las, desativá-las ou mobilizá-las para fazer conexões
que norteiem novas possibilidades (BONADIO, 2010);
•A rede se compõe de pessoas que o cercam, tais como a família, vizinhos, colegas de trabalho,
profissionais de saúde, pessoas da comunidade, etc (SOUZA et al, 2006);
•As redes sociais influenciam a auto-imagem do indivíduo e são fundamentais na sua
percepção de identidade e competência (CAVALCANTE et al, 2012).

A família

A família tem um papel essencial, espera-se que ela se


estabeleça como um local de proteção, suporte, acolhimento,
desenvolvimento pessoal e interação entre o indivíduo e o meio
que o cerca, podendo proporcionar-lhe uma melhor qualidade de
vida (ANÉIS, 2009). Deve-se estimular a participação efetiva da
família, estabelecendo, assim, estratégias de intervenção mais
amplas, que podem ser abordadas e trabalhadas as demandas
tanto dos familiares quanto dos indivíduos em processo de rea-
bilitação (BIELEMANN et al., 2009; LIND,1997).
O entorno familiar precisa ser envolvido no tratamento
para que forneça o suporte requerido ao paciente com
dependencia química.
331
Manual de abordagem de dependências químicas

Além disso, a manutenção de uma rede social de apoio dentro da


comunidade pode minimizar sentimentos de exclusão gerados pelo
preconceito, discriminação e estigmatização (MAGLIANO et al.,
2002; MAGLIANO et al., 2006, ANÉIS, 2009, tHOItS, 1995). A
rede social pode também agir na facilitação do processo de adapta-
ção da família às dificuldades e imposições requeridas para cuidar
do familiar que é dependente químico (ANÉIS, 2009).

Síntese dos principais tópicos em reabilitação psicossocia

Na Tabela 2 estão sintetizados os principais tópicos refe-


rentes à reabilitação psicossocial: definição, objetivo geral, onde rea-
lizar, como realizar, profissionais atuantes no processo e estratégias
de prática.

Tabela 2
Síntese dos principais tópicos em reabilitação psicossocial
Definição • Processo formado por um conjunto de atividades capazes de maximizar as
oportunidades de recuperação de indivíduos e minimizar os efeitos desabilitadores
da cronificação das doenças, por meio do desenvolvimento de insumos individuais,
familiares e comunitários.
Objetivo geral • Oferecer aos indivíduos a oportunidade de alcançar ótimo nível de funcionamento
na comunidade.
Onde realizar • Deve ser desenvolvida nos diversos âmbitos em que os dependentes químicos
vulneráveis ou com algum tipo de comprometimento estejam inseridos, tais
como a família, a comunidade e os serviços sociais, no geral.
Quando realizar • Ocorre concomitantemente à psicoterapia e à farmacoterapia.
Profissionais atuantes • Sugere-se uma equipe multidisciplinar
no processo
Prática • Elaboração de um plano terapêutico individual, composto de avaliação inicial
e uso de diversas estratégias terapêuticas (ver tabela 1)

332
Reinserção social em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

Considerações finais

A partir do exposto, observa-se que a reabilitação psicos-


social deve ser feita ao longo de todo o tratamento do paciente
com dependencia química. A reabilitação não deve ser vista
apenas como uma ferramenta complementar ao processo de
tratamento, mas como parte integrante do tratamento. Ela deve
ocorrer, simultaneamente, à psicoterapia e à farmacoterapia, visto
que as doenças mentais crônicas, como a dependência química,
necessitam de uma abordagem terapêutica abrangente.
Não existe consenso em torno da padronização da
prática da reabilitação psicossocial, uma vez que o plano
terapêutico é ela-borada de forma individual, de acordo com as
particularidades de cada dependente químico. O processo começa
por uma avaliação inicial, por meio de anamnese detalhada,
exames clínicos e utilização de escalas. Ele segue com a
possibilidade de se utilizar diversas estratégias terapêuticas, dentre
as quais psicoeducação, reabilitação vocacional, grupos operativos,
oficinas terapêuticas, atendimento familiar, suporte social e arte
terapia. Conta-se ainda com as instituições governamentais e da
sociedade civil que podem atuar nesse processo.
Conclui-se que a definição, os conceitos e as estratégias
do processo de reabilitação psicossocial não estão completamente
consolidados, o que o torna um campo de novas práticas e um alvo
promissor de pesquisa.

333
Manual de abordagem de dependências químicas

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336
Capítulo 23

Gerenciamento de casos em usuários de drogas:


conceito, princípios, estratégias e aplicações
Alessandra F. Almeida Assumpção
Maíra Glória de Freitas Cardoso
André Augusto Corrêa de Freitas
Frederico Garcia

Introdução

O gerenciamento de caso se consolidou nos Estados Uni-


dos na década de 1990. Em um contexto de fortalecimento de prin-
cípios neoliberais, relacionados à competitividade, à eficiência na
produtividade e à redução de custos, alguns reflexos importantes
puderam ser observados no sistema de saúde, tais como: fragmen-
tação de serviços, mudanças nas políticas de cobertura e de reem-
bolso, dentre outras. O gerenciamento de caso, nessa conjuntura
político-econômica, é uma alternativa para a prestação de serviços
de saúde. Decorrem diretamente dessas mudanças político-
econômicas duas das principais características do gerenciamento
de caso: a oferta de serviços de atenção à saúde dentro de uma
rede multiprofissional e a ênfase na redução de gastos (CA-
SArIN, 2003; GONzALES, 2003; MArSHALL, 1995).
A estrutura do gerenciamento de caso envolve o trabalho
de uma organização de saúde com uma rede multidisciplinar de
profissionais, dentre os quais um profissional é escolhido para ser
Manual de abordagem de dependências químicas

o gerente de caso (GONzALES, 2003), isto é: um profissional se


torna a referência de um determinado paciente, tanto para a equipe
multidisciplinar que o acompanha quanto para o paciente em ques-
tão. O gerente de caso é responsável por acompanhar todo o pro-
cesso de tratamento do paciente, determinando as necessidades do
mesmo, avaliando a disponibilidade de recursos, se atentando para
o bom uso desses e coordenando a integração do tratamento dentre
os diversos componentes da rede de atenção. Além disso, o geren-
ciamento de caso permite uma atenção individualizada à saúde do
paciente e de suas necessidades, o que torna a assistência mais pró-
xima e mais acessível, proporcionando maior aderência e continui-
dade ao tratamento. Alguns estudos como os de McLellan (1999),
Schwartz (1997) e rosen & teeson (2001) apontam a contribuição
do gerenciamento de caso no aumento da aderência e da eficácia
do tratamento.
O gerenciamento de caso estabelece ligações entre pacien-
tes e prestadores de serviços, tenta obter um atendimento mais
apropriado e com custo efetivo para o paciente (GIrArD, 1994),
facilitando acesso ao cuidado, tanto logística quanto financeira-
mente. Para que sua implementação seja resolutiva, é necessária a
interligação dos sistemas de informação e comunicação, que visam
articular a rede de atenção do dependente químico, de modo a mi-
nimizar a fragmentação de serviços e os gastos desnecessários,
melhorando simultaneamente a qualidade e a continuidade do
cuidado.
Este capítulo tem como objetivo discutir o gerenciamento
de caso no tratamento da dependência química. Para tanto, iremos
abordar as evidências de efetividade, delinear o papel do gerente de
caso e indicar como esse processo pode ser feito.

338
Gerenciamento de casos em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

População Alvo

O gerenciamento de caso tem sido apontado como uma


abordagem efetiva no tratamento de grupos específicos, especial-
mente em populações afetadas por doenças crônicas ou por co-
morbidades. Para citar alguns exemplos, o gerenciamento de caso
é utilizado no tratamento de idosos, dependentes químicos, pacien-
tes psiquiátricos crônicos, pacientes soropositivos, deficientes físi-
cos e mentais (desenvolvimentais ou adquiridos), populações de
vulnerabilidade social, dentre outros – em suma, populações que
requerem cuidados extensivos, com grande volume de recursos,
readmissões recorrentes, ou procedimentos complexos (CASArIN,
2003; MArSHALL, 1995; POWELL, 1996; FIGLIE & LArAN-
JEIrA, 2004).
Nestas populações, apesar de os pacientes terem uma
doença crônica que exige tratamento e cuidados contínuos, devido
ao estado de saúde estável, a internação hospitalar é desnecessária
e acarreta um alto custo (BEM FILHO, 2007). Dessa forma, o ge-
renciamento de caso pode prover um acompanhamento adequado
a esses pacientes, com menor custo, promovendo continuidade do
tratamento e consequente melhoria da qualidade de vida do pa-
ciente gerenciado (BEM FILHO, 2007).
Vários modelos de gerenciamento de caso são observados
na literatura. todavia, nenhum modelo é considerado melhor ou
mais efetivo que o outro. Cada modelo será mais adequado a de-
terminado tipo de população e à sua necessidade de acesso aos
serviços. Entretanto, faltam estudos que comprovem quais
modelos são mais efetivos para determinadas populações (HALL,
2002).

339
Manual de abordagem de dependências químicas

O gerente de caso

O trabalho do gerente de caso é exercido em diversos am-


bientes. Eles podem ser encontrados em instituições hospitalares
ou comunitárias, no trabalho domiciliar e até mesmo como repre-
sentantes de organizações de serviços de saúde, atuando para gerir
os cuidados prestados aos beneficiários dessas organizações.
Mesmo instituições que não se identificam como adeptas ao geren-
ciamento de caso, acabam adotando algumas práticas preconizadas
por esse método.
Parte da literatura aponta o enfermeiro como profissional
mais adequado para atuação como gerente de caso (GONzALES,
2003; CASArIN, 2001) já que se trata de um profissional com
ampla atuação clínica, tratamento holístico, cuidado básico,
contato mais constante com o paciente e com sua família. Além
disso, por conhecer os demais serviços de saúde, ele é indicado
para orientar encaminhamentos dentro da rede de atenção ao
dependente químico. Outros profissionais com forma-ção
acadêmica como assistente social, psicólogo e terapeuta ocu-
pacional, que possuam esses conhecimentos, também são
adequados para ocupar o papel de gerente de caso. Junto à for-
mação acadêmica, o perfil ideal de um gerente de caso é com-
posto por bom conhecimento e experiência em dependência
química, conhecimento das características da população local e
da rede de serviços, prontidão para investigar os diferentes do-
mínios da vida do paciente e compromisso com a filosofia do
serviço em que atua (FIGLIE & LArANJEIrA, 2004).
Se por um lado a formação acadêmica é desejável, ela não
é essencial. Em termos gerais, o gerente de caso deve ter amplo co-
nhecimento na área da saúde e conhecimento específico do trata-
mento da dependência química. Ele tem de estar integrado à equipe
de trabalho, e aos demais serviços de saúde, devendo ser referência
no contato do paciente com os demais profissionais, conhecendo

340
Gerenciamento de casos em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

e viabilizando as necessidades do mesmo. Profissionais como agen-


tes comunitários dos programas de saúde da família, por exemplo,
podem exercer essa função, com o treinamento adequado e atuar
no contexto da dependência química. O principal requisito é que
esse profissional, independente de formação, manifeste disponibi-
lidade para escutar e auxiliar o paciente, além de demonstrar sensi-
bilidade e sincronia quanto às necessidades do mesmo.
Seus deveres incluem: a avaliação inicial precisa das neces-
sidades do paciente e a reavaliação delas ao longo do processo de
tratamento; o planejamento individualizado das etapas do trata-
mento, delineando objetivos, pontos fracos a serem trabalhados e
pontos fortes a serem aproveitados; assegurar a qualidade e o custo
efetivo dos serviços prestados, planejando e avaliando o uso desses
recursos além da reelaboração do plano de tratamento e das formas
de atenção, quando necessário (GONzALES, 2003; FIGLIE &
LArANJEIrA, 2004).
É importante ressaltar que o gerenciamento de caso (case
management) é diferente do cuidado gerenciado (managed care). Este,
apesar de ter alguns objetivos e práticas em comum ao
gerenciamento de caso (como a qualidade dos serviços e a redução
dos custos) apresenta como objetivo principal, o gerenciamento
financeiro dos recursos de saúde, incentivando o uso inteligente
dos recursos, desincentivando práticas caras e desnecessárias e
visando o financiamento e prestação de serviços na área da saúde.
No gerenciamento de caso, o foco é estabelecer a articulação entre
o paciente e a rede de apoio, visando melhor custo-benefício no
tratamento para o paciente e para sua família (GONZALES, 2003;
BEM FILHO, 2007).

341
Manual de abordagem de dependências químicas

Funções do gerente de caso

A avaliação inicial deve abordar o histórico clínico do pa-


ciente, observando especialmente as consequências do abuso de
drogas (tanto na saúde física, quanto no âmbito social e psicoló-
gico). Deve também estar atento para as situações de uso e possíveis
gatilhos individuais que aumentam o risco de uso pelo paciente.
Esse primeiro contato, segundo Figlie & Laranjeira (2004), deve
também:

1. Criar a aliança terapêutica e estimular o paciente a se empenhar no


tratamento;
2. Compreender o contexto no qual o paciente começou a usar droga
e no qual a dependência química se instalou;
3. reconhecer os fatores que propiciaram o surgimento da depen-
dência;
4. Identificar elementos que ajudam a sustentar a dependência;
5. reconhecer motivações e fatores para promover a abstinência;
6. Coletar e examinar dados para estabelecer a hipótese diagnóstica.

Especificamente no gerenciamento de caso de dependen-


tes químicos, Marshman (1978) cita algumas funções do gerente de
caso.

1. Fornecer suporte individualizado aos pacientes e seus familiares:


pode-se prover tal suporte de forma particular ou numa abordagem
conjunta, através de terapias em grupo e do estabelecimento de redes
de apoio. Elas permitem ao paciente ter um suporte muitas vezes, ine-
xistente em suas relações familiares e socioafetivas – pela redução
quantitativa e qualitativa que as caracteriza. Além de ser uma alterna-
tiva com custo mais efetivo, esse tipo de atividade oferece chances
para a troca de experiências e para apoio mútuo na prevenção de re-
caídas, por exemplo.
2. Auxiliar o paciente na solução de problemas: devido ao compro-
metimento cognitivo (principalmente de funções executivas) e ao au-
mento da impulsividade típico de dependentes químicos, o gerente
de caso deve auxiliar o paciente para a tomada de decisões conscientes
342
Gerenciamento de casos em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

e ponderadas. Deve-se tomar o cuidado de não influenciar a decisão


do indivíduo, mas, ao contrário, promover uma avaliação criteriosa de
prós e contras, a partir da visão do sujeito.
3. Auxiliar no suporte da família e empregabilidade do paciente: o de-
pendente químico, tanto pelos efeitos diretos quanto indiretos da
droga inicia seu processo de recuperação com dificuldades de intera-
ção social, baixa de auto estima e, frequentemente, prejuízos cogniti-
vos. Dependendo do período de uso, esses prejuízos se estendem para
as áreas técnicas em que o indivíduo atuava profissionalmente; ainda
há casos em que o sujeito inicia o uso na adolescência ou juventude
e nunca desenvolveu essas habilidades técnicas e profissionais. A in-
serção no mercado de trabalho é dificultada por esses fatores e pelo
estigma social da dependência química. O gerente de caso deve faci-
litar o acesso do paciente a cursos técnicos (principalmente aqueles
de financiamento público), orientá-lo na procura de um emprego,
estar atento para possíveis vagas em empresas parceiras de sua insti-
tuição de saúde, dentro das capacidades e necessidades do indivíduo.
A atuação de assistentes sociais é valiosa nesse ponto, além de profis-
sionais que trabalham com orientação profissional.
4. Facilitar o acesso entre o paciente e o tratamento: além da necessi-
dade de articular o tratamento do paciente, com os profissionais den-
tro da rede de atendimento, é recomendável que o gerente de caso
coloque programas de ajuda mútua dentro de seu alcance. Pode ser
necessário, inclusive, ajudar o paciente no transporte até esses locais.
5. Facilitar o acesso do paciente à interconsultas para tratamentos es-
pecíficos em caso de necessidade: o gerente de caso deve, também
atuar em relação às demandas de saúde geral (clínico-hospitalares) do
indivíduo, principalmente aquelas relacionadas às consequências do
uso da droga. Não havendo possibilidades de encaminhamento den-
tro do próprio serviço, ele deve ajudar o paciente na obtenção de um
encaminhamento para a consulta adequada, preferencialmente com
profissionais já experientes no tratamento desse público. Deve haver
comunicação entre o gerente e o profissional, de modo que ele possa
atentar-se a problemas que o gerente de caso identificar como rele-
vantes.
6. Manter-se alerta às mudanças nas necessidades e problemas do pa-
ciente durante o curso do tratamento: a avaliação e reavaliação do pa-
ciente deve ser um processo contínuo, permitindo flexibilidade no
tratamento conforme avanços e retrocessos. O gerente de caso deve
estar sensível a tais modificações, de modo a promover a máxima efi-

343
Manual de abordagem de dependências químicas

ciência no tratamento.
7. Garantir ao paciente que ele poderá ser contatado e encorajado a
retornar ao tratamento em caso de abandono: o gerente deve ser um
articulador entre o paciente e a rede de apoio, de modo que retroces-
sos sejam identificados rapidamente. Caso ocorram recaídas, é im-
portante que o paciente entenda que ele não é o único a passar por
essa situação e que a equipe do serviço de saúde, continua disposta a
ajudá-lo em sua recuperação.
8. reforçar e dar continuidade ao processo de tratamento, em modo
menos intensivo, dando seguimento ao tratamento no sentido de for-
necer suporte na reabilitação psicossocial do paciente na comunidade,
identificando precocemente futuras dificuldades.

Redução de danos

Na redução de danos, o objetivo é ajudar o paciente a


fazer um uso mais controlado da droga, reduzindo fatores que pos-
sam causar maiores prejuízos aos usuários, como o uso de
seringas contaminadas (que aumenta as chances de contaminação
por HIV ou hepatite). Os gerentes de caso podem usar dessa
estratégia como foi relatado por tiderington (2013), que realizou
uma pesquisa qualitativa sobre o uso da redução de danos por
gerentes de caso. A abordagem utilizada pelos gerentes incluía
primeiramente criar uma aliança, um vínculo de confiança com o
usuário. A proposta da redução do uso de substâncias somente foi
abordada quando o usuário apresentava abertura para conversar
abertamente sobre o assunto. Na percepção dos gerentes de caso,
o vínculo foi essencial para possibilitar a intervenção e oferecer ao
usuário os recursos disponíveis na rede para que a redução do uso
e o tratamento ocorressem (tIDErINGtON, 2013).

344
Gerenciamento de casos em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

Família

No gerenciamento de caso, o ideal é que o paciente não


seja atendido de forma isolada, mas com participação da família,
na qual este indivíduo está inserido e com quem geralmente apre-
senta maior convivência. Em um estudo no qual a família foi alvo
de intervenção com o paciente, houve diminuição significativa da
severidade do uso de substâncias em relação ao grupo que recebeu
intervenção focada somente no paciente (SANtIS, 2013). Outro
estudo realizado por reinaldo & Pillon (2008) aponta a importância
de se trabalhar com a família do dependente químico e no aumento
da aderência e da eficácia do tratamento.

Efetividade do gerenciamento de caso

A efetividade do gerenciamento de caso é alvo de discus-


sões. Por um lado, há análises que assinalam para resultados não fa-
voráveis do gerenciamento de caso, ao levar a um aumento do
número total e do tempo total de internações em pacientes psiquiá-
tricos graves (MArSHALL, 1996; tyrEr, 1995). Ainda assim, é
possível ressaltar que o gerenciamento de caso é capaz de aumentar
o sucesso na manutenção de contato com o paciente (tyrEr,
1995).
Outro estudo do próprio Marshall (1995) aponta que não
há diferenças significativas em internações entre pacientes subme-
tidos ao gerenciamento de caso e aqueles que participam do trata-
mento controle. Há melhoras em termos de psicopatologia,
qualidade de vida, comportamento social, dentre outros, mas a re-
dução significativa se dá no nível de comportamento desviante.
Por fim, há publicações que evidenciam resultados pro-
missores do gerenciamento de caso no trabalho com dependentes
químicos, como: melhorias relativas ao uso de álcool, nas relações

345
Manual de abordagem de dependências químicas

familiares, nas condições de saúde e nas questões legais – através


de uma maior disponibilidade de serviços que ocorre pela articula-
ção do gerente de caso com a rede de apoio (MCLELLAN, 1999).
São observados também: a redução de readmissões para desintoxi-
cação/redução de recaídas; a melhora do paciente em menor
prazo e de redução de custo no tratamento (SCHWArtz, 1997).

Considerações finais

O gerenciamento de caso é uma estratégia valiosa no tra-


tamento de pacientes com demandas crônicas e de custo elevado,
circunstância presente no tratamento de dependentes químicos. tal
tratamento é um processo que exige continuidade e disponibilização
de diversos serviços para o paciente, processo que pode tornar-se
mais eficiente em termos financeiros e de resultado, através do ma-
nejo de recursos e do papel articulador exercido pelo gerente de
caso.
Além do benefício relativo à eficiência, o gerenciamento
de caso oferece a oportunidade para criação de um profissional de
referência na rede de apoio do paciente: o próprio gerente de caso.
Uma aliança terapêutica bem estabelecida é chave para esse papel
referencial. Por fim, é importante ressaltar que o gerenciamento de
caso é mais uma possibilidade no tratamento da dependência quí-
mica. Há diversos formatos, que, se por um lado, têm eficiência
comprovada, nem sempre são ideais para um paciente. São neces-
sários novos estudos para direcionar modelos mais eficazes para
populações específicas.

346
Gerenciamento de casos em usuários de drogas: conceito, princípios, estratégias e aplicações

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348
Capítulo 24

Redução de danos no Brasil:


desafios e perspectivas
Lívia Guimarães Pires
Moisés de Andrade Júnior

Introdução

Os problemas oriundos do consumo de substância vão


muito além de seus efeitos negativos na saúde, mas impactam de
forma diversa o campo social e político, sendo dependentes de
contextos sociais e culturais diversos, variando de frequência e
intensidade. A multiplicidade destas formas de consumo de drogas
e as abordagens diferenciadas para cada caso, portanto, obrigam
os diversos saberes da atualidade a rever paradigmas de prevenção
e tratamento nos quais foram pautados até então.

Contextos sociopolíticos da redução de danos

transpondo a questão epidemiológica do consumo de


substâncias para seus efeitos no usuário, cada vez mais considera-
se o tema a partir dos impactos causados pela substância na saúde
do indivíduo, ou seja, os prejuízos biológicos, psicológicos e sociais
causados pela droga. Dentro dessa concepção, inaugurada junta-
mente com a instalação do SUS no Brasil e desenvolvida a partir
Manual de abordagem de dependências químicas

daí, a saúde passa a ser considerada muito além da ausência da


doença (e sua manutenção, a cura de doenças), e sim um processo
socialmente constituído e determinado, em que a saúde e sua pro-
moção dependem de condições socioeconômicas favoráveis, acesso
a bens e serviços variados (sem se resumir a bens e serviços de
saúde) e uma rede de atenção descentralizada e intersetorial, exi-
gindo uma reorganização da formação dos profissionais de saúde
e sua compreensão do processo saúde-doença (MACHADO et al.,
2007). A importância desta concepção de saúde, que sustenta o pro-
pósito do SUS e suas competências, como a vigilância sanitária, tem
uma importância dupla para o tema aqui tratado: em primeiro lugar,
porque institui um modelo de atenção integral, regionalizado e des-
centralizado de atenção ao usuário de álcool e outras drogas, ba-
seado no modelo dos CAPS, na contramão de um modelo
preconceituoso, excludente e hospitalocêntrico (MOrAES, 2008);
em segundo, porque passa a conceber o usuário de substâncias den-
tro de um paradigma muito mais amplo do que a busca pela ausên-
cia do consumo (abstinência) como indicativo de saúde,
considerando outros fatores contextuais para a promoção da saúde
e oferecendo subsídios norteadores para diversas (e mais flexíveis)
políticas de prevenção.
Dentro desta concepção ampliada do processo saúde-
doença, e, por conseguinte, partindo de uma compreensão mais so-
cial e inclusiva do usuário de substâncias, um dos debates que se
institui a partir daí gira em torno da própria definição da depen-
dência pela substância e das competências para tratá-la, em que as
fronteiras que definem o conceito de dependência química ainda
não se encontram tão claras. Neste sentido, ainda que a dependência
de substâncias seja categorizada pelo discurso médico como uma
doença mental e comportamental (OMS, 1993), sua compreensão
fora da esfera biológica permanece complexa e multifatorial, cer-
cada por discursos éticos, políticos, sociais e teóricos variados, in-
viabilizando um discurso único sobre sua definição, bem como uma

350
Redução de danos no Brasil: desafios e perspectivas

solução universal que atenda todos os casos e contextos de con-


sumo. Dentre os muitos discursos sobre o usuário e a droga, en-
contra-se aquele pautado na compreensão moral da substância e de
seu usuário, muitas vezes classificado como “drogado”, “vaga-
bundo”, incapaz de superar seu consumo compulsivo devido à sua
própria fraqueza moral. Muitas vezes, próximo dessa concepção
moral sobre o fenômeno, encontra-se o discurso sobre o
“combate às drogas”: a substância vista como um mal a ser
combatido; pautado, portanto, na repressão do tráfico, do
consumo e, consequentemente, do usuário (BUCHEr &
OLIVEIrA, 1994). Dentro dessa perspectiva, ele é considerado
um sujeito desviante da ordem social vigente, por sua vez, por
uma concepção sanitarizada da sociedade: trata-se de um modelo
de abordagem que exclui, em princípio, a atenção à saúde do
indivíduo que consome substâncias, apoiando-se exclusivamente
na proibição e criminalização do consumo. Portanto, para que as
políticas de redução de danos pudessem ser levadas a cabo, além
da mudança de paradigma sobre o processo saúde-doença, foi
preciso ultrapassar também esta con-cepção moral da drogadição
– uma mudança que foi efetuada no campo do direito.
Neste sentido, a lei 11.343/2006, responsável por insti-
tuir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, re-
presentou um importante marco legal para o tratamento do
usuário de drogas, abrindo espaço para sua compreensão por ou-
tros discursos e poderes que não o da segurança pública. A di-
ferenciação entre tráfico e consumo, traficante e usuário,
permitiu que este fosse alvo de políticas públicas de saúde e as-
sistenciais, na tentativa de tratar o consumo, seus efeitos preju-
diciais e reintegrar o usuário em suas relações sociais, em um
trabalho de atenção integral e organizado em rede. A aprovação
desta lei pelo Congresso Nacional, por sua vez, proporcionou vi-
tórias inquestionáveis para a redução de danos, tornando mais
claras as possibilidades de implementação de programas de trocas

351
Manual de abordagem de dependências químicas

de seringas sem que se façam acompanhar de problemas jurídico-


policiais (BAStOS & MESQUItA, 2010).
Passa-se, portanto, a reconhecer os efeitos das drogas para
a saúde do indivíduo e a importância de oferecer um tratamento.
Para além do tratamento, a prevenção ao consumo de drogas as-
sume outro papel importante na abordagem do usuário de subs-
tâncias, pautada pela importância da educação do indivíduo sobre
os efeitos de seu consumo, a criação de bens e serviços de saúde,
esportivos, culturais, artísticos, profissionais, dentre outros, como
alternativas ao uso de substâncias, bem como o fortalecimento da
autonomia e responsabilidade do sujeito frente ao seu próprio con-
sumo (art. 19).
Esta mudança de pensamento – da repressão do usuário
para sua descriminalização para a atenção integral à sua saúde – não
significou, contudo, a descriminalização da substância; tampouco
apagou completamente o discurso de combate e guerra às drogas,
mas permitiu avanços para a compreensão do usuário, as múltiplas
razões e contextos de seu consumo e, como consequência, abriu o
debate para as múltiplas possibilidades de intervenção.

A redução de danos como modelo de atenção


ao usuário de álcool e outras drogas
Redução de danos: políticas
e programas estruturados com Dentre os modelos de atenção ao usuário de
o propósito de reduzir as con-
seqüências adversas em substâncias, a redução de danos ocupa um papel importante
saúde, sociais e econômicas de
drogas utilizadas para alter- nas políticas públicas brasileiras de saúde atuais, e repre-
ação do humor, estados de
consciência e percepção. A re-
senta um avanço significativo no que diz respeito aos di-
dução de danos pode com- reitos humanos do usuário. Contudo, trata-se de uma
preender: (1) abstinência ou
redução do consumo de dro- abordagem que ainda fomenta críticas e resistências às
gas; (2) prevenção da trans-
missão do HIV e outras
suas propostas de trabalho, em tantos casos devido à in-
infecções / doenças entre compreensão plena de seus pressupostos e bases, tanto
usuários de drogas injetáveis;
(3) uso de drogas menos teóricas quanto éticas.
danosas em substituição àque-
las mais danosas.
352
Redução de danos no Brasil: desafios e perspectivas

A política de redução de danos (rD) não é uma experiên-


cia unicamente brasileira, mas é aplicada com sucesso variável em
diversos países, sendo uma de suas tantas propostas oferecer uma
saída viável e sustentável, perante a até então perdida “guerra às
drogas”. tanto no Brasil quanto no mundo, a rD ganhou visibili-
dade com o advento da AIDS, na década de 80, quando foi formu-
lada como uma tentativa de coibir a transmissão do vírus HIV por
meio do compartilhamento de agulhas de seringas de drogas inje-
táveis. Sua função, nesse início, não era coibir o uso de drogas inje-
táveis, mas evitar que a partilha de seringas contaminadas somasse
ainda mais à epidemia de AIDS que se alastrava. A eficácia do com-
partilhamento de seringas para a diminuição da contaminação por
doenças transmitidas pelo sangue ainda é debatida, com resultados
e sucessos variáveis, mas sua aplicação em países da Europa e Amé-
rica do Norte continua até hoje (BAStOS & StrAtHDEE, 2000).
O fortalecimento dessa abordagem para a diminuição do contágio
de AIDS, entre usuários de drogas injetáveis, estimulou diversos
países a disseminarem a prática e pensarem-na como uma possibi-
lidade para outras situações mais complexas e abrangentes, ou seja,
praticadas como estratégias de prevenção na saúde pública e nas
políticas públicas. O princípio norteador da rD é, neste sentido,
evitar que o dano ocorra, melhorando as condições de vida e con-
sumo do usuário, de forma a evitar danos mais severos à saúde (ou
mesmo o óbito) e melhorando a qualidade de vida destes indivíduos
(QUEIrOz, 2001). Nesse sentido, a rD diferencia-se radicalmente
do discurso proibicionista da droga, operando por uma lógica com-
pletamente diferente: aquela que leva em conta 1) o contexto so-
cioeconômico e cultural do consumo, 2) os limites de atuação do
profissional de saúde para modificar este mesmo contexto e 3) a
autonomia e responsabilidade do sujeito em decidir seus hábitos de
consumo e tratamento.
Em outros países, a rD vem sendo aplicada à sua reali-
dade local e tem obtido êxito, servindo de inspiração para que novas

353
Manual de abordagem de dependências químicas

práticas sejam pensadas para cada cultura e realidade local. A expe-


riência do reino Unido possibilitou que dependentes químicos re-
cebessem a prescrição de drogas como a heroína e a cocaína, para
a manutenção e redução dos danos causados pelo seu uso; a Ho-
landa descriminalizou a maconha e o haxixe, além de fornecer me-
tadona prescrita, apoio material e reabilitação social para os
dependentes; países como a Alemanha, Canadá e Austrália, também
conseguiram desenvolver estratégias próprias de rD (FONtES et
al., 2010). No Brasil, a rD faz parte de um realinhamento político
e ideológico da Política Nacional Antidrogas (Decreto no.
2.632/1998), que em 2005 seria substituído, pelo CONAD, pela
Política Nacional sobre Drogas (resolução n. 3/GSIPr/
CH/CONAD /2005), o qual assume um papel fundamental ao
lado de outras políticas de prevenção (informativas, educativas, ca-
pacitativas, inclusivas, etc) e tratamento, levado a cabo pela rede de
atenção integral à saúde e tendo, dentre outros objetivos, a reinser-
ção social do indivíduo usuário de drogas. Neste sentido, ao cons-
tituir parte das políticas de abordagem sobre drogas no Brasil, a
rD institui-se contrária ao discurso proibicionista, na medida em
que não oferece crítica ao consumo do indivíduo, oferecendo a ele
(e, em certos casos, restituindo-lhe) a responsabilidade pelo seu pró-
prio tratamento, e consequentemente oposta à ideologia de “guerra
às drogas”, na medida em que parte do pressuposto da insuficiência
e precariedade desta abordagem – uma guerra, portanto, já perdida
(ALVES, 2009).

A prática da redução de danos

De modo geral, as ações de redução de danos expandi-


ram-se, especialmente durante o ano 2000. Em 1991, o PrOAD
(Programa de Orientação e Atendimento à Dependência) deu início
a um trabalho pioneiro em São Paulo, onde pacientes atendidos

354
Redução de danos no Brasil: desafios e perspectivas

pelo programa foram treinados para distribuir hipoclorito de sódio


e orientar usuários de drogas injetáveis a desinfetarem suas seringas
e não compartilhar seus equipamentos de injeção com outros usuá-
rios. Nessa perspectiva, o próprio usuário de drogas atua como pro-
tagonista e parceiro, e não como inimigo: o usuário pode tornar-se
agente de saúde, aproveitando suas experiências de uso de droga
injetável para ajudar seus iguais, uma vez que a luta não se dá contra
as drogas, e sim contra os danos à saúde (trIGUEIrOS &
HAIEK, 2006).
A Sessão Especial da Assembléia das Nações Unidas de-
dicada ao controle da epidemia de HIV/AIDS, que teve lugar em
Nova york, de 25 a 27 de Junho de 2001, utilizou como informação
técnica uma nota do programa de AIDS das Nações Unidas
(UNAIDS), que define a redução de danos:

redução de danos se refere à políticas e programas estruturados com


o propósito de reduzir as conseqüências adversas em saúde, sociais e
econômicas de drogas utilizadas para alteração do humor, estados de
consciência e percepção. A redução de danos pode compreender: (1)
abstinência ou redução do consumo de drogas; (2) prevenção da trans-
missão do HIV e outras infecções / doenças entre usuários de drogas
injetáveis; (3) uso de drogas menos danosas em substituição àquelas
mais danosas. Baseado nas evidências encontradas em diversos países,
em todo o mundo, os programas de redução de danos provaram ser
efetivos na prevenção da infecção pelo HIV, entre usuários de drogas
injetáveis. Cabe ressaltar que o programa de redução de danos efetivos
não se limita à provisão de equipamentos de injeção estéreis, mas
devem incluir outros componentes, como medidas visando a uma me-
lhor informação e compreensão sobre a AIDS, e educação dedicada
aos usuários de drogas e seus parceiros sexuais, provisão de preser-
vativos visando prevenir a transmissão sexual, tratamento e reabilita-
ção da dependência de drogas, tratamento de doenças sexualmente
transmissíveis (DSt) e oferta de outros serviços de saúde, e acesso a
testagem e aconselhamento para HIV, voluntário e confidencial. Além
disso, comunidades locais, incluindo os usuários de drogas, devem ser
mobilizadas de modo a participar intensamente deste pacote de es-
tratégias de trabalho. Nenhum dos elementos aqui mencionados fun-

355
Manual de abordagem de dependências químicas

Princípios da Redução de cionará adequadamente se implementado de forma isolada.


danos: 1. A redução de danos
é uma alternativa de saúde (UNAIDS, 2001)
pública para os modelos
moral/criminal; 2. A redução de
danos reconhece a abstinência
como resultado ideal, mas
aceita alternativas que re-
duzam os danos; 3. A redução
de danos surgiu principalmente
como uma abordagem de
tais estratégias, entretanto, não são desenvolvi-
das aleatoriamente, mas são pensadas a partir de princípios
“baixo para cima”, baseada na
defesa do dependente, em vez
básicos que pautam ações de redução de danos. São eles:
de uma política de “cima para
baixo”, promovida pelos formu-
ladores de políticas de drogas; 1. A redução de danos é uma alternativa de saúde
4. A redução de danos pro-
move acesso a serviços de
pública para os modelos moral/criminal e de doença do
uso e da dependência de drogas: o modelo moral de com-
baixa exigência como uma al-
ternativa para abordagens
preensão da dependência de drogas, como é expresso na
tradicionais de alta exigência;
5. A redução de danos baseia-
política de controle de drogas dos Estados Unidos, tem
se nos princípios do pragma-
tismo empático versus
idealismo moralista.
como pressuposto que o uso de drogas é crime, merecedor
de punição e moralmente incorreto. Desta forma, o objeto
maior é a “redução da oferta”, por meio da “guerra às dro-
gas”, que tem como alvo uma sociedade livre das mesmas.
Ao mesmo tempo, o modelo de doença é pautado nos fun-
damentos biológico/genético e compreende que a depen-
dência química requer tratamento e reabilitação. Para os
redutores de danos, essa abordagem proibicionista, é
problemática e irreal. Conforme ressalta Marlatt, “a
redução de danos aceita o fato concreto de que muitas
pessoas usam drogas e apresentam outros
comportamentos de alto risco, e que visões idealistas de
uma sociedade livre de drogas não tem quase nenhuma
chance de tornarem-se realidade” (MArLAtt, 1999,
p.46). A partir deste enfoque, a redução de danos surge
como alternativa a esses modelos, desviando a atenção
do uso de drogas em si para as conseqüências ou os
efeitos do comportamento adicto.
2. A redução de danos reconhece a abstinência como re-
sultado ideal, mas aceita alternativas que reduzam os danos: a re-
356
Redução de danos no Brasil: desafios e perspectivas

dução de danos não é contra a abstinência, mas surge como uma


proposta de redução gradual do uso de drogas, dando possibilidades
ao indivíduo que apresenta comportamentos excessivos, ou de alto
risco a caminhar no ritmo de suas possibilidades, dando um passo
de cada vez, a fim de reduzir as conseqüências prejudiciais do seu
comportamento. A redução de danos não pactua com a proposta
de “tolerância zero”, que parte do princípio de que qualquer uso
de substâncias é condenado, não distinguindo o comportamento
de um usuário ocasional para um usuário crônico, por exemplo. A
redução de danos também não pactua com o modelo de doença de
compreensão da dependência química, por entender que esta pers-
pectiva possui uma vertente de aproximação do modelo moral, uma
vez que o tratamento só se torna possível quando o indivíduo re-
solve cessar o uso definitivamente de todo tipo de droga.
3. A redução de danos surgiu, principalmente, como uma
abordagem de “baixo para cima”, baseada na defesa do dependente,
em vez de uma política de “cima para baixo”, promovida pelos for-
muladores de políticas de drogas: mais uma vez, o modelo moral
de compreensão da dependência química promove para a sociedade
uma visão estigmatizante do usuário, gerando uma série de dificul-
dades para seu acesso ao usufruto de direitos básicos. Podem ser
percebidos, facilmente, movimentos comunitários de ampla aceita-
ção em defesa do paciente com câncer, por exemplo, porém, o
mesmo não ocorre com os usuários de drogas, pela percepção de
que o uso de qualquer droga é errado. A redução de danos propõe
que haja uma saída para esse impasse, uma vez que suas propostas
podem ser efetivadas por meio de agentes comunitários, na tentativa
de dar voz ao usuário. Para clarear ainda mais este ponto de vista,
vale a pena ressaltar Sisko:

Em seu sentido mais amplo, o tratamento a pedido tem dois compo-


nentes principais, que são, evidentemente, ‘tratamento’ e ‘pedido’.
Mas, longe de serem termos claros e facilmente definidos, eles são
ambíguos, complexos e sujeitos a diversas interpretações por pessoas

357
Manual de abordagem de dependências químicas

com pontos de vista diferentes. Para início de conversa, de que ‘tra-


tamento’ estamos falando? A ‘pedido’ de quem o tratamento deve ser
iniciado? Será que o usuário um dia terá permissão para julgar se irá
receber ou não tratamento médico com base em sua solicitação, ou
pensar assim não passa de pura ingenuidade? Será que os dependentes
terão permissão para determinar que modalidade de tratamento é
mais adequada às suas necessidades, e ter pronto acesso a ela? (SISKO,
1995, p. 1).

Nesse cenário, é nesta perspectiva que a redução de danos


se propõe a atuar: na possibilidade de dar espaço para que a vontade
do usuário tenha mais importância do que o seu suposto quadro
clínico, ou das vontades que as pessoas que estão ao seu redor te-
nham quanto às suas escolhas.
4. A redução de danos promove acesso a serviços de baixa
exigência como uma alternativa para abordagens tradicionais de alta
exigência: as abordagens tradicionais de alta exigência têm como
pré-requisito a abstinência; já as abordagens de baixa exigência, não
são adeptas a esse princípio, por entender que esse seria mais um
obstáculo para dificultar o movimento de busca de recursos, por
parte do usuário de drogas. Desta forma, os redutores de danos
crêem ser possível aceitar o usuário dos termos em que o mesmo
se dispõem a ser acolhido para que, a partir daí, novas estratégias
sejam possíveis. As abordagens de baixa exigência também possi-
bilitam que o serviço vá até o indivíduo esteja e não necessaria-
mente que ele mesmo tenha a iniciativa de buscar ajuda, se ele se
enquadrar à proposta. Além disso, a abordagem de baixa exigência
reduz estigmas e possui a capacidade de açambarcar e consolidar
uma variedade de comportamentos que abrangem o uso da subs-
tância. Por possuir uma possibilidade de intervenção tão ampla, a
redução de danos é uma abordagem aberta à construção e conso-
lidação de parcerias e cooperação, tanto com sua população-alvo,
quanto entre outros fornecedores de serviços, bem como aqueles
que os recebem.

358
Redução de danos no Brasil: desafios e perspectivas

5. A redução de danos baseia-se nos princípios do prag-


matismo empático versus idealismo moralista: o princípio do prag-
matismo empático reconhece com naturalidade que
comportamentos prejudiciais acontecem, e não entra no mérito do
julgamento de certo e errado, bom e ruim, mas preocupa-se com o
manejo das situações cotidianas e das práticas reais, e sua validade
é avaliada por resultados práticos. Em contraste ao idealismo mo-
ralista, que preconiza uma sociedade livre de drogas, o pragmatismo
empático reconhece que algumas pessoas sempre usaram drogas e
continuarão usando, e até mesmo assumirão comportamentos de
alto risco. Vale ressaltar, contudo, que a redução de danos não é co-
nivente a esses comportamentos e tampouco o fomenta. O que a
redução de danos propõe, é que em meio a esses fatos, sejam
feitas as seguintes perguntas: “até que ponto as consequências dos
comportamentos desses indivíduos são prejudiciais ou favoráveis
para os indivíduos e para os outros que possam ser afetados?” ou
“o que pode ser feito para reduzir as conseqüências prejudiciais”?
A partir destas perguntas, a redução de danos é considerada uma
abordagem empática porque não rotula as pessoas e não denigre
aquelas que se envolvem em comportamentos de alto risco.

Conclusão

Por se tratar de um problema complexo e pluridetermi-


nado, a dependência química demanda que sejam desenvolvidas
es-tratégias que ampliem o rol de possibilidades de intervenção
junto aos dependentes químicos. A redução de danos surge como
uma possibilidade inspiradora, por ter sido implementada com
muito êxito nas estratégias concernentes à realidade do HIV.
Ainda que o HIV e drogas sejam temáticas que apresen-
tam temas comuns como a estigmatização, há muito que ser pen-
sado na aplicação dessas estratégias no manejo da dependência

359
Manual de abordagem de dependências químicas

química. A redução de danos torna-se uma possibilidade de inter-


venção, quando adaptada à realidade local, à cultura vigente, ao pú-
blico-alvo, dentre outros. A reprodução da estratégia de uma
experiência para outra, sem suas devidas adaptações, comprometem
os seus resultados que poderiam ser bastante efetivos.
No Brasil, a redução de danos vem encontrando críticas
em sua práxis, por encontrar grupos que mudam seu foco de atua-
ção, propondo que seu conceito seja utilizado no tratamento da de-
pendência química, e permitindo que o dependente continue a
utilizar drogas. O fato é que a falta de conceitos claros sobre as es-
tratégias de redução de danos tem produzido muitas dificuldades
para o seu entendimento e sua adoção no nosso país.
(MArQUES & zALESKI, 2011). Agrega-se a essa realidade a
confusão da redução de danos com outras ideologias, que em
alguns casos deturpam os reais fundamentos da redução de danos,
dificultando o manejo e, principalmente, a articulação com outros
serviços.
É sabido que não é possível a utilização de estratégias úni-
cas e simplistas para problemas complexos, como é a dependência
química. Desta forma, a aplicação efetiva e coerente aos princípios
da redução de danos é ainda desafiadora, por se deparar com inú-
meras dificuldades em sua prática. A real consolidação da tão pro-
pagada rede de intervenção ao usuário de drogas torna-se uma
possibilidade real para o verdadeiro apoio ao dependente químico,
justamente por propor diversidade de intervenções à pluralidade de
pessoas e circunstâncias. Porém, tal fato somente se tornará uma
realidade quando houver espaço para o diálogo e a troca, e não a
propagação de ideologias e imposição das mesmas sejam elas quais
forem. Afinal de contas, como a própria redução de danos nos con-
vida a pensar: o protagonista é o usuário de drogas, e por isso,
ações devem ser pensadas para trabalhar em conjunto com ele.

360
Redução de danos no Brasil: desafios e perspectivas

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362
Capítulo 25

Rede de atenção ao dependente químico:


dispositivos de saúde e de assistência social
Alessandra F. Almeida Assumpção
Nina Alkmim
Lucas Barroso
Marinna Garcia Barbosa de Figueiredo
Amanda Machado
Frederico Duarte Garcia

Introdução

A rede de atenção ao dependente químico é um conjunto


de serviços que visa o atendimento integral ao usuário de drogas.
Esses serviços configuram-se com foco principal de prevenção, tra-
tamento e reinserção sócio-familiar dos dependentes químicos, e
fazem parte de um conjunto de atuação em que a prioridade é dada
ao usuário e a seus co-dependentes, sujeitos do processo de trata-
mento e não o objeto das intervenções (COSTA, 2009).
Devido à complexidade do atendimento ao dependente
químico, a rede de atenção precisa abordar diversos âmbitos que
envolvem a vida desse indivíduo e de sua família, garantindo todos
os seus direitos de tratamento e preservação. Em situações de não
integralidade dos diversos eixos que compõem essa rede de atendi-
mento, o tratamento ao usuário terá baixa eficácia, visto que a droga
não atinge somente o sistema orgânico do indivíduo, mas diversos
outros aspectos de sua vida e de seus familiares.
Manual de abordagem de dependências químicas

Os diferentes tipos de serviços que compõem a rede


podem ser categorizados a partir de diferentes pontos de vista. Op-
tamos, aqui, por dividi-los segundo a perspectiva das políticas pú-
blicas. Sob esse enfoque, a rede de atenção é constituída por
políticas públicas de saúde, de assistência social, de segurança pú-
blica, de prevenção e do sistema de garantia dos direitos das crian-
ças e dos adolescentes (BRASIL, 2012). A Política Nacional sobre
Drogas (PNAD) (BRASIL, 2005) assume, nessa concepção, o lugar
de um norteador teórico para as demais políticas públicas relativas
ao tema. A PNAD é composta por diretrizes acerca da prevenção,
tratamento, recuperação/reinserção, redução de danos sociais e à
saúde, estudos/pesquisas e avaliações. Nela, também se fala sobre
a importância da integralidade da ação dos diferentes serviços em
dependência química.
As redes podem ser compreendidas também a partir da
articulação entre as redes formais e as redes informais. As redes
formais são aquelas reconhecidas pelos órgãos do governo e finan-
ciadas por uma das três esferas de poder. As redes informais, por
sua vez, são redes sociais criadas pela sociedade civil, e abrangem
associações de mútua ajuda, de Organizações Não Governamentais
(ONGS), comunidades terapêuticas e diversos tipos de iniciativas
privadas que visam, de maneira geral, à prevenção e à reabilitação
psicossocial do usuário de drogas (RONZANI, 2013).
No presente capítulo, abordaremos os dispositivos que
constituem as redes de apoio das políticas de saúde e de assistência
social, seus eixos de atuação e as principais características e atribui-
ções de cada serviço.

Principais dispositivos das políticas de saúde

As políticas de saúde configuram um conjunto de ações


que, na esfera individual e coletiva, visam promover e reestabelecer

364
Rede de atenção ao dependente químico: dispositivos de saúde e de assistência social

a saúde do usuário. Os dispositivos que fazem parte desse grupo


são responsáveis pelo diagnóstico, tratamento, reabilitação e redu-
ção de danos. São serviços que funcionam no âmbito hospitalar-
ambulatorial, atendendo a demanda dos pacientes que buscam
ajuda espontaneamente, ou aqueles referenciados por outros dis-
positivos integrantes da rede de atenção ao dependente químico. A
rede de apoio à saúde agrega, ainda, serviços de emergência e ur-
gência, serviços residenciais terapêuticos e serviços de atendimento
a moradores de rua BRASIL, 2012).
O atendimento ao dependente químico, visto como pes-
soa portadora de transtorno mental, dentro da lógica de atenção
psicossocial, é organizado em modalidades de sistema aberto, se-
miaberto e fechado (BRASIL, 2002).
No sistema “aberto”, o acolhimento é realizado em institui-
ções públicas e privadas, como as Unidades Básicas de Saúde (UBS),
ambulatórios de saúde mental e outros centros que ofereçam trata-
mento com as características dessa modalidade (Tabela 1). São serviços
prestados às pessoas com dependência leve e motivadas a permane-
cerem em abstinência. Esses serviços realizam, também, atendimentos
de ações preventivas envolvendo a comunidade em geral.
No atendimento “semiaberto”, o acolhimento e trata-
mento são realizados nos CAPSad e nos hospitais Dia. Esse é um
tipo de serviço considerado intermediário entre as modalidades
“aberto” e “fechado”, sendo indicado para pessoas com alto grau
de dependência, mas motivadas para o tratamento. O hospital Dia
foi pensado para desenvolver ações de cuidados intensivos, visando
substituir a internação integral. Já o CAPSad presta atendimento a
pacientes com transtornos decorrentes da dependência, sendo a
atenção direcionada ao tratamento, reabilitação e reintegração so-
cial, tanto do usuário quanto de seus familiares, dentro da lógica de
redução de danos (BRASIL, 2004). Além disso, o CAPSad tem
como uma de suas funções ser o articulador da rede de atenção ao
dependente químico.

365
Manual de abordagem de dependências químicas

No sistema “fechado”, por fim, encontra-se a atenção de


maior complexidade, em que os pacientes atendidos possuem alto
grau de comprometimento psicossocial devido à dependência, e
normalmente demonstram baixa aderência ao tratamento. Incluem-
se, nesse regime, as clínicas, os hospitais psiquiátricos e os hospitais
gerais (Tabela 1). A Política de Saúde conta com hospitais gerais, que
possuem leitos psiquiátricos ou unidades de desintoxicação, como
hospitalar para os casos que exigem internação de longa e curta
permanência com o objetivo de desintoxicação. O seguimento do
tratamento deve ser realizado em ambulatório de referência.
A tabela a seguir descreve os principais dispositivos incluí-
dos na rede de atenção à saúde. Estão incluídas nela as situações
nas quais o encaminhamento é adequado a determinado centro,
considerando-se as atribuições do dispositivo, os pacientes mais in-
dicados e comumente atendidos dentro de cada dispositivo e os
principais eixos de atendimento de cada dispositivo.

366
Rede de atenção ao dependente químico: dispositivos de saúde e de assistência social

Tabela 1
Dispositivos de saúde implicados na atenção de usuários de droga

367
Manual de abordagem de dependências químicas

368
Rede de atenção ao dependente químico: dispositivos de saúde e de assistência social

Principais dispositivos da política de assistência social

As políticas de assistência social configuram um grupo de


abordagem ao dependente químico que assumem o caráter de tra-
tamento continuado e abrangente ao tratamento oferecido em cen-
tros de atenção à saúde, promovendo assistência em longo prazo e
garantindo apoio ao dependente e a sua família (FERREIRA, et al.,
S.n.t). São equipamentos não relacionados diretamente ao trata-
mento médico-hospitalar do usuário, mas é uma importante ferra-
menta de assistência à prevenção, reabilitação e manutenção da
abstinência. Possuem caráter protetivo frente às situações de vul-
nerabilidade social, garantindo direitos e benefícios àqueles depen-
dentes fragilizados socialmente (Tabela 2). Promovem, ainda, uma
das medidas mais importantes no tratamento do usuário de drogas:
a reinserção social (BRASIL, 2012).
O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é a organi-
zação de uma rede de serviços e ações baseados nas orientações da
nova Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Seus serviços
e ações são divididos em níveis de complexidade que se organizam
em níveis de proteção social: proteção social básica e proteção social
especial. (BRASIL, 2011).
Os serviços de proteção básica são desenvolvidos no
CRAS, que é uma unidade pública estatal localizada em áreas de
vulnerabilidade. Seu objetivo é a prevenção das situações de risco
em locais de vulnerabilidade social em decorrência da pobreza, pri-
vações, acesso precário a serviços públicos e discriminações (Tabela
2). O CRAS é um local de acolhida e recepção, que promove ofici-
nas de geração de renda e realiza encaminhamentos (BRASIL,
2009).
O serviço de Proteção Social Especial é subdivido em dois
níveis de complexidade: média e alta complexidade. O CREAS e
os CENTROS POP integram a rede de média complexidade e são
responsáveis pelo acompanhamento especializado de indivíduos. Já

369
Manual de abordagem de dependências químicas

os serviços de alta complexidade devem assegurar proteção integral


aos sujeitos atendidos.
Enquanto os serviços de proteção básica têm caráter pre-
ventivo, aqueles oferecidos pela proteção social especial têm caráter
protetivo, sendo destinados a famílias e indivíduos sabidamente em
situação de risco pessoal ou social. O CREAS oferece serviços con-
tinuados e especializados a famílias e indivíduos com seus direitos
violados (maus tratos, abandono, discriminações), enquanto o
CENTRO POP presta serviços à população adulta em situação de
rua (BRASIL, 2008). Conforme a necessidade, pacientes acolhidos
no CRAS são encaminhados para os serviços de proteção especial,
CREAS e CENTRO POP. Esses centros acompanham também,
pacientes encaminhados de outros serviços públicos. O sistema de
encaminhamento pode ser visto na Tabela 3.
Na tabela a seguir, descrevemos os principais dispositivos
da rede de assistência social. Incluímos situações de encaminha-
mento a serviços de assistência, considerando-se as características
de atendimento do centro e das necessidades do paciente.

370
Rede de atenção ao dependente químico: dispositivos de saúde e de assistência social

Tabela 2
Dispositivos da assistência social implicados na assistência
de dependentes químicos

371
Manual de abordagem de dependências químicas

Limitantes atuais da rede de apoio ao dependente químico

A dependência química é um fenômeno complexo, que


requer um tratamento multidimensional e integrado, que contemple
as suas diversas demandas. Tendo em vista a multiplicidade de im-
pactos que o consumo da droga exerce na vida do usuário e de seus
familiares, o atendimento eficaz ao dependente químico exige uma
rede de serviços ampla, multifacetada e bem articulada entre si.
As políticas públicas sobre drogas devem se embasar,
principalmente, no reconhecimento da singularidade de cada indi-
víduo, com objetivo de traçar estratégias que não estejam unica-
mente voltadas para a abstinência da droga, mas principalmente
para defesa da vida, o que aumenta o grau de corresponsabilidade
do usuário. É essencial que a família atue em conjunto com os pro-
fissionais envolvidos que, por sua vez, devem receber treinamento
adequado para lidar com os dependentes durante sua atuação no
sistema interligado e multiprofissional proposto pelas redes de
apoio.
Contudo, a rede de atenção ao dependente químico é
composta por diversos atores, diferentes forças de poder e dis-
tintas ideologias, o que por vezes dificulta em muito a comuni-
cação entre os serviços e seu funcionamento integrado. Deste
modo, o grande desafio à rede de atenção ao dependente químico
torna-se construir respostas efetivas à necessidade de integração
das diferentes políticas públicas, e aproximar e integrar as ações
desenvolvidas em cada área implicada na questão da dependência
química. Somam-se a estes a necessidade de constantes questio-
namentos sobre os modelos de atenção desenvolvidos pelas equi-
pes multidisciplinares em cada modalidade de serviço. Diante
dessas questões, constantes reflexões e novas ações visando à
maior efetividade e qualidade da assistência são essenciais para a
concretização de um sistema de atenção integral aos dependentes
químicos.

372
Rede de atenção ao dependente químico: dispositivos de saúde e de assistência social

Existem diversos centros de tratamento para dependentes


químicos (Tabela 3). Não há um serviço melhor do que o outro, mas
sim pacientes mais indicados para cada serviço. A compreensão e
o entendimento das possibilidades e limitações de cada ambiente
de tratamento auxiliam o processo de adequação de um serviço às
necessidades da comunidade a qual presta assistência (Edwards, G.;
et al, 1999). Deve-se ter em mente, também, que o momento do
tratamento influencia a escolha do serviço que será prestado
(SAMSHA, 1999).

373
Manual de abordagem de dependências químicas

Tabela 3
Fluxograma de integração das redes de atenção relativas
aos serviços de saúde e de assistência social

374
Rede de atenção ao dependente químico: dispositivos de saúde e de assistência social

Considerações finais

Uma rede de atenção ao dependente químico, articulada


e comprometida com o tratamento digno e eficaz advém a partir
do trabalho integrado entre as políticas públicas setoriais de saúde,
de assistência social, de segurança pública, de prevenção e do sis-
tema de garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, com
grande apoio das redes informais de atenção. Essas esferas são es-
senciais para promover e restabelecer a saúde do usuário, oferecer
a ele tratamento continuado e abrangente, além de prevenir riscos
e atuar na sua reabilitação psicossocial.
Independentemente do enquadre terapêutico proposto,
um serviço deve propiciar ao paciente que o procura uma infraes-
trutura capaz de atender as suas necessidades e remover barreiras
que dificultem sua adesão à proposta terapêutica. Assim, é funda-
mental que cada um dos dispositivos de atendimento ao depen-
dente químico seja capaz de lhe oferecer um tratamento
individualizado, atento às necessidades específicas de seu caso, ofe-
recendo, de fato, a atenção e o apoio que o dependente e sua família
precisam dos serviços de tratamento. Deve-se objetivar sempre
manter o indivíduo vinculado ao tratamento e focar em sua reabi-
litação psicossocial.

375
Manual de abordagem de dependências químicas

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RONZANI, T.M. Ações integradas sobre drogas: prevenção, abordagens e políticas públicas.
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376
Este livro foi compostona fontes Garamond e Univers Condensed e
impresso na Gráfica O Lutador em fevereiro de 2014.

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