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Reflexões sobre o conceito e a ocorrência

do processo de gentrification no Parque


Histórico do Pelourinho, Salvador – BA
Reflections on the concept and occurrence
of the gentrification process in the Parque
Histórico do Pelourinho, Salvador – BA

Daniel de Albuquerque Ribeiro

Resumo Abstract
Gentrification é um processo urbano que ocorre Gentrification is an urban process that usually
em bairros históricos comumente centrais. Estan- occurs in central or downtown historic
do associado às transformações desencadeadas neighborhoods. Being associated with the
em um momento posterior à década de 1930, o transformations that took place soon after the
processo implica a substituição de uma popu- decade of 1930, it implies the replacement of
lação de baixo poder aquisitivo por outra mais a low-income population by another, more
abastada. Essas características agregam a esse prosperous, one. These characteristics provide this
objeto de estudo um tipo específico de recorte es- object of study with a specific spatial, historical
pacial, temporal e social. A presente análise sobre and social outline. The analysis of the gentrification
o processo de gentrification­ poderá ser dividida process can be divided into three stages. The
em três momentos. O primeiro com a reflexão so- first presents a reflection on the concept, the
bre o conceito em si, o segundo com a análise de second analyzes some case studies, and the third
alguns estudos de caso e o terceiro com o estudo discusses the case study of the Parque Histórico do
de caso sobre o Parque Histórico do Pelourinho, Pelourinho (Historic Park of Pelourinho), in the city
Salvador, Bahia, que abrange três bairros tradi- of Salvador, which encompasses three traditional
cionais da cidade: Maciel, Carmo e Santo Antônio neighborhoods: Maciel, Carmo and Santo Antonio
Além do Carmo. Além do Carmo.
Palavras-chave: gentrification; Parque Histórico Keywords: gentrification; Parque Histórico do
do Pelourinho; Salvador; processos urbanos; agen- Pelourinho; Salvador; urban processes; modeling
tes modeladores. agents.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 16, n. 32, pp. 461-486, nov 2014
http://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2014-3208
Daniel de Albuquerque Ribeiro

Introdução verdade, a clareza e a beleza devem ser


os únicos critérios, o que pode ser mais
impertinente­do que a tentativa de pôr na
Gentrification ou gentrificação? balança a preferência pela nação à qual
certa pessoa pertence e, em nome desse
Com relação a possíveis críticas ao fato de se privilégio, ou cometer uma violência con-
trabalhar a palavra gentrification, sem traduzir, tra a verdade, ou uma injustiça contra os
é válido traçar algumas explicações do motivo grandes espíritos de nações estrangeiras
para destacar espíritos inferiores da pró-
pelo qual se optou por isso. Primeiramente é
pria nação? No entanto, encontramos
preciso responder a argumentos baseados no
exemplos dessa vulgaridade todos os
nacionalismo e na importância de se reforçar dias, entre os escritores de todas as na-
a língua portuguesa. Tais alegações não condi- ções europeias. Esse traço foi satirizado
zem com o mundo científico, e ao mesmo tem- por Iriarte na trigésima terceira de suas
po, parecem alheias à realidade do cotidiano do ótimas fábulas literárias. (Schopenhauer,
2009, p. 35)
brasileiro que é repleto de palavras estrangei-
ras. Ninguém diz que vai ao centro de compras
O problema em se traduzir gentrification,­
e sim ao shopping center, do mesmo modo se
para gentrificação não reside somente na au-
esse artigo estiver sendo lido em um computa-
sência de sentido do termo em português.
dor, provavelmente o leitor estará usando um
Isso, por si só já seria um barbarismo concor-
mouse, ao invés de um rato. O estrangeirismo é
dando assim com a opinião de Vasconcelos
ampliado se incluirmos as palavras originárias
(2011, p. 21) “A noção de “gentrificação”,
de outras línguas. Sendo assim, há necessidade
barbarismo que não tem sentido nas línguas
em se nacionalizar um termo alóctone, somen-
latinas, pois a palavra vem do inglês gentry,
te por questões patrióticas? E ainda se acres-
ou seja pequena nobreza (...)”. No entanto, a
centa mais uma indagação. Deve-se traduzir
inconveniência da tradução do termo, reside
um termo, mesmo que essa tradução não fa-
na perda do significado que o mesmo carrega
ça o menor sentido ou se não houver nenhum
e também na ausência de um indicativo que
correspondente mais coerente? Já há mais de
chame a atenção para o fato de que o vocábu-
um século que Schopenhauer debatia sobre a
lo foi cunhado em outras terras.
escrita, e em um de seus textos, o mesmo faz
Um exemplo clássico sobre o perigo das
menção à mistura entre patriotismo e ciência.
traduções pode ser dado com a palavra amor.
Deve ser mencionado aqui, só de passa- Seu entendimento como um sentimento não
gem, o fato de que o patriotismo, quando somente distorceu seu real significado, como
tem a pretensão de se fazer valer no rei-
reduziu a um único termo quatro conceitos
no das ciências, não passa de um acom-
experimentados pelos gregos para designar
panhante indecente, do qual é preciso se
livrar. Quando se trata de questões pu- distintas ideias que em nossa língua falamos
ras e gerais da humanidade e quando a como sendo uma só.

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Se bem me lembro, uma dessas palavras termo que só faz sentido em sua língua original
era eros, da qual se deriva a palavra eró- parece incoerente.
tico, e significa sentimentos baseados em
Quando se trabalha gentrification na
atração sexual e desejo ardente. Outra
sua­definição original chama-se uma primeira­
palavra grega para amor, storgé, é afei-
ção, especialmente com a família e entre atenção para o fato de que a expressão não
os seus membros. Nem eros nem storgé surgiu no Brasil e logo deve ser analisada com
aparecem nas escrituras do Novo Testa- cuidado. Primeiro por ter sido concebida em
mento. Outra palavra grega para amor
outra rea­lidade e segundo para compreen­
era philos, ou fraternidade, amor recípro-
der o que ela significa. No entanto, o que é
co. Uma espécie de amor condicional, do
tipo “você me faz o bem e eu faço o bem gentrification?­É importante entender a origem
a você “ Finalmente os gregos usavam o do termo e a partir daí começar a debater as
substantivo ágape e o verbo correspon- diferentes formas que o mesmo já foi pensado.
dente agapaó para descrever um amor
incondicional, baseado no comporta- Há dois tipos de denominação para os
mento com os outros, sem exigir nada nobres nos países que compõem o Reino
em troca. É o amor da escolha delibera-
Unido. O peerage é a alta nobreza, aque-
da. Quando Jesus fala de amor no Novo
les que possuem títulos, como duques,
Testamento, usa a palavra ágape , um
marqueses, condes, viscondes e barões. A
amor traduzido pelo comportamento e
gentry diz respeito aos pequenos nobres
pela escolha, não o sentimento do amor.
ingleses. O termo gentrification foi usa-
(Hunter, 1998, pp. 77-78)
do pela primeira vez pela socióloga Ruth
Glass em 1964, para explicar o fenômeno
A importância de se conservar termos, no
da vinda desses “pequenos nobres ingle-
mundo científico, pode ser exemplificada com o
ses” para o centro histórico de Londres. A
GPS (Global Positioning System). A mesma si- palavra por sua vez é anterior ao século
gla utilizada nos Estados Unidos é adotada em XX. Ela deriva do francês antigo genterise­
qualquer lugar do planeta. Não é difícil dedu- que significa de nascimento nobre ou nas-
zir que a manutenção de uma palavra facilita cimento suave. Esse termo corresponderia
na Inglaterra à aristocracia rural que com-
a comunicação entre os cientistas de regiões­
punha a posição de senhores na estratifi-
distintas, que falem diferentes línguas. De cação social da sociedade anglo-saxônica.
qualquer modo, sabe-se que as traduções são (Ribeiro, 2011)
comuns, mas, ainda assim, elas conservam um A partir dessa explicação, é possível se
sentido. O aportuguesamento de gentrification dar uma primeira e incompleta definição so-
para “gentrificação” é desprovido de qualquer bre o conceito de gentrification, uma vez que
sentido para quem ler. Se seguirmos o vetor na action­ significa ação, logo o processo implica
direção contrária, podemos tomar como exem- uma ação de enobrecer uma área. Contudo,
plo a expressão boia fria. Se um tradutor, trans- não se trata de qualquer tipo de enobrecimen-
ladar um texto do português para o inglês e to, como a palavra portuguesa nobre pode le-
encontrar a palavra boia fria, o mesmo conser- var a entender, mas de um tipo específico de
vará boia fria em sua tradução, e não boei frei nobreza, uma pequena nobreza – gentry. Lo-
ou cold food. Qualquer tentativa de mudar um go, entende-se que não é o rico quem compõe­

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o recorte social do processo em questão e, assim, é preciso­compreender que antes da


sim, uma população similar à classe média. gentrification­ acontecer, ocorreu outro proces-
Ao menos inicialmente, o conceito foi pensado so, o de difusão, que nesse caso se deu com a
assim, mas como veremos adiante, as interpre- saída das famílias mais abastadas dos bairros
tações e análises sobre o próprio mudam de centrais em direção a áreas mais remotas e
autor para autor. longe dos incômodos urbanos. A massificação
No entanto, apesar das ressalvas, será re- desse processo foi intensificada com a segunda
corrente a utilização de gentrificação durante o revolução industrial. Esses dois fatores definem
texto. Isso por conta das inúmeras fontes con- o ponto de partida do esvaziamento dos cen-
sultadas e também pelo fato de que a grande tros, seguido pela ocupação desses por famílias
maioria das traduções e dos autores brasileiros de baixa renda. Portanto, não se pode dissociar
trabalha com a palavra aportuguesada. Isso por a gentrification da pós-modernidade. Isso é
sua vez não desqualifica o esforço deste artigo uma chave, pois como será visto mais adiante,
em chamar a atenção para o conceito em si. É já houve ações similares ao processo em ques-
importante destacar que o presente autor acre- tão, mas fora do recorte temporal e, talvez por
dita que, com o tempo, a palavra gentrificação isso, fora da mesma lógica.
será incorporada ao dicionário português, mas O recorte social é estabelecido a partir da
de qualquer modo é válido deixar aqui o regis- substituição de uma população de baixo poder
tro das reflexões já comentadas. aquisitivo por outra mais abastada. Entretanto,
esse recorte é ainda mais especificado por al-
guns autores. No caso de Smith, ele se refere
aos trabalhadores de colarinho branco (Smith,
Do conceito ao recorte 1996), e ainda aos Yuppies (Smith, 2006). E é
espacial, temporal e social comum aos autores que trabalham o conceito
fazer referência a um público específico que
O processo de gentrification tem três recortes se interessa pelos bairros centrais. São artis-
específicos, um espacial, um social e um tempo- tas, universitários, professores ou pessoas que
ral. O recorte espacial é comumente associado se identificam com o estilo boêmio de vida do
aos centros históricos das cidades; no entanto, centro. Deve-se destacar que esses mesmos
ao se aprofundar mais na leitura sobre o pro- agentes podem vir a ser substituídos em um
cesso, percebe-se que ele se dá não somente no momento posterior por ação dos agentes eco-
centro histórico, como em bairros centrais e que nômicos e promotores imobiliários.
tenham características históricas mais destaca- A partir dessas reflexões, pode-se definir
das do que em outros pontos da cidade. o entendimento clássico da gentrification co-
Já o recorte temporal costuma ser ne- mo um processo urbano específico de bairros
gligenciado nas definições, todavia ele é fun- centrais e com uma historicidade que se des-
damental, pois estabelece o momento inicial taca do restante da cidade. Esse fenômeno se
do fenômeno cujo termo foi cunhado pela inicia após o processo de difusão da população
primeira vez por Ruth Glass (1964). Sendo mais rica em direção a áreas periféricas e a

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ocupação dos centros por uma população mais Tudo isso não aconteceu sem reações.
pobre em um período que coincide com a pós- Enquanto nos ruidosos anos oitenta a
linguagem e a realidade da gentrificação
-modernidade. Por fim, ele é caracterizado pela
haviam invadido a mídia, e novos jovens
substituição dessa população pobre, por outra
urbanos das classes médias passavam a
de maior poder aquisitivo, com um estilo espe- ser chamados de yuppies , os efeitos da
cífico de vida e, em alguns casos, até mesmo de gentrificação se tornaram mais evidentes.
se vestir e de se comportar. Contudo, deve-se O número de famílias expulsas de suas
moradias subiu vertiginosamente, assim
deixar claro que esse é um entendimento inicial
como o número de sem-teto, estimado em
e que engessá-lo ou querer aplicá-lo em todas
cerca de 100 mil, ou seja, 1,5% da popu-
as realidades consistirá em erro grave. lação da cidade. (Smith, 2006, p. 68)

Em seu estudo, Smith (2006) também

Neil Smith e as ondas relata um período de recessão, que foi taxado


por alguns como desgentrification, mas como
de gentrification, o autor afirma o processo não parou comple-
o caso de Nova York tamente. Além disso, é possível também fazer
a conexão dessa desaceleração das ações es-
Ao observar o bairro do Soho em Nova York, o peculativas e desvalorização das áreas, como
geógrafo Neil Smith (2006) traçou importan- uma estratégia dos agentes econômicos e
tes teorias a respeito da gentrification. Uma promotores imobiliários, que é melhor definida
delas divide sua ocorrência em três ondas. “A por Smith (2006), como rent gap. Ainda sobre a
primeira poderia ser chamada de gentrificação recessão é válido mencionar os comentários do
esporádica, a segunda seria a consolidação do próprio sobre as áreas que não foram comple-
processo; enquanto na terceira estamos dian- tamente afetadas.
te de uma gentrificação generalizada” (Smith,­
2006, p. 63). Nos bairros mais marginais, onde a pri-
meira transformação marcante emergiu
A primeira onda ocorreu nas décadas de
durante a segunda onda – Williamsburg e
1950 e 1960. Nessa fase, junto com a vinda de Fort Green, no Brooklyn, a cidade de Long
uma população de classe média para os bairros Island, no Queens, Hells’s Kitchen, em
do centro, era observada a presença relevante Manhattan, e muitas outras – a gentrifi-
de instituições financeiras promovendo a re- cação certamente esgotou as fontes para
outros tipos de investimentos em imóveis
cuperação das áreas tidas como decadentes.
residenciais. Também no Harlem, a reabi-
A segunda onda se dá do final da década de litação das casas de tijolo, que aconteceu
1970 a 1989 e é caracterizada pelo que Smith no fim dos anos oitenta, acabou definiti-
denomina como consolidação. Trata-se da in- vamente. Mas nos bairros mais centrais,
tensificação pela ação dos agentes econômicos do Soho e Upper West Side, o processo
não parou completamente no início dos
e promotores profissionais. Além disso, é nessa
anos noventa; na verdade, ele prosseguiu
fase que se registra a reação organizada pelos até mais que de forma pontual. (Smith,
antigos moradores que foram expulsos. 2006, p. 71)

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Em 1993, o processo é retomado e am- mais asseguradas pelo mercado do que


pliado em 1996, quando ocorre sua generaliza- por sua própria regulamentação. (Smith,
2006, p. 79)
ção para áreas mais afastadas das centrais. Tal
fato já relativiza o próprio recorte espacial. O
autor explica que a opção por trabalhar com No-
va York se deu pelo motivo de que: “em quase Criekingen – Bruxelas
quatro décadas essa cidade viu evoluir sua gen-
trificação de uma anomalia local para uma es- De uma coletânea de estudos realizados no li-
tratégia urbana articulada” (Smith,­2006, p. 73). vro De Volta à Cidade (Zachariasen et al., 2006),
Para ele, essa estratégia urbana se torna global para os propósitos deste artigo, o estudo de
tomando características peculiares­em cada lu- Criekingen (2006) merece destaque por conta
gar onde ocorre. Essa generalização do processo da rigidez com que interpretou e aplicou o con-
apresenta cinco características interligadas que ceito de gentrification. Ele avalia o processo a
são “o novo papel do Estado; a penetração do partir de parâmetros definidos por sua visão a
capital financeiro; as mudanças nos níveis de respeito do tema. Aliado a isso, estabelece quem
oposição política; a dispersão geográfica; e a seriam os agentes promotores e por fim traba-
generalização da gentrificação setorial, já evoca- lha com dados estatísticos. Com isso, ele conclui
da” (Smith, 2006, p. 74). a respeito da inexistência de gentrification­ em
Com isso, a terceira fase é caracterizada Bruxelas. Contudo, parece claro que o autor só
pela participação do Estado em parceria com o chegou a tal constatação por não compreen-
capital privado e os governos locais, ao mes- der que a realidade nova iorquina não poderia
mo tempo em que o capital global se faz pre- ser igualada à de outros lugares, sendo assim
sente nos investimentos feitos. Smith também terminou por engessar o conceito. Além disso,
chama a atenção para a estratégia de desin- Criekingen não relativiza a interpretação dos
vestimento feita nos bairros abandonados e dados estatísticos. Todavia, ele oferece uma
para um conjunto de ações que atendem a um quantidade de reflexões de grande relevância
grupo que visa certos interesses econômicos. para a compreensão do que seria o processo, a
A articulação entre diversos aspectos dessas começar pela própria definição.­
estratégias proporcionarão que essas cidades
se tornem globais. Eu proponho falar de gentrificação quan-
do estamos em presença de um processo
Uma nova “gentrificação complexa” e de produção de um espaço sofisticado e
institucional inaugura agora uma reno- homogêneo a partir de um espaço urbano
vação urbana de dimensão classista. Essa originalmente degradado (seja ele habita-
gentrificação classista complexa conecta do ou não), o qual, desde então, apresen-
o mercado financeiro mundial com os ta transformações no seu aspecto exterior
promotores imobiliários (grandes e mé- pela renovação das edificações existentes
dios), com o comércio local, com agentes (conservando ou transformando a função
imobiliários e com lojas de marcas, todos original dos edifícios) ou pela construção
estimulados pelos poderes locais, para os de novos edifícios, e que se assenta sobre
quais os impactos sociais serão doravante uma mobilidade residencial que ocorre

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pela instalação de uma nova população, Um conceito interessante trazido por


e, se for o caso, pela partida da população Criekingen é o de upgrading, definido como a
previamente existente, mais ou menos
ascensão social da própria população, o que
forçada por diferentes tipos de pressão.
permite que a mesma melhore suas condições
(Criekingen, 2006, p. 100)
de habitação. Vale destacar que provavelmen-
Se por um lado o autor traz uma exce- te essa é uma realidade comum e paralela à
lente definição para o processo, por outro no maioria dos casos de gentrification. Contudo,
momento em que faz sua análise, ele o enri- fica clara a existência do processo em Bruxelas,
jece. A flexibilidade talvez pudesse levá-lo a quando o autor define o que chama de “gentri-
uma constatação diferente. O fato é que tu- ficação marginal”.
do indica que ele se prendeu aos padrões de
gentrification­ das cidades globais, como ele Trata-se de um processo pelo qual certos
bairros centrais se vêm tomados por uma
mesmo informa. Além disso, ele também ca-
população jovem, muito escolarizada,
racterizou um perfil para os tipos de “gentri- globalmente mais abastada que os anti-
ficadores”, como se fossem somente yuppies. gos moradores, sem, no entanto, serem
Por último, ao analisar o processo pelo viés “os ricos” na escala da cidade. (...) Dito
estatístico tomando como base a renda das de outro modo, a gentrificação marginal
não é um estágio transitório para a che-
famílias em uma proporção geral, Criekingen
gada de uma gentrificação total a mais
desconsiderou as substituições que ocorreram ou menos curto prazo. (Criekingen, 2006,
como sendo frutos de uma gentrification, por p. 100)
conta de uma posição relativa a de outras
camadas mais ricas da cidade de Bruxelas. É válido reafirmar que a dureza com
Ainda há mais um fator a ser questionado, que o conceito foi tratado pelo autor o leva
pois ao constatar casos pontuais do proces- a tais conclusões. Isso é um exemplo da im-
so, o autor não os considerou expressivos portância de não somente se entender a ori-
para que sejam enquadrados como existindo gem e o significado do termo, mas o que ele
gentrification­­­na cidade. é de verdade. Em outras palavras quais são
Se os critérios estabelecidos por os principais elementos que o compõem? É
Criekingen­forem seguidos, então de todos os preciso levar em consideração o entendimen-
relatos que serão apresentados neste artigo, to a respeito dos três recortes, mais as ideias
talvez somente o de Nova York será definido de Smith sobre as relações do processo com o
como gentrification. Existem mais questões capital internacional e com as estratégias dos
que passaram despercebidas pelo autor em agentes econômicos. A partir disso, teremos
questão. Dentre elas está o fator da intenciona- os elementos principais para uma compreen-
lidade de um agente versus o grau de sucesso são sobre gentrification.­Partindo desse ponto,
das suas ações. O impacto socioespacial que as é preciso ter a sensibilidade para perceber as
ações possam estabelecer. E por fim a expressi- peculiaridades e diferenças de cada lugar onde
vidade do relativismo pontual de fatos. ele ocorrerá.

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Relação entre gentrification rent gap. A primeira estaria no fato de se uti-


lizar o desenvolvimento desigual para explicar
com a Teoria do Caos a diferença de renda, quando tanto uma coisa
e os estudos de Bauregard quanto outra deveria ser pensada a partir das
tendências estruturais do capitalismo. O segun-
A ideia de que o processo de gentrification po- do ponto fraco consiste na inexistência de ten-
deria ser facilmente relacionado com a Teoria tativa para explicar a diversidade do processo.
da Complexidade e a Teoria do Caos sempre O terceiro ponto diz respeito à desatenção do
me pareceu bastante coerente. Primeiramente papel da reprodução e do consumo no fenôme-
porque a quantidade de elementos que com- no estudado.
põem e interferem em sua dinâmica é quase Fazendo referência à Teoria do Caos, ao
infinita. Segundo, pelo fato de que é impossí- continuar sua explanação, o autor explica que
vel prever com exatidão o futuro de uma área gentrification deve ser considerado como um
que passe por um processo urbano. Dessa ma- conceito caótico. Primeiramente porque é ne-
neira, um lugar que tenha alta especulação cessário levar em consideração as diversidades
imobiliá­r ia pode repentinamente entrar em de casos que envolveram diferentes tipos de
uma fase de desvalorização. Do mesmo modo, indivíduos. E em segundo lugar, porque é im-
um lugar abandonado e rejeitado por maior portante pensar em distintas tipologias para
parte da população pode receber um projeto o fenômeno ao invés de reunir tudo em uma
urbanístico que eleve sua procura, e com isso única explicação.
os preços de seus lotes. Nessa combinação de
elementos, temos diferentes agentes modela- The diversity of gentrification must be
dores e diferentes papéis desempenhados por recognized, rather than conflating diverse
aspects into a single phenomenon.
agentes da mesma categoria. Um aconteci-
Thirdly, the above observations suggest
mento no Japão pode influenciar um processo that a diversity of social forces and
em Salvador. A mudança de um fator da bolsa contradictions within the social formation
de valores, ou na moeda europeia, pode in- cohere in some fashion to bring about
terferir nas levas de turistas – quantitativa e various types of gentrification. Moreover,
it additionally suggests that gentrification
qualitativamente – e consequentemente em
is not inevitable in older declining cities.
um possível público para consumir as cidades (Beauregard, 1996, p. 40)
brasileiras e, em alguns casos, posteriormente
adquirir residências nos centros. Dentre as possibilidades relativas ao pro-
Reconhecendo a importância do mate- cesso, Bauregard traça dois extremos, indo do
rialismo histórico e das teorias elaboradas por total abandono de um bairro até o realce de
Smith para o entendimento da gentrification, áreas que não necessariamente estão deterio-
Bauregard (1996) sugere que é preciso avan- radas. Ele aborda o exemplo clássico da saída
çar para um entendimento do processo atra- da classe média dos bairros centrais, tendo
vés da Teoria do Caos. Para chegar a tal ponto, suas­moradias ocupadas por famílias de me-
aponta três fraquezas teóricas relacionadas à nor renda. Também trata a respeito de outra­

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situação­em que habitações de baixo custo De ruína em ruína High Streeet tornou-se
são criadas a partir do uso misto de distritos um local de miséria, um bairro sórdido.
Prostitutas estendiam seus colchões de
industriais ou armazéns estabelecidos antes
palha sobre antigos parquetes; chami-
da Segunda Guerra. O autor amplia o debate
nés monumentais, forradas de madeiras
ainda para a questão que envolve a popula- nobres e decoradas de esculturas, eram
ção afetada e as relações a serem pensadas a fechadas e transformadas em toale-
partir desse grupo. Mesmo concordando com tes, nos wynds ou pátios, nos closes ou
nas extremidades dos corredores, o lixo
as ideias de Bauregard, em 2011 fiz algumas
acumulava-se a vários metros de altura.
ressalvas com relação a sua abordagem sobre
O bairro insuportavelmente fétido, tais
as contribuições de Smith. becos sem saída, tais ruelas ainda são
sentinas de infecção. E a miséria ali pu-
Algumas ressalvas precisam ser feitas lula, lixo humano sobre o lixo das coisas.
com relação ao conjunto teórico apre- (Reclus, 2010, p. 85)
sentado. Primeiro, parece que muitos dos
pontos considerados por Bauregard co-
Ele relata sobre a ação de um grupo li-
mo fracos em Smith foram mais produto
derado por Patrick Geddes que tinha intenções
de um foco do primeiro no rent gap do
que em toda explicação que é apresen- de melhorar o lugar e agiram como verdadeiros
tada pelo segundo. Ainda assim, em todo agentes promotores da gentrification. No en-
o debate teórico que foi realizado até o tanto, não é correto dizer que as ações foram
momento, só foram trabalhados os ca-
relativas ao processo, não somente por terem
sos de países situados no topo da cadeia
se dado fora do recorte temporal, mas princi-
econômica mundial. Além disso, a própria
realidade geográfica, jurídica, cultural, palmente pela intencionalidade ser divergente
histórica e econômica desses países diver- da característica do fenômeno. Não havia in-
ge muito dos de outros países no mundo. tenção de lucro ou especulação, mas as ações
(Ribeiro, 2011, p. 101)
de Geddes estavam mais próximas de uma vi-
são filantrópica.

Logo se fez uma clientela de estudantes


Antes da gentrification de ambos os sexos, de jovens professores
e o milagre sem o nome e outros universitários. Resolveu propor-
cionar-lhes moradias menos odiosas, uma
do Santo existência menos penosa. O local mais ab-
jeto, talvez, de High Street, foi aquele pelo
Reclus (2010) em um texto datado de 1896, qual começou – tratava-se de um antro
cujo titulo é Renovação de uma cidade, trata de meretrizes; ele não hesitou em com-
prá-lo e transformá-lo em University Hall;
a respeito de Edimburgo e do contexto que se
inclusive instalou o grupo dos estudantes.
encontrava seu centro – High Street, muito se- Ele não tinha dúvidas de que, mudando os
melhante ao dos casos de gentrification antes ocupantes, a vizinhança mudaria, depois
de passar pelo processo. todo o meio. (Reclus, 2010, p. 88)

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É interessante que a concepção do pro- les grandes concentrations dans les rues
jeto era social, tinha um caráter espacial e in- de Paris la seule expression organisée et
unitaire de la force potentielle . (Borja e
clusive uma visão estratégica. Fica claro que,
Castells, 1975, pp. 22-23)
apesar de não se tratar de um projeto com ba-
ses que visassem o lucro, havia, contudo uma Borja e Castells abordam sobre o capi-
seleção do público que mereceria habitar aque- talismo descrevendo ações com características
les espaços. Público esse com certeza “mais de gentrification­ por parte do governo francês.
nobre” do que o das meretrizes que teriam Eles as chama de Reconquista significativa de
transformado aqueles espaços em “antros”. Paris. Essa reconquista do espaço urbano pelo
Já em um segundo caso a ser comenta- governo que posteriormente passa “o bastão”
do ocorre um claro exemplo de gentrification, para o setor privado. Esse por sua vez, que tem
mas que não tem o termo utilizado por quem o suas ações apoiadas pelo governo sob o pre-
abordou. Trata-se da análise de Borja e Castells texto de depuração de bidonvilles. Ao apontar
sobre Paris em 1975. Os autores iniciam rela- um fator social, os autores revelam que o pú-
tando a respeito da precariedade e ausência blico de trabalhadores que é retirado dessas
de serviços essênciais, como de transporte, por áreas é basicamente de imigrantes. No lugar
exemplo. onde se remove essa população, haverá mais

De son côté, l’administration de la Ville


rentabilidade com a instalação dos escritórios
de Paris, tout en partageant l’essentiel e apartamentos de luxo. Há também um desta-
des tendances prospectives, et des que para a reestruturação espacial dos imóveis,
promoteurs, et de l’évolution d’ensemble onde um novo conforto é dado.
de la structure urbaine parisienne, a des
problèmes particuliers: par exemple, la Ainsi, de la convergence des tendances
transformation accélérée de l’espace de l’organisation spatiale dans une
parisien exige un aménagement des économie capitaliste développée
services, des transports, des permis de des intérêts financiers des sociétés
construire, le groupement des travaux en immobilières et dans le grand programme
tranches, en secteurs, etc. Mais surtout, public de rénovation urbaine qui porte
dans la mesure où la Ville de Paris est en le titre significatif de Reconquête
fait le gouvernement français, Paris étant urbaine de Paris. Démarrant lentement
la seule ville française à ne pas avoir une dès 1956, battant son plein de 1964 à
autonomie locale depuis la Commune de 1970 et passant ultérieurement le relais
1871, des intérêts politiques sont en jeu: aux opérations privées, mais soutenues
implanter dans cet espace une population par l’administration, la Reconquête
qui serve d’assisse électorale au parti du urbaine se présentait sous le couvert de
gouvernement (car l’U.D.R., majoritaire l’élimination des taudis. En fait, il n’en
aux élections parlementaires depuis 1958, est rien: secteurs les plus détériorés
a toujours échoué dans ses tentatives ne sont pas rénovés. Par contre, le
d'organiser une base locale stable) et sont ceux où la population ouvrière et
qui condamme à l'isolement le nouveau immigrée est la plus importante, ceux
mouvement révolutionnaire issu de Mai où les bureaux et les logements de luxe
1968 et qui, pour le moment, trouve dans seront les plus rentables. Un nouveau

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Reflexões sobre o conceito e a ocorrência do processo de gentrification...

confort y est installé – mais pour une Segundo­ a autora, o Estado foi o principal
nouvelle population, celle qui y habitait agente da indução do processo.
étant rejetée dans la bandieue sous-
équipée. C’est la reconquête de Paris, A prefeitura baseou sua estratégia na lo-
mais la reconquête du Paris populaire calização das atividades econômicas con-
par la nouvelle bourgeoisie des cadres sideradas “regeneradoras”, assim como
supérieurs, par leurs lieux de travail et de nos equipamentos culturais em pontos
loisir. Utilisant les prérogatives publiques estratégicos. Dilyis Hill (1994) realizou
d’expropriation, subventionnant avec des uma análise das políticas de “regenera-
fond publics les travaux d’infrastructure ção” baseadas no surgimento de espa-
nécessaires, la rénovation sert de fer de ços de atração cultural e de atividades
lance à la transformation de Paris en ville econômicas alternativas. Essas medidas
directionnelle et en gheto international foram promovidas pelo governo local e
pour cadres assoiffés de modernité, mais tinham como objeto principal diversificar
consommateurs d’une histoire qu’on o espaço público, objetivo este considera-
transforme en musée et qu’on clôture do como premissa necessária a qualquer
(clôture = niveau des prix) pour s’y dinâmica “auto-regeneradora” do bairro.
promener le samedi soir. (Borja e Castells, (Claver, 2006, p. 157)
1975, pp. 23-24)
Além da ação do Est ado, há um
destaque­para lentidão em que o processo se
deu em contraposição aos casos dos países
Contribuições anglo-saxões.­Combinado com isso deve-se
de outros estudos destacar a mobilização social por meio dos
afetados pela gentrification, que conseguiram
Este tópico tem por objetivo mencionar a diver- se estabelecer nas proximidades do bairro da
sidade de alguns estudos realizados no livro De Ciutat Vella.
Volta a Cidade (Zachariasen et al., 2006), em O bairro de Saint-Georges, em Lyon, foi
que fica claro que, apesar da existência de ele- estudado por Authier (2006). Ao contrário de
mentos em comum a todos os casos abordados Barcelona, o Estado tenta impedir o avanço
pelos autores, cada lugar experimentou dife- do processo. Contudo, os promotores imobi-
renças peculiares. liários se aproveitam de brechas no sistema
O primeiro exemplo é o de Barcelona. criado pelo próprio Estado e conseguem pro-
Nuria­Claver, ao estudar Ciutat Vella (2006), mover a gentrification. A autora ainda identi-
identificou ações relacionadas com o planeja- fica três momentos, sendo o primeiro similar
mento estratégico. A começar com a promoção à gentrification­ esporádica e caracterizado
da cidade a partir dos Jogos Olímpicos. Combi- por um movimento espontâneo da população
nado a isso, ocorreu a produção de um espaço para o lugar. O segundo dominado pela for-
a ser vendido para o turismo. Houve a constru- te ação dos agentes imobiliários, e o terceiro
ção de equipamentos urbanos que valoriza- pela preservação da população ao norte da
ram o Centro, promovendo assim aumento do poligonal gerando assim uma estratificação
valor­dos imóveis e da especulação imobiliária.­ social do bairro.

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Daniel de Albuquerque Ribeiro

Outra abordagem interessante é a das história brasileira. Salvador é ainda hoje um


cidades mexicanas, tratadas por Melé (2006). grande berço cultural com muitos artistas de
Dois fatores chamaram atenção nesse estudo. renome internacional. Combinado a isso, ela
Primeiro, o desinteresse dos mexicanos ricos conta com um rico conjunto urbanístico, que
pelas áreas centrais. Segundo, uma forte cultu- compõe seu centro histórico, conhecido como
ra de habitar o centro pelos mais pobres. Esse Pelourinho bem como seu entorno. É justamen-
habitar não somente no sentido de morar, mas te nessa área que o processo de gentrification­
de frequentar os espaços. Com isso, apesar das se desdobrou a partir da década de 1990.
tentativas do estado mexicano de expulsar os No que tange à gentrification, há dois
mais humildes do centro e atrair os ricos para pontos em comum a se destacar entre Sal-
essa região, o sucesso dessas ações terminou vador e as cidades mexicanas relatadas por
sendo bastante limitado. Nesse aspecto, os me- Melé (2006). Primeiro é que o processo em
xicanos seriam parecidos com os brasileiros. Salvador foi promovido pelo Estado, com a
Apesar disso, o autor chama a atenção para a expulsão dos moradores do Pelourinho para
existência de uma “gentrificação” pontual. O execução de um projeto turístico. Segundo, é
que é interessante de se mencionar, principal- que a população mais rica da capital baiana
mente para servir de contraposição às ideias de não tem interesse em habitar o centro. Talvez
Crienkingen sobre a inexistência do processo por isso, inicialmente o público que mais ad-
em Bruxelas. quiria casas na área não era soteropolitano e,
sim, oriundo de outros estados e países, como
ficou constatado em minha pesquisa de mo-
nografia (Ribeiro, 2008).
Gentrification no Parque O programa de Recuperação do Pelouri-
Histórico do Pelourinho – nho, iniciado em 1991, foi um marco no que diz
Salvador/BA respeito à substituição populacional na área.
Seu objetivo era recuperar as estruturas físicas
Dentre muitos motivos pelo qual a cidade do em um projeto a ser realizado em etapas. Es-
Salvador é conhecida, pode-se destacar sua im- se projeto foi duramente criticado pela forma
portância no Brasil colonial. Sendo a segunda como foi executado. O mérito do programa
maior cidade do Império Português e primeira consiste no fato de ter recuperado diversas
capital brasileira, posteriormente passa por edificações que se encontravam em estado de
uma lenta e gradual fase de declínio. Esse declí- ruína. No entanto, junto com isso foi rea­lizada
nio iniciou-se a partir da transferência da capi- uma limpeza social da área para que a mesma
tal do país para o Rio de Janeiro e com o abalo pudesse se enquadrar aos moldes do turismo.
em sua economia açucareira devido à concor- Essa expulsão dos moradores mais pobres
rência das Antilhas. No entanto, a capital baia- agradou considerável parte da classe média,
na jamais perdeu sua importância como me- que se sentia incomodada com o fato de ser
trópole regional, além de sempre ter sido terra o Pelourinho local de prostituição, alta crimi-
de muitas figuras ilustres que influenciaram­na nalidade e frequentado por uma população­

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Reflexões sobre o conceito e a ocorrência do processo de gentrification...

sem recursos. De qualquer modo, foi essa o processo de gentrification , as edificações


população expulsa que, em conjunto com a abandonadas começaram a ser ocupadas por
ação de empresários locais, gerou bases para uma população de baixa renda que se fixava
a efervescência­cultural do lugar. Trata-se de nesses locais transformando-os em cortiços. É
diversas manifestações artísticas e populares, interessante chamar a atenção para o fato de
que se deram a partir de meados da década que a partir da década de 1930 os movimentos
de 1980. Um exemplo dessas manifestações é migratórios no país começaram a se intensifi-
Benção do Pelô, que foi a base para o surgi- car, principalmente o êxodo rural. Sendo assim,
mento da famosa banda percussiva Olodum. a grande maioria desses novos moradores do
É importante mencionar que a área já centro era originária de outros municípios do
estava em uma decadência que se arrastava estado da Bahia ou do Nordeste brasileiro.
desde 1930, quando se intensificou o processo Com o declínio da área, se iniciam as primei-
de difusão na cidade, com a saída da popula- ras ações e projetos visando a recuperação do
ção mais abastada do centro, principalmente Pelourinho, como é verificado no Quadro 1, que
em direção à orla marítima. Não muito diferen- mostra a cronologia de medidas tomadas que
te, da maioria dos outros lugares que tiveram buscavam intervir no centro da cidade.

Quadro 1 – Políticas públicas para o Centro Histórico de Salvador

Ano Ação Instituição

Criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional;


1937 SPHAN
tombamento de monumentos

1959 Medidas de proteção e obras de conservação SPHAN

Criação da FPACBA (IPAC). Promoção da conservação do patrimônio


1967 Governo da Bahia
artístico e cultural da Bahia

1971 1ª etapa do Plano de Recuperação do Pelourinho IPAC Seplan/PR

1972 Plano de Desenvolvimento da Comunidade do Maciel IPAC, PMS, UFBA

1976-1979 Restauração de imóveis e instalações de serviços públicos e privados IPAC

1977-1979 Plano Diretor do Pelourinho (PLANDIP) Conder, IPAC

1978 Proposta de Valorização do Centro Histórico de Salvador Conder

1981-1985 Projeto Centro Administrativo Municipal Integrado (CAMI) Oceplan, PMS

1981-1982 Projeto de Recuperação Habitacional do Centro Histórico (Pelourinho) IPAC, UIS/HOAB BNH

1983 Criação do Escritório Técnico de Licenças e Fiscalização IPAC, PMS, SPHAN/FNPM

Criação da Fundação Gregório de Matos (FGM). Criação do Programa


1986 PMS
Especial de Recuperação dos Sítios Históricos de Salvador

Seminário do Programa Nacional de Recuperação e Revitalização de


1986 MinC, MDU
Núcleos Históricos

1987 Criação do Parque Histórico do Pelourinho FGM-PMS

1991-2006 Programa de Recuperação do Centro Histórico IPAC-Conder

Fonte: Bonfim (2007).

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Daniel de Albuquerque Ribeiro

Figura 1 – Vetores da especulação no Parque Histórico do Pelourinho

Fonte: Ribeiro (2011).

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Reflexões sobre o conceito e a ocorrência do processo de gentrification...

Como consta no Quadro 1, em 1987 é população­ remanescente concentrada ao nor-


criado através de um decreto estadual o Par- te, no caso do centro de Salvador, a população
que Histórico do Pelourinho (Bahia, 1987), a mais antiga ficou concentrada ao norte do bair-
poligonal do Parque envolve área que abran- ro do Santo Antônio Além do Carmo – norte
ge outros bairros além do próprio Pelourinho. da poligonal. Contudo o processo se inicia no
É justamente aí que se dará o processo de sul, a partir das ações de intervenção do Es-
gentrification,­demonstrado no mapa do vetor tado que ocorreram na década de 1990, com
da especulação imobiliária. a conclusão de seis etapas e o início de uma
Ao observar o mapa do vetor da espe- sétima que se arrastou até o final do ano de
culação imobiliária do Parque Histórico do Pe- 2008, quando, já em outro governo, foram re-
lourinho é possível identificar uma semelhança tomados os trabalhos de restauração, seguin-
com o caso relatado por Authier (2006), que do novos moldes de ação, como o de colocar
tratou sobre o bairro de Saint-Georges, em funcionários públicos habitando as casas
Lyon. Da mesma forma que em Lyon ocorreu que estavam em ruínas e foram restauradas
uma estratificação populacional, ficando a (Quadro­ 2).

Quadro 2 – Impactos das ações no Parque Histórico do Pelourinho


por etapa, até 2007

Móveis Moradores Comerciantes


Etapa Área – m2 Conclusão Quarteirões
restaurados indenizados indenizados

1 33.053 1993 89 4 338 100


2 11.088 1994 47 2 158 18
3 12.476 1994 58 3 374 55
4 47.525 1994 140 7 718 222
5 1996 130 2 45 22
6 1996 101 5 592 93
7 Até 2007 141 10 357 98

Fonte: Bonfim (2007), IPAC (2007).

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Daniel de Albuquerque Ribeiro

O programa de recuperação do Pelouri- a serem adquiridas é o da visão que se pode


nho teve por meta a criação de uma espécie ter para a Baía de Todos os Santos situa­da a
de shopping­ center a céu aberto. Inicialmente oeste do Parque. A valorização do Carmo se in-
o espaço passou a ser frequentado pela popu- tensificou ainda mais com a chegada do Hotel
lação da cidade, ao mesmo tempo em que au- do Carmo, sendo o primeiro hotel histórico de
mentou o fluxo de estrangeiros, principalmen- luxo do país e pertencente ao grupo Pestana.
te vindos da Europa. Três motivos principais Seria o início da ação do grande capital e do
podem explicar isso. Primeiro, a valorização fim de uma gentrification até então esporá-
do euro em relação ao real. Segundo, devido dica, similar à definição de Smith. O vetor da
ao investimento do Estado no turismo, tendo especulação­continuou seguindo em direção
sido o próprio programa de recuperação um ao Norte, chegando ao bairro do Santo Antô-
projeto com fins turísticos. E agregando valor nio Além do Carmo, que merece um destaque
a isso, a maior divulgação da cidade de Salva- especial para quantidade de empreendimentos
dor pelo mundo, através do grupo Olodum que comerciais voltados ao turismo, já identificados
após gravar clipes com atrações internacionais na área em 2007 (Figura 2).
como Paul Simon, teve seu apogeu com a par- De acordo com a pesquisa (Ribeiro,
ticipação no clipe They Don't Care About Us do 2011), bairros que tinham características resi-
popstar Michael Jackson, sendo o próprio Pe- denciais foram gradativamente se modificando
lourinho um dos cenários do vídeo. a ponto de essa função ser reduzida a 36%
Com a vinda de estrangeiros, o vetor da da área (Figura 3). Em segundo lugar vem as
especulação começou a correr em direção ao edificações tidas em diversas situações que as
Norte, tendo sido o bairro do Carmo (Centro da caracterizam como vazias, representando 27%
Poligonal) o primeiro a ser procurado, principal- do total. Em terceiro, a função comercial com
mente pelos turistas que se interessavam em 22%. Contudo, se as edificações com mais de
morar no lugar e certamente devido à proximi- uma unidade imobiliária tivessem as unidades
dade do mesmo com o Pelourinho. Outro fator vazias computadas no cálculo, o percentual
geográfico definitivo na escolha das edificações­ desse grupo subiria consideravelmente.

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Reflexões sobre o conceito e a ocorrência do processo de gentrification...

Figura 2 – Estabelecimentos do Santo Antônio Além do Carmo, em 2007

Classificação por atividades


econômicas e serviços
Residências
Bares e lanchonetes
Igrejas, escolas, associações e outros
Outras atividades comerciais
Pousadas, hotéis, restaurantes, ONGs
e monumentos

Fonte: Ribeiro (2008); Base: Conder, Sicar (1992).

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Daniel de Albuquerque Ribeiro

Figura 3 – Função e disfunção no Parque Histórico do Pelourinho

Hidrografia

Vazio; não foi encontrado; Iguatemi; abandonado; ruína;


fechado; a alugar; à venda
Assoc; consulado; gov; igreja; museu; ong; org; rel; fundação
Invadido; não quis responder; reformando
C
M
R
Vias
Quadras

Fonte: Ribeiro (2011). Base: Conder, Sicar (1992).

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Reflexões sobre o conceito e a ocorrência do processo de gentrification...

Enquanto no Pelourinho ocorreu a ex- de moradores mais recentes do lugar. Esses


pulsão da população, seguida da instalação moradores­estariam enquadrados no grupo ca-
de equipamentos e instituições estatais, ongs racterístico do processo de gentrification. Já ao
e outras entidades, com destaque para pon- norte da mesma, há uma maior concentração
tos comerciais, no Carmo, aos poucos houve dos moradores mais antigos.
o esvaziamento das edificações devido ao alto É válido chamar atenção para o fato de
preço dos imóveis. Já o Santo Antônio passou que um morador ser novo no lugar não o tor-
por diferentes fases. A primeira viu uma mes- na necessariamente um agente característico
cla entre a população mais antiga e os novos da gentrification. Do mesmo modo, moradores
moradores que iam chegando e adquirindo os mais antigos podem se enquadrar no recorte
imóveis. Em um segundo momento, a especula­ social do processo. Isso reforça o conceito de
ção ficou forte e se viu crescer a quantidade upgrade trabalhado por Criekingen (2006), ao
de pousadas bem como o preço das proprie- mesmo tempo em que demonstra a pluralida-
dades que chegou a aumentar 20 vezes em de, complexidade e relação da Teoria do Caos,
alguns casos. Em um terceiro momento, já era com o processo de gentrification, como foi bem
perceptível uma redução significativa da popu- explicado por Bauregard (1996).
lação mais antiga. Associado a isso, o Estado Na pesquisa realizada em 2011 (Ribei-
começou a agir na área implementando alguns ro, 2011), a remoção populacional da área já
projetos que visavam valorizar o bairro. Nesse era evidente, ao se observar que apenas 36%
período, a ação do Estado pode ser compara- das edificações tinham função residencial e
da com o caso de Barcelona, pois a valorização 3% função mista. Todavia, dos moradores da
e consequentemente expulsão dos moradores poligonal, uma parcela considerável se mu-
mais pobres foram induzidas. Um exemplo foi dou para o local há menos de 18 anos, período
a reforma de alguns equipamentos urbanos no que configuraria o recorte temporal associado
bairro do Santo Antônio que contribuiu para a à gentrification no Parque Histórico do Pelou-
valorização do lugar. Não se quer afirmar com rinho. Ainda foi estabelecida uma margem
isso que a indução da saída de moradores pela temporal de segurança, de moradores que não
valorização do local foi intencionalmente pro- seriam considerados nem como específicos do
vocada pelo Estado, mas chama-se a atenção processo, nem como não sendo. Por fim, os
para o fato de que foi uma consequência. moradores que estivessem residindo no local
Ainda no mapa da função e disfunção há mais de 25 anos foram considerados como
(Figura 3) pode-se perceber que a quantidade estando fora do grupo relativo à gentrification.
de edificações vazias é bastante significativa Com isso, percebe-se que metade dos mora-
em todo o Parque, do mesmo modo em que dores que sobraram no lugar já foram pessoas
o Sul concentra um maior esvaziamento, que que substituíram antigos residentes. No mapa
é agravado se considerarmos a quantidade de tempo no lugar, estão computados também
de instituições que não funcionam à noite. No dados relativos a edificações com função co-
centro da poligonal, há a maior quantidade mercial (Figura 4).

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Daniel de Albuquerque Ribeiro

Figura 4 – Tempo no lugar

Fonte: Ribeiro (2011). Base: Conder, Sicar (1992).

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Reflexões sobre o conceito e a ocorrência do processo de gentrification...

Combinando as informações do mapa de população oriunda de outros estados e muni-


tempo no lugar com uma análise mais apurada cípios brasileiros do grupo III. Ao checar a ori-
dos dados (Tabela 1), é possível compreender gem da população vinda de outros estados do
melhor o perfil populacional dos três grupos grupo III, constatou-se que a mesma é formada
temporais estabelecidos. Ao analisar o Quadro basicamente de outros estados nordestinos. Já
2, constata-se que o grupo dentro do tempo os oriundos de outros estados do grupo I vie-
relativo ao processo de gentrification (grupo I) ram em sua maioria do Sul e Sudeste.
tem o maior número de estrangeiros, bem co- A gentrification no Parque Histórico do
mo uma razoável quantidade de pessoas oriun- Pelourinho fica caracterizada, então, por diver-
das de outros estados e municípios. sos fatores, que envolvem questões socioeco-
Já o grupo de moradores mais antigos nômicas e que ficam claramente definidos de
(grupo III) conserva uma maior quantidade de acordo inclusive com a origem da população.
nativos e uma distribuição equilibrada entre Um exemplo claro disso é quando fazemos
pessoas nascidas em outros bairros de Salvador uma comparação do grau de conservação das
ou outros municípios baianos. Ainda percebe- edificações, de acordo com a origem de cada
-se uma quantidade menor de pessoas vindas proprietário. Ao comparar os dados, percebeu-
de outros bairros e países. Excluindo o grupo -se que os estrangeiros não tinham, até aquele
II da análise e fazendo uma comparação entre momento, edificação em estado ruim de con-
outros dados relativos a cada grupo, percebeu- servação. Lembrando que a maioria dos estran-
-se que o padrão socioeconômico do grupo I é geiros compõe o grupo I (dentro do recorte de
maior que o do grupo III. Ao checar as origens gentrification). A proporção se equilibra entre
de cada grupo, uma nova constatação foi al- os oriundos de outros estados, municípios baia-
cançada. Enquanto os estrangeiros do grupo I nos e bairros soteropolitanos. No entanto, se se-
vieram em sua maioria de países como França, pararmos a população vinda de outros estados
Itália, Dinamarca, Alemanha e Inglaterra, os de acordo com os grupos I e IIII, constataremos
estrangeiros do grupo III são em sua maioria que não há edificações mal conservadas no gru-
portugueses e espanhóis. Esses estrangeiros po I. Essa lógica de padrão financeiro pode ser
apresentam um padrão financeiro superior à seguida para os outros casos (Gráfico 1).

Tabela 1 – Perfil da população, segundo a relação Tempo x Origem

Tempo no lugar Função


Quant. Origem Carro
Grupo I Grupo II Grupo III Comerc/Mista Residenc
15 Nativo 4 1 10 10 5 5
199 Loc_SAL 114 18 67 49 118 59
96 Mun_BA 42 9 45 33 63 47
30 Est_BR 12 4 14 14 16 10
47 Out_País 34 6 7 30 17 18

Fonte: Ribeiro (2011).

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Daniel de Albuquerque Ribeiro

Gráfico 1 – Conservação das edificações


segundo o perfil de origem da população

Fonte: Ribeiro (2011).

O fim da gentrification Depois de restaurar esse casarão aqui do


Carmo, o que vai acontecer com ele?
ou uma estratégia Ainda não sei. Eu estou com 35 imóveis
dos agentes imobiliários? aqui no Carmo. Meu projeto vai daqui, da
Praça do Santo Antônio, até a Ladeira do
Boqueirão. Quero fazer um mix de res-
Em 2008, o grupo Iguatemi da Bahia (Holding taurantes, lojas bacanas, galerias de arte,
LGR) iniciou a compra de edificações nos prin- espaços culturais, moradias (algumas de
frente para o mar), escritórios... Eu ainda
cipais logradouros do Carmo e Santo Antônio
não defini o que será no casarão, mas ele
Além do Carmo, a Rua do Carmo e a Rua Direi- é a âncora do projeto. (Muito, 2009, p. 11)
ta do Santo Antônio, respectivamente. A meta
era adquirir 64 edificações com a ambição de No decorrer da entrevista, a empresária
fazer um projeto similar ao Pelourinho, só que menciona Londres e compara a ideia do projeto
trazendo grifes famosas e mesclando empreen- com o que ocorre na cidade inglesa. Tal menção
dimentos comerciais com residenciais. A princi- traz mais um indício de que o projeto estava
pal figura à frente do grupo foi a da empresária claramente enquadrado em moldes típicos de
Luciana Rique. gentrification. Essa cópia do modelo londrino­

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Reflexões sobre o conceito e a ocorrência do processo de gentrification...

fica evidente quando a entrevistada faz a se- depreciativa da região foi a implementação do
guinte declaração: Ponto de Encontro. O Ponto de Encontro foi
um centro de tratamento de viciados em dro-
Veja em Londres, por exemplo, todos os
lugares bacanas tem gente morando, tem gas, localizado bem em meio a um bairro resi-
lojas bacanas. Acho que é isso que dá vi- dencial – o Santo Antônio Além do Carmo – e
da a um lugar. Não quero que seja como que levantou muitas queixas dos moradores,­
no Pelourinho, onde quem chega acaba pelo fato de os usuários ficarem no meio da
tudo e pronto. Todos os investimentos vão
rua, abordando a população e causando ou-
embora. (Muito, 2009, p. 12)
tros tipos de transtornos. É essencial salientar
Contudo as ações do Iguatemi encon- que o local onde foi implementado o projeto
traram problemas inesperados. Primeiramen- havia sido adquirido pelo Iguatemi e seria o
te, o grupo se deparou com a resistência por ponto onde funcionaria o Instituto Newton Ri-
parte de alguns moradores em sair de suas que. No final de 2013 com a mobilização dos
casas. Mesmo com o assédio financeiro, muitos moradores, o Ponto de Encontro foi removido
pessoas não querem vender suas residências. do bairro.
Ao mesmo tempo, não interessa ao Iguatemi Não se dispõe de prova concreta para
comprar apenas uma parte das edificações. confirmar a insinuação de que a implemen-
Além disso, a própria empresária se queixa tação de projeto como o Ponto de Encontro
de que não recebeu o apoio que esperava do no bairro do Santo Antônio Além do Carmo
governo para realização de seus planos. Com faz parte de uma ação dos agentes econômi-
isso, percebe-se que o Estado também muda de cos que atuam na região visando expulsar os
posição no jogo da gentrification, confirmando moradores que ali permanecem. No entanto,
mais uma vez a aleatoriedade e imprevisibilida- algumas questões podem ser levantadas refor-
de típica de um processo caótico. Os resultados çando argumentos para a suspeita. Primeiro, se
da ação do Iguatemi foram desastrosos para a o Iguatemi anunciou a venda das edificações
área. Não conseguindo comprar todas as casas, em 2008, porque até hoje essa ação não foi
o grupo que já havia adquirido 35 edificações realizada? Seria isso uma estratégia para de-
anunciou que as colocaria à venda e com isso sacelerar a especulação imobiliária? Algo simi-
contribuiu para ampliação do número de resi- lar foi relatado por Smith, quando menciona o
dências vazias no lugar. É importante lembrar caso de autores que chegaram a sugerir uma
que muitas propriedades adquiridas estavam desgentrification. Segundo, estando a Copa do
alugadas por famílias que não gostariam de Mundo prestes a ser realizada, seria realmen-
sair de suas casas, mas se viram intimadas a te do interesse desse grupo pôr à venda suas
abandonar o lar. aquisições nesse momento? Terceiro, por que
Uma questão a ser levantada é se real- o Ponto de Encontro foi implementado em um
mente houve desistência do grupo ou se isso prédio que seria instalado o Instituo Newton
não se trata de uma estratégia que visa des- Rique? Ainda nessa questão, vale ressaltar que
valorizar o lugar. Um exemplo da possibilidade o Ponto de Encontro estava localizado próximo
de que esteja havendo uma ação com intenção­ a algumas das famílias que não venderam suas­

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residências e bem no Centro da Rua Direita do gentrification­ terá diferentes peculiaridades a


Santo Antônio. A incerteza do que ocorrerá no depender do lugar onde se estabelece.
Parque Histórico do Pelourinho deixa muitas O Parque Histórico do Pelourinho, lo-
questões abertas. A resposta para elas depen- calizado na cidade de Salvador – Bahia, é um
derá das ações dos distintos agentes mode- importante conjunto urbanístico, tombado pelo
ladores do espaço, tal como o Estado, os pro- IPHAN e delimitado a partir de um decreto es-
motores imobiliários, os agentes econômicos, tadual de 1987. A partir da década de 1990, se
a população, a igreja e o grupo dos excluídos. iniciou nessa área uma espécie de gentrification­
Cabe aos pesquisadores continuarem acompa- forçada pelo Estado, que removeu a população
nhando os fatos, ficando aqui uma contribuição de baixa renda da parte Sul e implementando
para posteriores análises. ali um projeto de cunho turístico, com carac-
terísticas comerciais. A consequência disso foi
a expansão da valorização dos imóveis desse
espaço urbano. Com isso, o vetor da especula-
Considerações finais ção imobiliária e do processo de gentrification
seguiu em direção ao Norte do Parque.
Gentrification é um processo urbano, específi- Tendo passado por uma fase esporádica
co de localidades centrais e com característi- e espontânea, o fenômeno se consolidou e co-
cas históricas que se destacam em relação ao nheceu a ação do grande capital, após a im-
conjunto urbanístico de uma cidade específica. plementação do Hotel do Carmo pertencente
No que diz respeito a seu recorte temporal, ao grupo Pestana. Contudo, foi com a chegada
ele é coincidente com a pós-modernidade. do grupo Iguatemi que os bairros do Carmo e
Ao mesmo tempo, existe um público especí- Santo Antônio conheceram a face mais perver-
fico que compõe esse processo, uma vez que sa da gentrification. Hoje tendo quase meta-
ele implica a substituição de uma população de de suas edificações esvaziadas e menos de
de baixo poder aquisitivo por outra de maior 1/3 de sua população mais antiga vivendo no
renda. A presença do grande capital e das in- lugar, o Parque passa por uma fase de desva-
fluências da globalização também compõe as lorização que pode ser fruto de uma ação dos
suas especificidades, no entanto o processo de agentes econômicos que atuam na região.

Daniel de Albuquerque Ribeiro


Universidade Federal da Bahia, Departamento de Geografia. Salvador/BA, Brasil.
daniel.ocazul@gmail.com

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Reflexões sobre o conceito e a ocorrência do processo de gentrification...

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Texto recebido em 16/out/2013


Texto aprovado em 17/abr/2014

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