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Bjorn LOMBORG, O ambientalista cético. Rio de Janeiro: Elsevier, 2002.
oficiais dos vários países, mostra que a "crise ecológica" não está acontecendo, ou
pelo menos não é tão grave quanto dizem; que as reservas naturais do planeta não
estão se esgotando de maneira alguma; que, de modo geral, a sociedade industrial
tem se encaixado bem ao ambiente e, ao contrário, tem criado meios suficientes para
resolver todos os problemas ecológicos que aparecem; enfim, que não há motivo
para se acreditar que o planeta Terra está acabando. Ele tem razão ou não tem? Não
sei! Mas não vai dar para saber. Por quê? Porque, a esta altura, todos os cientistas
interessados neste negócio já arrumaram emprego em alguma ONG ecológica.
E a ONG ecológica, como arruma dinheiro para pesquisa? Chegando nos
políticos e empresários e traçando-lhes um panorama alarmista, dizendo: "Olha, se
vocês não me derem dinheiro para pesquisar esse negócio, o mundo vai acabar!". De
repente, chega um sujeito e diz que o mundo não está acabando. É um perigo
temível. Houve uma mobilização mundial de cientistas para tapar a boca do sujeito,
mas não sei se ele tem razão ou não. Sei que a possibilidade de uma investigação
científica sobre a hipótese que ele lançou já está muito difícil de se realizar. A
investigação passou do domínio científico para o domínio político. O domínio
político é aquele no qual não interessa saber quem tem razão, mas saber quem tem
mais adeptos. Como dizia Carl Schmidt, você vai somar os amigos contra os
inimigos. Se os amigos forem mais que os inimigos, você ganhou; se não forem, você
perdeu. E é exatamente assim que está a questão do Ambientalista cético, assim
como milhares de outras questões científicas.
Felizmente, em História da Filosofia, não dependemos tanto de verbas,
porque o nosso material de estudo, embora caro na escala do indivíduo, já não é
assim tão inacessível, tanto que eu pude realizar toda esta pesquisa e posso estar
dando este curso sem nenhuma verba de departamento - não tive que pedir verba
para nenhum chefe, não tem chefe não dependendo de universidade alguma;
simplesmente agora já fiz, agora não podem impedir de fazer porque já está feito.
Minha ideia foi partir de certas realidades básicas que não fazem parte da
História da Filosofia, mas que determinam a simples possibilidade de existir uma
Filosofia. Quais são as condições objetivas, de reais até materiais, que estão dadas no
início do surgimento da Filosofia e sem as quais ela não seria possível? Esta pergunta
tem que ser respondida de uma maneira não apenas empírica - não vamos investigar
cientificamente esses fatos para demonstrar que eles aconteceram -, mas de uma
maneira puramente teórica e apodíctica, quer dizer, absolutamente irrefutável no seu
próprio enunciado.
A primeira das regras que formulam meu método pode ser enunciada
assim:
1ª - Se existe uma História da Filosofia, é porque a Filosofia não nasceu pronta.
Alguém é capaz de refutar esse enunciado? Estou falando de uma reali-
dade óbvia, até banal, mas justamente por ser óbvia e banal constitui um desses
pontos de referência que podemos tomar como baliza durante todo o conjunto da
nossa investigação, sabendo que qualquer conclusão a que cheguemos na
investigação dos fatos particulares que pareça desmentir esse princípio será falsa;
portanto, estaremos na pista errada.
O segundo princípio, que pode ser derivado do primeiro, é que, se a
Filosofia não nasceu pronta - porque se nascesse pronta não teria história -, seria o
simples enunciado de um fato que se completou num determinado momento.
2a - Se a Filosofia não nasceu pronta, ela não pode ter nascido como uma realidade
existente, como uma estrutura dada, mas tem que ter d parecido sob a forma de um projeto ou de uma
ambição a realizar.
Isto quer dizer que, se a Filosofia tem um começo no tempo, e se
podemos chamar esse começo no tempo de um primeiro filósofo, embora haja
vários primeiros, temos que admitir que o primeiro filósofo, quando começou a
filosofar, não tinha filosofia alguma. Se a tivesse pronta desde o primeiro momento,
como uma espécie de intuição única, então a própria atividade caracteristicamente
filosófica, sobretudo dos começos da Filosofia, que é justamente a discussão
filosófica, ela simplesmente não teria acontecido. Existiria o enunciado de uma
doutrina pronta, que teria que ser aceita ou rejeitada em bloco, mais ou menos como
acontece com as religiões, mas que não poderia ser discutida, nem validada ou
invalidada de modo parcial, o que é justamente uma característica dos sistemas
filosóficos.
Dificilmente se verá um filósofo impugnando ou validando o sistema do
outro por inteiro. Ao contrário, numa doutrina religiosa, se você impugnou um
pedaço, o que você fez? Você acabou de fundar uma heresia. Você não é
considerado mais um crente ou um seguidor daquela religião, mas sim o fundador de
outra - uma outra que, para os seguidores da primeira, será necessariamente herética.
E você vai dizer que heréticos são eles. Isso significa que o tipo de discussão que
vemos acontecer no curso da História da Filosofia é especificamente diferente da
discussão que aparece em Teologia, em Religião.
[Aluno: Mas, nesse caso, não seria uma tentativa de realizar o projeto?]
Não, mas este fato, da impugnação, faz parte da história do projeto. Claro
que faz, porque estamos contando a história real, não apenas a história interna.
[Aluno: Então, para ser filosofia, bastaria simplesmente que o filósofo
manifestasse a consciência de que existe esse projeto?]
Não! Não! É necessário que ele faça parte objetivamente da história do
projeto - e objetivamente significa também conscientemente, é claro! Pode ser uma
participação inconsciente... Não, eu não excluo essa hipótese, mas eu nunca vi
nenhum exemplo disto. Existem participações apenas semiconscientes. Por
exemplo, quando chegamos no século XX, o mundo anglo-saxônico é em grande
parte dominado por uma certa escola de pensamento, a Escola Analítica.
Ela restringe muitíssimo o campo do projeto filosófico. Automatica-
mente, questões que sempre foram consideradas filosóficas passam a ser tratadas por
estudiosos de outro campo, especificamente na crítica literária. Isso quer dizer que,
para se estudar a História da Filosofia anglo-saxônica, tem-se que dar uma olhada no
departamento de Letras, porque muitas vezes o crítico literário está prosseguindo o
diálogo com o projeto filosófico de uma maneira até mais explícita do que faz o
filósofo profissional.
Ele o faz conscientemente, mas com a devida interferência dos fatores
burocráticos, funcionais etc. (...) Tudo aquilo já faz parte da História da Filosofia,
porque é um diálogo com a tradição filosófica. Mas o sujeito não poderia chegar e
dizer: "Eu sou filósofo, portanto, vou entrar no seu departamento e tomar o seu
lugar". Existe uma espécie de deferência para com a organização burocrática do
trabalho intelectual que fará que distinções meramente convencionais entre certas
disciplinas sejam aceitas como se fossem reais, embora todo mundo saiba que não
são.
É um problema de educação, um problema de polidez, mas que para nós
não vem ao caso. Temos que contar a história como ela realmente aconteceu. Isso
quer dizer que, no mundo anglo-saxônico, encontraremos uma massa imensa de
Filosofia que não ousa dizer o seu nome, embora saiba que é Filosofia.
. Esse fator da distinção entre tradições nacionais entra na História da
Filosofia a partir do século XIX, com uma força cada vez maior, a ponto de, quando
se compara a filosofia do bloco anglo-saxônico com o que eles chamam de bloco
continental - e se compara com o terceiro bloco, que seria o bloco soviético -, vai-se
ver que na simples expressão do projeto filosófico eles já não se entendem
absolutamente.
Vamos estudar, mais tarde, um breve texto de um excelente historiador
chamado Wolfgang Stegmüller, em que ele dá um breve panorama da fragmentação
da noção de Filosofia no século XX. Veremos como isso é um capítulo dramático,
um capítulo fascinante da história do projeto, porque as pessoas começam a fazer
coisas desencontradas que levam mais ou menos o mesmo nome, e, às vezes, não há
sequer a condição de um compreender o que o outro está fazendo. Creio que, hoje
em dia, neste ano 2002, nós já estamos saindo dessa situação descrita por ele por
volta de 1960 a 1970.
Parece que uma unidade autoconsciente da discussão filosófica se tornou
novamente possível nos últimos anos, mas durante uns cinqüenta anos o sujeito que
falava sobre "Filosofia" nem sabia mais o que queria dizer, tanto que é característica
dessa fase a produção de manuais de Filosofia que ainda estão em uso, e a primeira
coisa que dizem é que é impossível defini-la. É incrível que praticamente todos os
manuais introdutórios de uma certa "noção" do conhecimento comecem dizendo:
'Ah, nós não sabemos o que é!". Mas isto aconteceu durante uma certa fase da qual
me parece que já estamos saindo. Quer dizer, as fases de confusão e de
obscurecimento também fazem parte da história do projeto.
[Aluno: Mas a minha pergunta, na verdade, tinha um (...) era um pouquinho diferente.
(...) Vamos supor, vamos tomar uma sociedade, uma cultura - digamos, a cultura ocidental - que tem
uma tradição filosófica. Vamos imaginar uma outra sociedade, ou uma outra cultura, com uma outra
tradição filosófica...]
E uma terceira sem tradição filosófica, para complicar.
[Aluno: Sim, digamos (...) a segunda, que tem uma outra tradição filosófica, que não
tenha a menor idéia da existência dessa (...). E possível falar em dois projetos filosóficos (...) ambos
tem no mínimo características em comum, necessariamente?]
Isso tem que ser resolvido pelo método do Ranke: contar as coisas como
elas efetivamente aconteceram. Quer dizer, nós não vamos ter uma resposta teórica,
porque estamos buscando uma resposta histórica. Então, se você der a resposta
teórica de antemão, você está falhando no objetivo da própria ciência.
[Aluno: Mas se a gente admitir a possibilidade de haver dois projetos, aí vai impugnar
um dos princípios (...) que é a unidade do projeto?]
Não! Mas a unidade do projeto não é um dos princípios! Note bem, eu
disse primeiro que a Filosofia é um projeto; segundo, que ela não nasce pronta;
terceiro, que seus fundadores tinham consciência de que é um projeto. Se esse
projeto tem unidade, se essa unidade permanece estável - ou se ela é mudada, ou se
ela é cortada -, isto é justamente o conteúdo da História da Filosofia. Portanto, até o
abandono total do projeto fará parte de sua história, evidentemente. Porque, note
bem, não estamos contando a História da Filosofia do ponto de vista de uma
disciplina filosófica em particular, mas do ponto de vista de uma ciência soberana e
autônoma que é a História da Filosofia.
Se assumíssemos uma doutrina em particular e a chamássemos
especificamente de Filosofia, então certamente a nossa história seria interrompida
tão logo essa disciplina fosse abandonada. Por exemplo, se nós somos platônicos de
estrita observância e chamamos de Filosofia aquilo que se faz dentro da Academia
platônica, então, quando acaba a Academia platônica - e acaba no reinado de
Constantino -, acaba a História da Filosofia. Mas não é esse o ponto de vista deste
método. O ponto de vista deste método é abranger todos os fatos que tenham uma
relação qualquer com o projeto originário, seja para afirmá-lo, seja para impugná-lo,
ou seja um terceiro tipo de relação, que é justamente esse que você está levantando: a
da similitude objetiva entre dois projetos que historicamente não têm conexão entre
si, mas que, tão logo alguém tome conhecimento da existência de ambos, cria-se a
conexão histórica.
[Aluno: Mas, então, tudo que o senhor está dizendo em relação ao projeto se aplica a
cada tradição filosófica internamente?...]
Não, se aplica a todas elas, porque, veja, qualquer elemento proveniente
de qualquer cultura, de qualquer época, ele tem a possibilidade permanente de ser
integrado no diálogo consciente. Basta que alguém diga aquilo. Vou lhe dar um
exemplo característico desse problema que você mencionou: por exemplo, no
mundo islâmico, o fenômeno fundamental da civilização islâmica é o Corão. Como o
Corão é objeto de uma profecia, quer dizer, ele é trazido ao mundo através de um
profeta, que é Maomé, então a profecia é o acontecimento principal. Por todo o orbe
onde se espalha a tradição islâmica, ela se espalha de uma maneira um pouco
diferente do que se espalha o cristianismo.
O cristianismo se espalha, note bem, como uma notícia de algo que
aconteceu. Quer dizer, houve um sujeito que esteve aí, disse que era filho de Deus,
fez um monte de curas miraculosas e, pior, morreu e daí reapareceu. O que foi que
ele disse? Ah! Uns dizem que foi isso, outros dizem que foi aquilo... Havia um monte
de versões, e essas versões tiveram que ser examinadas e comparadas, e só muito aos
poucos foi se estabilizando o que seria o conteúdo da doutrina cristã. O cristianismo
se espalha apenas com uma notícia de um fato - o próprio nome Evangelho quer
dizer "uma boa notícia".
No mundo islâmico a coisa não se transmite assim. Por quê? O que é
transmitido não é apenas a narrativa de um fato, é um livro pronto, e um livro pronto
que, quando o sujeito ditou a última sentença e colocou o ponto final, não pode
mexer mais. Quer dizer, não há variação substantiva entre nenhuma versão do
Alcorão desde o século VII. Para ainda evitar dúvidas, o primeiro sucessor pegou um
certo registro, que as pessoas mais próximas de Maomé consideraram fidedigno, e
mandaram queimar todas as outras, e até agora tudo tem que ser copiado dali para
não ter problemas. Isso quer dizer que o fenômeno da profecia e o fenômeno do
livro sagrado são o acontecimento fundamental da história islâmica.
Naturalmente, isso se torna objeto de reflexão filosófica, e existe então,
durante séculos, todo um desenvolvimento de uma "filosofia da profetologia" que
até o século XX permanece totalmente ignorada no mundo ocidental. Mais ainda, era
ignorada até nos próprios países islâmicos! Por quê? Pelas condições sociais
específicas em que se desenvolve seja a atividade religiosa, seja a atividade filosófica
dentro do contexto islâmico. Pelo simples fato de haver um livro pronto, então
existe uma doutrina estabelecida que desde o primeiro dia já não é mais para se
questionar, só se pode questionar a interpretação daquilo.
Veja que o mesmo não acontece no mundo cristão. Para chegar a um
texto mais ou menos estabilizado já foi um problema, então o texto mesmo já é
objeto de discussão. No mundo islâmico, não tem isso. Por causa disso, então,
forma-se desde o início - e com a maior facilidade – uma moral islâmica e um direito,
uma jurisprudência islâmica, mediante a aplicação direta da letra do Corão. No
mundo cristão, para aparecer uma moral cristã e um direito cristão, foram séculos,
séculos e séculos. Para você ter idéia, a primeira formulação sistemática da moral
cristã ocorre no século XVIII, com Santo Afonso de Ligório.
Esse Santo Afonso era um bispo, era confessor dos padres, e daí ele
descobriu que cada padre estava ensinando uma moral completamente diferente, isto
no século XVIII. Esse problema no mundo islâmico nunca existiu, porque tudo já
vem organizado dentro do princípio.
Como existiu esse fenômeno do direito islâmico unificado desde o
princípio, as sociedades islâmicas se organizam desde o primeiro dia com base numa
grande coesão moral e jurídica; portanto, trata-se de uma ortodoxia muito rígida. Isto
quer dizer que a possibilidade da livre investigação intelectual era problemática nesse
contexto. Qual foi a solução que eles encontraram? A solução foi considerar os
grupos de investigadores, seja de ordem mística, seja de ordem filosófica, como tipos
humanos especiais que conduzem sua atividade dentro do seu grêmio, de tal maneira
que isso não deva interferir em nada na ordem das coisas. Isso quer dizer que a
atividade de discussão mais profunda era considerada um assunto para um círculo
especializado e que o restante da sociedade não tinha nem que entender. Com isso,
formam-se certas ordens quase que de tipo monástico, que de geração em geração
vão discutindo aquelas mesmas coisas para seu proveito próprio e sem nenhuma
tendência de influenciar a sociedade maior. Esse direito lhes é assegurado, contanto
que não se mude o direito, a moral, porque tudo já está afixado.
Isso quer dizer que, em muitos países islâmicos, toda esta tradição mística
ou filosófica é totalmente ignorada pela população, e em muitos casos todo o seu
material, sua discussão interna, passou de geração em geração, durante séculos,
como simples registro manuscrito que ninguém pensava em copiar, editar para fora.
É como se fosse cada um uma maçonaria. Quando chega na década de 1930, já no
século XX, por uma coincidência providencial, o embaixador francês no Irã, Henry
Corbin, interessou-se em começar a traduzir tudo isso, então muito desse material
saiu primeiro em francês e - ele era embaixador na Pérsia - só depois em língua persa.
Mais ainda, quando se deu a revolução persa, a revolução iraniana, os aiatolás
mandaram parar tudo isso.
Quando vemos toda essa tradição que se desenvolve a margem da
filosofia ocidental, todas elas têm alguma referência a Aristóteles, Platão e Sócrates.
É uma tentativa marginal (marginal em relação a nós, para eles nós é que somos
marginais) de realizar o mesmo processo, o mesmo projeto, dentro de um contexto
completamente diferente, e que para nós, aqui, torna-se quase difícil de imaginar.
Pior ainda, quando você abre a caixa, você descobre que a Pérsia sozinha teve quase
que mais filósofos que a Europa inteira, então isso aí complica formidavelmente a
missão de contar a história, mas a torna mais interessante ainda.
Essa possibilidade de tradições que se ignoram completamente, mas que
de algum modo têm uma referência, isso acontece. Existe a possibilidade de uma
tradição que não tenha referência histórica, isso é, as pessoas não sabem que estão
fazendo a mesma coisa, mas que tenha uma analogia substantiva? Existe. Na China
se encontra isso. Para quem nunca soube que existiu, na China, na índia existe. Por
exemplo, quando se pega a tradição de comentários védicos ou, dentro do contexto
budista, as discussões interpretativas dos discursos do Buda, esse pessoal, tentando
explicar o texto sacro, é levado às vezes a enfrentar certos problemas de ordem, em
primeiro lugar, lógica, que os fazem arquitetar sistemas lógicos inteiros sem nunca
ter ouvido falar de Sócrates, nem de Aristóteles. Uns sem saber dos outros chegam a
problemas parecidos, o que mostra que a Filosofia como problema e como projeto é
uma dimensão possível da existência humana, e que ela pode reaparecer sem
conexão histórica.
Os requintes, por exemplo, da lógica vedantina ou da lógica budista - para
quem estudou o desenvolvimento da lógica na clave ocidental e só depois descobre
isso - ficam parecendo uma maravilha. No fundo, é exatamente a mesma coisa, mas
descoberto por uma via completamente diferente que nunca se imaginou que fosse
possível. Por exemplo, aqui, na tradição aristotélica, a disciplina chamado Lógica
sempre trabalhou na ideia linear da identidade, quer dizer, se é sim, é sim; se é não, é
não. Existe um confronto de sim com não na esfera dialética, mas isso se
desenvolveu pouco. A ciência da dialética se desenvolve muito pouco em
comparação com a ciência da lógica. Em outros contextos, se chama de Lógica o
estudo conjunto do que nós chamamos de identidade e de três das suas negações
possíveis. Então, o princípio de identidade é o seguinte: se é, é; se não é, não é. Se é
e não é, ao mesmo tempo, esse é um problema dialético, a confrontação de
contrários. Confrontação de contrários não faz parte da ciência da Lógica, que
aprimora apenas o raciocínio na linha de identidade. Mas no mundo budista se
chama isso de Lógica também. O budista admite quatro possibilidades: tem o que é;
tem o que não é; tem o que é e não é; e tem o que nem é, nem não é.
Isso agrupa todo o mundo da confrontação dialética dentro da ciência da
Lógica, que é uma ideia que só foi ocorrer no Ocidente muito tempo depois - que
não a contradiz de maneira alguma, mas ninguém tinha pensado em fazer isso. Essas
coisas, então, tornam o campo da História da Filosofia imensamente maior do que
geralmente os manuais abordam, e uma das vantagens que eu creio poder ostentar
com meu método é o fato de que ele integra facilmente, na História da Filosofia,
essas outras tradições que realmente são consideradas estranhas.
Dito de outro modo: considero que a maior parte das histórias da
Filosofia que existem, se não todas elas, partem de um conceito demasiado limitativo
do que seja a Filosofia, porque, não tendo conseguido alcançar um conceito geral
suficientemente abrangente de modo que abarcasse todas as variações possíveis, eles
fazem um conceito provisório de ordem puramente empírica, que chama de
Filosofia certas coisas que certas pessoas têm feito. Quando botaram esta definição
aqui no quadro - "Filosofia é a unidade do conhecimento na unidade da consciência,
e vice-versa" -, esta é a definição que eu encontrei, e creio que ela é suficientemente
universal para abranger todas as manifestações possíveis.
Partindo de uma definição mais ampla, e do conceito da Filosofia como
projeto, para nós tanto faz se isso veio da China, veio da índia, veio de outra tradição
completamente diferente. Nós podemos abarcar aqui o que se chama a
filosofia-cosmovisão do "homem primitivo" (para mim não existe homem
primitivo). Tudo isso se encaixa de algum modo dentro da História da Filosofia, sem
forçar uma unidade e sem se perder numa multiplicidade caótica. Por quê? Porque
não estamos narrando a história de uma continuidade linear, estamos narrando um
drama humano no qual o imprevisto, o descontínuo entram exatamente como
entram na vida de qualquer um de nós.
Este é o projeto que será desenvolvido. Quando, por uma limitação de
tempo das nossas aulas, tivermos que saltar alguns pedaços, esses pedaços jamais
serão considerados desprezíveis, como geralmente acontece nas histórias da
Filosofia, que desprezam certos tópicos: "Ah! Escapa do nosso âmbito". Eu falo:
"Não, esses pedaços que nós teremos que deixar de lado fazem parte do nosso
projeto, sim, nós estamos deixando-os de lado apenas provisoriamente, por motivos
práticos".
Muitas histórias da Filosofia excluem, por exemplo, capítulos inteiros da
Filosofia Oriental, dizendo que não são "pertinentes" ao desenvolvimento daquilo.
Para mim, no meu ponto de vista, são pertinentes, sim! Quer dizer que a História da
Filosofia, tal como eu a entendo, é uma disciplina enormemente mais complexa, mas
baseada em princípios mais simples.
Leituras sugeridas
BRÉHIER, Émile. Historia de la filosofia. Trad. Demetrio Nánez. Buenos Aires:
Sudamericana, 1962. 3 v.
WEIL, Eric. Logique de la philosophie. 2.ed. Paris: Vrin, 1967.
VOEGELIN, Eric. Anamnesis. Gerhart Niemeyer (ed.).Columbia: Univ. ofMissouri
Press, J978.
GOLDSCHMIDT, Victor. Temps physique et temps tragique chez Aristote. Paris:
Vrin, 1982.
MARIAS, Julxan. Biografia de la filosofia. Madrid: Alianza Editorial, 1980.
SOURIAU, Etienne. L 'avenir de la philosophie. Paris: Gallimard, 1982.