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A PROPÓSITO DOS DOIS SÃO JOÕES1

RENÉ GUÉNON

De Os Símbolos da Ciência Sagrada, 9ª edição. Trad. J. Constantino


Kairalla Riemma.

São Paulo: Pensamento, 1993. Cap. 38, pp. 215-218.

Ainda que o verão seja de modo geral considerado uma estação


alegre e o inverno uma estação triste, e que por isso o primeiro
represente de certa maneira o triunfo da luz e o segundo o da
obscuridade, os dois solstícios correspondentes têm, na realidade,
um caráter exatamente oposto. Pode parecer que existe aí um
paradoxo bastante estranho, mas na verdade é bem fácil
compreender a razão disso, desde que se tenha algum conhecimento
dos dados tradicionais sobre o curso do ciclo anual. De fato, o que
atingiu ao seu máximo só pode decrescer, e o que chegou ao seu
mínimo só pode inversamente começar a crescer 2. É por isso que o
solstício de verão marca o início da metade decrescente do ano, e o
solstício de inverno, ao contrário, o começo da metade ascendente. É
também o que explica, do ponto de vista da sua significação cósmica,
as seguintes palavras de João Batista, cujo nascimento coincide [no
hemisfério norte] com o solstício de verão: “É necessário que ele
cresça (Cristo nascido no solstício de inverno) e eu diminua” (Jo 3,
30). Sabe-se que, na tradição hindu, a fase ascendente é relacionada
ao dêva-yâna, e a fase descendente ao pitri-yâna; assim, no Zodíaco,
o signo de Câncer, que corresponde ao solstício de verão [no
hemisfério norte], é a “porta dos homens” e dá acesso ao pitri-yâna,
enquanto que o signo de Capricórnio, que corresponde ao solstício
de inverno, é a “porta dos deuses” e dá acesso ao dêva-yâna. Na
realidade, é a metade ascendente do ciclo anual que se constitui no
período “alegre”, isto é, benéfico ou favorável, e a metade
descendente é o período “triste”, isto é, maléfico ou desfavorável. E o
1
Publicado na revista Études Traditionnelles, jun. 1949.

2
Essa ideia encontra-se enunciada especialmente em muitas
passagens, e sob diversas formas, no Tao-te-Ching; ela é atribuída de
modo particular, na tradição extremo-oriental, às vicissitudes do yin
e do yang.
mesmo caráter é naturalmente atribuído à porta solsticial que abre
cada um desses dois períodos, nos quais o ano encontra-se dividido
em razão do próprio percurso do Sol.

Sabemos por outro lado que, no cristianismo, as festas dos dois São
Joões possuem uma relação direta com os solstícios 3. E o mais
notável, embora não tenhamos visto jamais uma referência sequer a
respeito, é que o que acabamos de lembrar está de certa forma
enunciado pelo duplo sentido do próprio nome João4. De fato, a
palavra hanan, no hebreu, tem ao mesmo tempo o sentido de
“benevolência” e “misericórdia” e de “louvor” (e é pelo menos
curioso constatar que palavras como “grâce” e “merci”, no francês [e
como graça(s), no português], têm exatamente a mesma dupla
significação); por conseguinte, o nome Jahanan pode significar
“misericórdia de Deus” e também “louvor a Deus”. É fácil portanto
perceber que o primeiro desses dois sentidos parece convir de modo
particular a São João Batista e o segundo a São João Evangelista;
aliás pode-se dizer que a misericórdia é evidentemente
“descendente” e o louvor “ascendente”, o que nos leva de volta à sua
relação com as duas metades do ciclo anual5.
3

Elas se situam na realidade um pouco após a data exata dos dois


solstícios, o que ressalta de modo ainda mais claro o seu caráter,
pois a descida e a subida já se iniciaram na realidade; a isso
corresponde, no simbolismo védico, o fato de se dizer que as portas
do piri-loka e do dêva-loka situam-se, respectivamente, não ao sul e
ao norte exatamente, mas na direção do sudoeste e do nordeste.

4
Pretendemos falar aqui da significação etimológica desse nome no
hebreu; quanto à aproximação entre João e Jano, é claro que se trata
de uma assimilação fonética que não tem evidentemente qualquer
relação com a etimologia, mas nem por isso é menos importante do
ponto de vista simbólico, pois, de fato, as festas dos dois São Joões
ocuparam o lugar das de Jano nos solstícios de verão e de inverno.

5
Lembraremos aqui, ligando-as em especial às ideias de “tristeza” e
“alegria” que indicamos mais acima, a figura “folclórica” francesa
bem conhecida, mas sem dúvida em geral muito pouco
compreendida, de “João que chora e João que ri”, que no fundo é
uma representação equivalente aos dois rostos de Jano; “João que
chora” é o que implora a misericórdia de Deus, ou seja, São João
Batista, e o “João que ri” é o que lhe dirige louvores, isto é, São João
Com relação aos dois São Joões e seu simbolismo solsticial, é
também interessante considerar um símbolo que parece ser peculiar
à maçonaria anglo-saxônica, ou que pelo menos só foi conservado
por ela: trata-se do circulo com um ponto no centro, compreendido
entre duas tangentes paralelas. Essas tangentes são tidas por
representar os dois São Joões. O círculo é aqui, de fato, a figura do
ciclo anual e sua significação solar torna-se mais clara pela presença
do ponto central, pois essa figura é também o signo astrológico do
sol. E as duas retas paralelas são tangentes ao círculo nos dois
pontos solsticiais, marcando assim seu caráter de “pontos-limites”,
pois tais pontos são como que o limite que o Sol não pode jamais
ultrapassar em seu percurso. É por essas linhas corresponderem
assim aos dois solstícios que se pode também dizer que representam
os dois São Joões. Existe contudo nessa figuração uma anomalia pelo
menos aparente: o diâmetro solsticial do ciclo anual, como
explicamos em outras ocasiões, deve ser entendido como
relativamente vertical em comparação com o diâmetro equinocial, e
é aliás apenas desse modo que as duas metades do ciclo, que vão de
um solstício ao outro, podem na realidade aparecer como
respectivamente ascendente e descendente, pois então os pontos
solsticiais permanecerão como o ponto mais alto e o mais baixo do
círculo. Nessas condições, as tangentes às extremidades do diâmetro
solsticial, portanto perpendiculares a este último, serão
necessariamente horizontais. No entanto, no símbolo em questão, as
duas tangentes estão ao contrário configuradas como verticais;
ocorre portanto nesse caso especial uma certa modificação no
simbolismo geral do ciclo anual, mas que se explica de modo muito
simples. Trata-se com toda evidência de uma assimilação
estabelecida entre essas duas linhas paralelas e as duas colunas
[maçônicas]. Além disso, estas últimas, que naturalmente só podem
ser verticais, em virtude de se encontrarem ao norte e ao sul,
possuem uma relação efetiva com o simbolismo solsticial, ao menos
de um certo ponto de vista.

Esse aspecto das duas colunas pode ser visualizado de forma mais
nítida no caso do símbolo das “colunas de Hercules” 6. O caráter de

Evangelista.
6
Na representação geográfica que coloca essas duas colunas em
cada um dos lados cada um dos lados do atual Estreito de Gibraltar,
é evidente que a situada na Europa é a coluna do norte, e a situada
na África é a coluna do sul.
Hércules como “herói solar” e a correspondência zodiacal de seus
doze trabalhos são por demais conhecidos para que seja necessário
insistir a respeito. É em particular por esse caráter solar que se
justifica a significação solsticial das duas colunas, às quais seu nome
está ligado. Assim sendo, a divisa non plus ultra, que está
relacionada a essas duas colunas, passa a evidenciar uma dupla
significação; por um lado, ela exprime, segundo a interpretação
habitual referente ao ponto de vista terrestre e aliás válida em sua
ordem, que as colunas marcam os limites do “mundo conhecido”, ou
seja, que na realidade elas são os limites que, por razões que seria
interessante investigar, não era permitido aos viajantes ultrapassar;
por outro lado, essa divisa indica ao mesmo tempo, e sem dúvida
seria preciso dizer em primeiro lugar, que, do ponto de vista celeste,
as colunas são o limite que o Sol não pode transpor e entre as quais,
como entre as duas tangentes que estávamos examinando há pouco,
realiza-se interiormente seu curso anual7. Essas últimas
considerações poderão parecer muito afastadas do nosso ponto de
partida, mas, para dizer a verdade, não é o que ocorre, pois
contribuem para a explicação de um símbolo que se refere de modo
expresso aos dois São Joões. Além disso, pode-se dizer que, na forma
cristã da tradição, tudo o que diz respeito ao simbolismo solsticial
tem por isso mesmo relação mais ou menos direta com os dois São
Joões.

7
Em antigas moedas espanholas, pode observar-se uma figuração
das colunas de Hércules, ligadas entre si por uma espécie de
bandeirola, sobre a qual está inscrita a divisa non plus ultra; mas o
fato que parece muito pouco conhecido, e que assinalaremos aqui a
título de curiosidade, é que desta figuração derivou o signo atual do
dólar americano. No cifrão, contudo, a importância maior foi dada à
bandeirola, que era de início apenas um acessório, e que foi
transformado na letra S, com a qual se assemelhava, enquanto que
as duas colunas, que constituíam o elemento essencial, foram
reduzidas a dois pequenos traços paralelos, verticais como as duas
tangentes ao círculo dos símbolos maçônicos que acabamos de
explicar. Isso se reveste de uma certa ponta de ironia, pois
justamente a “descoberta” da América anulou de fato a antiga
aplicação geográfica do non plus ultra.

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