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Texto 05- Herança cultural e tradições, compreensão do mundo, diversidade

cultural, etnocentrismo e relativismo cultural.


Disciplina Homem & Sociedade 2015/1
UNIP/ Paraíso, Cursos: DIR./ PSI
Profª. Neusa Meirelles Costa

1. Herança cultural e tradições


Será que hoje aceitamos uma concepção de Direito assentada sobre a noção de
diferenças qualitativas entre indivíduos? Não. Para nós, que herdamos princípios
da concepção de mundo burguesa (que remonta ao século XVIII na Europa
continental, e ao XVII na Inglaterra), os indivíduos são iguais no nascimento,
portanto a todos se aplica a lei, e todos têm direitos e deveres civis, porque são
cidadãos. Será mesmo assim?
Bem, para discutir essa questão é preciso “complicar” um pouco:
De fato, o Direito não se assenta sobre a concepção de diferenças qualitativas
entre indivíduos, embora as reconheça para fins legais, e de modo bastante rígido
as reconheceu no passado (entre senhores e escravos) e entre homens e
mulheres (a estas foi negado o direito de votar durante muito tempo, em quase
todas as “democracias”).
Isto significa que a herança cultural burguesa (democracia representativa) admitia
a diferença entre cidadãos e cidadãs. Ambos tinham deveres civis, mas só os
homens tinham direitos plenos da cidadania. Portanto, o chamado “voto universal”
não era tão universal assim. E isso sem considerar que nos USA os negros só
puderam votar no século XX, e não eram mais escravos.
Mas de qual herança cultural estamos falando? Bem, a herança da burguesia,
aquela classe que desbancou a nobreza no mundo feudal, assumiu o controle da
economia, sob o absolutismo monárquico, e posteriormente assumiu o controle do
Estado (que havia sido também uma “invenção” da burguesia em ascensão na
formação capitalista).
Contudo, esse trajeto não foi o mesmo em todas as realidades nacionais, e nem
se estabeleceu da mesma forma em todas elas. Isto porque o “modelo da
democracia burguesa representativa” absorve outra herança cultural, a
estabelecida ao longo da história dos povos, e que abrange aquele “código
cultural” do qual falamos em outra aula.
Quando se instala o novo “modelo político” por força de lei, ele já carrega
concepções e práticas de poder vigentes anteriormente, os padrões culturais
anteriores vão continuar a presidir as expectativas de comportamento e as
relações sociais. Nesse nível, quase na intimidade das pessoas, os códigos legais
não penetram, exceto quando feridos os códigos, instalam-se as contravenções e
os crimes.
É por isso que em sociedades como a brasileira a frase “você sabe com quem
está falando?” ou então, “mas quem é fulano? Ele não é nada” fazem sentido: no
primeiro caso quem fala é “alguém”, isto é, uma pessoa dotada de privilégios em
uma ordem oligárquica (predomínio de um grupo, ou classe no poder e nos
negócios do Estado), no segundo caso, fala-se de “uma pessoa qualquer, um
João Ninguém, um Zé” (alguém fora da ordem de privilégios). Estão combinadas
nesse modo de ver as pessoas no mundo duas heranças culturais: a cultural
burguesa, e a cultural forjada ao longo da história de autoritarismos e oligarquias.
Ao interpelar alguém com a frase “você sabe com quem está falando?” a pessoa,
que se tem numa ordem de privilégios, questiona a outra que possivelmente a
tratou como igual (o que seria perfeitamente comum, em se tratando de dois
cidadãos); quando alguém situa a outra pessoa, a palavra ​quem não designa uma
individualidade, mas uma posição (status) na mesma ordem de privilégios...
2. Construção do cotidiano e compreensão do mundo
A visão de mundo burguesa, fundamentalmente urbana e relacionada à formação
capitalista não é igualitária (como se poderia pensar), apesar de igualdade e
liberdade serem valores centrais em seu ideário. Trata-se de uma visão do mundo
ordenada, centrada na propriedade privada e na liberdade do capital, na divisão
social do trabalho, na diferenciação de papéis sociais, e diferenciação de
competências entre gêneros. Descrita dessa forma a herança cultural da
burguesia, impregnou a vida social dos povos e nações inseridos na expansão
internacional capitalista, constituiu-se em uma visão de mundo, das culturas e das
pessoas fortemente relacionada à expansão do pensamento moderno (do século
XVIII em diante), racional e científico.
Essa “visão de mundo”, como foi mencionado em outro texto, em sua origem
tipicamente ocidental, esteve na base dos processos coloniais, explicando e
justificando a “ordem das coisas”, inclusive como “ordem natural das coisas” (statu
quo). A vida social pensada a partir dessa concepção se apresenta diferenciada
em “níveis” sociais pelo acesso ao consumo material e simbólico, admitida a
possibilidade de ascensão entre níveis sociais (mobilidade social). Diz-se ainda
que, do ponto de vista das noções de certo e errado, a mais clara expressão da
moral burguesa é a vitoriana, a moral da aparência (não basta ser honesto, é
preciso parecer honesto).
Por tudo que foi dito, a herança cultural da burguesia confunde-se com o que já foi
descrito como “Ideologia Burguesa”, ou seja, uma concepção de mundo que
explica e justifica a “ordem das coisas”. A herança cultural dos povos sob a
ingerência da ideologia burguesa vai sendo redefinida, incorporando à matriz dos
sentidos original elementos instalados no processo, especialmente durante os
períodos de expansão colonial. O coronelismo brasileiro tem essa origem, assim
como os “votos de cabresto” da República Velha.
No âmbito da vida social, no cotidiano, formam-se núcleos de resistência cultural e
política apoiados em valores e palavras de ordem, muitas vezes retirados do
próprio ideário burguês. Desses núcleos partem movimentos de rebeldia e
revolucionários (desde que envolvam o povo, caso contrário é golpe) sendo a luta
da Independência Americana um exemplo. A resistência pode também aparecer
sob a forma de preservação da cultura de origem, como se deu no Brasil com a
cultura africana, dando origem às casas de Candomblé; mas então...

Como se dá a participação dos indivíduos na cultura?


Em primeiro lugar, quando falamos de “indivíduo” estamos falando de uma
unidade, mas em um conjunto de iguais (indivisos). Acontece que no conjunto dos
humanos, dos grupos sociais, não há “iguais” exceto se considerarmos um atributo
comum a todos, por exemplo, “indivíduos do mesmo sexo”, “indivíduos da mesma
religião”, etc. Mas notem que a expressão “indivíduo” não admite flexão de gênero,
a palavra admite plural, mas não pode ser aplicada ao feminino, exceto
descaracterizando o feminino. Fica curioso quando se deseja falar de
maternidade: “o indivíduo do grupo das mães” (?) Semelhante raciocínio se aplica
também à palavra “membro” da sociedade, ou do grupo, ou ainda à palavra
“elemento”...
Deixando de lado as questões semânticas (que são importantes), como se dá a
participação na cultura? Em princípio será necessário esclarecer que as
possibilidades de participação não são igualmente distribuídas, elas são
diferenciadas em termos de acesso, condições, espaços sociais, sexo, etc.
Mesmo assim é possível falar da participação dos indivíduos na cultura, porque
nela todos são iniciados: todos aprendem a falar, comer com talheres, andar
corretamente, aprendem o que é perigoso, aprendem a amar (ou a se sentir
rejeitado, e isso desde bebê).
Essa “entrada” na cultura pode-se dizer que começa com uma solene palmada no
bumbum (o bebê não sabe por que está apanhando, mas o médico sabe por que
está batendo. Sabe mesmo? As índias não batem nos seus filhos quando nascem,
mas deixa isso para lá...).
Da infância à idade adulta, até a morte vai se dando a participação na cultura, mas
sempre diferenciada. Portanto toda trajetória de vida é a de uma dada participação
na cultura e, evidentemente, na sociedade. Aqui começa novamente a
“complicação”, exatamente quando deixamos de falar de indivíduos (a unidade no
conjunto dos iguais) para falar de uma ​individualidade, de uma pessoa​, aquele ser
tão peculiar que todo um campo de saber vai se ocupar apenas dele: o campo
constituído fundamentalmente pela Psicologia, Psicanálise e Psiquiatria.
Agora complicou de vez, porque esse campo vai trabalhar com a pessoa, mas não
a partir de um conhecimento elaborado para ela ou sobre ela, e sim, elaborado a
partir de inúmeras “outras individualidades”. ​Mas em todos esses campos de
saber a pessoa não é considerada passiva no processo de participação na
cultura: ao contrário, ela é reconhecida como apta a responder ao processo
cultural, a fazer escolhas, mesmo que suas escolhas não possam ser
imediatamente compreendidas por todos, mesmo que suas escolhas sejam
apontadas como rebeldes, ofensivas, em completo desacordo com padrões
culturais da sociedade, ou grupo social em que vive.
Independentemente de aquela pessoa ser “racional” ou não, ela apresenta formas
de participação na vida social, portanto na cultura. Resta saber como, e em alguns
casos, resta saber por que aquelas participações, ou manifestações e não outras.
O bebê chora com fome, chora com dor, chora com saudade, chora porque não
gosta da mamadeira de sopinha com sal, chora porque está cansado, chora
porque não gosta daquela cara de tia fazendo “graça” em cima dele. O bebê
chora. As mães (e não somente as humanas) entendem esses choros. Como? A
forma de comunicação possível para o bebê é “apreendida” pela mãe humana,
que a ela atribui um significado, mediante um “mesmo” significante: o choro de seu
bebê. O cuidado da mãe vai reforçar aquele choro como forma de comunicação
(felizmente substituído por palavras depois).
Temos, portanto que uma primeira forma de comunicação é a de reação às
condições do meio (abrangendo pessoas), na qual o bebê, (um ser humano),
expressa sua percepção desse meio, que não lhe está sendo agradável (se for ele
dorme ou balbucia coisas, ou ainda ri). Mas até agora nosso bebê está apenas
reagindo ao meio, não participando desse meio.
Só mais tarde, creio que aos dois anos, a criança começa a perceber suas
vontades e ensaia o “eu sozinho”: ela quer vestir a roupa sozinha, colocar os
sapatos, faz a maior confusão com a comida, se recusa a dar a mão na calçada,
mas quer ser carregada no colo.
Na escola os pequeninos são ensinados a ficar sentados, a dividir brinquedos com
os coleguinhas, a reconhecer o Outro (criança) como um seu semelhante, com
quem pode brincar, falar e mesmo brigar, mas a interagir segundo alguns padrões
culturais que são colocados pela professora, e às vezes esperados pelo
coleguinha (mas isso não sempre). Essa é uma nova etapa da participação na
cultura, que se prolonga, às vezes até a idade adulta, se os elementos de
repressão forem mais fortes que as condições da criança de reagir a eles.
No adolescente e no adulto as situações se apresentam mais complexas: o
adolescente tem possibilidade de escolhas (e se não lhe são dadas, ele inventa).
A cultura oferece um espelho de padrões, valores e normas de comportamento
para que ele se reconheça nesse espelho, e realize suas escolhas como sujeito
em formação. Ele pode (e até deve) se rebelar contra as imposições que
pretendam torná-lo o que não é, ou não se sente como sendo. Esse é o sentido da
rebeldia: o processo de construção do sujeito de si. Portanto, os alunos que
(ainda) estiverem na fase “aborrescente”, por favor, leiam com atenção essa aula.
Rebeldia é coisa séria, e não falta de disciplina em aula.
Por sua vez, o adulto é submetido a condições tais que favorecem a aceitação
pura e simples, submetendo-se ao que lhe é oferecido (às vezes sob chantagem
emocional). Nesse caso ele pode ser considerado um agente no âmbito da vida
social: ele corresponde ao que é esperado dele. Não se sente em condições de
fazer valer suas expectativas e desejos, prefere se submeter, ou se assujeitar.
Na mulher esse comportamento é muito comum: ela se submete às expectativas
do marido, da família dele, da propaganda, das amigas do trabalho e do
cabeleireiro. Faz ceias de natal, compra presentinhos, faz almoços de domingo,
aguenta o jogo de futebol, assume três papéis sociais (mãe, esposa, profissional),
mas se esqueceu de um: o de ser a ela própria, sendo mulher.
Todos os que participam da cultura sendo a imagem do que se espera deles,
deixando de ser-a-si-próprios, deixam de ser sujeito de si, sujeitos do seu desejo,
para serem sujeitos da sujeição (mesmo que voluntária). Nesses termos, participar
da cultura é também ser a si próprio, fazer escolhas em um campo de possíveis, e
transgredir indo ao limite, mas dentro do campo marcado por padrões éticos de
convivência social e cultural, uma ética escolhida pelo sujeito, que reconhece o
Outro também como sujeito.
Será essa a posição dos jovens e adolescentes que sistematicamente
transgridem? Não. Transgressão na construção do sujeito de si não é a afronta
aos padrões, mas a escolha de possíveis, esse é o sentido de “ir ao limite”. O
adolescente (na fase aborrescente), não está reconhecendo seu próprio limite,
mas testando o limite alheio (dos pais, professores e vizinhos). É importante essa
fase, mas essa participação na cultura apresenta certos riscos no mundo
contemporâneo: de qual segmento da cultura ele participa? Com quais padrões
ele testa mais profundamente o limite dos pais?
Os psicólogos sabem que essa aula é o início do que vão enfrentar na vida
profissional, os publicitários veem aqui vários elementos para serem utilizados em
comerciais, os futuros administradores devem entender que as rotinas
administrativas são uma forma sutil de sujeição voluntária: os funcionários devem
ser agentes de uma dada ordem e não sujeito de si. Será? Na empresa
contemporânea os espaços para a criatividade existem, mas é preciso ser criativo
para dinamizá-los, por isso há várias disciplinas relacionadas a esse tema no
curso de Administração.
Os advogados e futuros magistrados vão enfrentar questões relacionadas à
participação na cultura frequentemente: são os adolescentes que não respeitam o
limite de velocidade nas ruas, todos os que estacionam seus carros em lugar
errado, os que não respeitam a lei de silêncio, e mesmo os que fumam um
“baseado”.
Estes todos são “pequenos delitos”, mas há os mais graves, aqueles que
relacionados à vivência em confinamento. Nas prisões forma-se uma “cultura”
peculiar, da qual todos participam, e que não admite infrações: as “penas” podem
ser espancamento, estupro, e mesmo a morte. A “lei” do silêncio conivente é
fundamental para a sobrevivência nesses espaços, o que torna a todos os
cúmplices involuntários do que vier a acontecer.
A cultura se apresenta como possíveis de participação, e de escolhas, abertos ao
sujeito, mas ao sujeito de si, não aos agentes cujo roteiro de vida foi previamente
traçado. Esse tema foi trabalhado tendo o foco na cultura contemporânea, urbana
na sociedade pós-industrial, que é a nossa. Em outras culturas, especialmente as
pré-letradas, não há adolescentes: há crianças e adultos. Os rituais de iniciação
testam a coragem dos meninos suas habilidades para caça e pesca, ou controle
do gado (entre os Massai, norte da África); e se considerados aptos nestes rituais,
esses meninos se tornam homens, do dia para noite. As meninas são recolhidas
após a primeira menstruação, e também são submetidas aos rituais de iniciação e
de preparação para o casamento, depois são consideradas adultas, e aptas para
serem mães e esposas.
As práticas culturais variam enormemente entre as culturas, mas em todas, de
uma forma ou de outra, o novo membro adulto integra o grupo com papéis bem
definidos, como se passou com seus pais e ancestrais. As inovações podem surgir
pelo contato com outros grupos ou com ocidentais, mas se a cultura local se
preserva, é porque tem força o suficiente para manter a identidade do grupo, e a
coesão de seus membros.
Entre os índios brasileiros o processo de participação na cultura se deu sob o
peso do apresamento, da escravidão e da morte daqueles mais velhos, que
representavam o saber das tribos. Os grupos que sobreviveram a essa triste
história, foram obrigados a um convívio com “brancos” que representavam
aspectos deletérios da cultura ocidental: a violência, o álcool, doenças e os vícios
em geral. A maioria dos grupos indígenas sobreviventes perdeu suas terras,
apropriadas por grileiros.
A situação criada obrigou a uma dupla ambiguidade: nem eram índios, porque
estavam submetidos a condições de trabalho, ou mendicância, nem eram brancos,
porque eram índios e nem falavam corretamente o português. Além disso, a terra
é sagrada para os índios, e eles foram submetidos a viver sem suas raízes,
vestidos com roupas doadas, resultado de uma “catequização” forçada, sem eira
nem beira. Não estranha que muitos se tornaram alcoólatras, as mulheres
prostitutas nas beiras das estradas. Atualmente a situação da população indígena
é melhor, ou seja, mais indígena, mas esse passado ainda persiste se não no
cotidiano, nas lembranças.
Um documentário nacional, Yndio do Brasil, de Sylvio Back, 1995, focaliza a
trajetória da população indígena brasileira captada pelo cinema, desde 1912,
quando foram filmados pela primeira vez. Creio que todos vão se surpreender com
o filme. Quanto à participação na cultura, por parte de jovens adolescentes, sugiro
a todos que vejam o filme: Cama de Gato de Alexandre Stockler, 2002. Trata-se
de um exemplo de como se dá essa participação, mas a partir de uma posição de
privilégio e de tédio, uma combinação que costuma levar à transgressão, mas não
à construção do sujeito.

Diversidade cultural: etnocentrismo e relativismo cultural; relações étnico-raciais.


Este tema é um dos mais complexos da Antropologia, isto porque obriga todos
que se deparam com ele a fazerem um exame de seus próprios conceitos e
práticas sociais em relação ao Outro: “Em que modo nos relacionamos com o
Outro, que é diferente de nós?” Quando respondida com honestidade, essa
questão evidencia intolerâncias, preconceitos e atitudes etnocêntricas presentes
no cotidiano da democracia à brasileira. Tais atitudes são incompatíveis com a
imagem de politicamente correta cidadania, igualdade racial e outras expressões
usuais na mídia e nas conversas diárias, e dessa incompatibilidade vem o
desconforto experimentado após o exame (honesto) das atitudes.
Para minorar o desconforto (ou piorá-lo) é preciso esclarecer conceitos presentes
nesse título, começando pelo final, a contraposição dos conceitos de “raça” e
“etnia”:
A palavra “raça” deriva do conceito espécie, e em parte, dos decorrentes
subespécie e variedade, todos esses conceitos foram utilizados como categorias
de classificação (taxionomia) para os seres na natureza, desenvolvida por Carolus
Linnaeus (1707-1798), médico, biólogo, psicólogo e botânico, construtor da
taxonomia, e da classificação Homo sapiens. As duas categorias (subespécie e
variedade) se referem à presença de características semelhantes nos indivíduos
de um dado grupo observado. Embora a distribuição genética apareça aos olhos
sob a forma dessas características diferenciadoras, ela não constituiu a base da
classificação, portanto os conceitos são hoje questionados pelos especialistas à
luz da genética moderna, mesmo em relação ao mundo vegetal e animal.
Em relação aos seres humanos, o conceito “raça” foi utilizado primeiramente no
século XVII para designar grandes contingentes populacionais habitantes da terra.
No século XVIII, Linnaeus, estabeleceu as quatro “raças” humanas (na verdade
ele fala de “variedades” da espécie Homo sapiens), além de uma última
“variedade”, composta pelos tipos não classificáveis nas anteriores. A título de
curiosidade, essas classificações são: Homo sapiens europaeus (branco, forte,
moral); Homo sapiens americanus (vermelho, domesticável, violento); Homo
sapiens asiaticus (amarelo, ganancioso); Homo sapiens africanus (negro,
preguiçoso). A última classificação é a Homo sapiens monstruosus, abrangendo
os tipos não classificados nas categorias anteriores.
Como se vê, os critérios considerados por Linneus não se restringiram à cor da
pele, formato dos olhos, do crânio, mas também características morais e cultura.
Ainda no século XVIII Blumenbach em De Generis Humani Varietate Nativa ou
Das variedades naturais da humanidade (1795) reformulou a classificação de
Linnaeus, criando cinco “raças” humanas (ainda falando em “variedades” da
espécie): caucasiana, ou branca, habitantes da Europa, parte da América do
Norte, Oriente Médio, Norte da África e Índia; etiópica ou negra, habitantes da
África; malaia ou parda, habitantes da Ásia do leste, Austrália, e esquimós;
americana ou vermelha, habitantes indígenas das Américas. Para Blumenbach o
grupo caucasiano era o mais perfeito fisicamente, além de ter uma capacidade
craniana maior. O que há de lamentável nessa e em classificações posteriores,
consiste em sua permanência nos registros oficiais, em filmes, e mesmo no
cotidiano, em que pese a improcedência científica dos critérios utilizados, aspecto
apontado desde início do século XX.
Na verdade, o último “quesito” da classificação para as “raças” permitia
estabelecer uma hierarquia, considerando a “raça branca” (especialmente a
européia) como superior, seguindo-se a amarela (oriental), a vermelha (índios
americanos, e gentios) e finalmente, a negra (africanos). Essa classificação,
considerada “científica” desde o final do século XVIII, ficou presente na cultura
ocidental, e foi ensinada nas escolas brasileiras até meados do século XX.
Todavia, a Antropologia apontava, desde os primeiros anos do século XX, a
inconsistência da hierarquia e de conceitos como “civilização”, “culturas primitivas”
e da idéia de “evolução cultural” como uma trajetória linear (teleológica) do
“primitivo” ao “civilizado”.
Consequentemente, estudos que apontavam “estágios” na evolução das culturas e
sociedades (e houve vários), deixaram de ser considerados científicos, para serem
tomados na qualidade de exemplos da arrogância e do preconceito daqueles
“cientistas” europeus em face dos outros povos. Apesar de tudo, permanecem
essas referências na linguagem comum, e exemplos lamentáveis, como a imagem
oficial do Cristo branco, de olhos azuis!!!
Todavia, para os antropólogos de modo geral, e para os etnólogos, de modo
especial, ficava uma questão em aberto: como caracterizar grupos humanos que
se mantinham vivendo em regiões diversas do planeta, que apresentavam
características físicas assemelhadas, uma cultura diferenciada, e principalmente
uma língua particular? Vem dessa dificuldade a utilização pelos antropólogos do
conceito de etnia, origem dos conceitos etnologia, etnografia e etnocentrismo. Mas
o que é etnia?
Para entender o conceito é preciso mudar a perspectiva: não se trata de um “olhar
de fora”, mas sim de reconhecer “o olhar de dentro”, ou seja, etnia se caracteriza
pelo reconhecimento de uma identidade por parte do grupo: é ele (o grupo) que se
considera distinto dos demais, não só pelos padrões culturais adotados, como
pela língua utilizada, ancestralidade e mitos de origem. Da mesma forma, aquele
grupo pode se reconhecer participante de um estado-nação, mas também em
relação a essa instância política ele se apercebe distinto, ou dotado de uma
identidade cultural e grupal diferenciadora. Os povos indígenas brasileiros
fornecem exemplos de etnias distintas, conquanto possam conviver em espaços
demarcados, ou em regiões diferentes do mesmo país. Vários países integram
etnias distintas em convívio, sendo um exemplo mais próximo, a Bolívia.
Para os antropólogos a utilização do conceito etnia facilitou enormemente os
estudos das culturas, a comparação dos padrões culturais, das línguas, religiões
etc. O termo etnia tem origem no modo de os gregos denominarem aspectos
centrais à cultura dos estrangeiros “éthos”. Para a Sociologia de Weber ethos
designa um modelo ou padrão cultural mais amplo de uma dada sociedade e/ou
instituição. Assim por exemplo, é possível falar de um ethos burocrático naquelas
organizações (ou sociedades) em que as tarefas sejam organizadas
racionalmente de modo escalonado, hierarquizado, além de outros aspectos que
não vem ao caso agora.
Na tradição dos estudos de Etnologia, (ramo da Antropologia que estuda culturas
e padrões culturais característicos, construtores da formação individual e da
personalidade), inúmeras obras foram escritas (e continuam sendo) adotando
como foco a identificação dos padrões e valores centrais às culturas. Os estudos
pioneiros de Ruth Benedict em Papua (Nova Guiné) e de Margareth Mead
(Samoa) foram construídos nessa linha, e apesar das controvérsias que
provocaram (especialmente os de Ruth Benedict sobre sexualidade e
adolescência) mostram que a sexualidade, os padrões culturais relacionados à
condição de homem e mulher são culturais: o modelo construído pela sociedade
ocidental não tem a universalidade que se pretendia, assim como o lugar ocupado
pelos jovens e velhos na cultura.
Esclarecido o sentido de ethos, etnocentrismo decorre de uma perspectiva
centrada na própria cultura, apreciando-a como se fosse “a melhor”, a “superior”, a
“verdadeira”, “civilizada” ou quaisquer outros valores, ou adjetivos, que se
pretenda. Como foi dito em outro texto, um olhar etnocêntrico é perceber o mundo
a partir do próprio umbigo, mas o umbigo é cego, é apenas uma cicatriz, central ao
corpo, e lembrando ao indivíduo que ele teve sua origem imediata em alguém.
Esse é um aspecto importante a ser considerado por todos os jovens estudantes:
A origem remete à família, à geração, cultura e nacionalidade, a vivência remete à
diversidade cultural e social. Enfim, identidade cultural e diversidade cultural
aparecem associadas desde o nascimento, embora não estejam claras para o
bebê, muitas vezes nem para os pais, mas não podem ser ignoradas pelo jovem,
e muito menos pelo adulto.
Etnocentrismo é uma posição na apreciação do outro e da outra cultura, apoiada
em uma visão qualitativa da própria cultura, como sendo a “melhor”. Na verdade o
etnocentrismo tem sua base no desconhecimento da outra cultura, mas também
da própria cultura. Assim se passa no Brasil, com aqueles que desgostam da
cultura brasileira, mas que não a conhecem em sua diversidade, eles criticam
outra tradição religiosa, mas não a conhecem, e fazem da impressão de aparência
a base para a crítica, ou seja, dos pré-conceitos a base das apreciações.
Na vida, as relações sociais cotidianas envolvem a diversidade cultural, sob a
forma de diferentes nacionalidades, religiões, linguagens, línguas, modos de
pensar, sexualidades; e envolvem também relações étnico-raciais, e estas no
Brasil são mascaradas sob distintos encobrimentos, também em geral
preconceituosos.
A diversidade cultural também favorece o aparecimento de outra postura,
igualmente falaciosa: o relativismo cultural. Ora, afirmar que “tudo é relativo” é um
paradoxo lógico, porque ao se tomar a relatividade como absoluto ou universal, se
está negando seu conteúdo, ou seja, a relatividade das coisas e valores. É nesse
sentido que conhecer a outra cultura e a própria permite estabelecer uma relação
mais consistente: aquele comportamento é estranho à minha cultura, ele é
relacionado à outra cultura, pela qual é aceito e valorizado.
Se alguém entra em sala de aula portando um xador ou uma burka, a postura dos
demais alunos deveria ser a mesma adotada em relação a alguém que usa um
escapulário de NS do Carmo ou Aparecida, ou seja, ignorar, a informação dada
apenas sinaliza a adoção de uma ou de outra tradição religiosa, nada mais. Igual
observação se aplica ao kipá, aos elekês e torços.
Com relação à cor da pele nota-se no ambiente universitário uma maior integração
entre jovens cujas peles são de tonalidades distintas (é importante notar que o
“branco” vem sendo evitado, porque todos preferem o “dourado”). Todavia ainda
se nota certa tendência na atribuição da preferência musical: os negros “devem”
preferir o samba? Os originários do interior de São Paulo (embora não se
reconheçam como “caipiras”) deveriam preferir a “música sertaneja”? Seriam
todos os orientais japoneses? E os nordestinos, são todos baianos? Um negro na
direção de um carro do ano deve ser motorista ou está roubando o carro? (Esse é
o “pensamento” do policial que interpela o “elemento” com arrogância). Todo
árabe é “turco”?
A vida em uma sociedade globalizada, em uma cidade cosmopolita como São
Paulo, não é compatível com tais atitudes. Vive-se utilizando técnicas procedentes
de outros países, utiliza-se de língua estrangeira como recurso de comunicação,
aprendem-se práticas de controle de produção procedentes de outras culturas
(ADM), ouve-se música estrangeira (mas os sites trazem a tradução das letras);
enfim, vive-se em um mundo de diversidade cultural, marcado pela dinâmica do
capitalismo financeiro (globalização), mas o que se sabe desse mundo? Como a
cultura brasileira se articula nesse mundo?
Será que a cultura européia do século XVI era “melhor” que a pré-colombiana
quando da invasão espanhola? Foram os cavalos, canhões e outras armas os
recursos fundamentais da vitória espanhola?Ou teria sido pela sífilis e varíola com
que os europeus contaminaram os povos indígenas? O fundamentalismo de
organizações como a Convergência Branca e Ku Klux Kan, dentre outras mil
existentes nos USA é diferente do fundamentalismo árabe?
É importante ter claro que a cultura judaico-cristã, vulgarmente denominada
ocidental (porque ela não se estende a todo o ocidente) é apenas uma cultura, e
diversificada em distintos países, inúmeras tradições, religiões, línguas distintas e
etnias. O mesmo se pode dizer da cultura árabe, indiana, africana, oriental e do
sudeste da Ásia. Se a economia globalizada articula a todas, elas permanecem
culturas diferenciadas no cotidiano, mas é no cotidiano que se vive, e nele que se
faz a história.

Texto 10​- Identidade cultural na atualidade: multiculturalismo, tribalismo urbano e


pesquisa antropológica.

Profa. Neusa Meirelles Costa

Uma perguntinha de bolso: o que é mesmo Identidade cultural?


Lembrando que identidade é o que se chama “reconhecimento de si”, portanto,
uma percepção do Sujeito de si mesmo de seus gostos, preferências, atitudes,
valores, corpo etc, e ao mesmo tempo, como esse Sujeito partilha com os outros
essas preferências, gostos, linguagem, etc tem-se dois aspectos importantes:
como o Sujeito se percebe em meio dos outros, dos que lhe são próximos​,
amigos, pais, família, ​e em meio da sociedade em geral​, no cotidiano, nas ruas,
ou fora delas, nas ocasiões e momentos especiais, nos lugares desconhecidos e
situações não experimentadas anteriormente.
Neste caso Identidade está sendo conceituada como processo sócio-psicológico,
uma experiência comum na adolescência, período no qual todos se sentem
‘senhores da verdade’, tentados a experimentar de tudo, percebendo-se muito
diferentes dos pais, professores e adultos em geral e dos irmãos mais novos; mas
em compensação, sentem-se muito próximos dos amigos, jovens também,
conhecidos ou não, porque podem ser os amigos ‘virtuais’, eles formam a galera,
a crew, a turma, ‘os cara’, ‘os mano’, ‘a gente fina’, ‘os sangue bom’...
Esse reconhecimento de si (identidade) encontra receptividade ou ‘repercussão’
nos outros, dando origem a um sentimento de ‘pertencimento’, de acolhimento,
reforçado pelas semelhanças entre indivíduos do mesmo grupo. Algumas
instituições sociais reforçam esse processo ‘inclusivo’, dentre elas a família,
escola, religião, e vivências sociais como hobbies, esportes, bairro de moradia,
clubes etc.
Na sociedade contemporânea, outros fatores e processos favorecem e estimulam
a outra faceta da identidade social e cultural, especialmente para os jovens,
processo esse que se instaura de fora, e que consiste em nomear grupos que
se constituem a partir de vivências particulares, preferências específicas ou
mesmo condições sociais específicas. Esse processo dá origem às ​tribos
urbanas. ​A mídia é um agente poderoso dessa nomeação ou etiquetagem, na
construção e divulgação das tribos, especialmente porque elas em geral se
posicionam na dessemelhança em relação ao padrão geral instituído na sociedade
pela cultura do consumo, pela moda e outros meios que instauram a semelhança.
Sociólogos e antropólogos têm estudado a formação de tribos urbanas, nelas
reconhecendo facetas ambivalentes dos processos de socialização e de inclusão
social: ao mesmo tempo em que a cultura de consumo estimula a adoção de
padrões comuns, semelhantes no vestir, rotinas assemelhadas de alimentação, de
formação profissional etc, também valoriza a diferença, a competição, o
individualismo, e em meio dessa contradição, a economia contemporânea cria
obstáculos ao consumo generalizado dos bens, produtos e serviços considerados
‘itens’ valorizados na instauração da semelhança.
A vida social contemporânea favorece a solidão e o isolamento, apesar de toda a
facilidade de comunicação e de transporte. Participar da vida social no mundo de
hoje é participar de pequenos grupos, muitas vezes de relacionamento
profissional, grupos que se tornam cada vez mais fugazes com a instabilidade dos
vínculos de trabalho. As tensões geradas nesse social contemporâneo não
permitem tempo e espaço (e mesmo recursos) para gozar das facilidades atuais.
As ‘tribos’ forçam o espaço social criando ‘points’ e inventam o tempo, destinando
a noite para as baladas e raves. Elas contestam com seu modo de ser e de
parecer a ”normalidade” esperada, constroem ‘modos de parecer’ com seus
estilos, mas também ‘modos de ser’ com as opções de valores, vivências etc.
Consequentemente pode-se dizer que as chamadas ‘tribos’ contestam a os
padrões e expectativas sociais (e portanto culturais) contemporâneas, às vezes
estabelecendo confrontos, outras simplesmente instaurando estilos, modas,
ritmos, outras vezes ainda, ‘pondo o dedo na ferida’ da exclusão social, do
racismo, do descaso com o meio ambiente, e dos preconceitos em geral. Deste
modo elas não representam apenas estéticas diferenciadas, mas também, na
maioria dos casos, posturas éticas.
Para estudar com maior detalhe as idéias resumidas nesse texto: ​PAIS​, José
Machado e Leila M. S​. BLASS (org) ​Tribos urbanas: produção artística e
identidades. ​São Paulo: Annablume, 2004.
Quanto ao multiculturalismo, ele se instala na cultura contemporânea pela
facilidade de comunicação, de acesso à informação. Desse modo, é possível
estabelecer vínculos de “amizade” com pessoas que estão do outro lado do
mundo, manter com elas relações sexuais virtuais, trocar receitas culinárias,
partilhar das mesmas preferências musicais. A Internet permite esse modo de
“sociabilidade” virtual, especialmente pela palavra escrita (em internetês) ou em
inglês, além do estabelecimento de grupos de discussão de temas importantes ou
não.
A comunicação virtual permite a formação de “redes sociais” em torno de aspectos
ou situações contemporâneas que estão a milhares de quilômetros, além de
permitir que decisões empresariais sejam tomadas on time, aumentando a
eficiência dos mecanismos de controle, portanto a rentabilidade do capital.
O multiculturalismo estabelece-se com o reconhecimento de outras culturas,
embora todas de certa forma ligadas pela globalização econômica, mas em
condições de integração diferenciadas. Esse aspecto é significativo quando se
pensa em “multiculturalismo”: é possível participar de culturas distintas, nós
brasileiros participamos da nossa e de aspectos significativos daquelas que
representam a hegemonia econômica, adotamos linguagem apropriada, práticas
adequadas para gerir negócios, valores assemelhados, consumimos produtos,
músicas, livros que vêm de outras culturas, exatamente das que ocupam posição
hegemônica na economia, porém não somos multiculturais por isso.
Alguns de nós podem até experimentar certa “ambivalência” em relação a outras
culturas, e até mesmo considerando a diversidade que existe dentro da própria
cultura brasileira, contudo multiculturalismo é referência para o conjunto
diversificado de culturas no mundo, e não para situações individuais. O mais
importante a se lembrar em relação ao multiculturalismo é que todas as culturas
(sem exceção) estão em pé de igualdade, porque todas são resultantes do mesmo
processo de adaptação e alteração do meio ambiente que permitiu a
sobrevivência daquele grupo humano ao longo do tempo. Todas as culturas são
resultantes de um processo simbólico, que permitiu a comunicação e a
sobrevivência.

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