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Os Fundamentos Históricos e Teóricos

da Montagem Cinematográfica:
os contributos da escola norte-americana e da escola
soviética
Instituto Politécnico da Guarda

Carlos Canelas

Índice opuseram duas grandes tendências ideológi-


cas: a montagem narrativa, desenvolvida pe-
1 Introdução 1 los norte-americanos Edwin Porter e David
2 A Escola Americana 2 Griffith, e a montagem como produção
3 A Escola Soviética 4 de sentido, teorizada pela escola soviética,
4 Conclusão 11 onde se destacaram os nomes de Lev Kule-
5 Referências Bibliográficas 11 chov, Vsevolod Pudovkin, Sergei Eisenstein
e Dziga Vertov (Joly, 2002).
Resumo Muito embora todos os filmes sejam
montados, considera-se que a montagem
No presente artigo, pretendemos tecer al- propriamente dita só surgiu com a “liber-
gumas considerações acerca dos fundamen- tação” da câmara do lugar do espectador.
tos históricos e teóricos da montagem cin- Desde o surgimento do cinema, em 1895,
ematográfica, abordando os principais con- até cerca de 1903, os filmes eram gravados
tributos da escola norte-americana e da es- a partir de um único lugar, o do espectador,
cola soviética. e a função do técnico de montagem consis-
Palavras-chave tia em dispor os planos uns a seguir aos out-
Cinema; Escola Norte-americana; Escola ros por ordem cronológica da história nar-
Soviética; Montagem Cinematográfica. rada (Almeida, 1990; Joly, 2002; Viveiros,
2005).
1 Introdução Apesar de Georges Méliès ter começado
a produzir histórias mais interessantes em
A teoria da montagem cinematográfica per- França, como Cinderela em 1899 e Viagem
mitiu distinguir duas funções principais à Lua em 1902, todos os filmes compartil-
da montagem, que, desde o século XX, havam certas características. A montagem
era inexistente ou, no melhor dos casos, mín-
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ima, no caso de Méliès (Viveiros, 2005; Dan- que o plano isolado, considerado como uma
cyger, 2006). Méliès, tendo assistido à es- peça incompleta da acção, é a unidade a
treia do cinema, viu nesta nova arte uma partir da qual os filmes devem ser construí-
forma de explorar e melhorar os seus es- dos, estabelecendo, desta forma, o princípio
pectáculos de magia (Viveiros, 2005). Mar- básico da montagem.
cel Martin (2005) menciona que Méliès não Tendo por base o filme Life of an Amer-
compreendeu a natureza da montagem e nem ican Fireman, Porter apresentou o poder
sequer suspeitou das suas possibilidades. da justaposição. O referido filme, com-
Só com o desenvolvimento do trabalho de posto por vinte planos e com uma duração
Edwin S. Porter, nos Estados Unidos da de seis minutos, relata a história de um
América, a montagem passou a ter uma fi- corpo de bombeiros a resgatarem mãe e filha
nalidade narrativa. que se encontram num edifício em chamas
(Viveiros, 2005). Este filme usa imagens
de um filme documental sobre bombeiros e
2 A Escola Americana
imagens encenadas, relativas à mãe e filha,
2.1 Edwin S. Porter gravadas em estúdio, e a conjugação dessas
imagens, que inicialmente não tinham qual-
Jean Mitry, referenciado por Marcel Martin quer relação entre si, criou a história do
(2005), salienta que foi Edwin S. Porter que salvamento. Neste sentido, Ken Dancyger
começou a dar sentido à montagem, com a (2006) lembra que Porter defendia que dois
realização de Life of an American Fireman, planos filmados em lugares diferentes, com
em 1902, e sobretudo com The Great Train distintos objectivos, podiam, quando unidos,
Robbery, em 1903, devendo ser consider- significar algo maior do que a mera soma das
ado [este último filme mencionado] como duas partes, e que a justaposição podia criar
o primeiro filme realmente cinematográfico uma nova realidade, maior do que a de cada
pela fluidez e coerência da narrativa. Para plano individual. Deste modo, pela primeira
Martin (2005), está, a partir desse momento, vez na curta história do cinema, o plano não
inventado o essencial do cinema: a mon- possuía significado próprio, dependia da re-
tagem narrativa, que se opôs radicalmente lação com os restantes planos (Reisz, 1966).
ao corte da narrativa em cenas análogas aos Outro filme muito utilizado para apresen-
quadros de teatro. tar as contribuições de Porter para a mon-
Porter, influenciado pelo trabalho de tagem cinematográfica é o filme The Great
Méliès, descobriu a possibilidade de in- Train Robbery. A estrutura deste filme
cutir mais dinamismo nas suas produções pode ser resumida em três sequências. Na
fílmicas através da organização dos planos, primeira sequência, uns bandidos atacam o
mostrando que o plano era a peça básica chefe da estação e efectuam o assalto ao
na construção do filme (Viveiros, 2005). comboio e aos passageiros. Na segunda se-
Como destaca Karel Reisz (1966), autor da quência, o chefe da estação acorda e dá o
primeira publicação sobre a montagem cine- aviso. Na terceira e última sequência, dá-se
matográfica, com o título original The Tec- o confronto com os bons a triunfarem sobre
nique of Film Editing, Porter demonstrou os maus (Viveiros, 2005: 25). Neste filme,

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para Terence St. John Marner (1999), Porter 2006). Por conseguinte, o seu trabalho teve
demonstrou a sua intuição ao analisar uma uma grande influência em Hollywood e nos
sequência de acção individual nos seus com- cineastas e filmes revolucionários soviéticos.
ponentes narrativos lógicos, filmando estes
diversos elementos e, em seguida, uniu-os De acordo com diversos autores, tais
de modo a criar uma determinada identi- como Karel Reisz (1966), Vicente Gosciola
dade de imagem/tempo. Dentro da imagem, (2003), Gilles Deleuze (2004), Marcel Mar-
analisou também o espaço e estabeleceu re- tin (2005), Paulo Viveiros (2005), Ken Dan-
lações entre distintos elementos. Além disso, cyger (2006), entre outros, os contributos de
relacionou imagens individuais entre si, al- Griffith, para a evolução da montagem cin-
cançando a continuidade temporal, espacial ematográfica, foram inúmeras, destacando-
e emocional. se: a variação de planos para criar impacto
Porter foi quem instituiu a forma narrativa emocional, incluindo o grande plano geral,
ao ser o primeiro a utilizar uma série de ar- o close-up (grande plano), insert (plano de
tifícios e efeitos visuais que mais tarde se pormenor de um objecto), câmara subjectiva
converteram em convenções específicas do (o ponto de vista da personagem ou do ac-
género e que ainda hoje são fundamentais tor) e o travelling (deslocação da câmara de
para que o público compreenda a sequência filmar no espaço), a montagem alternada, a
narrativa da acção que se está a desenrolar montagem paralela, os flashback (retroces-
(Viveiros, 2005; Dancyger, 2006). sos temporais), as variações de ritmo, entre
Em síntese, Ken Dancyger (2006) assi- outras grandes contribuições. Marcel Mar-
nala que o grande contributo de Porter para tin (2005) realça que se não foi Griffith o
a montagem foi a organização dos planos inventor nem da montagem nem do grande
com o objectivo de apresentar uma con- plano, pelo menos foi ele o primeiro a saber
tinuidade narrativa. Por seu turno, Karel organizá-los e a fazer deles um “meio de ex-
Reisz (1966) acrescenta que com um simples pressão”.
método de acção continuada, Porter desco- Ainda sobre a importância dos contribu-
briu os verdadeiros términos da expressão tos de Griffith para o progresso do cinema,
cinematográfica. Jean Mitry, abordado por Paulo Viveiros
Se Porter criou a montagem narrativa, foi (2005), enfatiza que se o cinema devia aos ir-
David W. Griffith, também norte-americano, mãos Lumière a sua invenção enquanto meio
que a desenvolveu, ficando o seu nome reg- de análise e de reprodução de imagens em
istado para sempre como uma das grandes movimento, era a Griffith que devia a sua ex-
referências da montagem cinematográfica. istência enquanto arte e meio de expressão e
significação.
2.2 David W. Griffith Se Edwin Porter contribuiu para uma
maior clareza da narrativa fílmica, Griffith
David W. Griffith é considerado o pai da demonstrou, mais do que o seu antecessor,
montagem cinematográfica no sentido mod- como criar um maior impacto dramático,
erno, tendo sido um grande impulsion- recorrendo à justaposição de planos (Dan-
ador do cinema (Reisz, 1966; Dancyger, cyger, 2006). Portanto, as diferenças entre

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a montagem utilizada por Porter e a mon- Journot (2005: 101 e 103), a montagem al-
tagem desenvolvida por Griffith são signi- ternada intercala os planos de duas ou mais
ficativas (Viveiros, 2005). Por exemplo, cenas e/ou sequências, apresentando acções
quando Porter mudava de plano era quase que se desenrolam ao mesmo tempo em lo-
sempre por razões físicas, enquanto Grif- cais diferentes, mas que estão directamente
fith mudava de plano por razões dramáticas, relacionados. Por sua vez, a montagem par-
mostrando um novo pormenor ao especta- alela alterna série de planos que não têm
dor que permitisse aumentar o interesse do entre si qualquer relação de simultaneidade,
drama em determinado momento. Através sendo discursiva e não narrativa, podendo
dos seus filmes, Griffith pretendia que o ser usada com fins retóricos de simbolização,
público se envolvesse emocionalmente com para criar efeitos de comparação ou de con-
a história apresentada (Dancyger, 2006). traste.
Não obstante, o surgimento de Griffith No filme Romona, realizado em 1911,
no cinema não foi como realizador, mas Griffith fez uso do grande plano geral para
sim como actor, em 1907, num filme re- destacar a qualidade épica da terra e val-
alizado por Porter intitulado Rescued From orizar a importância da luta dos habitantes.
an Eaglet’s Nest. Como realizador, Griffith Ainda no mesmo ano, em The Lonedale Op-
iniciou-se em 1908, dirigindo uma série de erator, ele colocou a câmara de filmar num
filmes de 10 a 20 minutos, e foi no género comboio em movimento (travelling) (Dan-
do melodrama que encontrou uma narrativa cyger, 2006).
com um forte apelo visual para realizar as Em 1915, com o filme The Birth of a
suas experimentações (Dancyger, 2006). Nation e, em 1916, com Intolerance, Griffith
Ainda nesse ano, Griffith, colocando a câ- fez uso de todos os procedimentos de mon-
mara para mais perto da acção, pretendeu tagem desenvolvidos até então, que convert-
envolver emocionalmente o seu público, eram estas duas obras fílmicas em marcos
demonstrando que uma cena pode ser frag- históricos da montagem cinematográfica.
mentada em planos gerais, planos médios Karel Reisz (1966) sublinha que o génio
e planos próximos com a finalidade de de Griffith destacou-se essencialmente pelas
o público sentir progressivamente a sua suas qualidades narrativas, e o seu grande
emoção. Nessa altura, o efeito foi consider- contributo foi a descoberta e aplicação de
ado chocante, mas, por exemplo, o close-up modos de montagem que aumentaram e en-
foi de imediato adoptado por outros cineas- riqueceram as possibilidades do relato cine-
tas. Griffith filmava planos isolados e era matográfico.
através da montagem que estes ganhavam
o sentido pretendido (Viveiros, 2005; Dan-
3 A Escola Soviética
cyger 2006).
No filme The Lonely Villa, produzido em Após a Revolução de 1917, os filmes de Grif-
1909, Griffith expôs a ideia da montagem al- fith chegaram à União Soviética e tiveram
ternada. Apesar da montagem alternada e uma aceitação extraordinária por parte do
montagem paralela parecerem semelhantes, público, dos políticos e, sobretudo, dos
não o são. Como refere Marie-Thérèse novos cineastas. A geração pós-revolução fi-

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cou atraída pelo estilo narrativo que Griffith tudos sobre as técnicas da montagem cine-
incutira nas suas produções cinematográfi- matográfica, expondo diversas teorias acerca
cas, em filmes como The Birth of a Nation das possibilidades narrativas, expressivas e
e Intolerance (Raimondo Souto, 1993). plásticas deste recurso.
Lenine foi o primeiro homem de Estado
a reconhecer o cinema como uma nova arte, 3.1 Lev Kulechov
acreditando no papel do cinema para susten-
tar a revolução. Embora os cineastas so- Lev Kulechov foi o pioneiro de toda a es-
viéticos estivessem profundamente influen- tética da montagem soviética, com a sua
ciados por Griffith, estes também se preocu- célebre experiência de montagem, que fi-
pavam com a função dos seus filmes na luta cou conhecida por “efeito de Kulechov”.
revolucionária. Nessa altura, o cinema na O cineasta soviético intercalou um grande
União Soviética não era considerado como plano inexpressivo e neutro de um actor,
simples entretenimento, ao contrário do que chamado Mosjukhin, com três planos dis-
acontecia nos Estados Unidos da América, tintos: um prato de sopa sobre uma mesa;
mas um meio usado para ensinar e fazer pro- um caixão com uma mulher morta e, por úl-
paganda política. Assim, os novos cineas- timo, uma criança a brincar com um boneco
tas soviéticos tinham uma dupla missão: por (Reisz, 1966; Ramos 1981; Betton, 1987;
um lado, instruir as massas na história e na Gosciola, 2003; Journot, 2005; Viveiros,
teoria dos seus movimentos políticos e, por 2005; Dancyger, 2006). Ken Dancyger
outro lado, formar uma geração de jovens re- (2006) salienta que o público, após o vision-
alizadores cinematográficos capazes de dar amento das imagens, interpretou as três se-
continuidade a este processo. A esta mis- quências como a de um homem com fome,
são haviam de corresponder ganhos notáveis. um marido triste e um adulto feliz. No en-
Primeiro, estabelecer a necessidade de ex- tanto, o plano do actor era sempre o mesmo.
pressar ideias por meio do cinema para in- Marie-Thérèse Journot (2005) destaca que
tensificar o conhecimento de uma doutrina o objectivo principal desta experiência con-
política. Segundo, desenvolver uma teoria sistiu em provar que uma imagem não tem
do cinema, que Griffith, homem essencial- sentido por si só, mas que é a contextual-
mente intuitivo e de acção, nem sequer tinha ização feita pela montagem que lhe atribui
tentado (Reisz, 1966). significação. Na mesma linha, Martine Joly
Em 1919, foi criada, em Moscovo, a (2002: 221) escreve: “(. . . ) que quando
Faculdade de Cinema e os estudos desta se justapõem dois planos, ou se introduz
especialidade começaram por analisar as um plano entre outros dois, faz-se nascer
técnicas de Grifftith e, consequentemente, uma ideia ou exprime-se algo que não es-
contribuíram para o surgimento de várias tava contido em nenhum dos planos toma-
teorias sobre a montagem cinematográfica dos separadamente”, acrescentando “o re-
(Raimondo Souto, 1993). Lev Kulechov, sultado semântico é, assim, um produto (e
Vsevolod Pudovkin, Sergei Eisenstein e não uma soma) incluído entre a alucinação
Dziga Vertov foram os cineastas da União e abstracção” (Joly, 2002: 221). Kulechov
Soviética mais famosos devido aos seus es- provou que a significação de uma sequên-

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cia pode depender exclusivamente da relação os planos são blocos para a construção de
subjectiva que o espectador faz de diversos uma cena (Viveiros, 2005).
planos (Reisz, 1966; Ramos, 1981).
A partir dos resultados desta experiên- 3.2 Vsevolod I. Pudovkin
cia, Kulechov desenvolveu a ideia de que o
choque, ou conflito, é inerente a todos os Para Vsevolod Pudovkin, ex-aluno e colega
signos visuais do cinema. Dito por outras de Kulechov, a montagem é a base estética
palavras, um plano adquire significado em do filme e para prová-lo recorreu à compara-
relação aos que o antecedem e se lhe seguem. ção entre o cinema e a literatura (Villafañe e
O confronto destes planos propicia um ter- Mínguez, 1996). Para o escritor, as palavras
ceiro nível de significado que é criado na são a matéria-prima, mas o significado final
mente do público. O sentido de um plano das palavras depende da sua composição, já
depende da sua interacção com os restantes que só na relação com outras palavras cada
planos, e o sentido desta interacção entre os uma delas recebe vida e realidade artística.
diversos planos depende dos desejos e das Este cineasta defendia que no cinema ocor-
emoções do público (Viveiros, 2005). ria algo semelhante. Pudovkin entendia que:
Karel Reisz (1966) entende que as exper- “tal como a língua, também a montagem tem
iências realizadas por Kulechov permitiram a palavra (a imagem) e a frase (a combinação
entender a montagem como algo mais do que das imagens) e, deste modo, acreditava que o
um simples recurso para narrar uma história poder do cinema vinha da montagem como
em continuidade. Kulechov descobriu a arte gramática” (Viveiros, 2005: 55).
de ligar material sem nenhuma relação en- Pudovkin estudou e analisou exaustiva-
tre si e que, quando dois planos são coloca- mente o trabalho de Griffith, tentando aper-
dos em conjunto, o significado pode surgir feiçoar a teoria e a prática de comunicar
ou acentuar a diferença entre eles. ideias através do filme narrativo. Conforme
A partir destas experiências, Kulechov escreve Ken Dancyger (2006), Pudovkin pre-
começou a defender que a matéria cine- tendeu desenvolver uma teoria da montagem
matográfica é constituída pelos fragmentos que permitisse ao cineasta ultrapassar a clás-
de película, e que o método de composição sica montagem intuitiva de Griffith e encon-
consiste em uni-los, descobrindo uma ordem trar um processo formal que pudesse trans-
criadora. A arte cinematográfica não está na mitir ideias através de narrativa. Deste
rodagem do filme, nem na direcção dos ac- modo, Pudovkin formulou uma teoria da
tores, etc., mas na montagem. A arte do cin- montagem, designada por montagem con-
ema inicia-se quando o realizador começa a strutiva (Einstein, 1955; Reisz, 1966; Vil-
unir os diversos fragmentos de película (Pu- lafañe e Mínguez, 1996; Viveiros, 2005;
dovkin1 , 1929, apud Reisz, 1966: 30-31). Dancyger, 2006), que pode ser, segundo
As ideias de montagem de Kulechov eram Karel Reisz (1966), considerada como uma
parecidas às de Vsevolod Pudovkin, isto é, sistematização de alguns princípios gerais.
Primeiro, a matéria-prima do trabalho do
1
Referência completa da obra: Vsevolod I. Pu- realizador é composta pelos fragmentos de
dovkin (1929), Film Technique, Londres: Newnes.
película, que correspondem aos vários pon-

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tos de vista em que foi filmada a acção. que, mediante uma adequada justaposição,
Segundo, o realizador só opera sobre os alguns planos poderiam adquirir um signifi-
fragmentos onde estão filmados os factos e cado que nunca tinha tido isoladamente.
não em factos reais. Terceiro, estes frag- Pudovkin obteve notáveis resultados ao
mentos, que constituem o material de tra- colocar a sua teoria em prática, comparando
balho, encontram-se sujeitos, no processo os seus filmes com os de Griffith, encontram-
de montagem, à vontade do realizador que se as diferenças que os seus escritos teóri-
pode eliminar quantos pontos de intervalo cos permitem intuir (Reisz, 1966). En-
achar pertinentes para concentrar a acção quanto Griffith se expressava através das
do público durante um determinado período suas personagens, Pudovkin exprimia-se por
de tempo. Para Pudovkin, o realizador, uma série de pormenores e mediante a
recorrendo à montagem, deve seleccionar justaposição, estando mais concentrado nos
e relacionar o que é mais intenso nessa efeitos do que na personificação do próprio
continuidade, do ponto de vista do espec- conteúdo. Para Pudovkin, a função essencial
tador (Viveiros, 2005). Justo Villafañe e da montagem é a determinação de proces-
Norberto Mínguez (1996) realçam a mesma sos psicológicos no espectador. O realizador
ideia de que, para Pudovkin, a montagem é não deveria apresentar toda a realidade, mas
um instrumento que é usado para dar forma, reduzi-la ao essencial. Deste modo, e recor-
para destacar determinados acontecimentos rendo à montagem, surgiria um tempo e um
da realidade. Serve ainda para seleccionar espaço fílmicos (Viveiros, 2005).
os fragmentos que temporalmente e espa- Pudovkin opôs-se teoricamente a Sergei
cialmente são mais relevantes, construindo Eisentein (realizador e teórico que será abor-
com detalhes significativos e omitindo os dado no ponto seguinte). As diferenças entre
restantes. Assim, Pudovkin considerou que eles estão relacionadas com o método uti-
o plano é como o “tijolo” da construção lizado para efectuar os saltos visuais entre
fílmica e que o material, ao ser ordenado, cortes. Ao contrário de Eisenstein, na mon-
pode gerar qualquer resultado pretendido, tagem defendida por Pudovkin não havia
da mesma forma que um escritor utiliza as choque, mas uma fragmentação da cena
palavras para criar uma percepção da reali- em vários planos, preferindo, desta forma,
dade, o realizador de cinema usa os planos uma ligação construtiva entre os diversos
como seu material bruto (Dancyger, 2006). planos. Pudovkin acreditava mais na lig-
Karel Reisz (1966) e Ken Dancyger ação em cadeia do que no choque provo-
(2006) assinalam que as teorias propostas cado pelas imagens exteriores à narrativa
por Pudovkin têm como base as experiências (Viveiros, 2005).
do seu antecessor e colega Lev Kulechov, e
também, em parte, às suas próprias exper- 3.3 Sergei M. Eisenstein
iências como realizador. Tal como já foi
referido, as experiências de Kulechov rev- Jorge Leitão Ramos (1981), autor de uma
elaram que o processo de montagem não publicação sobre a vida e a obra de Sergei
pode ser considerado com um simples re- Eisenstein, lembra que este apesar de não ter
curso para contar histórias. Pudovkin viu sido o inventor da montagem, foi, segura-

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mente, um dos seus mais eméritos teóricos e, no interior do enquadramento. Neste tipo de
com certeza, aquele que mais alargadamente montagem, existem dois géneros de movi-
a utilizou nos seus filmes. mentos, o dos “cortes” de montagem e o
Marcel Martin (2005) considera que foi “real” no interior dos planos. Eisenstein
Eisenstein que proporcionou a melhor clas- explorou não unicamente as concordâncias
sificação de montagem, uma vez que com- desses dois movimentos, mas, sobretudo, os
porta, ainda que a sua leitura seja um conflitos entre eles. A este respeito, Paulo
pouco morosa, todos os tipos de montagem, Viveiros (2005: 60) afirma que “a transição
dos mais elementares aos mais complexos. do métrico para o rítmico efectua-se no con-
Eisenstein (1959) apresentou e defendeu al- flito entre a duração do plano e do seu movi-
gumas teorias de montagem, a saber: mon- mento interno”. Na mesma linha, Ken Dan-
tagem métrica; montagem rítmica; mon- cyger (2006) frisa que este tipo de montagem
tagem tonal; montagem harmónica e mon- está relacionado com a continuidade visual
tagem intelectual. entre planos. De acordo com o mesmo autor
No primeiro tipo de montagem, a mon- (Dancyger, 2006), este tipo de procedimento
tagem métrica, segundo o seu autor (Eisen- tem considerável potencial para demonstrar
stein, 1959), o critério fundamental para conflitos, porque a oposição pode ser repre-
esta construção é o comprimento dos frag- sentada a partir de diferentes direcções dos
mentos. Este tipo de montagem é baseado elementos no quadro, bem como por difer-
essencialmente no comprimento dos frag- entes enquadramentos de uma mesma im-
mentos de montagem e na proporcionali- agem.
dade entre os vários comprimentos de frag- No que concerne à montagem tonal,
mentos sucessivos, um pouco à maneira do Eisenstein (1959) mencionava que este tipo
“compasso” musical. É uma forma primi- de montagem expressa uma etapa mais
tiva de montagem que atende mais a factores avançada da montagem rítmica. O seu in-
mecânicos de que a outro tipo de preocu- ventor (Eisenstein, 1959: 94-95) considerou
pações (Ramos, 1981). Ainda sobre a mon- que, na montagem tonal, o movimento é
tagem métrica de Eisenstein, Ken Dancyger percebido num sentido mais lato, ou seja,
(2006) assinala que, independentemente do o conteúdo de movimento abarca todos os
seu conteúdo, encurtar a duração temporal efeitos de fragmento de montagem. A mon-
dos planos diminui o tempo que o público tagem tonal baseia-se no som emocional car-
tem para absorver a informação de cada um acterístico do fragmento do seu dominante,
deles, por conseguinte, esse procedimento isto é, no tom geral do fragmento. Como ex-
aumenta a tensão da cena. emplo ilustrativo da montagem tonal é ha-
Na montagem rítmica, ao ser definido o bitual referir-se o exemplo apresentado por
comprimento dos fragmentos, o conteúdo do Eisenstein (1959: 95-96): a “sequência do
quadro é um factor a ter também em consid- nevoeiro” do filme O Couraçado Potemkine.
eração. Segundo Jorge Leitão Ramos (1981), Neste caso, a montagem baseia-se exclusi-
a determinação métrica dos fragmentos con- vamente no “tom” emocional dos fragmen-
fere um grande destaque ao seu conteúdo, tos. Usando o mesmo exemplo, José Leitão
nomeadamente ao movimento que decorre Ramos (1981) entende que a dominante de

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montagem seria aqui, sobretudo, dada pelas damente quanto sobe na linha do poder após
“vibrações luminosas” dos planos não esque- a queda do Czar. Intercalados com as im-
cendo, porém, a sua componente rítmica (ex- agens de sua ascensão, existem planos de
pressa pela suave agitação das águas, pelo um pavão mecânico a ajeitar as suas penas.
ligeiro movimento dos barcos, pelo vapor em Eisenstein demonstrou uma interpretação de
lenta ascensão, pelas gaivotas em sossegado Kerensky como político.
voo). Eisenstein acreditava que o impacto da
Já em relação ao quarto tipo de montagem, montagem podia ser maior quando existisse
na opinião de Eisenstein (1959), a montagem um choque entre planos. Esta crença baseia-
harmónica é organicamente o desenvolvi- se, como sugere Paulo Viveiros (2005),
mento mais adiantado da montagem tonal, na ideia filosófica de que a existência só
distinguindo-se desta pelo cálculo colectivo pode continuar se houver mudança con-
do que cada fragmento requer. Conforme stante. Como frisa Gilles Deleuze (2004),
refere José Leitão Ramos (1981: 25), “das à montagem paralela de Griffith, Eisenstein
dissonâncias da montagem tonal (isto é, dos contrapõe uma montagem de oposições, ou
conflitos entre dois tons dominantes numa seja, a montagem convergente ou concor-
mesma cena) nasce a montagem harmónica”. rente, é substituída por uma montagem de
Aqui, Eisenstein incluiu como factores de- saltos qualitativos (“montagem saltitante”).
terminantes da montagem “todos os recursos Paulo Viveiros (2005) lembra que toda a teo-
dos fragmentos” (Ramos, 1981). A mon- ria de Eisenstein tem presente o efeito do
tagem harmónica, como recorda Ken Dan- filme na mente do espectador, através da
cyger (2006), conjuga os tipos de montagem atracção/choque, mas também a forma como
métrica, rítmica e tonal, manipulando a du- o espectador recebe esse estímulo. Karel
ração temporal do plano, ideias e emoções Reizs (1966) sublinha que Eisenstein de-
com o objectivo de provocar o efeito pre- fendia que a continuidade cinematográfica
tendido no público. ideal era aquela em que cada mudança de
Por fim, na montagem intelectual, Eisen- plano desse lugar a um novo choque, com
stein (1959) considerava que a montagem in- vista à obtenção de novas ideias. Nos seus
telectual não é uma montagem de sons har- filmes não se encontra nunca a menor in-
mónicos geralmente fisiológicos, mas sim tenção de transição suave, isto é, a narração
sons harmónicos de um tipo intelectual, ou progride mediante uma série de colisões.
seja, conflito-justaposição de efeitos intelec- Eisenstein opôs-se à teoria construtiva
tuais paralelos. Dito de outra forma, a de Pudovkin, desdobrando-a para a teoria
montagem intelectual trata da inserção de de colisão de atracções, dando origem à
ideias numa sequência com grande carga montagem por atracções (Gosciola, 2003).
emocional. Um exemplo que demonstra este Atracção entendida como efeito da im-
tipo de montagem é, na opinião de Ken Dan- posição de um elemento novo na sucessão
cyger (2006), o encontro no filme Outubro, de planos que provoque impactos no especta-
produzido por Eisenstein, em 1928. O líder dor, choques emocionais, de forma a levá-lo
menchevique da primeira Revolução Russa, a perceber, para além das imagens e sons, o
George Kerenshy, sobe as escadas tão rapi- lado ideológico do que é apresentado. As-

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sim, na teoria de Eisenstein, a montagem Vertov, dominado pelo empenho revolu-


é caracterizada pela colisão de atracções, o cionário, tomou consciência das infinitas
conflito de duas peças contíguas (Gosciola, possibilidades da câmara de filmar, colo-
2003). cando em causa todo o cinema convencional
Para Eisenstein, a montagem não era uma herdado do regime czarista (Granja, 1981).
simples sucessão de planos, como uma mera Tinha bem presente as palavras de Tolstoi,
ligação de partes. O plano não era um sim- pronunciadas pouco tempo depois da in-
ples “elemento” da montagem, mas era a sua venção do cinema: “o cinematógrafo deve
“célula”, tal como sucede com o elemento exprimir a verdade russa sob todas as suas
biológico, por exemplo, se uma célula for di- formas e da maneira mais exacta: deve reg-
vidida, surgirá um organismo, uma outra in- istar a vida tal como ela é” (Granja, 1981).
formação. No seu entender, o plano, como Assim, partindo da ideia de que a matéria-
célula viva, só adquire sentido se não for prima do cinema é a realidade, Vertov de-
associado a outro, ou a vários planos (Del senvolveu o anti-estúdio e o cine-olho, tendo
Amo, 1972). como grande objectivo apresentar a reali-
A montagem, na perspectiva de Eisen- dade com ela é, rejeitando deste modo a
stein, é a arte de expressar e de significar, ficção, as reconstituições, as encenações, . . .
por relações de dois planos justapostos, de (Viveiros, 2005). O cine-olho, em russo
tal forma que esta justaposição origina uma Kino-glaz, é o termo que está no centro de
ideia ao expressar algo (ao produzir um sen- toda a teoria de Vertov, desenvolvida nos
tido) que não está presente em nenhum dos anos de 1920 (Journot, 2005: 26). Partindo
dois planos separadamente. O conjunto é do pressuposto de que o cinema é um instru-
superior à soma das duas partes (Rodríguez mento de análise do mundo, mas que para se
Raso, 1990). mostrar é necessário ter visto realmente, Ver-
Eisenstein descobriu a força da montagem tov concebeu o operador de câmara, o kinok,
e da composição de imagens, e converteu- como uma espécie de super-olho.
se num mestre desta arte. Ele é reconhecido Nesta perspectiva, para Vertov, a câmara
como um teórico, mas, tal como Griffith, foi de filmar era mais perfeita do que o olho hu-
igualmente um grande realizador (Dancyger, mano, adquirindo uma força sobre-humana,
2006). e tudo o que o cineasta tinha de fazer era or-
denar judiciosamente, na montagem, o ma-
3.4 Dziga Vertov terial impressionado (Granja, 1981). O ob-
jectivo principal da teoria de Vertov passava
Se as teorias de montagem apresentadas por pelas possibilidades da câmara em registar
Eisenstein pretendiam a reformulação da re- mecanicamente a “verdade” e o mundo sem
alidade com vista à participação da pop- a intervenção do homem, porque era mais
ulação na revolução, Dziga Vertov enten- perfeita do que o olho humano (Viveiros,
dia, por seu turno, que apenas a verdade 2005).
documentada poderia ser honesta o bastante O filme Man with the Movie Camera,
para levar à verdadeira revolução (Dancyger, realizado por Vertov em 1929, constitui a
2006). demonstração exemplificativa da sua teoria

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Os Fundamentos Históricos e Teóricos da Montagem Cinematográfic 11

(Journot, 2005). Este filme conta a história DANCYGER, K. (2006), The Technique of
de um dia na vida de um operador de câ- Film and Video Editing: history, theory
mara, em Moscovo, em que Vertov repetida- and practice, Focal Press, 4.ł edição.
mente lembra a artificialidade e o não real-
ismo do cinema. Consequentemente, falta de DEL AMO, A. (1972), Estética del Mon-
realismo, manipulação e todos os elementos tage, Madrid: S/E.
técnicos do filme fazem parte de uma auto- DELEUZE, G. (2004), A Imagem-
reflexão (Dancyger, 2006). Segundo Vasco Movimento: Cinema 1, Lisboa:
Granja (1981: 31), ainda em relação ao filme Assínio e Alvim.
Man with the Movie Camera, o propósito
de Vertov era mostrar a dualidade entre a EISENSTEIN, S. (1959), Teoria y técnica
vida, tal como ela é, na realidade do olho hu- cinematográficas, Madrid: Ediciones
mano, instrumento imperfeito devido à sua Rialp.
natureza, e a realidade tal como é observada
pelo olho da câmara. GOSCIOLA, V. (2003), Roteiro para as No-
Vertov, não admitindo qualquer forma de vas Mídias: do game à tv interativa,
reconstituição ou de encenação perante a câ- São Paulo: Editora Senac.
mara de filmar, era contestado pelos cineas-
GRANJA, V. (1981), Dziga Vertov, Lisboa:
tas seus contemporâneos e compatriotas, que
Livros Horizonte.
não aceitavam o primado absoluto da objec-
tividade tal como era praticado pelo cine- JOLY, M. (2002), A Imagem e a sua Inter-
olho (Granja, 1981; Viveiros, 2005; Dan- pretação, Lisboa: Edições 70.
cyger, 2006).
JOURNOT, M.-T. (2005), Vocabulário de
Cinema, Lisboa: Edições 70.
4 Conclusão
MARNER, T. St. J. (comp. e org.) (1999),
Este artigo pretendeu, de uma forma suscita,
A Realização Cinematográfica, Lisboa:
expor os principais contributos da escola
Edições 70.
norte-americana e da escola soviética para o
surgimento e desenvolvimento da montagem MARTIN, M. (2005), A Linguagem Cine-
cinematográfica. matográfica, Lisboa: Dinalivro.

RAIMONDO SOUTO, M. (1993), Manu-


5 Referências Bibliográficas al del realizador profesional de vídeo,
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visão: princípios básicos, Lisboa:
RAMOS, J. L. (1981), Sergei Eisenstein,
Edição TV Guia Editora, 2.ł edição.
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Madrid: Taurus Ediciones.

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