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MANIFESTO TRAVECO-TERRORISTA
Tertuliana Lustosa
INTRODUÇÃO
No bairro carioca da Lapa, localizada na estreita Rua Moraes e Vale, uma casa
chama atenção pelas suas paredes cobertas por frases e versos de resistência e pela
bandeira do orgulho Trans em uma das janelas. Lá, a organização coletiva de pessoas trans
e colaboradores da causa permitiu a existência da CasaNem, um espaço ocupado e gerido
pela força daqueles que vivem cotidianamente vulnerabilidades sociais. Desde fevereiro
de 2016, a CasaNem abriga pessoas em marginalidade de gênero e socioeconômica,
promovendo, no local, peças, ações voltadas para pessoas trans, além do curso de
educação e pré-vestibular PreparaNem.
somou-se a experiência de ter uma filha travesti. Valendo-se da lógica de muitas das
brasileiras que têm filhos trans, para minha mãe não foi fácil engolir a experiência de
gênero, que carrega, em si, a anormalidade de uma vida aniquilável e fora da utopia do
corpo – não reconhecida sequer como vida, mas como criminalidade, deficiência e perigo.
E sei que até para as mães menos intransigentes, a transgeneridade no Brasil ainda é uma
guerrilha difícil, calejada de feridas diárias e violências silenciosas como as que sofremos
pelo colonialismo que, a custo do capitalismo e do espetáculo, invade as nossas
privacidades tão dilaceradas e, muitas vezes, inegociáveis.
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próprio ritual de antropofagia. Piper afirma ser natural “que uma sociedade que dependa
da terra, mão-de-obra e recursos naturais de culturas não-euroétnicas colonizadas faça o
mesmo com seus recursos estéticos e culturais” (PIPER, 2008, p. 168). As frequências
egóicas que habitam o fazer artístico elegeram formas, mecanismos estéticos, e acabaram
por reverberar muitas ressonâncias coloniais para a subalternidade.
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uma identidade nacional, mas postulando a vanguarda, não deixando de atender aos
interesses do Mercado e regida pela lógica do novo. Alguns dos artistas que participaram
da Semana de 22 tiveram acesso aos prêmios de viagem ao exterior (OLIVEIRA, L. 2014),
como foi o caso da artista Tarsila do Amaral que, em confidências familiares1, reafirmava
sentenças folclorizantes – excessivo exotismo e singularização – com relação à captação de
elementos de culturas periféricas dentro da produção de arte em Paris. Sendo assim, a
operação realizada pela vanguarda antropofágica estava em conformidade com a
exotificação de subjetividades colonizadas, não se tratando de um movimento subversivo
em relação ao imperialismo europeu.
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Já a teoria Quueer veio a popularizar-se nos anos 90, com a publicação do livro
“Problemas de gênero” da yankee Judith Butler, partindo do aprofundamento na discussão
das relações de poder estabelecidas em sociedade e levando a pensar de modo complexo a
cultura, as instituições, o poder, as formas de estar no mundo. Na visão da autora, a ideia
de gênero é complexificada como algo potencialmente fluido, porém socialmente
construído, cultural, performado e sistêmico. A ideia de “performatividade” associa-se,
segundo a autora, à relação entre o sujeito e a sociedade através do discurso (BUTLER,
2003). Abriu-se também a possibilidade de novas abordagens dentro e fora do meio
acadêmico, que difundiram pesquisas sobre práticas e significados de questões de gênero
e do seu cruzamento com outros contextos diversificados de práticas culturais, como é o
caso da leitura para fins educacionais e do âmbito da saúde pública.
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sexualidade, o que acontece, por exemplo, quando o ser “bixa” não corresponde a ser
homossexual, contemplando performatividades não-binárias e de muitas pessoas
travestis.
AMO OS PROTAGONISMOS-ETC.
Não obstante, para quem estabelece relações que exercem práticas “-etc.” em
outro campo de atuação que não só o da arte, a ideia do Basbaum carece de uma
modificação cirúrgica. Por isso que quando falo em protagonismos-etc., na verdade, refiro-
me a processos de autópsia – não aquela realizada no defunto, mas sim um processo de si,
em carne viva – que se dilacera as carniças e mira a carcaça acordada. Não
necessariamente o protagonismo/autópsia diz respeito ao campo da arte, porém por meio
do -etc. também pode atravessá-lo. Sendo assim, podemos imaginar as diversas categorias
e permutas: mulher-ativista, pai-escritor, artista-militante, guerrilheiro-artista...
também uma forma de se pensar táticas de ocupação política dos campos normativos da
sociedade. Eu amo a traveco-terrorista-etc. acho que porque sou dessas.
PRINCÍPIOS-BABADOS DO TRAVECO-TERRORISMO
BAFO 1
BAFO 2
Indianare-se.
BAPHO 3
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BAFO 4
BAFO 5
BAFO 6
BAFO 7
BAFO 8
BAFO 9
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BAFO 10
BAFO 11
BAFO 12
BAFO 13
BAFO 14
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Terrorismo como uma desfeitura (sic.) das armas coloniais através do erro, da
desordem e da produção de uma contraconduta que incomoda, que agride, que é
bombardeada, porém, que resiste.
BAFO 15
Não se torna mulher, tonam-te traveco.
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CONTRATO TRAVECO-TERRORISTA
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DO MONOLITO TRAVESTI
Quase que da mesma forma procede a reação das pessoas ao contato com
formas de vida que recusam ou desconfiguram, cotidianamente, o corpo massificado.
Quando uma travesti transita pela cidade o seu corpo incomoda ao olhar e é
constantemente violado, seja por meio do desrespeito da sua identidade, seja através de
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que, através da fala, recusa a repetição das verdades designadas socialmente, produz sua
própria morte social.
Ser faladeira era ser uma fofoqueira e uma mentirosa, falar demais. Muchachitas
bien criadas, garotas bem comportadas não respondem. É uma falta de respeito
responder à mãe ou ao pai. Eu me lembro de um dos pecados que eu tive que
contar ao padre no confessionário numa das poucas vezes em que eu fui me
confessar: responder à minha mãe, hablar pa’ ’trás, repelar. Bocuda, respondona,
fofoqueira, bocagrande, questionadora, leva-e-traz são todos signos para quem é
malcriada. Na minha cultura, todas essas palavras são depreciativas se aplicadas
a mulheres – eu nunca as ouvi aplicadas a homens. A primeira vez que ouvi duas
mulheres, uma porto-riquenha e uma cubana, dizerem a palavra “nosotras”,
fiquei chocada. Eu nem sabia que essa palavra existia. Chicanas usam “nosotros”
sejamos machos ou fêmeas. Somos privadas do nosso feminino pelo plural
masculino. A linguagem é um discurso masculino.
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Até o corpo trans mais adequados aos olhos de uma sociedade construída pela
heteronormatividade cisgênera está sujeito a diversas situações e ações preconceituosas.
Mas não só ele. O padrão de “feminilidade” não pertence nem mesmo a muitas das
mulheres cis, pois ele foi construído artificialmente pela mídia, pela moda e pelo biopoder.
Os atributos ficcionados em prol do capitalismo subjugaram manifestações da diversidade
funcional a determinados corpos, tarjando-os como deficientes, deprimidos e anormais
(MELLO, A. 2009), com é o caso de pessoas trans em relação cisnorma. Incusive, até hoje,
consta no Código Internacional de Doenças (CID 10), elaborado pela Organização Mundial
de Saúde, que o transexualismo é disforia de gênero.
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escutas, curas, visões e viradas importantes para o meu corpo. O gesto da ferida e da
Figura 3
desorganização anatômica era uma tomada de ação diante das transfobias, misoginias
torturas e mortes que alimentam o avanço científico da medicina ocidental. Cuceta: deriva,
vasculha, interrupção, ataque, invasão, ocupação, desocupação, prostituição, política de
explosão do universal e do colonialismo. Masculinidade não corresponde a pênis ereto e o
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Imagens
Figura 1. Durante a Marcha das Vadias de 2015 realizada na cidade do Rio de Janeiro, a
bandeira contendo o BAPHO 1 acompanhou o protesto. Na ocasião eu, Lady T, apareci pela
primeira vez como mulher-carne (o indumento era o biquíni de carne), unindo-me aos
parceiros do Prepara Nem para seguirmos a marcha juntes. (Autoria: Carol Mendes).
Figura 3. Para o procedimento cirúrgico da cuceta, convidei o Dr. Elton Panamby Djon na
pessoa de Sara Panamby e a sua equipe da Casa 24, local onde foi realizada a primeira
etapa da cirurgia. A Dra. Cíntia Guedes conduziu um banho de alecrim e levante, a água
fria... (Autoria: Helena Assanti).
Referência Bibliografica
ANZALDUÁ, G. Como domar uma língua selvagem. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê:
Difusão da língua portuguesa. Niterói, n. 39, 2009.
BENJAMIN, W. “O autor como produtor”, in: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012.
KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo:
Companhia das letras, 2015
PERRA, H. Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca,
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1 O autor do artigo, Luiz Sérgio de Oliveira, cita o seguinte trecho das confidências de Tarsila: “Não pensem
que esta tendência brasileira na arte é malvista aqui. Pelo contrário, o que se quer aqui é que cada um traga a
sua contribuição do seu próprio país. Assim se explica o sucesso dos bailarinos russos, das vanguardas
japonesas e da música negra. Paris está farta de arte parisiense.” (OLIVEIRA, L. 2014)
2 O próprio termo psiquiátrico “transexual” foi criado pela cisgeneridade (quando esse termo ainda nem havia
sido cunhado), enquadrando corpos em procedimentos médicos e dentro de um perfil de disforia. Em
contraposição, a ativista Indianara Siqueira propõe o uso do termo transvestigênere (aquele que está além,
que atravessa questões de vestes e de gênero), que, assim como o a identidade travesti, produz uma oposição
conceitual concentrada à ideia de sexo biológico.
3 Viviane V. analisa a invisibilidade política da população trans no âmbito educacional, jurídico e de saúde,
trazendo como proposta os relatos autoetnográficos. “É preciso escrever, entretanto, para enfrentar os
silenciamentos.” (VERGUEIRO, V., 2015)
4 A discussão em torno da ideia de “teórico-etc.” deu-se durante a aula-performance intitulada "O que é uma
ação estético-política?" que foi realizada pelo COLETIVO 28 de MAIO no Espaço Capacete, no bairro da
Glória/Rio de Janeiro, em 19 de outubro de 2015.
5 Two-spirits (ou dois espíritos) foram nativos ameríndios encontrados em tribos estadunidenses e
canadenses que desempenhavam papéis mistos de gênero.
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