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Prof.

André de Freitas Barbosa Análise literária

Eça de Queirós
(1845-1900)
A RELÍQUIA
(1887)
“Sobre a nudez forte da Verdade,
o manto diáfano da Fantasia”
A Relíquia é um romance satírico sobre a
hipocrisia religiosa da sociedade portuguesa,
repleta de tipos mercenários e hipócritas.
Com um tom irônico, Eça de Queirós mescla
oportunismo e credulidade, esperteza e abuso
da boa-fé – e mescla, principalmente,
realidade com fantasia. O conservadorismo da
igreja e a manutenção das aparências da
burguesia seriam causas da estagnação e da
decadência moral de Portugal.
Dados estruturais e personagens principais
Em seus 5 longos capítulos, o livro apresenta a
seguinte estrutura:
Foco narrativo – 1ª pessoa (narrador-protagonista);
Espaço – predominam a cidade de Lisboa e a região da
Terra Santa, no Oriente Médio (numa viagem do
narrador-protagonista, financiada por sua tia);
Tempo – 2ª metade do século XIX; há recorrência ao
flashback (infância) e à fantasia histórica dos tempos
bíblicos (época de Cristo);
Personagens – destacam-se os frequentadores da casa
da Titi (a beata D. Maria do Patrocínio das Neves),
como os padres Casimiro e Pinheiro e o Dr. Margaride;
de outro lado, as sucessivas amantes do narrador
(Adélia e Miss Mary) e o erudito Dr. Topsius,
pesquisador alemão e parceiro de viagem do narrador.
TEODORICO RAPOSO: falso beato, grande boêmio
Teodorico Raposo (o narrador-protagonista da
história) é um jovem que retorna à capital
portuguesa, vindo da Universidade de Coimbra,
para viver com a tia, D. Maria do Patrocínio das
Neves (a “Titi”), uma senhora conhecida por sua
grande fortuna e rigidez moral. Famoso em
Coimbra como “Raposão”, o rapaz continua a
levar a mesma vida boêmia em Lisboa.
É nesse contexto de ócio e fingimento que se
dá a formação do protagonista: menino órfão,
sustentado pela tia de quem ele cobiçava a
herança a ser alcançada pela falsa beatice.
MORALISMO, HIPOCRISIA E... “RELAXAÇÕES”

Nos anos de faculdade, o boêmio Teodorico era


conhecido como “Raposão”. As malandragens se
disfarçam quando, apesar da liberdade vivida longe de
casa, ele escreve à tia mentindo sobre falsos jejuns e
novenas. Por isso o jovem sofre quando a rotina das
práticas religiosas se torna efetivamente real nas
férias de verão, sob a vigilância da velha beata.
Embora seja hipócrita, Raposo não é insensível.
Ele conhece Xavier, um parente distante, e fica
abalado por sua pobreza. Chega a pensar em pedir
ajuda à tia, mas, quando ela critica Xavier por suas
“relaxações”, o protagonista é obrigado a concordar,
já que precisa garantir a própria sobrevivência.
D. PATROCÍNIO, A “TITI”: uma beata fanática
A Titi representa o fanatismo religioso. Mulher
intolerante e rancorosa, vê pecado até na natureza.
Eça de Queirós critica a extrema beatice da tia ao
mesmo tempo em que acentua o cinismo de Raposão:

“E não lhe bastava reprovar o amor como


coisa profana; a sra. D. Patrocínio das Neves (...)
varria-o como coisa suja. Um moço grave,
amando seriamente, era para si ‘uma porcaria’!
Quando sabia duma senhora que tivera um filho,
cuspia para o lado, rosnava – ‘que nojo!’. E quase
achava a natureza obscena por ter criado dois
sexos.”
UMA OPORTUNA VIAGEM À TERRA SANTA...

A situação doméstica começa a mudar quando


o narrador descobre que a Titi pretende deixar
sua fortuna para a Igreja. Raposo já não deseja
apenas o sustento fácil: quer todo o ouro da Titi.
Ele dá, então, lições de moralismo e falsa
devoção, para satisfação da tia. Isso ocorre até o
momento em que, após uma desilusão amorosa,
surge para Raposo a oportunidade de ir para
Jerusalém, para representar a beata. Seria a
grande chance de Raposão garantir a herança, ao
trazer da Terra Santa uma relíquia para a devota.
O narrador, então, parte para Jerusalém, mas sua
peregrinação envolve também os prostíbulos... Logo
conhece o Dr. Topsius, um sábio pesquisador alemão
que será um cômico parceiro de viagem.
Em Alexandria, Raposo tem um caso com Miss
Mary, luveira inglesa de reputação contestável. Ela
deixa de lembrança uma camisola, que o português
considera “relíquia de amor”. Desde então inicia-se o
paralelismo entre as duas relíquias, ambas profanas: a
camisola do pecado e uma ridícula coroa de espinhos
que seria ofertada à tia. A “relíquia” amorosa de Mary
trazia um bilhete com a seguinte dedicatória:

“Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante,


em lembrança do muito que gozamos!”
UM TRAÇO REALISTA: a visão crítica da santidade

Na chegada a Jerusalém, cai por terra o


ideal religioso burguês. A concepção do
sagrado é demolida pela imagem de um lugar
de oportunistas vendendo objetos falsificados.
Sem se descuidar dos interesses perante a
Titi, Teodorico escreve para ela, dizendo estar
à procura da grande relíquia – que será nada
menos que a própria coroa de espinhos de
Cristo – e aumentando seu repertório de
mentiras ao relatar fictícias visões de santos,
nas quais a tia é sempre louvada.
UM TRAÇO FANTASIOSO: a Jerusalém dos romanos

Certo dia, após já ter obtido a tal relíquia


para a tia, Teodorico acorda na Jerusalém
antiga. De maneira cômica e crítica, ele e o
Dr. Topsius acompanham o julgamento e a
morte de Jesus – eventos aparentemente
banais para os homens da época.
A experiência fantástica, porém, não
modifica os propósitos de Raposo, que, de
volta à Lisboa, vai em busca da aprovação
final da Titi – e lhe entrega o embrulho que
deveria conter a magnífica relíquia cristã.
CAI A MÁSCARA DE RAPOSÃO
Para desgraça do protagonista, a caixa
entregue à tia contém o presente de Mary: a
camisola e o bilhete dirigido ao “portuguesinho”.
Raposo é logo expulso de casa pela beata (que,
em seu testamento, ignora-o quase por completo
e favorece os membros do clero, como o
oportunista e bajulador padre Negrão).
“Recolhi à Travessa da Palha. E durante
horas (...), com os olhos flamejantes, revolvi o
desejo desesperado de ultrajar o cadáver da Titi
– cuspindo-lhe sobre o carão lívido (...). Chamei
contra ela todas as cóleras da Natureza.”
Desamparado, Raposo vai morar numa
pobre pensão, sustentando-se com a venda de
falsas relíquias cristãs. Nesta situação, ele
discute fantasiosamente com uma imagem de
Cristo – que, em sua fala, revela-se como
alguém maior que um deus convencional:
“Eu não construo os episódios da tua
vida; assisto a eles e julgo-os placidamente…
Sem que eu me mova, nem intervenha
influência sobrenatural […]. Eu não sou Jesus
de Nazaré nem nenhum outro deus criado
pelos homens; sou anterior aos deuses
transitórios… Chamo-me a Consciência.”
RESIGNAÇÃO E MATRIMÔNIO: o desfecho das
aventuras de Raposão
A revelação de Cristo atribui coesão final à
narrativa: a história se encerra com a resignação de
Raposo perante as próprias limitações. Por fim, ele
ainda se casa – com uma mulher “zarolha” e de certa
idade, mas de família rica (Jesuína, irmã de um velho
amigo, Crispim) e obtém, às custas do próprio
trabalho, um imóvel que pertencera a Titi.
Não se deve pensar, porém, que Raposo estava
regenerado da hipocrisia: ele reflete que perdera a
grande herança por lhe faltar falsidade – se tivesse
presença de espírito, bastaria ter dito que a camisola
de Miss Mary era uma relíquia de Maria Madalena...

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