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O interior
da Terra
LEILA SOARES
MARQUES é professora
do Departamento
de Geofísica do Instituto
de Astronomia, Geofísica
e Ciências Atmosféricas
da USP.
a constituição e os processos que ocorrem no interior e na su-
perfície terrestre sempre despertaram grande curiosidade e
certo fascínio na humanidade. Devido ao fato de a Terra ser
inacessível para a observação direta do seu interior, muitas
especulações, geralmente associadas a crenças religiosas, fize-
ram com que o conhecimento da sua origem, constituição, estado
físico e evolução progredisse muito lentamente. Ainda no início do
século XVII acreditava-se que a Terra possuía cerca de 6.000 anos,
idade esta baseada em relatos bíblicos e especulações de antigos
filósofos gregos.
Entre os séculos XVII e XVIII ocorreu um certo avanço sobre o co-
nhecimento da Terra. Entretanto, no final desse período acreditava-se
ainda que seu interior era constituído por inúmeros túneis, conectados
entre si a câmaras preenchidas com os materiais expelidos pelos
vulcões. Estes representavam os pontos de ligação entre a superfí-
cie terrestre e o interior profundo. No início do século XIX, quando
as primeiras minas e poços mais profundos foram perfurados, foi
comprovado que há um aumento significativo da temperatura com
a profundidade. Lord Kelvin (1824-1907), físico muito conceituado
na época, utilizou a taxa de aumento da temperatura com a pro-
fundidade, observada em minas, para supor que a Terra formou-se
pelo resfriamento de uma massa em fusão e para calcular que o
tempo necessário para atingir a temperatura atual deveria ser no
máximo de cerca de 100 milhões de anos. Essa idade era contestada
por cientistas da época, que a consideravam muito pequena para
explicar a evolução dos seres vivos e dos estratos geológicos.
A descoberta da radioatividade, em 1896, por Henri Becquerel,
promoveu um grande progresso no que se refere ao conhecimento
da idade da Terra, pois em 1903 o casal Pierre e Marie Curie mos-
trou que no processo de decaimento radioativo há geração de calor.
Portanto, a idade obtida por Kelvin necessitava ser revista, pois em
seus cálculos esse importante fator não havia sido computado.
Foi, no entanto, no século XX que ocor- As diferenças na densidade e no estado
reu uma grande revolução sobre a origem, físico dessas camadas indicam que essas
constituição e evolução do nosso planeta. A regiões são composicionalmente muito
datação radiométrica é o método utilizado distintas e sua origem é diretamente rela-
atualmente para a determinação da idade cionada à formação e evolução geológica
das rochas e, através dele, sabemos hoje da Terra, sendo que altas temperaturas
que a Terra possui 4,5 bilhões de anos. Foi foram essenciais para o desenvolvimento
nesse século que a geofísica estabeleceu-se dessa estrutura.
como ciência, permitindo a obtenção das
informações de que dispomos hoje sobre
o interior terrestre, as quais são baseadas
na propagação de ondas sísmicas produ- A ORIGEM DA TERRA
zidas por tremores de terra, em medidas
tanto do calor emitido em sua superfície, A Terra é uma unidade do sistema
como também dos campos magnético e de solar que se formou a partir de uma nebu-
gravidade. losa fria, com temperaturas pouco acima
Essas determinações permitiram verifi- do zero absoluto. Sob essas condições,
car que a Terra não é internamente homo- grande parte da matéria, incluindo certos
gênea, tanto sob o ponto de vista compo- elementos que normalmente ocorrem como
sicional, como também quanto ao estado gases, encontrava-se no estado sólido. Essa
físico, sendo composta essencialmente por nuvem, formada por bilhões de pequenas
quatro camadas esféricas e concêntricas. partículas sólidas e material gasoso, com
Os dados geofísicos, principalmente os composição aproximadamente igual à do
obtidos através da sismologia, mostram Sol, entrou em contração gravitacional há
que a Terra possui um núcleo interno com cerca de 4,6-4,7 bilhões de anos. A contração
raio de 1.250 km composto por um material causou aumento da densidade e resultou
de alta densidade (12,6 a 13,0 g/cm3) no na agregação dessa matéria, dando origem
estado sólido, o qual é envolto por uma aos planetas.
outra camada, denominada de núcleo Esse processo de agregação da matéria
externo, constituída por um material para a formação dos planetas é denominado
com densidade um pouco menor (9,9 a de acresção e ocorreu em vários estágios, ori-
12,2 g/cm 3) e com 2.200 km de espes- ginando gerações de corpos progressivamen-
sura, cujo estado é líquido. te maiores. Esses corpos são denominados
O manto é a camada que envolve o de planetesimais e suas dimensões variavam
núcleo, seu estado é sólido, sua espessura desde poucos metros a até tamanhos seme-
é de cerca de 2.900 km e sua densidade lhantes ao do planeta Marte.
é bem menor que a do núcleo, variando Nos primeiros estágios da acresção
de 3,5 a 5,5 g/cm3. A crosta é a camada formaram-se corpos de tamanhos centimé-
sólida superficial e a mais conhecida da tricos, os quais, por sucessivos processos de
Terra, possui densidade de cerca de 2,7 a colisão e aglutinação, originaram planetesi-
2,9 g/cm3 e espessura em torno de 6 km mais com diâmetros de poucos quilômetros.
em áreas oceânicas e de 35 km em áreas Esse processo prosseguiu até o ponto em
continentais, podendo atingir valores de que esses corpos apresentassem massa su-
até 80 km sob cadeias montanhosas, como ficiente para atrair uns aos outros, devido a
por exemplo nos Andes e no Himalaia. A forças gravitacionais, originando uma outra
proporção em volume de cada uma dessas geração de planetesimais, com diâmetros
camadas é semelhante ao que se observa em entre dezenas e centenas de quilômetros.
um ovo cozido, sendo que o núcleo (interno A partir desse momento, os planetesimais
e externo) corresponde à proporção ocupada maiores começaram a atuar como grandes
pela gema, o manto à da clara endurecida, “aspiradores”, atraindo todos os corpos
e a crosta à da casca. menores e a matéria ainda remanescente
Notas de Aula
O NÚCLEO DA TERRA
Introdução
Dados geofísicos (sísmicos, geomagnéticos e paleomagnéticos) e cálculos de
momento de inércia indicam que a Terra possui um núcleo com raio de
aproximadamente 3.500 km, constituído por um material bastante denso, sendo o
núcleo externo líquido e o interno sólido com raio de aproximadamente 1.200 km.
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Os dados paleomagnéticos mostram que o núcleo existe há pelo menos 3,5 Ga,
apresentando características bastante próximas às atuais há aproximadamente 2,5
Ga.
Estrutura do Núcleo
Admitindo-se que a Terra possua composição global condrítica e que os
elementos químicos sofreram fracionamento devido a suas diferentes propriedades
químicas (raio iônico e carga iônica) e geoquímicas, o constituinte essencial do
núcleo é o ferro, contendo ainda outros elementos (calcófilos e siderófilos) em
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menor proporção. Um núcleo composto essencialmente por uma liga contendo ferro
não satisfaz os dados geofísicos e os cálculos de momento de inércia.
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atualmente aceitos (Figura 2c). O núcleo interno é sólido pois possui temperaturas de
fusão mais elevadas do que as temperaturas existentes nessa região (para gerar os
movimentos de convecção no núcleo externo é necessário que o gradiente geotérmico
seja adiabático).
Constituição do Núcleo
O núcleo interno compreende somente 1,7% da massa da Terra e a sua
densidade é conhecida apenas de modo aproximado, situando-se no intervalo entre
12,6 e 13 g/ cm3. Experimentos utilizando ondas de choque e prensas de diamante,
capazes de gerar pressões tão elevadas quanto 360 GPa, demonstraram que a
densidade do núcleo interno é muito elevada para ferro puro. Desta forma tornou-
se necessário verificar qual elemento químico poderia satisfazer esta condição, de
modo a explicar tanto a densidade como o quimismo global do planeta. Por analogia
com os meteoritos sideritos chegou-se à conclusão que este elemento deveria ser o
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níquel. A quantidade de Ni no núcleo interno não é bem conhecida, devido aos erros
no cálculo da densidade, mas por analogia com os meteoritos acredita-se que a
quantidade de níquel no núcleo interno situa-se entre 10 e 20%. Além de Ni, há
também a presença de elementos siderófilos, mas como são pouco abundantes na
natureza possuem menor impacto no aumento da densidade.
O núcleo externo é bem maior (possui cerca de 30% da massa da Terra) do que
o interno e deve ser homogêneo devido aos movimentos de convecção. Com relação
a este aspecto, cabe ressaltar que as estimativas da viscosidade do núcleo externo
indicam valores não muito maiores do que o da água. Portanto, como a baixa
viscosidade favorece movimentos de convecção, não deve haver um gradiente de
temperatura muito acentuado nessa região.
Silício:
argumentos a favor: a) basta uma pequena quantidade para a redução da
densidade (10% de Si e 90% de Fe); b) são observadas pequenas quantidades de Si
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Oxigênio:
argumentos a favor: a) o óxido de ferro comporta-se como metal em altas pressões;
b) bastante abundante.
Magnésio:
argumentos a favor: a) bastante abundante.
Enxôfre:
argumentos a favor: a) as rochas terrestres apresentam deficiência deste elemento
com relação aos condritos; b) o S apresenta forte afinidade com o ferro, formando
sulfetos; c) presença de FeS (troilita) em meteoritos; d) FeS é um bom condutor de
eletricidade; e) FeS apresenta baixa temperatura de fusão; f) uma quantidade entre
9 e 12% de S fornece bons ajustes para as densidades observadas.
argumentos contra: a) o enxôfre por ser volátil deve ter sido perdido em grande
quantidade durante o processo de acresção.
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discutido mais adiante no curso. Se S estiver presente no núcleo externo, este deve
possuir também elementos calcófilos, como por exemplo Pb.
Sob pressão atmosférica o Fe puro sofre fusão a 1.539ºC, enquanto FeS funde-se
a 1230ºC. Qualquer composição intermediária entre estes dois extremos estará
parcialmente fundida em temperaturas acima de 998ºC. Esta temperatura é
denominada "temperatura eutética" e corresponde ao valor mínimo no qual sólido
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Para descobrir as relações de fusão em sistemas Fe-FeS sob altas pressões, foram
efetuadas experiências com misturas de Fe-Ni-S acima de 100 kbar e extrapolou-se
para pressões mais altas (núcleo). Os resultados obtidos demonstram que a dife-
rença entre a temperatura de fusão do ferro puro e a eutética aumenta com o
aumento da profundidade. Desta forma, durante a formação do núcleo, uma
mistura contendo enxofre, no estado líquido, poderia ainda "mergulhar" mais
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facilmente no oceano de magma do que o ferro puro, que requer temperaturas mais
elevadas para passar para o estado líquido.
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Evolução do Núcleo
Para formar um núcleo a Terra deve ter perdido oxigênio tornando-se quimi-
camente reduzida em relação aos condritos. Neste processo o ferro e outros
elementos calcófilos e siderófilos se separaram formando uma região de alta
densidade na parte central da Terra.
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