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LEILA SOARES MARQUES

O interior
da Terra

LEILA SOARES
MARQUES é professora
do Departamento
de Geofísica do Instituto
de Astronomia, Geofísica
e Ciências Atmosféricas
da USP.
a constituição e os processos que ocorrem no interior e na su-
perfície terrestre sempre despertaram grande curiosidade e
certo fascínio na humanidade. Devido ao fato de a Terra ser
inacessível para a observação direta do seu interior, muitas
especulações, geralmente associadas a crenças religiosas, fize-
ram com que o conhecimento da sua origem, constituição, estado
físico e evolução progredisse muito lentamente. Ainda no início do
século XVII acreditava-se que a Terra possuía cerca de 6.000 anos,
idade esta baseada em relatos bíblicos e especulações de antigos
filósofos gregos.
Entre os séculos XVII e XVIII ocorreu um certo avanço sobre o co-
nhecimento da Terra. Entretanto, no final desse período acreditava-se
ainda que seu interior era constituído por inúmeros túneis, conectados
entre si a câmaras preenchidas com os materiais expelidos pelos
vulcões. Estes representavam os pontos de ligação entre a superfí-
cie terrestre e o interior profundo. No início do século XIX, quando
as primeiras minas e poços mais profundos foram perfurados, foi
comprovado que há um aumento significativo da temperatura com
a profundidade. Lord Kelvin (1824-1907), físico muito conceituado
na época, utilizou a taxa de aumento da temperatura com a pro-
fundidade, observada em minas, para supor que a Terra formou-se
pelo resfriamento de uma massa em fusão e para calcular que o
tempo necessário para atingir a temperatura atual deveria ser no
máximo de cerca de 100 milhões de anos. Essa idade era contestada
por cientistas da época, que a consideravam muito pequena para
explicar a evolução dos seres vivos e dos estratos geológicos.
A descoberta da radioatividade, em 1896, por Henri Becquerel,
promoveu um grande progresso no que se refere ao conhecimento
da idade da Terra, pois em 1903 o casal Pierre e Marie Curie mos-
trou que no processo de decaimento radioativo há geração de calor.
Portanto, a idade obtida por Kelvin necessitava ser revista, pois em
seus cálculos esse importante fator não havia sido computado.
Foi, no entanto, no século XX que ocor- As diferenças na densidade e no estado
reu uma grande revolução sobre a origem, físico dessas camadas indicam que essas
constituição e evolução do nosso planeta. A regiões são composicionalmente muito
datação radiométrica é o método utilizado distintas e sua origem é diretamente rela-
atualmente para a determinação da idade cionada à formação e evolução geológica
das rochas e, através dele, sabemos hoje da Terra, sendo que altas temperaturas
que a Terra possui 4,5 bilhões de anos. Foi foram essenciais para o desenvolvimento
nesse século que a geofísica estabeleceu-se dessa estrutura.
como ciência, permitindo a obtenção das
informações de que dispomos hoje sobre
o interior terrestre, as quais são baseadas
na propagação de ondas sísmicas produ- A ORIGEM DA TERRA
zidas por tremores de terra, em medidas
tanto do calor emitido em sua superfície, A Terra é uma unidade do sistema
como também dos campos magnético e de solar que se formou a partir de uma nebu-
gravidade. losa fria, com temperaturas pouco acima
Essas determinações permitiram verifi- do zero absoluto. Sob essas condições,
car que a Terra não é internamente homo- grande parte da matéria, incluindo certos
gênea, tanto sob o ponto de vista compo- elementos que normalmente ocorrem como
sicional, como também quanto ao estado gases, encontrava-se no estado sólido. Essa
físico, sendo composta essencialmente por nuvem, formada por bilhões de pequenas
quatro camadas esféricas e concêntricas. partículas sólidas e material gasoso, com
Os dados geofísicos, principalmente os composição aproximadamente igual à do
obtidos através da sismologia, mostram Sol, entrou em contração gravitacional há
que a Terra possui um núcleo interno com cerca de 4,6-4,7 bilhões de anos. A contração
raio de 1.250 km composto por um material causou aumento da densidade e resultou
de alta densidade (12,6 a 13,0 g/cm3) no na agregação dessa matéria, dando origem
estado sólido, o qual é envolto por uma aos planetas.
outra camada, denominada de núcleo Esse processo de agregação da matéria
externo, constituída por um material para a formação dos planetas é denominado
com densidade um pouco menor (9,9 a de acresção e ocorreu em vários estágios, ori-
12,2 g/cm 3) e com 2.200 km de espes- ginando gerações de corpos progressivamen-
sura, cujo estado é líquido. te maiores. Esses corpos são denominados
O manto é a camada que envolve o de planetesimais e suas dimensões variavam
núcleo, seu estado é sólido, sua espessura desde poucos metros a até tamanhos seme-
é de cerca de 2.900 km e sua densidade lhantes ao do planeta Marte.
é bem menor que a do núcleo, variando Nos primeiros estágios da acresção
de 3,5 a 5,5 g/cm3. A crosta é a camada formaram-se corpos de tamanhos centimé-
sólida superficial e a mais conhecida da tricos, os quais, por sucessivos processos de
Terra, possui densidade de cerca de 2,7 a colisão e aglutinação, originaram planetesi-
2,9 g/cm3 e espessura em torno de 6 km mais com diâmetros de poucos quilômetros.
em áreas oceânicas e de 35 km em áreas Esse processo prosseguiu até o ponto em
continentais, podendo atingir valores de que esses corpos apresentassem massa su-
até 80 km sob cadeias montanhosas, como ficiente para atrair uns aos outros, devido a
por exemplo nos Andes e no Himalaia. A forças gravitacionais, originando uma outra
proporção em volume de cada uma dessas geração de planetesimais, com diâmetros
camadas é semelhante ao que se observa em entre dezenas e centenas de quilômetros.
um ovo cozido, sendo que o núcleo (interno A partir desse momento, os planetesimais
e externo) corresponde à proporção ocupada maiores começaram a atuar como grandes
pela gema, o manto à da clara endurecida, “aspiradores”, atraindo todos os corpos
e a crosta à da casca. menores e a matéria ainda remanescente

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que se encontrava no campo de atuação químicos, esses meteoritos são caracteri-
dessas forças. zados também por apresentarem conteúdos
Resultados de simulações efetuadas relativamente elevados de água e carbono
por computador indicam que na zona em inorgânico, que indicam que esse grupo não
que se originaram os quatro planetas mais sofreu aquecimento superior a 180oC e que,
próximos ao Sol (Mercúrio, Vênus, Terra portanto, devem possuir a mesma compo-
e Marte) havia cerca de 100 planetesimais sição do material primordial que originou
com dimensões da Lua, 10 do tamanho a Terra e os outros planetas mais próximos
de Mercúrio e de 3 a 5 com as dimensões do Sol (Mercúrio, Vênus e Marte).
de Marte. Vênus e a Terra incorporaram Com base nas informações dos meteori-
a maioria deles, já que Marte e Mercúrio tos, admite-se, de uma maneira bem simpli-
são bem menores. Embora o processo de ficada, que a Terra primitiva era homogênea,
acresção tenha sido muito mais intenso no formou-se em baixas temperaturas e possuía
passado, não podemos afirmar que tenha a mesma composição dos condritos. Portan-
cessado completamente. Uma prova disso to, se a Terra era inicialmente homogênea,
é que meteoritos caem freqüentemente deve ter ocorrido algum processo posterior
na superfície terrestre, os quais, quando que tenha gerado as camadas concêntricas
observados em queda, são popularmen- e com diferentes densidades presentes em
te denominados de “estrelas cadentes”. seu interior, conforme evidenciado pelos
Além disso, mesmo sendo desprezível estudos sismológicos.
em comparação com a massa da Terra
(6,0 x 1024 kg), a quantidade de material
extraterrestre, principalmente na forma de A estruturação em camadas
poeira cósmica, que cai diariamente sobre
a superfície do nosso planeta varia entre concêntricas da Terra
100 e 1.000 toneladas.
Acredita-se que, nos primeiros 500
milhões de anos da história da Terra, havia
uma “chuva” contínua de planetesimais,
A COMPOSIÇÃO DA TERRA gerando no impacto uma enorme quantidade
de calor e, conseqüentemente, provocando
As informações extraterrestres foram um aumento significativo da temperatura.
fundamentais para a obtenção de informa- A cada choque formava-se uma camada de
ções acerca da composição da Terra, espe- poeira e fragmentos de diversos tamanhos
cialmente dados de meteoritos. Esses corpos que encobria as camadas anteriores. Como
geralmente são provenientes de uma região, os materiais rochosos (silicatos) possuem
denominada de Cinturão de Asteróides, si- condutividade térmica baixa, uma parte
tuada entre as órbitas de Marte e Júpiter. Os significativa do calor produzido foi sendo
asteróides são por vezes desviados de suas armazenada nas partes mais profundas da
órbitas e acabam caindo na Terra, na Lua Terra, o que fez a sua temperatura aumentar
e em outros planetas e satélites naturais do progressivamente.
sistema solar, formando grandes crateras. A atmosfera terrestre atua hoje como
Os estudos realizados nos meteoritos uma espécie de blindagem contra a queda
permitiram identificar grupos com caracte- de corpos extraterrestres, destruindo os
rísticas químicas muito distintas. Os corpos menores e/ou diminuindo a velocidade de
do grupo mais abundante são denominados impacto dos maiores. Como a Terra primiti-
de condritos e possuem composição rocho- va não possuía atmosfera, o grande número
sa, ou seja, são compostos principalmente de impactos em sua superfície provocou um
por oxigênio (32%), ferro (25%), silício aumento ainda maior da temperatura nas
(14,5%), magnésio (12,5%), enxofre (8%) fases iniciais do planeta. Como exemplo
e níquel (2,4%). Além desses elementos de produção de calor devido ao impacto

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podemos citar a Cratera do Arizona (EUA), de calor na Terra são 238U, 235U, 232Th e 40K.
com diâmetro de 1,1 km, que foi formada Esses radioisótopos apresentam meias-
quando um corpo com um raio de cerca de vidas da ordem de 1 a 10 bilhões de anos,
23 m, massa de 300 mil toneladas e veloci- ou seja, após um intervalo de tempo dessa
dade de 18 km/h, chocou-se com a Terra há magnitude, a abundância de cada um deles
cerca de 45 mil anos. Nesse choque houve diminui à metade do valor inicial. Dessa
a liberação de energia equivalente a 20 forma, considerando que a Terra possui 4,5
milhões de toneladas de TNT, ou seja, mil bilhões de anos, as concentrações desses ra-
vezes maior que a da bomba de Hiroshima. dioisótopos são ainda hoje suficientemente
Estudos das rochas que ocorrem no interior elevadas para gerar constantemente calor.
da cratera e ao seu redor indicam que a tem- Caso não houvesse a produção de calor
peratura atingida no momento do impacto radiogênico, não haveria mais atividade
foi de pelo menos de 700oC. geológica em nosso planeta, como, por
Embora não haja mais registros super- exemplo, terremotos e vulcanismo.
ficiais desse processo, devido à dinâmica O calor radiogênico foi também impor-
interna e externa do planeta, o maior impacto tantíssimo para o aumento de temperatura nas
sofrido pela Terra ocorreu logo após a fase fases iniciais de formação da Terra. Além da
principal de acresção, quando um corpo produção de calor por urânio, tório e potássio,
com massa semelhante à do planeta Marte havia outros radioisótopos de meias-vidas
colidiu com o nosso planeta e, nesse choque, mais curtas, como o 26Al, que contribuíram
foi originada a Lua. Na colisão esse corpo significativamente na produção de calor, mas
praticamente foi pulverizado e sua matéria que agora estão extintos.
mais densa acabou sendo incorporada na Devido a todos os processos descritos
Terra, enquanto as menos densas acabaram anteriormente acredita-se que, cerca de 1
sendo aglutinadas formando a Lua. Dessa bilhão de anos após o início da formação da
forma, é assim explicado o fato de que a Terra Terra, a temperatura atingiu valores entre
é o planeta de maior densidade (5,5 g/cm3) 1.000°C e 1.800°C, sob profundidades em
do sistema solar, enquanto a Lua apresenta torno de 500 a 700 km. Essas temperatu-
densidade bem mais baixa (3,34 g/cm3). ras foram suficientes para a fusão do ferro
À medida que a Terra foi aumentando de metálico presente, o qual se tornou móvel
tamanho devido ao processo de acresção, a e devido à sua alta densidade foi deslocan-
atração gravitacional foi tornando-se cada do-se progressivamente para o interior da
vez maior e a parte interna foi ficando forte- Terra, enquanto os materiais menos densos
mente compactada e densa, como resultado (silicatos e outros compostos contendo
do aumento de pressão. Esse processo pro- oxigênio, água e gases) migraram para as
moveu também um aumento significativo regiões mais superficiais, sendo que boa
da temperatura em seu interior profundo. parte de elementos e compostos voláteis
Estima-se que a acresção e o processo de foram perdidos.
compressão foram responsáveis por um Esse processo é denominado de “catás-
aumento de temperatura da ordem de 1.000 trofe do ferro” e gerou também uma enorme
a 1.200°C na parte mais interna da Terra. quantidade de calor pela transformação da
Conforme foi demonstrado pelo casal energia potencial gravitacional do ferro,
Curie, a radioatividade gera calor. As par- que migrou para o centro da Terra. Cálculos
tículas emitidas pelos isótopos radioativos demonstram que esse processo foi respon-
são absorvidas pelo meio circundante, que sável pelo aumento de 1.500 a 2.000°C,
também absorve a energia liberada pelo re- fazendo com que uma boa parte do mate-
cuo dos núcleos emissores, havendo a trans- rial dos silicatos que constituíam o nosso
formação de energia cinética em calor. planeta também entrasse em fusão. Após a
Embora todos os elementos radioativos catástrofe do ferro, a Terra, que inicialmente
produzam calor, os principais isótopos ra- era homogênea, tornou-se quimicamente
dioativos responsáveis pela produção atual estratificada, ou seja, diferenciada.

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Uma vez que houve um episódio de alta
temperatura na Terra, sua composição, que
era originalmente igual à dos meteoritos
condríticos, foi modificada devido à perda
de gases através de intenso vulcanismo.
Dessa forma, admite-se hoje que a com-
posição da Terra é condrítica, exceto no
conteúdo de voláteis, como, por exemplo,
vapor de água, dióxido de carbono, meta-
no e amônia. Esses gases deram origem à
atmosfera primitiva da Terra.
Os dados geofísicos mostram que a Terra
possui um núcleo constituído basicamente
por ferro metálico, envolto por um material
rochoso de menor densidade, que constitui
o manto e a crosta. A existência de ferro
no núcleo terrestre é também corroborada
pela existência de um grupo de meteoritos,
denominados de sideritos, essencialmente
constituídos por ferro e níquel metálicos,
sendo que este último representa cerca
de 15% da liga. Os sideritos representam
porções do núcleo de planetesimais, com
diâmetros entre 140 e 400 km, que após
sofrerem aquecimento e diferenciação fo-
ram fragmentados e acabaram caindo na
superfície terrestre.
As densidades do núcleo interno da
Terra reforçam que o níquel deve estar
também presente nessa região na mesma
proporção observada nos meteoritos. Os
dados geofísicos, especialmente informa-
ções provenientes das ondas sísmicas que
se propagam no interior terrestre, mostram
também que o núcleo interno é sólido e que
o externo é líquido, sendo que neste último
é gerado o campo geomagnético.
A geração do campo magnético terrestre
requer energia e sabe-se hoje que a principal
fonte de energia é o movimento do fluido
de baixa viscosidade e condutor de eletri-
cidade que compõe o núcleo externo. Esse
movimento é denominado de convecção
gravitacional e é causado pelo próprio res-
friamento do núcleo, com a cristalização de
ligas metálicas de ferro e níquel, que, por
serem mais densas que o fluido, mergulham
em direção ao centro da Terra, enquanto o
material menos denso, que constitui o núcleo
externo composto principalmente por ferro,
níquel e enxofre, migra para as regiões mais

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superficiais, junto à interface manto-núcleo,
a qual é denominada de Descontinuidade de
Gutenberg. É importante destacar que sul-
fetos de ferro e níquel apresentam menores
temperaturas de fusão que a liga metálica
de ferro e níquel, explicando assim o fato
de o núcleo externo ser líquido e o núcleo
interno, sólido.
A indicação de que já havia campo
geomagnético há cerca de 3,5 bilhões de
anos, conforme registro deixado em rochas
dessa idade, mostra que a convecção do
núcleo externo é um processo que ocorre
desde as fases iniciais do planeta. Através
dele o núcleo externo está atualmente di-
minuindo, enquanto o núcleo interno está
aumentando.
Ao mesmo tempo que a “catástrofe do
ferro” estava ocorrendo, com a liberação de
grande quantidade de calor, houve intenso
vulcanismo na superfície da Terra, com a
extrusão de grandes quantidades de lava,
que após resfriamento deram origem à
crosta primitiva. Devido às características
geoquímicas dos elementos presentes no
manto primitivo, a crosta primordial possuía
densidade menor que a do manto, apresen-
tando maiores concentrações de silício,
alumínio, sódio, potássio, dentre outros.
A continuidade desse processo, incluindo
também refusão da própria crosta, fez com
que ela fosse ficando cada vez mais distinta
do manto ao longo do tempo geológico, ou
seja, cada vez mais diferenciada. Atualmen-
te, os principais elementos que constituem
a crosta são: oxigênio (46%), silício (28%),
alumínio (8%), ferro (6%), magnésio (4%),
cálcio (2,4%), potássio (2,3%) sódio (2,1%),
sendo que os demais elementos perfazem
o total restante (< 1%).
Como a Terra é um sistema dinâmico e
também pelo fato de ter sido muito bombar-
deada por planetesimais em sua fase inicial,
a crosta primitiva desapareceu completa-
mente. Datações radiométricas mostram
que as rochas crustais mais antigas possuem
idade de 3,96 bilhões de anos. Entretanto,
datações efetuadas em zircões, que são mi-
nerais muito resistentes ao intemperismo,
indicam que já havia crosta continental há
cerca de 4,1 a 4,2 bilhões de anos, ou seja,

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segmentos crustais formaram-se bem no peratura no seu interior seria tão alta que
início da história da Terra. praticamente toda a Terra estaria no estado
Atualmente há uma diferença bem líquido, contrariando os dados geofísicos
marcante entre a composição química e que mostram que o núcleo interno, o manto
mineralógica da crosta e do manto. O limite e a crosta são sólidos.
que separa essas duas regiões é denominado A taxa de aumento da temperatura de-
de Descontinuidade de Mohorovicic, ou pende, dentre outros fatores, da condutivi-
apenas Moho, dado em homenagem ao dade térmica dos materiais que compõem
sismólogo croata Andrija Mohorovicic, cada uma das camadas do interior terrestre.
que foi o primeiro a identificar a existência Assim, no núcleo a taxa de aumento da
dessa interface em 1909. temperatura com a profundidade é bem
Sabemos hoje que a crosta não é homo- menor do que a do manto, pois os metais
gênea, podendo ser dividida em dois grandes são bons condutores de calor, enquanto os
domínios. A crosta oceânica é constituída silicatos apresentam baixa condutividade
por rochas basálticas, apresentando den- térmica.
sidades de 2,9 g/cm3, espessura média em As altas temperaturas existentes no inte-
torno de 6 km e idades máximas de 180 rior da Terra fazem com que a matéria, além
milhões de anos, que são muito pequenas em de apresentar diferenças de estado físico,
comparação com a idade da Terra. Por outro possua propriedades mecânicas distintas. A
lado, a crosta continental possui densidade mudança no comportamento mecânico é o
de cerca de 2,7 g/cm3 e espessura que varia que propicia a geração de movimentos de
de 20 a 80 km, e é constituída por diferen- convecção no manto, que é o modo mais
tes tipos de rochas (ígneas, sedimentares e eficiente de transferência de calor da parte
metamórficas) que se formaram ao longo mais profunda para a superfície terrestre.
do tempo geológico, sendo as mais antigas Portanto, o manto terrestre não é estático
encontradas no Canadá (Gnaisse de Acasta), e em grande parte dele ocorre convecção
com idade de 3,96 bilhões de anos. Abaixo térmica, a qual é bem semelhante ao que
da crosta encontra-se o manto, composto acontece quando a água contida em um
por silicatos mais densos devido às maiores recipiente é colocada sobre uma chama.
concentrações de ferro e magnésio, cujas Após decorrido certo tempo, a porção de
rochas são denominadas de peridotitos. água situada na base do recipiente onde
a temperatura é maior se expande e sua
densidade diminui, sendo que esse pro-
A estrutura dinâmica da Terra cesso continua até que a densidade fique
suficientemente baixa para que seja iniciada
A Terra está continuamente perdendo sua movimentação em direção à superfície.
calor, sendo que grande parte dos processos Ao atingir a superfície, cuja temperatura é
que ocorrem na sua superfície, como, por menor, a densidade torna a aumentar e a água
exemplo, a atividade vulcânica e a ocor- mergulha em direção à base do recipiente,
rência de terremotos, é resultante desse estabelecendo-se assim o movimento de
processo. convecção térmica.
Dados obtidos em furos de sondagem Sob o ponto de vista das propriedades
mostram um aumento progressivo da tem- mecânicas, a crosta e o manto são divididos
peratura em função da profundidade, com em três grandes camadas, denominadas de
um acréscimo de 30 a 40°C por quilômetro litosfera (esfera de rocha), astenosfera (pa-
em regiões crustais, podendo atingir cerca lavra de origem grega que significa “esfera
de 5.500°C no núcleo. Considerando que a mole, macia ou de baixa resistência”) e
Terra possui um raio de cerca de 6.350 km, mesosfera (esfera intermediária separan-
é evidente que deve haver uma diminuição do o manto superior do núcleo terrestre).
na taxa de aumento da temperatura com a A litosfera é a região que compreende a
profundidade, pois, caso contrário, a tem- crosta e parte do manto superior, sendo

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sua base definida como a profundidade na nado às duas placas que estão se formando
qual a temperatura atinge valores de cerca e se separando a uma velocidade de poucas
de 1.200°C. Para temperaturas maiores que dezenas de milímetros por ano. O vulcanis-
essa, ou seja, para profundidades maiores, mo que ocorre nas dorsais é originado pela
as rochas do manto terrestre deixam de fusão parcial das rochas do manto, quando
apresentar rigidez e começam a se deformar submetidas a pressões mais baixas, devido
quando submetidas a esforços de longa ao movimento ascendente das correntes de
duração, ou seja, no tempo geológico. No convecção nessas bordas.
entanto, essa deformação ocorre no estado À medida que se afasta da dorsal, a
sólido, e requer necessariamente altas tem- litosfera oceânica progressivamente au-
peraturas, sendo o processo denominado de menta de espessura e esfria, o que provoca
arrasto no estado cristalino. Um exemplo contração de suas rochas e conseqüente
de arrasto em um sólido cristalino é o lento aumento de densidade. Quando a litosfera
movimento de geleiras nos vales. atinge espessuras de cerca de 100 km, o
A litosfera é dividida em grandes blocos, que acontece quando sua idade é em torno
denominados de placas litosféricas, que de 160 Ma, sua massa é muito alta para
englobam partes continentais e oceânicas, continuar boiando sobre a astenosfera.
semelhantes às peças de um quebra-cabeças. A partir de então a litosfera dobra-se e
Essas placas são rígidas, movimentam-se mergulha para o interior da Terra, em
umas em relação às outras e possuem es- um processo denominado de subducção
pessura variável, cuja média situa-se em e, nesses locais, formam-se trincheiras
torno de 100 km. profundas, sendo que as Fossas Marianas
O manto abaixo da litosfera é dividido possuem a maior profundidade (11 km)
em duas regiões, a mais superficial é deno- até hoje registrada. É nos locais onde há
minada de astenosfera. Essa região se inicia a convergência de placas que se formam
logo abaixo da litosfera e termina em cerca grandes cadeias montanhosas, como a
de 700 km, que corresponde à maior pro- Cordilheira dos Andes, onde vulcões ativos
fundidade até hoje registrada como o foco ocorrem paralelamente à fossa, localizan-
de um terremoto. Na astenosfera ocorrem do-se a cerca de 150 km acima da litosfera
movimentos de convecção, causados pela em subducção. O Himalaia, os Alpes e as
acentuada diferença de temperatura entre Montanhas Rochosas também se formaram
a base e o topo dessa região, associada à por esse mesmo tipo de processo.
capacidade de fluir de suas rochas no tempo Como rochas da astenosfera apresentam
geológico. resistência ao processo lento de subducção
A mesosfera se inicia logo abaixo da da litosfera oceânica, o contínuo acúmulo de
astenosfera e, embora também exista uma tensões acaba por atingir o limite de resistên-
considerável diferença de temperatura entre cia das rochas, provocando ruptura repen-
o seu topo e sua base, situada na interface tina e gerando vibrações que se propagam
manto-núcleo, não se sabe com segurança em todas as direções, ou seja, produzindo
se há convecção nessa região. As pressões abalos sísmicos. Os terremotos delineiam
existentes nessas profundidades podem ini- os locais onde as placas litosféricas entram
bir o processo de arrasto no estado sólido. em subducção e ocorrem até profundidades
As placas litosféricas são delimitadas por máximas de 700 km, sendo que muitos
três tipos de bordas que concentram a maior deles possuem altas magnitudes. Através
parte da atividade sísmica e magmática da dos abalos sísmicos ocorridos em zonas de
Terra. Nas bordas divergentes ou de cons- subducção, sabe-se que os ângulos médios
trução há a contínua formação de assoalho de mergulho são de cerca de 45°. Entretanto,
oceânico nas cadeias submarinas, também esse valor é bem maior em alguns locais,
denominadas de dorsais oceânicas. Nesses como nas Ilhas Novas Hébridas (cerca de
locais, magma basáltico gerado no manto 70°), e menor em outros, como no Chile e
sobe em direção à superfície, sendo adicio- Peru (cerca de 30°).

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A litosfera oceânica e, conseqüentemen- um tsunami de grandes proporções, que
te, a crosta oceânica são continuamente destruíram a cidade em 1755.
recicladas e, por isso, a idade média do O calor existente no interior da Terra go-
assoalho oceânico é de 100 Ma. Entretanto, verna os processos dinâmicos que ocorrem
a litosfera continental não sofre subducção na superfície. Sabemos hoje que ao longo
por ser menos densa. Dessa forma, a litosfera do tempo geológico supercontinentes se
continental é preservada nesse processo e formaram e depois foram fragmentados e
esta é a razão pela qual nela são encontradas esse processo continuará enquanto houver
rochas muito antigas. calor. Mesmo para quem não é especialista
As placas litosféricas podem também se no assunto, chama a atenção a grande si-
deslocar ao longo de falhas transforman- milaridade entre os contornos do leste da
tes ou bordas de conservação, nas quais América do Sul e do oeste africano, cuja
não há nem geração e nem destruição de separação iniciou-se há cerca de 145 milhões
litosfera oceânica, mas apenas movimen- de anos. Os fenômenos naturais associados
tação transcorrente, ou seja, deslizamento à dinâmica interna da Terra são temidos
paralelo de uma placa em relação à outra. devido ao grande poder de devastação.
Embora nessas bordas não haja atividade Entretanto, o homem aprendeu a usar essa
vulcânica, as falhas transformantes são ca- energia em seu próprio benefício, já que os
racterizadas por alta sismicidade. Uma das materiais expelidos pelos vulcões tornam
mais conhecidas falhas transformantes é a o solo muito produtivo para a agricultura e
de San Andreas (EUA), cuja movimentação fontes termais são utilizadas para a geração
provocou o grande abalo sísmico ocorrido de energia. Além disso, grande parte das ja-
em São Francisco em 1906. A Falha dos zidas minerais, incluindo cobre, ouro e prata,
Açores, que passa ao sul de Portugal, foi a como também o petróleo, encontra-se forte-
responsável pelo grande terremoto ocorri- mente associada aos processos que ocorrem
do em Lisboa, o qual foi acompanhado de nas bordas das placas litosféricas.

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AGG-309 Evolução e Dinâmica Interna da Terra

Notas de Aula

O NÚCLEO DA TERRA

Introdução
Dados geofísicos (sísmicos, geomagnéticos e paleomagnéticos) e cálculos de
momento de inércia indicam que a Terra possui um núcleo com raio de
aproximadamente 3.500 km, constituído por um material bastante denso, sendo o
núcleo externo líquido e o interno sólido com raio de aproximadamente 1.200 km.

O estudo do núcleo é de grande importância, pois existem fortes indicações de


que ele esteja ainda influenciando a distribuição de temperatura no manto,
governando indiretamente os processos de grande escala que ocorrem na superfície.

Com a finalidade de se determinar a origem e a possível composição do núcleo,


é necessário conhecer a composição global do planeta.

Principais Características do Núcleo


O núcleo inicia a uma profundidade de 2.900 km (Descontinuidade de Wiechert-
Gutenberg), sendo que a interface núcleo interno (NI) / núcleo externo (NE)
localiza-se a uma profundidade de aproximadamente 5.200 km (Descontinuidade
de Lehmann). No núcleo as pressões são extremamente altas, variando de 1,3
milhões de atmosferas (NE) a 3,5 milhões de atmosferas (NI). As temperaturas
máximas atingidas situam-se entre 4.000 e 5.500ºC.

O núcleo apresenta densidade bastante elevada, variando no sistema CGS de


9,9 g/cm3 (9900 kg/m3 no sistema SI; interface manto-NE) a 12,2 g/cm3 (12200

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kg/m3; interface NE-NI) no núcleo externo e situando-se entre 12,6 g/cm3 a 13 g/


cm3 no núcleo interno (Figura 1).

Os dados paleomagnéticos mostram que o núcleo existe há pelo menos 3,5 Ga,
apresentando características bastante próximas às atuais há aproximadamente 2,5
Ga.

Figura 1: Comportamento da densidade e das velocidades das ondas sísmicas no interior


da Terra (figura extraída de Jeanloz e Lay, 1993).

Estrutura do Núcleo
Admitindo-se que a Terra possua composição global condrítica e que os
elementos químicos sofreram fracionamento devido a suas diferentes propriedades
químicas (raio iônico e carga iônica) e geoquímicas, o constituinte essencial do
núcleo é o ferro, contendo ainda outros elementos (calcófilos e siderófilos) em

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menor proporção. Um núcleo composto essencialmente por uma liga contendo ferro
não satisfaz os dados geofísicos e os cálculos de momento de inércia.

Vários modelos foram propostos vários para a estrutura e composição do núcleo


de modo a satisfazer:

 as densidades (núcleo externo e interno) e as leis da geoquímica;

a distribuição de temperatura no interior da Terra de modo que o núcleo interno


seja sólido e que o externo seja líquido;

a geração da energia necessária para originar o campo geomagnético.

Um modelo bem simples foi formulado na década de 50 no qual o núcleo é


quimicamente homogêneo. Neste modelo a temperatura de fusão aumenta com a
profundidade, devido ao aumento de pressão, mais rapidamente do que a
geoterma. De acordo com o modelo, ocorre uma diminuição da temperatura de
fusão na interface manto-núcleo devido a uma mudança de composição química,
passando de uma fase silicatada para uma fase metálica rica em ferro. Em
profundidades menores, as temperaturas existentes no núcleo são superiores às
temperaturas de fusão, portanto, o material dessa região encontra-se na fase líquida
(núcleo externo). Uma mudança para a fase sólida (núcleo interno) ocorre sob
profundidades maiores, onde a geoterma situa-se abaixo da temperatura de fusão
(Figura 2a).

A partir da década de 70 verificou-se que o gradiente geotérmico anteriormente


proposto não era suficiente para manter o movimento de convecção no núcleo,
necessário para gerar o campo geomagnético observado. De acordo com esses
estudos as temperaturas mínimas necessárias para haver convecção em um núcleo
composicionalmente homogêneo originariam um núcleo interno líquido e um
externo sólido, que é o oposto do que sabemos hoje (Figura 2b).

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Figura 2: Curvas de temperatura de fusão e a existência do núcleo externo líquido (extraída


de Brown & Musset, 2003)

Desta forma, a ideia de um núcleo composicionalmente homogêneo foi


abandonada. Modelos nos quais as composições do núcleo interno e externo são
diferentes (consequentemente com diferentes temperaturas de fusão) são os

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atualmente aceitos (Figura 2c). O núcleo interno é sólido pois possui temperaturas de
fusão mais elevadas do que as temperaturas existentes nessa região (para gerar os
movimentos de convecção no núcleo externo é necessário que o gradiente geotérmico
seja adiabático).

Em termos de estrutura, o sismólogo K.E. Bullen na década de 40 dividiu o


núcleo terrestre em três regiões. A região E corresponde ao núcleo externo,
(enquanto a D’ ao manto inferior e D” à interface manto-núcleo externo. Dados de
tomografia sísmica mais recentes que a camada D” possui espessura variável com
máximo de 200-400 km (Figura 1). A região F corresponde a uma região de interface
entre o núcleo interno e o núcleo externo (esta região é hoje considerada como
pertencente ao interno). Esta região corresponde a uma camada de contato não
convectiva, cujo estado é intermediário em relação àquele de um líquido verdadeiro
ou sólido verdadeiro. Sua espessura é de aproximadamente 560 km e a sua den-
sidade varia de 12,2 a 12,6 g/cm3, mas não existe um consenso a seu respeito. A
região G corresponde ao núcleo interno propriamente dito, iniciando a uma pro-
fundidade de 5.760 km. O salto no valor de densidade de 12,2 para 12,6 g/cm3 no
topo do núcleo interno é compatível com uma mudança na composição química.

Constituição do Núcleo
O núcleo interno compreende somente 1,7% da massa da Terra e a sua
densidade é conhecida apenas de modo aproximado, situando-se no intervalo entre
12,6 e 13 g/ cm3. Experimentos utilizando ondas de choque e prensas de diamante,
capazes de gerar pressões tão elevadas quanto 360 GPa, demonstraram que a
densidade do núcleo interno é muito elevada para ferro puro. Desta forma tornou-
se necessário verificar qual elemento químico poderia satisfazer esta condição, de
modo a explicar tanto a densidade como o quimismo global do planeta. Por analogia
com os meteoritos sideritos chegou-se à conclusão que este elemento deveria ser o

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níquel. A quantidade de Ni no núcleo interno não é bem conhecida, devido aos erros
no cálculo da densidade, mas por analogia com os meteoritos acredita-se que a
quantidade de níquel no núcleo interno situa-se entre 10 e 20%. Além de Ni, há
também a presença de elementos siderófilos, mas como são pouco abundantes na
natureza possuem menor impacto no aumento da densidade.

O núcleo externo é bem maior (possui cerca de 30% da massa da Terra) do que
o interno e deve ser homogêneo devido aos movimentos de convecção. Com relação
a este aspecto, cabe ressaltar que as estimativas da viscosidade do núcleo externo
indicam valores não muito maiores do que o da água. Portanto, como a baixa
viscosidade favorece movimentos de convecção, não deve haver um gradiente de
temperatura muito acentuado nessa região.

Os valores de densidade do núcleo externo são conhecidos com melhor exatidão


e variam entre 9,9 g/cm3 (interface manto-NE) e 12,2 g/ cm3 (interface NE-NI).
Dados de ondas de choque para 150 GPa (interface manto-NE) e obtidos em prensas
de diamante mostram que o ferro puro possui uma densidade de aproximadamente
10,6 g/ cm3. Desta forma, a liga FeNi é muito densa para que apenas esses dois
elementos sejam os principais constituintes do núcleo externo, necessitando de um
ou mais elementos menos densos para fazer parte da liga (Figura 3). De qualquer
forma, além de Fe e Ni, elementos siderófilos devem também estar presentes no NE.

Existem potencialmente 4 elementos químicos menos densos que o ferro, níquel


e siderófilos, suficientemente abundantes na Terra, que poderiam fazer parte desta
liga: Si, O, Mg e S.

Silício:
 argumentos a favor: a) basta uma pequena quantidade para a redução da
densidade (10% de Si e 90% de Fe); b) são observadas pequenas quantidades de Si

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dissolvidas em fases metálicas de meteoritos condríticos do tipo E (enstatita); c)


sob altas pressões e temperaturas pode se comportar como metal.

 argumentos contra: a) a temperatura de fusão do Si é muito elevada; b) o Si tende


a formar íons pequenos que se complexam com O nos silicatos, possuindo desta
forma propriedades fortemente litófilas.

Oxigênio:
 argumentos a favor: a) o óxido de ferro comporta-se como metal em altas pressões;

b) bastante abundante.

 argumentos contra: a) apresenta características litófilas (forma silicatos); b) não


reduz a temperatura de fusão do ferro.

Magnésio:
 argumentos a favor: a) bastante abundante.

 argumentos contra: a) características litófilas.

Enxôfre:
 argumentos a favor: a) as rochas terrestres apresentam deficiência deste elemento
com relação aos condritos; b) o S apresenta forte afinidade com o ferro, formando
sulfetos; c) presença de FeS (troilita) em meteoritos; d) FeS é um bom condutor de
eletricidade; e) FeS apresenta baixa temperatura de fusão; f) uma quantidade entre
9 e 12% de S fornece bons ajustes para as densidades observadas.

 argumentos contra: a) o enxôfre por ser volátil deve ter sido perdido em grande
quantidade durante o processo de acresção.

Ainda não existe um consenso sobre a composição do núcleo externo, mas os


trabalhos recentes indicam como possibilidades a presença de H, C e O. Até mesmo
de Si e Mg, podem estar presentes devido a reações entre os silicatos do manto e Fe,
Ni e siderófilos do núcleo externo, as quais ocorrem na camada D’’, como será

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discutido mais adiante no curso. Se S estiver presente no núcleo externo, este deve
possuir também elementos calcófilos, como por exemplo Pb.

Figura 3: Distribuição de densidade do núcleo externo em função da profundidade e


comparação com à equivalente para Fe puro para diferentes temperaturas (Rogers, 2008)

Temperatura e Formação do Núcleo


A presença de S no núcleo externo diminui consideravelmente a temperatura de
fusão do Fe, pois o sistema Fe-FeS apresenta ponto eutético de baixa temperatura
(Figura 4).

Sob pressão atmosférica o Fe puro sofre fusão a 1.539ºC, enquanto FeS funde-se
a 1230ºC. Qualquer composição intermediária entre estes dois extremos estará
parcialmente fundida em temperaturas acima de 998ºC. Esta temperatura é
denominada "temperatura eutética" e corresponde ao valor mínimo no qual sólido

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e líquido coexistem. A composição na qual coexistem sólido e líquido sob a mais


baixa temperatura é denominada "composição eutética". Sob pressão atmosférica a
composição eutética do sistema possui 75% de FeS (correspondendo a 27% de S na
mistura).

Figura 4: Diagrama de fase de um sistema de 2 componentes (Fe e FeS) para as condições


de 1 atmosfera e na interface manto-núcleo (extraída de Brown & Musset, 1993).

Dessa forma, dados experimentais demonstraram que a presença de S diminui


consideravelmente a temperatura de fusão do ferro, sendo que misturas Fe- FeS no
núcleo externo apresentam temperaturas de fusão mais baixas do que a da liga Fe-
Ni-siderófilos (núcleo interno) que não possui ponto eutético. Isto justifica o fato do
núcleo externo ser líquido e o interno sólido.

Para descobrir as relações de fusão em sistemas Fe-FeS sob altas pressões, foram
efetuadas experiências com misturas de Fe-Ni-S acima de 100 kbar e extrapolou-se
para pressões mais altas (núcleo). Os resultados obtidos demonstram que a dife-
rença entre a temperatura de fusão do ferro puro e a eutética aumenta com o
aumento da profundidade. Desta forma, durante a formação do núcleo, uma
mistura contendo enxofre, no estado líquido, poderia ainda "mergulhar" mais

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facilmente no oceano de magma do que o ferro puro, que requer temperaturas mais
elevadas para passar para o estado líquido.

O manto profundo (abaixo do oceano de magma), em cujo topo foram


acumuladas grandes massas de Fe-FeS, não suportando essa carga permitiu que
esse material denso atingisse a parte mais profunda, como grandes bolsões (Figura
5). De modo alternativo esse material pode ter percolado o manto profundo através
de uma rede interconectada (Figura 6). A liberação de energia nesse processo,
aumentou ainda mais a temperatura, permitindo que o Fe, Ni e S (além de
elementos acompanhadores calcófilos e siderófilos) presentes no manto profundo
sólido fossem também para o centro da Terra.

Figura 5: Segregação de material metálico no oceano de magma (extraída de Fiquet et al,


2008).

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Figura 6: Diagrama esquemático mostrando possíveis mecanismos de formação do núcleo


(extraída de Shi et al, 2013).

Nesses experimentos foi demonstrado também que a quantidade de S de uma


mistura eutética diminui com o aumento da pressão. De acordo com esses estudos
a quantidade de S na mistura eutética na interface manto-núcleo externo deve ser
de 17,5%, decrescendo para 15% (de 48% para 41% de FeS) na interface NE-NI. A
presença de Ni e demais siderófilos no núcleo externo teria um efeito pequeno nas
temperaturas estimadas. Desta forma, a composição eutética para essas
profundidades conteria somente um pouco mais de S do que a percentagem de 9 a
12% presente atualmente no núcleo externo, estimada através dos dados de
densidade (12% de S é equivalente a 33% de FeS; figura 4).

O comportamento da temperatura eutética em função da profundidade permite


estimar as temperaturas do núcleo. As temperaturas mínimas possíveis
(correspondentes às composições eutéticas) são de 1800ºC na interface manto-
núcleo, aumentando até 2100ºC na interface núcleo interno-núcleo externo. As
temperaturas máximas possíveis (correspondentes às temperaturas de fusão do Fe)
são de 3.900ºC e 4.400ºC nessas mesmas interfaces, respectivamente (figura 7).

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Figura 7: Estimativa das temperaturas de fusão do Fe puro e a da curva eutética em função


da profundidade (extraída de Brown & Musset, 1981)

Portanto, de acordo com essas estimativas a temperatura na interface manto-


núcleo deve se situar entre 1.800 e 3.900ºC. Através de dados de fluxo térmico foi
possível estimar que temperatura nessa interface é de 3.700±500ºC. Dados recentes
obtidos em experimentos utilizando prensas de diamante, mostram que a
temperatura nessa interface deve ser de cerca de 4.000ºC (Figura 8), corroborando
os resultados anteriores.

Evolução do Núcleo
Para formar um núcleo a Terra deve ter perdido oxigênio tornando-se quimi-
camente reduzida em relação aos condritos. Neste processo o ferro e outros
elementos calcófilos e siderófilos se separaram formando uma região de alta
densidade na parte central da Terra.

O núcleo deve ter se formado no início da história da Terra, sendo constituído


por uma mistura totalmente fundida, contendo principalmente Fe, Ni e S (além de

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elementos acompanhadores calcófilos e siderófilos). Admitindo-se que a Terra pos-


sua composição global condrítica (Ni = 1% e S = 8%), o núcleo deveria conter 3% de
Ni e 24% de S.

Figura 8: Distribuição da temperatura no núcleo terrestre utilizando prensa de diamante


(extraída de Hirose et al, 2013). Os números dentro dos vários campos mostram o ano em
que os avanços tecnológicos permitiram atingir as pressões e temperaturas nos
experimentos de laboratório.

Dados de densidade e momento de inércia indicam que o núcleo externo contém


somente cerca de 9 a 12% de S. O restante poderia estar concentrado na crosta ou no
manto, mas é muito mais provável que foi perdido durante o processo de acresção
(o S é bastante volátil). Dos 8% que havia inicialmente na Terra, deve ter sobrado
apenas cerca de 2%. Assim, o núcleo inicial era provavelmente constituído por 86%
de Fe, 11% de S e 3% de Ni, com traços de outros elementos calcófilos e siderófilos.

É importante ressaltar que os meteoritos ferrosos possuem quantidades de S (4-


5%) ainda menores do que as do núcleo. Entretanto, o mineral troilita é

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relativamente abundante nesses meteoritos. A explicação para essa diferença é que


esses meteoritos devem possuir uma história térmica de alta temperatura muito
curta, não havendo tempo suficiente para uma separação manto-núcleo eficiente,
como a que ocorreu na Terra.

Se o núcleo terrestre formou-se a partir de um sistema Fe - Ni - S, sua


temperatura inicial deve ter excedido 4.000ºC. Com o posterior resfriamento
cristalizou-se uma liga Fe-Ni e siderófilos, dando origem ao núcleo interno.

As opiniões são bastante diversas em relação ao estágio atual do núcleo (núcleo


aumentando ou "quase" estável em dimensão). Como a composição atual do núcleo
externo é um pouco mais metálica do que a eutética, acredita-se que o núcleo interno
ainda esteja em fase de crescimento. De acordo com esse modelo, o núcleo interno
que corresponde atualmente a 1,7% da massa da Terra crescerá até atingir cerca de
10%, quando a composição do núcleo externo atingir a condição eutética. Neste
ponto o núcleo externo, com composição eutética, se cristalizará formando um
núcleo totalmente sólido a uma temperatura de aproximadamente 1.800ºC.

Energia e o Campo Magnético Terrestre


As possíveis fontes de energia para gerar o movimento de convecção do fluído,
presente no núcleo externo, que origina o campo magnético terrestre são:

 calor proveniente do passado que ainda não foi dissipado

liberação de calor latente de solidificação pela cristalização do núcleo interno.

 dissipação de calor produzido por correntes elétricas.

 efeitos de maré devido à atração gravitacional da Lua e do Sol.

 presença de pequenas quantidades K, que pelo decaimento radioativo geraria


calor (este é um tema de grande debate na literatura).

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 convecção térmica e convecção gravitacional (mais importante).

Bibliografia
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BROWN, G.C.; HAWKESWORTH, C.J. & WILSON, C.L. (1992). Understanding the Earth:
a new synthesis. Cambridge University Press, p.551.
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Annu. Rev. Earth Planet. Sci., 41: 657-691.
ROGERS, N. (2008). An Introduction to Our Dynamic Planet. Cambridge University
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W.L. (2013). Formation of an interconnected network of iron melt at Earth’s lower
mantle conditions. Nature Geoscience, 6: 971-975.

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