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Pietro Costa - Dilemas e Instrumentos Da Historiografia PDF
Pietro Costa - Dilemas e Instrumentos Da Historiografia PDF
1. Tentarei refletir em voz alta sobre os historiografia com as quais se pode abrir
instrumentos e sobre o sentido da um confronto.
historiografia. A minha conversa será, porém, Não pretendo referir-me especificamente
mais uma confissão do que uma lição: será o à historiografia jurídica. Faltará tempo para
testemunho da minha maneira de entender o fazê-lo. A história do direito apresenta
‘ofício do historiador’ mais do que uma problemas específicos que seria interessante
dissertação teórica sobre o método e sobre o afrontar. Ela é, porém, espécie de um gênero:
objeto da historiografia. Espero, portanto, que pertence integralmente ao ramo do
possam emergir da discussão outros, e conhecimento histórico. Uma característica
diversos, testemunhos, outras imagens da atual do conhecimento histórico é, de fato, de
ser não um objeto, mas um ponto de vista:
todo aspecto da realidade humana pode ser
* Professor catedrático de História do Direito da
Università degli Studi di Firenze, Itália).
objeto do conhecimento histórico. Pode-se
** Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca, professor fazer, e se faz, história de tudo: da política,
de História do Direito da Faculdade de Direito da UFPR, das religiões, da arte, da música, da agricultura,
programas de graduação e pós-graduação. Pesquisador
do CNPq. da sexualidade, do trabalho, da cultura
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material, dos saberes, do direito. Cada uma romano arcaico, seja do direito do século
destas historiografias afronta aspectos XX, seu objeto é colocado num tempo
específicos da experiência e deve, portanto, diverso do seu: o historiador é um especialista
dispor de conhecimentos adequados à do passado.
compreensão do seu objeto. Espera-se que o Refletir sobre a historiografia significa
historiador da música saiba ler as notas de então refletir sobre a relação entre presente e
uma partitura e diferenciar uma fuga de uma passado. Aqui se faz necessário, porém, outro
sonata, que o historiador da arte saiba como esclarecimento: não pretendo suscitar um
pintar um afresco, que o historiador do direito problema de ‘filosofia da história’. Não
não confunda propriedade com usufruto e o pretendo colocar a famosa pergunta sobre
juiz instrutor com o ministério público (mas ‘quem somos e para onde vamos’. A minha
não por isso se pretende que o historiador da questão é puramente empírica, interior
música componha uma sinfonia, que o àquele saber especializado que chamamos
historiador da arte pinte um quadro ou historiografia. Pretendo perguntar-me como
que o historiador do direito defenda um seja possível conhecer o passado (um ou
desafortunado no tribunal). outro aspecto do passado) e qual seja o
Existem, portanto, tantas pesquisas sentido desta empreitada.
historiográficas diferentes quantos são os Ora, esta empreitada – conhecer o passado
aspectos da experiência. Todas, porém, (conhecer algum aspecto da realidade humana
dividem uma característica que constitui o em algum momento do passado) – aparenta-
seu denominador comum: a de colocar seu se a um paradoxo: parece, a rigor, uma
objeto, o aspecto da experiência por ele empresa impossível; parece com a tentativa
analisado, no passado, em algum momento de conhecer alguma coisa que não é, não
do passado. O elemento caracterizador da existe; alguma coisa que foi, mas não é mais.
historiografia é justamente uma peculiar e Não inventamos ainda a máquina do tempo
determinante relação com o passado. imaginada por Wells. Somos prisioneiros do
É óbvio, vocês dirão, que o historiador nosso presente. De que modo então podemos
ocupa-se do passado. Convém porém tomar pretender conhecer o passado?
a sério esta obviedade. Claro, o tempo, e De fato, não podemos nos aproximar do
portanto também o passado, entra em jogo passado diretamente; não podemos ter dele
em todo tipo de saber. Para ninguém é um conhecimento imediato; não podemos
possível estudar só o presente imediato. nos relacionar com o passado como nos
Também o jurista, também o sociólogo relacionamos com uma experiência que
estudam fenômenos que se desenvolvem no estamos vivendo em primeira pessoa.
tempo e, portanto, incluem em alguma Podemos conhecer o passado somente por
medida o passado. Mas o jurista e o sociólogo meio daquilo que o passado deixou nas nossas
encerram o passado no presente: interessam- mãos. O mar do tempo retirou-se e abandonou
se pelo passado se e enquanto ele é absorvido seus detritos e suas sedimentações sobre a
no presente. Para o historiador vige a regra praia: não vemos o mar e podemos somente
contrária. Ocupando-se seja do direito recolher aquilo que ele depositou na margem.
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dispomos para evitar o jogo de espelhos, para Isso depende não apenas da discrepância
evitar que nossa narração, fingindo representar entre a documentação disponível e a realidade
o passado, fale na realidade somente do nosso desaparecida, mas sobretudo do fato que o
presente. Se realmente queremos dialogar historiador, como dizia, não trabalha
com o passado, devemos verificar de modo diretamente sobre a realidade, mas passa pelo
acurado as categorias conceituais que filtro obrigatório dos textos, dos discursos,
empregamos para compreendê-lo e para dos sinais. Enquanto operação hermenêutica,
comunicar sobre ele. Devemos fazer um uso o conhecimento historiográfico é um
instrumental e não final, operacional e não conhecimento, por assim dizer, de segundo
essencialístico das linguagens e dos construtos grau: procede do sinal ao significado, do visível
teóricos que usamos (e os que não podemos ao invisível, sem poder dispor de nenhum
usar) para narrar o passado, para interpretar ponto fixo, de nenhuma ancoragem segura.
os textos. Devemos fazer uso, com função Cai por terra então a possibilidade de
hermenêutica, não de uma teoria forte, mas distinguir a historiografia da narrativa, a
de uma teoria fraca, não de uma teoria verdade da invenção, os acontecimentos das
fechada, mas de uma teoria aberta. Em outras imagens, a realidade da possibilidade? Creio
palavras: devemos empregar a linguagem do que não. Creio que para diferenciar claramente
nosso presente não para afirmar verdade (a a narrativa da historiografia, fazendo com
nossa verdade), mas para formular perguntas. que estes dois gêneros literários sejam
O historiador não tem necessidade de inconfundíveis, intervenha a ‘decisão’ que
asserções, mas de perguntas: ele toma do seu orienta e inspira a estratégia heurística do
presente os estímulos e os materiais que historiador e impõe regras específicas ao seu
servem para trazer problemas, para colocar procedimento: a decisão de buscar a ‘verdade’
perguntas: são estas perguntas, as perguntas e, portanto, a necessidade de fornecer
instigadas pelo seu presente, que lhe permitem ‘provas’. É sugestivo, deste ponto de vista, a
selecionar no conjunto caótico dos textos do proximidade entre dois especialistas da
passado, os textos pertinentes; e serão estes interpretação aparentemente muito diferentes
textos a oferecer respostas às perguntas entre si: o historiador e o juiz. Foi o filósofo
previamente formuladas. Guido Calogero que, nos anos trinta, chamou
Com esses expedientes, é possível aceitar a atenção sobre a analogia que transcorre
a aposta: é possível tentar dilatar os limites entre as operações hermenêuticas do
do nosso presente e mover-se em direção à historiador e do juiz e recentemente Carlo
pesquisa de mundos diversos e distantes no Ginzburg desenvolveu brilhantemente este
tempo, ainda que se saiba poder oferecer não tema1 sublinhando, para ambos, a importância
uma representação total e indiscutível da dada para a tensão entre a verdade e a retórica
realidade passada (os mundos desaparecidos da prova. E vale, enfim, para ambos,
são irrecuperáveis), mas somente uma
reconstrução parcial e hipotética.
1
É necessário insistir sobre o caráter Trata-se do livro GINZBURG, Carlo. Il giudice
e lo storico: considerazioni in margini al processo Sofri.
conjectural da exploração historiográfica. Torino: Einaudi, 1991 (N. do T.).
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