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Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.21-28, 2008.

PASSADO: DILEMAS E INSTRUMENTOS DA HISTORIOGRAFIA

PAST: DILEMMAS AND TOOLS OF HISTORIOGRAPHY

Por Pietro Costa* **

RESUMO: o presente texto confronta os ABSTRACT: This paper is on the challenges


dilemas e desafios do conhecimento do and dilemmas regarding human past
passado humano, apontando os limites e as showing the limits and possibilities of
possibilidades da historiografia. Na avaliação h i s t o r i o g r a p h y. I n e v a l u a t i n g t h e
das possibilidades do historiador, o texto possibilities given to the historian, the
aproxima seu ofício com a perspectiva da paper links his or her task to contemporary
hermenêutica contemporânea, firmando entre hermeneutics establishing between them a
eles um paralelismo compreensivo. parallelism on understanding.
PA L AV R A S - C H AV E : h i s t o r i o g r a f i a ; KEYWORDS: historiography; contemporary
hermenêutica contemporânea; ofício hermeneutics; historian’s task.
do historiador.

1. Tentarei refletir em voz alta sobre os historiografia com as quais se pode abrir
instrumentos e sobre o sentido da um confronto.
historiografia. A minha conversa será, porém, Não pretendo referir-me especificamente
mais uma confissão do que uma lição: será o à historiografia jurídica. Faltará tempo para
testemunho da minha maneira de entender o fazê-lo. A história do direito apresenta
‘ofício do historiador’ mais do que uma problemas específicos que seria interessante
dissertação teórica sobre o método e sobre o afrontar. Ela é, porém, espécie de um gênero:
objeto da historiografia. Espero, portanto, que pertence integralmente ao ramo do
possam emergir da discussão outros, e conhecimento histórico. Uma característica
diversos, testemunhos, outras imagens da atual do conhecimento histórico é, de fato, de
ser não um objeto, mas um ponto de vista:
todo aspecto da realidade humana pode ser
* Professor catedrático de História do Direito da
Università degli Studi di Firenze, Itália).
objeto do conhecimento histórico. Pode-se
** Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca, professor fazer, e se faz, história de tudo: da política,
de História do Direito da Faculdade de Direito da UFPR, das religiões, da arte, da música, da agricultura,
programas de graduação e pós-graduação. Pesquisador
do CNPq. da sexualidade, do trabalho, da cultura

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material, dos saberes, do direito. Cada uma romano arcaico, seja do direito do século
destas historiografias afronta aspectos XX, seu objeto é colocado num tempo
específicos da experiência e deve, portanto, diverso do seu: o historiador é um especialista
dispor de conhecimentos adequados à do passado.
compreensão do seu objeto. Espera-se que o Refletir sobre a historiografia significa
historiador da música saiba ler as notas de então refletir sobre a relação entre presente e
uma partitura e diferenciar uma fuga de uma passado. Aqui se faz necessário, porém, outro
sonata, que o historiador da arte saiba como esclarecimento: não pretendo suscitar um
pintar um afresco, que o historiador do direito problema de ‘filosofia da história’. Não
não confunda propriedade com usufruto e o pretendo colocar a famosa pergunta sobre
juiz instrutor com o ministério público (mas ‘quem somos e para onde vamos’. A minha
não por isso se pretende que o historiador da questão é puramente empírica, interior
música componha uma sinfonia, que o àquele saber especializado que chamamos
historiador da arte pinte um quadro ou historiografia. Pretendo perguntar-me como
que o historiador do direito defenda um seja possível conhecer o passado (um ou
desafortunado no tribunal). outro aspecto do passado) e qual seja o
Existem, portanto, tantas pesquisas sentido desta empreitada.
historiográficas diferentes quantos são os Ora, esta empreitada – conhecer o passado
aspectos da experiência. Todas, porém, (conhecer algum aspecto da realidade humana
dividem uma característica que constitui o em algum momento do passado) – aparenta-
seu denominador comum: a de colocar seu se a um paradoxo: parece, a rigor, uma
objeto, o aspecto da experiência por ele empresa impossível; parece com a tentativa
analisado, no passado, em algum momento de conhecer alguma coisa que não é, não
do passado. O elemento caracterizador da existe; alguma coisa que foi, mas não é mais.
historiografia é justamente uma peculiar e Não inventamos ainda a máquina do tempo
determinante relação com o passado. imaginada por Wells. Somos prisioneiros do
É óbvio, vocês dirão, que o historiador nosso presente. De que modo então podemos
ocupa-se do passado. Convém porém tomar pretender conhecer o passado?
a sério esta obviedade. Claro, o tempo, e De fato, não podemos nos aproximar do
portanto também o passado, entra em jogo passado diretamente; não podemos ter dele
em todo tipo de saber. Para ninguém é um conhecimento imediato; não podemos
possível estudar só o presente imediato. nos relacionar com o passado como nos
Também o jurista, também o sociólogo relacionamos com uma experiência que
estudam fenômenos que se desenvolvem no estamos vivendo em primeira pessoa.
tempo e, portanto, incluem em alguma Podemos conhecer o passado somente por
medida o passado. Mas o jurista e o sociólogo meio daquilo que o passado deixou nas nossas
encerram o passado no presente: interessam- mãos. O mar do tempo retirou-se e abandonou
se pelo passado se e enquanto ele é absorvido seus detritos e suas sedimentações sobre a
no presente. Para o historiador vige a regra praia: não vemos o mar e podemos somente
contrária. Ocupando-se seja do direito recolher aquilo que ele depositou na margem.

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Recebemos do passado as mensagens na Obviamente, limito-me a indicar-lhes um


garrafa que afortunadamente nos chegaram. promissor terreno de caça, sem poder
Ou seja: não podemos conhecer a realidade atravessá-lo. Vou me limitar a trazer as
transcorrida diretamente, mas só indiretamente, principais conseqüências do assunto: da
através das mensagens, os testemunhos, os recondução da historiografia à hermenêutica.
resíduos que nos chegaram: desapareceu o O historiador interpreta textos. O que
fogo, mas restam as cinzas e a fumaça. Por significa interpretar? Para uma longa
meio dos sinais, buscamos representar para tradição, vital até tempos recentes, interpretar
nós ‘aquilo que não existe’. significa tomar o sentido próprio de um texto.
O historiador trabalha sobre sinais, O significado de um texto é concebido nessa
testemunhos. Estes sinais podem ser os mais perspectiva como um núcleo objetivo
variados: um instrumento de trabalho, um encerrado no texto; um significado, sempre
fóssil, um monumento, um resto de uma igual a si mesmo, que o texto torna disponível
imagem, o fragmento de um vaso, um texto a qualquer um que saiba manejá-lo com a
escrito (e esta última categoria, para o devida competência. O significado está
historiador dos saberes e também para o dentro do texto como a pérola está dentro da
historiador do direito, tem uma importância ostra: basta abri-la com uma faca pontiaguda
determinante, senão exclusiva). O historiador e dela se apropriar.
tem a ver com sinais, com testemunhos, com Na verdade, essa reconfortante perspectiva
textos: é deles que deve colher o significado não parece se sustentar diante das mais
para representar, por meio deles, a experiência sofisticadas investigações da hermenêutica
transcorrida e desaparecida. do século XX. O texto não encerra um e
Compreender um texto, captar-lhe o somente um significado. O texto é muito mais
sentido, é uma operação específica que toma um cruzamento de possibilidades semânticas,
o nome de interpretação. Se a história é tão mais amplo quanto mais sua tessitura é
(necessariamente) história dos textos rica e complexa. O texto não exibe ‘sozinho’
(narrativa construída por meio de textos), ela seu significado: o significado é produzido,
é uma atividade cognoscitiva do tipo mais do que descoberto, pelo leitor. O leitor
hermenêutico. Os dilemas e os instrumentos menos registra passivamente o significado já
da historiografia são, com as necessárias dado do texto do que lhe atribui um sentido
adaptações, os dilemas e instrumentos de toda (entre os tantos possíveis). Conseqüentemente
atividade interpretativa. enfraquece a contraposição entre uma
Se isso é verdadeiro, abre-se para o proposição ‘verdadeira’ (a única interpretação
historiador que queira refletir criticamente verdadeira) e uma interpretação falsa:
sobre o próprio trabalho um grande espaço dado um texto, podem existir diferentes (e
de investigação: um espaço cultivado por igualmente plausíveis) atribuições de sentido.
aquela tradição hermenêutica cujo marco Não existe um texto sem um leitor que
inicial podemos identificar ao menos em lhe atribua o sentido. A hermenêutica
Schleiermacher e vemos desenvolver-se contemporânea transforma decididamente em
impetuosamente até os nossos dias. protagonista o leitor, o intérprete, o sujeito.

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Estamos na antípoda do positivismo ponto uma tal empresa é possível? Se


oitocentista, convicto que nas ciências sociais pertencemos inteiramente ao presente, de
como nas ciências naturais o pesquisador que maneira podemos atingir uma realidade
fosse um observador impassível dos a ele irredutível?
fenômenos, capaz de espelhar a realidade tal Estamos diante de um dos mais difíceis
como ela era sem que sua personalidade dilemas da hermenêutica. De um lado, o
interferisse no processo cognoscitivo. intérprete não compreende o passado senão
A reflexão hermenêutica sublinha, ao a partir do seu presente, da cultura, da
contrário, o papel ativo e criativo do sujeito. linguagem, dos conceitos que ele divide com
O intérprete, e portanto o historiador, não é a sociedade e com a comunidade profissional
uma quadro negro sobre o qual imprimem-se de que faz parte. De outro lado, porém, o
os textos. Os textos dizem alguma coisa intérprete é tal enquanto está disposto a abrir-
na medida em que são decifrados e se aos estímulos de textos distantes e
estimulados por um intérprete que intervém diferentes, que ele tenta tomá-los na sua
no processo interpretativo com todo o peso alteridade com relação aos seus hábitos
de sua personalidade. culturais imediatos.
A interpretação de um texto é uma Uma corrente hermenêutica recente,
operação que envolve o intérprete em sua respeitável sobretudo na história e na teoria
inteira subjetividade. O sujeito de uma da literatura, a corrente desconstrucionista,
operação hermenêutica não é um ser humano escolhe uma solução radicalmente subjetivista.
genérico: é um indivíduo de carne e osso, é Para o desconstrucionismo, o intérprete
este indivíduo, ligado a um contexto preciso, não decifra um texto, não atribui a ele um
marcado por inúmeros elementos que sentido interno ao próprio texto; o intérprete
conotam a sua personalidade (o país de onde reescreve livremente o texto, adapta-o às
vem, a classe social, a cultura, a língua, a suas necessidades e suas expectativas.
formação profissional). Na interpretação de O protagonismo do sujeito torna impossível
um texto o intérprete, o historiador coloca em o conhecimento do objeto. O texto interpretado
jogo todos os aspectos de sua personalidade torna-se um mero componente interno do
que constituem, todos juntos, a condição de discurso interpretante e conseqüentemente
possibilidade da atividade hermenêutica. cai qualquer possibilidade de confrontar-e
Em síntese: é a partir do mundo e do tempo com uma realidade diferente da nossa, de
ao qual cada um de nós pertence que entender um texto na sua autônoma capacidade
interpretamos textos e narramos histórias. de produzir significado; e cai portanto a
O historiador pertence inteiramente ao própria possibilidade de uma interpretação
seu tempo, ao seu presente, e é a partir autenticamente historiográfica, a possibilidade
do seu presente que ele olha o passado de conhecer o passado na sua alteridade e
tentando reconstruir por meio de testemunhos especificidade com relação ao presente.
disponíveis o mundo que perdemos. É possível escapar do radical
Radicado no presente, o historiador faz niilismo historiográfico da perspectiva
de tudo, porém, para ir além dele. Até que desconstrucionista? Segundo esta perspectiva,

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a historiografia seria substancialmente o serviço do texto e fazer todos os esforços para


espelho de um presente do qual o historiador reconstruir seu sentido colocando-o no seu
é irremediavelmente prisioneiro. Porém, o contexto (no contexto do autor e na época a
presente é realmente uma prisão sem janelas qual pertence o autor). Traduzir é colocar-se
e portas? Ou é muito mais um precioso a serviço de um texto: o tradutor é tal
observatório? Claro, é um observatório enquanto renuncia ao monólogo em favor do
colocado num certo tempo e num certo diálogo. Também para o historiador vale a
espaço, que impõe ao historiador um mesma regra: o historiador acumula os
determinado e setorial ‘ponto de vista’ (o testemunhos para colocar o texto no tecido
olhar do historiador não é o olhar de Deus), histórico-cultural do qual provém. A lógica
mas ao mesmo tempo lhe fornece os do historiador é uma dia-lógica: seu objetivo
instrumentos óticos com os quais é possível não é reduzir o outro a si mesmo, o passado
focar objetos distantes no tempo. ao presente, mas é instaurar um diálogo, usar
Trata-se de cumprir uma aposta, de todos os instrumentos disponíveis para entrar
sabor quase pascaliana: não dispomos de em relação com um mundo diverso do seu.
instrumentos que nos dêem certezas. Nada Em segundo lugar, a tradução é um
nos garante que não estamos projetando no confronto entre linguagens: é a reescritura do
passado o nosso presente, ao invés de texto traduzido em uma língua diversa. Para
efetivamente entrarmos em contato com uma que isso seja possível, é necessário que o
realidade outra com relação à nossa, diferente tradutor dedique a mesma atenção a duas
e distante. A aposta do historiador é justamente linguagens: a linguagem da qual ele traduz e
a tentativa de dizer alguma coisa sobre a linguagem na qual ele traduz. É exatamente
mundos distantes e perdidos; de tecer uma essa a situação hermenêutica do historiador.
narrativa que se propõe a dilatar os confins O historiador se movimenta a partir do seu
do imediatamente presente. presente: trabalha ativando as categorias
Não temos certezas, mas podemos usar lingüísticas e conceituais que lhe são ofertadas
de expedientes de técnicas que diminuam o pela cultura. É esta a linguagem de que dispõe
risco de transformar a historiografia num para compreender a linguagem do passado,
mero jogo de espelhos. Pensamos em uma para decifrar seus testemunhos, para narrá-los
prática que pode nos ensinar muito sobre a nós. A linguagem do seu presente, porém,
a lógica da interpretação: a tradução. não é o objeto da sua pesquisa, mas é somente
Traduzimos continuamente de um texto a o seu (indispensável) instrumento: o objeto
outro. O tradutor reescreve na sua língua o de sua pesquisa é a linguagem do passado.
texto traduzido. Nada nos garante que o A operação historiográfica é o confronto entre
tradutor não seja um traidor; e, todavia, não duas linguagens: a metalinguagem do
por isto renunciamos a traduzir. Para que esta historiador (a linguagem com a qual ele
prática hermenêutica funcione são necessários, trabalha) e a linguagem-objeto (a linguagem
porém, expedientes refinados. É necessária, sobre a qual ele trabalha).
em primeiro lugar, uma peculiar atitude Convém estar ciente desse mecanismo.
mental do tradutor: ele deve colocar-se a Esta ciência é o principal instrumento de que

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dispomos para evitar o jogo de espelhos, para Isso depende não apenas da discrepância
evitar que nossa narração, fingindo representar entre a documentação disponível e a realidade
o passado, fale na realidade somente do nosso desaparecida, mas sobretudo do fato que o
presente. Se realmente queremos dialogar historiador, como dizia, não trabalha
com o passado, devemos verificar de modo diretamente sobre a realidade, mas passa pelo
acurado as categorias conceituais que filtro obrigatório dos textos, dos discursos,
empregamos para compreendê-lo e para dos sinais. Enquanto operação hermenêutica,
comunicar sobre ele. Devemos fazer um uso o conhecimento historiográfico é um
instrumental e não final, operacional e não conhecimento, por assim dizer, de segundo
essencialístico das linguagens e dos construtos grau: procede do sinal ao significado, do visível
teóricos que usamos (e os que não podemos ao invisível, sem poder dispor de nenhum
usar) para narrar o passado, para interpretar ponto fixo, de nenhuma ancoragem segura.
os textos. Devemos fazer uso, com função Cai por terra então a possibilidade de
hermenêutica, não de uma teoria forte, mas distinguir a historiografia da narrativa, a
de uma teoria fraca, não de uma teoria verdade da invenção, os acontecimentos das
fechada, mas de uma teoria aberta. Em outras imagens, a realidade da possibilidade? Creio
palavras: devemos empregar a linguagem do que não. Creio que para diferenciar claramente
nosso presente não para afirmar verdade (a a narrativa da historiografia, fazendo com
nossa verdade), mas para formular perguntas. que estes dois gêneros literários sejam
O historiador não tem necessidade de inconfundíveis, intervenha a ‘decisão’ que
asserções, mas de perguntas: ele toma do seu orienta e inspira a estratégia heurística do
presente os estímulos e os materiais que historiador e impõe regras específicas ao seu
servem para trazer problemas, para colocar procedimento: a decisão de buscar a ‘verdade’
perguntas: são estas perguntas, as perguntas e, portanto, a necessidade de fornecer
instigadas pelo seu presente, que lhe permitem ‘provas’. É sugestivo, deste ponto de vista, a
selecionar no conjunto caótico dos textos do proximidade entre dois especialistas da
passado, os textos pertinentes; e serão estes interpretação aparentemente muito diferentes
textos a oferecer respostas às perguntas entre si: o historiador e o juiz. Foi o filósofo
previamente formuladas. Guido Calogero que, nos anos trinta, chamou
Com esses expedientes, é possível aceitar a atenção sobre a analogia que transcorre
a aposta: é possível tentar dilatar os limites entre as operações hermenêuticas do
do nosso presente e mover-se em direção à historiador e do juiz e recentemente Carlo
pesquisa de mundos diversos e distantes no Ginzburg desenvolveu brilhantemente este
tempo, ainda que se saiba poder oferecer não tema1 sublinhando, para ambos, a importância
uma representação total e indiscutível da dada para a tensão entre a verdade e a retórica
realidade passada (os mundos desaparecidos da prova. E vale, enfim, para ambos,
são irrecuperáveis), mas somente uma
reconstrução parcial e hipotética.
1
É necessário insistir sobre o caráter Trata-se do livro GINZBURG, Carlo. Il giudice
e lo storico: considerazioni in margini al processo Sofri.
conjectural da exploração historiográfica. Torino: Einaudi, 1991 (N. do T.).

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conseqüentemente, o caráter conjectural e A realidade é uma cadeia ininterrupta de


incerto de suas afirmações: as suas eventos, em que só o antecedente pode
argumentações se fundam sobre sinais e explicar o subseqüente. Mas não estou seguro
indícios; é assimilável, como escreve que hoje um jovem europeu, ou californiano
Ginzburg, à lógica de Sherlock Holmes ou ou brasileiro atribua o mesmo grau de
ao comportamento do caçador que pelos indiscutível evidência à tese historicista. No
rastros chega ao animal2; exerce-se não sobre que me diz respeito, para dar uma resposta,
o caráter incontroverso da dedução racional, a minha resposta, à pergunta sobre o sentido
mas sobre o caráter persuasivo do razoável. da historiografia, mais do que apoiar-me na
É, portanto, uma dupla e difícil aposta que contínua e íntima conexão entre passado e
o historiador aceita: em primeiro lugar, a presente, apresentaria a historiografia como
aposta de conseguir dilatar o horizonte do uma ocasião para entrar em contato com o
presente estendendo-se em direção a mundos distante e com o diferente.
distantes e desaparecidos para buscar suas Tento explicar-me com a metáfora da
características originais, a tentativa de viagem. A historiografia é uma viagem no
estabelecer uma relação, de edificar uma tempo: uma frágil e arriscada peregrinatio
ponte entre realidades diversas e distantes em mundos distantes e estranhos. Para que
(entre a cultura do presente e as culturas do serve uma viagem historiográfica no tempo?
passado); em segundo lugar, a aposta de São possíveis diversas respostas. Para o
escrever uma narrativa sustentada pelo pathos historicista, viajar no tempo significa traçar
da verdade, ainda que tendo consciência do uma linha reta e segura entre o passado e o
caráter fragmentário do resultado e do caráter presente, imergir o presente no passado para
hipotético e conjectural das argumentações. entender as raízes do primeiro e a direção de
É necessário, porém, colocar uma sentido do segundo. Para o historicista, a
indagação conclusiva. Por que empenhar-se história é útil para entender o presente. Viajar
nessa difícil e hipotética reconstrução de é útil. Porém, é possível também uma atitude
mundos perdidos? Poderíamos, afinal, diferente: a atitude do viajante distraído e
colocar uma indagação brutal: para que serve curioso. Para esse viajante, não existe uma
o conhecimento histórico? À luz do paradigma linha segura e reta que ligue o passado e o
historicista, ainda dominante, ao menos na presente. O passado é uma realidade
Itália até o fim dos anos setenta, a resposta a complicada e confusa: não se pode reconstruí-
esta pergunta é, por assim dizer, automática, la em sua totalidade; ela é feita somente por
ditada pelo próprio paradigma: para o conjecturas e aproximações; não parece
historicista, o presente depende inteiramente revelar uma direção unívoca e segura; não
do passado e só é compreensível a partir dele. mostra o sinal de uma linha ou de várias
linhas contínuas e claras; apresenta-se muito
2
Evocação do celebre texto de Ginzburg intitulado
mais como um emaranhado de segmentos que
‘Sinais: raízes de um paradigma indiciário’, publicado se entrecruzam, perdem-se, recomeçam,
em português em GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, interrompem-se; não é uma linha e nem um
sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989, p. 143/179 (N. do T.) círculo, muito mais um labirinto. Para este

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viajante o sentido da viagem não está na profundamente diferentes e distantes.


ligação com o presente, mas sim na experiência Também o antropólogo é um especialista
do estranhamento. O sentido da viagem não do alhures: um viajante desinteressado, um
é a pesquisa do familiar, mas sim o confronto profissional da curiosidade.
com o diferente. O núcleo da sua experiência (o sentido de
Uma tal viagem no tempo é assimilável sua aposta – tendencialmente – impossível)
à viagem no espaço (que às vezes é é o alargamento dos confins do mundo, a
também uma viagem no tempo) feita pelo tentativa de tornar menos peremptória e
antropólogo. Também o antropólogo, já há exclusiva a forma de vida que nos é familiar:
mais de um século, deixou para trás os o idolon abatido pela moderna antropologia
preconceitos eurocêntricos para valorizar cultural é o eurocentrismo. A identificação
o complexo cultural das mais variadas com um lugar não é, porém, o único vínculo
sociedades e tomar delas o sentido autêntico. que nos aprisiona. Igualmente tirânico é um
Apresentam-se ao antropólogo os mesmos outro idolon: o cronocentrismo, a assunção
desafios que o historiador enfrenta: a do presente como nosso horizonte fechado e
impossibilidade de sair de fora de si mesmo, exclusivo. A aposta da historiografia, como
o seu integral radicar-se na sociedade do a da antropologia cultural, é justamente
seu presente e ao mesmo tempo a aposta de evocar a existência ou a possibilidade de
entender normas, usos, formas de vida outros tempos e outras formas de vida.

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