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Phillips, Adam 2006 [1988]: Winnicott.

como propondo uma nova teoria ou


Aparecida, Idéias & Letras. novo fundamento para psicanálise,
ISSN 85-98239-76-3 enquanto que outros, especialmente
Loparic e Dias, consideram que ele fez
LEOPOLDO FULGENCIO uma revolução paradigmática (no sentido
Programa de Pós-Graduação em que Thomas Kuhn dá a esta expressão)
Psicologia da PUC-Campinas na psicanálise. A leitura do livro de
E-mail: ful@that.com.br Phillips contribui para esta discussão,
sendo um texto enriquecedor tanto
para a compreensão de aspectos mais
O livro de Adam Phillips, publi- sutis da teoria quanto para a avalia-
cado pela primeira vez, em inglês, em ção do lugar a ser dado a Winnicott
1988 e só agora, em 2006, disponível na história do desenvolvimento da
em português, é uma das primeiras psicanálise.
obras a fazer um estudo sistemático Phillips percorre toda a obra de
das propostas de Donald W. Winni- Winnicott colocando em evidência
cott. Ele considera que Winnicott fez uma série de temas propriamente win-
transformações profundas na teoria e nicottianos, bem como explicitando
no método de tratamento psicanalí- diferenças significativas em relação à
tico. Nos últimos 30 anos Winnicott obras de Freud e Klein. Nesta resenha
tem sido estudado e cada vez mais não me ocuparei de retomar a diver-
reconhecido como um dos grandes psi- sidade dos comentários de Phillips
canalistas pós-Freud. Alguns autores sobre estes temas propriamente win-
– tais como Davis & Wallbridge, Clan- nicottianos – ainda que seja possível
cier e Kalmanovitch, Geets, Pontalis, orientar o leitor para encontrar pontos
Green –, apesar de reconhecerem a ori- específicos, tais como a importância da
ginalidade de Winnicott, não o tomam mãe na constituição do self-verdadeiro

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(p. 186), a relação entre a submissão e ele considerava úteis”; e nas páginas
o falso-self (p. 189), a questão da ori- 182-3, temos: “Em três importantes
ginalidade e da criatividade (p. 189), artigos que podem ser lidos proveito-
o verdadeiro e o falso-self (p. 191), o samente como uma série – “O papel
problema da comunicação e da não- de espelho da mãe e da família no
comunicação (p. 203), a recusa do desenvolvimento infantil” (1967), “O
conceito de pulsão de morte (p. 152) uso do objeto e suas relações através de
etc. –, mas focarei meus comentários identificações” (1969), e “Distorção do
na questão das continuidades e ruptu- Ego em termos de Verdadeiro e Falso
ras que Phillips comenta ao comparar a Self”, (1960) –, Winnicott oferece as
posição de Winnicott com a de Freud considerações finais de sua teoria do
e de Klein. Para isto, abordarei três desenvolvimento”. Ainda que ele não
pontos específicos, comentados por chegue a caracterizar, como fazem
Phillips: 1. o reconhecimento de que alguns autores atuais, a teoria do
Winnicott apresenta modificações amadurecimento pessoal proposta por
profundas na teoria psicanalítica; 2. a Winnicott como uma teoria que é mais
avaliação da linguagem utilizada por ampla que a teoria do desenvolvimento
Winnicott como sendo, por vezes, obs- da sexualidade (cf. Dias e Loparic), ele
cura, ainda que de grande criatividade; reconhece que Winnicott se afastou
e 3. a consideração de que faltaria uma das teorias clássicas, oferecendo um
organização sistemática harmônica nas novo paradigma para a psicanálise:
propostas teóricas de Winnicott. Ao “Winnicott fez derivar tudo, em sua
final da resenha, me ocuparei, ainda, obra, inclusive uma teoria das origens
de fazer alguns comentários críticos da objetividade científica e uma revi-
relativos às opções de tradução dos são da psicanálise, do seu paradigma
termos instinct e ruthless. da relação mãe-bebê” (2006 [1988],
Phillips considera que Winnicott p. 5).
tem uma teoria do desenvolvimento A avaliação da obra de Winnicott
diferente da de Freud e da de Klein, como sendo um novo paradigma para
apresentando uma perspectiva própria. a psicanálise também foi defendida por
Na página 143, temos: “durante os Greenberg & Mitchell (Relações objetais
anos 1940 Winnicott havia elaborado na teoria psicanalítica, de 1983) e por
uma teoria do desenvolvimento pode- Zeljko Loparic (“Esboço do paradigma
rosamente antagônica àquela de Freud winnicottiano”, de 2001; “De Freud a
e de Klein, ao mesmo tempo incluído Winnicott: aspectos de uma mudança
os pedaços das obras dos mesmos que paradigmática”, de 2006), ainda que

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em sentidos pouco diferentes. Eu de que o mundo é como ele necessita,


mesmo (“Paradigmas na história da uma fase que será a base sobre a qual
psicanálise”, 2007), dedicando-me toda e qualquer desilusão poderá ocor-
a analisar como o termo paradigma rer... o bebê não nasce desamparado,
tem sido utilizado na compreensão mas na saúde, iludido de que o mundo
do desenvolvimento da psicanálise, que ele precisa aparece como fruto
mostrei a diferença entre usar o termo da sua necessidade (ainda que isto
num sentido amplo (como é o caso de só seja possível com a adaptação do
Phillips) e no seu sentido mais técnico, ambiente, adaptação da qual ele não
com maior ou menor precisão (como é tem a mínima percepção ou idéia). No
o caso de Greenberg & Mitchell e de início, não há desamparo nem inveja,
Loparic). O caso de Phillips é interes- mas adaptação ambiental e ilusão.
sante de ser explicitado, pois, mesmo Ele também mostrará que no
não usando o termo no seu sentido que se refere ao tema da criatividade
mais preciso, ele reconhece diversos e da sublimação, há uma mudança
pontos que diferenciam, de maneira profunda proposta por Winnicott:
radical, a psicanálise de Winnicott da “Na obra de Freud, a criatividade seria
de outros autores clássicos. (acentuadamente adulta) a sublimação
Ao focar, por exemplo, a ques- da sexualidade infantil, apesar de ele
tão da desilusão, Phillips diz: “Onde nunca ter fornecido um relato con-
Freud e Klein haviam enfatizado o vincente da natureza verdadeira da
papel da desilusão no desenvolvimento própria atividade sublimatória. Para
humano, no qual crescer seria um pro- Melanie Klein a criatividade como
cesso de luto, para Winnicott haveria essencialmente reparadora – para ela,
um sentido mais primário em que arte era compensação – seria secundá-
o desenvolvimento era um processo ria à destrutividade inerente à sexua-
criativo de colaboração. A desilusão lidade infantil como testemunhada
pressupunha ter havido ilusão sufi- pelo próprio bebê na posição depres-
ciente. Para o bebê, no início, dado siva. Na nova teoria de Winnicott, a
um ambiente de sustentação, o desejo criatividade era primária, pré-sexual e
era criativo, mais do que simplesmente caracterizava o relacionamento natu-
voraz” (p. 149). Phillips reconhece que ralmente recíproco entre um bebê e
Winnicott introduziu um período ini- sua ‘mãe devotada comum’” (p. 150).
cial no qual o bebê vive um período de Isto resultará, seguindo a questão da
ilusão, fruto da adaptação ambiental sublimação, numa teoria da cultura,
às necessidades do bebê, uma ilusão da entrada do homem na cultura e sua

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vida como ser de cultura, totalmente cultura é um processo de expansão do


diferente da de Freud: “Enquanto espaço da brincadeira, lugar que não
Freud se preocupava com as enredadas é gerado por sublimação ou desvio da
possibilidades de satisfação pessoal de sexualidade, mas pelo encontro de si
cada indivíduo, para Winnicott essa mesmo naquilo que está ao mesmo
satisfação seria apenas parte do pano- tempo dentro e fora de si. É neste entre
rama mais amplo das possibilidades interno e externo que me encontro e
para autenticidade pessoal do indiví- encontro o outro, que vivo a ilusão de
duo, o que ele chamará de ‘sentir-se que estamos no mesmo mundo e, por
real’. Na escrita de Winnicott, a isso, nos comunicamos, partilhamos e
cultura pode facilitar o crescimento, podemos viver com os outros.
assim como o pode a mãe; para Freud, Ressaltei apenas dois pontos
o homem é dividido e compelido, pelas para salientar que Phillips pertence
contradições de seu desejo, na direção aos autores que consideram a obra de
de um envolvimento frustrante com Winnicott como um ponto de ruptura
os outros. Em Winnicott, o homem e de mudança no desenvolvimento da
só pode encontrar a si mesmo em sua psicanálise. O leitor encontrará, ao
relação com os outros, e na indepen- longo da leitura deste livro, diversos
dência conseguida através do reconhe- outros aspectos que vão nesta mesma
cimento da dependência. Para Freud, direção.
em resumo, o homem era o animal Mas Phillips também tem suas
ambivalente; para Winnicott, ele seria reservas e críticas em relação a Winni-
o animal dependente, para quem o cott, especialmente no que diz respeito
desenvolvimento ­– a única ‘certeza’ à sua linguagem e organização da sua
de sua existência – era a tentativa de teoria enquanto uma totalidade har-
se tornar ‘separado sem estar isolado’. mônica. São estes pontos que gostaria
Anterior à sexualidade como o inacei- de salientar num diálogo com as suas
tável, havia o desamparo. A dependên- avaliações.
cia era a primeira coisa, antes do bem Phillips considera que a linguagem
e do mal” (p. 29). Enquanto em Freud utilizada por Winnicott nem sempre
o processo de entrada do homem na é clara, por vezes era mesmo obscura,
cultura é marcado pela repressão da além de, por causa da criatividade
pulsão sexual, repressão do egoísmo, que caracteriza esta obra, acaba por
pelo crime horrendo do assassinato não apresentar uma elaboração que
do pai e a distribuição da culpa, em não é nem sistemática nem precisa.
Winnicott a entrada do homem na Isto pode ser encontrado em diversas

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passagens. Numa nota da página 181, dizer que um bebê inveja o seio, que
ele afirma: “A falta de clareza concei- um bebê pode experienciar relações do
tual convencional sempre remete a tipo edípicas, etc.
uma perplexidade essencial em sua Phillips também considera que
obra”. Noutro momento ele também Winnicott, mesmo tendo apresen-
diz: “ao mesmo tempo em que Win- tado uma teoria sem contradições,
nicott iniciava distinções importantes, não apresentou uma teoria em que
ele também mudava a terminologia todos os seus enunciados se encaixam
de forma confusa; nas citações acima, construindo um sistema harmônico:
‘componentes’ se tornaram ‘impulsos “É justo reconhecer também que
[impulses]’ e ‘vida instintual [instintual Winnicott tinha as virtudes psica-
life]’ mudara para ‘força vital’. Todos nalíticas de seus vícios científicos:
estes termos têm implicações bem ele não se tornou sistematicamente
diferentes” (p. 160). coerente em detrimento de sua pró-
Considero que Winnicott cons- pria inventividade” (p. 147). Esta
truiu uma linguagem nova, harmônica posição estaria em consonância com
com seu sistema teórico, que deve ser a sua avaliação sobre a linguagem
entendida segundo alguns parâme- utilizada por Winnicott. Aqui caberia
tros que não foram considerados por uma discussão sobre a existência ou
Phillips. O que o próprio Winnicott não de uma teoria sistematicamente
afirmou sobre sua maneira de teorizar organizada em Winnicott. Alguns
(sua linguagem) cada uma das fases do autores (em especial o grupo fundado
desenvolvimento: “A linguagem de por Dias e Loparic, constituindo a
uma parte específica é inadequada para Escola Winnicottiana de São Paulo,
outras” (Natureza Humana, p. 52). A cf. www.sociedadewinnicott.com.br,
opção por linguagens específicas para e, mais recentemente, em 2008, Jan
cada fase não é, pois, confusão ou falta Abram, “Donald Woods Winnicott
de clareza, mas de uma opção meto- (1896-1971): A Brief Introduction,
dológica que procura descrever com a IJP 89) têm se dedicado a mostrar esta
maior precisão possível as dinâmicas sistematicidade, e talvez aí esteja um
dos relacionamentos interhumanos em ponto de divergência entre a avaliação
jogo, considerando-se as maturidades que Phillips faz da importância e do
e as capacidades do bebê ou da criança lugar da obra de Winnicott na história
em cada um destes momentos e con- da psicanálise, e a que estes autores
quistas do amadurecimento. Assim, têm proposto. Por outro lado há outros
por exemplo, é totalmente inadequado intérpretes da obra de Winnicott que

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o colocam na continuidade, sem rup- na tradução); instinctual experiences por


turas, com a obra de Freud e de Klein “experiências pulsionais” (p. 79-80; p.
(Joseph Aguayo, Christopher Reeves, 121); instinctual elements e instinctual
dentre outros). Não creio ser o caso de conflict por “elementos pulsionais” e
desenvolver aqui esta discussão, quero “conflito pulsional” (p. 102 e pp. 149-
apenas apontar para esta questão, 150); “The ‘life-force’, as expressed by the
indicando aos leitores um problema ‘impulse gesture’” por “A ‘força-vital’,
importante a ser considerado na leitura como expressa pelo ‘gesto pulsional’”
de Phillips e de outros comentadores (p. 111; p. 162). Ele também traduziu
importantes da obra de Winnicott. ruthless por “cruel”, também nas suas
Ao final desta resenha quero, diversas aparições no texto de Phillips
ainda, fazer uma observação relativa e de Winnicott citado por Phillips, das
ao trabalho da tradução e da revisão quais cito como exemplo os seguintes
técnica e da apresentação do livro de casos: “To use the mother ruthlessly” por
Phillips. O revisor técnico considera “usar a mãe cruelmente” (p. xx; p.
que a sombra de Melanie Klein paira 25); ruthless love por “cruel amor” (p.
sobre a originalidade e independên- 70; p. 109); “idea of the ruthless early
cia de Winnicott – “Winnicott, já relationship to the mother” por “idéia da
maduro, kleiniano, livre pensador e cruel relação inicial com a mãe” (p.
autônomo criador de si mesmo” (p. 10) 87; p. 130).
–, avaliando que Winnicott permanece Estas escolhas são posições his-
neste terreno, a ponto de dizer que tórica e conceitualmente insustentá-
sua obra pode ser considerada como veis, que adulteram o texto original
uma variação dos temas kleinianos de tal forma que, caso houvesse esta
– “Winnicott variou os temas klei- possibilidade, uma substituição dos
nianos de modo a simultaneamente termos “pulsão” e “cruel” por “ins-
se inscrever neles e se diferenciar” (p. tinto” e “incompadecido”, deveria
13). Este viés levou, creio, a erros de ser realizada em todos os exemplares.
tradução que prejudicam profunda- Não se trata aqui de uma questão de
mente a leitura do livro de Phillips. gosto pessoal, mas de uma avaliação
Optou-se por traduzir ou reiterar a conceitual. Winnicott recusou teses
tradução de instinct e impulse, nos seus fundamentais do pensamento klei-
mais variados usos, por “pulsão”; cito niano, tais como, a título de exemplos:
alguns exemplos dentre as inúmeras o Édipo precoce – “não posso ver
passagens: instinctual life por “vida pul- nenhum valor na utilização do termo
sional sexual” (p. xx, no original; p. 22, ‘Complexo de édipo’ quando um ou

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mais de um dos três que formam o acha válido e o que não acha, mar-
triângulo é um objeto parcial” (1988, cando diferenças significativas entre
p. 67); a teoria da posição esquizo- eles. Como contribuições válidas, ele
paranóide – “que considero uma de cita, dentre outras: o uso da técnica
suas teorias menos bem elaboradas, ortodoxa estrita na psicanálise de
mas, de qualquer modo, o seu termo crianças facilitada pelo uso de peque-
regressão à perseguição não fez sentido nos brinquedos nos estágios iniciais,
algum para a maioria das pessoas que compreensão das forças ou “objetos”
a escutavam” (carta a Esther Bick); e internos benignas e persecutórias e
a teoria da inveja inata – “a inveja em sua origem em experiências instintivas
um bebê só pode fazer parte de um satisfatórias ou insatisfatórias, impor-
estado de coisas muito complexo, no tância da projeção e da introjeção
qual há uma representação aterradora como mecanismos mentais, a posição
do objeto” (“Melanie Klein: sobre o depressiva (comparável à descoberta
seu conceito de inveja”, p. 340), o do complexo de Édipo por Freud (cf.
que só poderia ocorrer depois de um p. 162)); como propostas duvidosas,
amadurecimento, dado que no início o que na verdade ele considera inacei-
bebê não teria tais capacidades. Ainda táveis, ele cita: a manutenção do uso
que Winnicott reconheça o passo da teoria do instinto de vida e instinto
importante dado por Klein ao propor de morte, e a tentativa de considerar a
a posição depressiva, ele a redescreverá destrutividade do lactente em termos
como sendo a fase do concernimento, de hereditariedade e de inveja (cf. p.
não aceitando a perspectiva patológica 162).
para a qual aponta o termo kleiniano Nas suas cartas, reunidas no
(como escreveu Phillips: “Winnicott livro O gesto espontâneo, Winnicott
renomeia de estágio da preocupação; insistiu sobre o caráter não científico
algo que soava ameaçadoramente e ideológico, por vezes até mesmo
como uma síndrone psiquiátrica se religioso, que o desenvolvimento da
torna um sentimento mais comumente teoria psicanalítica estava sofrendo
reconhecível”, p. 156). No texto em com a afirmação dogmática das posi-
que Winnicott faz um balanço das ções kleinianas. Em termos da própria
contribuições de Melanie Klein para história da psicanálise na Inglaterra,
a psicanálise (“Enfoque pessoal da Winnicott também não foi adepto
contribuição kleiniana”, de 1962), ele nem do grupo de Anna Freud nem
reconhece que ela fez contribuições do de Melanie Klein, sendo inclusive
importantes explicitando o que ele afastado das atividades didáticas da

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Sociedade Britânica de Psicanálise natural de suas necessidades, ele age


(SBP). Afirmá-lo como Kleiniano, como se não houvesse nada externo
sendo que ele mesmo e a própria SBP a ele, ainda que do ponto de vista do
não o tomaram como tal, não parece observador, vejamos uma mãe e um
convir com os fatos, sejam históricos bebê. Ao dizer que o bebê é ruthlessly
sejam conceituais. Winnicott está afirmando que o bebê
A questão da tradução do termo age sem se preocupar com a mãe,
ruthless também serve para mostrar enquanto um objeto externo, age
a diferença que separa radicalmente incompadecidamente. Para afirmar que
Winnicott de Klein. Para Melanie o bebê é cruel com a mãe, seria neces-
Klein, o bebê, desde sua fase mais sário reconhecer a mãe (mesmo como
primitiva já pode relacionar-se de uma objeto parcial) como algo fora dele que
maneira cruel com a mãe, podendo é alvo de uma ação destrutiva especí-
invejar a mãe (ou melhor, o seio, dado fica. O bebê não é cruel com a mãe e
que não se trata neste momento da Winnicott não considera que seja. A
mãe como uma pessoa inteira, mas tradução de ruthless por crueldade é,
um objeto parcial), amá-la e atacá-la. pois, um erro conceitual e não apenas
No entanto, para Winnicott, o bebê uma opção vernácula. Este mesmo tipo
não tem maturidade para realizar estas de erro já ocorreu quando da tradução
ações psíquicas, as quais exigiriam do livro de Jan Abram, A linguagem de
reconhecer um objeto fora de si (logo, Winnicott, também sobre a tradução de
uma noção de interno e externo), um ruthless por “cruel”, algo que foi criti-
objeto que tem qualidades que ela não cado por Abram e comentado também
tem, que ela tem a intenção de destruir como inadequado por David Bogo-
porque o objeto se comportou mal em moletz, ao fazer a resenha do livro de
relação a ela, que sua intenção destru- Abram (Revista Natureza Humana, vol.
tiva é reparadora do seu mal-estar, etc. 3, n. 1, 2001).
No início, o bebê, para Winnicott, é Outro termo, instinct – que na
de tal forma imaturo, que não há, tradução da obra de Winnicott para o
ainda, um eu (ainda que rudimentar) francês opta por pulsion e nas traduções
a partir do qual os relacionamentos para o português oscila entre “pulsão”
podem ocorrer; o bebê age (apoiado e “instinto” – diz respeito a uma dis-
e sustentado pelo ambiente) como se cussão conceitual relativa à presença
o mundo que ele encontra (a mãe, o ou ausência de conceitos metapsi-
seio, etc., quando isto ocorre de modo cológicos (do tipo que caracteriza a
satisfatório) surgissem como resultado metapsicologia freudiana) na obra

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Adam Phillips 2006: Winnicott

de Winnicott. Não é necessário aqui possível dizer que Winnicott utiliza o


retomar a totalidade desta discussão termo consagrado na tradução de Stra-
e de suas referências, mas teria sido chey, mas que ele, na verdade, tem em
obrigação do revisor referir-se a este mente o conceito cunhado por Freud.
cenário para justificar sua escolha de Isto não é defensável, como fica evi-
tradução. Neste ponto a pergunta cen- dente na definição freudiana de pulsão
tral é saber se, quando Winnicott usa e na winnicottiana de instinto. Mas,
instinct em sua obra, o faz no mesmo mesmo que assim fosse e que houvesse
sentido que Freud quando usa o termo uma ponderação argumentando que
Trieb (traduzido nas SE, por Strachey, este tema precisa ser melhor discutido,
por instinct). Para Freud as pulsões são então, seria necessário suspender o
idéias abstratas (1915c: “as pulsões e juízo e não decidir de antemão, como
suas vicissitudes”), um conceito que foi feito na versão final do livro em
tem a natureza de uma convenção português, corrigindo tanto Phillips
(idem), um conceito obscuro que tem quanto Winnicott, fazendo-os usar
a característica de ser um tipo de o termo “pulsão”, quando sempre
mitologia da psicanálise (Freud 1933a: encontramos o termo “instinto” em
Novas lições introdutórias à psicanálise, seus textos.
Lição 30; e Freud 1933b: “Sobre a Feitas estas observações, pode-
guerra”). Mas para Winnicott, os ins- mos retornar ao excelente livro de
tintos não são convenções nem mitos, Phillips, que contribui de forma rica
mas “poderosas forças biológicas que e estimulante para a compreensão
vêm e voltam na vida do bebê ou da da obra de Donald Winnicott. É um
criança, e que exigem ação” (1988: clássico da literatura secundária e uma
Natureza Humana, p. 57). Talvez fosse leitura necessária.

Enviado em 3/2/2008
Aprovado em 15/5/2008

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