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CURSO CLÍNICO

DE AUTOIMUNIDADE
CENTRO HOSPITALAR UNIVERSITÁRIO LISBOA CENTRAL

MANUAL DO CURSO
edição 2019
ÍNDICE

FICHA TÉCNICA .............................................................................................................................................................................. 3


FILIAÇÃO DOS AUTORES ............................................................................................................................................................. 4
NOTA INTRODUTÓRIA ................................................................................................................................................................... 7
ÍNDICE DE SIGLAS ......................................................................................................................................................................... 8
PARTE I – INTRODUÇÃO ÀS DOENÇAS AUTOIMUNES .................................................................................................................. 9
1. REVISÕES DE IMUNOLOGIA BÁSICA .................................................................................................................................... 10
2. SEMIOLOGIA NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES ....................................................................................................................... 30
3. LABORATÓRIO NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES ................................................................................................................... 47
4. RADIOLOGIA NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES ....................................................................................................................... 57
5. CAPILAROSCOPIA PERI-UNGUEAL ....................................................................................................................................... 63
PARTE II – DOENÇAS AUTO-IMUNES.............................................................................................................................................. 49
1. ARTRITE REUMATÓIDE ........................................................................................................................................................... 50
2. ESPONDILARTROPATIAS ....................................................................................................................................................... 61
3. SÍNDROME DE SJÖGREN ........................................................................................................................................................ 79
4. LÚPUS ERITEMATOSO SISTÉMICO ....................................................................................................................................... 89
5. ESCLEROSE SISTÉMICA ....................................................................................................................................................... 101
6. SÍNDROME DO ANTICORPO ANTI-FOSFOLÍPIDO .............................................................................................................. 116
7. MIOPATIAS INFLAMATÓRIAS ............................................................................................................................................... 125
8. VASCULITES ........................................................................................................................................................................... 137
8.1 VASCULITES ANCA E POLIARTERITE NODOSA ...................................................................................................... 145
8.2 DOENÇA DE BEHÇET .................................................................................................................................................. 166
8.3 ARTERITE DE CÉLULAS GIGANTES .......................................................................................................................... 175
9. DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL................................................................................................................................ 182
PARTE III – ATINGIMENTO DE ÓRGÃO-ALVO NA DOENÇA AUTO- IMUNE .............................................................................. 195
1. ALTERAÇÕES NEUROLÓGICAS NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES .................................................................................... 196
2. OLHO E DOENÇAS AUTO-IMUNES ....................................................................................................................................... 221
3. RIM E DOENÇAS AUTO-IMUNES .......................................................................................................................................... 225
4. PELE E DOENÇAS AUTO-IMUNES........................................................................................................................................ 236
5. ALTERAÇÕES HEMATOLÓGICAS NAS DOENÇAS AUTO- IMUNES ................................................................................. 254
6. DOENÇAS AUTOIMUNES DA TIRÓIDE ................................................................................................................................. 265
PARTE IV – ASPECTOS PARTICULARES DAS DOENÇAS AUTO-IMUNES ............................................................................... 270
1. TERAPÊUTICA ........................................................................................................................................................................ 271
2. VACINAÇÃO NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES ...................................................................................................................... 283
3. URGÊNCIAS/EMERGÊNCIAS E DOENÇAS AUTO-IMUNES ............................................................................................... 290
4. GRAVIDEZ NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES ......................................................................................................................... 303
5. OSTEOPOROSE ...................................................................................................................................................................... 313
ANEXO I – LISTA DE ANTICORPOS.......................................................................................................................................... 324

2
FICHA TÉCNICA

AUTORES DO MANUAL DE EDIÇÕES ANTERIORES:


Ana Carolina Araújo, Ana Lladó, Ana Margarida Antunes, Catarina Costa, Eunice
Patarata, Filipa Lourenço, João Oliveira, Mariana Silva, Paulo Barreto, Pedro Silva, Rita
Ribeiro, Rui Malheiro, Sara Castro, Vera Bernardino.

AUTORIA DOS NOVOS CAPÍTULOS DE 2019:

Marta Moitinho, Vera Bernardino.

REVISÃO CIENTÍFICA:
Ana Catarina Rodrigues, Ana Margarida Antunes, António Panarra, Carla Noronha,
César Burgi, Filipa Lourenço, Heidi Gruner, Maria Francisca Moraes-Fontes (capítulo
miosites inflamatórias), Nuno Riso, Paulo Barreto, Pedro Mendes Bastos, Sofia Pinheiro,
Vera Bernardino.

DESIGN DO LOGÓTIPO:
Diogo Tavares.

FORMATAÇÃO, GRAFISMO E COORDENAÇÃO DA EDIÇÃO 2019:


Vera Bernardino.

COMISSÃO ORGANIZADORA DO CURSO CLÍNICO DE AUTO-IMUNIDADE 2019:


Ana Catarina Rodrigues, Ana Margarida Antunes, Marta Moitinho, Paulo Barreto, Rita
Ribeiro, Vera Bernardino.

Este manual foi redigido sem o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

3
FILIAÇÃO DOS AUTORES

Ana Carolina Araújo


Assistente Hospitalar Medicina Interna, Unidade de Cuidados Intensivos, Hospital Prof.
Doutor Fernando da Fonseca

Ana Catarina Rodrigues


Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
Assistente convidada de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Nova de Lisboa

Ana Lladó
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
Assistente convidada de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Nova de Lisboa

Ana Margarida Antunes


Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
Assistente convidada de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Nova de Lisboa
Master Enfermedades Autoinmunes da Univeridade de Barcelona

António Panarra
Assistente Graduado Sénior de Medicina Interna, Coordenador da Medicina Interna 7.2,
Unidade de Doenças Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar
Universitário Lisboa Central Assistente convidado de Medicina Interna, Faculdade de
Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa

Carla Noronha
Consultora de Medicina Interna, Coordenadora da Consulta de Doenças Auto-Imunes,
Hospital Beatriz Ângelo e Hospital CUF Descobertas
Mestre em Educação Médica, Universidade Católica Portuguesa
Assistente convidada de Medicina Interna, Faculdade de Medicina da Universidade de
Lisboa

Catarina Costa
Assistente Hospitalar de Medicina Interna, Medicina Interna 2.1, Unidade de Doenças
Auto- Imunes, Hospital de Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar
Univesitário de Lisboa Central

César Burgi
Interno 5.º ano Medicina Interna, Medicina Interna 2.4, Unidade de Doenças Auto-
Imunes, Hospital de Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar Universitário
Lisboa Central

Eunice Patarata
Assistente Hospitalar de Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto- Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário de Lisboa
4
Central
Filipa Lourenço
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 7.2 e Maternidade Alfredo da
Costa, Unidade de Doenças Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar
Universitário de Lisboa Central

Heidi Gruner
Assistente Graduada Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central
Assistente convidada de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Nova de Lisboa

João Oliveira
Assistente Hospitalar de Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças
Auto- Imunes, Hospital de Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar
Universitário Lisboa Central

Maria Francisca Moraes-Fontes


Assistente Graduada Medicina Interna, Coordenadora da Unidade de Doenças Auto-
Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central
Doutoramento em Medicina (Imunologia), Faculdade de Medicina da Universidade de
Lisboa

Marta Moitinho
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças Auto-
Imunes, Hospital Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar Universitário de
Lisboa Central

Nuno Riso
Chefe de Serviço Medicina Interna, Unidade de Doenças Auto-Imunes, Hospital Curry
Cabral – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central

Mariana Silva
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças Auto-
Imunes, Hospital Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar Universitário de
Lisboa Central

Paulo Barreto
Consultor Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças Auto-Imunes,
Hospital Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
Assistente convidado de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Nova de Lisboa

Pedro Mendes Bastos


Assistente Hospitalar Dermatologia, Centro Dermatologia, Hospital CUF Descobertas e
Clínica CUF Almada

Pedro Silva
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Unidade de Urgência Médica, Hospital de São
José – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central

Rita Ribeiro
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças Auto-
Imunes, Hospital Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar Universitário Lisboa
Central

5
Rui Malheiro
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças
Auto- Imunes, Hospital de Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar
Universitário Lisboa Central

Sara Castro
Assistente Hospitalar de Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto- Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central

Sofia Pinheiro
Assistente Graduada Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Coordenadora da Unidade
de Doenças Auto-Imunes do Hospital Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar
Universitário Lisboa Central
Assistente Convidada de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas,
Universidade Nova de Lisboa

Vera Bernardino
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central
Doutoranda em Medicina, Nova Medical School, Universidade Nova de Lisboa

6
NOTA INTRODUTÓRIA

O Curso Clínico de Auto-Imunidade (CCAI) começou em 2015, destinando-se


inicialmente a internos do Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC) que desejavam
aprofundar os seus conhecimentos na área das Doenças Auto-Imunes, ou rever
conteúdos sobre este tema. Actualmente, o curso é aberto a internos ou especialistas
de qualquer especialidade ou hospital de proveniência.

A organização do CCAI é composta por elementos das Unidades de Doenças Auto-


Imunes do Hospital Curry Cabral e Hospital de Santo António dos Capuchos, ambas
integradas no CHLC. Ao longo das várias edições, e esta é já a 5ª edição do CCAI,
temos vindo a adaptar o programa às críticas e sugestões realizadas pelos participantes
nos cursos anteriores. Deste modo, contamos actualmente com um programa de curso
composto por aulas teóricas e práticas em proporções semelhantes.

A redução da componente teórica das últimas edições levou à necessária revisão do


primeiro manual do CCAI, inicialmente redigido em 2016. Em 2018 foi apresentada uma
versão mais completa e estruturada, que se actualizou para a edição deste ano. Cientes
da dimensão e profundidade atingidas na abordagem de cada da doença, pretende-se
que, mais do que um manual de curso, este documento possa ser utilizado
posteriormente como objecto de consulta, estendendo a sua vertente pedagógica para
lá do CCAI. A certificação deste curso desde o ano passado pela Sociedade Portuguesa
de Medicina Interna (SPMI) e pelo respectivo Núcleo de Estudos em Doenças Auto-
Imunes (NEDAI), que em muito nos honra, aumenta a responsabilidade e brio com que
nos dedicámos à revisão e reformulação deste manual.

Tratando-se de um documento dinâmico, será sempre revisto e melhorado nas próximas


edições do CCAI, pelo que contamos com as vossas críticas e sugestões, através do
mail: organiza.ccai@gmail.com.

Por fim, agradecemos a colaboração de todos os autores e revisores, bem como à


comissão científica do curso, esperando proporcionar a todos os participantes uma boa
aprendizagem sobre as doenças auto-imunes.

Vera Bernardino

Ana Margarida Antunes

7
ÍNDICE DE SIGLAS
ACR – american college of rheumatology type 1
AINE – anti-inflamatório não esteróide HTP – hipertensão pulmonar
IFI – imunofluorescência indirecta
ALT – alanina aminotransferase IFN - interferão
ANA – anticorpo anti-nuclear IG - imunoglobulina
ANCA – anticorpo anti-citoplasma dos IL - interleucina
neutrófilos IVIg/IgIV– imunoglobulina endovenosa
APC – célula apresentadora de antigénio LCR – líquido cefalorraquidiano
AR – artrite reumatóide LDH – desidrogenase láctica
ARDS – acute respiratory distress syndrome LES – lúpus eritematoso sistémico
ASAS - Assessment of SpondylArthritis LNH – linfoma não Hodgkin
international Society LPS - lipopolissacárido
ASCA - anticorpo anti-Saccharomyces MBG – membrana basal glomerular
cerevisiae MCI – miosite de corpos de inclusão
AST – aspartato aminotransferase MHC – complexo major de
AVC – acidente vascular cerebral histocompatibilidade
AZA – azatioprina MMF – micofenolato de mofetil
BCR – receptor de linfócito B MNAI – miosite necrotizante auto-imune
CBP – cirrose biliar primária MPA – poliangeíte microscópica
CK – creatina quinase MTX – metotrexato
CMV – citomegalovirus NK – natural killer
CRE – crise renal esclerodérmica OCT – tomografia da coerência óptica
CREST – calcinose, Raynaud, dismotilidade PAMP – pathogen associated molecular
esofágica, esclerodactilia, telangiectasias patterns
CU – colite ulcerosa PAN – poliarterite nodosa
CYC - ciclofosfamida PCR – proteína C reactiva
DAI – doenças auto-imunes PET – positron emission tomography
DC – doença de Crohn PFR – provas de função respiratória
DII – doença inflamatória intestinal PM – polimiosite
DIP – doença do interstício pulmonar PsA – artrite psoriática
DM – dermatomiosite PTT – púrpura trombótica trombocitopénica
DMARD – disease modifying antirheumatic ReA – artrite reactiva
drug RMN – ressonância magnética nuclear
DMTC – doença mista do tecido conjuntivo RxT – radiograma torácico
EAI – encefalite auto-imune SAAF – síndrome do anticorpo anti-
EDTA – ácido etilenodiaminotetracético fosfolípido
EGPA – granulomatose eosinofílica com SAM – síndrome de activação macrofágica
poliangeíte SAS – síndrome anti-sintetase
ELISA - Enzyme-linked immunosorbent SLICC - Systemic Lúpus International
assay Collaborating Clinics
EM – esclerose múltipla SNC – sistema nervoso central
EMG – electromiograma SNP – sistema nervoso periférico
EnA – artrite enteropática SPR – síndrome Pulmão-Rim
EPO - eritropoietina SSj – síndrome de Sjögren
EPP – electroforese de proteínas plasmáticas SSZ - sulfassalazina
ES – esclerose sistémica TCR – receptor de linfócito T
ETE – ecocardiograma transesofágico TILT – tilt table test – teste de inclinação
ETT – ecocardiograma transtorácico TLR – Toll-like-receptors
EULAR – European League Against TNF – tumor necrosis factor
Rheumatism TPMT – tiopurina metiltranferase
FR – fenómeno de Raynaud UCI – unidade de cuidados intensivos
GI – gastrointestinal UD – úlcera digital
GN – glomerulonefrite UV – ultra-violeta
GPA – granulomatose com poliangeíte VHB – vírus da hepatite B
HAI – hepatite auto-imune VHC – vírus da hepatite C
HC – hidratos de carbono VIH – vírus da imunodeficiência humana
HCQ - hidroxicloroquina VS – velocidade de sedimentação
HLA – human leukocyte antigen VZV – vírus da Varicella Zoster
HTLV1 – human T-lymphotropic vírus
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PARTE I – INTRODUÇÃO ÀS
DOENÇAS AUTOIMUNES
1. REVISÕES DE IMUNOLOGIA BÁSICA

Introdução

O sistema imunitário é composto por células e mecanismos químicos destinados a proteger


os diferentes órgãos do corpo de elementos estranhos, como bactérias, vírus, fungos,
parasitas, células cancerígenas ou toxinas. A imunidade inata é inespecífica e a primeira a
actuar na resposta imunitária; a imunidade adquirida é tendencialmente adaptada ao agente
externo. A imunidade inata e adaptativa não são mutuamente exclusivas na defesa do
hospedeiro, a sua actividade é complementar – Tabela 1, Fig. 1. Não vamos abordar neste
capítulo a imunidade passiva, a hipersensibilidade nem as imunodeficiências primárias, uma
vez que este manual se dedica ao estudo das doenças autoimunes (DAI).

Figura 1: Imunidade Inata e Adquirida.

A imunidade inata representa a primeira linha de defesa do hospedeiro, sendo inespecífica,


ou seja, é independente do antigénio, e o seu tempo de actuação é de alguma horas após o
encontro com o antigénio. Como não dispõe de memória imunológica, é incapaz de reconhecer
um mesmo agente patogénico mediante uma nova exposição futura.
A imunidade adaptativa é dependente e específica de um antigénio, o que envolve um espaço
de tempo superior entre a exposição ao antigénio e a capacidade máxima de resposta. A sua
principal característica é precisamente a capacidade de memória, que permite ao hospedeiro
desenvolver uma resposta imunológica rápida e eficaz em subsequentes exposições ao
antigénio – Fig. 2.

10
Fig. 2: Resposta do sistema imunitário inato e adapatativo. Retirado de
https://step1.medbullets.com/immunology/105041/innate-vs-adaptive-immunity, consultado a 1.3.2019.

IMUNIDADE INATA IMUNIDADE ADAPTATIVA


Resposta imediata Resposta lenta/demorada – demora 72-96
horas para gerar células T específicas e
produzir anticorpos

Sem memória imunológica Desenvolve memória de exposições prévias.


As células de memória específicas para um
antigénio despoletam uma resposta mais
forte e rápida numa re-exposição.

Receptores codificados no genoma Receptores são desenvolvidos com base em


exposições prévias. As células B e T apenas
respondem a antigénios específicos
apresentados pelas células apresentadoras
de antigénio (APC).

Receptores reconhecem padrões gerais dos Receptores reconhecem sequências


patogénios (pathogen- associated molecular específicas, ou seja, epitopos. Um vasto
patterns, PAMP) repertório de receptores em diferentes
clones é capaz de distinguir entre diferentes
sequências de aminoácidos.

Receptores com padrões de reconhecimento Receptores células B (BCR) e de células T


(TCR)

Inato Adquirida durante a vida.

Tabela 1: Principais diferenças entre sistema imune inato e adaptativo.

Imunidade inata
A imunidade inata é composta por 4 barreiras defensivas: anatómica, eliminação mecânica,
barreiras fisiológicas e químicas – Tabela 2.

11
TIPO FUNÇÃO
Na camada epidérmica da pele:
Tight junctions impermeabiliza e bloqueia raios UV
Barreira Na derme: contém ácidos gordos que
anatómica/física Glândulas sub-cutâneas mantém pH entre 3 e 5

Membranas mucosas Envolvem os micróbios


No tracto respiratório: englobam e prendem
Muco e cílios microorganismos através do muco
Tracto respiratório: remoção de
Remoção Tosse e reflexo de espirro microorganismos do corpo
mecânica Tracto GI: remoção de toxinas e patogénios
Vómitos e Diarreia
Sistémica: fluidos como lágrimas, urina,
Excreção de fluidos orgânicos saliva e suor também eliminam micróbios
A temperatura normal do corpo abranda o
crescimento de alguns patogénios
A febre inibe o crescimento de agentes
Temperatura patogénicos que sobrevivem em
Barreiras temperatura normal; liberta também
fisiológicas proteínas de choque térmico, que estimulam
resposta imunológica
pH baixo no estômago, pele e vagina inibe o
pH crescimento microbiano
Enzimas bactericidas excretadas por células,
Lisozimas à superfície de mucosas
Secreção mucosa que estimula as células a
Lactoperoxidase produzir radicais tóxicos
Nas células na base das criptas do intestino
Barreiras Criptidinas e α-defensinas delgado: lisam membrans celulares
químicas
Produzida na pele, tracto respiratório:
β-defensinas destroem as membranas celulares
Presente nos pulmões: funcionam como
Proteínas de surfactante A e D opsoninas, estimulando a actividade
fagocítica das células

Tabela 2: Barreiras intrínsecas do sistema imune inato. Adaptado de Marshal J, Warrington R, Watson W. Na introduction to
immunology and immunolopathology. 2018;14(2): 49.

A imunidade inata depende de receptores que reconhecem padrões, os epitopos, e permitem


às células imunitárias identificar sequências comuns a um vasto número de patogénios, as
PAMPs. Um exemplo típico de epitopo são os lipopolissacáridos na parede celular das
membranas ou RNA viral.
Uma função importante da imunidade inata prende-se com o rápido recrutamento de células
imunitárias para os locais de infecção e inflamação, através de quimiocinas e citocinas. As
quimiocinas são pequenas proteínas envolvidas na comunicação e recrutamento celular. As
citocinas são produzidas enquanto a imunidade inata mobiliza mecanismos de defesa e activa
respostas celulares locais. As interleucinas-chave que são produzidas durante uma fase
precoce de resposta à infecção bacteriana são o TNF, IL-1 e IL-6, uma vez que iniciam a
inflamação local com recrutamento celular e contribuem para o aparecimento da febre.
O sistema do complemento é composto por pequenas proteínas produzidas no fígado, que
actuam como uma cascada bioquímica que identifica e opsoniza bactérias e outros agentes
patogénicos – Fig. 3. Deste modo, torna-os susceptíveis à fagocitose, tendo também a
capacidade de destruir directamente alguns patogénios e células infectadas, através dos
12
complexos de ataque de membrana. Esta acção fagocítica promove a remoção de células
mortas, complexos antigénio-anticorpo e mesmo substâncias externas presentes em órgãos,
tecidos, sangue ou linfa. O sistema do complemento pode também activar uma resposta imune
adaptativa através da mobilização e activação de células apresentadoras de antigénios.

Figura
3: Vias do Complemento, de forma simplificada. MBL: mannose-binding lectin; MAC: membrane attack complex. A: Leslie M.
Immunology. The New View of Complement. Science 2012;337(6098):1034-7. B: Mathern D and Heeger P. Molecules Great
and Small: The Complement System. Clin J Am Nephrol 2015;10:1636-1650.

A imunidade inata envolve a acção de várias células: células fagocíticas (macrófagos e


neutrófilos), células dendríticas, mastócitos, basófilos, eosinófilos, natural killers (NK) e células
linfóides inatas – tabela 3. Os macrófagos assumem outra denominação consoante os tecidos
em que se encontram: macrófagos alveolares (pulmão), células de Kupffer (fígado), células
mesenquiais (rins), células microgliais (sistema nervoso), histiócitos (tecido conjuntivo),
células epitelióides (granulomas), osteoclastos (osso).
As células dendríticas também têm capacidade de fagocitose e funcionam como APC,
despoletando a imunidade adaptativa. Os mastócitos e os basófilos são essenciais para iniciar
a resposta inflamatória aguda, como acontece na asma e na alergia. Os eosinófilos participam
na destruição de parasitas demasiado grandes para serem fagocitados. As células NK são
também uma fonte importante de IFN-γ, citocina que ajuda a mobilizar células APCs e
promove o desenvolvimento de imunidade anti-viral eficaz. As células linfóides inatas actuam
como reguladoras e, consoante o seu tipo, produzem selectivamente citocinas, como IL-4 ou
IFN-γ, para ajudar a direcionar a resposta imune para patogénios específicos.

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Figura 4: Células do Sistema Imunitário. Modificado a partir de Mikael Haggstrom CC BY-SA 3.0.

Tipo de % em Principais
Imagem Núcleo Funções Duração
Célula adultos alvos

Fagocitose Meses a
Macrófago Variável Variável
APC aos linf. T anos
Vários

Fagocitose Bactérias
Neutrófilo 40-75% Multi-lobado
Desgranulação
6h a dias
Fungos

Desgranulação
8-12 dias
Liberta enzimas, Parasitas
Eosinófilo 1 – 6% Bi-lobado (circula 4-5
factores de crescimento Alergenos
h)
e citocinas

Semi-vida
Desgranulação
Bi ou tri- entre
Basófilo <1%
lobado
Libertação de histamina,
horas a
Alergenos
enzimas e citocinas
dias

Desgranulação
Frequente Parasitas
Central, Libertação de Meses a
Mastócito nos
monolobado histaminas, enzimas, anos
Alergenos
tecidos
citocinas

14
Células Th:
Células T helper (CD4+): bactérias
mediadores de resposta intracelulares
Fortemente
Linfócitos imune Semanas Células T
20 – 40% corado e
(T) Células T citotóxicas a anos citotóxicas:
excêntrico
(CD8+): destruição células tumorais
celular ou infectadas por
vírus

Diferenciam-se em
Forma de Horas a
Monócito 2 – 6% macrófagos e células Vários
rim dias
dendríticas

Rejeição tumoral
Destruição de células
~15% dos Vírus
Natural infectadas
linfócitos Monolobado 7 – 10 dias Tumores
Killer Libertação de perforinas
circulantes
e granzimas1 que
induzem apoptose
Tabela 3: Características e funções das células envolvidas na imunidade inata. Adaptado de Marshall J, Warrington R,
Watson W et al. An introduction to immunology and immunopathology. Allergy Asthma Clin Immunol. 2018; 14(2):49.

Imunidade adaptativa
A imunidade adaptativa complementa a imunidade inata e é fundamental quando esta é
ineficaz. As principais funções da imunidade adaptativa são o reconhecimento de antigénios
específicos extrínsecos ao hospedeiro (“non-self”), distingui-los dos antigénios próprios do
hospedeiro (“self”), a geração de vias efectores específicas para cada antigénio ou célula
infectada por antigénio, e o desenvolvimento de memória imunológica, que rapidamente
elimine um patogénio específico num contacto subsequente.
A resposta adaptativa imune é a base para uma imunização eficaz contra doenças infecciosas.
As células da imunidade adaptativa incluem: linfócitos T específicas de antigénio, activadas
após o contacto com células APC, e os linfócitos B, que se diferenciam em plasmócitos, que
produzem anticorpos – Figs. 5 e 6.

Figura 5: Células da imunidade adaptativa. Retirado de Macmillan Publishers Ltd: Nature Reviews Cancer, 4, 11-22, copyright 2004.

1
Granzimas: proteínas que provocam lise na célula alvo.
15
Figura 6: Activação celular do sistema imune adaptativo. Retirado de http://www.pathophys.org/immunology/, consultado em
1.3.2019.

Linfócitos T e Células Apresentadoras de Antigénio (APC)


Os linfócitos T derivam de stem cells hematopoiéticas na medula óssea e, após migração para
o timo, ocorre a sua maturação. Estas células expressam receptores para antigénios
específicos, os receptores de células T (TCR). Cada linfócito T expressa apenas um tipo de
TCR, que após receber um sinal apropriado, rapidamente prolifera e se diferencia.
A superfície das APC apresentam um grupo de proteínas conhecidas como complexo major
de histocompatibilidade (MHC), que se divide em duas classes: a classe I, que inclui o
antigénio leucócitário humano (HLA) A, B e C, e está presente em todas as células nucleadas;
a classe II, que inclui o HLA DP, DQ e DR, apenas está presente nalgumas células do sistema
imunitário, incluindo macrófagos, células dendríticas e linfócitos B. As moléculas de MHC I
apresentam péptidos endógenos (intracelulares) e as de MHC tipo II apresentam péptidos
exógenos (extracelulares) aos linfócitos T – Fig.7. O complexo MHC-antigénio activa os TCR
e o linfócito T liberta citocinas que vão posteriormente controlar a resposta imune. Esta
apresentação de antigénios estimula os linfócitos T a diferenciarem-se primariamente em
células T citotóxicas (Tc) (CD8+) ou células T-helper (Th) (CD4+). As células Tc CD8+ são
activadas pelo MHC I e estão sobretudo envolvidas na destruição de células infectadas por

16
agentes externos, como vírus, e células tumorais. As células Th CD4+ são activadas pelo MHC
II e são importantes para estabilizar e maximizar a resposta imune, uma vez que, após
activadas por reconhecimento TCR, libertam citocinas que vão depois activar outras células.

Figura 7: Complexos MHC I e II. A: As células MHC I encontram-se em todas as células nucleadas do corpo, enquanto que as
células MHC II apenas estão em macrófagos, células dendríticas e linfócitos B. B: Uma célula dendrítica fagocita a parede
bacteriana e forma um fagossoma. Os lisossomas fundem-se com o fagossoma e criam um fagolisossoma, onde enzimas anti-
microbianas degradam a parede bacteriana. As protéases processam os antigénios bacterianos e a maioria dos epitopos
antigénicos são selecionados e apresentados na superfície celular, em conjunto comas moléculas MHC II. Os linfócitos T
reconhecem as APC e ficam assim activados. Imagem obtida em OpenStax CNX.

Tabela 4: Classificação, função e principais interleucinas libertadas pelos linfócitos Th CD4+. Retirado de
http://www.pathophys.org/immunology/, consultado a 1.3.2019.

Quando as células Th são induzidas por APC, podem responder por diferenciação de outras
células, sendo as mais frequentes a Th1, Th2 e Th 17 – Tabela 4. As células Th1 produzem
IFN-γ, que acciona a actividade bactericida dos macrófagos e estimula a imunidade anti-viral.
As citocinas produzidas por estas células permitem também a diferenciação de células B e a
opsonização de anticorpos. Uma resposta inapropriada destas células está associada ao
aparecimento de doenças autoimunes.
A resposta das células Th2 consiste na libertação de citocinas (IL-4, IL-5 e IL-13), envolvidas
no desenvolvimento de anticorpos produtores de imunoglobulina E, no recrutamento de
mastócitos e eosinófilos, que participam, por exemplo nas respostas inflamatórias agudas
observadas na alergia e na asma. É a este desequilíbrio nas citocinas produzidas pelas células
Th2 que estão associadas as condições atópicas.
As células Th17 estão associadas à produção de citocinas da família IL-17 e estão associadas
a respostas inflamatórias crónicas.
Um subtipo de linfócitos T CD4+, conhecido como linfócitos T reguladores (T reg)
17
desempenham um importante papel na resposta imune, uma vez que controlam respostas
aberrantes de auto-antigénios e o desenvolvimento de doenças autoimunes – Fig.8.

Figura 8: Funcionamento dos linfócitos T reguladores. Os linfócitos T reg são fundamentais para manter a tolerância
periférica, evitar doenças autoimunes e limitar as doenças inflamatórias crónicas. A partir de Vignali D, Collison L and Workman
C. How regulatory T cells work. Nat Rev Immunol 2008;8:523-532.

Linfócitos B
Os linfócitos B derivam também de stem cells hematopoiéticas da medula óssea e, após
deixarem a medula, expressam apenas um tipo de receptor de ligação a antigénio na sua
membrana, BCR. Ao contrário dos linfócitos T, os linfócitos B podem reconhecer directamente
um antigénio, sem necessidade de APC. Para além disso, os próprios linfócitos B podem
actuar como APC.
A principal função dos linfócitos B é a produção de anticorpos dirigidos a antigénios
extrínsecos que exijam posterior diferenciação. Quando são activados, os linfócitos B passam
por um processo de proliferação e diferenciação em plasmócitos produtores de anticorpos e
linfócitos B memória. Estas células sobrevivem a infecções passadas e continuam a expressar
receptores de ligação a antigénio, actuando rapidamente num novo episódio de exposição.
Estes anticorpos entram em circulação e fornecem protecção eficaz contra os patogénios. Os
plasmócitos têm uma semi-vida curta e sofrem apoptose quando o agente indutor de resposta
imune é eliminado.
Dada a sua função na produção de anticorpos, os linfócitos B desempenham um papel
fundamental na resposta imunitária, denominada humoral ou mediada por anticorpos, por
oposição à resposta imune mediada por células, primeiramente produzida por linfócitos T.

Imunidade Humoral vs Imunidade Celular


A via de produção de anticorpos começa quando os linfócitos B se ligam ao receptor de célula
B que reconhece e liga ao antigénio na sua forma nativa. As células Th locais libertam citocinas
18
que ajudam as células B a multiplicarem-se e direcionam o tipo de anticorpo que será
posteriormente produzido. Os anticorpos ligam-se à superfície dos patogénios, sinalizando-os
para destruição através da acção do complemento, opsoninas que promovem a fagocitose e
eliminação destes patogénios por células efectoras imunes. Uma vez eliminado o agente
patogénico, os complexos anticorpo-antigénio são eliminados pela cascata do complemento.

Figura 9: Diferenciação dos linfócitos B e produção de anticorpos. Após a sinalização no microambiente envolvente, os
linfócitos B naïves são activados e podem inicialmente diferenciar-se quer em plasmócitos secretores de anticorpos extra-
foliculares, de curta duração, ou podem permanecer no centro germinativo, onde sofrem hipermutação somática da região variável
da imunoglobulina, e só os linfócitos B com grande afinidade é que são selecionados para se diferenciarem em linfócitos B
memória, de longa duração, ou plasmócitos capazes de produzir outros tipos de isótipos de imoglobulinas, incluindo os isótipos
IgG, IgA e IgE. Moens L and Tangye S. Cytokine-mediated regulation of plasma cell generation: IL-21 takes center stage. Front
Immunol 2014;5:65.

Os linfócitos B, através da diferenciação em plasmócitos, produzem 5 tipos major de


anticorpos: IgA, IgD, IgE, IgG e IgM. As IgG podem depois ser subdivididas em subclasses
estruturalmente distintas, com diferentes capacidades de fixar o complemento, actuando, por
exemplo, como opsoninas – tabela 4. Este tema será retomado no capítulo dedicado às
alterações laboratoriais.

19
Tabela 4: Tipos de imunoglobulinas e respectivas características. Retirado de https://microbiologyinfo.com/antibody-
structure-classes-and-functions/, consultado em 3.3.2019.

Apesar de os anticorpos desempenharem um importante papel em conter a proliferação dos


vírus durante a fase aguda de uma infecção, não são capazes de os eliminar após terminada
a infecção. Os mecanismos imunitários mediados por células são, portanto, mais importantes
na defesa do hospedeiro contra a maioria dos patogénios intracelulares.
A imunidade mediada por células ocorre por três processos distintos: activação de células T
citotóxicas específicas de antigénio, que induzem apoptose nas células com antigénios ou
epitopos estranhos; activação de macrófagos e células NK, permitindo que destruam
patogénios intracelulares; estimulação da produção de citocinas, que posteriormente vão
mediar uma resposta imune eficaz.
A imunidade mediada por células está primariamente dirigida a microorganismos que
sobrevivam à fagocitose e aos que infectam células não fagocíticas. Apesar de, como referido,
este tipo de defesa ser mais eficaz na eliminação de células infectadas por vírus e células
neoplásicas, também pode interferir na defesa contra fungos, protozoários e bactérias
intracelulares. A imunidade mediada por células desempenha também um papel fundamental
na rejeição ao transplante – doença do enxerto contra o hospedeiro.

20
Figura 10: Principais diferenças no mecanismo de acção do sistema imunitário humoral e do sistema imunitário
mediado por células.

Autoimunidade
A autoimunidade é definida como um fenómeno através do qual anticorpos ou linfócitos T
reagem contra auto-antigénios, que quando se mantêm ao longo do tempo provocam doenças
autoimunes.
O sistema imunitário desenvolveu múltiplos mecanismos para controlar a auto-reactividade,
mas uma falha nalgum destes mecanismos pode levar à perda de tolerância imunitária, central
e periférica. O estímulo inicial para desenvolver doenças autoimunes (DAI) sistémicas ou
especificas de órgão envolve o reconhecimento de moléculas do self ou exteriores por
sensores inatos. Este reconhecimento, por seu torno, desencadeia uma resposta inflamatória,
que envolve linfócitos B e T auto-reactivos, previamente quiescentes.
As DAI podem ser específicas de órgão, como a diabetes tipo I, a esclerose múltipla ou a
miastenia gravis; ou sistémicas, como o lúpus eritematoso sistémico (LES), a artrite
reumatóide (AR) ou a síndrome de Sjögren (SSj).

Predisposição Genética
A maioria das DAI apresenta heterogeneidade clínica, decorrente de natureza poligénica e de
uma contribuição multifactorial, que envolve factores genéticos e ambientais. Há loci genéticos
transversais a várias doenças, que expressam com frequência genes relacionados, sugerindo
mecanismos comuns, embora o risco específico de cada alelo dentro de um locus varie
consoante a doença. De entre os factores de predisposição genética, encontram-se alguns
haplótipos de MHC, que exercem as associações mais fortes entre a maioria das DAI. No
entanto, outros genes têm sido frequentemente implicados, como PTPN22, CTLA4, IL23R e
21
TYK2. Algumas DAI monogénicas raras foram também identificadas, apresentando mutações
nos genes AIRE, FOXP3, IFIH1, DNASE1, TREX1, C1Q ou C4A.

Tolerância Central Ineficaz


A tolerância imunológica define-se como o processo através do qual o sistema imunitário não
reage contra os autoantigénios, ou seja, as células do self; quando há falhas neste processo,
passa a reagir contra as próprias células, destruindo-as – autoimunidade. Há dois mecanismos
principais responsáveis pela tolerância imunitária: a tolerância central, induzida nos órgãos
linfoides primários, responsável pela indução de tolerância a antigénios próprios; e a tolerância
periférica, responsável pela eliminação ou inactivação de clones linfocitários auto-reactivos
que escaparam à tolerância central.
Os principais mecanismos de tolerância ocorrem a nível central, no timo para os linfócitos T e
no fígado fetal e medula óssea para os linfócitos B. Os linfócitos T são expostos no timo a uma
determinada quantidade de autoantigénios à medida que se vão diferenciando, por forma a
reconhecerem os antigénios do self. Quando o mecanismo de tolerância central falha, ou seja,
quando se tornam auto-reactivos, sofrem delecção clonal por apoptose. Estudos recentes
revelaram que algumas moléculas que previamente se acreditava serem específicas de
determinados órgãos, também são expressas nas células epiteliais do timo. Estes dados
sugerem que o timo expressa propositadamente o máximo de autoantigénios, para induzir a
respectiva tolerância. No entanto, este mecanismo apresenta falhas. Por um lado, nem todos
os autoantigénios são expressos no timo; por outro lado, há linfócitos T que reagem
fracamente aos autoantigénios e acabam por migrar para os tecidos periféricos.
Um exemplo claro de autoimunidade devida a delecção central ineficaz de linfócitos T auto-
reactivos é a síndrome de poliendocrinopatia autoimune candidíase-distrofia ectodérmica
(APECED ou APS-1), uma doença autossómica recessiva rara provocada por mutações no
gene de regulação autoimune AIRE. Nesta síndrome, há destruição de múltiplos órgão
endócrinos mediados por células T com heterogeneidade fenotípica, o que sugere a
contribuição adicional de predisposição genética e factores ambientais.
Cada antigénio apresenta múltiplas sequências de aminoácidos que se ligam às moléculas
apresentadoras de antigénio dos MHC. Estas sequências são designadas epitopos ou
determinantes antigénicos. Ainda assim, alguns epitopos não são apresentados como
antigénios nas condições habituais, provavelmente devido à relação com outros epitopos ou
proteólise celular, ou porque não se encontram em concentrações suficientes. Estes epitopos
são denominados “epitopos crípticos”, o que significa que são determinantes antigénicos
ocultos. Assim, estando ocultos, os linfócitos T não se conseguem desenvolver tolerância –
Fig.11.

22
Figura 11: Escape de linfócitos T e B à tolerância central e periférica. Durante a diferenciação, os precursores dos linfócitos
T e B com auto-reactividade são positivamente selecionados no córtex do timo e na medula óssea, respectivamente, e os que
apresentam baixa avidez para o self são exportados para a periferia. Por outro lado, os linfócitos T auto-reactivos com alta
afinidade para auto-antigénios expressos pelas células epiteliais da medula do timo, sob o controlo dos genes AIRE ou FEZF2,
são eliminados ou diferenciam-se em linfócitos Treg, enquanto que os linfócitos B auto-reactivos são eliminados ou o seu receptor
é editado – teoria convencional da delecção clonal. A tolerância central, contudo, é incompleta e alguns linfócitos T e B são
enviados para a periferia. Estas células são normalmente controladas por mecanismos de tolerância periférica, incluindo
moléculas inibitórias, anergia e supressão pelas células Treg. No entanto, em indíviduos geneticamente predispostos, uma lesão
tecidular, inflamação e a apresentação de neo auto-antigénios crípticos e sequestrados, ou mesmo mimetismo molecular, de
alguns microorganismos provoca uma quebra na tolerância e aparecimento de autoimunidade. Retirado de Theofilopoulos A,
Kono D and Baccala R. The Multiple Pathways to Autoimmunity. Nat Immunol. 2017;18(7): 716-724.

Tal como os linfócitos T, os linfócitos B também escapam à tolerância central, embora a


quantidade de células auto-reactivas que chega à circulação periférica diminua gradualmente
graças à existência de checkpoints: começa na edição de receptores e apoptose numa fase
ontogénica precoce, depois passa por indução de anergia antes ou imediatamente após a
emigração para a periferia. Apesar destes mecanismos, os linfócitos B auto-reactivos
poliespecíficos estão presentes na circulação periférica e alguns são mesmo detectáveis em
indivíduos sem DAI.

Activação de células auto-reactivas


Há quatro mecanismos principais que contribuem para controlar os linfócitos B e T auto-
reactivos: moléculas inibidoras, anergia, ignorância e supressão activa – Fig. 11. Várias
moléculas inibidoras são expressas à superfície dos linfócitios B e T, como CTLA-4, PD-1,
LAG-3 ou TIM3, para evitar uma resposta imune excessiva, quer normal, quer anti-self.
Quando há deficiência em alguma destas moléculas, surgem processos de autoimunidade.
Os linfócitos T que migram para os tecidos periféricos passam também por delecção clonal,
por apoptose, de modo semelhante ao que ocorre no timo quando o estímulo dos
autoantigénios é forte. Quando o estímulo não é forte o suficiente ao nível dos TCR, os
linfócitos T passam por anergia clonal, ou seja, param a replicação clonal e a resposta

23
funcional. Alguns destes linfócitos podem converter-se em linfócitos Treg, que por sua vez vão
provocar anergia de linfócitos T CD4+ patogénicos, inibindo deste modo a autoimunidade. No
entanto, a anergia dos linfócitos T tem curta duração e pode ser revertida em certas condições
inflamatórias.
Os linfócitos B passam por um estado de anergia em resposta aos autoantigénios solúveis e
à delecção clonal em resposta a autoantigénios mais fortes, como os que surgem na superfície
celular da medula óssea, onde se diferenciam. Os linfócitos B que reagem fortemente com
antigénios solúveis, como as moléculas do self do centro germinativo dos tecidos periféricos
são também eliminadas por apoptose. Nos linfócitos B ocorre também a edição do receptor,
nos quais os linfócitos B que reagem com um autoantigénio transformam o gene do receptor
antigénico (imunoglobulina) uma outra vez para o transformar noutro receptor não-auto-
reactivo. Os linfócitos B em estado anérgico não são eliminados e podem também servir como
potencial reservatório de células auto-reactivas.
Os linfócitos B e T que escapam para a periferia podem também ficar quiescentes por um
processo de ignorância aos antigénios dos tecidos sequestrados antes das barreiras
anatómicas, ficando deste modo não-tolerantes e não-respondedores. No entanto, este
processo pode ser revertido por agentes infeciosos ou outras causas de dano tecidular.

O papel dos linfócitos Treg auto-reactivos


A tolerância imunitária pode ser activamente suprimida por linfócitos T reguladores. Estudos
recentes demonstraram que linfócitos T com várias funções reguladores, incluindo as que
produzem citocinas com efeitos supressores, como a IL-10e o TGF-β, e os que apresentam
marcadores de superfície com CD4+ e CD25+, conseguem provocar um efeito supressor
através de contacto célula-a-célula. Estes linfócitos T supressores podem desempenhar
diferentes papéis, dependendo da activação de linfócitos T auto-reactivos. Assim sendo, os
linfócitos T auto-reactivos encontram-se em condições substancialmente diferentes de
tolerância, dependendo da qualidade e da quantidade de autoantigénios. Por exemplo, muitos
autoantigénios estão demasiado isolados do sistema imunitário para poderem activar
potenciais linfócitos T auto-reactivos. Autoantigénios expressos em células não-
hematopoiéticas podem não estimular linfócitos T porque não têm moléculas co-
estimuladores. Outro mecanismo passa pelos nódulos linfáticos em torno dos órgãos que têm
células dendríticas, que levam os antigénios a induzir tolerância aos linfócitos T auto-reactivos
em condições de estabilidade.

Mecanismo de iniciação da autoimunidade


Durante muito tempo, a origem das doenças autoimunes estava centrada no sistema imune
adaptativo, através da activação de linfócitos Th CD4+ que reagiam com um autoantigénio
específico. No entanto, estudos recentes demonstraram que as células do sistema imune inato
expressam um vasto espectro de sensores para ligandos do self ou externos, sendo que é
esta ligação que precede e despoleta a resposta adaptativa. Os sensores endossómicos e
citosólicos que reconhecem ácidos nucleicos, quer do self ou externos, têm sido directamente
relacionados à patogénese das doenças autoimunes. Os sensores endossómicos incluem o
TLR3 para o dsRNA, TLR7 e TLR8 para ssRNA e TLR9 para DNA, enquanto que os sensores
citosólicos incluem a helicase RIG-1 para o RNA-5’trifosfato e o MDA5 para dsRNA longo. Os
múltiplos sensores de DNA surgem como mais relevantes e induzem a produção de IFN-I e
citocinas pró-inflamatórias (IL-1, IL-6, IL-12, TNF).
24
O papel central dos ácidos nucleicos no reconhecimento do self e na mediação dos processos
de autoimunidade foi também demonstrado, por exemplo, pela descoberta de que mutações
no gene MDA5 alteram a sua função e promovem uma doença lupus-like em ratinhos, que se
correlaciona com o aumento da produção de IFN-I e do stress oxidativo mitocondrial.
De um modo geral, considera-se que os processos patológicos autoimunes são iniciados pelo
envolvimento de sensores inatos através dos ácidos nucleicos. Apesar de a maioria dos
exemplos se relacionarem em estudos de LES, este mecanismo parece aplicável a um largo
espectro de DAI sistémicas ou específicas de órgão (AR, SSj, PM/DM, psoríase, tiroidite
autoimune, neuromielite óptica). Os ácidos nucleicos que actuam sob condições estéreis são
frequentemente o trigger inicial para a autoimunidade, mas os ácidos nucleicos microbianos
só por si, ou em conjunto com ácidos nucleicos do self extraídos dos tecidos lesados, também
podem contribuir. Assim, a detecção de ácidos nucleicos, que é um mecanismo adquirido
essencial para a protecção do self contra agentes nocivos, pode, em certas circunstâncias,
desempenhar o papel de mediador major na patogénese da autoimunidade.

Figura 12: Vias pelas quais os sensores dos ácidos nucleicos externos ou do self promovem a autoimunidade. Retirado
de Theofilopoulos A, Kono D and Baccala R. The Multiple Pathways to Autoimmunity. Nat Immunol. 2017;18(7): 716-724.

O microbioma e a autoimunidade
O microbioma consiste num ecossistema composto por microorganismos que residem nas
mucosas e na pele, numa relação de mútuo benefício com o hospedeiro, e que influenciam
numerosos processos fisiológicos, como a evolução do organismo, a longevidade, o
metabolismo e o desenvolvimento do sistema imunitário. Quando há distúrbios neste
ecossistema, a chamada disbiose, podem surgir inúmeros processos patológicos, que incluem
as doenças autoimunes. Exemplos clássicos são as DII, que incluem a doença de Crohn e a
colite ulcerosa, cujos indivíduos apresentam menor concentração de subtipos benéficos de
Clostridia e Bacteroides fragilis. A fermentação de fibras dietéticas por alguns clusters de
Clostridia exerce funções anti-inflamatórias, como a geração de linfócitos Treg periféricos;
25
alguns subtipos de B.fragilis produzem polissacárido A capsular, que fornece imunoprotecção
através da indução de linfócitos Treg produtores de IL-10. Os doentes com DII apresentam
também aumento de Escherichia coli e outras estirpes bacterianas com propriedades de
adesão ao epitélio que promovem uma resposta inflamatória mediada por linfócitos Th17.
As alterações do microbioma estão também relacionadas com a origem da diabetes tipo 1,
sendo que em países com aparecimento precoce desta doença as bactérias dominantes no
cólon produzem um lipopolissacárido imunoinibidor, enquanto que nos países em que a
diabetes tipo 1 não é tão prevalente, o microbioma apresenta bactérias com LPS
imunoestimulador. Estes resultados sugerem que a estimulação da imunidade inata precoce
pode reduzir a predisposição para DAI e fornecer uma potencial explicação para o mecanismo
subjacente à “hipótese higiénica” da autoimunidade – Fig.13.
A disbiose também está implicada em doenças fora do aparelho GI, como síndromes
neurológicas, quadros de ansiedade, enxaqueca, depressão, doenças neurodegenerativas e
neuroinflamatórias. Estão também descritos casos associados à AR, artrite reactiva, artrite
psoriática e espondilartropatias.
É importante ressalvar que grande parte da evidência científica a este respeito foi obtida a
partir de modelos animais – Fig. 14. No caso dos humanos, há várias limitações na
interpretação das alterações do microbioma, uma vez que o microbioma intestinal é altamente
dinâmico, apresenta flutuações diárias cíclicas, relacionadas com ritmos circadianos, e várias
taxas de crescimento bacteriano, sendo ainda afectado pelos hábitos alimentares e
medicamentosos.

Género e Autoimunidade
Há uma prevalência muito maior das DAI no género feminino. Contribuem para este facto as
hormonas gonadotróficas e os efeitos directos do cromossoma X.
Depois da puberdade, a contribuição das hormonas sexuais torna-se mais evidente, sugerindo
que os estrogénios estimulam e os androgénios inibem as respostas imunes e a
autoimunidade, pelo menos em modelos de ratinhos com predisposição para LES. As
hormonas femininas exercem vários efeitos, como a expressão de múltiplos genes
imunologicamente-relevantes, incluindo citocinas e moléculas sinalizadoras de TLRs. Os
estrogénios também interferem com a tolerância dos linfócitos B e a tolerância dos linfócitos T
poderá também estar afectada, uma vez que a expressão do gene AIRE no epitélio do timo é
inibida pelos estrogénios e estimulada pelos androgénios.
As hormonas sexuais e o microbioma também se influenciam mutuamente, sendo que as
diferenças de género na composição do microbioma também poderão contribuir para este viés
de género na autoimunidade.
A contribuição directa do cromossoma X ocorre essencialmente através de três mecanismos:
escape à inactivação pelo cromossoma X, perda de mosaicismo e aneuploidia. Os diferentes
graus de activação tecidulares, as variações individuais e étnicas, que expressam diferentes
tipos de activação e regulação imune, fazem com que o viés feminino não seja uniforme em
todas as DAI.

26
Figura 13: Potencial ligação entre o microbioma e o Lúpus Eritematoso Sistémico. SLE: Systemic lupus erythematosus, UV:
Ultraviolet, RNA: ribonucleic acid, DNA: deoxyribonucleic acid, dsDNA: double strand DNA, Ab: antibody, IC: Immune complex,
Th: T helper, Treg: Regulatory T-cell, DC: Dendritic cell, IL: Interleukin, IFN: Interferon, TNF-α: Tumor necrosis factor α, SCFA:
Short chain fatty acid, LPS: Lipopolysaccharide, LTA: Lipoteichoic acid, TLR: Toll like receptor, IgM anti-PC: Immunoglobulin M
anti-phosphorylcholine, PUFA: Polyunsaturated fatty acid, Vit: vitamin, HLA-DR: Human leukocyte antigen-DR isotype, PTPN22:
Protein tyrosine phosphatase, non-receptor type 22. Retirado de Saadat YR, Hejazian M, Bastami M et al. The role of microbiota
in the pathogenesis of lupus: Dose it impact lupus nephritis? Pharmacol Res. 2019 Jan;139:191-198.

Autoimunidade: que futuro?


Apesar de as vias da autoimunidade apresentadas estarem documentadas em estudos
experimentais, a confirmação destes mecanismos nos humanos está ainda por validar. No
entanto, os dados disponíveis sublinham o progresso que se tem feito para definir a
patogénese destas síndromes altamente complexas e heterogéneas, permitindo o
desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas e diagnósticas. A aplicação de novas
tecnologias poderá vir a permitir a eliminação de células auto-reactivas sem imunossupressão
de largo espectro. Uma prova de que é possível criar fármacos específicos de antigénio na
autoimunidade foi fornecida por ensaios recentes que demonstraram deplecção de linfócitos
B com auto-antigénios específicos, usando linfócitos T citotóxicos que expressavam
receptores de antigénio quiméricos e a expansão de linfócitos Treg autoantigénio-específicos
para transferência passiva, usando nanopartículas que apresentavam péptidos do self ou
MHC relevantes para a doença em causa. Para além disso, uma vez que a predisposição
genética é um pré-requisito para a maioria da DAI, é esperado que avanços que definam o
papel das variações genéticas nestas síndromes possam transformar a nossa abordagem ao
diagnóstico e ao tratamento.
27
Figura 14: As múltiplas vias da autoimunidade. DAMPs: damage-associated molecular patterns; PAMPs: pathogen- associated
molecular patterns; SCFA: short chain fatty acids; AHR-L: Aryl hydrocarbon receptor ligands; PSA: polysaccharide A; SFB:
segmented filamentous bacteria. Retirado de Theofilopoulos A, Kono D and Baccala R. The Multiple Pathways to Autoimmunity.
Nat Immunol. 2017;18(7): 716-724.

Take Home Messages


• O sistema imunitário é composto pela imunidade inata e a imunidade adquirida, que
são complementares entre si.
• A imunidade inata é inespecífica, sendo constituída pelas barreiras anatómicas, células
fagocíticas e sistema do complemento.
• A imunidade adaptativa é específica e pode dividir-se em imunidade humoral, ou seja,
mediada por anticorpos, ou imunidade celular, quando é mediada por células.
• A autoimunidade surge quando há falhas nos mecanismos de tolerância central e
periférica, sendo activados linfócitos T e B auto-reactivos.
• A predisposição genética e epigenética, o ambiente e, em particular, o microbioma,
contribuem também para os processos de autoimunidade, mas o seu papel não está
ainda totalmente definido.

Bibliografia
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Yamamoto K. Mechansms of Autoimmunity – Recent Concept. JMAJ. 2004;47(9):403-406.

29
2. SEMIOLOGIA NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES

Introdução
As doenças auto-imunes (DAI) abordadas neste manual têm um carácter sistémico e,
como tal, podem apresentar simultaneamente sinais e sintomas de órgãos diferentes,
alguns deles comuns a patologias com outra etiologia, outros mais específicos, que
podem vir a sinalizar doença sistémica grave. A abordagem semiológica neste contexto
será necessariamente redutora. Tentaremos enunciar semiologia específica e
inespecífica das DAI, organizadas por sistemas de órgãos, introduzindo definições
simples de alguns conceitos e aprofundando um pouco mais outros que nos pareçam
relevantes.

Semiologia nas Doenças Auto-Imunes – Sistemas de Órgãos

SINTOMAS GERAIS
Os doentes podem apresentar sintomas gerais e inespecíficos, transversais a muitas
das doenças auto-imunes descritas neste manual. Entre eles estão a perda ponderal,
febre, hipersudorese nocturna, adenomegálias, astenia e adinamia. A exclusão de
doença linfoproliferativa ou infecção latente subjacentes, como tuberculose ou infecção
pelo VIH, são fundamentais para uma marcha diagnóstica adequada.

PELE, MUCOSAS E ANEXOS


As manifestações mucocutâneas associadas às doenças auto-imunes são muito
heterogéneas e em extensa quantidade, sendo algumas patognomónicas de algumas
doenças, como as pápulas de Gottron, ou comuns a várias patologias, como as úlceras
orais. Enumeram-se então, como principais sinais e sintomas: úlceras orais, úlceras
genitais, patergia, lesões acneicas, fotossensibilidade, eritema malar / vespertílio,
eritema pernio, alopécia, calcinose, pápulas de Gottron, heliotropo, microstomia,
mechanic’s hands, sinal de Holster, nódulo reumatóide, paniculite, prurido.

● Úlceras orais – semelhantes a aftas da cavidade oral, mas valorizáveis por se


apresentarem em maior quantidade. Surgem como lesões papulares
eritematosas circulares que evoluem para úlceras em 48 horas, demorando
depois cerca de 2 semanas a cicatrizar. A localização é variável: lábios, gengiva,
mucosa jugal e língua. Estão particularmente associadas à Doença de Behçet,
ao Lúpus Eritematoso Sistémico e à Doença Inflamatória Intestinal.

● Úlceras genitais – lesões normalmente localizadas no escroto, no homem, e


nos pequenos e grandes lábios, na mulher. Localizações menos frequentes são
a glande, a região púbica, o períneo e o colo do útero. Normalmente surgem
como pápulas ou pústulas, que ulceram após um curto período;

30
cicatrizam num espaço de 10 a 30 dias e deixam cicatriz em 60% dos doentes.
Estão associadas à Doença de Behçet.

● Patergia – reacção cutânea que se caracteriza por hiperreactividade


inespecífica a um trauma minor. É usado como teste de diagnóstico: insere-se
uma agulha na derme do antebraço do doente; ao fim de 48 horas o
aparecimento de uma pápula ou pústula torna o teste positivo. Está associado à
Doença de Behçet.

Figura 1: A: Úlceras Orais (From 2015 ACR/ARHP Annual Meeting); B: Úlcera GenitaI no escroto(Borlu et al.
International Journal of Dermatology, 2016); C: Patergia (Ozkaya, et al. Research Gate, 2012).

● Fotossensibilidade – desenvolvimento de eritema após exposição a radiação


UV-B proveniente da luz solar ou fluorescente. Associado ao Lúpus Eritematoso
Sistémico.

● Eritema malar / Vespertílio – placa eritematosa grosseiramente em forma de


borboleta, infiltrada, pruriginosa ou dolorosa, com distribuição malar bilateral,
envolvendo a pirâmide nasal; tipicamente despoletado pela exposição solar.
Associado ao Lúpus Eritematoso Sistémico.

● Eritema Pernio – inflamação eritematosa da pele que surge normalmente após


exposição ao frio, com prurido e/ou lesões acrais eritemato-violáceas. As lesões,
popularmente designadas como “frieiras”, demoram entre 2 a 3 semanas a
desaparecer. Não tendo necessariamente um carácter patológico, pode estar
associado ao Lúpus Eritematoso Sistémico, Crioglobulinémia, Síndrome do
Anticorpo Anti-fosfolípido e Doença Celíaca.

Figura 2: A: Eritema Malar (From webmed.com/lúpus); B: Eritema Pernio (From


derm101.com/therapeutic/perniochilblains/9) C: Eritema Pernio (idem).

● Alopécia – queda de cabelo em quantidade superior ao normal (80 fios


cabelo/dia). Pode atingir o couro cabeludo, as sobrancelhas, a barba e restante

31
pilosidade corporal. Classifica-se em areata, androgénica, cicatricial, universal e
de tracção. É importante não confundir com a perda capilar sazonal
(eflúvio/deflúvio). Está frequentemente associada ao Lúpus Eritematoso
Sistémico, embora também ocorra em situações de ansiedade.

● Calcinose – deposição de cristais de cálcio ao nível da pele e tecido celular


subcutâneo, habitualmente móveis sobre as estruturas adjacentes. Pode ser
focal ou disseminada, sintomática ou assintomática. Atinge tipicamente as mãos,
antebraços, punhos, cotovelos, ombros e joelhos, embora possa estar presente
noutras localizações. Ao exame objectivo, surgem lesões papulares
hiperpigmentadas ou placas branco-amareladas, firmes ou endurecidas (Figura
3). Pode surgir ulceração com infecção secundária. Está associada à Esclerose
Sistémica, à Dermatomiosite e à Doença Mista do Tecido Conjuntivo.

Figura 3: Calcinose universalis em doente com dermatomiosite. A: Pormenor de cotovelo; B: Nódulos de calcinose no
radiograma de cotovelo correspondente; C: Nódulo e placa de calcinose no 1.º dedo da mão direita; D: Nódulo e placa
de calcinose no respectivo radiograma de mão. Cortesia Unidade de Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral.

● Pápulas de Gottron – pápulas/placas com cerca de 1 mm de espessura de


coloração violácea, rósea ou vermelho escuro, ao nível da face dorsal das
articulações metacarpo-falângicas ou interfalângicas (Figura 4); são
consideradas como sinal patognomónico de Dermatomiosite. Podem também
surgir nas superfícies extensores dos punhos, cotovelos, joelhos ou outras
articulações.

Figura 4: A: Pápulas de Gottron (Garcia-Cruz A, NEJM 2010); B: Heliotropo (Vanessa Ngan); C: Microstomia (Cortesia
Unidade de Doenças Auto-Imunes Hospital Curry Cabral).

● Heliotropo – eritema violáceo peri-orbitário de uma ou das duas pálpebras,


normalmente com edema acompanhante; está associado à Dermatomiosite.

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● Microstomia – redução da cavidade oral, avaliada no eixo vertical, observada
por vezes nos doentes com Esclerose Sistémica com envolvimento da face, por
fibrose progressiva e reabsorção dos tecidos peri-orais.

● Mechanic’s hands – hiperqueratose, descamação e fissuração da pele das


mãos, sobretudo na porção externa (radial) dos dedos indicadores; está
frequentemente associada aos anticorpos anti-Jo1 e, como tal, à Síndrome Anti-
Sintetase.

● Sinal de Holster – eritema ruborizado ou violáceo localizado na porção


externa das coxas (Figura 5); associado à Dermatomiosite.

● Nódulo Reumatóide – lesão cutânea, nodular, dura, saliente à pele ou palpável


no tecido celular subcutâneo. Surge em 25% dos doentes com Artrite
Reumatóide, tipicamente em áreas de pressão: olecrânio, mãos, sacro, tendão
de Aquiles e pavilhão auricular (Fig.5). Associado a doentes com imunologia
positiva e fumadores.

Figura 5: A: Sinal de Holster (From Remedica Journals); B: Nódulos Reumatóides (From visualdx.com); C: Nódulos
Reumatóides (Christopher Kelsey).

APARELHO MUSCULOESQUELÉTICO
As alterações músculo-esqueléticas são particularmente frequentes nas patologias
abordadas neste manual. Deste modo, e não sendo todos os sinais e sintomas de
seguida enunciados específicos das doenças auto-imunes mas compondo parte da
semiologia a considerar no diagnóstico diferencial, impõe-se nomear e esclarecer
alguns destes achados semiológicos: artrite, artrose, artralgia, rigidez matinal,
lombalgia, gonalgia, gonartrose, sacro-ileíte, nódulos de Heberden, nódulos de
Bouchard, dactilite, entesite, bursite, mialgia, miosite, fadiga proximal, condrite,
anquilose, espondilartrite.

● Artrite – inflamação de uma ou mais articulações, caracterizando-se por dor,


calor, rubor, edema, limitação funcional e cansaço. Ao exame articular há uma
tumefacção de consistência elástica, dor à pressão da interlinha articular, e, por
vezes, crepitações finas. As situações inflamatórias acompanham-se
tipicamente de rigidez matinal, sendo ao acordar que a dor e a impotência
funcional são mais intensas, aliviando com o movimento e à medida que o dia
avança; as queixas agravam com o repouso e com o calor. Pode ser classificada
como monoartrite (1 articulação), oligoartrite (2 a 4 articulações) ou

33
poliartrite (mais de 4 articulações). A sua descrição pode ainda incluir ritmo
migratório, aditivo, intermitente; carácter uni/bilateral, simétrico/assimétrico;
duração aguda/crónica. Pode ter diferentes etiologias dentro do espectro
inflamatório: auto-imune (ex.: Artrite Reumatóide, Lúpus Eritematoso Sistémico),
paraneoplásico, reactiva, infecciosa ou micro-cristalina.

● Artrose – alteração degenerativa da articulação, com artralgia de predomínio


vespertino, que melhora com o repouso e agrava com o movimento. Frequente
na população geral, afectando sobretudo as articulações de carga e as mãos. O
exame articular pode apresentar crepitações grosseiras, osteófitos e limitação
da mobilidade passiva e activa.

Figura 6: A: Artrose; B: Artrite. From American College of Rheumatology.

● Artralgia – dor numa articulação. Deve ser caracterizada quanto ao quadro de


instalação (abrupto, agudo, insidioso), variação circadiana, evolução (aumento
progressivo, mantida, intermitente), duração (minutos, horas, dias), factores de
alívio ou agravamento. Poderá ser classificada como inflamatória ou mecânica.
TIPO ARTRALGIA INFLAMATÓRIA MECÂNICA

VARIAÇÃO CIRCADIANA Agrava de Agrava no final do


noite/manhã dia

RIGIDEZ MATINAL >30 minutos < 30 minutos

VARIAÇÃO COM O MOVIMENTO Melhora Agrava

VARIAÇÃO COM O REPOUSO Agrava Melhora

VARIAÇÃO COM AUMENTO DA Agrava Melhora


TEMPERATURA

Tabela 1: Caracterização da artralgia.

● Rigidez matinal – rigidez articular e muscular dolorosa que surge ao acordar,


associada a processo inflamatório subjacente, dificultando a amplitude de
movimentos. Melhora gradualmente com o movimento. Pode durar de minutos a
várias horas. Habitualmente valorizável se superior a 30 minutos. Frequente na
Artrite Reumatóide e Espondilartropatias.

● Lombalgia – dor ao nível da coluna vertebral lombar, habitualmente abaixo da


12ª costela e acima dos glúteos, que pode irradiar para uma ou para as duas

34
coxas e que costuma durar mais de um dia. Considera-se “aguda” se a duração
for inferior a 6 semanas, “sub-aguda” se de 6 semanas a 3 meses, “crónica” se
durar mais de 3 meses. Pode ter diferentes etiologias, como osteofitose, prolapso
de disco intervertebral, infecção, espondilartropatia, fractura ou neoplasia.

● Nódulos de Bouchard – proeminências duras ou quísticas ao nível das


articulações interfalângicas proximais dos dedos das mãos ou dos pés,
provocadas pela calcificação da cartilagem articular. Presentes nos casos de
osteodistrofia; muito raramente, podem ser observados na Artrite Reumatóide.

● Nódulos de Heberden - protuberância nodular revestida de cartilagem que


surge ao nível das articulações interfalângicas distais dos dedos das mãos, que
podem ser bilaterais, associados a processos de artrose.

Figura 7: Nódulos de Heberden e Bouchard. (A: Priscilla D’Agostino; B: A. Poinier, M. Shoor, Healthwise).

● Dactilite – edema inflamatório do dedo, combinando sinovite, entesite,


tenossinovite e edema dos tecidos (“dedo em salsicha”). Associado tipicamente
à Artrite Psoriática, Artrite Reactiva, Espondilartropatia Indiferenciada e
Espondilite Anquilosante, embora nesta última menos frequente.

● Entesite – inflamação dolorosa das entesis (locais de inserção no osso dos


tendões, ligamentos, fáscia ou cápsulas articulares), tipicamente associada às
Espondilartropatias.

● Bursite – inflamação dolorosa de bolsa sinovial peri-articular, associada a


processos inflamatórios da articulação adjacente.

● Miosite – inflamação muscular, que se manifesta por fraqueza muscular, dor e


edema. Associado neste contexto de doenças auto-imunes à Dermatomiosite e
Polimiosite; a exclusão de síndromes paraneoplásicos associados é mandatária.

● Fadiga Muscular Proximal – associada a miopatias, caracteriza-se por


fraqueza das cadeias musculares das cinturas escapulo-umeral e pélvica.
Traduz-se por dificuldade em levantar-se de uma cadeira sem apoio das mãos,
subir escadas sem se apoiar no corrimão ou pentear-se. A manobra de Gowers

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costuma ser positiva. Presente na Polimialgia Reumática, Polimiosite e
Dermatomiosite.

● Condrite – inflamação da cartilagem, com edema e dor. Associada a algumas


doenças auto-imunes, como Policondrite Recidivante e Granulomatose com
Poliangeíte.

● Anquilose – termo habitualmente utilizado no contexto das Espondilartropatias,


que surge quando imobilização/fixação definitiva de uma articulação, com
ossificação dos ligamentos costo-condrais e articulações esterno-costais.
Clinicamente, verifica-se lordose lombar, hipercifose torácica e até hiperflexão
do pescoço, limitando gravemente o movimento em todos os planos.

● Espondilartrite – grupo heterogéneo de artropatias inflamatórias crónicas inter-


relacionadas que afectam sobretudo a coluna vertebral, mas também podem
incluir manifestações extra-axiais. Este grupo inclui a Espondilite Anquilosante,
a Artrite Reactiva, Espondilartropatia Enteropática e Espondilartropatia Juvenil.

ALTERAÇÕES VASCULARES E TROMBÓTICAS


Algumas das doenças auto-imunes deste manual estão associadas a inflamação da
parede dos vasos e a fenómenos trombóticos. Deste modo, podem surgir diferentes
manifestações, desde o espectro que compõe as síndromes acrais, às consequências
directas da isquémia distal dos membros, como tromboses nos diferentes segmentos
arteriais e venosos, cada uma delas com as suas características específicas, a abordar
no capítulo respectivo.

VASCULARES: fenómeno de Raynaud, acrocianose, acrorigose, livedo reticularis,


eritrocianose, eritromelalgia, telangiectasia, úlcera digital, pitting scars, esclerodactilia,
puffy fingers, esclerodermia, vasculite, arterite, eritema nodoso, edema.

TROMBÓTICAS: trombose venosa profunda, tromboflebite; semiologia de acidente


vascular cerebral e acidente isquémico transitório; semiologia de tromboses de outros
territórios arteriais e venosos.

● Fenómeno de Raynaud – alteração vascular que pode ocorrer ao nível dos


dedos das mãos e dos pés, e, mais raramente, orelhas e nariz. Caracteriza-se
por episódio vasoespástico que provoca a constrição dos vasos sanguíneos,
passando por 3 fases de coloração: palidez, por resposta ao espasmo das
arteríolas e subsequente colapso das artérias digitais; cianose, provocada pela
isquémia; e rubor, que surge com a vasodilatação da reperfusão (Figura 8).
Nesta fase final, pode também ocorrer sensação de dor latejante e parestesias.
Os episódios não são sempre trifásicos e a duração é variável, podendo ir de
minutos a horas. A definição de fenómeno de Raynaud (FR) primário ou
secundário pode ser redutora, se for considerado como único critério de

36
distinção a presença ou ausência de doença associada à síndrome acral. O FR
secundário está associado a doenças, como a Esclerose Sistémica, Lúpus
Eritematoso Sistémico, Doença Mista do Tecido Conjuntivo, Síndrome de
Sjögren, Dermatomiosite, Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido, entre outras
(Tabela 2). No entanto, alguns autores sugerem que o FR, mesmo sem estar
associado a outra doença, não poderá ser classificado como primário se estiver
relacionado com complicações clínicas (necrose ou gangrena), alterações
analíticas (elevação da velocidade de sedimentação ou presença de auto-
anticorpos) ou capilaroscópicas.

Figura 8: Fisiologia do Fenómeno de Raynaud (Cortesia Creager MA: Raynaud’s phenomenon. Med Illus 2:84, 1983)

Figura 9: A: Fenómeno de Raynaud (Gayle Porter, 2015); B: Acrocianose nos dedos dos pés (Waikato District Health
Board, 2015); C: Cianose Pavilhão Auricular (DermNet New Zeland).

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CAUSAS DE FENÓMENO DE RAYNAUD

IMUNOMEDIADAS: Esclerose Sistémica, Doença Mista do Tecido Conjuntivo, Lúpus Eritematoso


Sistémico, Síndrome de Sjögren, Artrite Reumatóide, Polimiosite, Dermatomiosite,
Crioglobulinémia, Arterites necrosantes, Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido

DOENÇA VASCULAR OBSTRUTIVA: aterosclerose, microembolias, tromboangeíte obliterante,


síndrome do desfiladeiro torácico, microangiopatia diabética

ENDOCRINOLÓGICAS: hiperparatiroidismo, acromegalia, feocromocitoma

NEUROLÓGICAS: polineuropatia

INFECÇÕES: Hepatites B e C, CMV, Parvovírus B19, Helicobacter pylori

FÁRMACOS: beta-bloqueantes, citostáticos, ciclosporina A, bromocriptina, sulfassalazina, IFN


alfa e beta, derivados da ergotamina

OCUPACIONAL: exposição ao frio e a vibração

INESPECÍFICAS: fístula arterio-venosa, síndrome do túnel cárpico, neoplasia, policitémia,


paraproteinémia
Tabela 2: Causas de Fenómeno de Raynaud.

● Acrocianose – disfunção vascular periférica, que consiste na descoloração


azulada da pele e mucosas devido à redução de oxihemoglobina nos vasos da
derme e hipoderme (Fig.9). É uma alteração persistente, sem a resposta trifásica
presente no fenómeno de Raynaud. As alterações tróficas e a ulceração são
raras. Pode estar associado à Granulomatose com Poliangeíte.

● Acrorigose – sensação permanente de mãos e pés frios, bilateralmente.

● Livedo Reticularis – manifestação cutânea provocada pela interrupção da


circulação das arteríolas superficiais da derme. A rede vascular surge com
coloração eritemato-violácea, com padrão reticular difuso, arborizado,
tipicamente irregular, atingindo tipicamente o tronco e membros. Pode distinguir-
se entre Livedo Reticularis (em que o padrão reticulado está completo, com anéis
regulares) ou Livedo Racemoso (em que o padrão reticulado se apresenta
incompleto, com anéis irregulares) – Figuras 10 e 11. Se a interrupção da
circulação for permanente, pode originar lesões purpúricas reticulares. Pode ser
provocado, por exemplo, pelo frio (ver Tabela 3). Está associado ao Lúpus
Eritematoso Sistémico, sobretudo se acompanhado de Síndrome do Anticorpo
Anti-fosfolípido, e na Esclerose Sistémica.

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Figura 10: Representação esquemática de Livedo Reticularis, Livedo Racemosa e Púrpura Retiforme (Sepp N. Other
vascular disorders. In: Bolognia JL, Jorizzo J, Rapini RP. Dermatology. London: Mosby; 2003. p. 1651-9.)

CAUSAS DE LIVEDO RETICULARIS

IMUNOMEDIADAS: Vasculites, Lúpus Eritematoso Sistémico, Síndrome do Anticorpo Anti-


fosfolípido, Esclerose Sistémica, Poliarterite Nodosa

DOENÇA VASCULAR OBSTRUTIVA: aterosclerose, microembolia (colesterol, mixoma auricular)

DEPOSIÇÃO DE MICROCRISTAIS: hipercalcémia com calcifilaxia, hiperoxalúria

HIPERCOAGULABILIDADE: SAAF, trombofilias

HEMOPATIAS: trombocitose, policitémia

ALTERAÇÃO DAS PROTEÍNAS PLASMÁTICAS: crioglubulinémia, criofibrinogenémia,


macroglobulinemia

OUTRAS: instabilidade emocional, frio, síndrome de Sneddon, iatrogenia

Tabela 3: Causas de Livedo Reticularis

Figura 11: A: Livedo Reticularis (Golderman SA, 2000); B: Livedo Racemosa (Jan R. Mekkes); C: Eritromelalgia (Khalid
F, et al. Case Reports in Medicine, 2012, Article ID 616125)

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● Eritrocianose – condição provocada pela exposição ao frio, frequente em
mulheres jovens, caracterizada por edema dos membros e aparecimento de
lesões eritemato-violáceas.

● Eritromelagia – disfunção vascular periférica associada a rubor, dor e edema


das extremidades, com sensação de queimadura (Figura 11). Pode ser pulsátil,
ou contínua; despoletada pelo calor, exercício ou traumatismos. A frequência
dos episódios é variável e cada um pode durar de minutos a dias. Inespecífica,
pode estar associada ao Lúpus Eritematoso Sistémico.

● Telangiectasias – lesões formadas por colecções de vasos dilatados. Podem


surgir ao nível da pele na face, tronco e mãos, nas mucosas e tracto
gastrointestinal. No contexto das doenças auto-imunes, surgem habitualmente
associadas à Esclerose Sistémica.

● Úlceras digitais – soluções de continuidade decorrentes de fenómeno de


Raynaud e isquémia prolongada, que surgem tipicamente na porção distal dos
dedos das mãos, com cicatrização lenta (Fig.12). Frequentemente associadas à
Esclerose Sistémica e Doença Mista do Tecido Conjuntivo. Podem evoluir para
gangrena, com necessidade de amputação. A caracterização das úlceras digitais
inclui a avaliação da profundidade, dimensões, leito da lesão, presença de
exsudado, bordos, lesões peri-lesionais, exposição óssea ou tendinosa e
extensão de dor.

Figura 12: A: Úlcera Digital (Abraham S and Steen V. Therapeutics and Risk Management, 2015); B: Ulceração e
isquémia digital com gangrena distal em vários dedos (Chatterjee S. Rheumatology and Immunology, 2014); C: Pitting
Scars (Mekkes JR, 2015).

● Pitting Scars – cicatrizes fibróticas ao nível da polpa dos dedos, que não
reabsorvem, correspondendo úlceras digitais prévias. Frequentes na Esclerose
Sistémica e Doença Mista do Tecido Conjuntivo.

● Esclerodactilia – espessamento da pele dos dedos das mãos e pés,


habitualmente observado nos doentes com Esclerose Sistémica. As alterações
cutâneas passam por 3 fases: edema (puffy fingers), enduração e atrofia.

● Puffy fingers – edema dos dedos associado a deposição de colagénio no tecido


celular subcutâneo (Fig.13). Associado a várias doenças auto-imunes, como a
Esclerose Sistémica, a Doença Mista do Tecido Conjuntivo ou a Artrite
Reumatóide.

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● Esclerodermia – designação de esclerose cutânea utilizada para descrever
doença com progressivo espessamento cutâneo e induração. Faz parte da
semiologia da Esclerose Sistémica.

Figura 13: A: Puffy fingers (Senthivel and Adebambo, Hospital Physician, 2009); B: Esclerodactilia (Cortesia Unidade de
Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral); C: Esclerodactilia (Mekkes, J.R.).

● Eritema Nodoso – erupção eritematosa, nodular, aguda, normalmente limitada


às superfícies extensoras das pernas. É admitido como reacção de
hipersensibilidade e surge associado a várias doenças sistémicas. No contexto
deste manual, destacamos a Doença de Behçet, a paniculite lúpica e a
esclerodermia, mas um diagnóstico diferencial exaustivo é obrigatório.

Figura 14: Eritema Nodoso (A: Cortesia Unidade de Doenças Auto-Imunes Hospital Curry Cabral; B: Schwartz and
Nervi, American Family Physician, 2007; C: Kay Shou-Mei et al, Color Atlas & Synopsis of Pediatric Dermatology,
McGraw/Hill, 2002).

ALTERAÇÕES HEMATOLÓGICAS
Nas doenças auto-imunes surgem com frequência alterações hematológicas, como
anemia, leucopénia/leucocitose ou trombocitopénia/trombocitose. Podem surgir em
simultâneo, como as citopénias que ocorrem no Lúpus Eritematoso Sistémico, por
exemplo, ou em separado. Por vezes, estas alterações são apenas reactivas, reflexo da
situação inflamatória sistémica inerente. Assim sendo, podem surgir achados
semiológicos inespecíficos como a púrpura, hepatomegália, esplenomegália; cansaço,
hipersudorese nocturna, perda ponderal, adenomegálias. Mais uma vez, o diagnóstico
diferencial impõe a exclusão de doenças linfoproliferativas e infecções latentes.

ALTERAÇÕES GASTROINTESTINAIS
O aparelho gastrointestinal (GI) também sofre acometimento por diferentes doenças
auto-imunes. Por exemplo, na Doença Inflamatória Intestinal (Doença de Crohn e Colite
Ulcerosa), podem surgir alterações ao longo do tracto GI: anorexia, úlceras orais, cólica
abdominal, diarreia, hematoquézias, dejecções de pus, rectorragias, tenesmo e falsas
vontades. Na Esclerose Sistémica, no contexto da dismotilidade

41
esofágica, podem surgir queixas de disfagia, pirose ou enfartamento precoce; na
Síndrome de Sjögren é frequente a xerostomia. Na Colangite Esclerosante pode surgir
icterícia, colúria, acolia e dor abdominal; na Hepatite Auto-imune pode surgir anorexia,
náuseas, vómitos e icterícia.

● Xerostomia – sensação de boca seca por diminuição de produção de saliva,


presente em >95% dos doentes com Síndrome de Sjögren. Permite aceleração
das infecções microbianas, com destruição precoce de peças dentárias. A língua
torna-se despapilada. Com a progressão da doença, surgem fissuras, queilite
angular, alterações do palato e infecções recorrentes da cavidade oral a Candida
albicans.

Figura 15: A: Língua despapilada por xerostomia (from medscape.com); B: Úlceras Orais na Doença de Crohn
(Rehberger et al. European Journal of Dermatology, 1998).

ALTERAÇÕES RENAIS E GÉNITO-URINÁRIAS


São várias as doenças auto-imunes (DAI) com envolvimento renal, como se verá no
capítulo deste manual intitulado “Doenças Auto-Imunes e Rim”. Dentre elas, destaca-
se o Lúpus Eritematoso Sistémico (Nefrite Lúpica), a Esclerose Sistémica (Crise Renal
Esclerodérmica), as Vasculites (como a Poliangeíte Microscópica) ou a Síndrome de
Sjögren. Deste envolvimento renal resultam diferentes tipos de lesões, como
Glomerulopatias ou tubulopatias, que se manifestam por hematúria macroscópica, urina
espumosa (associada a proteinúria), poliúria ou oligúria, síndrome nefrótico ou nefrítico.
Transversal a várias DAI, surge a disfunção eréctil; nalguns casos graves de Esclerose
Sistémica, a fimose.

ALTERAÇÕES OFTALMOLÓGICAS
As Doenças Auto-Imunes, enquanto doenças sistémicas, afectam com frequência o
globo ocular (Tabela 4). As manifestações mais frequentes são a uveíte, a esclerite, a
blefarite, a queratite, a xeroftalmia, a exoftalmia e a catarata.

● Uveíte – inflamação intra-ocular, definida como anterior, intermédia ou posterior,


consoante a localização no globo ocular. Será abordado mais aprofundadamente
no capítulo “Olho e Doenças Auto-Imunes”.

● Esclerite – inflamação da esclerótica, associada a várias doenças auto-imunes


(Lúpus Eritematoso Sistémico, Esclerose Sistémica, Granulomatose com
Poliangeíte, Doença de Behçet e Artrite Reumatóide), que pode ir de episclerite

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simples e indolor, a esclerite necrotizante destrutiva, dolorosa, que pode até
conduzir à cegueira.

● Blefarite – inflamação das pálpebras, pode ser anterior (inflamação da pele,


cílios e folículos ciliares) ou posterior (inflamação dos orifícios das glândulas de
Meibomian, pavimento tarsal e junção blefaro-conjuntival). Associada à
Síndrome de Sjögren.

● Queratite – inflamação da córnea. Provoca dor ocular com fotofobia, sensação


de corpo estranho, lacrimejo, hiperémia e diminuição da acuidade visual.
● Xeroftalmia – sensação de olho seco, com prurido e dor ocular, decorrente da
diminuição da produção de lágrima pela glândula lacrimal. Esta irritação crónica
leva à destruição da córnea e do epitélio da conjuntiva bulbar
(Queratoconjuntivite Seca). Este sintoma está associado à Síndrome de Sjögren.
As lágrimas têm também efeito anti-microbiano, pelo que estes doentes estão
mais susceptíveis a infecções, como blefarite, queratite e conjuntivite.

MANIFESTAÇÕES OCULARES DAS DOENÇAS AUTO-IMUNES


Artrite Reumatóide Queratoconjuntivite seca, esclerite, episclerite,
queratite ulcerosa, coroidite, vasculite retiniana,
descolamento da retina, edema macular
Doença de Behçet Uveíte, perda de visão
Síndrome de Sjögren Queratoconjuntivite seca
Espondilite Anquilosante Uveíte
Espondilartrite Enteropática Uveíte, episclerite, queratite ulcerosa periférica
Artrite Psoriática Uveíte, conjuntivite, queratite
Lúpus Eritematoso Sistémico Queratoconjuntivite seca, conjuntivite, uveíte, esclerite,
queratite, hemorragia retiniana, vasculite retiniana,
retinopatia proliferativa, nevrite óptica, neuropatia
óptica isquémica, hemianópsia, amaurose,
oftalmoplegia internuclear, alterações pupilares,
alterações oculomotoras, alucinações visuais
Esclerose Múltipla Aferente: nevrite óptica, neurite retrobulbar, alterações
de campos visuais
Eferente: oftalmoplegia internuclear, dismetria,
nistagmo
Arterite de Células Gigantes Amaurose fugaz, diplopia, perda de visão
Doença de Graves Proptose/exoftalmia, retracção palpebral, queratite,
diminuição da acuidade visual, alteração dos campos
visuais, alteração da visão cromática
Miastenia Gravis Diplopia, ptose palpebral
Tabela 4: Manifestações oculares das Doenças Auto-Imunes. (Adaptado de Patel S, et al, 2002)

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ALTERAÇÕES DO SISTEMA NERVOSO
As alterações do Sistema Nervoso (SN) associadas às DAI serão alvo de um capítulo
próprio, mais adiante neste manual. O SN pode ser afectado por doenças sistémicas ou
doenças específicas de orgão, sendo que há semiologia transversal a estas diferentes
patologias. A Esclerose Múltipla, enquanto síndrome desmielinizante crónica, manifesta-
se por desequilíbrio, alteração da marcha, fadiga muscular, incontinência, diplopia,
alteração da acuidade visual ou alterações de memória. A Miastenia Gravis, que atinge
o músculo esquelético, provoca miopatia, que se pode repercutir em dispneia, disfagia,
disartria, parésia muscular, cansaço. O Lúpus Eritematoso Sistémico pode atingir o
sistema nervoso central (SNC) (alterações cognitivas, psicose, convulsões, mielopatia
transversa, coreia, mielite); a Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido pode provocar
acidentes vasculares cerebrais em qualquer segmento arterial ou venoso do SNC; as
vasculites, enquanto grupo heterogéneo, podem atingir o sistema nervoso central ou
periférico; a Síndrome de Sjögren está associada a disautonomia secundária.

ALTERAÇÕES PSIQUIÁTRICAS
As doenças que afectam o sistema nervoso central podem ter repercussão no
comportamento dos doentes. Por exemplo, o Lúpus Eritematoso Sistémico está
associado a episódios psicóticos. No entanto, os doentes com DAI têm habitualmente
queixas de ansiedade, depressão, irritabilidade e perturbação do sono. Alertamos para
um efeito secundário a doses elevadas de corticoterapia, a mania, sendo importante o
reconhecimento e intervenção precoces.

ALTERAÇÕES ORL E RESPIRATÓRIAS


O atingimento do aparelho respiratório superior é afectado sobretudo pelas vasculites:
a Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte está associada a quadros de sinusite
crónica, polipose nasal e hiperreactividade brônquica; a Granulomatose com Poliangeíte
pode apresentar deformação da pirâmide nasal em sela, perfuração do septo nasal,
obstrução nasal e rinorreia.
O atingimento do aparelho respiratório inferior ocorre sobretudo à custa de doenças
como a Artrite Reumatóide (derrame pleural, bronquiectasias, pneumonite intersticial
difusa, fibrose pulmonar, hipertensão pulmonar), Síndrome de Sjögren (tosse,
bronquite), Esclerose Sistémica (pneumonite intersticial difusa, hipertensão pulmonar,
fibrose pulmonar), Polimiosite/Dermatomiosite (Pneumonite intersticial difusa), Lúpus
Eritematoso Sistémico (pleurisia, pneumonite, hemorragia intra-alveolar, hipertensão
pulmonar), Doença de Behçet (pseudo-aneurisma das artérias pulmonares), Síndrome
de Goodpasture (hemorragia intra-alveolar), Poliangeíte Microscópica (hemorragia intra-
alveolar) e Granulomatose com Poliangeíte (vasculite necrotizante dos vasos de médio
e pequeno calibre). Assim sendo, os achados semiológicos vão corresponder a tosse,
hemóptises, dispneia, toracalgia, derrame pleural e, em situações graves, insuficiência
respiratória com falência ventilatória.

ALTERAÇÕES CARDÍACAS
O coração pode ser afectado por várias formas: fibrose miocárdica (Esclerose
Sistémica), provocando alterações do ritmo cardíaco, com palpitações, síncope,

44
taquicardia e mesmo assistolia; enfarte agudo do miocárdio (Síndrome do Anticorpo
Anti-fosfolípido, Vasculites), com pré-cordialgia, hipersudorese, náuseas, insuficiência
cardíaca; envolvimento de serosas, nomeadamente, o pericárdio (Lúpus Eritematoso
Sistémico, Síndrome de Sjögren, Artrite Reumatóide), com toracalgia, cansaço e
dispneia; endocardite de Libman-Sacks (Lúpus Eritematoso Sistémico). Recentemente
tem sido destacada a relação entre a inflamação sistémica e a aterosclerose coronária,
situação que se poderá repercutir posteriormente em eventos isquémicos agudos.

ALTERAÇÕES ENDOCRINOLÓGICAS
A associação entre doenças auto-imunes (DAI) é frequente, em particular, a Tiroidite de
Hashimoto associada, por exemplo, ao Lúpus Eritematoso Sistémico. As DAI
endocrinológicas raramente surgem em simultâneo e a sua semiologia é importante
para realizar o diagnóstico (intolerância ao frio ou ao calor, alterações do trânsito
intestinal, do peso ou do ritmo de sono); são exemplos a Doença de Graves e a Diabetes
tipo 1, cada uma com as suas manifestações particulares. Será pertinente destacar
ainda a síndrome de Cushing secundária à corticoterapia, terapêutica habitualmente
utilizada nas DAI.

ALTERAÇÕES OBSTÉTRICAS
As complicações obstétricas podem surgir sobretudo associadas ao Lúpus Eritematoso
Sistémico (eclâmpsia, pré-eclâmpsia, aborto espontâneo, atraso de crescimento intra-
uterino), à Síndrome Anticorpo Anti-fosfolípido (morte fetal in útero, abortos de
repetição) e à Síndrome de Sjögren (malformações cardíacas congénitas).

Conclusão
As Doenças Auto-Imunes são doenças frequentes e apresentam sintomas por vezes
inespecíficos, comuns a outras doenças sistémicas ou doenças específicas de órgão. A
familiaridade com a semiologia das DAI pode permitir um diagnóstico precoce com um
número limitado de sinais ou sintomas, agilizando a abordagem terapêutica e evitando
complicações por vezes letais.

A Consulta Externa e o Serviço de Urgência são locais onde é fundamental manter um


elevado nível de suspeição clínica, dada a oportunidade de alterar a evolução natural
de doenças graves e sistémicas. Não obstante, nos doentes internados, uma anamnese
e exame objectivo rigoroso e cuidado permitem também ampliar o espectro do
diagnóstico diferencial.

SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- Semiologia frequente de Doenças auto-imunes: úlceras orais, fenómeno de
Raynaud, livedo reticularis, artrite, rigidez matinal.
- Semiologia muito sugestiva de algumas DAI: pápulas de Gottron, patergia,
vespertílio, esclerodactilia, heliotropo, úlceras digitais, uveítes.

45
TAKE HOME MESSAGES
A mesma doença auto-imune pode apresentar semiologia relativa a diferentes
órgãos e sistemas.
Úlceras orais, vespertílio, calcinose, pápulas de Gottron e heliotropo são
manifestações cutâneas habituais nas DAI.
Artrite, rigidez matinal, dactilite, entesite, miosite e espondilartrite são
manifestações musculoesqueléticas frequentes.
Fenómeno de Raynaud, livedo reticularis, telangiectasias e úlceras digitais
compõem manifestações vasculares e trombóticas.
Uveíte e xeroftalmia são manifestações oftalmológicas de DAI.

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46
3. LABORATÓRIO NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES

Introdução
A avaliação laboratorial é fundamental no diagnóstico e acompanhamento das doenças
autoimunes, mas é importante conhecer os fundamentos e limitações dos testes que
utilizamos, para escolher o que pedimos e interpretar os resultados de forma adequada.

Parte 1 – TESTES INESPECÍFICOS


Para confirmar um estado inflamatório utilizamos a proteína C reactiva (PCR), a
velocidade de sedimentação (VS) e a electroforese de proteínas plasmáticas (EPP).
O doseamento de PCR é utilizado de forma generalizada para confirmar um estado
inflamatório, principalmente na suspeita de infecção. Por vezes, justifica interpretar o
resultado conjunto de PCR e VS. A PCR tem um pico e descida mais rápidos, mas a VS
mantém-se positiva mais tempo. Por exemplo, num surto de Lúpus é frequente haver
uma VS elevada com PCR normal. Noutras ocasiões, a VS e a PCR são normais, mas
existe aumento da banda gama na EPP (hipergamaglobulinémia).
No acompanhamento de Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) e em algumas outras
doenças mediadas por imunocomplexos em circulação (ex: crioglobulinémia), utilizamos
testes de complemento para avaliar a actividade de doença: C3, C4 e CH50. Em caso
de flare, existe aumento de imunocomplexos em circulação, com consumo de
complemento, pelo que o valor dos testes de complemento baixa. Valores elevados de
complemento estão presentes em algumas situações inflamatórias, mas são pouco
informativos.

O que é a Velocidade de Sedimentação?


Quando colocamos um tubo de sangue venoso na posição vertical, os eritrócitos tendem
a mover-se em direcção ao fundo. A VS mede a velocidade de descida dos eritrócitos
(mm/h) e aumenta quando existe aumento de proteínas de fase aguda (principalmente
PCR e fibrinogénio) – ver tabela 1. Existe um aumento progressivo da VS com a idade,
sendo os valores habitualmente mais elevados nas mulheres. Em 1983 Miller (Br Med
J) sugeriu a seguinte forma de encontrar os valores normais: masculino = idade:2;
feminino = (idade+10):2.

OUTRAS CAUSAS DE AUMENTO DE VS (ALÉM DE SÍNDROME INFLAMATÓRIA)


Infecções crónicas (ex: erisipela, tuberculose), endocardite, osteomielite, abcessos, pancreatite
aguda, hipergamaglobulinémia, síndrome nefrótica (hipoalbuminémia), doença renal crónica,
anemia, gravidez, dislipidémia, doença tiroideia, aumento de fibrinogénio.
Tabela 1: Outras causas de aumento da Velocidade de Sedimentação, para além de síndrome inflamatória – inclui
doenças auto-imunes, linfoproliferativas, auto-inflamatórias, neoplasias.

O que é a Electroforese de Proteínas?


A EPP um método utilizado para quantificar as proteínas do plasma, distinguindo 5
grupos diferentes (bandas). As proteínas são colocadas numa base sólida e é aplicado
um diferencial eléctrico entre os dois topos, deslocando-se entre eles de acordo com a

47
sua carga eléctrica e massa molecular, ficando então divididas em bandas. O resultado
apresenta-se com um gráfico acompanhado do valor de cada banda: albumina, alpha 1,
alpha 2, beta e gamma – figura 1.

Figura 1: Electroforese de proteínas. (Fochesatto Filho L, Barros E. Medicina Interna na Prática Clínica. Porto Alegre:
Artmed; 2013.)

CAUSAS DE HIPERGAMAGLOBULINÉMIAS POLICLONAIS


DOENÇAS AUTOIMUNES
Lúpus Eritematoso Sistémico
Síndrome Sjögren
Artrite Reumatóide
Dermatomiosite
Crioglobulinémia
Sarcoidose
Esclerose Sistémica
DOENÇA HEPÁTICA
Hepatite Auto-imune ou Viral (VHB, VHC)
Cirrose Biliar Primária
Doença Hepática Alcoólica
DOENÇAS INFECCIOSAS
Virus: citomegalovirus, VIH, Epstein Barr
Infecções bacterianas prolongadas
Tuberculose
Micoses sistémicas
Parasitas: Kala-azar, Paludismo
DOENÇAS HEMATOLÓGICAS
Linfoma
Mieloma Múltiplo (monoclonal)
OUTRAS CAUSAS
Sarcoidose
Amiloidose
Tabela 2: Causas de hipergamaglobulinémia policlonais.

48
Existem alguns padrões gráficos característicos de certas doenças, como os picos
monoclonais na banda gamma, sugestivos de doença linfoproliferativa. As doenças
auto-imunes cursam normalmente com picos gamma policlonais – tabela 2.

O que é o Complemento?
O sistema do complemento é composto por mais de 20 proteínas, de membrana e
solúveis, que participam em vários mecanismos imunes. A maioria destas proteínas
estão inactivas, mas, em resposta ao reconhecimento molecular de componentes de
determinados agentes patogénicos, tornam-se sequencialmente activadas, por via
enzimática – cascata do complemento. O complemento pode ser activado por 3 vias
diferentes: a via clássica, a via alternativa e a via da manose ligada à lectina - ver figura
2. Cada via provoca a activação de C3, fragmentando-a em duas porções: C3b, de
maiores dimensões, que actua como opsonina, e C3a, pequeno fragmento que se
comporta como anafilotoxina, promovendo a inflamação. A fracção C3 activada activa a
via lítica, que provoca rotura na membrana celular de células e microorganismos. A
fracção C5a, também formada neste processo e que compõe os complexos de ataque
membranar, atrai macrófagos e neutrófilos e activa mastócitos.

Figura 2: Vias do complemento. (In Imunologia Celular e Molecular – 7ª Edição, Abbas & Lischtman & Pillai, Elsevier.
ISBN: 9788535247442)

49
O sistema do complemento desempenha um papel fundamental na inflamação e defesa
em infecções bacterianas. A cascata do complemento também pode ser activada
durante reacções transfusionais de sangue incompatível e durante a resposta imunitária
prejudicial que acompanha algumas doenças auto-imunes. Os défices de fracções ou
inibidores do complemento pode levar a várias doenças específicas, o que reflecte bem
o seu papel protector – ver tabela 3.

DÉFICE DE COMPLEMENTO DOENÇA


C3 e Factor B Infecções bacterianas graves
C5, C6, C7, C8, C9 Infecções a Neisseria graves
C1, C2, C3, C4 LES, glomerulonefrites, polimiosite
Inibidores de C1 Angioedema hereditário
Tabela 3: Alguns défices de complemento e doenças associadas.

Parte 2 – TESTES ESPECÍFICOS – AUTOANTICORPOS


Existem múltiplos testes de auto-anticorpos que nos ajudam a identificar doenças, e
alguns deles são importantes também na avaliação da actividade.

O que é um anticorpo?
Em primeiro lugar, importa explicar o que é um anticorpo, uma vez que é a base da
resposta imunitária humoral ou adquirida. Um anticorpo é uma glicoproteína produzida
por linfócitos B, que tem como função ligar-se a uma molécula específica, designada
por antigénio. Ao ligar-se ao seu alvo (antigénio), vai direcionar a restante resposta
imunitária para a estrutura a que pertence. Esta resposta pode inclui o sistema do
complemento e células efectoras, como os macrófagos.
O anticorpo é composto por duas regiões: a região Fab (antigen-biding fragment), de
estrutura variável, responsável pelo reconhecimento de antigénios, e a região Fc
(constant fragment), de estrutura preservada, e que permite aos anticorpos interagir com
o restante sistema imunitário – ver figura 3. Os anticorpos podem ser agrupados de
acordo com a sua região Fc em 5 classes, IgA, IgD, IgE, IgG, IgM, cada uma
desencadeando uma resposta imunitária distinta – ver tabela 4.

Figura 3: Esquema da imunoglobulina/anticorpo e dos diferentes isótopos. (In Douglas F Fix, 2016)

50
ISÓTIPO DE
FUNÇÃO EFECTORA ESPECÍFICA DO ISÓTIPO
IMUNOGLOBULINA
Opsonização de antigénios para fagocitose por macrófagos e neutrófilos
Activação da via clássica do complemento
Citotoxicidade mediada por células, dependente de anticorpos, mediada
IgG por célula natural killer
Imunidade neonatal: transferência de anticorpos maternos através da
placenta e do intestino
Inibição da activação dos linfócitos B por mecanismo de feedback
Activação da via clássica do complemento
IgM
Receptor de antigénio de linfócitos B naïve
Imunidade de mucosas: secreção de IgA para o lúmen dos tractos
IgA gastrointestinal e respiratório
IgE Desgranulação de mastócitos (reacções de hipersensibilidade imediata)
IgD Receptor de antigénio de linfócitos B naïve
Tabela 4: Funções efectoras das imunoglobulinas, consoante o isótipo. Ig: imunoglobulina. (Adaptado de In Imunologia
Celular e Molecular – 7ª Edição, Abbas & Lischtman & Pillai, Elsevier. ISBN: 9788535247442)

A variabilidade dos anticorpos provém da estrutura variável da região Fab. Através de


um processo de recombinação dos genes que codificam esta região, o sistema
imunitário pode reconhecer até 109 tipos de antigénios distintos, conferindo-lhe uma
grande adaptabilidade.

O que é um auto-anticorpo?
Um auto-anticorpo é um anticorpo cujo antigénio é uma molécula do próprio organismo
(endógena), que pode desencadear uma resposta imunitária desnecessária ou
prejudicial. A presença de auto-anticorpos não é sinónimo de doença auto-imune, pois
existe uma percentagem variável de indivíduos saudáveis nos quais é possível detectá-
los. Podem ser divididos em três grandes grupos, de acordo com o alvo:
1. Antigénio presente na maioria das células, como os anticorpos anti-
nucleares (ANA)
2. Antigénio presente em células específicas, como os anticorpos anti-
citoplasma de neutrófilos (ANCA)
3. Antigénio circulante fora das células, como o factor reumatóide (FR) ou os
anticorpos anti-fosfolípido (AAF).

Como detetamos a presença de autoanticorpos?


As principais técnicas laboratoriais para detecção de autoanticorpos são (figura 4):
- Imunofluorescência Indirecta (IFI)
- ELISA (Enzyme-linked immunosorbent assay)
- Immunoblot (imuno-transferência).

O princípio geral é comum a todas as técnicas: o soro a ser testado é colocado em


contacto com um ou mais antigénios escolhidos, sendo seguidamente retirado e
pesquisada a presença de complexo anticorpo-antigénio.

51
Figura 4 – Técnicas para identificar anticorpos. A: imunofluorescência indirecta, 2: ELISA, 3: Immunoblot..(A: Pilas B.
Flow Citometry Facility, Roy J Carver Biotechnology Center; B: MBL International Corporation; C: Bridges A, Ann Intern
Med. 1993;118(12):929-936.)

Na IFI, coloca-se o soro do doente em contacto com células e os auto-anticorpos ligam-


se aos seus alvos celulares. Depois de remover o soro adicionam-se anticorpos anti-
imunoglobulina marcados por imunofluorescência (cor). As células são examinadas ao
microscópio e podemos detectar a presença de autoanticorpos e o seu padrão de
fixação. Podemos quantificar o valor do auto-anticorpo de forma grosseira pelo método
de diluições sucessivas. O título é inversamente proporcional à concentração de
anticorpos. Por exemplo, um soro com um título de 1/320 tem uma concentração menor
de anticorpos que um soro com um título de 1/640.

Figura 2 – Esquema que relaciona padrão de Imunofluorescência Indirecta com Immunoblot na pesquisa de ANA (In
http://www.euroimmunblog.com/23-at-one-swoop/).

O tipo de células utilizada depende do autoanticorpo que pretendemos estudar. Para


detectar ANA são utilizadas células HEp2, uma linhagem de células tumorais com
núcleos grandes, enquanto que na detecção de anticorpos anti-DNA de cadeia dupla
(double strand – dsDNA, são utilizadas células de Chritidia luciliae, células não
humanas, que têm elevada concentração de dsDNA no citoplasma e ausência de outros
antigénios humanos.
Na técnica de ELISA utilizam-se placas com o antigénio escolhido em vez de células. O
método é semelhante ao IFI, mas acrescenta-se uma enzima que catalisa uma

52
reacção cromática no meio de cultura, permitindo uma quantificação da quantidade de
auto-anticorpo mais rigorosa.
No Immunoblot é utilizada uma membrana de nitrocelulose que permite impregnar vários
antigénios a testar em simultâneo (figura 5). A ligação de autoanticorpos é detectada
através de uma reacção cromática semelhante ao ELISA, mas sem permitir quantificar
a sua concentração.
Em resumo, as principais diferenças entre estas técnicas é que a IFI é a técnica mais
sensível, uma vez que se utilizam células inteiras com todos os antigénios “in vivo” – em
ELISA e Immunoblot é necessário retirar os antigénios das células e colocar em
placas/membranas, ou seja, tem de se escolher/conhecer os antigénios que se pretende
analisar; o Immunoblot permite testar vários anticorpos ao mesmo tempo - em ELISA
testa-se um anticorpo de cada vez, mas pode ser quantificado.

O que são os anticorpos antinucleares (ANA)?


Dentro dos autoanticorpos, designamos como ANA os que têm como alvo antigénios
presentes no núcleo celular de todas (ou quase) as células do organismo. Existem
inúmeros ANAs, todos dirigidos a antigénios diferentes, sendo que nem todos têm um
significado patológico claro.

Figura 3: Padrões de imunofluorescência de anticorpos anti-nucleares: homogéneo (a), mosqueado (b), fino granular (c),
nucleolar (d) e centrómero (e). Podem também ser reconhecidos padrões de membrana nuclear (f), citoplasmático
(g) ou negativos/inespecíficos (h). (in Krause et al. April 2015 Lúpus 24 (4-5); 516-29.)

A IFI é utilizada para detectar a presença de ANAs e descobrir a sua natureza, através
do título e da análise do padrão de imunofluorescência resultante (figura 3). Dada a sua
elevada sensibilidade, a probabilidade de ocorrerem falsos positivos é elevada, sendo
necessária confirmação dos seus resultados, através da pesquisa de autoanticorpos
específicos por ELISA, immunoblot ou outra técnica.
A análise do padrão de IFI é importante para orientar a pesquisa de outros
autoanticorpos subjacentes. Dos padrões de imunofluorescência existentes destacam-
se cinco: homogéneo, fino granular, nucleolar, citoplasmático e centrómero. As doenças
e os antigénios associados a cada padrão de IFI são apresentados na tabela 5.

53
Quando devem ser pedidos os ANA?
Os ANA devem ser pedidos em doentes com apresentações clínicas sugestivas de
algumas doenças auto-imunes, como as doenças do grupo das conectivites: Lúpus
Eritematoso Sistémico, Esclerose Sistémica, Síndrome de Sjögren e Miosites
inflamatórias. Geralmente consideram-se títulos positivos resultados com valor igual ou
superior a 1:160.
Apesar da sua importância no diagnóstico, a pesquisa de ANA deve ser criteriosa e a
sua interpretação cuidadosa, considerando sempre a possibilidade de falsos positivos.
Os ANA estão presentes em adultos saudáveis, sendo que a sua prevalência aumenta
com a idade (3-15% população geral, 10-37% população acima 65 anos). A presença
de ANA pode ainda ser provocada por infecções virais, neoplasias ou fármacos,
incluindo estatinas, beta-bloqueantes, inibidores da enzima conversora da angiotensina
e anti-inflamatórios não-esteróides. Dada a prevalência relativamente elevada de ANAs
em indivíduos saudáveis, o seu título ajuda-nos a valorizar a sua presença.

PADRÃO DE ANA ANTIGÉNIO ASSOCIAÇÃO


dsDNA LES
HOMOGÉNEO
Histonas AR
Sm SSj
MOSQUEADO OU SSA(Ro)/SSB(La) DMTC
FINO GRANULAR RNP LES
Scl-70 ES
LES
CENTRÓMERO Centrómero
EScl
NUCLEOLAR PM/Scl ES
tRNA sintetase, Jo1 Miosites
CITOPLASMATICO Mitocôndria CBP
Musculo liso HAI
Tabela 5: Padrões de imunofluorescência dos ANA, anticorpos e doenças auto-imunes a que estão associados. ANA:
anticorpo anti-nuclear.AR: artrite reumatóide, CBP: cirrose biliar primária, DMTC: doença mista do tecido conjuntivo, ES:
esclerose sistémica, EScl: esclerose sistémica cutânea limitada, HAI: hepatite auto-imune, SSj: síndrome de Sjögren.

Outros autoanticorpos
Os ANA são dirigidos a antigénios nucleares presentes em todas as células do
organismo e para a sua detecção utilizamos as células HEp2 para melhorar a
capacidade do teste. Como explicado anteriormente, existem auto-anticorpos contra
antigénios de células específicas ou contra antigénios em circulação. Um exemplo de
antigénio circulante é o Factor Reumatóide, que é dirigido à fracção de Fc de
imunoglobulinas IgG. É positivo na Artrite Reumatóide, mas igualmente em outras
situações quando existe aumento de IgGs em circulação, como hipergamaglobulinémias
policlonais, síndrome de Sjögren ou LES – ver Anexo I.

54
EXEMPLOS DE OUTROS AUTO-ANTICORPOS
CONTRA ANTIGÉNIOS DE CÉLULAS ESPECÍFICAS
ANCA
Anti-tiroideus
CONTRA ANTIGÉNIOS EM CIRCULAÇÃO
Factor Reumatóide, anti-CCP
Tabela 6: Outros auto-anticorpos.

RESUMO - AUTOANTICORPOS IMPORTANTES NA CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS


LÚPUS ERITEMATOSO SISTÉMICO CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO SLICC 2012
ANA
Anti-dsDNA
Anti-Sm
Anti-fosfolipidos (anticoagulante lúpico*, anti-cardiolipina, anti-b2glicoproteina1)
SÍNDROME DE SJÖGREN CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO ACR/EULAR 2016
Anti-SSA(Ro)
ESCLEROSE SISTÉMICA CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO ACR/EULAR 2013
Anti-centrómero
Anti-topoisomerase I (anti-Scl70)
Anti-RNA polimerase III
ARTRITE REUMATÓIDE CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO ACR/EULAR 2010
FR
Anti-CCP
VASCULITES ANCA
c-ANCA (anti-PR3)
p-ANCA (anti-MPO)
Tabela 7: Resumo de auto-anticorpos importantes na classificação de doenças. SLICC Systemic Lúpus International
Collaborating Clinics; ACR American College Rheumatology: EULAR European League Against Rheumatism.
*anticoagulante lúpico – teste de coagulação, não é auto-anticorpo.

Parte 3 – TESTES GENÉTICOS


O complexo major de histocompatibilidade humano, HLA, é um conjunto de proteínas
de membrana presente em todas as células e que tem funções importantes,
nomeadamente na apresentação de antigénios. Este sistema tem variabilidade
significativa na população, que designamos por polimorfismos genéticos. Cada indivíduo
possui um de múltiplos polimorfismos possíveis. Alguns polimorfismos têm associação
com doenças específicas. Por exemplo, o polimorfismo HLA B27 é raro na população
geral, mas está presente frequentemente em doentes com espondilite anquilosante.
Os testes de polimorfismo, como o HLA B27, são genéticos e por isso o resultado não
varia com o tempo, quer sejam positivos ou negativos.

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56
4. RADIOLOGIA NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES

Introdução
No passado, a imagiologia nas doenças auto-imunes era confinada à radiografia das
mãos e das articulações sacroilíacas, ajudando a realizar o diagnóstico e a monitorizar
a actividade da doença. Nos últimos anos, novas técnicas de diagnóstico e
monitorização têm surgido, permitindo um diagnóstico mais precoce e rápida instituição
de tratamento tentando evitar, assim, progressão da doença.

MEDICINA
RX ECOGRAFIA RMN TC
NUCLEAR
Artrite Reumatóide - + + + -

Espondilartropatia - +- ++ + +-
Inflamatória
Artrite Gotosa +- +- +- - +-
Tabela 1: Utilidade das várias modalidades de imagem para diagnóstico precoce de patologia articular inflamatória (-
geralmente não útil, +- pode ser ou pode não ser útil dependendo das circunstâncias clínicas, + geralmente método de
escolha)2. RX: Radiograma, RMN: Ressonância Magnética Nuclear, TC: Tomografia Computorizada.

Radiografia
A radiografia convencional tem sido tradicionalmente o marcador para o diagnóstico e a
modificação terapêutica de doença nas artropatias inflamatórias e degenerativas. No
entanto, nos estados iniciais de artrite, os aspectos radiológicos não são específicos ou
estão ausentes. Se o exame clínico sugerir um diagnóstico, um radiograma normal não
será um exame adequado para o excluir.

A artrite é uma condição potencialmente grave, requerendo intervenção apropriada e


adequada no tempo, idealmente antes de alterações estruturais permanentes se
instalarem, de modo a que estas possam ser prevenidas. No momento em que são
óbvias as alterações radiológicas, já terá passado o tempo ideal para o tratamento.

Figura 1: A: Características radiológicas de artrite inflamatória – fase incial – o rx mostra osteopénia periarticular, que
apenas tme significado em combinaçãoo com sinais clínicos. O espaço interarticular está preservado. (de
Rheumatology in Practice) B: Radiograma de artrite inicial (Cortesia Behrang Amini MD/PhD).

57
As manifestações mais precoces da artrite reumatóide são o edema de tecidos moles
periarticular, seguido de osteopénia e erosões ósseas (Fig.1). Na doença precoce, o
espaço interarticular pode estar aumentado devido ao derrame articular e sinovite. Em
estados mais tardios de destruição articular, pode ocorrer desalinhamento ósseo e
destruição das epífises.

Em estados mais avançados de artrite, a radiografia pode mostrar:

• Perda simétrica de espaço interarticular – em oposição à perda assimétrica na


osteoartrite;
• Erosões ósseas – típicas de artrite reumatóide e psoriática, mas não geralmente
encontradas noutros tipos de artrite crónica; o sinal mais precoce de erosão é uma
subtil perda de córtex ósseo, visto antes de outras erosões ósseas mais óbvias
ocorrerem;
• Lesões líticas peri-articulares (podem aparecer na gota);
• Destruição quase total das epífises (por exemplo, na artrite séptica não tratada);
• Desvios de eixo e subluxações em artropatias deformantes;
• Características de osteoartrite (secundária, nestes casos) podem aparecer em
estados avançados de doença, mesmo depois do processo inflamatório estar
controlado.

Deve ser salientado que em muitos tipos de artrite, as alterações são tipicamente não
erosivas e não deformantes; é o caso do Lúpus Eritematoso Sistémico e de outras
doenças auto-imunes do tecido conjuntivo (excluindo a artrite reumatóide), artrite
reactiva, artrite pós-viral e artrite enteropática. Nestes casos, não se irão encontrar
características radiológicas tardias, mas o tratamento precoce é igualmente importante
– não só para evitar sofrimento desnecessário dos doentes, mas também porque o
processo inflamatório pode levar a laxidão marcada dos ligamentos, com resultante
instabilidade, sub-luxações e perda de função.

Figura 2.1: Características radiológicas de dano estrutural em artrite inflamatória; A:perda uniforme de espaço
interarticular, B: erosões, (de Rheumatology in Practice)

58
Figura 2.2: Características radiológicas de dano estrutural em artrite inflamatória; C: erosões e perda total de espaço
interarticular, com desorganização de articulações e anquilose, D: erosão. (de Rheumatology in Practice)

No que toca ao grupo de espondilartropatias, é de referir que as radiografias podem


mostrar evidência de erosões ósseas e/ou outras alterações ósseas reactivas, sendo a
anquilose de coluna a forma mais extrema de alteração óssea reactiva (Fig.3). Embora
seja, obviamente, importante detectar estes achados e sugerir este diagnóstico, as
radiografias têm um papel limitado no diagnóstico de espondilartropatia inflamatória
precoce devido à elevada taxa de falsos negativos.

ARTICULAÇÕES
CARACTERÍSTICAS
FREQUENTEMENTE
RADIOLÓGICAS
ENVOLVIDAS
1ª carpo-metacárpica (CMC),
Osteófitos, diminuição entrelinha
IFD, IFP, joelho, anca, MTF,
OSTEOARTRITE articular, quistos ósseos,
apófises da coluna cervical e
esclerose lombar
Articulações pequenas e
Edema tecidos moles,
grandes periféricas com
ARTRITE REUMATÓIDE osteoporose para-articular,
excepção da 1ªCMC e IFD;
(AR) diminuição entrelinha articular,
pode ocorrer subluxação da
erosões marginais C1-C2
Semelhante a AR, exceptuando
que as IFD são mais
ARTRITE PSORIÁTICA Dactilite, reacção perióstea,
frequentemente envolvidas e a
(AP) reabsorção óssea
osteoporose para-articular é
menos frequente
Grande erosão em “mordedura MTF, tornozelo incluindo
ARTRITE GOTOSA
de rato” médio-tarso, joelho

ESPONDILITE
(alterações da coluna
Sacroileíte, sindesmófitos,
também podem ser
rectificação da coluna cervical, Sacroilíacas, coluna lombar
vistas na Artrite de
coluna “em bambu”
Reiter, AP e artrite
enteropática)

Tabela 2: Características radiológicas e articulações envolvidas em doenças reumatológicas comuns 4 IFD: inter-
falângica distal, IFP: inter-falângica proximal, MTF. Metatarso-falângica.

59
Fig. 3: Alterações detectáveis em radiograma de coluna vertebral na Espondilite Anquilosante. A: Radiograma lateral da
coluna lombar, com sindesmófitos em L3, L5 e S1 (setas) (Radiographics 25(3):559-69; discussion 569-70 · May 2005),
B: Radiograma lateral da coluna lombar, demonstrando sindesmófitos seguidos, com rectificação dos corpos vertebrais,
formando a chamada “coluna em bambu” (Jean Schils, MD, Cleveland Clinic); C: Radiograma lateral da coluna cervical
com verticalização anterior, sindesmófitos em C3-C4, C5-C6 e anquilose das articulações intervertebrais de C2-C6
(Sudoł-Szopinska I, Urbanik A - Pol J Radiol (2013))

Tomografia Computorizada
A Tomografia Computorizada (TC) é útil na avaliação de áreas onde a anatomia é
complexa ou onde há estruturas sobrepostas, como a coluna vertebral. Permite
visualizar pormenorizadamente as articulações sacro-ilíacas, bem como detectar outros
achados, como osteonecrose da cabeça femoral, lesões osteocondrais, fracturas
ocultas ou lesões líticas. É inferior à Ressonância Magnética na visualização de tecidos
moles, mas é, também, mais barata e mais facilmente disponível.

Nas doenças com atingimento pulmonar, por exemplo, permite fazer a distinção entre
os tipos de lesão intersticial, específica ou inespecífica, o que vai, de algum modo,
orientar o tratamento. Quando há suspeita de lesões cardiovasculares, pode ser
realizada Angio-Tc para avaliação de obstruções de fluxo sanguíneo. Nos casos de
eventos isquémicos cerebrais, a Tc-CE pode contribuir para detectar áreas de
hipointensidade ou penumbra, embora os casos de vasculite de SNC dificilmente se
consigam avaliar por este método.

Ressonância Magnética
A Ressonância Magnética (RMN) é um método muito sensível para examinar
inflamação, seja nos tecidos moles, seja no osso. Na doença precoce, a utilização de
meio de contraste pode ainda aumentar a sensibilidade para tenossinovite ligeira,
sinovite articular e alterações de sinal da medula óssea.

A RMN pode ser usada nas suspeitas de complicações típicas de Artrite Reumatóide,
como erosão do processo odontóide do áxis e do ligamento transverso do atlas, que
levam a instabilidade da articulação atlanto-axial.

60
No que toca às espondilartropatias inflamatórias, a RMN das sacroilíacas é
frequentemente usada para avaliar a presença de sacroileíte. A tomografia
computorizada é mais sensível que a radiografia, mas não mostra as alterações da
medula óssea com fiabilidade.

Os critérios de diagnóstico ASAS (Assessment of Spondyloarthritis International Society)


para sacroileíte referem que devem ser identificadas lesões inflamatórias activas das
articulações sacroilíacas (ou seja, edema da medula óssea ou osteíte) nos locais
anatómicos típicos (edema da medula óssea subcondral ou em osso peri- articular) -
figura 4. Uma única lesão de um único corte da RMN não é suficiente para o diagnóstico
de sacroileíte. A presença de sinovite, entesite ou capsulite, por si próprias, não são
suficientes para diagnosticar sacroileíte na RMN. Alterações estruturais como deposição
de gordura, esclerose, erosões ou anquilose serão provavelmente sequelas de
inflamação prévia; todavia, na ausência de alterações agudas, estas não são
diagnósticas de sacroileíte.

Figura 4: a) e b) Imagens em corte coronal das articulações sacroilíacas mostrando alterações típicas de sacroileíte
com esclerose e edema (a STIR e b T1w)2

A RMN-CE ou Angio-RMN-CE é também o exame de eleição para avaliação de


vasculites de pequenos e médios vasos com atingimento do sistema nervoso central.

Ecografia
A ecografia permite avaliar articulações superficiais, como as articulações
metacarpofalângicas proximais (MCFP) das mãos, afim de detectar a presença de
derrame articular, proliferação sinovial e sinovite, bem como erosões ósseas. Pode
revelar ainda a presença de bursites nas articulações maiores e enteses. A ecografia é
ainda útil na avaliação de entesite periférica no que toca ao grupo de espondilartropatias
inflamatórias.

No contexto extra-osteoarticular, a ecografia abdominal permite avaliar lesões


macroscópicas nos doentes com hepatite auto-imune, colangite esclerosante ou cirrose
biliar primária, bem como guiar eventual biópsia hepática. Do mesmo modo,

61
doentes com lesão renal conhecida ou de novo devem ser sujeitos a avaliação
ecográfica periódica e, em caso de biópsia, esta deverá também ser eco-guiada.

O ecocardiograma tem um papel fundamental na avaliação da função cardíaca dos


doentes, detecção de derrame pericárdico ou lesão valvular. A ecografia da glândula
tiroideia é um método de diagnóstico importante no acompanhamento dos doentes com
patologia tiroideia.

Medicina Nuclear
Os exames de Medicina Nuclear podem ser usados para avaliar artropatias
inflamatórias, embora a sua utilização esteja limitada à sua reduzida disponibilidade.

A cintigrafia óssea foi usada no passado para detectar sacro-ileíte. Os índices de


actividade nas sacroilíacas, por comparação às áreas de osso normal, mostraram uma
sensibilidade de apenas 50% e, portanto, de pouca utilidade para o diagnóstico.

SERVIÇO DE URGÊNCIA: qualquer doente com diagnóstico clínico de artrite que


persista por mais de seis semanas deve ser referenciado a uma consulta da
especialidade assim que possível. O radiograma inicial pode dar algumas “pistas”,
mas não exclui a presença de patologia subjacente.

TAKE HOME MESSAGES


A radiografia constitui um método de avaliação basal na grande maioria dos
doentes; no entanto, muitas alterações precoces não são visualizadas por este
método de imagem.
A ecografia articular e a ressonância magnética podem ser meios precoces de
detecção de artrite inicial.

Bibliografia
• Rheumatology in Practice, J.A.P. Da Silva e A.D. Woolf, Springer
• Imaging in rheumatology: reconciling radiology and rheumatology. Insights Imaging; 2013 Dec;
4(6):799-810
• Imaging in rheumatology, AJ Grainger e D McGonagle. Imaging, 19 (2007), 310-322
• Rheumatology: 3. Getting the most out of radiology, Graham Reid, John M. Esdaile, CMAJ 2000;
162(9):1318-25
• Progress in imaging in rheumatology, Emilio Filippucci, Luca Di Geso and Walter Grassi, Nav.
Rev. Rheumatol 2014 Oct;10(10):628-34

62
5. CAPILAROSCOPIA PERI-UNGUEAL

Introdução
A capilaroscopia peri-ungueal é uma técnica não invasiva que permite avaliar a
microcirculação. Deste modo, permite fazer um diagnóstico diferencial do Fenómeno de
Raynaud (FR), inicialmente entre primário e secundário, bem como manter vigilância
periódica destes doentes – cerca de 15-20% dos doentes com FR primário inicial
evoluem para Raynaud secundário em 2 anos de seguimento. Assim sendo, constitui o
melhor factor preditivo da transição de FR primário para secundário.

Procedimento
A técnica para a realização de capilaroscopia depende do tipo de sonda utilizada. Na
Unidade de Doenças Auto-Imunes utilizamos a sonda Videocap® ligada a um
computador, que permite visualização directa da árvore capilar com diferentes
ampliações, captação da imagem através de um pedal, armazenamento e posterior
processamento destas imagens (Fig.1). Habitualmente, usamos ampliação de 200x,
sendo a área de observação captada superior ao campo de avaliação da rede vascular
(campo = 1 mm3).

Figura 1: Sonda Videocap® conectada a computador, pedal para captação de imagem e programa utilizado para
processamento das imagens. From Cutolo, Maurizio, and Vanessa Smith. "State of the art on nailfold capillaroscopy: a
reliable diagnostic tool and putative biomarker in rheumatology?." Rheumatology 52.11 (2013): 1933-1940.

Os doentes submetidos a exame encontram-se inicialmente num espaço aclimatizado


(20-22ºC), por forma a evitar a vasoconstrição periférica provocada pelo frio. Junto do
doente, é obtida informação clínica relevante (patologias conhecidas, medicação em
curso, profissão/hobbies, hábitos tabágicos, terapêutica hormonal), realizado pequena
observação clínica das mãos e leitos ungueais, aplicado óleo e iniciado o exame (Fig.1).

Durante o exame e após a recolha de imagens, é feita uma avaliação qualitativa e semi-
quantitativa, onde são considerados alguns parâmetros: arquitectura estrutural e
distribuição dos capilares, transparência ou presença de edema intersticial, número de
capilares por milímetro quadrado, presença de dismorfias minor (tortuosidades,
cruzamentos, saca-rolhas, meandering, bifurcações simples) e major (dilatação major,
hemorragia peri-ungueal, ramificações complexas), rarefacção capilar e presença de
neoangiogénese (Figs. 2-4).

63
Figura 2: A: Exame capilaroscópico normal; B: Dismorfias minor (cruzamentos, meandering, tortuosidades); C: Dismorfias
major (dilatação de ansa distal > 50 mcm). Cortesia da Unidade de Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral.

Figura 3: A: Capilar gigante (dilatação de ansa capilar > 100 mcm) e rarefacção capilar; B: Hemorragia peri-ungueal por
rotura capilar (depósitos de hemossiderina a castanho); C: Ramificações complexas (neoangiogénese) e diminuição do
número de capilares por campo em doente com dermatomiosite. Cortesia da Unidade de Doenças Auto-Imunes do
Hospital Curry Cabral.

Figura 4: A: Hemorragia de origem traumática (onicofagia) – depósitos de hemossiderina sobrepostos a várias linhagens
de capilares; B – Artefacto – descontinuação do tegumento e neoangiogénese em contexto de sutura cutânea; C –
Iatrogenia (beta-bloqueantes não cardio-selectivos). Cortesia da Unidade de Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry
Cabral.

As imagens obtidas são posteriormente analisadas e o exame é relatado. A


capilaroscopia é considerada normal quando os capilares são finos (ansa distal com
dilatação inferior a 30 micrómetros), com distribuição regular e arquitectura estrutural
mantida (entre 8 a 12 capilares/mm3), com dismorfias minor em quantidade inferior a 30-
40% (valor admitido como variação do normal), dismorfias major <5%, sem hemorragias
provocadas por rotura espontânea ou focos de neoangiogénese. Na presença de
megacapilares, podemos admitir um padrão esclerodérmico, ou scleroderma-like,
quando a dilatação das ansas capilares está no limiar da dilatação (~50 micrómetros)
ou os achados são ainda frustes. Nos casos de padrão esclerodérmico, podemos
posteriormente classificá-lo em precoce, activo ou tardio, de acordo com a quantidade
de hemorragia peri-ungueal presente, a preservação ou rarefacção capilar e a
arquitectura estrutural subjacente (Fig.6). Estes estadios estão frequentemente
relacionados com o grau de progressão da doença, com forte associação ao grupo das
doenças esclerodérmicas. Na ausência de megacapilares, o padrão é normalmente
classificado como não esclerodérmico. Dentro deste espectro, podemos por vezes
encontrar alterações sugestivas de achados relacionados com a Síndrome do Anticorpo
Anti-fosfolípido e, mais raramente, Síndromes Paraneoplásicas.

64
Figura 5: Esquema de classificação dos padrões de fenómeno de Raynaud secundário.

Fig. 6: Padrões esclerodérmicos na capilaroscopia peri-ungeual: A – precoce; B – activo; C – tardio. Cortesia da Unidade
de Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral.

Capilaroscopia nas Doenças Auto-Imunes


Os achados capilaroscópicos podem apresentar algumas características sugestivas de
doenças auto-imunes específicas (Fig.9).
Na Esclerose Sistémica (ES) os achados mais frequentes são: megacapilares,
hemorragia peri-ungueal, edema intersticial, redução da densidade vascular,
desorganização da arquitectura estrutural, isquémia e neovascularização (Fig.7).
Actualmente as alterações capilaroscópicas, nomeadamente a presença de
megacapilares, constituem um critério de diagnóstico para ES, de acordo com os
critérios ACR/EULAR de 2013. Alguns achados têm também correlação com a evolução
da doença: a principal manifestação clínica que se correlaciona com o padrão
esclerodérmico é a ocorrência de úlceras digitais (Ghizzoni et al); a presença de
anticorpos anti-Scl70 (ou topoisomerase I) está associada a expressão precoce de
padrões esclerodérmicos activo e tardio; a presença de anticorpos anti-centrómero está
associada a expressão tardia do padrão esclerodérmico tardio (Cutolo et al).
Na Doença Mista do Tecido Conjuntivo (DMTC) encontramos alterações relacionadas
com os achados clínicos subjacentes. O padrão esclerodérmico é detectado em 50-65%
dos casos e há uma correlação entre as alterações capilaroscópicas e o envolvimento
pulmonar (Diógenes et al).
O Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) está associado a alterações vasculares e a
capilaroscopia apresenta alterações em 50-75% dos casos. Os achados mais
frequentes são discretas dilatações da ansa capilar, com capilares muito dismórficos
(minor: tortuosidades, cruzamentos, saca-rolhas, meandering; major: bushy),

65
hemorragia peri-ungueal e plexo venoso exuberante, com velocidade de circulação lenta
e sludge capilar.

Fig. 7: A – Esclerose Sistémica; B – Lúpus Eritematoso Sistémico; C – Dermatomiosite. Cortesia da Unidade de Doenças
Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral.

A Dermatomiosite apresenta também fenómenos vasculares frequentes, estando as


alterações capilaroscópicas relacionadas com a actividade da doença: a diminuição do
número de capilares está associada a maior atingimento muscular; a hemorragia peri-
ungueal está associada ao atingimento cutâneo (Mugii et al). O padrão esclerodérmico
está presente em cerca de 74% dos doentes, sendo os capilares particularmente
dismórficos e bizarros.
Na Síndrome do Anticorpo Anti-Fosfolípido (SAAF) ocorrem micro-hemorragias na
circulação capilar, tipicamente com padrão em paliçada, também designada “em pente”
(Fig.8-A). Há uma correlação entre os achados capilaroscópicos e a actividade da
doença (Pyrpasopoulou et al).
As Vasculites apresentam alterações inespecíficas da microcirculação, com capilares
curtos e desorganizados, podendo apresentar focos de neoangiogénese (Fig.8-B).

Figura 8: A – Síndrome do Anticorpo Anti-Fosfolípido; B – Vasculite leucocitoclástica; C – Síndrome de Sjögren. Imagens


A e B com artefactos por reflexo da luz sobre óleo utilizado. Cortesia da Unidade de Doenças Auto-Imunes do Hospital
Curry Cabral.

A Síndrome de Sjögren está também associada a alterações capilaroscópicas


inespecíficas, que podem incluir dismorfias minor, dilatações de ansa capilar e mesmo
hemorragia peri-ungueal (Fig.8-C). A Artrite Reumatóide apresenta alterações
variadas, inespecíficas, que podem estar relacionadas com outra doença auto-imune
relacionada ou efeitos secundários da medicação; tipicamente apresenta um padrão não
esclerodérmico. A Psoríase pode apresentar menor densidade capilar, embora sem
relação com o tempo de evolução da doença ou o PASI (Ribeiro et al); pode apresentar
achados compatíveis com padrão não esclerodérmico.

66
Fig. 9: Quadro de resumo com frequência relativa de achados capilaroscópicos em doenças auto-imunes. Lin, KM et al.
Clinical Applications of Nailfold Capillaroscopy in Different Rheumatic Diseases. J Intern Med Taiwan 209; 20: 238-247.

Capilaroscopia – Situações Especiais


A capilaroscopia peri-ungueal tem vindo a ser utilizada fora do contexto das doenças
auto-imunes, no estudo de outras situações associadas a alterações da microcirculação.
A título de curiosidade, dado sair fora do âmbito deste manual, referimos apenas que na
Diabetes Mellitus as alterações capilaroscópicas se correlacionam directamente com
a retinopatia e nefropatia, sugerindo forte associação com a doença microvascular. Nas
situações de fenómeno de Raynaud paraneoplásico podem surgir alterações
capilaroscópicas sugestivas, embora muito raras, como focos de neoangiogénese e
alterações heterogéneas e bizarras do padrão vascular num mesmo doente.
Na idade pediátrica há algumas particularidades a ter em conta: o processo de
maturação capilar só está finalizado perto dos 10 anos de idade e o fenómeno de
Raynaud primário é muito mais frequente que o secundário, sendo mais prevalente em
meninas (80%), surgindo habitualmente após a menarca.

Conclusão
A capilaroscopia peri-ungueal é um método não invasivo para visualização directa da
microcirculação e deve ser incluído no estudo etiológico do fenómeno de Raynaud. Os
achados capilaroscópicos podem contribuir para o diagnóstico de algumas doenças,
como a Esclerose Sistémica, e correlacionam-se com algumas complicações clínicas,
como as úlceras digitais. Embora os achados de algumas doenças sejam inespecíficos,
uma alteração de novo no padrão habitual poderá sugerir uma síndrome de
sobreposição ou evolução da doença de base. Este método de diagnóstico não está
limitado ao espectro das doenças auto-imunes, podendo ser utilizado no estudo de
outras doenças com atingimento vascular, como a Diabetes Mellitus.

ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
• Doentes com Fenómeno de Raynaud de novo: bilateral – capilaroscopia: primário
versus secundário?; se unilateral, pensar em neoplasia ou síndrome obstrutivo. Enviar
para consulta!
47
TAKE HOME MESSAGES
• Estudo Fenómeno de Raynaud
• Monitorizar transição Raynaud 1rio para 2rio
• Diagnóstico precoce ES; monitorização Terapêutica, Prognóstico
• Úlcera Digital
• Estudo de doença sistémica com envolvimento microvascular

Bibliografia
• Hirschl, Mirko, et al. "Transition from primary Raynaud's phenomenon to secondary Raynaud's
phenomenon identified by diagnosis of an associated disease: results of ten years of prospective
surveillance." Arthritis & Rheumatism 54.6 (2006): 1974-1981.
• Cutolo, Maurizio, et al. "Identification of transition from primary Raynaud's phenomenon to
secondary Raynaud's phenomenon by nailfold videocapillaroscopy: comment on the article by
Hirschl et al." Arthritis & Rheumatism 56.6 (2007): 2102-2103.
• Gitzeimann G. “Preditive value of nailfold capillaroscopy in patients with Raynaud phenomenon”.
Clin Rheumtol 25 (2006): 153-8.
• Higashi, Viviane, et al. "Capilaroscopia Periungueal Seriada (CPU) como Parâmetro de
Monitoramento e Evolução de Pacientes com Diagnóstico Inicial de Fenômeno de Raynaud (FRy)
Isolado ou de Doença Indiferenciada do tecido Conjuntivo (DITC)." Rev Bras Reumatol 45.6 (2005):
351-356.
• Cutolo, Maurizio, and Vanessa Smith. "State of the art on nailfold capillaroscopy: a reliable
diagnostic tool and putative biomarker in rheumatology?." Rheumatology 52.11 (2013): 1933- 1940.
• Ghizzoni C, et al. Prevalence and evolution of scleroderma pattern at nailfold videocapillaroscopy
in systemic sclerosis patients: Clinical and prognostic implications. Microvacular Research 99
(2015) 92-95.
• Cutolo M, et al. Nailfold videocapillaroscopic patterns and serum autoantibodies in systemic
sclerosis. Rheumatol 2004; 43: 719-726.
• Cutolo, M. Atlas of Capillaroscopy in Rheumatic Diseases. 2010. Elsevier.
• Diógenes,A et al. Capillaroscopy is a dynamic process in mixed connective tissue disease.
Lúpus, 16 (2007), pp. 254–258
• Mugii N, et al. Association between nailfold capillary findings and disease activity in
dermatomyositis. Rhaumatol 2011;50:1091-1098.
• Pyrpasopoulou A, et al. Capillaroscopy as a screening test for clinical antiphospholipid syndrome.
European Journal of Internal Medicine 22 (2011) e158-e159.
• Ribeiro Cf, et al. Peringueal capillaroscopy in psoriasis. An Bras Dermatol. 2012;87(4):550-3.
• Lin, KM et al. Clinical Applications of Nailfold Capillaroscopy in Different Rheumatic Diseases. J
Intern Med Taiwan 209; 20: 238-247.
• DolezalovaP, et al. Nailfold capillary microscopy in healthy children and in childhood rheumatic
diseases: a prospective single blind observational study. Ann Rheum Dis 2003; 62:444-449.
• Ingegnoli F and Herrick A. Nailfold Capillaroscopy in Pediatrics. Arthritis Care and Research.
2013;65(9)1393-1400.

48
PARTE II – DOENÇAS AUTO-IMUNES

49
1. ARTRITE REUMATÓIDE

Definição
A artrite reumatóide é uma doença inflamatória crónica auto-imune sistémica,
caracterizada fundamentalmente por sinovite destrutiva, predominantemente simétrica,
sendo responsável por uma morbilidade e mortalidade aumentadas e prematuras nestes
doentes [1-5]. As primeiras descrições de AR remontam a 1800, na tese de Auguste
Beauvais “Sur la goutte asthénique primitive” [6]. Posteriormente, autores como Charcot,
Garrod e Bourdillon tiveram um contributo significativo na descrição e caracterização da
AR como entidade clínica distinta da gota, artrite psoriática e espondilite anquilosante
[6].

A morbilidade destes doentes reflecte-se num grande impacto socioeconómico: os


custos indirectos relacionados com a AR suplantam largamente os custos directos
(incluindo a terapêutica com inibidores do TNFα), fundamentalmente à custa da redução
da actividade laboral (Custos indirectos, média = 8452.6€/ano; Custos directos, média
= 4170€/ano) [7].

Epidemiologia
A prevalência estimada da AR, a nível global, ronda 1%. [8] Em Portugal, tendo em conta
o último Reuma Census (2011-2013), a prevalência da AR está estimada em 0.5-1%.
[9] A AR afecta mais indivíduos do género feminino (F:M 2:1), sendo que, em Portugal,
a prevalência da doença no género feminino é 4x superior em relação ao género
masculino (F 1.1%, M 0.3%) [8,9]. A faixa etária mais frequentemente envolvida é > 60
anos de idade. Para além do envolvimento a nível étnico, em que os latinos
desenvolvem AR mais agressiva em comparação com os caucasianos, as habilitações
literárias e o estatuto sócio-económico parecem ter um impacto significativo na evolução
da doença [10,11].

Etiologia
A origem da AR ainda não está totalmente esclarecida. Acredita-se que o estradiol tenha
um papel relevante como estimulador do processo inflamatório (activação dos
sinovócitos tipo B e inibição da apoptose nos linfócitos B), o que explica a maior
prevalência da doença no género feminino [8].

A componente genética é igualmente importante (12-30% em gémeos homozigóticos;


5% em gémeos dizigóticos) [12,13]. Em alguns indivíduos, a susceptibilidade genética
traduz-se no denominado “epitopo comum”, uma sequência de aminoácidos (glutamina-
leucina-arginina-alanina-alanina – QKRAA), encontrada na região hipervariável das
cadeias DR das moléculas da classe II do complexo major de histocompatibilidade
(CMH). Os alelos mais frequentemente associados a este epitopo

50
são o HLA-DR1, HLA-DR4 e HLA-DR14 [12]. A existência de tal epitopo permite que a
apresentação de antigénios se faça de maneira irregular com a consequente perda de
tolerância imunológica. Alterações epigenéticas (como seja a hipometilação do ADN) e
das vias de sinalização intracelular (JAK, NF-β), também contribuem para a
etiopatogenia da doença.

Figura 1: Factores que contribuem para o desenvolvimento da Artrite Reumatóide. From Nature Clinical Practice
Rheumatology (2007) 3, 644-650.

O tabagismo, a activação de algumas isoformas da peptidil-arginase-deiminase (PADI


– nomeadamente a PADI4) e a proteína tirosina-fosfatase 22 (PTPN22) têm também
um papel de relevo no processo (Fig.1). As duas primeiras conferem um risco
significativo para o aparecimento da AR em indivíduos geneticamente susceptíveis –
sobretudo o tabagismo, confere um risco 20x superior ao da população em geral. O
tabagismo per se promove a citrulinação de várias moléculas (como a enolase e a
vimentina) que são posteriormente expostas pelas células apresentadoras de antigénio
ao sistema imunitário adaptativo. A PADI também promove o mesmo evento, mas com
base na modificação pós-translacional da arginina em citrulina. Esta relação tornou-se
mais evidente com a identificação de uma associação entre periodontite por
Porphyromonas gengivalis e AR, uma vez que esta bactéria expressa a PADI4 (Fig.2).

A existência isolada de cada um destes factores, porém, parece ser insuficiente para
desencadear a doença, admitindo-se ser necessária a presença de pelo menos um
segundo evento major para desencadear a doença. Assim se explica a expressão inicial
dos chamados anticorpos anti-péptido cíclico citrulinado (anti-CCP) e factor reumatóide
(IgG FR) anos antes do início das manifestações clínicas em doentes com AR (Fig.3)
[12]. Neste contexto, eventos infecciosos como sejam os causados por Citomegalovirus,
vírus Epstein-Barr, Parvovirus B19, micobactérias e o Mycoplasma spp são
considerados potenciais factores promotores da doença [14-17].

51
Figura 2: Citrulinação e indução de anticorpos anti-péptido cíclico citrulinado na Artrite Reumatóide pela
Porphyromonas gengivalis. From Nature Reviews Immunology 15, 30–44 (2015).

Fisiopatologia
A fisiopatologia da AR é de particular complexidade, assumindo uma expressão inicial
sistémica na sua fase pré-clínica, progredindo para uma fase clínica ao fim de vários
anos. Estes processos são aplicáveis de forma mais consistente à chamada AR
seropositiva (positiva para anticorpos anti-péptido cíclico citrulinado – anti-CCP – ou
para factor reumatóide – FR). A maioria dos doentes com AR apresenta-se com esta
seropositividade (70-84%); a forma de apresentação e processos fisiopatológicos
envolvidos na AR seronegativa permitem considerá-la quase como uma entidade clínica
distinta [18-19].

Figura 3: Percentagens cumulativas de doentes com 1 ou mais resultados positivos para FR IgM, anti-CCP e FR IgM
e/ou anti-CCP, antes do início da AR. Retirado de Nielen MMJ, van Schaardenburg D, Reesink HW, et al. Specific
autoantibodies precede the symptoms of rheumatoid arthritis: a study of serial measurements in blood donors. Arthritis
Rheum. 2004;50(2):380-6.

52
O FR e/ou anti-CCP podem preceder a apresentação clínica em cerca de 15 anos, em
50% dos indivíduos (Fig.3) [20]. Progressivamente, verifica-se um aumento na avidez (e
no título) destes, através da maturação por afinidade. Importa salientar que, uma vez
positivos para FR ou anti-CCP, os indivíduos raramente se tornam seronegativos [20].

À medida que os fenómenos auto-imunes vão progredindo em intensidade e magnitude,


a artrite começa a ser clinicamente evidente. A elevação de citocinas acompanha a
elevação dos anticorpos referidos, sendo que poderão surgir ainda outros, associados
a pior prognóstico, como o anti-colagénio tipo II (AR erosiva precoce) e o anti-glucose-
6-fosfacto isomerase (Síndrome de Felty) [21]. Uma vez instalada a artrite, dificilmente
se consegue interromper o processo, tal é a resistência dos mecanismos de imunidade
adaptativa instalada a nível intra-articular (Fig.4).

Figura 4: Desenvolvimento e evolução da artrite reumatóide, em 3 fases principais. a) A doença inicia-se nos órgãos
linfóides periféricos, provavelmente por células dendríticas que apresentam auto-antigénios a células T auto-reactivas,
que por sua vez vão activar células B auto-reactivas através de citocinas e moléculas co-estimuladoras. Provocam assim
a formação de anticorpos e deposição de imunocomplexos ao nível das articulações. Após a migração das células imunes
para a articulação, a apresentação de antigénio também pode ocorrer na membrana sinovial. b) A propagação da doença
é mediada por imunocomplexos que se ligam aos receptores Fc dos macrófagos, neutrófilos e mastócitos. Deste modo
vai haver libertação de citocinas pró-inflamatórias, infiltração leucocitária e formação de pannus sinovial. c) O nível
elevado de citocinas activa e recruta, ao nível da sinovial, fibroblastos, macrófagos, osteoclastos e neutrófilos, que vão
libertar proteases, espécies reactivas de oxigénio, óxido nítrico e prostaglandina E2. O sinoviócitos são também activados
e invadem a cartilagem. Estas etapas contribuem para destruição irreversível do osso e cartilagem. BCR, B-cell receptor;
CCL, CC-chemokine ligand; CCR, CC-chemokine receptor; CD40L, CD40 ligand; CXCL, CXC-chemokine ligand; IL,
interleukin; LTB4, leukotriene B4; MMP, matrix metalloproteinase; TCR, T-cell receptor; TNF, tumour-necrosis factor;
VEGF, vascular endothelial growth factor. From Rommel et al. Nature Reviews Immunology 7, 191–201 (March 2007).

Manifestações Clínicas
A AR tem expressão inicial variável, habitualmente insidiosa, sendo que a simetria do
envolvimento articular é uma característica singular da doença. O quadro de artrite é
caracterizado por rigidez matinal nas articulações alvo, com uma duração superior a 30-
45 minutos, seguindo-se de edema articular à medida que a doença progride. É
frequente a monoartrite inicial, evoluindo progressivamente (em menos de 6 meses)
para uma poliartrite simétrica. A monoartrite exclusiva é rara, apresentando-se em cerca
de 5% dos doentes – afecta predominantemente ombros, joelhos e punhos. O

53
envolvimento está caracterizado na Figura 5, sendo que as articulações mais afectadas
são as metacárpico-falângicas, inter-falângicas proximais, punhos, cotovelos, ombros,
joelhos e metatársico-falângicas.

Figura 5: A – Envolvimento articular na Artrite Reumatóide, B – Deformação tardia nas articulações metacárpico-
falângicas e inter-falângicas proximais e esquema elucidativo do espessamento da membrana sinovial e destruição da
cartilagem (From Mayo Foundation for Medical Education and Research.)

Pode haver sintomatologia constitucional a preceder o quadro osteoarticular, pelo que


alguns doentes se queixam de fadiga, perfil térmico sub-febril (habitualmente < 38ºC) e
mialgias difusas. Progressivamente, a deformação articular instala-se, devido à
agressão sinovial crónica com destruição óssea associada e ao parco controlo da
actividade da doença.

Figura 6: Deformações tardias da Artrite Reumatóide. A: atrofia dos músculos interósseos, hiperflexão das articulações
metacárpico-falângicas com desvio cubital dos dedos, hiperextensão das articulações inter-falângicas proximais e dedo
em pescoço de cisne; B – Quistos sinoviais por sinovite e tenosinovite persistentes. From the Clinical Slide Collection on
the Rheumatic Diseases, copyright 1991, 1995, 1997. Used by permission of the American College of Rheumatology.

Actualmente, tendo em conta os avanços na terapêutica da AR, é cada vez menos


frequente observar alterações clássicas, como a atrofia da musculatura interóssea,
dedos em botoeira ou em pescoço de cisne (Fig.6). A nível dos membros inferiores, o
atingimento das articulações metatársico-falângicas faz com que o doente tenha a
sensação de caminhar sobre berlindes ou, pela afecção das inter-falângicas proximais,
desenvolva dedos em martelo (Fig.7). Podemos ainda procurar sinais e sintomas que
sugiram envolvimento a nível das estruturas músculo-tendinosas circundantes, como
sejam a síndrome do túnel cárpico, síndrome do túnel társico ou gonalgia posterior por
um quisto de Baker. São menos frequentes o envolvimento da articulação temporo-
mandibular e o cervical – conferindo este último aumento da morbilidade e mortalidade,
sobretudo quando há mielopatia espondilótica compressiva.

54
O envolvimento extra-articular deve ser abordado de forma agressiva, uma vez que
confere igualmente diminuição da esperança média de vida. É conhecido o risco
cardiovascular aumentado (pela inflamação crónica e pelo uso prolongado de
corticóides) [22]. Da mesma forma, o envolvimento pulmonar, como seja a fibrose
intersticial ou a bronquiolite obliterante com pneumonia organizada, tem mau
prognóstico e condiciona a utilização do metotrexato, fármaco de primeira linha a instituir
na AR [23]. A síndrome de Felty (associação de AR, esplenomegalia e neutropénia) é
rara e é tanto pior quanto mais marcada for a neutropénia. A mononeurite multiplex é
uma condição frequentemente subdiagnosticada. O envolvimento ocular (como a
scleromalacia perforans), renal (pela amiloidose secundária) ou cutâneo (nódulos
reumatóides) é cada vez menos frequente. Outras manifestações como a vasculite
reumatóide, o derrame pleural ou o derrame pericárdico têm-se tornado cada vez mais
raras (Fig.8).

Figura 7: Deformações tardias da Artrite Reumatóide a nível dos membros inferiores, em esquema (A) e em radiograma
de pé (B). (A – Calabro JJ. A critical evaluation of the diagnostic features of the feet in rheumatoid arthritis. Arthritis and
Rheumatism, 5(1):19-29, 1962. B – Wilder M et al. Diagnosic work-up of early rheumatoid arthritis in the foot and ankle
patient. The Foot and Ankle Online Journal, 2014; 7 (1): 6)

Figura 8: Manifestações extra-articulares da Artrite Reumatóide (MEAAR). A – Incidência de MEAAR numa população
de 8024 doentes, entre 1999-2011 (EAM: extra-articular manifestations; M. Prete et al. Autoimmunity Reviews 11 (2011)
123–131). B – Incidência cumulativa de manifestações extra-articulares graves ao longo de 10 anos, entre os períodos
1985-1994 e 1995-2007 (RA: Rheumatoid Arthritis, ILD – Interstitial Lung Disease; Turesson C. Curr Opin Rheumatol
2013, 25:360–366).

O diagnóstico diferencial pode fazer-nos pensar em doenças como a polimialgia


reumática, o lúpus eritematoso sistémico, a síndrome de Sjögren, a sarcoidose, a artrite
psoriática, a osteoartrose degenerativa ou a fibromialgia. Também não nos podemos
esquecer de referir duas entidades que inicialmente estiveram descritas dentro do
espectro da AR – a artrite indiferenciada e o reumatismo palindrómico.

55
Diagnóstico
O diagnóstico é predominantemente clínico. A avaliação laboratorial ajuda a definir o
subtipo de AR que o doente apresenta. O FR tem uma sensibilidade e especificidade de
11-45.2% e 97-98% respectivamente. No entanto, os anticorpos anti-CCP têm uma
sensibilidade bastante superior, conferindo uma melhor caracterização da população de
doentes com AR – sensibilidade de 55-80%, igual especificidade que o FR [24].

A American College of Rheumatology (ACR) definiu em reunião de consenso em 2010


[25], um conjunto de critérios de classificação que nos ajudam a integrar melhor os
doentes em subtipos populacionais e, posteriormente, em análises dentro de estudos
(Figura 8, Tabela 1).

Figura 8: Árvore de decisão com base nos critérios de 2010. RFA, reagentes de fase aguda. Adaptado de Aletaha D,
Neogi T, Silman AJ, et al. 2010 Rheumatoid arthritis classification criteria: an American College of
Rheumatology/European League Against Rheumatism collaborative initiative. Arthritis Rheum. 2010;62(9):2569-81.
doi:10.1002/art.27584.

A avaliação imagiológica classicamente utilizada como primeira linha é o radiograma


articular. É sabido que a existência de erosões ósseas confere mau prognóstico, uma
vez que significa um período, no mínimo, de 6 meses, de doença precoce e/ou mal
controlada – este dado é também uma fragilidade do próprio radiograma (Fig.9) [26].
Uma das ferramentas de avaliação com maior impacto é o score de Sharp. No entanto,
é uma escala que demora algum tempo a preencher (cerca de 25 minutos). Por esse
motivo, validou-se a escala de SENS (Simple Erosion Narrowing Score), que demora
cerca de 7 minutos a avaliar. O radiograma articular é de fácil acesso, barato e de
interpretação simples. Contudo, não ajuda a predizer o grau de envolvimento

56
ósseo, nem nos dá uma ideia da dinâmica óssea. Para nos auxiliar na melhor
caracterização da actividade da doença óssea, a ecografia articular e a ressonância
magnética surgiram como ferramentas fundamentais no controlo mais rigoroso da
doença. O núcleo de estudos da OMERACT (Outcomes and Measures in Rheumatoid
Arthritis Clinical Trials) revê constantemente as escalas de avaliação de dano articular
e em que medida a extensão desse dano prediz o prognóstico de um doente em
particular.

CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO ACR/EULAR 2010 – AR SE > 6/10 PONTOS


ENVOLVIMENTO ARTICULAR
0 – Grande articulação única
1 – 2-10 grandes articulações
2 – 1-3 pequenas articulações (com ou sem envolvimento de grandes articulações)
3 – 4-10 pequenas articulações (com ou sem envolvimento de grandes articulações)
5 - >10 articulações (pelo menos 1 pequena)
SEROLOGIA
0 – FR- e A-CCP-
2 – Título baixo de FR+ e A-CCP+
3 – Título elevado de FR+ e A-CCP+
REAGENTES DE FASE AGUDA
0 – PCR e VS normais
1 – Alteração da VS ou da PCR
DURAÇÃO DOS SINTOMAS
0 - < 6 semanas
1 - > 6 semanas
Tabela 1: Critérios de Diagnóstico ACR/EULAR 2010. AR – artrite reumatóide, FR – factor reumatóide, A-CCP – anticorpo
anti-péptido C cíclico citrulinado. Adaptado de Aletaha D, Neogi T, Silman AJ, et al. 2010 Rheumatoid arthritis
classification criteria: an American College of Rheumatology/European League Against Rheumatism collaborative
initiative. Arthritis Rheum. 2010;62(9):2569-81. doi:10.1002/art.27584.

Figura 9: Radiograma de mãos em Artrite Reumatóide, com alterações típicas de doença tardia: diminuição da entrelinha
articular (por vezes com fusão articular), sub-luxação articular, osteoporose justa-articular, erosões e geodos (Case
courtesy of A.Prof Frank Gaillard, Radiopaedia.org, rID: 7245).

Terapêutica
Para falarmos de atitudes terapêuticas, temos primeiro que introduzir o conceito de
monitorização da actividade da doença. Estão disponíveis cerca de 5 escalas de
avaliação de actividade da doença, sendo que as mais frequentemente utilizadas são o
DAS-28 (Disease Activity Score-28 – quer utilizando a velocidade de sedimentação –
VS –, quer utilizando a proteína C reactiva – PCR), o CDAI (Clinical Disease Activity

57
Index) e o SDAI (Simplified Disease Activity Index). Na Tabela 2, estão definidos os
valores que integram a remissão, baixa actividade, moderada actividade ou elevada
actividade de doença.

Intervalo Remissão Baixa Moderada Elevada

DAS28 - VS 0 - 9.4 < 2.6 ≥ 2.6 - < 3.2 ≥ 3.2 - ≤ 5.1 > 5.1

DAS28 - PCR 0 - 9.4 < 2.6 ≥ 2.6 - < 3.2 ≥ 3.2 - ≤ 5.1 > 5.1

CDAI 0 - 76 ≤ 2.8 > 2.8 - 10.0 > 10.0 - 22.0 > 22.0

SDAI 0 - 86 ≤ 3.3 3.4 - 11.0 11.1 - 26.0 > 26.1


Tabela 2: Escalas de Actividade de doença mais frequentemente utilizadas.

O objectivo da terapêutica é atingir a remissão clínica da doença, independentemente


da AR ser precoce ou estabelecida [27]. Para tal, temos disponível um razoável arsenal
terapêutico, do qual o metotrexato é a espinha dorsal. Outros fármacos convencionais
modificadores da actividade da doença (DMARDs) disponíveis são a leflunomida, a
messalazina, a sulfassalazina e a hidroxicloroquina. Assume-se a leflunomida como
hipótese caso exista contra-indicação para administração de metotrexato. Da mesma
maneira, é possível proceder à combinação dupla ou tripla de DMARDs, embora esteja
cada vez mais em desuso sobretudo na AR de início precoce. Os corticóides são
utilizados para obter pontualmente um controlo mais rápido da doença e
progressivamente têm vindo a ser excluídos da terapêutica de manutenção.

Quando os DMARDs convencionais falham, entram em cena os chamados “biológicos”


e ainda as pequenas moléculas (como seja o tofacitinib – inibidor da JAK – Janus
kinase). Dentro dos biológicos, os mais utilizados na AR são os inibidores do TNF alfa,
com principal destaque para o etanercept (pela sua tolerabilidade e baixa
imunogenicidade), o adalimumab, o golimumab, o certolizumab pegol e o infliximab.

Caso haja falência de algum destes, é possível proceder ao switch entre inibidores do
TNF, ou então mudar o alvo terapêutico: anti-receptor IL-6 (tocilizumab), anti-CD20
(rituximab) ou agonista do CTLA-4 (abatacept). Estes também podem ser utilizados no
lugar dos inibidores do TNF alfa, em condições específicas ou caso existam contra-
indicações para a administração de inibidores do TNF alfa (como por exemplo, a
insuficiência cardíaca classificada como grau III-IV pela New York Heart Association –
NYHA).

Prognóstico
O prognóstico da AR pode estar comprometido quando há atraso no diagnóstico e
tratamento. A história natural da doença inclui exacerbações e recidivas frequentes e
cerca de 40% dos doentes acumulam algum grau de incapacidade ao fim de 10 anos,
embora estes dados sejam variáveis [28]. Uma intervenção precoce com DMARDs
oferece a melhor possibilidade de atingir a remissão da doença. Factores de mau
prognóstico incluem o genótipo HLA-DRB1*04/04, título elevado de FR ou A-CCP,

58
manifestações extra-articulares, grande número de articulações envolvidas, idade <30
anos, sexo feminino, sintomas sistémicos e início insidioso.

A AR está associada a factores de risco cardiovascular, sendo a própria inflamação


sistémica um forte trigger de aterosclerose. A mortalidade nos doentes com AR estima-
se que seja 2,5x superior ao do resto da população, estando sobretudo associada a
eventos cardiovasculares, infecções nos doentes imunossuprimidos e linfoma.

SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- Pensar em AR se artrite inflamatória simétrica de início insidioso, sobretudo em
mulheres pós-menopáusicas -> encaminhar para consulta
- O início precoce do tratamento influencia o prognóstico e limitação funcional
subsequentes.

TAKE HOME MESSAGES


A AR é uma DAI sistémica que atinge o tecido sinovial, com destruição
osteoarticular debilitante.
A etiologia da AR é multifactorial, incluindo factores genéticos, epigenéticos e
ambientais.
O diagnóstico é baseado em elementos clínicos e analíticos (FR+/A-CCP+,
elevação da VS ou PCR).
A instituição de fármacos imunobiológicos (anti-TNFα, anti-IL-6, anti-CD20,
agonista do CTLA-4) veio revolucionar o controlo da doença.

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60
2. ESPONDILARTROPATIAS

Introdução
As espondilatropatias são um grupo heterogéneo de artropatias inflamatórias crónicas,
inter-relacionadas, afectando a membrana sinovial, as enteses e certos locais extra-
articulares. Este grupo reúne doenças inicialmente descritas individualmente, mas que
com o tempo, se percebeu que partilham muitas características clínicas. Definem-se
como seronegativas, por terem factor reumatóide negativo e ausência de auto-
anticorpos circulantes. Apresentam expressão clínica característica, que pode ser de
predomínio axial (articulações da coluna e sacro-ilíacas) ou de predomínio periférico.
Surgem adicionalmente algumas manifestações particulares: entesite, dactilite, uveíte
– a entesite é a característica patológica distinta deste grupo de doenças. Existe
também uma associação frequente com psoríase e doença inflamatória intestinal.

O grupo das espondilartropatias inclui a espondilite anquilosante (EA), artrite psoriática


(PsA), artrite enteropática (EnA) e artrite reactiva (ReA) – tabela 1. Estas doenças
ocorrem primariamente em indivíduos com predisposição genética, particularmente
portadores de HLA-B27, embora factores ambientais adicionais possam também ter um
papel importante. Pode ser difícil diferenciá-las, uma vez que as suas características
clínicas se sobrepõem, além de que são reconhecidas formas indiferenciadas de
espondilartropatias.

SUBGRUPOS DA DOENÇA
Espondilite Anquilosante
Artrite Psoriática
Artrite Reactiva
Artrite Enteropática
Espondilartrite Juvenil
Espondilartropatia Indiferenciada
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
Manifestações Osteoarticulares
- Envolvimento axial
- Artrite Periférica
- Entesite
Características extra-articulares
- Uveíte anterior aguda
- Envolvimento cardíaco (bloqueio cardíaco, insuficiência aórtica)
Background genético
- História familiar
- HLA-B27 +
Manifestações Específicas
- Psoríase
- Doença inflamatória intestinal
Tabela 1: Apresentação Clínica de Espondilartropatias

61
Epidemiologia
A prevalência estimada em indivíduos caucasianos é entre 0,5% e 2%; estes números
variam entre várias populações étnicas, sendo mais elevados em caucasianos e nativo-
americanos e menos em afro-americanos e asiático.

A espondilite anquilosante (EA) é a doença mais prevalente do grupo das


espondilartropatias. A prevalência de EA acompanha a prevalência do gene HLA-B27
– 8% da população caucasiana saudável é HLA-B27 positiva, enquanto que apenas 4%
da população afro-americana saudável é portadora de HLA-B27; 92% da população
caucasiana com EA é HLA-B27 positiva. Cerca de 60% dos doentes com ReA, PsA e
EnA são HLA-B27 positivas, enquanto 25% dos doentes com espondilartropatia
indiferenciada são HLA-B27 positivos. Um doente com HLA-B27 positivo tem uma
hipótese de desenvolver EA de 1-5%, aumentando para 15-20% se houver um familiar
de primeiro grau com a mesma patologia.

A espondilartropatia é mais frequente em doentes do sexo masculino, com um ratio de


3:1 de sexo masculino para sexo feminino. A idade média de início de sintomas é 26
anos e pode apresentar-se na fase final da adolescência até aos 40 anos.

Etiologia e Fisiopatogénese

Figura 1: Fisiopatogénese da espondilartropatias. A interacção de factores genéticos, em particular o HLA-B27, com


diferentes tipos de stress (incluindo stress mecânico, stress do retículo endoplasmático (ER) e microbiológico nas
superfícies corporais) provoca a produção de citocinas pró-inflamatórias (incluindo IL-23) e sinais de alerta
(nomeadamente moléculas com padrão molecular associado a patogénicos (PAMPs)). Em conjunto, a IL-23 e estes
sinais de alerta podem activar leucócitos inflamatórios e populações de células do estroma para produzirem citocinas
inflamatórias-chave em tecidos específicos, tal como a medula óssea e a inserção de ligamentos nas vértebras. Destas
citocinas, o factor de necrose tumor (TNF) e a IL-17 são propostos como fortes condutores da componente inflamatória
da doença. O TNF transmembranar e a IL-22 podem simultaneamente conduzir à formação de osso novo e, em último
caso, anquilose das articulações axiais. IL-13R: receptor da IL-13, KIR: killer cell immunoglobulin-like receptor; TLR: Toll-
like receptor. (Sieper J. et al. Axial spondylarthritis. Nature Reviews Disease Primers 1, article number 15013 (2015))

62
A etiologia da espondilartropatia é ainda não foi totalmente clarificada, mas tem sido
postulado que resulte de uma interligação complexa de factores genéticos e ambientais.
O envolvimento de factores genéticos na determinação da susceptibilidade da
espondilartropatia tem sido evidenciado com base no agrupamento de casos em
famílias. O primeiro factor genético identificado foi o antigénio HLA-B27, embora testes
subsequentes tenham levado à descoberta de outros genes importantes na
susceptibilidade para a doença, incluindo subtipos de HLA-B27 e outros genes do MHC,
embora não seja ainda claro como é que actuam na doença.

Vários agentes patogénicos gastrointestinais e génito-urinários têm sido implicados


como possíveis desencadeantes da Artrite Reactiva associada a HLA-B27 nos seres
humanos (Tabela 2). O DNA destes organismos e dos produtos produzidos por eles foi
já identificado em amostras de líquido sinovial de doentes com artrite reactiva. A
presença de produtos bacterianos nas articulações fornece uma potencial ligação entre
infecção intestinal e inflamação articular. No entanto, apesar de fortemente implicados
na ReA, o processo pelo qual estes agentes patogénicos intestinais desencadeiem
inflamação articular está ainda mal esclarecido.

BACTÉRIAS INTESTINAIS ASSOCIADAS A


ESPONDILARTROPATIA
Chlamydia trachomatis

Shigella flexneri

Salmonella spp.

Yersinia enterocolitica

Yersinia pseudotuberculosis

Campylobacter jejuni

Clostridium difficile

Instilação intravesical de bacilos Calmette-Guérin (BCG) no


tratamento de neoplasia vesical
Chlamydia pneumoniae (não confirmado)
Tabela 2: Bactérias que desencadeiam Artrite Reactiva

Os locais mais comuns de inflamação na EA incluem as articulações sacroilíacas,


enteses, corpos vertebrais adjacentes aos discos intervertebrais, líquido sinovial das
articulações, tracto gastrointestinal e olho.

Na sacroileíte precoce encontra-se sinovite com subsequente formação de pannus e


tecido de granulação. O osso destruído é eventualmente substituído e a ossificação
endocondral resulta na anquilose óssea. Histologicamente, há uma infiltração de células
T (CD4+ e CD8+) e macrófagos CD68, proliferação de fibroblastos e neovascularização,
assim como sobre-expressão de TNFα e factor de crescimento mRNA β.

A sinovite da espondilartropatia apresenta características de outros tipos de artrite


inflamatória, como aumento de vascularização e activação de células endoteliais, com
aumento de expressão de moléculas de adesão e factores quimiotácticos. Diferenças

63
relevantes incluem uma tendência para maior vascularização, maior infiltração de
células T CD4+ e células B CD20+ e poucos infiltrados linfóides.

A entesite é uma característica da PsA e a cartilagem é um dos maiores alvos de


inflamação. As lesões inflamatórias são caracterizadas por inflamação de tecidos moles
e infiltração da medula óssea com células T CD4 e CD8, células B, macrófagos e
osteoclastos. Isto é mais frequente em locais periféricos sujeitos a stress biomecânico
e ricos em cartilagem contendo colagénio tipo II e proteoglicanos, como o local de
inserção do tendão de Aquiles no calcanhar.

Manifestações Clínicas

1) Manifestações Osteoarticulares

Dor Lombar Inflamatória

A lombalgia com ritmo inflamatória é a primeira manifestação em cerca de 75% dos


doentes. Classicamente, a dor inicia-se na região lombar ou na região lombo-sagrada;
é tipicamente uma dor de início insidioso, tornando-se persistente após alguns meses.
É inflamatória – agrava com actividade, melhora com exercício físico e anti-
inflamatórios. A rigidez matinal é prolongada (>30 minutos) e a dor nocturna pode
acordar os doentes.

A sacroiletíte ou espondilite pode ser o problema clínico predominante ou pode


complicar o curso de qualquer da espondilartropatia. Se houver progressão para
anquilose, a dor inflamatória geralmente diminui, mas é substituída por limitação
funcional importante. Os sintomas podem ser leves, com variação entre remissão e
recidiva. Uma instalação aguda de dor, agravamento de sintomas com actividade e dor
radicular são mais sugestivos de causa mecânica ou degenerativa, mas ambas as
patologias podem ocorrer no mesmo doente. Têm sido sugeridos critérios para
classificar a dor inflamatória (Tabela 3).

Melhoria da dor com exercício físico

Dor nocturna

Início insidioso

≤40 anos à data de início

Sem melhoria com o repouso

São cumpridos os critérios se pelo menos 4 dos 5 critérios estiverem


presentes (sensibilidade 77% e especificidade de 91,7%)
Tabela 3: Dor lombar inflamatória de acordo com os peritos da ASAS (Assessment of SpondyloArthritis international
Society).

A dor lombar inflamatória é um dos principais sintomas da espondilartropatia, mas o seu


valor no diagnóstico/classificação e rastreio nos cuidados de saúde primários não foi
ainda validado. Cerca de 5% dos doentes com dor lombar crónica têm
espondilartropatia; a dor lombar inflamatória tem sido desde sempre um critério central
na classificação da EA e PsA.

64
Anquilose

Uma das principais preocupações dos doentes com SPA é a progressão para anquilose,
que resulta na ossificação dos ligamentos e das articulações costovertebrais e
esternocondrais (Figura 2). O primeiro sinal de uma postura anómala é a perda da
lordose lombar, seguida de uma cifose torácica e, em casos graves, progressão até à
região cervical. O movimento da coluna está restringido em todos os planos. A restrição
do movimento pode não ser proporcional ao grau de anquilose devido a espasmos
musculares secundários.

Figura 2: Evolução radiológica da espondilite anquilosante, com rectificação das vértebras cervicais (A), anquilose
torácica (B) e lombar (C), com sindesmófitos (C), com osteofitose degenerativa (C,D) e aumento da interlinha articular
ao nível as sacro-ilíacas. (Cortesia Unidade de Doenças Auto-Imunes Hospital Curry Cabral).

Fractura

A osteoporose da coluna é frequentemente observada nas espondilartropatias de longa


evolução, resultando em aumento de risco de fractura. Este facto contribui para a
elevada prevalência de fracturas que ocorre frequentemente após trauma mínimo numa
coluna rígida e anquilosada. É necessário um elevado nível de suspeição para a
possibilidade de fractura em doentes com espondilartropatia que se apresentam com
instalação aguda de dor lombar ou cervical, especialmente após traumatismo. A
radiografia simples é pouco sensível e pode ser necessária TC ou, preferencialmente,
RMN para fazer o diagnóstico.

A osteoporose da coluna vertebral é parcialmente provocada pela falta de mobilidade


condicionada pela doença, bem como resultado de citocinas pró-inflamatórias.

Artrite periférica

A artrite periférica é tipicamente assimétrica, oligoarticular e envolve os membros


inferiores. O envolvimento dos membros superiores é tipicamente associado a artrite
psoriática. Uma apresentação bilateral e simétrica poliartricular é possível, diferindo da
Artrite Reumatóide pelo atingimento das articulações interfalângicas distais.

Dactilite

A dactilite é muito característica da SPA, embora não totalmente específica. Não é tão
comum na EA, mas mais típico da ReA, PsA ou SPA indiferenciada. Ao contrário da

65
sinovite, o edema não é confinado a uma articulação, mas envolve todo o dedo (Figura
3). Trata-se de uma combinação de sinovite, entesite, tenossinovite e edema dos tecidos
moles.

Figura 3: Dactilite do segundo dedo da mão direita (*) (A: Apostolos Kontzias, Merck Manual, Springer Science and
Business Media 2017; B: Cortesia Hideki Maejima; C: Garg A and Gladman D. Reocgnizing psoriatic arthritis in the
dermatology clinic. Journal of the American Academy of Dermatology, Volume 63, Issue 5, November 2010, Pages 749)

Dor torácica anterior e envolvimento axial de articulações (bacia e ombros)

A dor torácica anterior ocorre em cerca de 15% dos doentes e é geralmente o resultado
de artrite esternoclavicular, manubrioesternal ou esternocostal, podendo levar à redução
da expansão torácica. Nos primeiros 10 anos da doença pode ainda ocorrer artrite da
bacia e ombros, sintomas que afectam um terço dos doentes. O envolvimento das ancas
é geralmente bilateral, podendo levar a destruição grave e limitação funcional.

Entesite

A inflamação dolorosa das enteses – locais de inserção dos tendões, ligamentos, fáscia
ou cápsulas articulares aos ossos – é a característica patológica que distingue a PsA. A
entesite mais frequente é a dor no calcanhar (posterior ou inferior) relacionada com
inflamação do tendão de Aquiles ou da inserção da fáscia plantar. A dor surge de manhã,
assim que o doente coloca o pé no chão, e melhora com a deambulação. Esta entesite
não é dolorosa durante o sono, mas pode ser incapacitante e resistente à terapêutica
habitual. Outros sinais clínicos são a dor na crista ilíaca, na tuberosidade tibial anterior
ou na parede torácica anterior.

A entesite é melhor visualizada por RMN ou ecografia. Só se detecta na radiografia


depois de ocorrer o processo de ossificação.

2) Manifestações Extra-articulares

Uveíte (Irite ou Iridociclite)

A uveíte anterior aguda é a manifestação extra-articular mais comum na EA, ocorrendo


em cerca de 20-30% dos doentes, sendo que 25 a 40% têm mais do que um episódio.
A incidência é mais elevada nos doentes HLA-B27 positivos.

66
É importante detectar e tratar uveíte anterior aguda rapidamente uma vez que a perda
visual pode ser irreversível. Apresenta-se tipicamente com dor ocular unilateral,
vermelhidão, fotofobia e lacrimejo, devendo motivar observação urgente pela
Oftalmologia. A principal complicação é a formação de sinéquias. A uveíte que se
desenvolve com PsA ou EnA enteropática tende a ser mais crónica e bilateral e
frequentemente envolve elementos posteriores.

Manifestações Cardíacas

As manifestações cardíacas são raras, mas graves, sendo o bloqueio cardíaco a


manifestação mais frequente. A insuficiência aórtica secundária a endocardite asséptica
pode também ser uma manifestação grave da doença.

Envolvimento Pulmonar

A doença pulmonar restritiva pode ocorrer na doença terminal, como resultado da fusão
costovertebral e costoesternal e expansão torácica limitada. A fibrose apical pode
ocorrer na doença grave e pode levar à colonização por bactérias ou fungos.

Envolvimento Renal

Tem sido reportada nefropatia IgA na EA. A referir ainda que a amiloidose é uma
complicação muito rara na doença prolongada.

Envolvimento Gastrointestinal

As lesões inflamatórias no intestino são comuns e podem causar diarreia, geralmente


acompanhada por sangue e muco. É frequente a perda ponderal. A doença inflamatória
intestinal pode ou não ter sido já diagnosticada nestes doentes. A biópsia do cólon
mostra lesões inflamatórias subclínicas em 20-70% dos doentes com EA que não têm
sintomas ou doença inflamatória intestinal clinicamente objectivável. O início do
envolvimento axial muitas vezes precede a da doença intestinal e os sintomas axiais
não flutuam com a actividade da doença intestinal.

Manifestações Cutâneas

As manifestações cutâneas são frequentes, mas geralmente relacionadas com uma


doença específica como a psoríase ou a artrite reactiva. A psoríase é observada em 20
a 40% dos doentes com espondilartropatia.

Exames Complementares de Diagnóstico


Não há testes laboratoriais específicos de espondilartropatia. A velocidade de
sedimentação (VS) e a proteína C reactiva (PCR) estão aumentadas em 40% dos
doentes. O aumento da PCR é uma das características da espondilartopatia axial usada
na classificação ASAS (Assessment of SpondylArthritis international Society), embora
devam estar presentes outas características.

Pode estar presente uma ligeira anemia nomocítica e normocrómica de doença crónica.
O HLA-B27 está presente em 92% dos doentes com EA. Todavia, o HLA-B27, por si só,
não é diagnóstico, uma vez que se encontra em até 8% de indivíduos saudáveis. Assim,
a determinação da presença de HLA-B27 não é mandatória na

67
avaliação clínica, mas é especialmente útil para a classificação de doentes que têm
exames de imagem negativos.

Exames de Imagem
As radiografias simples da coluna, articulações sacroilíacas e articulações periféricas
podem revelar várias alterações estruturais. No entanto, não são úteis na doença
precoce não radiográfica, uma vez que as alterações estruturais radiográficas reflectem
as consequências da inflamação e não inflamação activa.

A sacroileíte radiográfica é o marco da EA e demora vários anos até que seja visível na
radiografia simples. As alterações mais precoces incluem a perda de definição das
margens corticais do osso sub-condral, erosões e esclerose. À medida que a erosão
progride, o espaço articular surge maior, depois fibroso, até que a anquilose óssea
oblitera a articulação. As alterações articulares geralmente tornam-se simétricas durante
o curso da doença.

A sacroileíte radiográfica pode ser classificada de acordo com o sistema de classificação


de Nova Iorque: grau I – suspeita; grau II – evidência de erosão e esclerose; grau III –
erosões, esclerose e anquilose precoce; grau IV – anquilose total.

Apesar do uso rotineiro desta expressão, deve ser salientado que o termo sacroileíte é
inapropriado – sacroileíte sugere que as radiografias podem demonstrar um aspecto
inflamatório das articulações sacroilíacas, mas as alterações observadas são já
resultado de um processo destrutivo.

As radiografias da coluna revelam tipicamente o squaring das vértebras secundário a


erosões das margens superior e inferior dos corpos vertebrais. A entesite vertebral pode
causar esclerose dos corpos vertebrais superior e inferior que aparecem como esquinas
mais hipertransparentes, denominadas lesões de Romanus. A ossificação do anel
fibroso leva a formação de sindesmófitos e, ao longo do tempo, à formação de pontes
entre esses sindesmófitos, resultando num aspecto de coluna em bambu. A EA e EnA
tipicamente exibem artrite simétrica bilateral e sindesmófitos contínuos, enquanto que a
ReA e a PsA caracteristicamente exibem sacroileíte assimétrica e espondilite
descontínua.

A Ressonância Magnética (RMN) detecta lesões inflamatórias muito antes de estas


serem detectadas nas radiografias simples. Os critérios ASAS para a espondilartropatia
axial incluem RMN como um dos principais critérios. Quando a suspeita clínica é forte,
mas a radiografia simples das articulações sacroilíacas é normal, a RMN pode mostrar
clara evidência de sacroileíte e entesite. A Tomografia Computorizada é também
limitada na detecção apenas de alterações estruturais.

Classificação
Os novos critérios de classificação para a espondilartropatia axial pela ASAS (Tabela
4) vieram permitir o diagnóstico precoce, pré-radiográfico de espondilite axial bem como
da espondilite estabelecida. A sacroileíte pré-radiográfica implica que não há alterações
radiográficas no momento, mas que se poderão vir a desenvolver ao longo do tempo.

68
Os anteriores critérios, da ESSG (European Spondyloarthropathy Study Group) (Tabela
5) e os critérios Amor (Tabela 6) incorporavam características axiais, periféricas, bem
como características extra-articulares, permitindo o diagnóstico de espondilartropatia,
mesmo na ausência de sacroileíte radiográfica. A principal diferença entre estes dois
grupos de critérios era o seu formato. Os critérios da ESG apenas podiam classificar
doentes com doença axial e/ou um envolvimento periférico, enquanto os critérios Amor
podiam também classificar doentes sem envolvimento axial ou articular periférico.
Todavia, quando estes critérios eram usados em doentes sem sacroileíte radiográfica,
a sua doença era referida como espondilartropatia indiferenciada, sem diferenciação
entre axial ou periférica. Estes critérios foram criados antes da disponibilidade da RMN,
uma ferramenta imprescindível para o diagnóstico precoce, uma vez que pode detectar
inflamação activa na coluna e articulações sacroilíacas não visíveis na radiografia
simples. O diagnóstico precoce permite a instituição de terapêutica antes do dano
estrutural permanente, permitindo alterar o curso natural da doença.

≥1 manifestações de SPA + Sacroileíte*


ou
HLA-B27 + ≥2 outras manifestações de SPA
MANIFESTAÇÕES DE ESPONDILARTROPATIA:
Dor lombar inflamatória
Artrite

Entesite (calcanhar)
Uveíte

Dactilite
Psoríase
Colite/Doença de Crohn
Boa resposta a Anti-inflamatórios não esteróides
História familiar de SPA

HLA-B27
PCR elevada
*Inflamação compatível com sacroileíte na RMN ou sacroileíte
radiográica de acordo com os critérios modificados de Nova Iorque
Tabela 4: Critérios de Classificação ASAS para SPA axial (Assessment of SpondyloArthritis international Society).

Os critérios de classificação para espondilite axial têm ajudado a aumentar o


reconhecimento desta entidade, conceito que contém um espectro de doença desde a
doença clínica não radiográfica até à doença mais estabelecida. A alteração mais
significativa dos critérios foi, de facto, a inclusão da RMN como critério principal. Por
outro lado, uma RMN negativa não exclui o diagnóstico de espondilartropatia – o
diagnóstico pode ainda ser feito em termos clínicos. Se a RMN for negativa ou se houver
ausência de evidência radiológica, é necessário para o diagnóstico a presença de HLA-
B27 e mais duas características de espondilartropatia.

69
DOENÇA LOMBAR INFLAMATÓRIA

ou
SINOVITE – assimétrica ou predominantemente nos membros inferior

- E MAIS 1 DOS SEGUINTES:


História familiar – familiar em 1º ou 2º grau com EA, psoríase, irite aguda, ReA ou doença
inflamatória intestinal
Doença inflamatória intestinal
Dor glútea alternante actual ou no passado
Dor espontânea ou desconforto no local de inserção do tendão de Aquiles ou na fáscia
plantar actualmente ou no passado (entesite)
Episódio de diarreia <1 mês antes do início da artrite
Uretrite ou cervicite não gonocócica <1 mês antes do início da artrite
Sacroileíte grau 2-4 ou grau 3 ou 4 unilateral
Tabela 5: Critérios de Classificação ESSG (European Spondyarthropathies Study Group)

M ANIFESTAÇÕES CLÍNICAS OU HISTÓRIA PRÉVIA DE:


- Do lombar/dorsal nocturna ou rigidez matinal da área dorsal ou lombar – 1 ponto

- Oligoartrite assimétrica – 2 pontos


- Dor glútea (se dor glútea alternante) – 1 ponto
- Dactilite – 2 pontos

- Dor no calcanhar ou outra entesopatia – 2 pontos


- Uveíte anterior aguda 2 pontos
- Uretrite/cervicite não gonocócica até um mês antes do início da artrite – 1 ponto

- Diarreia aguda até 1 mês antes do início da artrite – 1 ponto


- Psoríase, balanite ou doença inflamatória intestinal (DII) – 1 ponto
ACHADOS RADIOLÓGICOS:
- Sacroileíte (bilateral grau 2 ou unilateral grau 3) – 2 pontos
BACKGROUND GENÉTICO:
- Presença de antigénio HLA-B27 e/ou história familiar de EA, ReA, uveíte, psoríase ou
DII – 2 pontos
RESPOSTA À TERAPÊUTICA:
- Melhoria 48h após início de anti-inflamatórios não esteroides ou recorrência da dor após
o fim desta terapêutica – 2 pontos
Considera-se que um doente tem SPA se a soma dos pontos é 6 ou mais. Uma contagem total de 5 ou mais
classifica-se como SPA provável.
Tabela 6: Critérios de Classificação Amor

É importante salientar que estes critérios são primariamente desenhados para o intuito
de classificação e investigação. Não há critérios de diagnóstico de SPA, pelo que na
prática clínica há que adoptar uma abordagem mais flexível. Uma proposta de esquema
diagnóstico está ilustrada na Figura 4.

70
Figura 4: Critérios de diagnóstico para Espondilite Anquilosante (esquema de decisão) (AS: espondilite anquilosante;
CRP: Proteína C Reactiva; SR: velocidade de sedimentaçãoo; NSAIDs:anti-inflamatórios não esteróides; SpA:
espondilartropatias) (de Rudwaleit,M.et al, How to diagnose axial dpondyloarthritis early. Ann Rheum Dis 2004;63:535-
43)

Doenças diferentes a pertencer ao grupo das Espondilartropatias


As Espondilartropatias podem apresentar-se como um largo espectro de manifestações
clínicas, sendo que certas manifestações podem ocorrer mais frequentemente nalguns
subtipos (Tabela 7).
SPA SPA
EA PsA EnA ReA
Juvenil indiferenciada
ARTRITE AXIAL +++ ++ ++ ++ + +
ARTRITE
+ +++ + + + +
PERIFÉRICA
ENTESITE + + + + + +
M ANIFESTAÇÕES
EXTRA-
ARTICULARES
UVEÍTE ++ + + + + +
PSORÍASE +++
DIARREIA +++
CONJUNTIVITE,
+++
URETRITE
INSUFICIÊNCIA
+ + + + + +
AÓRTICA
Tabela 7: Prevalência de manifestações clínicas/doença nas Espondilartropatias (EA: Espondilite Anquilosante; PsA:
Artrite Psoriárica; EnA: Artrite Enteropática; ReA: Artrite Reactiva; SPA: Espondilartropatia) 1

71
1) Espondilite Anquilosante (EA)

A EA o protótipo de espondilartropatia. É caracterizada pela presença de sintomas axiais


resultando em limitação da mobilidade da coluna e evidência radiológica de sacroileíte.
Podem, no entanto, ser vistas outras manifestações, nomeadamente entesite (40-60%)
e/ou uveíte aguda anterior (30-50%).

Os critérios modificados de Nova Iorque (Tabela 8) têm sido amplamente aceites na


prática clinica e nos ensaios clínicos para classificar doentes com EA. Embora
funcionem bem na doença estabelecida, são muito limitados na doença precoce. Além
disso, focam-se sobretudo na doença da coluna e das articulações sacroilíacas e não
incluem as manifestações extra-articulares.

DIAGNÓSTICO DE ESPONDILITE ANQUILOSANTE

Critérios Clínicos
- Dor lombar e rigidez durante mais de 3 meses, que melhora com o exercício mas não
alivia com o repouso
- Limitação da mobilidade da coluna lombar em ambos os planos sagital e frontal

- Limitação da expansão torácica relativamente ao valor normal, corrigido para idade e sexo
Critérios Radiológicos
- Sacroileíte grau >2 bilateralmente ou grau 3-4 unilateral
Espondilite Anquilosante definitiva: presença de critério radiológico + pelo menos 1 critério clínico
Espondilite Anquilosante provável: pelo menos 3 critérios clínicos OU critério radiológico presente sem sinais
ou sintomas que correspondam aos critérios clínicos
Tabela 8: Critérios modificados de Nova Iorque para a Espondilite Anquilosante.

2) Artrite Psoriática (PsA)

A psoríase é uma doença cutânea frequente entre a população caucasiana, afectando


igualmente os sexos feminino e masculino. Cerca de 10% dos doentes têm artrite
associada. A psoríase geralmente antecede o aparecimento da artrite, mas o seu
aparecimento pode ser simultâneo em 20% dos doentes e em até 15% a artrite pode
preceder o diagnóstico de psoríase. A artrite inicia-se entre os 30 e os 50 anos de idade,
mas pode também iniciar-se na infância. Em muitos doentes, as exacerbações e
remissões do envolvimento da pele e articular ocorrem sem grande relação.

O envolvimento articular periférico pode ser poliarticular ou oligoarticular. O padrão típico


de doença articular tem uma distribuição assimétrica, com envolvimento das
articulações interfalângicas distais e dactilite. Cerca de 5% tem predominantemente
espondilite. Alguns doentes apresentam-se com um tipo de doença mutilante, afectando
as articulações interfalângicas distais, denominada artrite mutilante. A PsA é uma
doença crónica erosiva e a terapêutica é semelhante à usada na artrite reumatóide.

72
CRITÉRIOS CASPAR PARA ARTRITE PSORIÁTICA
Psoríase actual – score 2
História pessoal de psoríase (na ausência de psoríase actual) – 1 ponto
História familiar de psoríase em familiares de 1º ou 2º grau (na ausência de psoríase
actual ou história pessoal de psoríase) – 1 ponto
Dactilite – 1 ponto
Neoformação óssea justa-articular – 1 ponto
Negactividade para factor reumatóide
Distrofia ungueal
O doente tem Artrite Psoriática se a soma dos pontos é 3 ou mais
Tabela 9: Critérios CASPAR para a Artrite Psoriática.

Os critérios CASPAR (Classification Criteria for Psoriatic Arhtritis) (Tabela 9) foram


desenvolvidos por um grupo de estudos internacional e têm uma sensibilidade de 91%
e uma especificidade de 99%.

Radiologicamente, a PsA é caracterizada por neoformação justa-articular, ausência de


osteopénia peri-articular e espaço interarticular relativamente preservado.

3) Artrite Enteropática (EnA)

A Artrite Enteropática descreve a ocorrência de artrite inflamatória em doentes com


colite ulcerosa ou doença de Crohn. A prevalência de artrite na doença inflamatória
intestinal vai desde 17 a 20%, com maior prevalência na Doença de Crohn.

A manifestação mais comum da EnA é a inflamação do joelho e das tibiotársicas. O


envolvimento axial e a entesite também podem ser encontrados. A artrite periférica é
geralmente transitória, migratória e não deformante. Os episódios inflamatórios são
geralmente auto-limitados, geralmente no período de 6 semanas, mas as recorrências
são comuns. Nalguns casos, a artrite pode tornar-se crónica e destrutiva. Os sintomas
intestinais geralmente antecedem ou coincidem com manifestações articulares, mas a
artrite pode preceder os sintomas intestinais por anos.

4) Artrite Reactiva (ReA)

A artrite reactiva consiste num episódio de artrite periférica asséptica que ocorre dentro
de um mês de uma infecção primária numa qualquer localização do corpo, geralmente
uma infecção genitourinária por Chlamydia trachomatis ou enterite devido a
enterobactérias Gram negativas como Shigella, Salmonella, Yersinia ou Campylobacter.
A infecção do tracto genitourinário por C. Trachomatis é o mais frequente factor
desencadeante de ReA nos países desenvolvidos, enquanto as infecções por
enterobacteriáceas são os agentes mais frequentes nos países em vias de
desenvolvimento. Em cerca de 25% dos casos não é possível identificar o agente
desencadeante.

73
ReA é tipicamente uma oligoartrite aguda, assimétrica e geralmente associada a uma
ou mais manifestações extra-articulares como inflamação ocular (conjuntivite ou irite
aguda), entesite, lesões mucocutâneas, uretrite e, em raras ocasiões, cardite. A
conjuntivite ocorre num terço dos doentes, geralmente ao mesmo tempo que os flares
de artrite e a uveíte anterior aguda pode ocorrer ao mesmo tempo em 5% dos doentes.
A tríade de artrite, conjuntivite e uretrite é denominada a Artrite Reactiva clássica. A
maior parte dos doentes não se apresentam, no entanto, com esta tríade.

A duração média da artrite é 4 a 5 meses, mas dois terços dos doentes têm sintomas
musculoesqueléticos que persistem por mais de um ano. Recorrências são mais
frequentes em doentes com ReA induzida por Chlamydia. Cerca de 15-30% dos doentes
têm artrite crónica ou recorrente crónica, sacroileíte ou espondilite. A maior parte dos
doentes com ReA crónica têm uma história familiar positiva de SPA ou são HLA-B27
positivos.

5) Espondilartropatia Indiferenciada

A espondilartropatia indiferenciada é frequentemente sub-diagnosticada e inclui


síndromas clínicas isoladas, como oligoartite ou poliartrite seronegativa associada a
HLA-B27, sobretudo com artrite dos membros inferiores. Esta artrite não é associada a
nenhuma infecção bacteriana prévia, não está associada a doença inflamatória intestinal
ou psoríase.

Os doentes com espondilartropatia indiferenciada podem ter dactilite, entesite,


sobretudo do tendão de Aquiles, e podem ainda apresentar-se com uveíte anterior ou
ter insuficiência aórtica com bloqueio cardíaco.

Avaliação da Actividade da Doença


A actividade da doença está relacionada com o grau de inflamação. O grupo ASAS
elaborou recomendações relativamente ao uso de diferentes ferramentas de avaliação
para os vários domínios de actividade de doença (Tabela 10). No envolvimento axial o
grau de dor nocturna e dor da coluna é quantificado usando uma escala visual analógica
ou uma escala numérica. A rigidez matinal deve ser avaliada em termos de duração e
gravidade. A avaliação funcional em estudos clínicos é feita usando o Bath Ankylosing
Spondylitis Functional Index (BASFI).

Na artrite periférica, a avaliação da actividade da doença é semelhante à realizada na


artrite reumatóide – número de articulações dolorosas, tumefactas, proteína C reactiva,
etc.

Além dos diferentes instrumentos facilitando a avaliação da actividade das diferentes


apresentações clínicas, um único índice foi proposto para avaliação geral – BASDAI
(Bath Ankylosing Spondylitis Disease Activity Index). É um índice de simples utilização
e que possui seis perguntas relacionadas com fadiga, envolvimento axial, envolvimento
articular periférico, entesopatia e rigidez matinal. Um outro índice, o

74
Ankylosing Spondylitis Disease Activity Score (ASDAS) inclui não só as questões do
BASDAI mas também marcadores biológicos de inflamação.

DOMÍNIO INSTRUMENTO

BASFI (Bath Ankylosing Spondylitis Functional


Função Física
Index)

Dor Escala Visual Analógica (EVA)

Expansão torácica, Teste Schober modificado,


Mobilidade da coluna
distância tragus-parede e flexão lateral da coluna

Avaliação Global do doente EVA

Duração da rigidez matinal da coluna na semana


Rigidez Matinal
prévia

Fadiga EVA na semana prévia

Nº de articulações tumefactas; índices validados de


Articulações periféricas e enteses
enteses

Reagentes de fase aguda Velocidade de sedimentação

Coluna lombar anterioposterior e lateral e coluna


Radiografias da coluna e da Bacia
cervical lateral E sacroilíacas e ancas
Tabela 10: Recomendações ASAS1

A avaliação funcional pode traduzir não só a actividade da doença, mas também a sua
gravidade. Assim, os vários instrumentos podem avaliar a perda de mobilidade/rigidez
(através da avaliação da flexão lombar e expansão torácica) e avaliar a postura anormal
(através da distância tragus-parede). O envolvimento da bacia está relacionado com a
gravidade da ossificação da coluna e é responsável por limitação funcional significativa.
É tipicamente bilateral e a distância inter-maleolar avaliada pelo BASMI reflecte o grau
de envolvimento da bacia.

Foi já determinado que a presença de determinadas características nos primeiros dois


anos de doença podem ser preditores de mau prognóstico e definidoras de doença mais
grave; são elas: envolvimento da bacia, velocidade de sedimentação >30mm/1ªh,
doença refractária a anti-inflamatórios não esteróides (AINE), redução da mobilidade da
coluna lombar, dactilite, monoartrite/oligoartrite, idade de início <16 anos, diarreia,
uretrite, psoríase e doença inflamatória intestinal. Considera-se refractoriedade a AINE
se a doença persiste apesar de dois cursos desta terapêutica em dose máxima pelo
menos durante 2 a 3 semanas.

Terapêutica

Tratamento não farmacológico


É importante promover educação sobre a doença, exercício físico regular, cessação
tabágica e fisioterapia.

75
Tratamento farmacológico

Figura 5: Sumário das recomendações para o tratamento de EA4

76
A intensidade de sintomas e a progressão da doença nas espondilartropatias com
manifestações de predomínio axial é muito variável. Em muitos casos a intervenção não
farmacológica juntamente com AINEs é suficiente para controlar os sintomas. No caso
específico da espondilite axial, nenhum DMARD sintético clássico, incluindo o
metotrexato, mostrou eficácia. Ou seja, nos casos em que os AINEs não são suficientes
para o tratamento, o passo seguinte é um DMARD biológico - os anti TNF alfa (infliximab,
etanercept, adalimumab, golimumbab, certulizumab) e os anti IL17. Quando existem
manifestações periféricas, os DMARS sintéticos clássicos podem ter resultado
(sulfassalazina, metotrexato) – figura 5.
O tratamento da PsA depende do tipo de expressão articular. Na maioria dos casos há
sobretudo manifestações articulares periféricas e o tratamento faz-se com a mesma
estratégia que na AR. Quando o envolvimento é predominante axial, o tratamento segue
a estratégia da EA. Para além do anti-TNF, alguns novos DMARDs biológicos têm
demonstrado eficácia no tratamento da psoríase cutânea e PsA, como o ustekinumab
(anti IL-12/IL-23).

SERVIÇO DE URGÊNCIA: pensar em Espondilartropatias num jovem com menos de


45 anos com dor lombar persistente. Pensar e perguntar sobre manifestações
associadas cutâneas e gastrointestinais e excluir infecção precedente.

TAKE HOME MESSAGES


As Espondilartropatias (SPA) são uma família heterogénea de doenças
caracterizadas por dor inflamatória axial, artrite periférica e entesite. Pode haver
manifestações extra-articulares, como doença inflamatória intestinal, psoríase,
uretrite e uveíte anterior.
A presença de HLA-B27 confere um risco acrescido de desenvolver SPA.
O sintoma inicial da Espondilite Anquilosante (EA) é tipicamente uma dor lombar de
inicio insidioso, tornando-se persistente ao fim de alguns meses.
A artrite periférica é sobretudo oligoarticular, assimétrica, transitória e migratória,
com envolvimento de articulações pequenas e grandes, predominantemente nos
membros inferiores.
Não há testes diagnósticos específicos.
Os achados radiográficos típicos da EA são a sacroileíte, as erosões e a esclerose.

77
Bibliografia
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Treatment of Anlylosing Spondylitis and Nonradiographic Axial Spondyloarthritis, Arthritis &
Rheumatism, Vol 68. Nº2, Feb 2016.

78
3. SÍNDROME DE SJÖGREN

Definição
A síndrome de Sjögren (SSj) é uma doença auto-imune sistémica crónica, que se
caracteriza por uma infiltração linfocítica das glândulas exócrinas, sobretudo glândulas
lacrimais e salivares, levando à destruição tecidular e, consequentemente, à secura da
das mucosas. O seu espectro de manifestações clínicas é grande, podendo apresentar-
se sob a forma de síndrome sicca ou levar ao envolvimento sistémico.
A SSj pode surgir isolada – SSj primária – ou em associação com outras doenças auto-
imunes – SSj secundária –, como o lúpus eritematoso sistémico (LES), artrite
reumatóide (AR) e a esclerose sistémica (ES).

Epidemiologia
A SSj tem uma incidência estimada de 0.5 a 1% na população em geral; acomete,
geralmente, as mulheres na proporção de 9:1, entre a 4ª e a 5ª décadas de vida. A
incidência mundial estimada é de 1/2500 doentes/ano. A sua prevalência é semelhante
em todos os grupos étnicos.

Etiologia e Fisiopatologia
A etiologia da SSj ainda não está totalmente esclarecida. Vários estudos têm
demonstrado que determinados factores ambientais (vírus, stress, factores hormonais)
actuam como potenciais triggers no desenvolvimento da doença em indivíduos
geneticamente susceptíveis (com antigénios específicos do grupo HLA), conduzindo a
uma resposta imunológica aberrante, inflamação crónica e destruição tecidular (Fig.1).
Da acção conjunta destes 2 grupos de factores resulta a auto-agressão dirigida às
células epiteliais das glândulas exócrinas por células T (CD8+ > CD4+) e células B. A
hiperactividade das células B é a hallmark da doença, como é evidenciado pela
presença de hipergamaglobulinémia e auto-anticorpos específicos e não-específicos
(ex.: anticorpo anti-nuclear (ANA), anticorpo anti-Ro/SSA, anticorpo anti-La/SSB, factor
reumatóide e crioglobulinas), fenótipos clínicos e serológicos, mediados por
imunocomplexos, como neuropatia periférica, glomerulonefrite (GN), lesões vasculíticas
e hipocomplementémia. Esta sobreprodução de células B está também relacionada com
doenças linfoproliferativas, havendo um aumento de incidência de linfomas (sobretudo
Linfomas Não Hodgkin) nos doentes com SSj e um risco estimado 4-40x maior quando
comparado com o resto da população. Deste modo, a SSj representa um modelo de
estudo de auto-imunidade e transformação maligna.
Os principais vírus associados à etiopatogénese da SSj são o citomegalovirus, o vírus
de Epstein-Barr, Herpes Vírus tipo 6, retrovírus, vírus da hepatite C e enterovírus.

79
Figura 1: Representação de esquema fisiopatológico proposto para a Síndrome de Sjögren (SSj). Factores ambientais,
como vírus ou outros activadores da imunidade inata, provocam activação das células epiteliais e das células dendríticas.
A estimulação das células dendríticas leva à activação das vias I e II do interferão (IFN). Para além disso, a interleucina-
12 (IL-12) segregada pelas células dendríticas convencionais leva também à activação de células natural killers (NK) e
células Th1, que vão aumentar a produção de IFN gama e mediar a lesão tecidular. O IFN alfa e o IFN gama estimulam
a secreção de BAFF (B cell activating factor), activando as células B e T. Em indivíduos susceptíveis a SSj a activação
das células B vai levar à produção de auto-anticorpos pelos plasmócitos. As células epiteliais libertam auto-antigénios
que participam na formação de imuno-complexos e perpetuam o ciclo vicioso da activação do sistema imunitário. From
Nocturne G and Mariette X. Advances in understanding the pathogenesis of primary Sjögren’s Syndrome. Nat. Rev.
Reumatol., 2013: 1-13.

Manifestações Clínicas
Apesar de a SSj se caracterizar pelo envolvimento poliglandular, a infiltração peri-
epitelial nos órgãos parenquimatosos e a deposição de imunocomplexos resultante da
hiperactividade de células B, torna-a numa doença sistémica.

Manifestações Glandulares
A síndrome sicca caracteriza-se por xerostomia (sensação de secura da cavidade oral)
e está descrita em 95% dos doentes. Outros sintomas associados são a dor, disfagia e
fonação. A hipossecreção salivar pode propiciar a infecção local, cáries dentárias,
doença periodontal e queilite angular, pela ausência das propriedades anti- microbianas
da saliva. A superfície da língua pode começar por se apresentar eritematosa, com
fissuras e atrofia papilar filiforme, para se tornar seca e vitrificada nos estadios mais
avançados da doença (Fig.2-A).
A xeroftalmia (sensação de secura ocular) pode causar prurido e sensação de corpo
estranho, fotossensibilidade, fadiga ocular e redução da acuidade visual (Fig.2-C). A
hipossecreção lacrimal condiciona irritação e destruição crónica do epitélio corneano
(queratoconjuntivite sicca). Os doentes ficam mais susceptíveis às infecções oculares
(blefarite, queratite bacteriana e conjuntivite), assim como à úlcera de córnea.

80
Figura 2: A – Xerostomia (by Scully C, et al. Oral and Maxillofacial Surgery, 2016); B – Edema das glândulas parótidas
(American College of Rheumatology); C – Xeroftalmia (by Alan Kabat, O.D.).

Outros sintomas descritos são a disfonia e tosse persistentes e o edema


crónico/episódico assintomático das glândulas salivares (10-20%), uni ou bilateral
(Fig.2-B).

Manifestações Sistémicas ou Extra-Glandulares

Músculo-esqueléticas – as artralgias são frequentes (25-50%), mas pode surgir uma


artrite simétrica intermitente das pequenas articulações. A deformação articular e as
erosões ósseas são raras e surgem associadas à AR. As mialgias são referidas
frequentemente, podendo estar presente uma miosite subclínica.

Cardiovascular – o fenómeno de Raynaud (30-50%) pode preceder as manifestações


sicca (Fig.3). Normalmente é ligeiro e não necessita de terapêutica farmacológica; as
complicações (úlcera digital, gangrena ou auto-amputação) são raras. Esta alteração
está associada a um aumento da prevalência de manifestações extra-glandulares. O
envolvimento cardíaco é incomum, sendo a pericardite e o derrame pericárdico (ligeiro
e assintomático) as manifestações mais descritas.

Figura 3: Fenómeno de Raynaud (A e B from Hallett J et al. Merck Manual, Springer Science)

Pulmonares - existem dois tipos de envolvimento pulmonar na SSj primária: a doença


brônquica/bronquiolar com padrão obstrutivo por espessamento da parede
brônquica/bronquiolar; e a doença intersticial, com perfil restritivo. Surge, geralmente,
no início da doença e associa-se ao anticorpo anti-Ro/SSA.

Cutâneas – resultam de um processo de vasculite de pequenos vasos (linfocítica ou


neutrofílica), como a púrpura palpável e a urticária (rara), associadas à presença de

81
crioglobulinas em até 30% dos casos; ou de um processo não vasculítico associado à
presença de anticorpo anti-Ro/SSA e cujos achados clínicos mais característicos são as
lesões policíclicas fotossensíveis, semelhantes ao eritema anular.

Vasculite – pode surgir em até 15% dos doentes, geralmente vários anos após o
diagnóstico. É um factor de mau prognóstico, estando associada a um risco aumentado
de linfoma, com subsequente aumento da mortalidade. Normalmente afecta os
pequenos vasos da pele, mas outros órgãos podem ser acometidos como nervos,
músculos e rins. Histologicamente, existem dois tipos de vasculite relacionada com a
SSj: leucocitoclástica (infiltrado de células polimorfonucleadas) e linfocítica (infiltrado de
linfócitos e monócitos). Concomitante com os processos de vasculite, são habitualmente
detectadas crioglobulinas (tipo II, IgMk), títulos elevados de factor reumatóide e ANA,
hipergamaglobulinémia, hipocomplementémia e elevação da velocidade de
sedimentação (VS).

Figura 4: A, B, C, C, D: Vascullite leucocitoclástica de longa evolução em doente com fenómeno de Raynaud, que
melhorou após a terapêutica (Mutasim D., Sjögren’s Syndrome. Decision Support in Medicine, 2017); E – Úlcera de perna
por vasculite linfocítica em doente com Síndrome de Sjögren (©Útlitslaekning.is).

Gastrointestinais e hepato-biliares – incluem a hipomotilidade esofágica com disfagia e


refluxo gastroesofágico, a gastrite crónica e, mais raramente, a má absorção. A infecção
por Helicobacter pylori deve ser excluída devido à associação da SSj ao linfoma,
sobretudo o gástrico. O envolvimento pancreático é denunciado pela avaliação analítica,
dado que é geralmente assintomático. As provas de função hepática estão alteradas em
5-10% dos doentes com SSj primária. Após excluídos os fármacos hepatotóxicos, as
principais causas são a infecção crónica por VHC e cirrose biliar primária (CBP) e, mais
raramente, hepatite auto-imune tipo 1 (HAI), colangite auto-imune ou colangite
esclerosante.

Renais - são pouco relatadas e podem ser de diversos tipos: doença renal intersticial,
mais frequente, caracterizada por hipocaliémia e hipostenúria; acidose tubular renal de
tipo 1 (ATR distal); GN, mais rara, e normalmente associada a vasculite sistémica,
hipocomplementémia e crioglobulinémia; e cistite intersticial.

Neurológicas – a neuropatia periférica é a manifestação neurológica mais comum. Os


tipos mais frequentemente descritos são a neuropatia sensorial isolada, provocada por
lesão dos gânglios da raiz dorsal, a polineuropatia mista e a mononeurite múltipla,
normalmente mais associadas a vasculite e a crioglobulinémia. O envolvimento do

82
sistema nervoso central (inclusive dos pares cranianos V, VII e VIII e mielopatia) pode
ocorrer, mas é raro.

Endócrinas – frequentemente são detectados anticorpos específicos contra a glândula


tiroideia, supra-renal e ovários, condicionando distúrbios como o hipotiroidismo, a
insuficiência adrenérgica e a falência ovárica prematura, respectivamente. O
hipotiroidismo sub-clínico é o achado mais frequente, sobretudo associado à presença
de anticorpos anti-tiroideus, sugerindo uma tiroidite de Hashimoto concomitante.

Sintomatologia Geral – febre, dor generalizada, fadiga, distúrbios do sono, ansiedade e


depressão são algumas das queixas que mais impacto têm na qualidade de vida dos
doentes, uma vez que podem ser altamente debilitantes. A coexistência de um quadro
fibromiálgico é frequentemente relatada.

Diagnóstico
O quadro clínico heterogéneo e a baixa valorização dos sintomas sicca pelo doente e
pelo médico podem explicar o atraso no diagnóstico, estimado em 9 anos desde o início
dos sintomas. O diagnóstico precoce é, contudo, importante para o tratamento
adequado, prevenção de complicações e melhoria da qualidade de vida.
O diagnóstico baseia-se em critérios clínicos, fisiológicos, imunológicos e histológicos.
De acordo com a European Classification Criteria de 1993 são necessários pelo menos
4 dos 6 critérios para estabelecer o diagnóstico de SSj primária (Tabela 1).

CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO DE 1993 - EUROPEAN CLASSIFICATION CRITERIA


≥ 4 / 6 CRITÉRIOS
≥ 1 (a. sensação de olho seco persistente >3meses? b. sensação
I. Sintomas oculares
corpo estranho? c. lágrimas artificiais >3x/dia?)
≥ 1 (a. sensação de boca seca 3 meses? b. aumento volume das
II. Sintomas orais
glândulas salivares? c. líquidos para auxiliar a deglutição?)
+ ≥ 1 dos 2 testes (Schirmer s/ anestesia: < 5mm em 5 min; Rosa
III. Sinais oculares
de Bengala score 4 no sistema Van Bijsterveld)
IV. Biópsia de glândula
Infiltração linfocítica: 50 linfócitos/4mm 2 de tecido glandular
salivar
a. fluxo salivar completo sem estímulo (1.5cc/15min);
V. Envolvimento de
b. sialografia parotídea (sialoectasias difusas, s/ obstrução);
glândula salivar
c. cintigrafia (captação ou excreção tardia ou concentração ↓)
VI. Auto-anticorpos a. ANA+; b. FR+; c. Ro/SSA+ ou LA/SSB+ ou ambos
Tabela 1: Critérios de Classificação para a Síndrome de Sjögren de 1993 – European Classification Criteria.

Em 2002 foram propostas novas directrizes em que o critério IV (biópsia da glândula


salivar) ou critério VIc (anticorpos anti-Ro/SSA) passou a ser obrigatório. Estes critérios
são, no entanto, controversos, uma vez que incluem testes subjectivos e medições
fisiológicas com baixa especificidade. Por este motivo, em 2012 o American College of
Rheumatology propôs novos critérios de classificação para a SSj primária,
fundamentado numa reunião de consenso de peritos (International Collaborative Clinical
Alliance Research Groups) (Tabela 2). Para a formulação destes critérios, foram
excluídos estudos e ensaios terapêuticos que incluíssem situações de overlap clínico,
nomeadamente: irradiação da cabeça e do pescoço, infecção crónica pelo vírus da
hepatite C (VHC), infecção pelo VIH, sarcoidose, amiloidose, doença do excerto contra
o hospedeiro e síndroma de hiper-IgG4. Estes critérios foram

83
submetidos a vários estudos de validação, revelando que são mais fidedignos que os
anteriores.

SJÖGREN’S INTERNATIONAL COLLABORATIVE CLINICAL ALLIANCE RESEARCH GROUPS


(AMERICAN COLLEGE OF RHEUMATOLOGY 2012) – 2/3 CRITÉRIOS
I. Anticorpo anti-Ro/SSA e/ou anti-La/SSB + OU (FR+ E ANA+ título ≥1/320)

II. Biópsia salivar de glândula salivar com sialoadenite linfocítica focal → score focal ≥ 1
foco/4mm2

III. Queratoconjuntivite sicca com coloração ocular score ≥ 3 (sem uso de colírios, cirurgia a
cataras ou cosmética nos últimos 5 anos)
Tabela 2: Critérios de Classificação da American College of Rheumatology, 2012.

Exames complementares de diagnóstico


• Avaliação laboratorial: hemograma: citopénias (33%) geralmente assintomáticas:
anemia normocítica e normocrómica ou hemolítica (rara), leucopénia e
trombocitopénia ligeiras; VS>50 mm/h (20-30%), proteína C reactiva normal;
hipergamaglobulinémia (20%); citólise hepática (VHC e HAI), aumento da bilirrubina
ou fosfatase alcalina (CBP); proteinúria (GN), hipostenúria, redução do bicarbonato
sérico e pH (ATR); ANA positivos (>80%), anticorpo anti-Ro/SSA (30-60%) e anti-
La/SSB (14-40%) positivos; FR positivo (40-50%); hipocomplementémia (10-20%),
crioglobulinémia (10-20%); outros anticorpos podem estar presentes – anti-
mitocondriais (CBP), anti-tiroideus (tiroidite auto-imune), anti-dsDNA (LES) e anti-
centrómero (ES limitada).

• Biópsia de glândula salivar: permite a identificação de uma sialoadenite linfocítica


focal, definida como múltiplos agregados de 50 linfócitos/4mm2 perivasculares e peri-
ductais na maioria das glândulas da amostra, o que se assume como o aspecto
histopatológico característico da SSj. São necessários pelo menos 4 lóbulos
glandulares e a determinação de um score focal (1 foco = pelo menos 50 linfócitos).
Atenção, que a sialoadenite inespecífica é comum nos indivíduos saudáveis, pelo
que os achados histológicos devem ser interpretados com cuidado na ausência de
sintomas, marcadores imunológicos ou analíticos. As biópsias de glândula salivar
minor podem ser realizadas em ambulatório, em unidades de doenças auto-imunes,
consultas de dermatologia ou reumatologia.

Figura 5: A – Biópsia de Glândula Salivar Minor (http://emedicine.medscape.com/article/1008536-workup consultado


em 16-04-2017); B – Histologia de biópsia de glândula salivar, coloração de hematoxilina-eosina: múltiplos focos de

84
linfócitos proeminentes e visíveis em torno dos ductos (seta) (Nordmark G et al. (2006) Mechanisms of Disease: primary
Sjögren's syndrome and the type I interferon system Nat Clin Pract Rheumatol 2: 262–269).

Figura 6: A - Teste de Schirmer e Teste de Fluoresceína (pouco realizado em Portugal) (Chang H et al. Sjögren Syndrome.
JAMA. 2010;304(4):486); B – Cintigrafia de Glândulas Salivares (1 e 2: glândulas parótidas, 3: região retro- parotídea, 4
e 5: glândulas sub-mandibulares; 6: área retro-mandibular; 7: cavidade oral).

• Medição do fluxo salivar: inclui a avaliação quantitativa sem estímulo, a sialografia


parotídea (identifica sialoectasias difusas, sem obstrução) e a cintigrafia (documenta
a captação ou excreção tardia ou concentração salivar diminuída).

• Teste de Schirmer: mede quantitativamente a produção de lágrima por meio da


humidificação do papel de um filtro colocado no saco conjuntival inferior; podem ser
instiladas gotas oftálmicas anestésicas para evitar o lacrimejo reflexo. O teste é
positivo se após 5 minutos a lágrima tiver percorrido < 5 mm da tira de papel.

• Coloração Rosa de Bengala: ao colocar-se de 25cc do corante no fórnix inferior de


cada olho permite identificar, ao exame de lâmpada de fenda, o epitélio conjuntival
lesado pela abrasão.

• Provas de função respiratória: permitem fazer a distinção entre um padrão ventilatório


restritivo e obstrutivo.

• Tomografia computadorizada pulmonar: caracterização imagiológica da doença


brônquica/bronquiolar versus intersticial.

• Broncofibroscopia e biópsia pulmonar trans-brônquica: importante para a exclusão


de outros distúrbios (diagnóstico diferencial).

Diagnóstico Diferencial
O diagnóstico de SSj deve ser bem documentado do ponto de vista clínico e laboratorial
uma vez que a síndrome sicca pode ter múltiplas causas, como a utilização crónica de
fármacos com propriedades anti-colinérgicas; a infiltração linfocítica das glândulas
exócrinas por granulomas (sarcoidose, tuberculose), por proteínas amilóides
(amiloidose) ou por células malignas (doenças linfoproliferativas); infecções crónicas
virais (VHC, VIH) podem induzir uma infiltração linfocítica das

85
glândulas exócrinas; ou outra patologia subjacente - os doentes podem ter uma SSj
primária ou secundária (Tabela 3).

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL DA SÍNDROMA DE SJÖGREN


SÍNDROMA DE SJÖGREN PRIMÁRIA
SÍNDROMA DE SJÖGREN SECUNDÁRIA
1) Infecção Crónica a VHC
2) Infecção pelo HTLV (asiáticos)
3) Infecção a VIH
SÍNDROMA DE SJÖGREN – LIKE
1) Outras doenças infiltrativas
- Doenças granulomatosas – sarcoidose, tuberculose
- Amiloidose
- Neoplasias – linfomas
- Hiperlipidémia tipo IV
2) Outros Processos
- Doença de Enxerto contra Hospedeiro
- Síndroma eosinofílica
- Sequelas de Radioterapia
- Fármacos
SÍNDROMA DE SJÖGREN ASSOCIADA
1) Doença Auto-Imune sistémica
- Lúpus Eritematoso Sistémico
- Esclerose Sistémica
- Artrite Reumatóide
- Doença de Still do adulto
- Sarcoidose
- Miopatias inflamatórias
2) Doença Auto-Imune de órgãos específicos
- Cirrose biliar primária
- Tiroidite auto-imune
- Esclerose múltipla
- Diabetes mellitus
Tabela 3: Diagnóstico Diferencial da Síndrome de Sjögren. VHC – vírus da hepatite C, HTLV – vírus T linfotrópico
humano tipo 1, VIH – vírus da imunodeficiência humana.

Terapêutica
Actualmente não há tratamento curativo para a SSj. A terapêutica está centrada,
essencialmente, em 3 níveis de abordagem:

1) medidas gerais ou comportamentais, como ingerir bastantes líquidos, evitar


medicação anti-colinérgica, álcool e tabaco;

2) terapêutica para controlo sintomático, destinada a sintomas ligeiros a moderados:


lágrimas artificiais, tópicos oculares lubrificantes para administrar durante a noite,
evicção de soluções oftálmicas contendo corticóides (induzem lesões na córnea e
promovem infecções oculares frequentes), utilização de agonistas muscarínicos que
actuam como secretagogos e estimulam a secreção salivar (por ex.: pilocarpina 15-
20mg/dia);

86
3) tratamento de órgão-alvo, destinado a sintomas extra-glandulares: os anti-
inflamatórios não esteróides, em geral, promovem o alívio dos sintomas
musculoesqueléticos minor, assim como o edema doloroso da glândula parótida; a
hidroxicloroquina na dose 200-400mg/dia melhora a astenia, artralgias e mialgias;
para o atingimento extra-glandular moderado, nomeadamente, artrite, púrpura
cutânea extensa e neuropatia periférica, 0,5mg/Kg/dia de prednisolona (PDN) ou
metotrexato podem ser suficientes; para o acometimento de órgão nobre, como
alveolite pulmonar, GN, lesão neurológica grave e vasculite sistémica, está
recomendada a associação da PDN a imunossupressores (ciclofosfamida,
azatioprina, micofenolato de mofetil). Relativamente aos fármacos biotecnológicos há
a referir que os inibidores do TNF-alfa não têm eficácia comprovada na SSj primária.
Por outro lado, o rituximab, anticorpo monoclonal anti-CD20+, é uma opção a
considerar. Sendo o seu alvo específico as células B, desempenha um papel
importante na modificação dos eventos etiopatogénicos da SSj primária, já que esta
doença se caracteriza por uma hiperactividade de células B.

Complicações e Prognóstico
A SSj tem habitualmente uma evolução benigna, progredindo muito lentamente ou
mantendo-se estável ao longo dos anos. As complicações mais frequentes incluem as
cáries dentárias, candidíase oral, doença periodontal, úlcera de córnea, perfuração e
amaurose. Por outro lado, existem excepções em que a doença evolui para
manifestações extra-glandulares, com dois grupos fenotípicos que determinam
prognósticos diferentes: a) expressão predominantemente peri-epitelial, com evolução
crónica mais estável (nefrite intersticial, doença hepática ou pulmonar; b) expressão
predominantemente extra-epitelial, com maior morbimortalidade (GN, neuropatia e
vasculite).
Estando subjacente uma hiperreactividade de células B, o linfoma B assume-se como a
complicação principal da doença, que ocorre em até 5-8% dos doentes. Os factores
associados a mau prognóstico, incluem: edema persistente da glândula parótida,
polineuropatia periférica, GN, linfopénia, vasculite/púrpura cutânea,
hipocomplementémia (C4), crioglobulinémia e presença de centros germinativos na
amostra de biópsia de tecido de glândula salivar.

ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA:

• Mulheres com xerostomia, xeroftalmia e queixas articulares - encaminhar para


consulta de Doenças Auto-Imunes
• Atenção ao diagnóstico diferencial – excluir causas secundárias.

87
TAKE HOME MESSAGES
• A SSj atinge frequentemente as glândulas lacrimais e salivares, sendo as
queixas mais frequentes a xeroftalmia e a xerostomia.
• O diagnóstico diferencial inclui doenças infiltrativas, infecciosas e a
associação a outras doenças auto-imunes.
• O diagnóstico é estabelecido com elementos da clínica e exames
complementares de diagnóstico.
• O tratamento raramente envolve imunossupressão, excepto nos casos de
manifestações extra-glandulares.

Bibliografia
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manifestations of lúpus. J Biochem Mol Biol 2006;39:229-39.
9. Nocturne G and Mariette X. Advances in understanding the pathogenesis of primary Sjögren’s
Syndrome. Nat. Rev. Reumatol., 2013: 1-13.

88
4. LÚPUS ERITEMATOSO SISTÉMICO

Definição
O Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) é uma doença auto-imune sistémica com um
largo espectro de apresentação clínica que pode atingir quase todos os órgãos.

Epidemiologia
A incidência do LES praticamente triplicou nos últimos 40 anos, sobretudo devido a um
melhor diagnóstico em fases mais precoces da doença. A incidência é de 1 a 23 casos
por 100.000 habitantes por ano (Europa, América do Sul e América do Norte). Na
Europa, a prevalência é de 20 a 50/100.000 habitantes. Na maior parte dos doentes
(cerca de 65%), o LES manifesta-se entre os 16 e os 55 anos. Em cerca de 20% dos
doentes, a doença manifesta-se antes dos 16 anos de idade, em 15% depois dos 55
anos.

O LES afecta mais indivíduos do sexo feminino do que masculino, numa proporção de
9:1. É mais frequente em indivíduos de raça negra e latino-americanos do que nos
caucasianos. Os doentes do sexo masculino com LES têm menos fotossensibilidade,
mais serosite, mais idade ao diagnóstico e uma mortalidade mais elevada ao ano,
comparativamente às doentes do sexo feminino. O LES tende a ser mais ligeiro nos
idosos, com menos incidência de rash malar, fotossensibilidade, púrpura, alopécia,
fenómeno de Raynaud, envolvimento renal e do sistema nervoso central (SNC), mas
maior prevalência de serosite, envolvimento pulmonar, sintomas sicca e manifestações
musculoesqueléticas. Esta doença é mais comum nas áreas urbanas do que rurais.

História Natural e Curso da Doença


O LES é uma doença crónica com gravidade variável, que pode ocorrer por surtos, com
morbilidade significativa associada que, se não tratada atempadamente, pode ser fatal
nalguns doentes – ver Figura 1.

A doença inicia-se com uma fase pré-clínica, caracterizada por anticorpos comuns a
outras doenças auto-imune sistémicas, e segue com uma fase auto-imune clinicamente
significativa e mais específica de doença. Durante este curso, períodos de maior
actividade de doença (os flares) interceptam períodos de remissão, culminando em dano
relacionado a doença e dano relacionado à terapêutica – como, por exemplo, alopécia,
eritema fixo, disfunção cognitiva, doença cardíaca valvular, necrose avascular, ruptura
tendinosa, artropatia de Jaccoud e osteoporose. O dano precoce é sobretudo
relacionado com a doença, enquanto que o dano tardio – sobretudo infecções,
aterosclerose – é geralmente relacionado com complicações de doença prolongada e
terapêutica imunossupressora.

89
Figura 1: História natural do LES; SLICC: Systemic Lúpus International Collaborating Clinics (índice de dano) (adaptado
de EULAR Textbook of Rheumatic Diseases)

Etiologia e Fisiopatogénese
O LES resulta de uma quebra nos mecanismos de tolerância imunológica, com formação
de anticorpos contra antigénios nucleares endógenos. Vários factores concorrem para
o desenvolvimento de lúpus – genéticos, ambientais e hormonais. Entre os factores
genéticos, encontram-se genes associados à resposta imunológica e inflamação,
aderência de células inflamatórias ao endotélio, e resposta tecidular à lesão. Os factores
ambientais incluem a radiação ultravioleta, fármacos e agentes infecciosos (vírus,
bactérias). Em relação aos factores hormonais, os estrogénios, incluindo os
contraceptivos hormonais, têm sido associados ao desenvolvimento de LES.

As respostas imunes contra antigénios nucleares endógenos são características do


LES. Os auto-antigénios libertados por células apoptóticas são apresentados por células
dendríticas à células T, levando à sua activação. As células T activadas, por sua vez,
ajudam a que as células B produzam anticorpos para estes constituintes do próprio, ao
segregar citoquinas como IL10 e IL23 e através de moléculas de superfície, como o
CD40L e CTLA-4. Além desta produção de anticorpos iniciada por células T, dados
recentes apoiam a existência de mecanismos de estimulação de células B
independentes de células T, por via da sinalização combinada de receptor de antigénios
de células B e TLR.

90
Figura 2: No LES diversas vias levam à produção de Interferão α (IFN α) mediada por ácidos nucleicos endógenos. A
produção aumentada de auto-antigénios durante a apoptose (relacionada com UV e/ou espontânea), clearance
diminuída, gestão desregulada e apresentação são factores importantes para o início da resposta auto-imune. Os
nucleossomas contêm perigosos ligandos endógenos que se podem ligar aos receptores de padrões moleculares
associadas a patogénios, sendo que estes nucleossomas são incorporados em bolhas apoptóticas, que promovem a
activação de células dendríticas e células B e a produção de, respectivamente, IFN e autoanticorpos. Os receptores de
superfície da célula como o BCR e FcRIIa facilitam a endocitose de ácido nucleico que contém material ou complexos
imunes e a ligação a receptores do endossoma da imunidade inata como as TLRs. Nas fases iniciais da doença, quando
os autoanticorpos e os complexos imunes podem ainda nem ter sido formados, os péptidos microbianos libertados por
tecidos lesados como LL37, podem ligar-se a ácidos nucleicos inibindo a sua degradação e, assim, facilitando a sua
endocitose e estimulação de TLR-7/9 em células dendríticas plasmocitóides. Quantidades aumentadas de ácidos
nucleicos endógenos relacionados com apoptose estimulam a produção de IFN e promovem auto-imunidade ao
quebrarem a auto-tolerância pela activação e promoção da maturação de células dendríticas convencionais (mielóides).
As células dendríticas imaturas promovem tolerância enquanto que células dendríticas maduras activadas promovem
auto-reactividade. A produção de auto-anticorpos pelas células B no LES é desencadeada pela disponibilidade de
antigénios endógenos e está largamente dependente da ajuda de células T, mediada por interacções de superfície de
célula (CD40L/CD40) e citoquinas (IL21). Os complexos imunes estimulam as células B por ligação BCR/TLR. (BCR:
receptor de célula B, FcR: receptor Fc, TLR: toll-like receptor). Adaptado de Bertsias, George K. et al. “Systemic Lúpus
Erythematosus: Pathogenesis and Clinical Features.” (2012).

Manifestações Clínicas
O LES pode afectar vários órgãos, resultando numa grande diversidade de
manifestações clínicas. De um modo geral, as manifestações clínicas do LES podem
dividir-se em sistémicas, mucocutâneas, músculo-esqueléticas, renais,
neuropsiquiátricas, cardiovasculares, pleurais e pulmonares, hematológicas,
gastrointestinais e oftalmológicas.

As manifestações clínicas sistémicas incluem febre, anorexia, fadiga, perda ponderal,


adenopatias e esplenomegália.

O envolvimento mucocutâneo pode assumir diversas formas: lúpus cutâneo agudo,


lúpus cutâneo subagudo, lúpus cutâneo crónico, alopécia, fotossensibilidade e úlceras
orais. O lúpus cutâneo agudo corresponde ao eritema malar típico do LES. É uma lesão
eritematosa, de bordos elevados, pruriginosa ou mesmo dolorosa, com distribuição
malar, que poupa as pregas naso-genianas. Pode ser despoletada pela exposição solar
e durar dias a semanas; pode acompanhar-se de outras manifestações inflamatórias da
doença. Outras formas de lúpus cutâneo agudo

91
incluem eritema generalizado e lesões bolhosas. O eritema agudo pode evoluir sem
deixar cicatriz (Figura 3).

Figura 3: Manifestações cutâneas de Lúpus Eritematoso Sistémico. A: Lúpus cutâneo agudo (Généreau T et al. High-
Dose Intravenous Immunoglobulin in Cutaneous Lúpus Erythematosus. Arch Dermatol. 1999;135(9):1124-1125.); B:
Lúpus cutâneo sub-agudo (Mayor-Ibarguren et al. Subacute Cutaneous Lúpus Erythematosus Induced by Mitotane. JAMA
Dermatol. 2016;152(1):109-111.); C: Lúpus Discóide com distribuição malar; eritema (indicando actividade da doença),
folículos com queratina e atrofia da pele; o padrão característico de hiperpigmentação na borda activa da lesão e
hipopigmentação no centro inactivo é especialmente evidente em doentes de raça negra (EULAR Textbook on Rheumatic
Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3)

O lúpus cutâneo subagudo frequentemente não está associado a LES – 50% dos
doentes com este tipo de envolvimento cutâneo tem LES, mas apenas 10% dos doentes
com LES têm lúpus cutâneo subagudo. As lesões cutâneas podem ser anulares ou
psoriasiformes, e estão frequentemente associadas a anticorpos anti-Ro e anti-La e a
fotossensibilidade. Macroscopicamente, começam por ser pequenas lesões
eritematosas, papulares e descamativas, que evoluem com padrão psoriasiforme
(papuloescamoso) ou anular. As áreas mais frequentemente afectadas são os ombros,
antebraços, pescoço e metade superior do tronco. O lúpus cutâneo subagudo tem sido
associado à presença de anticorpos anti-Ro/SSA, deficiências congénitas de C2 e C4 e
alguns fármacos, como a hidroclorotiazida.

Figura 4: Distribuição das lesões cutâneas de Lúpus Eritematoso. (In Dermatology Essentials – ebook.)

92
O lúpus cutâneo crónico, também conhecido como lúpus discóide, afecta cerca de 25%
dos doentes com LES. As lesões consistem em placas eritematosas, infiltradas,
cobertas por escama e que se estendem aos folículos pilosos. Podem envolver a face,
pescoço e couro cabeludo; menos frequentemente, os pavilhões auriculares e a metade
superior do tronco. Evoluem com bordo inflamatório em halo e cicatriz central com
atrofia, telangiectasias e híper ou hipopigmentação.

Outras formas menos frequentes de envolvimento cutâneo incluem lúpus profundus e


lúpus tumidus – ver figura 4 e capítulo III.5.

O envolvimento mucoso, para além das úlceras orais (indolores; podem não estar
relacionadas com a actividade da doença), inclui placas esbranquiçadas e irregulares,
áreas de eritema, lesões cicatriciais esbranquiçadas.

As manifestações músculo-esqueléticas atingem 53-95% dos doentes com LES. O


envolvimento articular é classicamente descrito como artrite/artralgias não erosiva, não
deformante, numa distribuição semelhante à da artrite reumatóide, primariamente
afectando as pequenas articulações das mãos, punhos e joelhos. A artrite pode ser o
sintoma de apresentação ou acompanhar outras manifestações de LES durante uma
recidiva de doença. Os sintomas do doente (dor e rigidez) são geralmente
desproporcionados ao grua de sinovite presente no exame objectivo e a sinovite pode
ser transitória (resolvendo dentro de alguns dias nalguns doentes), migratória e
reversível. No outro extremo, encontram-se doentes com sinovite impressionante,
indistinguível da artrite reumatóide, aplicando-se aqui o termo Rhupus.

Mialgias generalizadas e dor muscular são comuns durante exacerbações da doença.


Tem sido reportada miosite inflamatória envolvendo os músculos proximais em 5-11%
dos casos e pode desenvolver-se em qualquer altura durante o curso da doença.

Figura 5: Artropatia de Jaccoud. Fotografia (A) e radiograma de mãos (B) de um doente com Lúpus Eritematoso
Sistémico. As deformações das mãos revelam desvio cubital nas articulações metacarpo-falângicas, dedos em pescoço
de cisne ou em boutounnière, hiperextensão da articulação interfalângica do primeiro dedo, que se assemelham às
observadas na Artrite Reumatóide. A ausência de erosões na radiografia distingue-a da artrite deformante da Artrite
Reumatóide. (In Chaurasia, Ajay S et al. Jaccoud's arthropathy, The Lancet, Volume 381, Issue 9883, 2013.

A necrose óssea avascular é uma das causas de morbilidade e mortalidade no LES,


ocorrendo entre 5 e 12% dos doentes. Dor articular aguda apresentando-se tardiamente
no curso do LES e localizada em áreas específicas como ombros, ancas e joelhos, pode
indicar necrose avascular. Factores que podem induzir isquemia óssea e necrose
incluem fenómeno de Raynaud, vasculite, embolia gorda, corticóides e síndrome
anticorpo anti-fosfolipídico.

93
O envolvimento renal resulta da formação e deposição de imunocomplexos no rim, com
inflamação glomerular e consequente glomerulonefrite – nefrite lúpica (NL). A
manifestação dominante da nefrite lúpica é a proteinúria, por vezes acompanhada de
hematúria e cilindrúria. A nefrite lúpica está classificada em 6 classes.

De acordo com a classificação de 2003 da International Society of Nephrology/Renal


Pathology Society (ISN(RPS), as classes de NL são: I – NL mesangial mínima, II – NL
mesangioproliferativa, III – NL focal, IV – NL difusa (segmentar ou global), V – NL
membranosa, VI – NL esclerose avançada (ver capítulo III.3).

O envolvimento renal ocorre em 40-70% de todos os doentes com LES e é uma das
principais causas de morbilidade, mortalidade e admissão hospitalar.

A lista de manifestações neuropsiquiátricas do LES é extensa e inclui manifestações


psiquiátricas/cognitivas, alterações do sistema nervoso central e periférico. Destacam-
se: síndrome confusional aguda, distúrbio de ansiedade, disfunção cognitiva, meningite
asséptica, doença cerebrovascular, síndromes desmielinizantes, cefaleias, doenças do
movimento, mielopatia, epilepsia, polirradiculopatia desmielinizante inflamatória aguda,
disautonomia, mononeuropatia, miastenia gravis, neuropatia de pares cranianos,
plexopatia e polineuropatia.

As manifestações cardiovasculares são variadas. A pericardite pode ocorrer em cerca


de 25% dos doentes; o derrame pericárdico pode ser assintomático e é geralmente leve
a moderado; o tamponamento é raro. O envolvimento do miocárdio é raro e tipicamente
ocorre na presença de actividade lúpica generalizada. O doente pode apresentar-se
com febre, dispneia, taquicardia e insuficiência cardíaca congestiva. Características
clínicas de disfunção de ventrículo esquerdo, alterações inespecíficas do segmento ST,
alterações segmentares das paredes ventriculares e diminuída fracção de ejecção estão
presentes em >80% dos doentes. Outro tipo de manifestações nestes doentes consiste
na doença cardiovascular, com aterosclerose prematura e acelerada, alterações
valvulares (sobretudo em doentes com concomitante síndrome anticorpo anti-
fosfolipídico) e endocardite de Libman- Sachs.

O envolvimento pleuropulmonar mais frequente é a pleurite. A dor pleurítica está


presente em 45-60% dos doentes e pode ocorrer com ou sem derrame pleural (até
50%). Os derrames pleurais são, geralmente, bilaterais e igualmente distribuídos entre
os hemitóraces esquerdo e direito. O derrame é invariavelmente um exsudado com
glucose elevada e baixos níveis de lactato desidrogenase.

A doença pulmonar intersticial pode ser uma complicação de LES em 3 a 13% dos
doentes, mas é raramente grave. A pneumonite aguda lúpica apresenta-se como tosse,
dispneia, dor torácica tipo pleurítica e febre, ocorrendo em 1 a 4% dos doentes. As
radiografias de tórax revelam infiltrados uni ou bilaterais.

A hemorragia alveolar é uma complicação rara mas potencialmente catastrófica do LES


– as manifestações clínicas não são específicas mas deve levantar esta hipótese a
presença de infiltrados alveolares difusos, hipoxémia, dispneia e anemia. Esta
manifestação geralmente ocorre em doentes com história conhecida de LES, títulos
elevados de anticorpo anti-dsDNA e doença extrapulmonar activa.

94
Outras manifestações da doença podem ser o shrinking lung syndrome, tromboembolia
pulmonar e hipertensão pulmonar.

As linfadenopatias podem ocorrer em cerca de 40% dos doentes, geralmente no início


da doença ou durante as fases de maior actividade da doença. As adenopatias são
geralmente moles, indolores e geralmente detectadas nas áreas cervical, axilar e
inguinal. A esplenomegália ocorre em 10-45% dos doentes, particularmente durante a
doença activa e não está necessariamente associada a citopénias.

Do ponto de vista hematológico, o LES pode afectar as 3 linhagens de células


sanguíneas, manifestando-se como anemia (anemia de doença crónica ou anemia
hemolítica auto-imune), leucopénia e trombocitopénia.

A anemia é frequente e correlaciona-se com a actividade da doença; a causa mais


frequente é eritropoiese de inflamação crónica. A anemia hemolítica foi detectada em
cerca de 10% dos doentes.

A leucopénia é também frequente no LES – pode estar presente na apresentação da


doença e também se correlaciona com a sua actividade.

A trombocitopénia ligeira (plaquetas 100.000-150.000/mm3) tem sido reportada em 25-


50% dos doentes, e contagens <50.000/mm3 em apenas ocorrem em 10%. A causa mais
frequente de trombocitopénia no LES é a destruição plaquetar imuno-mediada, embora
também possa haver aumento de consumo de plaquetas por anemia hemolítica
microangiopática ou hiperesplenismo.

O envolvimento gastrointestinal pode-se manifestar como vasculite mesentérica,


pancreatite ou hepatite.

O envolvimento oftalmológico pode manifestar-se como vasculite dos vasos da retina


(retinopatia lúpica) ou com atingimento da conjuntiva e da córnea.

Critérios de Classificação
Numa tentativa de uniformizar os doentes incluídos em estudos, criaram-se critérios de
classificação do LES. Estes critérios não são critérios de diagnóstico e, como se pode
ver pelos critérios abaixo enumerados, deixam de foram várias manifestações possíveis
de lúpus (por exemplo, o envolvimento neurológico).

Há dois grupos de critérios de classificação de LES. Os mais antigos, mais divulgados


e mais utilizados são os critérios do American College of Rheumatology (Critérios ACR,
revistos pela última vez em 1997). Mais recentemente, o grupo de investigadores SLICC
(Systemic Lúpus International Collaborating Clinics) desenvolveu também um conjunto
de critérios de classificação do LES (Critérios SLICC 2012).

Critérios de Classificação ACR 1997


Estes critérios foram desenvolvidos para utilização em ensaios clínicos. Têm uma

95
sensibilidade superior a 86%, especificidade superior a 95% e identificam doença de
longa duração. Para um doente ser classificado como tendo LES, tem que preencher
pelo menos 4 dos 11 critérios ao longo do tempo. Os critérios ACR 1997 valorizam muito
as manifestações mucocutâneas (4 de 11 critérios) e atribuem a mesma importância a
todos.

Os critérios são: 1) eritema malar; 2) eritema discóide; 3) fotossensibilidade; 4) úlceras


orais; 5) artrite não erosiva; 6) serosite (pleural ou pericárdica); 7) envolvimento renal
(proteinúria >0,5 g/24h ou >+3; cilindros celulares); 8) envolvimento neurológico
(convulsão ou psicose); 9) envolvimento hematológico (anemia hemolítica com
reticulocitose, ou leucopénia <4 G/L, ou linfopénia <1,5 G/L, ou trombocitopénia <100
G/L); 10) envolvimento imunológico (anti-DNA, ou anti-Sm, anticorpos, ou anti-
fosfolípidos – anti-cardiolipina, anticoagulante lúpico positivo, VDRL falso positivo); 11)
anticorpo anti-nuclear positivo (ANA).

Critérios de Classificação SLICC 2012

Os critérios SLICC 2012 são mais sensíveis (94%) e têm uma especificidade de 92%.

Os critérios SLICC 2012 são: 1) envolvimento cutâneo (lúpus cutâneo agudo ou


subagudo; lúpus cutâneo crónico; alopécia; ulceração oral ou nasal); 2) sinovite (pelo
menos 2 articulações, com edema ou derrame articular, com dor e rigidez matinal ≥30
minutos); 3) serosite (pleural ou pericárdica); 4) envolvimento renal (razão
proteína/creatinina ou proteinúria nas 24 h equivalente a ≥500 mg/24 h; ou cilindro
hemáticos); 5) envolvimento neurológico (convulsões, psicose, mononeuropatia
multiplex, mielite, neuropatia periférica ou de pares cranianos, cerebrite); 6)
envolvimento hematológico (anemia hemolítica, ou leucopénia <4 G/L ou linfopénia <1
G/L), ou trombocitopénia (<100.000/mm3); 7) envolvimento imunológico (anti-dsDNA,
anti-Sm, anticoagulante lúpico ou VDRL falso positivo, anti-cardiolipina ou anti- B2GP1,
consumo de C3, C4 ou CH50, teste de Coombs directo positivo sem anemia hemolítica);
8) anticorpo anti-nuclear.

Com estes critérios, um doente é classificado como tendo LES se tiver nefrite lúpica
documentada por biópsia renal com ANA ou anti-dsDNA positivo, ou se preencher 4
critérios com pelo menos 1 critérios clínico e 1 critério imunológico/ANA positivo.

Diagnóstico
Para se diagnosticar LES é necessário integrar as manifestações clínicas de LES com
exames complementares de diagnóstico. Os exames complementares utilizados
incluem testes serológicos [pesquisa de autoanticorpos, nomeadamente ANA,
anticorpos extraíveis do núcleo (ENAs: anti-Ro, anti-La, Anti-Sm, anti-RNP), anti-
dsDNA, anti-P ribossómico], doseamento de fracções do complemento (C3, C4, CH50),
pesquisa de anticorpos anti-fosfolípidos, hemograma, exame sumário de urina com
sedimento urinário, assim como outros exames de acordo com a clínica do doente
(biópsia renal, eletrocardiograma, ecocardiograma, provas de função respiratória, TC
torácica de alta resolução, RMN encefálica, eletroencefalograma, electromiograma,
teste de Coombs, etc).

96
Os anticorpos anti-nucleares (ANA) são um bom teste de rastreio devido à sua elevada
sensibilidade (95%) e simplicidade. No entanto, a especificidade destes anticorpos é
baixa, sendo que estão também presentes na esclerose sistémica, polimiosite,
dermatomiosite, artrite reumatóide, tiroidite auto-imune, hepatite auto- imune, infecções,
neoplasias e em associação com muitos fármacos. Há ainda positividade para estes
anticorpos em indivíduos saudáveis – a formação de ANA é dependente da idade:
estima-se que 10-35% de indivíduos com >65 anos têm ANA detectável, geralmente em
títulos mais baixos que nas doenças auto-imunes. Em contraste com o baixo valor
preditivo positivo dos ANA, um doente com ANA negativos tem <3% de probabilidade
de ter LES, pelo que se trata de um teste útil para excluir este diagnóstico.

Os anticorpos anti-dsDNA (double stranded DNA) encontram-se em >70% dos doentes


com LES em algum momento da sua doença e são 95% específicos para LES, tornando-
os um valioso marcador para a doença. Os anticorpos anti-Sm (anti- Smith) são
detectados em 10-30% dos doentes e a sua presença é patognomónica de LES.

Avaliação da Actividade
À semelhança de outras patologias imunomediadas, também no LES é necessário
proceder à avaliação da actividade da doença. Para tal, existem algumas escalas
validadas, nomeadamente o SLEDAI (Systemic Lúpus Erythematosus Disease Activity
Index) e o BILAG (British Isles Lúpus Assessment Group Scale). Há várias outras
escalas, mas a sua apresentação está para além dos objetivos deste curso. O
importante, é utilizar uma escala (idealmente sempre a mesma) na avaliação seriada
destes doentes.

O SLEDAI é, porventura, um índice mais fácil e rápido de utilizar, pelo que é descrito
muito sucintamente. Avalia 24 itens: convulsões (8 pontos), síndrome cerebral orgânica
(8 pontos), visual (8 pontos), pares cranianos (8 pontos), cefaleia lúpica (8
pontos), cerebrovascular (8 pontos), vasculite (8 pontos), artrite (4 pontos), miosite (4
pontos), cilindros urinários (4 pontos), hematúria (4 pontos), proteinúria (4 pontos), piúria
(4 pontos), eritema malar de novo (4 pontos), alopécia (4 pontos), mucosas (4 pontos),
pleurite (4 pontos), pericardite (4 pontos), consumo de complementos (2 pontos),
aumento da ligação do DNA (2 pontos), febre (1 ponto), trombocitopénia (1 ponto),
leucopénia (1 ponto). A pontuação de cada item é atribuída se este estiver presente nos
últimos 10 dias à altura da avaliação clínica. A pontuação mínima é 0 e a máxima 105
pontos. Uma pontuação igual ou superior a 6 sugere doença activa, que necessita de
tratamento. A variação do índice é clinicamente significativa se houver uma melhoria de
6 pontos ou um agravamento de 8 pontos.

A utilização de instrumentos validados para avaliação da actividade do LES na prática


clínica diária requer o acompanhamento destes doentes e implica o recurso regular a
alguns meios complementares de diagnóstico, nomeadamente hemograma, creatinina,
ureia, análise sumária de urina com sedimento, ANA, anti-dsDNA, C3 e C4.

97
Avaliação de Dano
Na avaliação e seguimento dos doentes com LES, é importante avaliar o dano causado
quer pela doença quer pelos fármacos utilizados no seu tratamento.

O índice de dano SLICC/ACR é um instrumento validado para a avaliação do dano no


LES. Este índice avalia o dano em 12 órgãos ou sistemas: ocular, neuropsiquiátrico,
renal, pulmonar, cardiovascular, vascular periférico, gastrointestinal,
musculoesquelético, pele, falência prematura de gónadas, diabetes, neoplasia maligna.
Para uma alteração ser identificada como dano tem que estar presente há pelo menos
6 meses. A instalação precoce de dano está associada a pior prognóstico.

Tratamento
Em relação ao tratamento do LES, estão actualmente disponíveis diferentes tipos de
fármacos e a sua utilização depende do tipo e gravidade dos órgãos envolvidos.

Mais de meio século depois da sua introdução, os corticóides continuam a ser a base
do seu tratamento. Dependendo da gravidade da doença, podem ser utilizados em
pulsos de dose elevada (metilprednisolona 500 – 1000 mg; doença grave em que é
necessário rápido controlo da actividade), em altas doses (0,5 ou 1 mg/kg/dia; sistema
nervoso, rim, vasculite), doses médias (0,2 a 0,5 mg/kg/dia; vasculite, hematológico,
serosite), ou em baixa dose (0,1 a 0,2 mg/kg/dia; serosite, pele, artrite). A utilização
destes fármacos não é isenta de efeitos adversos e pode contribuir para a acumulação
de dano nos doentes com LES – diabetes, hipertensão arterial, osteoporose, necrose
óssea avascular, cataratas, miopatia, entre outros.

A hidroxicloroquina é um anti-malárico muito utilizado no tratamento do LES. A sua


utilização está associada à redução do número de agudizações. A dose recomendada
é <6,5 mg/kg/dia. Dos efeitos adversos, o mais preocupante é a maculopatia. Está
recomendada a avaliação oftalmológica antes de se iniciar a terapêutica com
hidroxicloroquina e depois, anualmente, a partir do quinto ano de terapêutica. A
maculopatia pode ser reversível se detectada atempadamente.

Outros fármacos imunossupressores tradicionalmente utilizados no tratamento do LES


incluem azatioprina, metotrexato, ciclosporina, tacrolimus, micofenolato mofetil e
ciclofosfamida. A escolha de cada fármaco prende-se com o tipo de manifestação e
gravidade da doença, assim como características do doente (género, gravidez).

Mais recentemente, tem-se assistido à utilização do anticorpo monoclonal anti-CD20


rituximab (anti-células B) como terapia de resgate em formas graves de LES que não
responderam às terapêuticas tradicionais. Contudo, e apesar de haver vários trabalhos
a mostrar resultados favoráveis, os estudos realizados para demonstrar a sua eficácia
(nomeadamente na nefrite lúpica) não conseguiram alcançar esse propósito.

Actualmente, a grande inovação no armamentário terapêutico do LES é o belimumab


(anticorpo monoclonal anti-BLyS). Este anticorpo tem como alvo o factor activador das
células B. Está indicado no tratamento de doentes com manifestações cutâneas,

98
hematológicas e articulares que não responderam ao tratamento com corticóides e
outros imunossupressores. Estão em curso estudos para perceber se é eficaz no
tratamento de formas graves do LES, como a nefrite lúpica e o lúpus neuropsiquiátrico.

É importante não esquecer que estes fármacos podem ter efeitos adversos,
nomeadamente mielotoxicidade, hepatotoxicidade, gastrointestinais. Pode ser
necessário monitorizar o tratamento com avaliações laboratoriais periódicas,
nomeadamente hemograma e função hepática. Não esquecer também que alguns
fármacos são seguros na gravidez e não devem ser suspensos nessa situação
(corticóides, ciclosporina, azatioprina), enquanto outros devem ser suspensos antes da
concepção, pelo risco teratogénico (metotrexato). O micofenolato mofetil está contra-
indicado durante a gravidez. Por último, e não menos importante, é preciso estar atento
também às comorbilidades dos doentes, e tratá-las.

Prognóstico
O prognóstico do LES vai depender da idade de início da doença e dos órgãos
envolvidos, sendo que os doentes com nefrite lúpica têm habitualmente pior prognóstico.
O tratamento intensivo da nefrite lúpica está associado a evolução mais favorável. Os
doentes com história de doença com múltiplos flares estão também associados a pior
prognóstico.

Nestes doentes a toxicidade provocada pelos fármacos e as infecções contribuem


também para morbilidade importante e, por conseguinte, para pior prognóstico.

SERVIÇO DE URGÊNCIA: pensar no diagnóstico de LES numa mulher jovem com


artralgias, rash malar ou fotossensibilidade e alterações analítica inespecíficas como
anemia, leucopénia e/ou trombocitopénia
Não esquecer de pedir exame sumário de urina para avaliar proteinúria e eventual
presença de nefropatia

TAKE HOME MESSAGES


O LES é uma doença autoimune sistémica com um largo espectro de manifestações
clínicas
Etnia, idade à data de apresentação da doença, sexo e características clínicas e
imunológicas, especialmente presença de anticorpos antifosfolipídicos, podem
influenciar a prevalência e a evolução clínica da doença.
Factores que contribuem para a mortalidade incluem envolvimento de órgãos major
como nefropatia, trombose, aterosclerose acelerada e aumento do risco de
neoplasia.

99
Bibliografia
• ACR Ad Hoc Committee on Neuropsychiatric Lúpus Nomenclature. The American College of
Rheumatology nomenclature and case definitions for neuropsychiatric lúpus syndromes. Arthritis
& Rheum,1999;42(4):599–608.
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• Weening JJ et al. The classification of glomerulonephritis in systemic lúpus erythematosus
revisited. JASN, 2004;15(2):241-250.

100
5. ESCLEROSE SISTÉMICA

Definição

A Esclerose Sistémica (ES) é uma doença sistémica crónica, cuja etiologia ainda não
está totalmente clarificada. É uma doença auto-imune do tecido conjuntivo,
caracterizada por lesão vascular e fibrose, atingindo pele e órgãos internos, com
mortalidade e morbilidade importantes.

Epidemiologia

É uma doença rara com uma prevalência estimada 1:10.000 habitantes, a nível mundial,
e incidência de 2:20.000.000/pessoa/ano. Há uma predominância do sexo feminino
(ratio 3:1) e um pico de incidência bi-modal, na 3ª e 5ª décadas de vida.

Etiologia e Fisiopatogénese

A patogénese da ES é complexa e não está totalmente esclarecida, pelo que a


heterogeneidade das características clínicas destes doentes é muito provavelmente um
reflexo da contribuição de diferentes variáveis: genéticas, epigenéticas e ambientais.
Foram identificadas situações de risco, eventualmente desencadeantes da doença em
indivíduos susceptíveis, como neoplasias (sobretudo associadas à presença de
anticorpos anti-RNA polimerase III), radioterapia e agentes farmacológicos ou tóxicos,
como taxanos, gemcitabina, cloreto de vinil, L-triptofano e algumas formas de gadolínio.
Vários estudos documentam uma associação entre ES e genes implicados no sistema
imunitário, como o STAT4, polimorfismos dos complexos major de histocompatibilidade
DRB1, DQA1 e DQB1.

A ES é caracterizada por vasculopatia, fibrose e inflamação (Figura 1). Os doentes


apresentam hiperreactividade e remodeling arterial, com proliferação da íntima, que
pode levar à oclusão de vasos ao nível da pele, pulmão, coração e rim. A perturbação
do tónus vascular pode ser explicada por vários mecanismos: aumento da expressão da
endotelina-1, com vasoconstrição, inflamação e remodeling; aumento do VEGF
(vascular endothelial growth factor), o que aumenta a fibrose e impede uma normal
angiogénese; promoção da inflamação através da expressão MCP-1 (monocyte
chemoattractant protein 1), VCAM-1 (vascular cell adhesion molecule), TGF-β
(transforming growth factor β) e PDGF (platelet derived growth factor); stress oxidativo,
que origina radicais livres de oxigénio, que por sua vez aumentam a proliferação de
fibroblastos. Os fibroblastos activados vão libertar colagénio, que se acumula na pele,
aumentando a sua espessura, e diferenciar-se depois em miofibroblastos.

O sistema imunitário também está envolvido no processo de vasculopatia e fibrose,


através da presença de auto-anticorpos (anti-centrómero, anti-topoisomerase1, anti-
RNA polymerase III…), o que sugere um papel activo dos linfócitos B na

101
etiopatogénese da ES. Os linfócitos T também surgem envolvidos, através da libertação
de interleucinas inflamatórias, como IL-4, IL-3 e CXCL4.

Figura 1: O processo etiopatogénico na Esclerose Sistémica (ES). A activação dos fibroblastos e a fibrose subjacente à
ES são induzidos por activação endotelial e lesão vascular (1), conduzindo a reacção inflamatória descontrolada (2,3).
TGFβ – Transforming growth factor; PF4 – platelet factor 4; ROS – reactive oxygen species; ECM – extracellular matrix;
TLR4 – toll-like receptors 4; CTGF – connective tissue growth factor; PDGF – platelet-derived growth factor. (From
Allanore Y et al. Systemic Sclerosis. Nature Reviews (1) 2015:1.)

Manifestações Clínicas

A apresentação inicial da ES é variável, embora o Fenómeno de Raynaud (FR),


habitualmente intenso e presente em 90% dos doentes, possa preceder as restantes
manifestações da doença em vários anos.

Nos doentes com ES o edema das mãos, o progressivo espessamento cutâneo, o


envolvimento intestinal e/ou a artrite não erosiva consistem geralmente nas primeiras
manifestações da doença. Nalguns doentes, o início da doença é marcado por uma
fraqueza muscular grave, tornando o quadro clínico semelhante ao das miopatias
inflamatórias – capítulo II.7. Numa minoria de doentes, a apresentação clínica é
dominada por envolvimento visceral.

102
A ES afecta vários órgãos, sendo que as manifestações clínicas variam consoante a
gravidade e subtipo da doença – ver Tabela 1. A manifestação mais frequente é o
fenómeno de Raynaud, decorrente de vasoespasmo e lesão endotelial, que pode
agravar, surgindo úlceras digitais (UD). As UD são uma complicação grave, com
importante morbilidade, risco de isquémia, necrose e auto-amputação, para além do
risco de sobreinfecção. Estes doentes requerem frequentemente internamento para
administração endovenosa de antibióticos e vasodilatadores, por vezes com
necessidade de desbridamento cirúrgico. O atingimento renal, pulmonar e cardíaco
pode evoluir com gravidade, estando associado a maior mortalidade.

ÓRGÃO /SISTEMA
MANIFESTAÇÕES
ENVOLVIDO
Espessamento cutâneo, telangiectasias, hiperpigmentação /
despigmentação, contracturas, fenómeno Raynaud, úlceras digitais,
PELE
perda substância da polpa digital, isquémia digital/ gangrena,
calcinose
Hipertensão arterial grave, protenúria, insuficiência renal rapidamente
RENAL
progressiva, vasculopatia crónica
Artralgias, artrite, miopatia, miosite, atrofia muscular, fricção/ atrito
MUSCULOESQUELÉTICO
tendões, acrosteólise
Doença intersticial pulmonar (pneumonia intersticial inespecífica),
PULMONAR derrame pleural, fibrose pulmonar, hipertensão pulmonar,
bronquiectasias
Palpitações, arritmias, alterações de condução, fibrose em banda
CARDÍACO/
(patch band fibrosis), derrame pericárdico, disfunção diastólica,
CARDIOVASCULAR
miocardite, hipertensão pulmonar
Disfagia, refluxo, úlceras, esófago Barrett, esofagite, saciedade
GASTRO
precoce, dismotilidade, enfartamento, diarreia/ obstipação, pseudo-
obstrução, má-absorção, vasculopatia com hemorragias, cirrose biliar
-INTESTINAL
primária
NEUROLÓGICO Síndrome canal cárpico, neuropatia periférica (por vasculite)

Tabela 1: Resumo de aspectos semiológicos associados a diferentes sistemas de órgãos na esclerose sistémica.

Para além das manifestações específicas de órgão, há ainda sintomas inespecíficos,


como a astenia e o cansaço, que podem decorrer de forma multifactorial, quer
associadas à doença em si, quer decorrente das suas complicações, como a anemia, a
doença intersticial pulmonar, a hipertensão pulmonar, a subnutrição, por défices de
absorção, e a miosite.

A ES é uma doença com grande impacto quotidiano, estando associada a franca


redução da qualidade de vida por várias razões, como a dor, disfunção articular por
anquilose, esclerose da pele, úlceras digitais, alteração da imagem corporal, fadiga,
dispneia, depressão e alterações do trânsito gastrointestinal.

Diagnóstico Diferencial

O diagnóstico diferencial deve ter em conta as manifestações cutâneas, vasculares e


orgânicas da ES. Relativamente à pele, é importante considerar outras causas de fibrose
cutânea ou subcutânea, havendo doenças scleroderma-like nas quais pode ser

103
necessária a colaboração de dermatologistas – as formas de morfeia generalizada, por
exemplo, podem ser difíceis de distinguir de uma esclerose sistémica localizada ou
mesmo dos chamados scleroderma mimicking syndromes. Do ponto de vista vascular,
devem ser tidas em conta outras causas de fenómeno de Raynaud e mesmo vasculites.
As alterações inflamatórias da ES podem ser sobreponíveis a outras DAI, como o lúpus
eritematoso sistémico, artrite reumatóide ou miosites, o que pode dificultar o diagnóstico
diferencial. É importante salientar que 20% dos doentes com ES apresentam síndromes
de sobreposição com outras DAI. A capilaroscopia peri- ungueal representa uma
contribuição importante na distinção entre fenómeno de Raynaud primário e secundário,
bem como na detecção precoce de ES em fase inicial, mediante a presença de
megacapilares – capítulo I.4.

Critérios de Classificação

ES CUTÂNEA DIFUSA
• Rápida progressão das alterações cutâneas após início de fenómeno de Raynaud
• Espessamento cutâneo na região proximal dos membros e tronco
• Envolvimento precoce de órgãos internos
• Fibrose intersticial pulmonar grave
• Envolvimento miocárdico
• Envolvimento renal precoce
• Pior sobrevida global
• 20-30% com ac. anti-Scl70 positivo
ES CUTÂNEA LIMITADA
• Longa evolução de fenómeno de Raynaud isolado
• Espessamento cutâneo acral (limitado a face, mãos, antebraços, pernas e pés)
• Envolvimento tardio de órgãos internos
• Desenvolvimento tardio de hipertensão pulmonar com ou sem doença intersticial
pulmonar
• Envolvimento gastrointestinal grave
• Associação a calcinose e telangiectasias
• 30-40% com Ac anticentrómero positivo
ESCLERODERMIA SINE SCLERODERMA
• Fenómeno de Raynaud
• Características imunológicas e capilaroscópicas típicas de esclerose sistémica
• Sem espessamento cutâneo
• Manifestações clínicas por envolvimento esplâncnico e vascular
SÍNDROME DE SOBREPOSIÇÃO (OVERLAP) COM ESCLEROSE SISTÉMICA
• Um dos três subtipos acima descritos com características clínicas e imunológicas de
outra doença auto-imune
Tabela 2: Características clínicas das variantes de Esclerose Sistémica.

As manifestações clínicas da ES são muito heterogéneas, o que levou ao


desenvolvimento de um sistema de classificação baseado nas diferentes complicações
potenciais, prognósticos e estratégias de abordagem para pacientes com esta patologia
(Tabela 2).

104
A ES pode ser dividida em dois grandes grupos, segundo a extensão do envolvimento
cutâneo: se envolvimento proximal, considera-se ES cutânea difusa – Fig.2; se o
envolvimento ao nível dos membros for distal aos cotovelos e aos joelhos, com ou sem
envolvimento da face e pescoço, considera-se ES cutânea limitada – Fig.3. Um grupo
de doentes com ES cutânea limitada apresenta manifestações clínicas particulares,
constituindo o chamado Síndrome de CREST, acrónimo de calcinose, fenómeno de
Raynaud, dismotilidade esofágica, esclerodactilia e telangiectasias.

Figura 2: Escleroses Sistémica (ES) Cutânea Difusa. A: o envolvimento grave da pele na ES cutânea difusa afecta a
aparência facial; B: a função das mãos é frequentemente afectada, com aparecimento de úlceras digitais e ulceração
nas áreas de pressão ou trauma; C: alterações tróficas nas fases tardias da doença; D: hipopigmentação típica da pele
espessada, com perda de pilosidade ao nível dos membros; E: alterações tróficas das mãos num estadio tardio da
doença. (From Denton C and Khanna D. Systemic Sclerosis, Lancet 2017; 52:53-58.)

Apesar da classificação dicotómica, consoante doença cutânea limitada e difusa, há


doentes que apresentam manifestações clínicas diferentes. Até 5% dos doentes podem
apresentar fenómeno de Raynaud, úlceras digitais e hipertensão arterial pulmonar,
imunologia específica da ES, mas sem envolvimento cutâneo – é a chamada Esclerose
Sistémica sine scleroderma.

105
Figura 3: Esclerose Sistémica Cutânea Limitada. A: perda de tecidos moles peri-orais; B: esclerodactilia; C:
telangiectasias faciais; D: capilares peri-ungueais dilatados; E: calcinose cútis extensa. (From Denton C and Khanna D.
Systemic Sclerosis, Lancet 2017; 52:53-58.)

Diagnóstico

A abordagem inicial da ES deve ter em conta os critérios de classificação estabelecidos


(Tabela 4), a duração da doença, a presença de manifestações sugestivas de síndrome
de sobreposição e as recomendações para a avaliação de lesões órgão-alvo.

Existem vários anticorpos (Ac.) presentes nos doentes com ES, embora nem todos
sejam específicos. Entre eles estão os anticorpos antinucleares (ANA), presentes em
95% dos doentes. Além destes destacam-se: Ac. anti- topoisomerase I (Scl 70), Ac. Anti-
Centrómero, Ac. Anti-RNP U1 – anti-fibrilharina, Ac. Anti-RNP U3, Ac. anti – RNA
polimerase III, Ac. Anti-Pm/Scl e Ac. Anti-Th/To (Tabela 3). Os auto-anticorpos
específicos da ES são raros noutras doenças e não está totalmente ainda clarificado o
seu papel na patogénese da doença. Estão geralmente presentes no início das
manifestações clínicas e não se alteram ao longo do curso da doença. Os seus alvos

106
são proteínas ribonucleadas e enzimas nucleares (topo e poli isomerases) e a sua
documentação prende-se sobretudo com as manifestações clínicas que lhes estão
associadas e por serem reconhecidos indicadores de prognóstico.

ANTI-CENTRÓMERO
• Associado à forma limitada da doença
• Maior tempo de evolução de doença à data do diagnóstico
• Pouco frequente associação a fibrose pulmonar
• Menor risco de crise renal
• Associação a hipertensão arterial pulmonar (lesão vascular)
ANTI TOPOISOMERASE I (SCL70)
• Doença mais grave
• Associação a doença intersticial pulmonar / fibrose pulmonar
• Associação a crise renal
• Envolvimento Gastrointestinal mais grave
• Associação a envolvimento cardíaco
ANTI-RNP U3
• Forma difusa
• Envolvimento multiorgânico
• Mais frequente na raça negra
• Frequente fibrose pulmonar grave e associação a hipertensão pulmonar
• Envolvimento GI grave (má-absorção, pseudo-obstrução)
ANTI-RNA POLIMERASE 3
• Espessamento cutâneo mais grave
• Maior frequência de crise renal
• Rara associação a fibrose intersticial grave
Tabela 3: Anticorpos mais frequentemente associados à Esclerose Sistémica.

CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO DA ESCLEROSE SISTÉMICA DE 2013 ACR/EULAR


Envolvimento cutâneo proximal
• Espessamento cutâneo dos dedos das mãos, com extensão proximal às articulações
metacárpico-falângicas (critério suficiente, 9 pontos)
Espessamento cutâneo dos dedos (só conta a maior pontuação)
• Puffy fingers (2 pontos)
• Esclerodactilia (distal às articulações metacárpico-falângicas, mas proximal às
articulações inter-falângicas proximais) (4 pontos)
Lesões das polpas digitais (só conta a maior pontuação)
• Úlcera da polpa dos dedos (2 pontos)
• Pitting scar (3 pontos)
Telangiectasia (2 pontos)
Alterações da capilaroscopia peri-ungueal (2 pontos)
Hipertensão arterial pulmonar ou doença pulmonar intersticial (pontua no máximo 2)
• Hipertensão arterial pulmonar (2 pontos)
• Fibrose pulmonar intersticial (2 pontos)
Fenómeno de Raynaud (3 pontos)
Anticorpos relacionados com a Esclerose Sistémica (pontua no máximo 3)
• Anticorpo anti-centrómero (3 pontos)
• Anticorpo anti-topoisomerase I (3 pontos)
• Anticorpo anti-RNA polimerase III (3 pontos)
Tabela 4: Critérios de Classificação para Esclerose Sistémica de 2013 do American College of Rheumatology (ACR) e
European League Against Rheumatism (EULAR) – são necessários pelo menos 9 pontos para estabelecer o diagnóstico.

107
Envolvimento de órgão-alvo e Avaliação da Actividade da Doença

Sendo a ES uma doença crónica, com envolvimento possível da pele e de vários órgãos
internos, a actividade e evolução da doença são altamente variáveis, pelo que a sua
avaliação e monitorização diferem de doente para doente (Figura 4). Apesar de não
haver fármacos modificadores de doença para a ES, a abordagem precoce da doença
está associada a redução da mortalidade.

Figura 4: Atingimento multi-orgânico da Esclerose Sistémica, com aspectos clínicos, histológicos e radiológicos. A
vasculopatia digital pode levar a ulceração, necrose e amputação em casos graves – A: úlcera digital, B: necrose seca;
C: auto-amputação; D: pseudo-obstrução intestinal; E: ectasia vascular do antro gástrico. A fibrose pulmonar pode ser
identificada pelo alargamento do tronco arterial pulmonar relativamente à aorta e, se estiver ausente, é mais frequente
revelar hipertensão arterial pulmonar – F: fibrose pulmonar com pneumonia intersticial atípica em Tc pulmonar de alta
resolução; G: fibrose pulmonar com pneumonia intersticial inespecífica em TC pulmonar de alta resolução; H: hipertensão
arterial pulmonar à histologia; I: hipertensão arterial pulmonar em TC de tórax; J: fibrose cardíaca, K: crise
Denton C and Khanna D. Systemic
renal esclerodérmica; L: contracturas digitais; M: calcinose; N: acro-osteólise. From
Sclerosis, Lancet 2017; 52:53-58.)

Microcirculação

A capilaroscopia peri-ungueal – ver capítulo I.4 – deve ser solicitada no estudo inicial e
repetida periodicamente, uma vez que a evolução dos padrões esclerodérmicos
apresenta boa correlação com o envolvimento sistémico.

Para além da capilaroscopia, têm sido desenvolvidas outras técnicas de avaliação da


microcirculação, como o doppler a laser, a avaliação da pressão arterial digital e a
avaliação da pressão de oxigénio transcutânea, embora ainda sem validação.

108
Envolvimento Cutâneo e Musculoesquelético

A pele está quase sempre afectada nos doentes com ES, excepto nos casos sine
scleroderma. Apesar de a pele poder provocar morbilidade significativa (prurido,
despigmentação, úlceras digitais), não está por si só associada a um aumento da
mortalidade. Sabe-se, no entanto, que o envolvimento cutâneo extenso ou rapidamente
progressivo, está associado a atingimento orgânico – ES difusa. Normalmente, a
espessura cutânea tende a aumentar na fase precoce da doença difusa e a diminuir na
fase tardia, comum pico de envolvimento aos 12-18 meses após o início do
espessamento cutâneo.

A monitorização da pele pode ser realizada através da Escala de Rodnan modificada,


embora haja cerca de 25% de variabilidade inter-observadores e não seja um método
particularmente rigoroso; deve ser feita na avaliação inicial e anualmente (Fig. 5). A
ecografia de alta frequência ou a elastografia podem ser usadas para avaliar a
espessura cutânea, embora estes métodos não estejam validados.

O envolvimento musculoesquelético pode ser sub-diagnosticado, dada a enfâse


habitualmente dirigida ao estudo de órgãos internos. As principais manifestações são
artralgia, poliartrite inflamatória, fricção tendinosa, calcinose subcutânea e contractura
de grandes e pequenas articulações.

O estudo complementar inclui doseamento de creatinina quinase e electromiograma se


sintomas sugestivos de miopatia; estas situações estão associadas a típica histologia
de miosite e presença de anticorpos anti-PM/Scl. No estudo osteoarticular, o radiograma
a avaliação inicial e sempre que
das mãos pode ser solicitado n clinicamente indicado,
sobretudo para detectar reabsorção óssea e acro-osteólise, calcinose subcutânea e
eventual sobreposição com artrite erosiva. A facilmente detectável por
sinovite é mais
ecografia do que ao exame objectivo, embora a RMN prometa ser uma útil ferramenta
de diagnóstico no futuro.

Envolvimento Gastrointestinal
O envolvimento do tracto gastrointestinal (GI) afecta a maioria dos doentes com ES,
com diferentes graus de gravidade, e qualquer segmento pode ser afectado, por
diferentes processos: a fibrose atinge o músculo liso e torna a parede dos órgãos
atrófica; a neuropatia esplâncnica, induzida por vasculopatia, provoca dismotilidade.
Os sintomas associados ao atingimento do tracto GI superior incluem disfagia, refluxo
gastro-esofágico, pirose e enfartamento pós-prandial. Menos frequentemente, pode
surgir laringite, gengivite, erosão do esmalte dentário, irritação crónica da orofaringe e
disfonia. A ectasia vascular gástrica antral (estômago em melancia) é uma manifestação
rara, que pode provocar anemia silenciosa e associado ao anticorpo anti-RNA
polimerase III (Figura 5).

109
Figura 5: 1: Estômago em melancia (GAVE – gastric antral vascular ectasias) (From Miller ML: Winners of the 2002
American College of Rheumatology Annual Slide Competition [submitted by April Chang-Miller and Mark V. Larson]
Arthritis Rheum 2003; 48(10):2737-2738). 2: Estudo manométrico do esófago, com suporte em radiograma simples, com
aumento da peristalse esofágica em resposta a estimulação nervosa transcutânea (A – antes da estimulação, B –
30 minutos após estimulação) ( Kaada B (1984) Systemic sclerosis: Successful treatment of ulcerations, pain, Raynaud's
phenomenon, calcinosis, and dysphagia by transcutaneous nerve stimulation — A case report. Acupuncture & Electro-
Therap Res Int J9: 31-44); 3: Escala de Rodnan, para avaliação do espessamento cutâneo.

As complicações associadas ao tracto GI inferior decorrem da dilatação e atonia do


jejuno-íleon, com síndrome de proliferação bacteriana, por vezes com situações de
quadro sub-oclusivo e défices de absorção de lípidos, proteínas, hidratos de carbono e
vitaminas. Os sintomas incluem distensão abdominal, obstipação e diarreia; a
incontinência ano-rectal está associada à neuropatia.
O estudo do tracto GI deve incluir: trânsito esofágico com bário: na avaliação inicial, se
for necessário o diagnóstico diferencial da disfagia, e depois quando clinicamente
recomendável; endoscopia digestiva alta: na avaliação inicial e depois anualmente, se
esofagite ou metaplasia de Barrett, ou a cada 2 a 3 anos, conforme o critério clínico;
manometria esofágica e pHmetria de 24h: na avaliação inicial, para documentar
hipomotilidade do corpo ou do esfíncter esofágico inferior; teste da D-xilose, para
quadros de má absorção.

Envolvimento Pulmonar
A fibrose pulmonar, ou doença intersticial pulmonar (DIP), está presente em até 80%
dos doentes com ES, mas apenas 25-30% desenvolvem doença progressiva. A DIP é
uma complicação precoce, com muitos doentes a desenvolver doença restritiva grave
nos 5 primeiros anos de doença. As provas de função respiratória (PFR) não são
sensíveis nem específicas o suficiente para determinar envolvimento precoce, pelo que
a TC de tórax de alta resolução é necessária para confirmar o diagnóstico. A maioria
dos doentes apresenta pneumonite intersticial fibrótica inespecífica, pelo que a biópsia
pulmonar não é necessária. A TC Tórax de alta resolução não é necessária anualmente,
excepto se alterações na espirometria que sugiram progressão da DIP; nestas
situações, o radiograma do tórax (RxT) pode ser realizado anualmente. As provas de
função respiratória (PFR) com avaliação da difusão do monóxido de carbono (DLCO)
devem ser realizadas na avaliação inicial e após 6 meses a 1 ano, nos primeiros 4 anos,
se não houver alterações e dependendo do risco. A broncoscopia com lavado bronco-
alveolar só é realizada se for necessário excluir infecção atípica, neoplasia ou
sarcoidose. Pode ainda ser feita prova de marcha durante 6 minutos, na avaliação inicial
e depois anualmente.
A hipertensão arterial pulmonar (HTP) afecta cerca de 15% dos doentes com ES,

110
sendo predominante nos doentes com ES cutânea limitada. Dado a sua contribuição
para a mortalidade destes doentes, o diagnóstico e detecção precoces são
fundamentais. O principal método utilizado para a detecção da HTP é o ecocardiograma
transtorácico (ETT), embora possa não detectar até 15-20% de casos de regurgitação
tricúspide e 30% de HTP. Foi estabelecido um algoritmo de consenso (http://detect-
pah.com) para estabelecer a HTP, com base em dados clínicos, laboratoriais, resultados
das PFR e ETT. Há factores de risco clínicos que podem ser rapidamente reconhecidos:
diminuição da DLCO, presença de anticorpos anti- centrómero, padrão do ANA e
duração da doença. O cateterismo direito é considerado o gold standard para distinguir
HTP de outras causas de hipertensão pulmonar, como disfunção sistólica ou diastólica.

Envolvimento Renal
A crise renal esclerodérmica (CRE) caracteriza-se por aumento súbito da tensão arterial
associada a insuficiência renal aguda, sendo mais frequente nos doentes com ES difusa
e anticorpos anti-RNA polimerase III. A apresentação típica manifesta-se por quadro
abrupto de hipertensão arterial grave com cefaleia, alterações da visão, convulsões,
insuficiência cardíaca congestiva, derrame pericárdico, anemia hemolítica
microangiopática, trombocitopénia e insuficiência renal oligúrica rapidamente
progressiva. Os exames complementares revelam hematúria microscópica, cilindros
eritrocitário, proteinúria e hiperreninémia. A biópsia renal revela alterações nas artérias
interlobulares, edema da íntima, com proliferação celular intensa e deposição de
mucopolissacáridos, seguida de necrose fibrinóide na parede dos vasos (Fig. 4).

A doença renal crónica não está bem descrita e a presença de alterações como
proteinúria, hipertensão ou elevação da creatinina não predizem futura CRE. Estes
doentes devem realizar doppler de artérias renais para avaliar o envolvimento vascular.

Em todos os doentes deve ser realizada avaliação regular da tensão arterial, sobretudo
nos doentes com Ac. Anti-RNA polimerase III. A função renal deve ser avaliada
periodicamente: creatinina sérica na avaliação inicial e depois em cada consulta;
depuração de creatinina ou relação proteínas/creatinina urinária inicialmente e depois a
cada 3 ou 6 meses, se existirem sinais de eventual risco renal acrescido.

Envolvimento Cardíaco
O atingimento cardíaco é frequente na ES e contribui para sintomas como dispneia,
cansaço, síncope, tonturas e palpitações. A fibrose cardíaca, embora atinja o miocárdio
e/ou o sistema de condução, é frequentemente subclínica. Os ventrículos podem ser os
dois atingidos, com distribuição dispersa e irregular. Distingue-se da doença coronária
aterosclerótica por ausência de artérias afectadas, de depósitos de hemossiderina ou
atingimento das camadas subendocárdicas.
A neuropatia autonómica é rara, mas está descrita, manifestando-se por taquidisritmias
por vezes assintomáticas e fatais. Surge com mais frequência em doentes com
envolvimento musculoesquelético e miocárdico. Pode também ocorrer pericardite ligeira
que, embora seja maioritariamente auto-limitada e não requeira

111
tratamento específico, pode evoluir para crise renal esclerodérmica.
A detecção precoce de envolvimento cardíaco e o diagnóstico de cardiotoxicidade
permite um tratamento precoce, com prevenção de cardiomiopatia, e melhora o
diagnóstico. Deste modo, é importante caracterizar e monitorizar a função cardíaca
nestes doentes, através de:
• Exame objectivo e avaliação de factores de risco cardiovasculares
• Electrocardiograma simples ou Holter de 24h – detecção de alterações da
condução ou arritmias
• Radiograma torácico – pesquisa de derrame pericárdico e/ou aumento do
índice cardiotorácico
• Ecocardiograma transtorácico bidimensional (ETT) com estudo doppler –
fornece informação sobre a fracção de ejecção do ventrículo esquerdo, função
diastólica, gradiente da válvula tricúspide, diâmetro do ventrículo direito,
alterações da cinética segmentar e possível presença de hipertensão pulmonar.
• Doseamento de NTproBNP
• Prova de marcha de 6 minutos
• Teste TILT
• Cateterização cardíaca direita – para confirmar e avaliar hipertensão pulmonar
detectada em ETT se >35 mm Hg.
• RMN cardíaca – avaliação da reserva coronária e pode também demonstrar
persistência de edema inflamatório ou fibrose; exame preferencial se suspeita
de miocardite.

Tratamento

A ES tem manifestações heterogéneas, afectando diferentes órgãos, e na maioria dos


casos o tratamento é pouco eficaz. A EULAR publicou em 2009 recomendações para o
tratamento da ES, com base na evidência científica disponível e opinião de peritos, mas
vamos aqui abordar as últimas actualizações. A corticoterapia tem pouco lugar no
tratamento destes doentes; pode ser eficaz nas manifestações músculo-esqueléticas,
como a artrite, e na serosite, mas é globalmente pouco eficaz e pode mesmo ser
deletéria por poder desencadear crise renal esclerodérmica, para além da iatrogenia
inerente.

A abordagem terapêutica das manifestações cutâneas consiste em fármacos


imunomoduladores. Vários ensaios clínicos têm demonstrado o benefício clínico do
metotrexato (MTX) (15-25 mg/semana) ou do micofenolato de mofetil (MMF) (até
3g/dia). Em casos graves, pode ser usada ciclofosfamida oral (até 2 mg/Kg por dia). As
alterações pigmentares constituem um problema sobretudo cosmético e não há
tratamento comprovadamente eficaz.

A nifedipina e o iloprost endovenoso têm revelado eficácia na redução da vasoespasmo


arterial relacionado com o fenómeno de Raynaud. Os antagonistas dos canais de cálcio,
como a nifedipina, devem ser considerados como primeira linha de

112
tratamento. As úlceras digitais requerem terapêutica tópica e endovenosa – iloprost,
nifedipina, antibioterapia -, bem como vigilância e acompanhamento regular. O
bosentano pode ser utilizado na recorrência de novas UD.

O tratamento da dor músculo-esquelética e da limitação funcional envolve fisioterapia


intensiva, programas de terapia ocupacional e de exercício físico regular; os anti-
inflamatórios não esteróides, baixas doses de prednisolona (<10-15 mg/dia) e
azatioprina também podem ser utilizados. Estudos recentes revelam melhoria da artrite
sob tocilizumab e abatacept.

A DIP pode ser tratada com ciclofosfamida (oral diariamente ou pulsos endovenosos
mensais) ou micofenolato de mofetil; embora a duração não esteja ainda definida,
Denton et al sugerem 4 a 5 anos de PFR estáveis antes de começar a desmamar estes
fármacos. O transplante de células estaminais hematopoiéticas pode ser usado em
doentes com DIP moderada a grave, tendo sido esta a principal indicação terapêutica
nos estudos ASTIS e SCOT. Estão em curso ensaios clínicos para a utilização de
fármacos como o nintedanib, a perfenidona e o rituximab para a DIP. O transplante
pulmonar tem sido uma opção nalguns centros de referência, mas ainda sem dados
significativos.

O tratamento da HTP deve ser dirigido ao grau de morbilidade e risco de mortalidade,


embora estudos recentes defendam que deve ser tratada agressivamente deste a sua
detecção. Os fármacos utilizados incluem antagonistas dos receptores da endotelina
(bosentano, ambrisentano, macicentano), análogos do epoprostenol (iloprost,
epoprostenol) e inibidores da 5-fosfodiesterase (sildenafil, tadalafil). O riociguat é um
novo fármaco, ainda sem aprovação em Portugal, que actua por estimulação da guanil-
ciclase independentemente e em sinergia com o óxido nítrico. A terapêutica combinada
ou sequencial pode apresentar vantagens, mas deve ser sempre adaptada ao doente.

A perda ponderal e a sub-nutrição são manifestações GI importantes que podem afectar


gravemente a qualidade de vida e levar a subsequentes co-morbilidades. Alterações do
estilo de vida, dieta, fármacos (pró-cinéticos, inibidores da bomba de protões,
bloqueadores H2, octreótido), a nutrição parentérica ou entérica podem ser benéficas,
embora nesta última seja necessária especial atenção, dado o risco de aspiração.

O envolvimento renal apresenta geralmente mau prognóstico e o tratamento deve ser


direccionado para um controlo agressivo da pressão arterial, através de inibidores da
enzima de conversão da angiotensina e antagonistas dos canais de cálcio.

A imunossupressão intensiva seguida de transplante autólogo de células estaminais


pode significar terapêutica de resgate em doentes com ES e mau prognóstico, sobretudo
por fibrose pulmonar. Vários ensaios randomizados têm comprovado a redução da
mortalidade nestes doentes e um resultado melhor quando comparado com
ciclofosfamida endovenosa. No entanto, a mortalidade associada a doença cardíaca
grave tem limitado a sua utilização. A selecção criteriosa dos doentes e a sua
aplicabilidade em centros de referência tem tornado o transplante autólogo de células

113
estaminais hematopoiéticas uma opção terapêutica em doentes com complicações
graves que não melhoraram ou pioraram com agentes imunossupressores
convencionais.

A terapêutica da Esclerose Sistémica exige uma visão global e multidisciplinar do doente


e deve ser iniciada de forma coerente e orientada às manifestações apresentadas de
forma a melhorar a qualidade de vida do doente e impedir, nos casos em que é possível,
a progressão da doença.

Prognóstico

A ES apresenta maior mortalidade que a população geral (risco 2,72 vezes superior),
estando a sobrevida aos 5 anos estimada em 74,9%. O envolvimento pulmonar e
cardíaco está associado a maior mortalidade. Estão associadas a mau prognóstico as
situações de hipertensão arterial pulmonar, fibrose pulmonar e doença difusa.

Conclusão
A ES é uma doença complexa, cujo processo etiopatogénico assenta em dano vascular,
inflamação e fibrose. O fenómeno de Raynaud é uma manifestação muito frequente,
sendo também atingidos com frequência a pele e o tracto gastrointestinal. O
envolvimento pulmonar (fibrose pulmonar e hipertensão pulmonar) e cardíaco estão
associados a pior prognóstico.
O tratamento é direccionado para a vasodilatação, imunomodulação e
imunossupressão. Novos fármacos anti-fibróticos estão actualmente a ser testados em
ensaios clínicos, mas ainda sem resultados válidos.

ASPECTOS PRÁTICOS
• A ES atinge praticamente todos os órgãos, sendo o envolvimento vascular,
cutâneo e GI o mais frequente.
• O tratamento de primeira linha deve incluir antagonistas de canais de cálcio.
• O envolvimento pulmonar e cardíaco está associado a pior prognóstico.

TAKE HOME MESSAGES


• Doença ocorre por dano vascular, inflamação e fibrose.
• Fenómeno de Raynaud e espessamento cutâneo são as manifestações
mais frequentes.
• Diagnóstico e tratamento precoces permitem melhorar o prognóstico.
• Importante morbilidade e mortalidade.

114
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115
6. SÍNDROME DO ANTICORPO ANTI-FOSFOLÍPIDO

Definição
A Síndrome do Anticorpo Anti-Fosfolípido (SAAF) é admitida como condição pró-
trombótica caracterizada por trombose venosa ou arterial e/ou morbilidade obstétrica,
juntamente com imunologia persistentemente positiva para os anticorpos anti-
fosfolípidos: anticoagulante lúpico (ACL), anticorpo anti-cardiolipina (ACA) e anticorpo
anti-beta2 glicoproteína1 (AB2GP1). A SAAF pode classificar-se em primária, nas
situações em que não está associada a outras condições clínicas, ou secundária,
quando associada a outras doenças sistémicas, sendo a mais frequente o Lúpus
Eritematoso Sistémico (LES), mas também infecções, fármacos e neoplasias.

Epidemiologia
A SAAF pode manifestar-se de formas diferentes: portadores assintomáticos de
anticorpos persistentemente positivos; SAAF “clássica”, que cumpre critérios clínicos e
laboratoriais, como veremos adiante; SAAF obstétrica; doentes com imunologia positiva,
mas manifestações clínicas não-trombóticas (como trombocitopénia, anemia hemolítica
ou livedo reticular); e a SAAF catastrófica.

A prevalência da SAAF na população geral varia entre 1-5%, sendo a incidência


estimada em 5:100.000 pessoas/ano. Em populações específicas, a prevalência é mais
elevada: nos doentes com AVC1 é de 13%, no EAM de 11%, na TVP de 9,5% e na
morbilidade obstétrica de 6%.

Etiologia e Fisiopatogénese
A etiopatogénese subjacente à SAAF sugere um processo patogénico faseado e
multifactorial. Numa primeira fase os anticorpos específicos da SAAF ligam-se às
proteínas plasmáticas e às proteínas superficiais das células do endotélio vascular ou
das plaquetas, promovendo um estado pró-coagulante (Fig.1 e Fig.2B). Numa segunda
fase um evento precipitante vai alterar o equilíbrio homeostático entre factores pró e
anti-coagulantes; este trigger pode ser uma infecção, uma lesão endotelial, inflamação,
ou outros factores pró-coagulantes imunológicos ou não- imunológicos, como os anti-
conceptivos orais estrogénicos, cirurgia ou imobilização. A própria constituição genética
do indivíduo, no que concerne a mediadores inflamatórios, também pode influenciar
fortemente as manifestações clínicas da SAAF, como um excesso de produção das
fracções C3a e C5a do complemento.

Publicações recentes têm contribuído para uma melhor compreensão dos mecanismos
fisiopatológicos subjacentes a este processo patogénico. Arachchilage D e Laffan M

1
AVC: acidente vascular cerebral; EAM: enfarte agudo do miocárdio; TVP: trombose venosa profunda.

116
propuseram que a conformação da exposição antigénica nos anticorpos anti-
fosfolipídicos pode influenciar o fenótipo da SAAF (British Journal of Haematology 2017).
Sacharidou et al. propuseram que o receptor 2 da apoliproteína E (apoER2), um receptor
de lipoproteínas, quando ligado a anticorpos anti-fosfolípido, modula a sinalização
intracelular das células endoteliais, plaquetas e trofoblasto, aumentando a predisposição
para trombose. A activação da apoER2 diminui a activação da enzima sintetizadora de
óxido nítrico endotelial. Deste modo, irá haver uma insuficiência em óxido nítrico, o que
contribui para a trombose e oclusão não trombótica mediada pelos anticorpos
específicos da SAAF.

Figura 1: Mecanismos de coagulação mediados por anticorpos anti-fosfolípido (aPL). A acção dos anticorpos anti-
fosfolípido promove a coagulação por várias vias. (1) Os aPL interagem com as células endoteliais, inicialmente através
da ligação à beta2-glicoproteína-1 presente na superfície celular, e induzem um fenótipo endotelial pró-coagulante e pró-
inflamatório. (2) Os aPL provocam um aumento na produção do factor de expressão tecidular nas células endoteliais e
monócitos em circulação e promovem a adesão de leucócitos endoteliais, com secreção de citocinas e produção de
prostaglandina E2 (PGE2). (3) Os aPL reconhecem as proteínas de ligação aos fosfolípidos nas membranas plaquetárias
e ligam-se a elas, o que aumenta a agregação plaquetária. (4) Os aPL interferem com os componentes plasmáticos da
cascata de coagulação, inibindo a actividade anticoagulante e afectando a fibrinólise. Todos estes mecanismos
contribuem para um estado pró-coagulante mas, por si, não levam à formação de um coágulo. Para este processo, são
necessárias duas etapas: a presença de aPL constitui uma primeira fase; a presença de outra condição pró-coagulante
constitui a segunda fase; juntas, levam à coagulação propriamente dita, mediada pelo complemento. From Meroni et al.
Pathogenesis of antiphopholipid syndrome: understanding the antibodies. Nature Reviews 2011 (7): 330-339.

Manifestações Clínicas
Como referido, as manifestações clínicas caracterizam-se por tromboses venosas e
arteriais, morbilidade obstétrica e trombocitopénia ligeira a moderada. O envolvimento
de apenas um ou múltiplos vasos pode originar variadas apresentações clínicas,
inclusive num mesmo indivíduo (Fig.2). As manifestações clínicas mais frequentes são
a trombose venosa profunda, o AVC e o tromboembolismo pulmonar.

117
O envolvimento clínico da SAAF pode ser multi-orgânico: trombose periférica (TVP,
tromboflebites superficiais e tromboses arteriais e venosas nos membros, trombose da
veia subclávia e da jugular), neurológico (enxaqueca, AVC, AIT2, epilepsia, demência
multi-enfartes, coreia, encefalopatia aguda, mielite transversa, depressão, síndrome de
Guillain-Barré), pulmonar (TEP, HTP, microtrombose pulmonar), cardíaca (disfunção ou
estenose valvular, EAM, angina, miocardiopatia, vegetações não infecciosas, re-
trombose de bypass coronário), renal (trombose glomerular, enfarte renal, trombose de
artéria ou veia renal), gastrointestinal (isquémia mesentérica ou esofágica), enfarte
esplénico, cutânea (livedo reticular, úlceras cutâneas, lesões de pseudo-vasculite,
gangrena digital, necrose cutânea – Fig. 3), osteoarticular (artralgia, artrite, necrose
óssea avascular), oftalmológica (amaurose fugaz, trombose da artéria renal),
otorrinolaringológica (perfuração do septo nasal), hematológica (trombocitopénia
<100.000, anemia hemolítica), obstétrica (pré-eclâmpsia, eclâmpsia, abruptio
placentae3), fetal (aborto precoce <12 semanas, aborto tardio >12 semanas, restrição
do crescimento intra-uterino, partos prematuros, nado morto).

Figura 2: A – Esquema genérico com manifestações clínicas da Síndrome do Anticorpo Anti-Fosfolípico, com
envolvimento multi-orgânico. Cohen D et al. Diagnosis and management of the antiphospholipid syndrome. BMJ
2010;340:c2541. B – Efeitos principais dos anticorpos anti-fosfolípido (aPL) na placenta. Vários mecanismos estão
associados à perda fetal mediada por aPL. A trombose placentária pode ser induzida pelos aPL ligados a monócitos,
células endoteliais, plaquetas e componentes plasmáticos da cascata de coagulação. From Meroni et al. Pathogenesis
of antiphopholipid syndrome: understanding the antibodies. Nature Reviews 2011 (7): 330-339.

A SAAF Catastrófica é uma forma grave de SAAF em que ocorre trombose simultânea
de pequenos vasos, o que pode levar a falência multi-orgânica – 3 ou mais órgãos em
menos de uma semana; é uma manifestação rara, que ocorre em menos de 1% dos
casos, com 50% de mortalidade. Num estudo de Bucciarelli et al baseado no CAPS

2
AIT: acidente isquémico transitório, TEP: tromboembolismo pulmonar, HTP: hipertensão pulmonar; SIRS: systemic
inflammatory response syndrome.
3
Termo em latim ainda hoje utilizado para designar descolamento prematuro da placenta.

118
Registry4, a maioria destes episódios é precedida de infecção e as manifestações
clínicas dependem da extensão das manifestações trombóticas e do SIRS.

Figura 3: Lesões cutâneas na Síndroma do Anticorpo Anti-Fosfolípido. Placas necróticas reticuladas de diferentes
dimensões ao nível do maléolo externo (A), face anterior da coxa (B) e face interna da coxa (C). From Blume J and Miller
C. Antiphospholipid Syndrome: A Review and Update for the Dermatologist. Cutis. 2006;78:409-415.

O risco de trombose em doentes com imunologia positiva é difícil de estabelecer, mas


dependerá do(s) anticorpo(s) positivo(s), estando o ACL associado a maior risco
trombótico. Um estudo de Ruffati et al com grávidas com SAAF revelou que a
positividade para os 3 anticorpos e/ou história prévia de tromboembolismo aumenta a
probabilidade de morbilidade obstétrica. Foi desenvolvido um índice de risco de
trombose em doentes com SAAF e LES, o GAPSS (Global Anti-Phospholipid Syndrome
Score) que combina factores de risco independentes para trombose e morbilidade fetal,
mas ainda aguarda validação.

Critérios de Diagnóstico
O diagnóstico da SAAF é estabelecido com base num evento clínico e um evento
laboratorial (Sidney, 2005):

- EVENTO CLÍNICO:

• Trombose Vascular (≥1 episódio de trombose arterial, venosa ou de pequenos


vasos); deve ser confirmada por exame de imagem ou histopatológico
• Complicações obstétricas (perda fetal > 10 semanas de gestação sem anomalias
fetais; ≥1 parto prematuro de recém-nascidos sem anomalias antes das 34 semanas
de gestação por eclâmpsia ou pré-eclâmpsia grave, ou insuficiência placentária; ≥3
abortos espontâneos < 10 semanas de gestação sem outra causa detectada).

- EVENTO LABORATORIAL – positividade para anticorpos anti-fosfolípido, detectáveis em


≥2 ocasiões espaçadas de 12 semanas:

• Anticorpo Anti-Cardiolipina – isótipos IgM e/ou IgG presente no soro ou plasma,


avaliados por ELISA5
• Anticoagulante Lúpico – pesquisado de acordo com as normas de orientação da
International Society of Thrombosis and Hemostasis

4
CAPS Registry – Catastrophic Anti-Phospholipid Syndrome, registo internacional criado em 2000 para registo de
doentes e complicações.
5
ELISA: enzyme-linked immunosorbent assay.

119
• Anticorpo anti-beta2-glicoproteína-1 – isótipos IgM e/ou IgG no soro ou plasma,
avaliadas por ELISA.

Apesar de não constituírem critérios de diagnóstico, existem outras manifestações


clínicas associadas à SAAF que poderão ser tidas em consideração para estabelecer o
diagnóstico: o envolvimento de válvula cardíaca, livedo reticularis, trombocitopénia,
nefropatia à SAAF e manifestações do sistema nervoso central não trombóticas, como
disfunção cognitiva.

Em 2002 foram estabelecidos critérios para SAAF catastrófica:

1) Envolvimento de 3 ou mais órgãos, sistemas e/ou tecidos;


2) Desenvolvimento de manifestações clínicas em simultâneo em <1 semana;
3) Confirmação histológica de oclusão de pequenos vasos em pelo menos um órgão;
4) Confirmação laboratorial da presença de anticorpos anti-fosfolípido (ACA, ACL
AB2GP1).

A SAAF catastrófica pode ser definida como definitiva ou provável. O primeiro caso
preenche os 4 critérios; no segundo há evidência de envolvimento de pelo menos dois
órgãos na ausência de confirmação laboratorial da imunologia ao fim de 6 semanas nos
casos em que os doentes tenham falecido, no caso de não haver confirmação
histológica ou se os eventos clínicos foram espaçados no tempo. Tem havido alguns
casos descritos de SAAF catastrófica paraneoplásica, associados sobretudo a tumores
sólidos, provavelmente pela produção de autoanticorpos pelo sistema imunitário como
resposta a antigénios tumorais, produção de imunoglobulinas monoclonais com acção
anti-fosfolipídica ou secreção de anticorpos anti-fosfolípido por células tumorais
(Ideguchi et al).

Exames Complementares de Diagnóstico


O estudo diagnóstico de doentes com SAAF deve incluir parâmetros analíticos,
radiológicos e/ou histológicos. Determinadas situações de ordem clínica poderão fazer
suspeitar de SAAF e poderão justificar o estudo imunológico – Tabela 1.

O estudo analítico deve incluir o estudo de coagulopatias: pesquisa dos anticorpos anti-
fosfolípido (ACA, ACL, AB2GP1), crioglobulinas, criofibrinogénio, actividade de proteína
C, actividade da proteína S, mutação do factor V de Leiden. Deve ser tido em atenção
que os valores do ACL, Proteína C e S poderão estar alterados se já tiver sido iniciada
anticoagulação. Estão em estudo outros anticorpos para SAAF, nomeadamente o
anticorpo anti-fosfatidilserina/pro-trombina e o anticorpo anti- fosfatidiletanolamina,
embora a sua utilização ainda não esteja estandardizada. Deve ser também solicitado
hemograma, esfregaço de sangue periférico, estudos de coagulação, anticorpo anti-
nuclear, factor reumatóide e D-dímeros.

Os exames radiológicos incluem Eco-Doppler e Tomografia Computorizada (TC) ou


Angio-TC para confirmação de tromboses venosas ou arteriais.

120
SITUAÇÕES EM QUE SE DEVE PESQUISAR ANTICORPOS ANTI-FOSFOLÍPIDO
TROMBÓTICAS
- Trombose arterial < 50 anos
- Trombose venosa sem causa aparente < 50 anos
- Tromboses recorrentes
- Tromboses em locais pouco frequentes
- Doentes com eventos trombóticos venosos e arteriais
- Qualquer doente internado por microangiopatia trombótica de etiologia desconhecida
M ANIFESTAÇÕES OBSTÉTRICAS
- ≥1 perdas fetais > 10 semanas de gestação sem causa evidente
- Restrição do crescimento intra-uterino grave, sem causa evidente
- Pré-eclâmpsia precoce ou grave
- ≥3 abortos espontâneos < 10 semanas de gestação
DOENTES COM LES
- Estudo inicial
- Repetir antes de gravidez, cirurgia, transplante, tratamentos à base de estrogénios ou na
presença de eventos neurológicos, vasculares ou obstétricos de novo
Tabela 1: Situações em que se devem pesquisar anticorpos anti-fosfolípico. Adaptado de Cohen D, et al. Diagnosis and
management of the antiphospholipid Syndrome. BMJ 2010;340:c2541

A biópsia cutânea pode ser necessária nos doentes com lesão cutânea a esclarecer,
devendo ser excluído processo de vasculite.

Tratamento
O tratamento da SAAF deve ser direccionado para o tratamento de eventos clínicos e a
imunossupressão só deve ser utilizada na presença de SAAF catastrófica ou outras
situações clínicas associadas com LES; não há benefício em tentar eliminar anticorpos
da circulação, uma vez que uma a três semanas após a interrupção da terapêutica
retomam concentrações séricas detectáveis. O risco de recorrência de trombose é
elevado nos primeiros seis meses após interrupção da terapêutica, sugerindo um efeito
de rebound. Esta é uma das razões que sustenta a necessidade de anticoagulação
crónica em doentes que sofreram eventos trombóticos.

Nos doentes com diagnóstico definitivo de SAAF com um primeiro evento trombótico
venoso, deve ser instituída anticoagulação com antagonistas da vitamina K (AVK) para
um INR alvo entre 2,0 – 3,0. Nos doentes com SAAF provocada por evento trombótico
arterial, há alguma controvérsia quanto à utilização em monoterapia de anticoagulação
com varfarina e INR alvo de 3,0 – 4,0 ou terapêutica combinada com anti-agregante e
INR alvo de 2,0 – 3,0. Nos doentes refractários, poderá ser necessário aumentar o INR
alvo. O risco hemorrágico associado a esta anticoagulação foi estimado entre 0,8- 1,6%
em doentes com INR 2,0 – 3,0.

Apesar de os AVK serem actualmente a principal terapêutica utilizada na SAAF, os


novos anticoagulantes orais (inibidores directos anti-Xa, como rivaroxabano e
apixabano; ou o inibidor directo da trombina, como o dabigatrano) têm vindo a ser
usados em vários estudos prospectivos multicêntricos, embora com amostras pequenas
e ainda sem evidência de superioridade quanto aos AVK. Resseguier et al sugerem a
sua utilização em doentes em que o controlo do INR seja precário ou em

121
doentes com baixo risco de trombose recorrente. Actualmente, estão em curso estudos
de fase III em vários países: RAPS, TRAPS, ASTRO-APS, entre outros.

A SAAF catastrófica obriga a uma abordagem agressiva que inclui anticoagulação com
heparina, corticoterapia em doses elevadas, plasmaferese e/ou imunoglobulina
endovenosa; nos casos refractários poderá ser usado o rituximab. O eculizumab e o
defibrotido têm sido descritos em casos isolados, sem grande sucesso. Outros fármacos
que inibem a ligação dos anticorpos à superfície dos fosfolípidos, como TIFI (inibe a
ligação do AB2GP1) ou o MBB2 (impede a activação do complemento após a ligação
do ACL e AB2GP1), estão ainda em investigação.

A trombocitopénia associada à SAAF é normalmente ligeira e não requer terapêutica


activa. Em situações graves, pode ser usada corticoterapia e, nos casos refractários,
pode ser usada azatioprina, imunoglobulina endovenosa ou rituximab. O rituximab tem-
se revelado eficaz também no tratamento de manifestações clínicas não trombóticas na
SAAF, como as úlceras e a necrose cutânea.

As alterações neurológicas devem ser tratadas com corticoterapia, agentes


imunossupressores e terapêutica anticoagulante; os agentes anti-dopaminérgicos
podem ser considerados nos casos de coreia. A doença valvular deve ser tratada com
anticoagulação. A nefrite a SAAF deve ser tratada com inibidores da enzima de
conversão da angiotensina e anticoagulação.

Prevenção
Nos doentes com imunologia positiva para SAAF mas sem nenhum evento clínico
associado, deve ser feita uma estratificação do risco de trombose, a fim de tratar ou
suprimir outros factores de risco cardiovascular – HTA, dislipidémia, diabetes, nefrite a
SAAF, tabagismo, sedentarismo, entre outros. A abordagem deverá ser feita em função
das características do doente, tendo também em atenção a presença de outras
trombofilias ou doenças subjacentes, como o LES. A anti-agregação profiláctica em
doentes com títulos elevados de anticorpos não revelou benefício para evitar a
recorrência de eventos trombóticos. Nos doentes com risco elevado, ou seja, com LES
e imunologia com títulos persistentemente elevados, poderá ser realizada profilaxia
primária com hidroxicloroquina e aspirina em baixa dosagem. Nos doentes que vão ser
submetidos a cirurgia e/ou imobilização prolongada, está recomendada heparina de
baixo peso molecular (HBPM) em dose profiláctica.

A terapêutica anti-concepcional deverá ser revista e realizado planeamento familiar. A


anti-agregação em dose baixa (50-100 mg/dia) deve ser administrada desde o início até
ao final da gravidez, devendo ser combinada com HBPM subcutânea. Se a morbilidade
obstétrica for recorrente, a anti-agregação deve ser iniciada pelo menos 4 semanas ante
da concepção. Nas doentes sob anticoagulação com varfarina que engravidem, o
fármaco deve ser imediatamente interrompido, dada a teratogenicidade, e substituído
por HBPM. A gravidez destas doentes deve ser vigiada em centros especializados, com
acompanhamento multidisciplinar.

122
Outros fármacos têm sido sugeridos como adjuvantes na redução do risco de trombose,
como as estatinas e a vitamina D, embora haja alguma controvérsia na sua indicação.

Prognóstico
A SAAF é uma doença que afecta uma população jovem, pelo que é importante avaliar
cuidadosamente as lesões decorrentes dos fenómenos trombóticos e investir no
tratamento de factores de risco cardiovascular. Um estudo a 10 anos promovido por
Cervera et al, Euro-Phospholipid Project, estimou a sobrevida a 10 anos em 91%. A
morbilidade está associada sobretudo a tromboses arteriais. A mortalidade está
associada principalmente a trombose e infecção.

Foram identificados alguns factores de risco para a SAAF catastrófica com elevada
mortalidade: idade >36 anos, LES, envolvimento pulmonar e renal e ANA positivo. O
envolvimento cerebral foi identificado como a principal causa de morte nestes doentes,
seguido de envolvimento cardíaco e infecção.

SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- AVC em doente com <55 anos, pensar em SAAF e outras trombofilias.
- TVP ou TEP em jovem: pensar em SAAF.
- Mulheres com abortos de repetição sem outra causa: pensar em SAAF.
- Reconhecimento rápido da SAAF permite evitar tromboses futuras.
- Encaminhar doentes com SAAF para especialista em DAI.

TAKE HOME MESSAGES


A SAAF está associada a elevado risco de trombose venosa ou arterial, podendo
afectar qualquer órgão, e a morbilidade obstétrica.
A TVP e o AVC são as manifestações trombóticas mais frequentes. As
manifestações clínicas não trombóticas incluem a trombocitopénia e o livedo
reticular.
A SAAF catastrófica é raro, mas frequentemente fatal.
A estratificação do risco é individual e deve incluir outras causas de doença
cardiovascular. O ACL correlaciona-se com maior número de manifestações
clínicas.

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124
7. MIOPATIAS INFLAMATÓRIAS

Definição
As miopatias inflamatórias idiopáticas (MII) são um grupo de patologias raras e
heterogéneas, que inclui a Polimiosite (PM), a Dermatomiosite (DM) e a Miosite de
Corpos de Inclusão (MCI), nos adultos, e a DM Juvenil, nas crianças. Todas partilham
algumas características na apresentação clínica, nomeadamente diminuição da força
muscular proximal, diminuição da capacidade aeróbica muscular e inflamação muscular,
com envolvimento multissistémico. A DM distingue-se da PM por apresentar
manifestações cutâneas. Dentro das MII existe também a Síndrome Anti-Sintetase
(SAS), caracterizada pela positividade para auto-anticorpos anti-sintetase, em que o
envolvimento pulmonar sob a forma de doença do interstício pulmonar (DIP) determina
o prognóstico. A Miosite Necrotizante Auto-Imune (MNAI) está associada a miopatia
necrotizante com início agudo, associada ou não a neoplasias, infecções virais e outras
doenças auto-imunes, bem como aos anticorpos anti-SRP e anti-HMGCR.

Epidemiologia
As MII são doenças raras, com uma incidência combinada de 5-10 casos por
1.000.000 habitantes anualmente, uma predominância 2:1 do sexo feminino, e com dois
picos nos grupos etários 5-15 e 40-50 anos. O grupo étnico mais atingido é o
caucasiano. O aparecimento da doença surge normalmente de modo insidioso, com
evolução lenta e duração superior a dois meses. A MCI tem uma predominância no sexo
masculino.

Etiologia e Fisiopatogénese
As MII resultam da interacção de factores genéticos e ambientais, estando envolvidos
mecanismos da imunidade adaptativa, através de linfócitos B e T, e inata, através da
produção de citocinas inflamatórias (ver Figuras 1 e 2).

A associação das MII a genes dos alelos HLA classe II tem vindo a ser demonstrada:
HLA-DRB1*0301 e DQA1*0501 nos caucasianos, HLA-B7 nos asiáticos. Há ainda
associação entre sub-tipos de miosites e perfil de auto-anticorpos, como por exemplo,
os anticorpos anti-Jo1 estão ligados aos genes HLA-DRB1*0301 e DQA1*0501,
enquanto que os anticorpos anti-Mi2 estão ligados aos genes DRB1*07 e DQA*0201;
os genes DRB1*0101 e DRB1*0301 estão associados a um MCI com início rápido e
precoce. Deste modo, a interacção entre genes está associada a determinados
fenótipos, sendo ainda relevante destacar que esta relação genética com alelos do MHC
II sugere que a resposta imune seja desencadeada por linfócitos T. Estão também
envolvidos genes não-HLA, associados sobretudo à produção de citocinas inflamatórias.

O papel dos factores genéticos está ainda mal-esclarecido, mas sugere-se uma
interacção com factores ambientais, como infecções, sobretudo virais (Coxsackie,
Parvovirus B19, echovirus, Influenza, HIV, HTLV1) e parasitárias (Trypanosoma cruzi

125
e Toxoplasma), exposição a radiação UV e défice de vitamina D ou fármacos (estatinas,
cimetidina, cloroquina, colchicina, álcool).

Foi proposta recentemente uma hipótese unificadora, que envolve percursores


musculares imaturos, uma vez que as fibras musculares imaturas em regeneração
expressam auto-antigénios específicos das miosites em maior quantidade do que as
fibras maduras. Estes auto-antigénios consistem em complexos de proteínas e ácidos
nucleicos, que induzem a estimulação de Toll-like receptors, que libertam IFN-1, IL-6 e
CCL20, e a estimulação das células dendríticas, para activação de linfócitos e produção
de auto-anticorpos. O HLA-I também é apresentado à superfície de células musculares
em regeneração. Estas últimas representam uma fonte de IFN-β e simultaneamente um
alvo para a reposta imune mediada pelas células dendríticas, que estão implicadas na
polarização das células T. Deste modo, os percursores musculares imaturos podem ser
ao mesmo tempo alvos e causa da patogénese da resposta auto-imune que provoca
inflamação muscular.

Figura 1: Esquema da imunopatogénese (imunidade inata) da dermatomiosite. A activação da componente C3 do


complemento (C3) é um evento precoce, levando à formação da fracção C3b e a complexos de ataque de membrana
(MACs), que são depositados na parede celular das células endoteliais dos capilares do endomísio. Ocorre então
destruição dos capilares, isquémia ou micro-enfartes, que são mais proeminentes na periferia dos feixes musculares,
bem como atrofia peri-fascicular. As citocinas libertadas pelo complemento activado levam à activação de células T CD4+,
macrófagos, células B e células dendríticas plasmocitóides CD123+; estimulam a expressão de moléculas de adesão ao
endotélio vascular e moléculas de adesão intercelular na parede das células endoteliais; facilitam a transmigração das
células linfóides no tecido endomisial, através da acção de integrinas. As regiões perifasciculares contém fibras em
estado de remodeling e regeneração, stress celular e activação de complexos imunes, bem como moléculas associadas
à imunidade inata. (N Engl J Med 2015;372:1734-47.)

126
Figura 2: Mecanismo Fisiopatológico para Polimiosite e Miosite de Corpos de Inclusão, mediado por células T. As células
CD8+ expandem-se na periferia e no próprio endomísio, atravessam a membrana endotelial e ligam-se directamente ao
MHC I expresso de forma aberrante na superfície da fibra muscular – formam o compleo MHC-CD8. A up-regulation de
moléculas co-estimuladoras (BB1 e ICOSL) e dos seus ligandos (CD28, CTLA-4 e ICOS), bem como da ICAM-1 ou LFA-
1, estabilizam a interacção sináptica entre asa células CD8+ e o MHC classe I nas fibras musculares. As células Th17
reguladoras desempenham um papel fundamental na activação das células T. A necrose das fibras musculares é
mediada por grânulos de perforinas, libertados de células T auto-agressivas. Citocinas, como IFN γ, IL-1 e TNF, libertadas
pelas células T activadas podem estimular a citotoxicidade. As células B activadas ou as células dendríticas
plasmocitárias são clonadas no endomísio e participam no processo inflamatório, embora de modo ainda indefinido.

Manifestações Clínicas
As manifestações clínicas mais comuns são fraqueza muscular proximal, associada a
mialgia, habitualmente de instalação progressiva. É frequente os doentes apresentarem
dificuldade em levantar-se de uma cadeira sem apoio das mãos, subir escadas ou
mesmo pentear-se. Os músculos oculares são poupados, mas os da face podem ser
atingidos, sobretudo na MCI. Em casos avançados, os músculos faríngeos e extensores
do pescoço podem estar afectados, provocando disfagia e dificuldade em segurar a
cabeça, respectivamente.

As manifestações extra-musculares podem ocorrer em todas as MII, embora sejam raras


na MCI. Incluem sintomas sistémicos, como febre, artralgias e fenómeno de Raynaud;
arritimias cardíacas e disfunção ventricular, embora rara; e complicações pulmonares,
sobretudo em contexto de DIP, que ocorre em 10 – 40% dos doentes, embora possa
ser mais elevada nos doentes com anticorpo anti-Jo1 ou anti-MDA5, em que a
prevalência pode chegar aos 70%. As alterações cutâneas, mais frequentes na DM,
incluem pápulas de Gottron (ver Capítulo I.1), sinal de Gottron, eritema heliotrpo, eritema
facial, poiquiloderma, mechanic hands e calcinose.

Existem 3 padrões diferentes de evolução, afetando cada um cerca de 1/3 dos doentes:
monogénico, recorrente-remitente e crónico persistente.

127
Dermatomiosite (DM)

A DM pode ocorrer em adultos e crianças e as manifestações cutâneas antecedem


normalmente o envolvimento muscular, como eritema heliotropo, eritema na face,
joelhos, cotovelos, maléolos, pescoço, parede anterior do tórax (sinal em “V do
pescoço”), dorso e ombros (sinal do xaile); surgem também as pápulas de Gottron
(figura 3). Estas lesões são fotossensíveis e agravam com radiação UV. Surgem
capilares dilatados na área peri-ungueal, com megacapilares bizarros e disformes na
capilaroscopia, espessamento da pele e cutículas e fissuras nas polpas dos dedos,
aparentando “mãos de mecânico” (mechanic hands). Pode ocorrer também calcinose
subcutânea, mais frequente na DM juvenil, sendo que algumas lesões podem
superficializar-se e provocar úlceras e infecções.

A DM pode não apresentar semiologia muscular, denominando-se deste modo como


dermatomiosite amiopática. Os sintomas podem sobrepor-se ao da esclerose sistémica
e doença mista do tecido conjuntivo.

Nos adultos, há uma associação conhecida entre DM e neoplasias, com uma


prevalência de 9 a 32% nos primeiros 3 a 5 anos após o diagnóstico. As neoplasias mais
comuns envolvem o ovário, mama, cólon, nasofaríngeo, melanoma e linfoma não-
Hodgkin, pelo que os doentes devem ser submetidos a rastreio nos 3 primeiros anos de
doença.

Polimiosite

A polimiosite é rara e o seu diagnóstico é muitas vezes confundido com o de MCI, miosite
necrotizante ou distrofia inflamatória. Considera-se um diagnóstico de exclusão,
definindo-se como miopatia sub-aguda proximal em doentes sem lesões cutâneas,
história familiar de doença neuro-muscular, exposição a fármacos miotóxicos,
envolvimento de músculos faciais ou peri-orbitários doença endocrinológica ou fenótipo
sugestivo de MCI.

Fig.3: Aspectos clínicos das miosites inflamatórias. A: eritema heliotropo, em doente com dermatomiosite; B: pápulas de
Gottron em doente com dermatomiosite; C: atrofia dos músculos da mão e antebraços em doente com miosite de corpos
de inclusão. (In Malik A et al. Idiopathic Inflammatory Myopathies: Clinical Approach and Management. Front. Neurol.
7:64)

Miosite de Corpos de Inclusão

A MCI foi inicialmente identificada num grupo de doentes sem resposta aos
glucocorticóides e o seu diagnóstico é pouco comum antes dos 45 anos de idade. Existe
uma diminuição da força muscular assimétrica e frequentemente apresenta um

128
padrão misto, tanto proximal como distal. A sua instalação é insidiosa e o aparecimento
dos sintomas pode preceder o diagnóstico em vários anos.

Alguns aspectos clínicos permitem um diagnóstico precoce, como o envolvimento de


músculos distais, especialmente os extensores do pé e flexores dos dedos do pé, atrofia
dos músculos do antebraço e quadricípete, quedas frequentes por fadiga do
quadricípete e subsequente instabilidade dos joelhos, fadiga dos músculos faciais,
atingimento dos músculos axiais e disfagia (figura 3).

Síndrome Anti-Sintetase

A SAS caracteriza-se por miosite, poliartrite (pode ser erosiva), mechanic hands,
fenómeno de Raynaud, febre e DIP.

A associação das MII, particularmente no caso das DM, com neoplasias, está bem
estabelecida, sugerindo que se pode tratar de um processo paraneoplásico. Como
factores de risco para esta associação foram identificados factores de risco histológicos
e clínicos, como evidência de lesão capilar na biópsia muscular, necrose cutânea,
vasculite leucocitoclástica cutânea, idade mais avançada e disfagia. Os auto- anticorpos
dirigidos para Transcription Intermediary Factor 1-gamma (TIF1g) 14 e uma proteína da
matriz nuclear NXP2 também parecem associados a neoplasias.

Diagnóstico
O diagnóstico de MII é baseado nas manifestações clínicas e exame objectivo exaustivo,
juntamente com a demonstração de dano muscular, que habitualmente é feito através
da elevação das enzimas do músculo esquelético, creatina quinase (CK) e aldolase,
biópsia muscular (realizada por anatomopatologista experiente em patologia muscular),
eletromiografia (EMG) e estudo dos auto-anticorpos. As transaminases podem estar
também elevadas, dado que pode atrasar o diagnóstico, por associação a doenças
hepáticas.

A biópsia muscular deve ser realizada nos doentes que não apresentem alterações
cutâneas específicas de DM. Porém, uma biópsia normal não exclui MII e justifica-se a
realização de RMN Muscular para exclusão de outra etiologia e, simultaneamente,
determinação do local apropriado para biópsia. Nos casos de DM, observa-se
inflamação peri-vascular, sobretudo nos septos interfasciculares ou à periferia das
fascículas musculares, hipoperfusão e atrofia perifascicular; na PM e MCI a inflamação
é também peri-vascular, mas concentrada em múltiplos focos no endomísio e vacúolos
auto-fágicos, no caso da MCI (figura 4). Nas crianças, a biópsia muscular é evitada
sempre que possível, sendo utilizada a calculadora de probabilidades, com boa
sensibilidade.

129
Fig. 4: Aspectos histológicos da biópsia muscular. A: células inflamatórias ao nível do endomísio (setas) e variações do
tamanho das fibras musculares sem padrão específico, em doente com polimiosite; B: atrofia perifascicular (triângulos)
com aumento do tecido conjuntivo endomisial (asteriscos) e infiltrados inflamatórios (setas) em doentes com
dermatomiosite; C: fibras atróficas e hipertróficas (asterisco) com vacúolos marginados (setas), em doente com miosite
de corpos de inclusão. (In Malik A et al. Idiopathic Inflammatory Myopathies: Clinical Approach and Management. Front.
Neurol. 7:64)

A realização de biópsia cutânea também pode ser pertinente em doentes com


envolvimento predominantemente cutâneo, mas as suas alterações são semelhantes às
observadas no lúpus eritematoso sistémico. Deve-se também pesquisar a existência de
outra doença autoimune concomitante.

Deste modo, na avaliação inicial básica deve realizar-se estudo analítico com
hemograma, velocidade de sedimentação (VS) e proteína C reactiva (PCR), estudo da
função renal, estudo da função hepática, estudo básico do metabolismo fosfo-cálcico,
bem como avaliação do risco cardiovascular e serologias virais (VIH, VHB e VHC).

No caso das MII, os auto-anticorpos são detectados em cerca de 50-60% dos doentes
e os seus alvos são nucleares e citoplasmáticos, sendo que existem auto-anticorpos
específicos de miosites e auto-anticorpos associados a miosites. Estes últimos (anti-
SSA/Ro, anti-Ro52, anti-Ro60, anti-SSB/La, anti-PM-Scl 75, anti-PM-Scl 100, anti-Ku,
anti-U1RNP, anti-cN-1A) estão presentes em cerca de 20% dos doentes e, apesar de
poderem estar associados a outras doenças auto-imunes, representam um dado
importante. Podem também estar presentes em doentes com síndrome de sobreposição
de miosite e outra doença do tecido conjuntivo.

Relativamente aos auto-anticorpos específicos de miosites, o mais comum é o anti- Jo1,


que ocorre em 9-24% dos doentes, tratando-se de um auto-anticorpo anti- sintetase.
Actualmente já foram identificados mais 7 auto-anticorpos anti-sintetase, mas são
menos frequentes, afectando até 5% dos doentes cada um; estão associados a
fenótipos semelhantes (tabela 1). O auto-anticorpo anti-Mi2 está fortemente associado
a DM e a um bom prognóstico, apresentando habitualmente estes doentes uma resposta
célere à terapêutica biológica com Rituximab (RTX).

Os doentes com MII, como referido, têm um risco acrescido de neoplasia, não só a DM,
mas também a PM e a MNAI, pelo que se recomenda rastreio regular das neoplasias
mais frequentemente associadas. Sugere-se então a realização de Tomografia
Computorizada Toraco-Abdomino-Pélvica, estudos endoscópicos (endoscopia digestiva
alta e colonoscopia), mamografia e ecografia mamária em doentes do sexo feminino,
mielograma e biópsia óssea. Caso não se verifique resposta à terapêutica e persistam
dúvidas relativamente à existência de neoplasia, a realização de FDG-PET TC deve ser
ponderada. Os marcadores tumorais (PSA, CA- 125, CA 19.9, CEA e alfa-fetoproteína)
podem ser úteis em determinadas situações.

130
AUTO ANTICORPO FREQUÊNCIA ASSOCIAÇÃO CLÍNICA
Anticorpos anti sintetase
Todos 30-40%
Anti-Jo1 15-20%
Anti-PL12 <5%
Anti-PL7 <5%
Anti-EJ <5% SAS
Anti OJ <5%
Anti-KS <5%
Anti-Ha <1%
Anti-Zo <1%
Outros anticorpos específicos de miosites
Alterações cutâneas, boa resposta
Anti-Mi2 <10%
tratamento
Anti-SRP 5-10%
Miopatia necrotizante
Anti-HMGCR -
Anti-cN1A/anti-NT5C1A - Miosite Corpos Inclusão
Novos auto anticorpos específicos de miosites

Anti-p155 (anti-TIF1-gamma) 13-21% Neoplasia

Anti-CADM140 (anti-MDA5) 50-73% (Ásia) DIP

Anti-SAE <5% baixo risco DIP

Anti-p140 (anti-NXP2) <5% DIP e envolvimento cutâneo

Tabela 1: Auto-Anticorpos Específicos de Miosites. SAS: síndrome anti-sintetase, DIP: doença de interstício pulmonar.

Quando o diagnóstico de MII é confirmado, deve-se avaliar também o envolvimento


sistémico, através da realização de Tc de Tórax de Alta Resolução, Provas de Função
Respiratória e de DLCO, Ecocardiograma e Eletrocardiograma.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial inclui doenças inflamatórias sistémicas, distrofias musculares,


miopatias associadas a fármacos (estatinas, penicilamina, zidovudina) ou toxinas,
neuropatias ou doença do neurónio motor, miopatias metabólicas, mialgias, doenças
dermatológicas, miopatias endocrinológicas (também associadas ao hipotiroidismo),
miopatias infecciosas, miopatias mitocondriais, doenças neuromusculares (miastenia
gravis, distrofias musculares), outras miopatias e doenças imuno-mediadas.

131
Critérios de Classificação

Os critérios de classificação destinam-se à inclusão criteriosa de doentes em estudos e


projectos de investigação e não ao diagnóstico e/ou à monitorização terapêutica. Os
critérios EULAR/ACR foram apresentados em 2017, com boa sensibilidade e
especificidade (Tabela 2 e Figura 5).

CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO EULAR/ACR PARA MIOPATIAS INFLAMATÓRIAS


IDIOPÁTICAS NO ADULTO E NA CRIANÇA
PONTUAÇÃO
VARIÁVEL Com Biópsia Sem Biópsia
Muscular Muscular
Idade de Início
- ≥ 18 anos e < 40 anos 1,3 1,5
- ≥ 40 anos 2,1 2,2
Fraqueza Muscular
- simétrica, progressiva, envolve membros superiores proximais 0,7 0,7
- simétrica, progressiva, envolve membros inferiores proximais 0,8 0,5
- flexores do pescoço mais fracos que os extensores 1,9 1,6
- nos membros inferiores, músculos proximais mais fracos que os distais 0,9 1,2
Manifestações cutâneas
- eritema heliotropo 3,1 3,2
- pápulas de Gottron 2,1 2,7
- sinal de Gottron 3,3 3,7
Outras manifestações clínicas
- Disfagia ou dismotilidade esofágica 0,7 0,6
Avaliação Laboratorial
- Ac. Anti-Jo1 (anti-histidil-tRNA-sintetase) 3,9 3,8
-  CK ou LDH ou AST/GOT ou ALT/GPT 1,3 1,4
Biópsia Muscular com:
- infiltração endomísia de células mononucleares a rodearem, sem invadirem, miofibras 1,7
- infiltração perimísia e/ou perivascular de células mononucleares 1,2
- atrofia perifascicular 1,9
- vacúolos marginados 3,1

Tabela 1: Critérios de Classificaçao da EULAR/ACR para miopatias inflamatórias idiopáticas (MII) da criança e do adulto.
Critérios a adoptar quando não é encontrada outra causa para os sinais e sintomas apresentados. A probabilidade de
MII com biópsia muscular = 1/[1+exponencial (5,33 – pontuação)]; probabilidade ded MII sem biópsia muscular =
1/[1+exponencial (6,49 – pontuação)]. Calculadora online: www.imm.ki.se/biostatistics/calculators/imm. CK: creatinina
quinase, LDH: lactato desidrogenase; AST/GOT: aspartato aminotransferase; ALT/GPT: alanina aminotransferase.
(Adaptado de Lundberg IE, et al. Ann Rheum Dis 2017;0:1-10)

132
Figura 5: Classificação de sub-grupos de miosite inflamatória idiopática (MII). MS: membro superior, MI: membro inferior,
PM: polimiosite, MNIM: miopatia necrotizante imuno-mediada, MCI: miosite de corpos de inclusão, DMA: dermatomiosite
amiopática, DM: dermatomiosite, DMJ: dermatomiosite juvenil.

Avaliação da Actividade da Doença


Existem várias ferramentas de avaliação da actividade da doença e alguns autores
defendem a utilização simultânea de algumas delas, em vez de uma só modalidade, o
que permite uma avaliação mais global e fidedigna. As mais utilizadas são:

• Visual Analogue Scale do Doente e do Médico – avaliação global da actividade


global da doença
• Manual Muscle Testing (MMT) em que 8 ou 24 grupos musculares são
testados pelo médico
• Health Assessment Questionaire (HAQ)
• Avaliação laboratorial das enzimas musculares
• Myositis Disease Activity Assessment Tool (MDAAT), em que a actividade da
doença é avaliada a nível muscular e sistémico através da presença de 26
sintomas relacionados com a actividade da doença nas 4 semanas que
antecedem a observação.

Avaliação de Dano
Relativamente à avaliação do dano, existe o índice Myositis Damage Index permite
avaliar eventos que traduzem lesão de órgão em todos os sistemas. É necessário que
esses eventos se tenham iniciado após o diagnóstico e com a duração mínima de 6
meses. O índice não distingue entre dano causado pela actividade de doença ou pela
terapêutica realizada.

À semelhança da avaliação da actividade da doença, há duas escalas visuais análogas


para avaliação global do dano pelo próprio doente e pelo médico - Global Assessment
of Disease Damage.

133
Tratamento e Monitorização
Relativamente ao tratamento das miosites, existem poucos estudos controlados
randomizados das hipóteses terapêuticas disponíveis, baseando-se uma parte
significativa do tratamento em casos clínicos isolados.

Deste modo, a base do tratamento assenta na utilização de glucocorticóides e


imunossupressores tradicionais, como o Metotrexato (MTX), Azatioprina (AZA),
Micofenolato de Mofetil (MMF), Ciclofosfamida, Ciclosporina, Tacrolimus e
Imunoglobulina IV (IVIg). No entanto, nos últimos anos, o aparecimento de terapêutica
biológica para outras doenças autoimunes também se refletiu no tratamento das
miosites.

A terapêutica inicial consiste habitualmente em Prednisolona 0.5-1 mg/Kg/dia até um


máximo de 80 mg/dia, durante 4-6 semanas, quando se atinge um nível de CK <2x o
limite superior do normal. Em casos graves, com envolvimento respiratório, disfagia ou
diminuição grave da força muscular, podem ser utilizados pulsos de metilprednisolona
(500-1000 mg/dia durante 3 dias), seguidos do esquema supracitado. O desmame
deverá ser realizado de forma progressiva, habitualmente cerca de 20% a cada mês,
até uma dose-alvo 5 mg/dia. Aproximadamente 50% dos doentes não respondem
completamente aos glucocorticóides e nos casos em que não se verifica resposta,
dever-se-à pensar num outro diagnóstico como neoplasia ou miopatia dos
glucocorticóides.

A introdução de outros imunossupressores depende da resposta, actividade da doença


e capacidade de realizar desmame de glucocorticóide. Os imunossupressores de
primeira linha nas miosites são AZA (50 mg/dia, até 2,5 mg/Kg/dia) e MTX (7.5
mg/semana, titulado até 25 mg/semana). No caso do MTX, alguns estudos open label
ou retrospectivos demonstraram eficácia em doentes com DM e PM, embora deva ser
evitado em doentes com DIP. O nível de evidência relativamente à AZA é semelhante,
existindo um estudo que demonstrou que após 3 anos de terapêutica, os doentes
necessitavam de doses menores de glucocorticóides e tinham melhores resultados
funcionais.

Nos doentes refractários, é necessário excluir um diagnóstico alternativo, especialmente


se os auto-anticorpos forem negativos. Deve ser ponderada a repetição de biópsia
muscular, se necessário com RM muscular ou EMG prévio para escolha de local mais
apropriado, e/ou estudo de exclusão de neoplasia e distrofias musculares, atendendo
ao tempo de acção dos glucocorticóides - 4-6 semanas para normalização de enzimas
musculares e 3-4 meses para recuperação de força muscular.

Nestes casos, utiliza-se habitualmente MMF (500 mg 2x/dia que pode ser titulado até 2-
3 g/dia), um inibidor da proliferação das células B e T, que tem assumido um papel mais
preponderante nos últimos anos, especialmente nos doentes com envolvimento
pulmonar. Da mesma forma, os inibidores da calcineurina, tacrolimus e ciclosporina,
também parecem ter eficácia nos doentes com SAS.

A ciclofosfamida é habitualmente reservada a doentes com manifestações sistémicas


mais graves, nomeadamente DIP rapidamente progressiva.

134
Nos últimos anos têm surgido vários casos clínicos e um ensaio clínico relativamente ao
uso de RTX neste grupo de doentes refractários a outras terapêuticas. Salienta-se que
a sua utilização leva a uma diminuição das dosagens de glucocorticóides e que a
presença de auto-anticorpos anti-sintetase e anti-Mi2 são preditores de boa resposta à
terapêutica.

Nas exacerbações agudas, a abordagem terapêutica depende obviamente da


terapêutica que o doente já se encontra a realizar. Os doentes sob dosagens altas de
prednisolona deverão ser tratados com um agente imunossupressor convencional ou
como resistentes à terapêutica. Por outro lado, os doentes sob dosagens baixas de
glucocorticóide podem aumentar a dosagem diária até 20 mg/dia e adicionar/aumentar
a dosagem de imunossupressor já associado.

Os doentes com MCI apresentam respostas fracas à terapêutica imunossupressora.

Encontram-se a decorrer ensaios clínicos com fármacos biológicos nas MII,


nomeadamente anakinra, alemtuzumab, tocilizumab, belimumab e sifalimumab.

Para o tratamento do envolvimento cutâneo, deve ser encorajada a fotoprotecção. A


utilização de corticoesteróides e tacrolimus tópicos tem sido utilizada. A
hidroxicloroquina pode ser usada (200 mg duas vezes por dia) – com monitorização de
prolongamento do QT em ECG e maculopatia. O tratamento da calcinose tem-se
revelado ineficaz, embora o diltiazem possa revelar resposta parcial.

Para além da terapêutica médica dirigida, os doentes com MII necessitam de outras
terapêuticas de suporte, nomeadamente fisioterapia, exercício físico regular e
prevenção da osteoporose, para além das imunizações habituais que devem ser
realizadas o mais precocemente possível (ver Capítulo IV.2).

A monitorização da actividade da doença regular é essencial para o controlo da


actividade da doença, revisão de terapêutica, identificação atempada e tratamento de
recidivas. Esta monitorização baseia-se principalmente na avaliação clínica, nos
parâmetros de inflamação e nível de CK. Se persistirem dúvidas em relação à existência
de actividade de doença, a realização de RMN muscular e/ou biópsia pode ser
ponderada. Salienta-se que a diminuição da força muscular não traduz obrigatoriamente
actividade da doença, podendo dever-se a dano irreversível. Deve ainda haver uma
avaliação do desenvolvimento de toxicidade relacionada com a terapêutica
(nomeadamente com glucocorticóides) e de neoplasias.

Conclusão
As miopatias inflamatórias consistem num grupo heterogéneo, com diferentes
apresentações fenotípicas e mecanismos fisiopatológicos subjacentes. O
desenvolvimento de novos anticorpos e exames de imagem permitiu melhorar e acelerar
o diagnóstico. O diagnóstico diferencial deve ser rigoroso, assim como o despiste de
neoplasias subjacentes. O tratamento é ainda inespecífico, consistindo na utilização de
glucocorticóides e outros imunossupressores.

135
ASPECTOS PRÁTICOS
• Doentes com fadiga muscular proximal bilateral: pedir avaliação de CK e
aldolase.
• Se heliotropo, pápulas de Gottron ou eritema em xaile, pensar em
dermatomiosite.
• Excluir neoplasia e manter rastreios durante 5 anos.

TAKE HOME MESSAGES


• As miosites inflamatórias mais frequentes são a dermatomiosite, a polimiosite,
a miosite de corpos de inclusão e a miosite necrotizante auto-imune.
• O exame objectivo é fundamental para orientar o diagnóstico.
• O estudo laboratorial deve incluir CK, aldolase, AST/ALT, VS, LDH e
anticorpos específico das miosites inflamatórias.
• O tratamento assenta em corticoterapia e imunossupressão.
• As complicações extra-musculares apresentam resposta limitada à
terapêutica.
• Excluir neoplasia subjacente e manter rastreio durante 3-5 anos.

Bibliografia
• Aggarwal R et al. 2016 American College of Rheumatology/European League Agains Rheumatism
Criteria for Minimal, Moderate, and Major Clinical Response in Adult Dermatomyositis and
Polymyositis. Arthritis and Rheumatology 2017.
• Betteridge Z, McHugh N. Myositis-specific autoantibodies: an important tool to support diagnosis
of myositis. J Intern Med. 2016;280(1):8-23
• Bijlsma J et al. Eular Textbook on Rheumatic diseases. BMJ, 2009.
• Bohdan A, Peter JB. Polymyositis and dermatomyositis (first of two parts). N Engl J Med.
1975;292(7):344-347.
• Dalakas MC, Hohlfeld R. Polymyositis and dermatomyositis. Lancet. 2003;362(9388):971-982.
• Dalakas MC. Inflammatory Muscle Diseases. NEJM 2015; 372:1734-47.
• Gordon PA et al. Immunosuppressant and immunomodulatory treatment for dermatomyositis and
polymyositis. Cochrane Database Syst Rev. 2012(8):CD003643Lundberg IE, Miller FW, Tjärnlund
A, Bottai M. Diagnosis and classification of idiopathic inflammatory myopathies. J Intern Med.
2016;280(1):39-51.
• Lundberg IE, et al. 2017 European League Against Rheumatism/American College of
Rheumatology classification for adult and juvenile idiopathic inflammatory myopathies and their
major subgroups. Ann Rheum Dis 2017; 0:1-10.
• Malik A et al. Idiopathic Inflammatory Myopathies: Clinical Approach and Management. Front.
Neurol. 2016; 7:64
• Oddis CV. Update on the pharmacological treatment of adult myositis. J Intern Med. 2016
• Thompson C et al. The pathogenesis of dermatomyositis. Br J Dermato

136
8. VASCULITES

Definição
O termo vasculite define a inflamação das paredes dos vasos, que leva ao compromisso
da sua integridade, com consequente isquémia tecidular e necrose a jusante. Os vasos
atingidos variam de acordo com o tipo (artérias ou veias), tamanho (grandes, médios ou
pequenos vasos) ou localização, originando manifestações clínicas diferentes – a
distribuição de órgãos afectados pode mesmo sugerir um tipo particular de vasculite
(Fig.1). São definidos como grandes vasos a aorta e os seus ramos principais; médios
vasos são as principais artérias e veias dos órgãos e respectivos ramos principais;
pequenos vasos são artérias, arteríolas, capilares, vénulas e veias intra-
parenquimatosas.

Classificação
A International Chapel Hill Consensus Conference realizada inicialmente em 1994, com
revisão em 2012, elaborou um sistema de nomenclatura para este grupo de doenças,
tendo a primeira categorização deste grupo de doenças sido realizada de acordo com o
tipo de vasos predominantemente atingido.

Figura 1: Distribuição de envolvimento de vasos por vasculites de pequenos, médios e grandes vasos. (From Jeannette
JC et al, 2012 Revised International Chapel Hill Consensus Conference Nomenclature of Vasculitides, ARTHRITIS &
RHEUMATISM 2013;65 (1): 1–11)

137
DENOMINAÇÃO DE VASCULITES DE ACORDO COM O CONSENSO DE CHAPEL HILL
VASCULITE DE GRANDES VASOS
Arterite de Takayasu
Arterite de Células Gigantes

VASCULITE DE MÉDIOS VASOS


Poliarterite Nodosa
Doença de Kawasaki

VASCULITE DE PEQUENOS VASOS


Vasculite associada a ANCA

Poliangeíte Microscópica
Granulomatose com Poliangeíte (Wegener)
Granulomatose eosinofílica com Poliangeíte (Churg-Strauss)
Vasculite de Pequenos Vasos mediada por complexos imunes
Doença anti-membrana basal glomerular
Vasculite Crioglobulinémica
Vasculite IgA (Henoch-Schönlein)
Vasculite urticariforme hipocomplementémica (Vasculite anti-C1q)

VASCULITE DE VASOS VARIÁVEIS


Doença de Behçet
Síndrome de Cogan

VASCULITE DE ÓRGÃO ÚNICO


Angeíte cutânea leucocitoclástica
Arterite cutânea
Vasculite Primária do Sistema Nervoso Central
Aortite isolada

VASCULITE ASSOCIADA A DOENÇA SISTÉMICA


Lúpus Eritematoso Sistémico
Artrite Reumatóide
Sarcoidose

VASCULITE ASSOCIADA A ETIOLOGIA PROVÁVEL


Vasculite crioglobulinémica associada a Hepatite C
Vasculite associada a Hepatite B
Aortite associada a Sífilis
Vasculite de complexos imunes/Vasculite ANCA associada a fármacos
Vasculite associada a neoplasias
Tabela 1: Classificação das Vasculites de acordo com o consenso de Chapell Hill de 2012.

Como se pode ver pela tabela acima representada, as manifestações clínicas das
vasculites são variadas, habitualmente com atingimento sistémico, afectando vários
órgãos e apresentando sintomas constitucionais. Assim, perante um doente sem
diagnóstico estabelecido, com evidência de uma doença inflamatória e sistémica, a
hipótese de vasculite deve ser equacionada.

138
Vasculite de Grandes Vasos
A Arterite de Takayasu e a Arterite de Células Gigantes (ACG) atingem
predominantemente grandes vasos, embora também possa haver envolvimento de
médios vasos (por exemplo, atingimento da artéria oftálmica na arterite de células
gigantes). Afectam sobretudo mulheres, sendo que a Arterite de Takayasu ocorre
sobretudo antes dos 40 anos e a ACG em indivíduos mais idosos.

Vasculite de Médios Vasos


A Poliarterite Nodosa é uma arterite necrotizante de médias ou pequenas artérias, não
associada à presença de ANCA. Está descrita uma forte associação com infecção
crónica pelo vírus da Hepatite B.

A Doença de Kawasaki é uma arterite de médias e pequenas artérias. As artérias


coronárias estão frequentemente envolvidas, bem como a aorta e outras grandes
artérias. Ocorre geralmente em crianças e é mais prevalente na Ásia.

Vasculite de Pequenos Vasos


As vasculites de pequenos vasos podem afectar artérias, arteríolas, capilares e vénulas
intra-parenquimatosas. Apesar da designação, as artérias e veias de médio calibre
podem também ser afectadas.

VASCULITES ASSOCIADA A ANCA – vasculites necrotizantes com pouco ou nenhum


depósito imune (pauci-imune), afectam sobretudo pequenos vasos, associadas à
presença de anticorpos anti-mieloperoxidase - MPO-ANCA (pANCA- padrão de
imunofluorescência perinuclear) - ou anti-proteinase 3 - PR3-ANCA (cANCA- padrão de
imunofluorescênica citoplasmático

• Poliangeíte Microscópica: vasculite necrotizante que se manifesta primariamente


como glomerulonefrite necrotizante e/ou capilarite pulmonar (pulmão-rim); o
anticorpo ANCA-MPO está presente em 70% dos doentes.
• Granulomatose com Poliangeíte (Wegener): inflamação granulomatosa
necrotizante, geralmente envolvendo o tracto respiratório superior e inferior,
podendo ainda ocorrer glomerulonefrite necrotizante e vasculite ocular; o
anticorpo c-ANCA está presentes em >80% dos doentes.
• Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte (Churg-Strauss): inflamação
granulomatosa necrotizante rica em eosinófilos, envolvendo o tracto respiratório,
estando associada a asma e eosinofilia; o tracto respiratório superior é
frequentemente afectado, traduzindo-se por polipose nasal. Pode haver
glomerulonefrite, sobretudo se houver positividade para p-ANCA (~25%).

VASCULITE DE COMPLEXOS IMUNES: vasculite com depósitos de imunoglobulinas e/ou


complemento nas paredes dos vasos. A glomerulonefrite é frequente nestas situações:

139
• Doença anti-membrana glomerular basal (Síndrome de Goodpasture): vasculite
afectando capilares glomerulares, capilares pulmonares ou ambos, com
deposição de autoanticorpos anti-membrana basal. O envolvimento pulmonar
provoca hemorragia alveolar e o envolvimento renal causa glomerulonefrite.
• Vasculite crioglobulinémica: vasculite com depósitos imunes de crioglobulinas
afectando pequenos vasos; a pele, os glomérulos e os nervos periféricos
também são geralmente afectados.
• Vasculite IgA (Henoch-Schönlein): Vasculite com depósitos imunes IgA
afectando pequenos vasos; envolve geralmente a pele, o tracto gastrointestinal
(qualquer segmento pode ser afectado, mas o intestino delgado é mais
frequente), provocando também artrite. Pode ocorrer glomerulonefrite
histologicamente indistinguível de nefropatia por IgA, mas com curso clínico
diferente.
• Vasculite urticariforme hipocomplementémica (Vasculite anti-C1q) é uma
vasculite acompanhada por urticária e hipocomplementémia, afectando
pequenos vasos e associada a anticorpos anti-C1q. Manifestações comuns são
glomerulonefrite, artrite, DPOC e patologia ocular.

Vasculite de vaso variável


Nestas situações não há tipo ou tamanho de vasos especificamente atingido:

• Doença de Behçet: afecta artérias ou veias de diferentes calibres; é


caracterizada por úlceras orais e/ou genitais recorrentes, lesões inflamatórias
cutâneas, oculares, articulares, gastrointestinais e/ou do sistema nervoso
central.
• Síndrome de Cogan: caracteriza-se por lesões inflamatórias oculares (incluindo
queratite intersticial, uveíte, episclerite) e doença do ouvido interno, incluindo
surdez neurossensorial e disfunção vestibular. Manifestações vasculíticas
podem incluir arterite, aortite, aneurismas da aorta e valvulite aórtica e mitral.

Vasculite de órgão único


Vasculite de artérias ou veias de qualquer calibre num único órgão, sem
características sugestivas de vasculite sistémica.

Vasculite associada a doença sistémica


Vasculite causada ou associada a doença sistémica.

Vasculite associada a etiologia provável


Neoplasias hematológicas ou de órgão sólido bem como doenças linfoproliferativas de
células B e síndrome mielodisplásica podem estar associadas a vasculite. Determinadas
situações infecciosas, como a sífilis, a hepatite C ou a tuberculose, estão também
associadas a quadros de vasculite específicos.

140
Manifestações Clínicas
O diagnóstico de vasculite é um desafio, dada a heterogeneidade de apresentações, em
termos de gravidade e distribuição de órgãos. A suspeita de vasculite num doente com
doença inflamatória é fundamental para um diagnóstico rápido e agilização da
terapêutica.

Uma grande parte dos doentes começa por manifestar sintomas constitucionais, como
febre, perda ponderal, poliartralgias, cefaleia e astenia. As manifestações específicas
de órgão podem orientar para um diagnóstico específico:

- Ouvido e nasofaringe: Rinite, polipos nasais, sinusite e surdez de condução são


características de Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte (Churg-Strauss);
inflamação nasal com necrose e colapso do septo nasal (perfuração, nariz em sela)
pode ocorrer na Granulomatose com Poliangeíte (Wegener) – Figura 2.

Figura 2: Granulomatose de Wegener. A: Nariz em sela (BDJ Team 3, Article number: 16100 (2016)); B: Perfuração do
septo nasal (Cortesia Bechara Y Ghorayeb, MD).

- Tracto Respiratório Inferior: as manifestações clínicas incluem tosse, geralmente


não produtiva, sibilos, dispneia de esforço e hemoptises. O desenvolvimento de asma
tardia é uma característica da Poliarterite Nodosa e da Granulomatose Eosinofílica com
Poliangeíte (Churg-Strauss). Pneumonia recorrente ou “resistente a antibióticos” pode
ser diagnosticada em doente com sintomas flutuantes e infiltrados pulmonares
atribuíveis a Vasculite ANCA ou Poliarterite Nodosa. A combinação de hemoptises,
dispneia e descida de hemoglobina aumenta a suspeita de hemorragia alveolar.

- Pele: Úlceras genitais geralmente indicam Doença de Behçet enquanto que


envolvimento testicular é indicativo de Poliarterite Nodosa. Eritema purpúrico e indolor
sugere vasculite predominantemente de pequenos vasos, mas não diferencia a
etiologia. A poliarterite nodosa está associada a nódulos cutâneos ou úlceras – Figura
3.

141
Figura 3: A1 e A2: Lesões cutâneas de Poliarterite nodosa, com eritema nodoso associado (Sharma Y et al. Cutaneous
polyarteritis nodosa: a case report with a brief review of literature. Medical Journal of Dr DY Patil University, 2013: 6(4):
475-477); B: Úlcera do pé em doente com Poliarterite Nodosa (International Journal of Dermatology 48(9):1023- 5
· October 2009); C: Rash purpúrico (A Case of Cutaneous Vasculitis with Underlying Hepatitis C and Cryoglobulinaemia.
The Ulster Medical Journal, 77(1), 51–53.)

- Olho: o envolvimento da órbita nas vasculites é frequente na vasculite ANCA com


episclerite ou esclerite - “olho vermelho” doloroso que pode levar a destruição da
esclerótica e perfuração. Olho vermelho ou rosa indolor pode ser visto na Poliangeíte
Microscópica. Neurite óptica vasculítica, é rara na Vasculite ANCA, mas mais frequente
na Granulomatose com Poliangeíte (Wegener); pode causar cegueira súbita. Na
Granulomatose com Poliangeíte a obstrução do ducto naso-lacrimal por envolvimento
nasal causa lacrimejo constante, epífora e predispõe a infecções recorrentes; a
formação de granuloma retro-orbitário pode levar a dor e proptose.

Figura 4: Episclerite (in www. ophthalmologytraining.com); B: Queratite ulcerativa periférica (The Lancet 2004 364, 2125-
2133); C: Esclerite em doente com Granulomatose com Poliangeíte (From Everett Allen, MD; reproduced with permission
from Usatine RP, Smith MA, Mayeaux EJ Jr, Chumley H, Tysinger J. The Color Atlas of Family Medicine. McGraw-Hill,
2009.)

- Rim: o envolvimento renal pode ser assintomático até à ocorrência de insuficiência


renal rapidamente progressiva. O diagnóstico precoce depende de manifestações extra-
renais e detecção de hematúria e proteinúria. A glomerulonefrite rapidamente
progressiva é frequentemente causada por Vasculite-ANCA. Quando há proteinúria
significativa, a histologia revela geralmente vasculite de complexos imunes, como
Vasculite IgA ou Crioglobulinémia ou a formação de crescentes nas Vasculites-ANCA.
O envolvimento do rim na Poliarterite Nodosa é frequentemente assintomático e é
detectado como enfartes renais por estenose das artérias renais ou aneurismas em
angiografia.

142
- Tracto Gastrointestinal: a vasculite pode manifestar-se como hemorragia, dor
abdominal e abdómen agudo. A Vasculite IgA geralmente envolve o intestino delgado e
pode causar pancreatite.

- Sistema Nervoso Central: pode apresentar-se como mononeurite multiplex e ocorre


em 20% dos doentes com Vasculite ANCA e é mais comum na Granulomatose
Eosinofílica com Poliangeíte, Crioglobulinémia e Poliarterite Nodosa

- Coração: o enfarte valvular, particularmente da válvula aórtica, é visto na


Granulomatose com Poliangeíte (Wegener) e em 50% dos casos de Granulomatose
Eosinofílica com Poliangeíte (Churg-Strauss) ocorre infiltração eosinofílica do miocárdio
e cardiomiopatia. A arterite de Takayasu pode causar dilatação do arco aórtico e
regurgitação aórtica. A arterite coronária é uma característica da Doença de Kawasaki.

Diagnóstico e Conclusão
A biópsia do (s) órgão(s) afectado(s) é fundamental para o diagnóstico da maior parte
das vasculites e para a exclusão de doenças que as possam mimetizar.

Do ponto de vista laboratorial, os anticorpos anti-MPO-ANCA (pANCA) predominam na


Poliangeíte Microscópica; os anticorpos anti-PR3-ANCA (cANCA) predominam na
Granulomatose com Poliangeíte (Wegener). Os valores de ANCA são influenciados pelo
tratamento (podem negativar), embora estes anticorpos não sejam 100% específicos
para vasculite - podem estar presentes noutras patologias como Lúpus Eritematoso
Sistémico, Artrite Reumatóide, VIH, Tuberculose, Doença Inflamatória Intestinal,
Colangite Esclerosante Primária, reacções a fármacos (cocaína e propiltiouracilo),
endocardite ou choque séptico.

Os exames de imagem como angiografia ou TC podem também contribuir para


estabelecer o diagnóstico.

Atendendo a que há múltiplas doenças que podem manifestar-se com quadros clínicos
semelhantes aos das vasculites – sépsis, doença ateroembólica, doença vascular
ateromatosa, síndroma do anticorpo anti-fosfolipídico, mieloma múltiplo, endocardite,
síndromas paraneoplásicas, síndromas auto-inflamatórias, reacções de
hipersensibilidade, uso de cocaína ou anfetaminas -, é importante um diagnóstico
diferencial exaustivo para excluir eventuais patologias subjacentes, primárias ou
secundárias na etiologia da vasculite.

ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA: as manifestações de uma vasculite são múltiplas. No
entanto, pensar em vasculite se púrpura e/ou neuropatia periférica de novo,
alterações da função renal e nodularidade pulmonar sem cavitação em doente jovem
não fumador.

143
TAKE HOME MESSAGES
As vasculites são doenças provocadas pela inflamação da parede dos vasos.
Podem ser primárias ou secundárias e classificam-se conforme o tipo de vaso
predominantemente envolvido – pequenos, médios ou grandes vasos.
As causas mais frequentes de vasculites secundárias são neoplasias, infecções
ou fármacos.

Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-
1924-3
• Jeannette JC et al, 2012 Revised International Chapel Hill Consensus Conference
Nomenclature of Vasculitides, ARTHRITIS & RHEUMATISM 2013;65 (1): 1–11
• A Case of Cutaneous Vasculitis with Underlying Hepatitis C and
Cryoglobulinaemia. The Ulster Medical Journal, 77(1), 51–53.
• Sharma Y et al. Cutaneous polyarteritis nodosa: a case report with a brief review of
literature. Medical Journal of Dr DY Patil University, 2013: 6(4): 475-47

144
8.1 VASCULITES ANCA E POLIARTERITE NODOSA

Introdução
As vasculites são um grupo heterogéneo de doenças caracterizadas por inflamação da
parede dos vasos. A histologia pode ainda mostrar necrose da camada média e
inflamação da camada adventícia e íntima e, nalgumas vasculites, granulomas peri-
vasculares.

A classificação pode basear-se em factores como o calibre do vaso ou o processo


fisiopatológico subjacente, mas, na prática é utilizada a nomenclatura aprovada no
Consenso de Chapel Hill, com última revisão em 2012. Nesta classificação, as vasculites
são organizadas segundo o calibre do vaso, incluindo também algumas situações de
etiologia específica. Neste capítulo serão abordadas as vasculites de médio vaso.

A Poliarterite Nodosa (PAN), a Granulomatose com Poliangeíte (GPA), a


Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte (EGPA) e a Poliangeíte Microscópica
(MPA) são classicamente associadas a necrose fibrinóide da parede arterial na
histologia sendo, por isso, frequentemente chamadas de vasculites sistémicas
necrotizantes. Além disso, a GPA, a MPA e a EGPA foram categorizadas como
Vasculites ANCA, uma vez que os anticorpos anti-citoplasma do neutrófilo (ANCA) são
encontrados em muitos destes doentes.

Etiologia e Fisiopatogénese
O grupo de vasculites ANCA é caracterizado pela presença de auto-anticorpos contra
antigénios citoplasmáticos dos neutrófilos. As especificidades mais comuns
reconhecidas por estes anticorpos correspondem maioritariamente às proteínas de
neutrófilos, proteinase 3 (PR3, dá origem aos anticorpos c-ANCA) e mieloperoxidase
(MPO, dá origem aos anticorpos p-ANCA). A indução e persistência de resposta auto-
-imune pelos ANCA envolve múltiplos mecanismos, que incluem estímulos ambientais
(por exemplo, sílica, fármacos e microorganismos), desregulação da expressão
genética, mimetismo de auto-antigénios e regulação aberrante de células T.

145
Figura 1: Factores etiológicos e patogénicos na Vasculite ANCA (AAV) – factores contribuintes para a etiologia (em azul)
e para patogénese (a vermelho). From Chen,M and Kallenberg, CGM. ANCA-associated vasculitides – advances in
pathogenesis and treatment, Nat Rev Rheumatol.2010; 6: 653-664.

GRANULOMATOSE COM POLIANGEÍTE (Granulomatose de Wegener)


A Granulomatose com Poliangeíte (GPA), anteriormente denominada Granulomatose
de Wegener, é caracterizada por lesões inflamatórias granulomatosas necrotizantes do
tracto respiratório superior e/ou inferior, frequentemente associadas a glomerulonefrite
pauci-imune que, nalguns casos, pode progredir rapidamente, resultando em perda de
função renal.

Epidemiologia
A incidência da GPA varia entre 2 a 12/1.000.000 e a prevalência de 24 a 157/1.000.000
habitantes. A distribuição geográfica não é uniforme, sendo mais frequente nos países
do norte da Europa.

Manifestações Clínicas
As lesões granulomatosas do ouvido e tracto respiratório superior são as manifestações
mais frequentes, evidenciadas em mais de 75% dos doentes à data do diagnóstico; pode
tratar-se de rinite, sinusite, otite média crónica, nariz em sela e/ou perfuração do septo
nasal ou do palato mole – Figura 2. Outras manifestações mais raras, embora
sugestivas, incluem gengivite moriforme e úlceras linguais.

146
Figura 2: Manifestações Clínicas da Granulomatose com Poliangeíte. A – Nariz em Sela (American College of
Rheumatology, 2009); B e C – Gengivite Moriforme (A - EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015.
ISBN: 978-0-7279-1924-3; B – From http://www.dermis.net/dermisroot/en/25336/image.htm consultado em 21/5/2017).

O envolvimento pulmonar está presente em cerca de dois terços dos doentes, com
nódulos parenquimatosos bilaterais, cavitados em metade dos vasos e/ou hemorragia
alveloar em 10-20% dos doentes – Figura 3.

Figura 3: Envolvimento Pulmonar da Granulomatose com Poliangeíte. A e B: Tc Tórax de alta resolução, plano axial e
coronal - as imagens revelam lesões nodulares cavitadas (setas). (Machiori E, et al. Reversed Halo Sign – High
Resolution CT Scan Findings in 79 Patients. CHEST, 2012; 141 (5): 1260-1266). C: Radiograma Torácico com lesão
cavitada à esquerda. (Flossman O and Jayne D. Maintaining remission in a patient with vasculitis. Nature Clinical Practice
Rheumatology (2008) 4, 499-504). D: Tc Tórax em plano axial, com opacidades nodulares, multifocais, de pequenas
dimensões, com relação às artérias pulmonares. (From Travis WD, Colby TV, Koss MN, et al, eds. Non- Neoplastic
Disorders of the Lower Respiratory Tract. In: King DW, ed. Atlas of Nontumor Pathology. Washington, DC: American
Registry of Pathology and Armed Forces Institute of Pathology; 2002, Figure 4-3.). E: Radiograma torácico com lesões
cavitadas de diferente calibre e espessura de parede, bilaterais (From https://radiologykey.com/pulmonary- hemorrhage-
and-vasculitis/ consultado a 21/5/2017). F: Tc Tórax, plano axial, com lesões cavitadas parenquimatosas nos lobos
superiores, bilateralmente (From Kalra S et al. Wegener’s granulomatosis with subdural hematoma as the initial
manifestation. Int J crit Illn Sci 2013; 3: 88-90.)

A glomerulonefrite rapidamente progressiva, também chamada de glomerulonefrite


crescêntica necrotizante ou glomerulonefrite pauci-imune, é a terceira manifestação
mais frequente da GPA.

O envolvimento do sistema nervoso periférico ocorre num terço dos doentes, sendo as
principais manifestações a mononeurite multiplex (79% does doentes com neuropatia

147
periférica) e polineuropatia sensitivo-motora. O envolvimento do sistema nervoso central
(SNC) é menos comum e pode ser observado em 6-13% dos doentes, geralmente numa
fase mais tardia da doença. A apresentação inicial com paquimeningite é uma das
manifestações do SNC e é sugestiva, embora não específica, de GPA.

O envolvimento cardíaco é reportado na GPA em 6-25% dos doentes, sendo a


mortalidade associada entre 15 a 45%. Apresenta-se como pericardite, miocardite,
aortite, embora também estejam descritos casos de alterações da condução, enfarte
agudo do miocárdio e endocardite não infecciosa. A mais frequente é a pericardite, em
cerca de 50% dos doentes com envolvimento cardíaco, sendo normalmente
assintomática.

As lesões cutâneas ocorrem em 10 a 50% dos doentes, sendo a púrpura palpável nos
membros inferiores a manifestação mais frequente. Pápulas necróticas nas superfícies
extensoras dos membros, nódulos ou ulceração extensa e dolorosa são formas de
apresentação mais raras, mas muito sugestivas da doença – Figura 4.

Figura 4: A: Lesões necróticas e purpúricas em doente com Granulomatose com Poliangeíte (EULAR Textbook on
Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3); B: Ulceração gangrenada piogénica do pavilhão
auricular em doente com Granulomatose com Poliangeíte (Comfere N et al. Cutaneous Manifestations of Wegener’s
granulomatosis: a clinicopathologic study of 17 patients and correlation to antineutrophil cytoplasmic antibody status. J
Cutan Pathol 2007: 34: 739-747.), C: Ulceração em nódulo eritematoso, com pus. (Nasir N et al. Cutaneous Ulcers as
Initial Presentation of Localized Granulomatosis with Polyangiitis: a Case Report and Review of the Literature. Case
Reports in Rheumatology, 2015 (2015))

Os sintomas constitucionais incluem febre, hipersudorese nocturna, cansaço, anorexia,


perda ponderal. Pode ocorrer envolvimento ocular, sendo a manifestação mais
frequente da GPA a episclerite. O aumento do risco de trombose venosa surge descrito
em estudos recentes, sobretudo se associado a fases activas da doença.

Embora não constitua uma classificação da doença, a GPA pode apresentar-se de


acordo com dois fenótipos – formas sistémicas / generalizadas / graves e formas
limitadas / localizadas. A GPA sistémica é representada por envolvimento renal,
hemorragia alveolar, envolvimento de um ou mais órgãos vitais ou manifestações menos
graves, mas com sintomas sistémicos gerais significativos, tal como febre e/ou perda
ponderal. A GPA limitada corresponde a doença cujas manifestações permanecem
limitadas, sobretudo no tracto respiratório superior ou, mais raramente, na pele. Estas
formas parecem também diferir histologicamente, com a GPA sistémica a estar
associada mais frequentemente a lesões vasculíticas e a GPA localizada a
características mais granulomatosas, possivelmente devido ao papel central dos
linfócitos T Th2 na forma sistémica e dos linfócitos T Th1 na forma localizada. Para

148
além disso, enquanto 90% dos doentes com a forma sistémica têm c-ANCA, com um
padrão de imunofluorescência citoplasmático difuso, e especificidade anti-PR3, apenas
50 a 80% dos doentes com a forma localizada são ANCA positivos. Estas formas
limitadas/localizadas representam menos de um terço dos casos de GPA e ocorrem
sobretudo em mulheres e com idade mais jovem que na GPA sistémica. No entanto, a
maior parte destes doentes com GPA localizada vai evoluir para a forma sistémica ao
longo do tempo.

Diagnóstico
A combinação de características clínicas sugestivas nalguns doentes, associada à
detecção de c-ANCA (anti-PR3) pode ser suficiente para o diagnóstico. No entanto, a
confirmação histológica está recomendada para um diagnóstico definitivo.

Do ponto de vista analítico, pode haver disfunção renal e alterações do sedimento


urinário, nos doentes com atingimento nefrológico. O factor reumatóide pode estar
positivo em título baixo em até 2/3 dos doentes. Dado o foro inflamatório da doença, é
comum a anemia normocítica normocrómica, associada a leucocitose com neutrofilia e
a elevação dos marcadores inflamatórios, como proteína C reactiva e velocidade de
sedimentação. O c-ANCA está normalmente positivo, embora também possa ser
detectado p-ANCA.

O radiograma e a tomografia computorizada (Tc) de tórax permitem visualizar nódulos


ou massas pulmonares. Os nódulos são tipicamente bilaterais, difusos e cavitados em
50% dos casos. Podem surgir estenoses ao nível dos brônquios, traqueia ou laringe,
que podem ou não estar associados a pneumonia obstrutiva. A broncofibroscopia e os
testes de função respiratória complementam a avaliação pulmonar.

A biópsia nasal e/ou dos seios nasais é de fácil procedimento, embora em apenas 20%
e 50% dos casos, respectivamente, os resultados contribuam para o diagnóstico. A
biópsia cutânea geralmente revela vasculite leucocitoclástica de pequenos vasos, o que
traduz um achado inespecífico. Os nódulos cutâneos são raros na GPA, mas podem
coincidir com vasculite necrotizante ou granulomatosa de arteríolas médias ou, mais
frequentemente, granulomas extra-vasculares.

A broncofibroscopia com lavado bronco-alveolar pode confirmar hemorragia alveolar


quando presente, mas, mais importante, excluir e/ou diagnosticar infecção associada. A
biópsia brônquica pode revelar inflamação granulomatosa em até 25% dos casos, mas
raramente apresenta vasculite. A biópsia cirúrgica de nódulos pulmonares contribui mais
frequentemente para o diagnóstico, revelando vasculite necrotizante em até 60% dos
casos, por vezes em associação com granuloma vascular ou extra- vascular.

A biópsia neuro-muscular, especialmente do nervo peroneal, tem uma sensibilidade


diagnóstica de 60% em doentes com envolvimento claro do sistema nervoso periférico,
mas pode levar a alteração sensitiva do local da biópsia.

Os critérios de classificação do American College of Rheumatology para a


Granulomatose com Polangeíte são úteis para distinguir esta doença de outras formas
de vasculite sistémica. Estes critérios têm, no entanto, limitações uma vez que podem

149
não distinguir a Granulomatose com Poliangeíte da Poliangeíte Microscópica e das
doenças que mimetizam a vasculite.

CRITÉRIOS ACR PARA O DIAGNÓSTICO DA GRANULOMATOSE COM POLIANGEÍTE


1. Inflamação Nasal ou Oral Úlceras orais dolorosas ou indolores ou
rinorreia purulenta ou hemorrágica
2. Radiografia de Tórax alterada
Nódulos pulmonares, infiltrados
pulmonares fixos ou cavitações

3. Sedimento urinário alterado Hematúria microscópica com ou sem


cilindros eritrocitários
4. Inflamação Granulomatosa Biópsia de artéria ou área perivascular
que mostra inflamação granulomatosa
Tabela 1: Critérios de Diagnóstico do American College of Rheumatology para a Granulomatose com Poliangeíte. A
presença de dois ou mais destes quartro critérios tem uma sensibilidade de 88% e uma especificidade de 92%.

POLIANGEÍTE MICROSCÓPICA
A Poliangeíte Microscópica (MPA) pertence ao grupo de vasculites de pequenos vasos
e vasculites ANCA.

Epidemiologia
A MPA, como as outras vasculites, é uma doença rara. Inicialmente pensava-se que
MPA e a Poliarterite Nodosa eram formas diferentes da mesma doença, pelo que os
dados epidemiológicos são escassos. A incidência anual é estimada em 3- 24/1.000.000
e a prevalência de 25-94/1.000.000 habitantes. A MPA tem sido detectada por todo o
mundo e pode afectar todos os grupos raciais, com uma maior predominância nos
caucasianos. Os doentes do sexo masculino são mais afectados, mas a diferença entre
os sexos é ligeira (ratio Masculino:Feminino de 1,8:1,1). A idade média ao diagnóstico
é de 50 anos.

Manifestações Clínicas
O diagnóstico de MPA é precedido, na maior parte dos casos, por sintomas gerais como
mialgias, artralgias e/ou, mais raramente, artrite. Pode ocorrer um curso indolente da
doença, de meses ou até anos, antes do diagnóstico, com sintomas gerais leves ou até
mesmo hemóptises episódicas.

O envolvimento renal é frequente, sendo a glomerulonefrite rapidamente progressiva a


principal característica da MPA. A apresentação inicial é frequentemente silenciosa, mas
a detecção de hematúria microscópica com ou sem proteinúria precede a deterioração
da função renal.

O envolvimento pulmonar pode manifestar-se por hemorragia pulmonar ou por uma


síndrome pulmão-rim. As hemoptises ou expectoração hemoptóica podem preceder a
hemorragia pulmonar grave, caracterizada por dispneia e anemia, que pode progredir
para lesão alveolar difusa e ARDS6, devido a capilarite pulmonar. Nalgumas amostras
6
Abreviatura de acute respiratory distress syndrome.

150
de biópsia brônquica pode ser ainda detectada arterite brônquica. A fibrose intersticial
pulmonar pode também ser uma complicação da MPA.

As manifestações cutâneas são encontradas em cerca de metade dos doentes com


MPA. As mais frequentes são lesões purpúricas maculopapulares dos membros
inferiores – Figura 5. Podem também surgir vesículas, necrose, ulcerações, nódulos,
hemorragia subungueal, livedo reticularis, eritema palmar e/ou dos dedos, edema facial
ou úlceras orais. Histologicamente, pode ser encontrada vasculite leucocitoclástica dos
pequenos vasos.

Figura 5: Envolvimento cutâneo na Poliangeíte Microscópica. A: Púrpura palpável, com evolução para flictenas e úlceras
em doente com Poliangeíte Microscópica (Endo Y et al. Myeloperoxidase-antineutrophil cytoplasmic antibody- negative
microscopic polyangiitis with pulmonary haemorrhage and IgA nephropathy. Case Rep Dermatol 2011; 3 (1) 22-27.) B:
Angeíte leucocitoclástica na Poliangeíte Microscópica (Farid-Moyaer M et al.
http://emedicine.medscape.com/article/334024-clinical#b4 consultado a 21/5/2017); C: Lesões ulceradas nos membros
inferiores em doente com Poliangeíte Microscópica (Dean SM et al. Color Atlas and Synopsis of Vascular Diseases ,
McGraw Hill Education).

O envolvimento do Sistema Nervoso Central ocorre em 10% dos casos, sendo as


convulsões a manifestação predominante. O Sistema Nervoso Periférico é também
afectado, sendo a mononeurite multiplex a manifestação mais frequente, seguida da
polineuropatia simétrica. A vasculite necrotizante pode ser vista em 80% das biópsias
de nervo.

As manifestações gastrointestinais podem ocorrer em um a dois terços dos doentes,


apresentando-se sobretudo como dor abdominal, embora também possa ocorrer
hemorragia ou isquémia intestinal, ulceração e perfuração.

As manifestações cardíacas são raras, tendo sido descritos casos de insuficiência


cardíaca e/ou pericardite.

O envolvimento ocular é igualmente raro, mas estão descritos casos de inflamação


palpebral, exsudados algodonosos na retina, vasculite retiniana e/ou coroidite.

Diagnóstico
Os doentes com MPA apresentam alterações analíticas que traduzem a natureza
inflamatória sistémica da doença, como aumento da velocidade de sedimentação e da
proteína C reactiva, trombocitose e leucocitose, anemia normocítica e normocrómica e
elevação de albumina sérica. A hematúria microscópica está presente em quase todos

151
os casos e pode ser encontrada proteinúria em mais de 90% dos doentes com
envolvimento renal.

Os anticorpos ANCA são encontrados em mais de dois terços dos doentes com MPA. A
maior parte dos anticorpos ANCA detectados na MPA são p-ANCA (anti-MPO), embora
também possam ser encontrados c-ANCA (anti-PR3). A especificidade de ANCA anti-
MPO para MPA não é tão elevada como a especificidade de anti-PR3 na GPA dado que
o anticorpo anti-MPO também pode ser encontrado na Granulomatose eosinofílica com
Poliangeíte, em cerca de 5% de doentes com GPA e noutras doenças inflamatórias.

A biópsia renal em doentes com atingimento renal é caracterizada pela presença de


trombose focal segmentar e glomerulonefrite necrotizante. Os crescentes extra-
capilares estão presentes em quase todas as biópsias renais e muitas vezes envolvem
mais de 60% dos glomérulos. A gravidade da doença renal e o prognóstico têm sido
correlacionados com a presença de esclerose glomerular e doença glomerular activa
com crescentes.

GRANULOMATOSE EOSINOFÍLICA COM POLIANGEÍTE (Síndrome de Churg-


Strauss)
A Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte (EGPA), anteriormente denominada
Síndrome de Churg-Strauss, é uma doença caracterizada por vasculite de pequenos
vasos com atingimento pulmonar e sistémico, granulomas extravasculares e
hipereosinofilia, que ocorre caracteristicamente em indivíduos com asma de início tardio
e rinite alérgica.

Epidemiologia
A incidência anual de EGPA é entre 0-4/1.000.000 de habitantes e a sua prevalência
entre 7-22/1.000.000 habitantes. A idade média à data do diagnóstico é de cerca de 45-
50 anos, com igual incidência nos dois sexos.

Manifestações Clínicas
Foram descritas três fases da doença: o pródromo, que pode durar mais de 30 anos e
consiste em asma e outras manifestações alérgicas inespecíficas (rinite alérgica e
polipose nasal); a segunda fase da doença, caracterizada pela instalação de eosinofilia
periférica e tecidular, com síndrome de Löffler, pneumonia eosinofílica crónica ou
gastroenterite eosinofílica; e doença infiltrativa eosinofílica, que pode remitir e recorrer
ao longo dos anos antes do aparecimento da vasculite sistémica, que define a terceira
fase da doença. Estas três fases não têm de seguir uma ordem cronológica específica;
a vasculite sistémica surge em média 4 a 9 anos após a instalação da asma.

Os sintomas constitucionais, como febre ou perda ponderal, estão presentes na maior


parte dos doentes. São também frequentes artralgia, sobretudo de grandes articulações,
e mialgia.

152
Quanto às manifestações pulmonares, a asma é a característica central desta vasculite
e precede as manifestações sistémicas em quase todos os casos. Ao contrário da asma
comum, aparece relativamente tarde, por volta dos 35 anos. A gravidade e frequência
das crises asmáticas geralmente aumentam até à instalação da vasculite. Embora
possa ocorrer remissão da asma quando surge a vasculite, é mais frequente ocorrer
agravamento nas semanas que a precedem, tornando-se o doente dependente de
corticóides e a necessitar de internamento. O radiograma torácico apresenta geralmente
alterações, surgindo em 38-77% infiltrados transitórios.

O envolvimento do tracto respiratório superior é frequente, com sinusite maxilar habitual,


sendo que 70% dos doentes tem história de rinite alérgica e/ou polipose dos seios peri-
nasais.

O envolvimento do SNC é relativamente raro – ocorre em 5-10% dos doentes e inclui


acidente vascular cerebral e paquimeningite, indicando mau prognóstico. A neuropatia
periférica, geralmente mononeurite multiplex, é encontrada em 45-75% dos doentes, e
a sua ocorrência é altamente sugestiva do diagnóstico.

As manifestações cutâneas são também frequentes: a púrpura é encontrada em cerca


de metade dos casos e os nódulos subcutâneos em 30%. A biópsia cutânea pode
mostrar granulomas extra-vasculares e eosinofílicos. Estes granulomas são a
característica cutânea mais distintiva de EGPA. Têm sido descritas outras lesões, como
fenómeno de Raynaud, livedo reticularis (6%), lesões urticariformes (9%), necrose
cutânea e isquémia digital.

Figura 6: Envolvimento cutâneo da Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte. A: Granuloma necrotizante extra-
vascular ao nível do cotovelo (David M et al. Cutaneous manifestations of Churg-Strauss Syndrome: A clinicopathologic
correlation. Journal of the American academy of Dermatology, 1997, 37; 2(1): 199-203); B: Púrpura hemorrágica palpável
nos membros inferiores (Kawakami T et al. Initial Cutaneous Manifestation Consistent With Mononeuropathy Multiplex in
Churg-Strauss Syndrome. Arch Dermatol 2005; 141 (7): 873-878); C: Pápulas e placas eritematosas urticariformes na
região lateral do pescoço (Bosco L et al. Cutaneous Manifestations of Churg-Strauss Syndrome: report of two cases and
review of the literature. Clin Rheumatol, 2011; 30: 573-580).

O envolvimento cardíaco é comum na EGPA e a principal causa de mortalidade. A


pericardite surge em até 25% dos doentes, sendo que, destes, 20% tem envolvimento
cardíaco clinicamente significativo. A insuficiência cardíaca congestiva pode
desenvolver-se rapidamente e está associada a mau prognóstico.

Os sintomas do tracto gastrointestinal como dor abdominal, diarreia e hemorragia,


ocorrem em 30-60% dos doentes e geralmente predizem um pior prognóstico. A
perfuração intestinal é a complicação mais grave e uma das principais causas de

153
morte. A vasculite e os granulomas podem estar presentes ao longo de todo o tracto
gastrointestinal, mas ocorrem mais frequentemente no intestino delgado e/ou cólon.

O envolvimento renal é raro e ocorre geralmente em doentes ANCA positivos. A lesão


glomerular que tipifica a EGPA é a glomerulonefrite focal segmentar, com características
de necrose, incluindo crescentes. O envolvimento renal está também associado a pior
prognóstico.

O olho também pode estar envolvido – têm sido descritos casos de uveíte, vasculite
retiniana, episclerite e/ou nódulos conjuntivais.

Alguns estudos sugerem uma diferença de fenótipo da EGPA de acordo com a


positividade para ANCA. Os doentes ANCA-positivos têm mais frequentemente
envolvimento renal, sintomas constitucionais, púrpura, hemorragia alveolar,
mononeurite multiplex e/ou envolvimento SNC, enquanto que os doentes ANCA-
negativos têm mais frequentemente cardiomiopatia, pericardite, livedo e/ou infiltrados
pulmonares. Além disso, nas biópsias de doentes ANCA-negativos, os processos de
vasculite são mais raros, sendo predominante a infiltração eosinofílica.

Após um seguimento de 3 anos, a sobrevivência e taxa de recidiva da doença não


parece diferir de acordo com a positividade para ANCA, embora estudos a longo-prazo
sugiram maiores taxas de recorrência de doença em doentes ANCA-positivos e maior
taxa de mortalidade nos doentes ANCA-negativos, dada a maior probabilidade de
ocorrer cardiomiopatia.

Diagnóstico
Os anticorpos ANCA são encontrados em quase um terço dos doentes. A eosinofilia é
uma constante e frequentemente <1500/m3 (97% dos doentes). A ausência de
eosinofilia pode ser explicada por administração prévia de corticóides para a asma. O
doseamento sérico de IgE está aumentado em 75% dos doentes e um aumento da IgG4
também pode ser encontrado.

Em 1990, o American College of Rheumatology (ACR) propôs critérios de classificação,


com sensibilidade de 85% e especificidade de 99,7%, ainda hoje utilizados – tabela 1.

CRITÉRIOS ACR PARA O DIAGNÓSTICO DA GRANULOMATOSE EOSINOFÍLICA COM


POLIANGEÍTE
Asma
Eosinofilia >10% no sangue periférico
Sinusite dos seios perinasais
Infiltrados pulmonares (podem ser transitórios)
Biópsia compatível, revelando vasculite e eosinófilos extra-vasculares
Mononeurite multiplex ou polineuropatia
Tabela 1: Critérios de Diagnóstico do American College of Rheumatology para a Granulomatose Eosinofílica com
Poliangeíte. O diagnóstico é estabelecido se forem cumpridos 4/6 critérios.

154
Tratamento de Vasculites ANCA
Enquanto a terapêutica pode ser ajustada à gravidade de doença na MPA e EGPA, os
doentes com GPA devem receber todos um regime de indução baseado na combinação
de corticóides e um imunossupressor.

1. Tratamento de Indução para MPA e EGPA sem factores de mau prognóstico


Na MPA e EGPA o tratamento inicial deve ser adaptado à gravidade da vasculite. Para
seleccionar a terapêutica mais adequada e evitar o sobre-tratamento foi desenvolvido o
Five-Factor Score (FFS) com valor prognóstico significativo na PAN, MPA e EGPA. A
presença de qualquer um dos cinco factores indica maior mortalidade – proteinúria
>1 g/dia, insuficiência renal (creatinina >140 umol/L), cardiomiopatia, manifestações
gastrointestinais e envolvimento do SNC. Quando o FFS é 0, a mortalidade aos 5 anos
é de 12%, mas sobe até aos 46% se o FFS ≥2.

Foi demonstrado que doentes sem factores de mau prognóstico (FFS=0) à data do
diagnóstico podiam ser tratados com sucesso apenas com prednisolona, utilizando
imunossupressores como tratamento de segunda-linha, em caso de actividade de
doença persistente ou recorrência sob corticóides. A administração de pulsos de
metilprednisolona (geralmente 7.5-15 mg/kg por via endovenosa por dia durante 1 a 3
dias) é amplamente usada para iniciar a terapêutica, devido à sua rápida acção e relativa
segurança. Os corticóides orais são posteriormente administrados na dose de 1
mg/kg/dia de prednisolona ou equivalente. Depois de 3 a 4 semanas desta dose, deve
ser realizada a redução de dose e, na ausência de recorrência de doença, a terapêutica
com corticóides pode ser suspensa após 9 a 18 meses. No entanto, a duração ideal da
terapêutica com corticóides não está ainda estabelecida.

A taxa de recidiva ou falência terapêutica na MPA e EGPA em doentes sob


corticoterapia é elevada, mas a sobrevida aos 7 anos é de 79%. A utilização no momento
do diagnóstico de um imunossupressor pode diminuir a taxa de recorrência em doentes
com FFS=0, embora o balanço entre benefício e toxicidade seja difícil e os estudos não
favoreçam o uso sistemático de primeira linha de ciclofosfamida em combinação com
corticóides. Fármacos menos tóxicos como a azatioprina podem ter mais eficácia e
melhor perfil de segurança.

2. Tratamento de GPA e MPA ou EGPA com factores de mau prognóstico


A combinação de corticóides e um imunossupressor é necessária em doentes com MPA
ou EGPA e factores de mau prognóstico (ou seja, FFS≥1) e em todos com GPA.

No entanto, a escolha de imunossupressão na GPA pode variar, dependendo consoante


o doente tenha uma forma sistémica/grave da doença ou uma forma
limitada/localizada/sistémica-precoce.

Nos últimos anos, a ciclofosfamida (CYC) foi a primeira escolha para a indução de
remissão em fases graves da doença, tendo o aparecimento do Rituximab, um anticorpo
quimérico anti-CD20, mostrado que pode haver alternativas, pelo menos em doentes
com GPA ou MPA graves, especialmente naqueles com doença recorrente e/ou
refractária e/ou contra-indicação para CYC.

155
Doentes com GPA localizada podem ser tratados inicialmente com corticóides e
metotrexato, atingindo respostas semelhantes à CYC. Quando o metotrexato não
consegue controlar a doença em doentes com GPA sistémica ou doentes com EGPA
ou MPA com factores de mau prognóstico, a CYC ou o Rituximab (RTX) devem ser
administrados como primeira linha, em combinação com corticóides, para induzir
remissão. Ambos os fármacos mostraram ser eficazes em induzir remissão, embora o
RTX possa não estar disponível e seja mais dispendioso.

A CYC pode ser administrada por via oral e continuamente, ou usando bólus
endovenosos. Quando comparadas as duas formas de administração, são igualmente
eficazes a controlar a doença, embora a terapêutica por pulsos esteja associada a
menor dose cumulativa e, portanto, pode expor o doente a um maior risco de recidiva,
ao mesmo tempo que diminui a toxicidade. A dose inicial de CYC, bem como o número
total e frequência dos pulsos quando a via endovenosa é escolhida, deve ser ajustada
de acordo com a condição do doente, especialmente a idade, a função renal e a eventual
existência de alterações hematológicas. A CYC oral é administrada 2 mg/kg/dia,
geralmente com um máximo de 200 mg/dia. A CYC endovenosa em dose elevada pode
ser mais tóxica em doentes com lesão renal e/ou nos idosos, mas com ajustes de dose
adequados, é uma terapêutica muito eficaz.

É obrigatória a hidratação vigorosa, para limitar o risco de toxicidade vesical pelos


metabolitos de CYC. O uso de MESNA é recomendado durante a terapêutica por pulsos,
para evitar a cistite hemorrágica. A CYC oral deve ser tomada de manhã com um copo
grande de água e o doente deve manter-se hidratado (geralmente recomenda-se um
mínimo de 2L de água por dia).

Assim que for atingida a remissão com CYC, pode ser alterada a terapêutica para um
agente imunossupressor menos tóxico para manutenção, geralmente após seis a nove
pulsos ou 3 a 4 meses de CYC oral. Os principais agentes de manutenção são a
azatioprina e o metotrexato, nenhum deles superior ao outro. A dose de azatioprina é
de 2 mg/kg/dia e a dose de metotrexato é de 0,3 mg/Kg, uma vez por semana, com o
máximo de 25 mg/semana, por via oral ou subcutânea. Um outro estudo também sugeriu
que a leflunomida 20 mg/dia pode ser usada para manutenção; foi ainda mostrado que
o micofenolato de mofetil é menos eficaz que a azatioprina na manutenção de remissão
e, portanto, deve ser usado apenas em doentes que não toleram os fármacos habituais
para a manutenção do tratamento. A duração óptima do tratamento de manutenção
permanece desconhecida.

Estudos com Rituximab mostraram que este fármaco não é inferior à CYC para indução
de remissão na GPA e MPA, parecendo também ter um papel importante na EGPA
refractária. O RTX foi administrado em combinação com corticóides e na dose de 375
mg/m2 por semana num total de quatro administrações; uma alternativa pode ser, no
entanto, a dose de 1 g cada 2 semanas, num total de duas administrações.

3. Outros tratamentos
A Imunoglobulina endovenosa tem sido usada na GPA, MPA e EGPA, especialmente
em casos refractários a vários imunossupressores e elevadas doses de corticóides e/ou
em caso de uma infecção grave concomitante, com bons resultados, embora apenas
temporários.

156
Em doentes com GPA e MPA com glomerulonefrite crescêntica e insuficiência renal
grave (creatinina >500 umol/L), a plasmaferese parece melhorar a função renal e
permite suspender a diálise durante um ano. Porém, este benefício não é mantido
posteriormente. A plasmaferese, num esquema de 7 sessões em 14 dias, é também
usada em doentes com hemorragia alveolar, com base na sua utilização na Síndrome
de Goodpasture. No entanto, nos ensaios realizados, todos os doentes receberam, em
simultâneo, doses elevadas de corticóides e imunossupressores, pelo que os dados
sobre a plasmaferese são ainda contraditórios.

Remissões completas ou parciais foram obtidas com o Infliximab em doentes com GPA
refractária; no entanto, após a suspensão desta terapêutica, a doença recorre
frequentemente. O Etanercept e outros anti-TNF têm sido testados, em concomitância
com a terapêutica convencional, incluindo CYC, com o objectivo de reduzir a taxa de
recorrência de doença. Os dados disponíveis revelam que, até à data, não conferem
nenhuma vantagem na prevenção de recorrência de doença, para além de, durante o
estudo, se terem identificado seis neoplasias de órgão sólido nos doentes sob
etanercept.

Prognóstico
Além dos parâmetros habituais, como taxas de recorrência e mortalidade, o dano e a
qualidade de vida devem também ser tidas em conta. O dano inclui sequelas
relacionadas com a doença, como a neuropatia periférica ou insuficiência renal, efeitos
adversos tardios de terapêutica, como neoplasia vesical induzida por CYC e infertilidade
relacionada a CYC, e outros, como aterosclerose precoce.

GPA e MPA

A morte no início da doença é pouco frequente e ocorre sobretudo por envolvimento


multi-orgânico, quando a terapêutica se revela ineficaz. Durante os primeiros meses de
tratamento pode desenvolver-se um quadro de sépsis, como uma consequência da
terapêutica inicial intensa, sendo esta a principal causa de mortalidade precoce na
vasculite associada a ANCA. As infecções virais geralmente surgem mais tarde e
resultam da imunossupressão; têm sido descritos casos raros de infecção por
Pneumocystis jirovecii em doentes com linfopénia (<200/mm3). Causas de morbilidade
e mortalidade a longo prazo incluem doença cardiovascular (decorrente da inflamação
dos vasos e terapêutica prolongada com corticóides) e neoplasias (decorrentes de
terapêutica imunossupressora e predisposição prévia).

Entre todas as vasculites, a taxa de recidiva é maior na GPA, afectando até 50-60% dos
doentes aos 5 anos. Todas as formas de GPA podem recorrer, independentemente do
tempo de evolução, muitas vezes após vários anos ou décadas de remissão. Pode
também haver recidiva na MPA, até 35% aos 5 anos. A recidiva não apresenta
necessariamente as mesmas manifestações do quadro inicial e pode haver
envolvimento de outros órgãos. De qualquer modo, as recidivas tendem a ser menos
graves que o quadro de apresentação inicial, sobretudo porque o diagnóstico tende a
ser mais precoce.

157
A recidiva ocorre mais frequentemente após a suspensão da terapêutica de manutenção
(em cerca de dois terços dos casos), mas pode ainda ocorrer durante o tratamento.

Os doentes com GPA em que a apresentação inicial incluía envolvimento do tracto


respiratório superior e/ou manifestações granulomatosas (pseudo-tumor orbitário,
nódulos pulmonares) parecem ter maior taxa de recidiva que os doentes com vasculite
renal. Curiosamente, os títulos de ANCA não são preditores de recidiva – o
reaparecimento de títulos significativos de anticorpos anti-PR3 deve ser considerado
como sinal de alarme para recorrência, mas, por si só, não pode ser usado para
introduzir, parar ou ajustar terapêutica

EGPA

O prognóstico desta vasculite melhorou drasticamente desde a introdução da


corticoterapia e, quando indicado, de fármacos citotóxicos. Com terapêutica adequada,
a remissão é rapidamente obtida em mais de 80% dos doentes. Durante o
acompanhamento de follow-up, ocorre recidiva em 25-35% dos casos, metade durante
o primeiro ano, metade após um follow-up médio de 5 anos.

A taxa de sobrevida aos 10 anos é de 75 a 80%. O envolvimento cardíaco continua a


ser a principal causa da morte nos doentes com EGPA.

Mesmo após o tratamento da vasculite, a asma geralmente persiste em mais de 75%


dos doentes com EGPA, necessitando de terapêutica de manutenção com baixas doses
de corticóides (<10 mg/dia) e /ou corticóides inalados.

POLIARTERITE NODOSA
A Poliarterite Nodosa (PAN) foi inicialmente descrita por Küssmaul e Maier em 1866.
Esta vasculite necrotizante sistémica envolve predominantemente artérias de médio
calibre e pode afectar a maioria dos órgãos.

Considerando as diferentes etiologias, alguns autores criaram a designação de PAN


primária e secundária, uma vez que esta pode estar associada a infecção pelo vírus da
hepatite B (VHB) ou outros agentes etiológicos, como o vírus de imunodeficiência
humana (VIH) e, embora com maior controvérsia, o vírus da hepatite C (VHC).

Epidemiologia
A PAN é uma doença rara que afecta todos os grupos étnicos. Estima-se que a
incidência anual da PAN na população geral seja de 3-4,5/1.000.000 habitantes, embora
os dados internacionais variem consoante a definição de PAN utilizada. Afecta doentes
de todas as idades, incluindo crianças e idosos, mas predomina no grupo etário dos 40
aos 60 anos. Os homens são mais afectados, com um ratio masculino- feminino de 1,6-
2:1.

158
Etiologia e Patogénese
A etiologia permanece por esclarecer na maioria dos doentes, embora nalguns casos
tenham sido identificadas infecções, sobretudo virais, responsáveis pela doença. A
relação com a infecção por HBV tem sido amplamente demonstrada e o aparecimento
da vacina para HBV, bem como a maior segurança nas transfusões de sangue, explica
a diminuição significativa de novos casos de PAN desde 1989. Quase todos os casos
de PAN associada a HBV estão associados a antigenémia HBV e replicação viral,
sustentando a hipótese de que as lesões vasculíticas podem resultar da deposição de
complexos antigénio-anticorpo solúveis em excesso, possivelmente envolvendo o
antigénio HBs e/ou antigénio HBe. De acordo com esta hipótese, os complexos imunes
activam a cascata do complemento, cujos produtos activados, por sua vez atraem e
activam neutrófilos. Estão descritos casos de PAN despoletada pela vacinação para a
hepatite B; nestas situações, admite-se que a vacinação seja o trigger para desencadear
vasculite em indivíduos com predisposição genética. Estão ainda publicados casos de
PAN associada a infecção por HCV, HIV e Parvovírus B19.

Figura 7: Representação esquemática da patogénese da Poliarterite nodosa associada à Hepatite B. (Retirado de


Sharma A and Sharma K. Hepatotropic Viral Infection Associated Systemic Vasculitides – Hepatitis B Virus Associated
Polyarteritis Nodosa and Hepatitis C Virus Associated Cryoglobulinemic Vasculitis. Journal of Clinical and Experimental
Hepatology, 2013; 3(3): 204-212.)

Para além das causas infecciosas, a PAN tem sido descrita em associação com
neoplasias, sobretudo com a tricoleucemia. Deste modo, assume-se que os
mecanismos imunopatogénicos que levam à lesão vascular na PAN são provavelmente
heterogéneos, envolvendo variáveis genéticas, epigenéticas e ambientais.

Manifestações Clínicas
Os doentes apresentam com frequência sintomas constitucionais, como mau estado
geral, perda ponderal e febre. Metade dos doentes refere mialgias, que podem ser
intensas, difusas, espontâneas ou ocorrer apenas após pressão localizada. As enzimas
musculares geralmente estão normais ou ligeiramente elevadas. Por outro

159
lado, a amiotrofia pode ser marcada, o que reflecte a perda ponderal importante, por
vezes superior a 20 kg, com alguns doentes a permanecerem confinados ao leito pela
intensidade da dor e da fadiga muscular. A biópsia de músculo pode contribuir
definitivamente para o diagnóstico.

As artralgias podem também ocorrer, afectando joelhos, tornozelos, cotovelos e punhos;


a sinovite é raramente observada e as articulações geralmente não estão deformadas.

O envolvimento do SNC é raro, mas o envolvimento do SNP é frequente. A neuropatia


periférica é o achado mais frequente nos doentes com PAN (50-75%) e em 23-33% dos
doentes é o sintoma mais precoce da doença. A instalação é geralmente aguda, mas
pode ser indolente, particularmente nos idosos. As alterações sensitivas são
responsáveis por hipo ou hiperestesia, disestesia ou dor franca, sendo esta a
característica proeminente e mais precoce. Os sinais motores podem ocorrer
posteriormente.

As primeiras manifestações geralmente afectam os membros inferiores, com um nervo


específico envolvido; outros nervos são depois afectados, desenvolvendo um quadro de
mononeurite multiplex, que pode afectar 56,5-61,5% dos doentes. O atingimento é
sobretudo distal e assimétrico, com preferência para os nervos peronial superficial,
radial, cubital e/ou medianos. Numa fase mais tardia, pode haver envolvimento de
múltiplos nervos, levando a que a mononeurite multiplex seja entendida como um
processo simétrico. A análise do líquido cefalorraquidiano é geralmente normal. A
electromiografia revela tipicamente neuropatia axonal. A amplitude do potencial de
acção dos nervos motores e sensitivos está marcadamente diminuída, ou mesmo
ausente, nos nervos mais afectados, enquanto que a velocidade de condução dos
nervos motores está normal ou apenas ligeiramente diminuída. Com o tratamento, a
mononeurite multiplex na PAN melhora progressivamente e os doentes recuperam sem
sequelas. Porém, são necessários 12 a 18 meses até à recuperação máxima. O grau
de recuperação é variável e imprevisível – nalguns doentes pode persistir neuropatia
com parestesia.

O envolvimento do SNC, como referido, é raro e traduz-se por AVC isquémico ou, mais
raramente, hemorrágico, convulsão ou confusão; é geralmente uma manifestação tardia
da doença e um sinal de mau prognóstico (Fig. 8-A).

Figura 8: A – Acidente Vascular Cerebral hemorrágico em doente com Poliarterite Nodosa (Hernández-Rodriguéz J et al.
Diagnosis and Classification of Polyarteritis Nodosa. Journal of autoimmunity, 2014; 48-49: 84-89.); B: Angiografia Renal
revelando múltiplos aneurismas (EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-

160
7279-1924-3.); C: Lesões ulceradas no membro inferior (Costa IMC and Nogueira LSC. Cutaneous polyarteritis nodosa
– a case report. An Bras Dermatol 2006; 81 (3)).

O envolvimento da artéria renal pode ser responsável por hipertensão arterial de ligeira
a grave/maligna e/ou nefropatia isquémica com insuficiência renal, que tem sido
identificada como factor de mau prognóstico. A angiografia, quando realizada, pode
mostrar enfarte do parênquima renal e/ou múltiplas estenoses e microaneurismas de
ramos das artérias celíaca, mesentérica e/ou artérias renais, sugestivas deste
diagnóstico (Fig.8-B). Os microaneurismas podem ocasionalmente romper,
espontaneamente ou após biópsia renal; por esta razão, este procedimento está contra-
indicado na PAN. Será pertinente referir que a manifestação principal das vasculites
ANCA, a glomerulonefrite, nunca é encontrada na PAN – se for este o achado da
biópsia, o diagnóstico de PAN deve ser repensado.

Em termos de atingimento da pele, os nódulos cutâneos ou subcutâneos são


característicos da PAN, surgindo em 8-27% dos doentes. Ocorrem ao longo dos
trajectos de artérias superficiais e desaparecem espontaneamente em poucos dias,
antes de novas lesões aparecerem. A púrpura necrótica é também frequente (Fig.8-C).

Figura 9: Arterite coronária por Poliarterite Nodosa, associada a enfarte agudo do miocárdio, com fibrilhação ventricular
e paragem cardio-respiratória. Imagens de coronariografia com estenose grave da porção proximal da artéria
descendente anterior e do ramo posterior esquerdo. (Brooks M and Ravi I. Coronary arteritis. NEJM 2012; 367: 658.)

O envolvimento cardíaco foi reportado em 10 a 40% dos doentes. A insuficiência


cardíaca é a principal característica, ocorrendo em 6-75% dos casos, mas menos
frequentemente que na EGPA. A angiografia pode mostrar envolvimento coronário em
85% dos doentes com sinais clínicos de enfarte (Fig.9). Nos restantes 15%, o enfarte
pode ser devido a arterite de pequenos vasos ou a espasmos das artérias coronárias.

A hipertensão arterial está presente em média em 40% dos doentes com PAN e é
geralmente ligeira; no entanto, deve ser tido em conta que pode ser desencadeada ou
afectada pela corticoterapia. A dissecção da aorta é uma complicação rara, resultante
de vasculite difusa nos vasa vasorum da aorta. Também tem sido descrita a dissecção
de grandes artérias como a carótida, a hepática, a renal ou as artérias esplénicas. A
oclusão de artérias periféricas pode provocar necrose distal dos dedos; nestes casos, a
angiografia revela estenose e/ou microaneurismas.

O envolvimento do tracto gastrointestinal é uma das manifestações mais graves da PAN


e ocorre em 40-60% dos doentes, sobretudo na PAN associada a infecção VHB. Estas
manifestações estão geralmente associadas a envolvimento sistémico, mas podem ser
a primeira forma de apresentação da doença em 2 a 16% dos doentes. São a principal
causa da morte no primeiro ano após o diagnóstico e a terceira causa mais

161
frequente, após infecções e doença coronária. A hemorragia gastrointestinal e
perfuração do intestino delgado são as complicações mais graves. Quando presente, a
vasculite isquémica afecta principalmente o intestino delgado e, mais raramente, o cólon
ou o estômago.

Relativamente ao atingimento génito-urinário, a orquite é uma das manifestações mais


características da PAN; quando tratada imediatamente pode regredir com corticoterapia.
Noutros casos, a isquémia pode ser irreversível.

Os pulmões são poupados na PAN, ao contrário de outras vasculites. Em termos de


manifestações ósseas, podem ocorrer modificações do periósteo, sobretudo nos
membros inferiores; são sintomas comuns o edema localizado e a dor.

O olho pode ser afectado na PAN, muitas vezes com gravidade, como a coroidite uni ou
bilateral, irite, iridociclite, descolamento da retina e/ou vasculite retiniana.

Diagnóstico
Na avaliação analítica de um doente com PAN, é frequente encontrar elevação de
parâmetros inflamatórios – aumento da VS, PCR, leucocitose, anemia normocítica e
normocrómica. Deve ser pesquisado sistematicamente o antigénio HBs e verificar
positividade para ANCA; se este último for detectado, deve ser repensado o diagnóstico
de PAN.

A angiografia renal e celíaca-mesentérica de um doente com PAN pode revelar


estenoses de artérias médias e microaneurismas saculares ou fusiformes, que embora
não sejam patognomónicos, estão frequentemente presentes (>60%).

A lesão histológica que define a PAN é a vasculite focal segmentar necrotizante de


artérias de médio calibre, menos frequentemente arteríolas e, mais raramente, capilares
e vénulas. É comum a detecção histológica de vasculite necrotizante simultânea a uma
lesão já resolvida ou mesmo artérias normais num mesmo tecido.

Tratamento
Na Hepatite B crónica, a corticoterapia e os agentes imunossupressores têm efeitos
deletérios e aumentam a replicação viral, apesar de terem apresentado benefícios nos
sintomas de vasculite. Assim, a duração da corticoterapia deve ser curta, de modo a
controlar as manifestações mais graves da PAN, comuns nas primeiras semanas de
doença; deve ser suspensa após 2 a 4 semanas, para aumentar a clearance
imunológica de hepatócitos infectados por VHB e favorecer a seroconversão de
antigénio HBe a anticorpo anti-HBe. A segunda parte do tratamento consiste na
plasmaferese, para eliminar os complexos imunes circulantes e é geralmente prescrita
até que a seroconversão esteja completa. Devem ainda ser administrados antivirais,
para controlar a replicação viral, como terceira parte do tratamento, a iniciar nas
primeiras semanas (por exemplo, lamivudina, tenofovir e/ou entecavir).

O tratamento da PAN associada a outros vírus deve também basear-se na combinação


de corticoterapia curta e agentes antivirais, juntamente com plasmaferese, se
ocorrerem manifestações graves. Para a vasculite associada a VHC, o rituximab deve
ser considerado.

162
O tratamento da PAN sem associação a infecção viral deve ser semelhante ao
tratamento das vasculites ANCA, consoante a presença/ausência de factores de mau
prognóstico, segundo o Five Factor Score (FFS) – doentes com FFS=0 podem ser
tratados apenas com corticóides; doentes com FFS≥1 devem receber uma combinação
de corticóides e CYC.

MANIFESTAÇÕES GRANULOMATOSE
POLIARTERITE POLIANGEÍTE GRANULOMATOSE
EOSINOFÍLICA COM
DA DOENÇA NODOSA MICROSCÓPICA COM POLIANGEÍTE
POLIANGEÍTE
CALIBRE DE VASOS
Médios Pequenos Pequenos Pequenos
ENVOLVIDOS
Rinite frequente,
M ANIFESTAÇÕES Poucos doentes, sinusite destrutiva,
Rinite alérgica,
TRACTO inespecífico, não nariz em sela,
Não polipose dos seios
RESPIRATÓRIO destrutivo e não deformação do
(não destrutiva)
SUPERIOR granulomatoso septo nasal, otite
média
ASMA Não Não Sim (~100%) Não
Asma em todos. Nódulos
Infiltrados pulmonares
Não
Frequente (60- frequentes (~50%), frequentes (60-
ENVOLVIMENTO (raramente,
80%), hemorragia transitórios, 80%), hemorragia
PULMONAR derrame
alveolar derrame pleural alveolar, estenose
pleural)
com eosinófilos, brônquica e/ou
raramente nódulos subglótica
NEUROPATIA
PERIFÉRICA Muito frequente Muito Frequente
Frequente (35%) Frequente (25%)
(MONONEURITE (70%) (65-75%)
MULTIPLEX)
Envolvimento
reno-vascular
Glomerulonefrite
(HTA, lesões Não frequente, Frequente,
muito frequente
ENVOLVIMENTO renais glomerulonefrite glomerulonefrite
(necrotizante
RENAL isquémicas) 30- (necrotizante extra- (necrotizante extra-
extra-capilar),
55% mas sem capilar) 20% capilar) 70-80%
80%
doença
glomerular
Sim,
EOSINOFILIA Não (ou minor) Não (ou minor) frequentemente Não (ou minor)
>3000/mm3
MICROANEURISMAS
NA ANGIOGRAFIA Sim (65% dos
Raro Não Raro
RENAL E/OU doentes)
CELÍACA
GRANULOMAS NA Apenas alguns Sim, com Sim (frequente,
Raro
HISTOLOGIA casos eosinófilos mas nem sempre)
Sim (60-80%), Sim (30-40%) Sim (90% com
ANCA Não sobretudo anti- sobretudo anti- doença sistémica),
MPO MPO sobretudo anti-PR3
TAXA DE RECIDIVA
<25% >50% >30% >60%
AOS 5 ANOS
Tabela 2: Principais diferenças entre PAN a vasculites de pequenos vasos; HTA: Hipertensão arterial

163
Prognóstico
Na sua forma sistémica, a PAN é uma doença aguda que pode ser grave e causar a
morte se o tratamento não for instituído no tempo certo. Desde a introdução de
corticoterapia e a sua posterior combinação com imunossupressores, a terapêutica
antiviral e, se necessário, plasmaferese, o prognóstico da PAN tem melhorado e as
taxas de sobrevida têm aumentado para mais de 76-89% para a PAN e 64-70% para a
PAN associada a VHB.

A PAN recidiva muito menos frequentemente que as outras vasculites. A mortalidade é


de 25% aos 5 anos, sendo critérios independentes de mau prognóstico idade >65 anos,
hipertensão arterial e abdómen cirúrgico. Embora as causas de morte variem de uma
vasculite para outra, podem ser divididas em duas categorias: as mortes atribuíveis ao
processo vasculítico e as mortes devidas a efeitos adversos da terapêutica, sendo as
infecções a principal causa de mortalidade. As mortes que ocorrem nos primeiros meses
da doença são habitualmente causadas por vasculite não controlada, enquanto que as
que ocorrem na vasculite controlada podem ser consequência dos efeitos secundários
da terapêutica.

TAKE HOME MESSAGES


A Granulomatose com Poliangeíte, a Poliangeíte Microscópica e a Granulomatose
Eosinofílica com Poliangeíte são vasculites primárias necrotizantes de pequenos
vasos associadas à presença de ANCA.
Doentes com Granulomatose com Poliangeíte podem apresentar uma forma
sistémica da doença, associada a positividade para c-ANCA anti-PR3, ou uma
forma mais localizada, associada a ANCA em apenas 50-75% dos casos.
A Poliangeíte Microscópica está associada a p-ANCA anti-MPO em cerca de 75%
dos casos.
A Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte está associada a ANCA, sobretudo
p-ANCA anti-MPO, em 30-40% dos doentes.
O tratamento baseia-se na combinação de corticóides e terapêutica
imunossupressora de acordo com a presença de factores de mau prognóstico,
segundo o Five Factor Score.
A Poliarterite Nodosa é uma vasculite de médios vasos, necrotizante, classicamente
associada à infecção por Hepatite B.

Bibliografia
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vessel vasculitis, Ann Rheum Dis 2009; 68:310-317
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• Jennette JC, Falk RJ, Andrassy K, et al. Nomenclature of systemic vasculitides. Proposal of an
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• Lutalo PM and D’Cruz DP. Diagnosis and Classification of granulomatosis with polyangiitis(aka
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7(4):288-96.
• Carvalho JF et al. Systemic Polyarteritis nodosa following hepatitis B vaccination. European Journal
of Internal Medicine, 2008; 19: 575-578.

165
8.2 DOENÇA DE BEHÇET

Definição
A Doença de Behçet (DB) é uma vasculite que pode afectar vasos de diferente calibre.
Manifesta-se mais frequentemente por uma síndrome composta por úlceras orais e
genitais, e, embora menos frequentes, lesões cutâneas e uveítes.

Epidemiologia
A DB tem maior prevalência nos países da bacia do Mediterrâneo, Médio Oriente,
Sudeste Asiático e Japão, distribuição associada às antigas rotas da seda; é rara no
norte da Europa, norte da Ásia, em África, na Austrália e na América. Apesar de poder
surgir em qualquer grupo etário, o início antes da puberdade ou após os 70 anos é raro,
sendo mais frequente o aparecimento dos sintomas por volta dos 30 anos, sobretudo
em indivíduos do sexo masculino.

Etiologia e Fisiopatogénese
A DB é uma vasculite que afecta artérias e veias de diferentes calibres. As lesões podem
ocorrer por atingimento directo da parede do vaso, como ocorre nas úlceras orais e
genitais, nas lesões de eritema nodoso ou de miosite localizadas, e nas uveítes. A
doença macrovascular manifesta-se por aneurismas arteriais ou oclusão venosa major.
As lesões vasculíticas não apresentam nenhum predomínio celular em particular e
raramente se observa deposição de imunocomplexos.

A patogénese da DB não está totalmente esclarecida. Por um lado, há uma componente


hereditária fortemente associada ao alelo HLA-B51, demonstrada em diferentes grupos
étnicos, embora com diferentes prevalências, à interleucina 10 (IL-
10) e ao loci da IL23R-IL12RB2; no entanto, diferentes estudos demonstram que outros
factores estão envolvidos no processo patogénico.

A DB não se comporta como uma verdadeira doença auto-imune: não tem


autoanticorpos e não tem síndromes auto-imunes secundárias associadas, como por
exemplo a Síndrome de Sjögren; mas também não se trata de uma doença auto-
inflamatória típica, em que ocorre activação de uma resposta inflamatória endógena,
mediada por linfócitos T auto-reactivos, sem auto-anticorpos detectáveis. No entanto,
estudos recentes demonstraram variações de citocinas inflamatórias que conferem
aspectos auto-inflamatórios a esta doença.

Tanto o sistema imunitário inato como o adaptativo estão envolvidos na patogénese da


DB. Os linfócitos T CD4 e CD8 produzem um perfil de citocinas do tipo Th1, aumentam
os níveis de IL-12 e a infiltração por células Th1 no tecido intestinal e mucocutâneo; por
outro lado, há um aumento de neutrófilos imaturos nas lesões de Behçet, por acção das
IL-17/IL-21 e linfócitos T do tipo gamma e delta policlonais, embora não esteja ainda
demonstrado o seu mecanismo de acção. O estímulo que desencadeia e

166
sustenta a resposta imunológica também não está ainda clarificado, mas a hipótese
mais provável é que um trigger infeccioso (Virus Herpes Simplex, Streptococcus spp,
Staphylococcus spp, Escherichia coli) associado a uma alteração do sistema imunitário
(mutação genética que afecte moléculas de adesão, citocinas pro- inflamatórias ou
alterações da via de sinalização intracelular) despoletem uma reacção inflamatória auto-
sustentada ao longo do tempo.

Manifestações Clínicas
As principais manifestações clínicas de DB são mucocutâneas, oftálmicas, vasculares,
músculo-esqueléticas, neurológicas e gastrintestinais. O diagnóstico é clinico e a
doença caracteriza-se por remissões e exacerbações sucessivas. A intensidade dos
flares diminui com a passagem dos anos.

Manifestações Clínicas Prevalência (%)


Úlceras Orais 47-86
Úlceras Genitais 57-93
Ocular 30-70
Pele 38-99
Músculo-esqueléticas 45-60
Cardiovascular 7-49
Neurológicas 5-10
Gastrintestinal 3-26
Tabela 1: Prevalência das principais manifestações clínicas da Doença de Behçet (Zeiden M et al. Behçet’s disease
physiopathology: a contemporary review. Autoimmun Highlights 2016 Dec;7(1):4)

Apesar de a DB ser normalmente descrita como vasculite sistémica, há situações, como


no atingimento do parênquima do SNC, em que a vasculite não pode ser demonstrada,
pelo que será mais correcto designá-la como inflamação sistémica.

3) Manifestações Mucocutâneas
As úlceras orais podem estar presentes em até 98% dos doentes, consoante as séries,
e são frequentemente a primeira manifestação da doença. Têm o aspecto de uma afta
normal, mas são muito dolorosas, sendo mais frequentes e em maior quantidade.
Surgem muitas vezes como áreas eritemato-papulares, circulares, que evoluem para
úlceras ovais ou redondas em 48 horas. Têm tipicamente menos de 10 mm de diâmetro
e são mais frequentes na mucosa jugal e língua. Cicatrizam em cerca de 15 dias sem
deixar cicatriz. O tabaco diminui a sua frequência e a cessação tabágica está associada
a um aumento da sua exacerbação.

167
Figura 1: Úlceras orais e vaginais. (A, B e C: Fitzpatrick’s Color Atlas and Synopsis of Clinical Dermatology, 6th Edition,
The McGraw Hill Companies)

As úlceras genitais localizam-se no escroto, no homem, e nos grandes e pequenos


lábios, na mulher. Outras localizações menos frequentes incluem a glande e o prepúcio,
as áreas vaginal e cervical. Normalmente começam por pápulas ou pústulas que
ulceram passado pouco tempo. Comparativamente às úlceras orais, são maiores, mais
profundas, menos recidivantes, mas mais resistentes à cicatrização (10 a 30 dias),
deixando cicatriz em 60% dos doentes.

Outras manifestações cutâneas da DB incluem: eritema nodoso, presente em 50% dos


doentes; tromboflebite superficial, mais frequentes nos homens; lesões papulo-
-pustulares, que se assemelham a acne vulgar, estando frequentemente colonizadas
por S. aureus e Prevotella spp, sendo mais frequentes em doentes com artrite; úlceras
cutâneas e Síndrome de Sweet – Figura 2.

Figura 2: A: Eritema Nodoso na Doença de Behçet (Photo courtesy of Professor J. Wollensak via the Online Journal of
Ophthalmology); B: Tromboflebite superficial eritematosa, com nódulos subcutâneos dolorosos dispostos de forma linear;
C: Teste de patergia positivo (B e C: Alpsoy E. Behçet’s Disease: A comprehensive review with a focus on epidemiology,
etiology and clinical features, and management of mucocutaneous lesions. Journal of Dermatology 2016; 43: 620-632).

4) Patergia
A patergia é um fenómeno inespecífico de hiperreactividade em resposta a um trauma
minor. Apesar de ter baixa sensibilidade (~50%), o teste de patergia tem elevada
especificidade para DB (95%). É realizado mediante a picada de uma agulha no
antebraço do doente; a presença de uma pápula ou pústula ao fim de 24 a 48 horas
confirma o diagnóstico – Figura 2-C.

168
5) Envolvimento Ocular
O envolvimento ocular na DB é uma causa de morbilidade grave e cegueira na Bacia do
Mediterrâneo, Médio Oriente e Sudeste Asiático. Está presente em 50% dos doentes, é
mais frequente nos 2 primeiros anos de doença e bilateral em 70-80% dos doentes. A
manifestação mais frequente é a pan-uveíte, por vezes acompanhada por vasculite da
retina – Figura 3. Em cerca de 20% dos doentes pode ocorrer hipópion. Episódios
frequentes de inflamação provocam lesões estruturais caracterizadas por sinequias
posteriores, cataratas, atrofia óptica e degeneração macular. A perda total de visão
ocorre em 20% das uveítes, mesmo após tratamento.

Figura 3: A – Oclusão da veia da retina com complicações do segmento anterior: isquémia da retina, com iridite rubeosa
secundária; B – oclusão inflamatória da veia da retina, associada a vitrite e vasculite da retina; C – oclusão aguda do
ramo venoso retiniano; D – obliteração vascular total e atrofia óptica secundária a oclusão vascular recorrente. (Verity
DH et al. Behçet’s Disease: from Hippocrates to the third Millennium. Br J Ophtalmol 2003; 87: 1175- 1183).

6) Envolvimento do Sistema Nervoso Central


O envolvimento neurológico na DB ocorre em cerca de 5-59% dos doentes, consoante
as séries publicadas, sendo geralmente tardio, normalmente após 5 anos de evolução
da doença, podendo envolver vasos e/ou parênquima. O atingimento parenquimatoso
provoca lesões no tronco cerebral, diencéfalo, gânglios da base e, embora menos
frequentemente, medula espinhal e cerebelo; o córtex cerebral costuma ser poupado.
Manifesta-se por cefaleia, sinais piramidais bilaterais, hemiparésia, alterações do
comportamento e alterações esfincterianas. Sinais de compressão do tronco cerebral e
alterações da sensibilidade são menos frequentes. Alterações no líquido
cefalorraquidiano estão presentes em 60% dos doentes (pleocitose e aumento da
celularidade). A RMN revela tipicamente hipercaptação de contraste ao nível do tronco
cerebral e gânglios da base. Os sinais de mau prognóstico incluem pleocitose e elevada
proteinorráquia, sintomas motores e incapacidade para desempenhar as actividades de
vida diária. As recidivas ocorrem em cerca de 1/3 dos doentes e a presença do alelo
HLA-B51 aumenta a sua probabilidade em 3,6 vezes.

O envolvimento vascular ao nível do SNC traduz-se por trombose do seio dural,


provocando cefaleia e papiledema.

7) Envolvimento Vascular
A DB afecta veias e artérias de grande calibre. O envolvimento de grandes vasos é mais
frequente nos homens, estando presente em 40-50% dos doentes. Estas lesões são, na
sua maioria, tromboses venosas superficiais ou profundas dos membros inferiores (MI)
(60-80% dos casos). A trombose é muitas vezes crónica e recorrente, condicionando
eritema, dermatite, hiperpigmentação e, consequentemente, úlceras

169
peri-maleolares, tendo os doentes sintomas de insuficiência venosa. Podem ocorrer
outro tipo de tromboses venosas, ao nível da veia cava superior, veia cava inferior, e
mesmo veias hepáticas, provocando síndrome de Budd-Chiari, esta última associada a
mau prognóstico.

Figura 4: Angiografia de tórax revelando múltiplos aneurismas das artérias pulmonares (setas), com enfarte pulmonar no
lobo inferior esquerdo (Agha A et al. Can Behçet’s disease related pulmonary arterial aneurysms be completely resolved?
Open Rheumatol J 2011;5:88-90); B: Angio-Tc Abdominal em corte axial, revelando aneurisma aórtico infra- renal (cabeça
da seta) (Park JH et al. Aortic and Arterial Aneurysms in Behçet Disease: Management with Stent-Grafts
– Initial Experience. Radiology 2001; 220:745-750); C: Angiografia cerebral digital de subtracção em perfil antero-
posterior revelando pequeno aneurisma na periferia da artéria cerebral média (Nakasu S et al. Cerebral aneurysms
associated with Behçet’s disease: a case report. Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry 2001;70:682-684.)

O envolvimento arterial está presente em 1,5 – 7,5% dos casos, sendo as lesões do tipo
aneurismáticas ou oclusivas – Figura 4. A aorta abdominal é o local mais afectado,
seguido das artérias ilíacas, femorais, popliteias, carótidas e subclávias. Os aneurismas
arteriais pulmonares constituem o tipo de envolvimento arterial mais grave da DB,
ocorrendo em jovens do sexo masculino com episódios prévios de TVP ou trombose da
veia cava; manifestam-se por hemoptises, dispneia e toracalgia pleurítica. A prevalência
destas manifestações é variável, mas pode chegar aos 18% dos doentes. As lesões
surgem como hipotransparências não cavitadas para-hilares no radiograma torácico; a
angio-Tc Pulmonar revela um ou vários aneurismas nas artérias pulmonares.

8) Manifestações Músculo-esqueléticas
A artrite e as artralgias estão presentes em cerca de 50% dos doentes ao longo da
história natural da doença. A artrite pode preceder as outras queixas em meses ou anos
e normalmente manifesta-se como oligoartrite, envolvendo joelhos, tornozelos, mãos e
punhos, não sendo necessariamente simétrica. Normalmente ocorre sinovite com início
agudo, que resolve em dias a semanas, sendo autolimitada.

9) Envolvimento Gastrintestinal
O envolvimento gastrintestinal é um achado frequente no Extremo Oriente, com uma
prevalência entre 3 a 25%. Caracteriza-se por ulceração mucosa semelhante à da
doença inflamatória intestinal: cerca de ¾ destas lesões encontram-se no íleon terminal
e cego e as restantes no esófago, estômago e duodeno – Tabela 2. O envolvimento
rectal é raro. Os doentes queixam-se normalmente de vómitos, dor abdominal e diarreia.
Durante os períodos de exacerbação é possível palpar uma massa dolorosa na região
abdominal; em situações mais graves, pode ocorrer perfuração íleo-cecal.

170
DOENÇA DE BEHÇET DOENÇA DE CROHN
ACHADOS Distribuição focal da doença Doença segmentar
ENDOSCÓPICOS Úlceras grandes (>1cm) Envolvimento descontinuado de
Lesões redondas ou ovais perfuradas várias porções do tracto gastrintestinal
Úlceras profundas Lesões difusas longitudinais
Úlceras com margens ligeiras Aspecto calçada
<6 úlceras
BIÓPSIA Vasculite Granulomas
LOCALIZAÇÃO Doença peri-anal rara Doença peri-anal frequente
MANIFESTAÇÕES Lesões genitais Sistema musculoesquelético,
EXTRA-INTESTINAIS Lesões papulo-pustulosas dermatológico, ocular, renal,
Envolvimento neurológico hepatobiliar e pancreático, pulmonar
Tabela 2: Diferenças entre colite a Behçet e doença de Crohn (Adaptado de Chin AB and Kumar AS. Behcet Colitis. Clin
Colon Rectal Surg 2015; 28:99-102).

10) Envolvimento Urológico


As principais complicações urológicas da DB são a epididimite, presente em 20% dos
doentes do sexo masculino, manifestando-se como orquidalgia; a cistite, que pode
ocorrer em contexto de bexiga neurogénica com ou sem envolvimento da medula
espinhal demonstrado; e a disfunção eréctil, que ocorre em 2/3 dos doentes com
envolvimento neurológico.

11) Outras manifestações


O coração raramente é afectado na DB, mas pode atingir entre 5 a 17% dos casos,
surgindo alterações da condução e fibrose endomiocárdica direita, sobretudo em
doentes com trombos intracardíacos.

A glomerulonefrite é rara, podendo manifestar-se de diferentes formas, desde nefropatia


IgA a glomerulonefrite rapidamente progressiva. Raramente estão presentes
imunocomplexos na base do processo patogénico.

A Amiloidose Secundária do tipo AA está descrita em 0,04 – 3% dos doentes, sendo


mais frequente nos homens; está associada a doença de grandes vasos, nefropatia e
artrite. Nestes casos, o prognóstico é mais reservado.

Exames Complementares de Diagnóstico


As alterações laboratoriais são inespecíficas, correspondendo, na maioria dos casos, a
aumento dos reagentes de fase aguda durante a fase inflamatória, como elevação da
velocidade de sedimentação e da proteína C reactiva. Pode haver ainda discreta anemia
inflamatória e neutrofilia relativa, mas sem relação com a actividade da doença. A
imunologia é tipicamente negativa, à excepção do anticorpo anti- Saccharomyces
cerevisae, que pode ser positivo nos doentes com envolvimento gastrintestinal. Em
doentes com trombose, deverão ser excluídas outras causas de trombofilia, embora o
anticorpo anti-cardiolipina possa ser detectado nalgumas situações. O HLA-B51 poderá
ser testado em doentes com manifestações clínicas sugestivas de DB que não
preencham os critérios de diagnóstico, como forma de o suportar.

171
Os exames de imagem poderão identificar as lesões de órgão-alvo já descritas, devendo
ser dirigidos ao tipo de manifestação.

Diagnóstico
O diagnóstico da DB é clínico. De acordo com os International Criteria for Behcet's
Disease, estabelecidos em 2006, são definidos 6 critérios de diagnóstico: úlceras orais
(1 ponto), úlceras genitais (2 pontos), manifestações cutâneas (1 ponto), manifestações
oculares (2 pontos), manifestações vasculares (1 ponto) e teste de Patergia positivo (1
ponto) – se o doente somar ≥3 pontos, o diagnóstico de DB pode ser estabelecido.

Tratamento
A abordagem terapêutica depende do tipo de doente, da gravidade da doença e dos
órgãos afectados. A European League Against Rheumatism (EULAR) actualizou em
2018 as recomendações para o tratamento da DB.

Para o tratamento das úlceras orais e genitais, os corticóides tópicos e o sucralfacto


constituem a primeira linha de tratamento em caso de lesões ligeiras e isoladas. A
colchicina também é utilizada, sobretudo para evitar recidivas. Para lesões graves e
recidivantes, a corticoterapia sistémica, a azatioprina, a talidomida, o interferão-alfa, os
anti-TNF α e o apremilast demonstraram um efeito terapêutico satisfatório. As úlceras
dos membros inferiores deverão ser acompanhadas em conjunto com dermatologia ou
cirurgia vascular.

Para as manifestações oculares a azatioprina poderá ser utilizada como agente de


primeira linha. Nos casos graves, tanto a ciclosporina A, o IFN-α e os anti-TNF α poderão
ser utilizados. Os corticoides sistémicos deverão apenas ser utilizados em conjunto com
a azatioprina ou outro imunossupressor sistémico. Os doentes com uveítes recorrentes
deverão ser tratados com altas doses de corticosteroides, infliximab ou IFN-α. O
acompanhamento destas complicações deverá ocorrer conjuntamente com a
oftalmologia.

As tromboses venosas profundas devem ser tratadas na fase aguda com


corticosteroides e imunossupressor sistémico, como a azatioprina, ciclofosfamida ou
ciclosporina A (mas nível de evidência III). As tromboses venosas refractárias devem
ser tratadas com anti-TNF α; a anticoagulação poderá ser adicionada se o risco de
hemorragia for baixo e forem excluídos aneurismas das artérias pulmonares (nível de
evidência III).

Quanto ao envolvimento arterial, os aneurismas da artéria pulmonar devem ser tratados


com altas doses de corticosteroides e ciclofosfamida; os anti-TNF α podem ser
considerados nos casos refractários. Em doentes com alto risco de hemorragia major, a
embolização deve ser preferível à cirurgia aberta. Para aneurismas da aorta ou
periféricos o tratamento médico com corticoides ou ciclofosfamida é necessário antes
da cirurgia.

Nas lesões gastrintestinais, deve inicialmente ser excluída outra causa possível. Quanto
ao tratamento, os derivados da 5-ASA (sulfassalazina, messalazina), a azatioprina e os
172
corticoides poderão ser usados durante as exacerbações. Em doentes refractários, pode
ser usada a talidomida ou um anti-TNF α.

O envolvimento do SNC é normalmente tratado com corticoterapia sistémica em altas


doses, sendo o desmame lento feito com azatioprina. A ciclosporina A deve ser evitada.
Os anti-TNF α podem ser usados em situações graves ou refractárias.

O envolvimento articular deverá ser tratado inicialmente com colchicina. A monoartrite


aguda pode ser tratada com infiltração de corticoides. Na doença crónica ou recorrente
pode ser usada a azatioprina, IFN- α ou anti-TNF α.

Prognóstico
O prognóstico depende do atingimento de órgão-alvo e da respectiva gravidade. Os
doentes portadores do alelo HLA-B51 apresentam normalmente mais manifestações
sistémicas. Os doentes com neuro-Behçet apresentam mais recidivas da doença. A
presença de sinais piramidais e lesões inflamatórias na RMN-CE no momento de
apresentação da doença, sugerem pior prognóstico.

Dado que a maioria dos fármacos utilizados são imunossupressores e/ou


imunomodeladores, é fundamental uma vigilância clínica apertada nestes doentes, quer
quanto à monitorização de efeitos secundários, quer quanto à prevenção e detecção
precoce de intercorrências infecciosas.

SERVIÇO DE URGÊNCIA: pensar em DB em doentes com úlceras orais e genitais


dolorosas, eritema nodoso ou uveítes (anteriores ou posteriores).
O diagnóstico é clínico.

TAKE HOME MESSAGES


A DB é uma vasculite rara que afecta artérias e veias de diferentes calibres com
mecanismo etiológico ainda não inteiramente esclarecido.
Caracteriza-se sobretudo por úlceras orais e genitais e uveítes, podendo afectar
praticamente todos os sistemas de órgãos; o atingimento do SNC e pulmonar está
associado a pior prognóstico.
O diagnóstico é clínico.
O tratamento deve ser dirigido ao doente e passa por imunomodulação e
imunossupressão.

173
Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3
• Hatemi G et al. EULAR recommendations for the management of Behçet disease. Ann Rheum Dis 2008;
67: 1656-1662.
• Hatemi G et al. 2018 update of the EULAR recommendations for the management of Behçet’s
syndrome. BMJ 2018;77(6):808-18.
• Noel N, et al. Long-Term Outcome of Neuro-Behçet’s Disease. Arthritis & Rheumatology 2014 May. 66
(5) 1306-1314.
• Sakane T, Takeno M, Suzuki N, Inaba G. Behçet's disease. N Engl J Med. 1999 Oct 21. 341(17):1284-
91.
• Zeiden M et al. Behçet’s disease physiopathology: a contemporary review. Autoimmun Highlights 2016
Dec;7(1):4
• Alpsoy E. Behçet’s Disease: A comprehensive review with a focus on epidemiology, etiology and clinical
features, and management of mucocutaneous lesions. Journal of Dermatology 2016; 43: 620-632
• Verity DH et al. Behçet’s Disease: from Hippocrates to the third Millennium. Br J Ophtalmol 2003; 87:
1175-1183
• Chin AB and Kumar AS. Behcet Colitis. Clin Colon Rectal Surg 2015; 28:99-102

174
8.3 ARTERITE DE CÉLULAS GIGANTES

Definição
A Arterite de Células Gigantes (ACG) é uma vasculopatia inflamatória que afecta artérias
de médio e grande calibre, sendo a vasculite sistémica mais comum nos adultos.

Epidemiologia
A ACG é a vasculite mais comum na Europa e América do Norte, sobretudo em
indivíduos acima dos 70 anos. A incidência aumenta com a idade e atinge um pico na
oitava década de vida. É mais comum nos doentes do sexo feminino - duas a três vezes
mais do que no sexo masculino.

Etiologia e Fisiopatogénese
A etiologia da ACG não é totalmente conhecida, embora a evidência científica sustente
a hipótese de interacção entre factores genéticos e ambientais no desenvolvimento da
doença.

Alguns estudos sugerem associação com Mycoplasma pneumoniae, Parvovirus B19,


Chlamydia pneumoniae e Virus humano Parainfluenza tipo 1, pelas concordantes
flutuações de incidência destas infecções e da ACG. Há ainda outros relatos que
sugerem uma distribuição sazonal, com picos de distribuição no final do Inverno e no
Outono em estudos suecos, ou no final da Primavera e início do Verão em Israel.

Uma componente genética tem sido particularmente reportada em doentes com biópsia
compatível com ACG. Vários genes dentro do complexo de histocompatibilidade têm
efeitos independentes na susceptibilidade a ACG: a associação a HLA-DRB1*04,
polimorfismos microssatélites MICA TNF e genes HLA-B. Além disso, uma variante
funcional do gene do factor de crescimento endotelial vascular foi associado a
complicações isquémicas graves em doentes com ACG.

A ACG é uma doença de antigénios com activação de células T locais e macrófagos na


parede dos vasos, com as citocinas pro-inflamatórias a ter um papel importante (Fig.1).
A inflamação da parede arterial e oclusão do vaso por hiperplasia rápida e concêntrica
da íntima leva a complicações isquémicas graves. As células dendríticas localizadas na
fronteira média-adventícia de artérias de grande e médio calibre têm um papel
fundamental no início do processo vasculítico. Estas células produzem quimiocinas e
recrutam e activam localmente as células T. As células T activadas sofrem expansão
clonal e são estimuladas a produzir interferão gama. Isto leva à diferenciação e migração
de macrófagos e à formação de células gigantes.

175
Na adventícia os macrófagos produzem citocinas pro-inflamatórias como IL-1 e IL-6,
enquanto na média e na íntima contribuem para a lesão arterial ao produzir
metaloproteinases e óxido nítrico. Este mecanismo destrutivo da parede arterial está
associado a um mecanismo de reparação que inclui a secreção de factores de
crescimento e de angiogénese, pela infiltração de células mononucleadas e células
gigantes multinucleadas. Estas alterações ultimamente levam à degradação da lâmina
interna elástica e à hiperplasia luminal oclusiva.

Figura 1: Mecanismo patogénico sugerido para a Arterite de Células Gigantes (ACG). As células dendríticas activadas
recrutam e estimulam células T que, por sua vez, libertam interferão gama (IFN ɣ), potente activador dos macrófagos.
Estes macrófagos activados, por sua vez, sintetizam factor de crescimento derivado das plaquetas (PDGF), o que leva a
uma hiperplasia da íntima; produzem também citocinas pró-inflamatórias (IL-1, IL-6), metaloproteinases da matriz
extracelular (MMP) e radicais livres de oxigénio que vão provocar dano na parede do vaso. In Salvarani C et al. Clinical
Features of Polymyalgia Rheumatica and Giant Cell Arteritis. Nat. Rev. Rheumatol. 8, 509–521 (2012).

Manifestações Clínicas
As características clínicas da ACG são essencialmente devidas ao envolvimento das
artérias cranianas.

A cefaleia é a expressão mais frequente desta vasculite. A cefaleia de novo ou


alterações no padrão de uma cefaleia pré-existente é o sintoma mais frequente,
ocorrendo em 70-90% dos doentes. Apresenta tipicamente um início súbito, intenso e
predominantemente temporal, mas pode afectar qualquer região, nomeadamente
occipital, frontal e parietal. A dor é geralmente contínua, nocturna e só responde de
forma parcial aos analgésicos.

Cerca de 40 a 50% dos doentes referem ter claudicação da mandíbula (dor ao


mastigar que melhora quando se interrompe) devida a isquémia do masséter. Apesar

176
de ser altamente específica para ACG, não é patognomónica. Ocasionalmente, a
claudicação intermitente pode afectar a língua ou os músculos envolvidos na deglutição,
levando a necrose da língua ou disfagia, respectivamente.

A hiperestesia do couro cabeludo ocorre em cerca de um terço a metade dos doentes


e é geralmente agravada com o pentear do cabelo. Já a necrose do couro cabeludo
devida ao envolvimento dos ramos das artérias do couro cabeludo é rara (Fig.2 A-D).

Figura 2: A – D: Necrose do couro cabeludo em diferentes fases de evolução (From Lindsey R. Baden.Scalp Necrosis
Associated with Giant-Cell Arteritis, 2016, N Engl J Med 374;6). E: Angio-RMN que revela o arco aórtico e respectivos
ramos; as setas indicam estenose das artérias axilares e sub-clávias; as flechas revelam oclusão de longos segmentos
das artérias braquiais (Image courtesy of Dr. F. Chan, Department of Radiology, Stanford University. From Weyand C
and Goronzy JJ. Giant-Cell Arteritis and Polymyalgia Rheumatica. NEJM 2014; 371: 50-7.)

Os sintomas constitucionais como febre, anorexia, perda ponderal ou astenia, são


frequentes e mesmo até acentuados em um a dois terços dos doentes com ACG. A
febre é habitualmente baixa, mas pode chegar aos 39 - 40ºC em até 15% dos doentes,
sendo muitas vezes o sintoma inicial. Nalguns casos, podem mesmo ser a única
manifestação da doença.

A ACG é uma das principais causas de perda irreversível da visão. A incidência de


complicações visuais varia de 14 a 70%. A principal manifestação oftalmológica é a
neuropatia óptica isquémica anterior (NOIA) – é causada por interrupção do fluxo
sanguíneo nas artérias posteriores ciliares para o nervo óptico. É descrita como perda
de visão súbita e indolor. A perda de visão pode apresentar-se como “nevoeiro” em todo
ou parte do campo visual e evoluir para cegueira total em 24 a 48h. A perda unilateral
de visão pode passar inicialmente desapercebida, até o olho não afectado ser
acidentalmente coberto. Um olho é afectado primeiro, mas o envolvimento do olho
contralateral em doentes não tratados pode ocorrer entre 1 a 10 dias após o evento
inicial. Na fase aguda da NOIA, o disco óptico é pálido e edemaciado, mas a retina é
quase normal e posteriormente surge a atrofia do nervo óptico. Mais raramente, a perda
de visão é causada por oclusão da artéria central da retina, neuropatia isquémica
retrobulbar ou enfarte occipital por AVC envolvendo o território vertebro- basilar.

177
A amaurose fugaz tem sido reportada em 2 a 30% dos doentes com ACG. Geralmente
é unilateral e costuma preceder a perda visual. A diplopia pode ser outra manifestação
por isquémia dos nervos oculomotores ou dos músculos extraoculares.

O envolvimento de grandes vasos pode ocorrer em cerca de 20% dos doentes,


manifestando-se por claudicação dos membros superiores ou sopros arteriais. Podem
ser detectados aneurismas da aorta torácica e abdominal e estenose de grandes vasos
(Fig.2-E). Estas manifestações só surgem habitualmente 3 a 4 anos após o início da
doença.

Cerca de 50% dos doentes com ACG manifestam simultaneamente semiologia


compatível com Polimialgia Reumática (PMR), antes ou depois do diagnóstico. Há
quem as considere espectros de uma mesma patologia. A PMR provoca dor e rigidez
das cadeias musculares proximais, ao nível das cinturas escapulo-umeral e pélvica, de
forma simétrica, com ritmo tipicamente inflamatório. Os doentes revelam dificuldade em
elevar os membros superiores para tarefas quotidianas como pentear-se ou alcançar
prateleiras mais altas, e em realizar flexão da coxa sobre a anca, apresentando, por
exemplo, grande dificuldade e cansaço para subir escadas ou levantar-se de uma
cadeira sem apoio. A manobra de Gowers é habitualmente positiva.

Figura 3: Distribuição típica da dor nos doentes com polimialgia reumática. (In Salvarani C et al. Clinical Features of
Polymyalgia Rheumatica and Giant Cell Arteritis. Nat. Rev. Rheumatol. 8, 509–521 (2012)).

Diagnóstico
Os critérios para a classificação de ACG foram desenvolvidos pelo Colégio Americano
de Reumatologia (American College of Rheumatology, ACR) em 1990, para diferenciar
a ACG de outras vasculites. Não são, portanto, úteis para diagnosticar ACG em casos
em que é necessário realizar o diagnóstico diferencial com outras patologias.

A biopsia da artéria temporal permanece o gold standard para o diagnóstico, embora


em cerca de 10-20% dos doentes a biópsia seja negativa. Para minimizar falsos
negativos pela existência de lesões segmentares, o comprimento da amostra deve ser,
pelo menos, de 1.5-3 cm. Quando possível, a biópsia deve ser realizada antes de iniciar
a terapêutica, embora o resultado histológico possa revelar arterite até mais de duas
semanas depois de iniciada terapêutica com corticóides.

178
CRITÉRIOS CLASSIFICAÇÃO ACR
1. Idade ≥50 anos;

2. Cefaleia de novo

3. Dor à palpação da artéria temporal ou pulso diminuído, não relacionada


com aterosclerose de artérias cervicais

4. Velocidade de sedimentação (VS) elevada: VS≥50 mm/1ªh

5. Biópsia de artéria temporal: compatível com vasculite, caracterizada por


infiltração por células mononucleares ou inflamação granulomatosa,
geralmente com células gigantes multinucleadas

DIAGNÓSTICO DE ACG É REALIZADO SE ESTIVEREM PRESENTES PELO MENOS 3


DESTES CRITÉRIOS

Tabela 1: Critérios de Classificação do Colégio Americano de Reumatologia de 19901

Exames Complementares de Diagnóstico

Da avaliação laboratorial destaca-se a elevação das proteínas de fase aguda,


nomeadamente da velocidade de sedimentação (VS), que pode atingir valores muito
elevados, embora esta não seja uma condição necessária para o diagnóstico (Tabela
1). Estima-se que em cerca de 25% dos pacientes com biópsia positiva, a VS esteja
normal antes do início da corticoterapia. Outros marcadores de fase aguda, como a
proteína C reativa (PCR), estão também habitualmente elevados, podendo ser úteis no
diagnóstico e monitorização. A anemia normocítica e normocrómica é também um
achado frequente, bem como a trombocitose. Não há auto-anticorpos patognomónicos
para esta doença, pelo que o seu doseamento só é útil para excluir outras patologias.

Os exames de imagem têm vindo a ganhar importância significativa na avaliação do


grau de envolvimento da vasculite ou mesmo no estabelecimento do diagnóstico. Apesar
de a biópsia da artéria temporal ser positiva na grande maioria dos doentes com
sintomas neurológicos centrais, é negativa em cerca de metade dos que apresentam
envolvimento predominantemente extracraniano. Nestes casos, os exames
imagiológicos dos vasos envolvidos (como as artérias subclávia, axilar e vertebral)
podem permitir estabelecer o diagnóstico, sendo também essenciais na detecção e
monitorização do envolvimento aórtico. A Angio-Ressonância Magnética (Angio-RM) ou
a Angio Tomografia Computorizada (Angio-TC) são os exames de eleição (Fig.2-E).

Tratamento
A corticoterapia é altamente eficaz na supressão dos componentes sistémico e vascular
da ACG. Deve ser iniciada rapidamente, assim que efetuado o diagnóstico. Em quase
todos os doentes induz um alívio sintomático tão rápido, que a resposta à corticoterapia
tem sido considerada como factor diagnóstico. Os sintomas da doença relacionados
com inflamação sistémica e PMR habitualmente respondem em 48 – 96 horas. Já as
manifestações provocadas pela diminuição do fluxo sanguíneo, tais como claudicação
da mandíbula, das extremidades ou complicações visuais, podem ter uma

179
resposta mais tardia ou não responder de todo, pois a oclusão do fluxo sanguíneo pode
ser irreversível. Ainda assim, os corticóides podem diminuir o edema tecidular e por isso
melhorar o fluxo sanguíneo, com recuperação de alguma função. Quase todos os
pacientes respondem a doses de 40 – 60 mg/dia (habitualmente 1 mg/Kg/dia) de
prednisolona (ou equivalente). Doses mais altas são por vezes iniciadas em pacientes
com perda de visão. Após resolução de todos os sintomas reversíveis (habitualmente
cerca de um mês após início da terapêutica) e quando houver evidência de diminuição
da inflamação sistémica (pela monitorização da descida da PCR e/ou VS em pelo menos
50%), deve-se iniciar a descida lenta e gradual da dose de prednisolona.

Por vezes, há recorrência dos sintomas e elevação das proteínas de fase aguda quando
se está a reduzir a dose de corticóides. Habitualmente estas exacerbações da doença
requerem apenas pequenos aumentos na dose. Estas exacerbações habitualmente
manifestam-se com sintomas de PMR ou sintomas constitucionais e não tanto como
fenómenos de vasculite. Uma vez iniciada uma corticoterapia eficaz, o risco de perda de
visão é baixo. Quando temos isoladamente sintomas de PMR, as doses de
corticoterapia necessárias são mais baixas, habitualmente 10-20 mg/dia de
prednisolona.

A ACG não é uma doença auto-limitada, podendo manter a sua actividade latente
mesmo após 2 anos de corticoterapia. Alguns pacientes requerem mesmo corticoterapia
de baixa dose de longa duração. O diagnóstico de aneurisma/dissecção da aorta, por
vezes uma década após o diagnóstico inicial, demonstra bem o carácter crónico desta
doença, podendo justificar terapêutica de longa duração para controlar a inflamação.
Quase todos os fármacos imunossupressores (metotrexato, aziotioprina e mesmo anti-
TNF) foram considerados como possíveis opções terapêuticas com o intuito de poupar
corticóides, mas até agora com pouca evidência de que possam substituir a sua
actividade anti-inflamatória. Estudos recentes com o anticorpo anti-IL6 Tocilizumab
mostraram que este fármaco, quando adicionado à terapêutica de base com corticóides,
pode ter benefício na indução e manutenção de remissão, ajudando ainda na redução
de dose de corticóides. Têm ainda sido publicados estudos promissores com abatacept
e ustekinumab, embora ainda seja precoce a recomendação formal de uso nesta
patologia.

Prognóstico
As recorrências na ACG são comuns, mesmo sob terapêutica com corticóides. Os flares
de doença são associados a aumento dos parâmetros de fase aguda e sintomas
característicos da doença. No entanto, não há associação entre neoplasia prévia e ACG,
nem aumento de mortalidade por neoplasia, e doentes com ACG não têm risco
aumentado de neoplasia após diagnóstico.

ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA: pensar em ACG em doente com cefaleia de novo,
claudicação da mandíbula ou hiperestesia do couro cabeludo. Não esquecer a
amaurose fugaz e as alterações da visão pelo seu potencial de dano permanente.
Pode começar por pedir-se VS.

180
TAKE HOME MESSAGES
A ACG é uma vasculite envolvendo sobretudo as artérias de médio e grande
calibre, especialmente os ramos da aorta proximal.
As características clínicas são sobretudo devido ao envolvimento das artérias
cranianas; a mais frequente é a cefaleia.
A perda de visão permanente é a complicação mais temida.
A biópsia da artéria temporal é o gold standard para o diagnóstico; pode iniciar-se
terapêutica mesmo antes da biópsia.
O tratamento começa com corticóides (40-60 mg/dia).

Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3
• Giant Cell Arteritis, S.S.L. Chew, N.M. Kerr, H.V. Danesh-Meyer, Journal of Clinical Neuroscience
16 (2009) 1263–1268
• Scalp Necrosis Associated with Giant-Cell Arteritis, Lindsey R. Baden, 2016, N Engl J Med 374;6
• Update on the management of giant cell arteritis, Jane Roberts e Alison Clifford, Therapeutic
Advances on Chronic Diseases, 2017
• Salvarani C et al. Clinical Features of Polymyalgia Rheumatica and Giant Cell Arteritis. Nat. Rev.
Rheumatol. 8, 509–521 (2012)
• Weyand C and Goronzy JJ. Giant-Cell Arteritis and Polymyalgia Rheumatica. NEJM 2014; 371:
50-7

181
9. DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL

Definição
A Doença Inflamatória Intestinal (DII) é um grupo de doenças inflamatórias idiopáticas
do intestino. Distinguem-se a Doença de Crohn (DC) e a Colite Ulcerosa (CU) que têm
algumas características em comum.

Epidemiologia
Em 2012 uma meta-análise (Molodecky et al) com dados da Europa, América do Norte
e Ásia revelou um aumento da incidência da DII (Tabela 1). Apesar de haver poucos
dados dos países em vias de desenvolvimento, estima-se que a incidência e prevalência
da DII estejam a aumentar em todas as partes do mundo, o que a torna numa doença
emergente.
INCIDÊNCIA MÁXIMA ANUAL PREVALÊNCIA MÁXIMA ANUAL
(POR 100.000 PESSOAS/ANO) (POR 100.000 PESSOAS/ANO)
CU DC CU DC
Europa 24.3 12.7 505 322
Sudeste Asiático 6.3 5.0 114 29
América do Norte 19.2 20.2 249 319
Austrália 11.2 17.4 145 155
Tabela 1: Prevalência e Incidência da Doença Inflamatória a nível mundial. CU – Colite Ulcerosa, DC – Doença de Crohn.
From Molodecky NA et al. Increasing incidence and prevalence of the inflammatory bowel disease with time, based on
systematic review. Gastroenterology 2012;142:46-54.e42quiz e30.

Verificou-se que, quando os indivíduos migram para países desenvolvidos antes da


adolescência, os que anteriormente pertenciam a populações com baixa incidência de
DII, passam a apresentar incidência mais elevada. Este facto está sobretudo patente na
primeira geração destas famílias a nascer em países de elevada incidência. Uma das
hipóteses que explica esta variação é a “hipótese higiénica”: as pessoas que na infância
estão menos expostas a infecções ou a melhores condições sanitárias não têm contacto
com “potenciais” organismos que promovem o desenvolvimento das células T
reguladoras, não desenvolvendo “repertório imunológico” suficiente. Estes indivíduos
apresentam elevada incidência de doenças auto-imunes, incluindo a DII. Outra hipótese
para a emergência de DII nos países em vias de desenvolvimento inclui as alterações
ocidentais importadas para a dieta e estilo de vida, incluindo a medicação e vacinação
realizadas desde a infância. Dado que as formas de apresentação da doença podem
variar consoante o país de origem, o diagnóstico diferencial de tuberculose é importante
nos doentes provenientes de países em vias de desenvolvimento.

182
O pico de incidência da DC é bimodal: o primeiro pico entre os 15 – 30 anos, o segundo
entre os 60 - 70 anos, embora se verifique uma diminuição da incidência ao longo da
idade. A incidência da CU é elevada, também com um padrão bimodal, apresentando
um pico entre os 15-25 anos e outro entre os 55-65 anos, mas a distribuição é
semelhante entre a 3ª e a 7ª década de vida. Quanto ao género, na DC há um ligeiro
predomínio da doença no sexo feminino, embora a prevalência na idade pediátrica seja
superior no sexo masculino. Na CU, a distribuição é semelhante em ambos os sexos.

Etiologia e Fisiopatogénese
A patogénese da DII e das suas diferentes apresentações fenotípicas, DC e UC, não
está totalmente esclarecida. No entanto, sabe-se que a inflamação resulta da interacção
de quatro factores: genéticos, sujeitos a alterações epigenéticas; ambientais, como
alteração dos hábitos alimentares e estilos de vida, com repercussão na flora intestinal;
o próprio microbioma intestinal; e a desregulação da imunidade intestinal. Alguns
estudos genéticos sustentam a hipótese de haver formas familiares e esporádicas de
DII, cuja hereditariedade pode ser monogénica ou poligénica, e que envolve diferentes
mecanismos biológicos que afectam a imunidade inata, a imunidade adaptativa, o stress
do retículo endoplasmático e a autofagia, bem como mecanismos metabólicos que
regulam a homeostasia celular e a própria inflamação. Uma forma esquemática de
explicar as alterações da imunidade intestinal está explicada na Figura 1.

Figura 1: Sistema Imunitário Intestinal. A – Num indivíduo saudável as células de Goblet segregam uma camada de muco
que limita a exposição epitelial às bactérias. A secreção de péptidos anti-microbianos e imunoglobulina A promovem
protecção adicional. Este microbioma inato é detectado pelas células epiteliais, células dendríticas e macrófagos e o
reconhecimento é mediado por toll-like receptors. As células dendríticas vão apresentar estes antigénios aos linfócitos T
CD4+ näives em órgãos linfóides secundários, que por sua vez, se vão diferenciar em linfócitos CD4+ com diferentes
perfis na produção de citocinas. B – Numa pessoa saudável (à esquerda) a lâmina própria contém diferentes tipos de
células imunitárias e citocinas, que incluem mediadores inflamatórios e anti-

183
inflamatórios. A homeostasia é assegurada pelo equilíbrio entre linfócitos T reguladores (Treg) e linfócitos T efectores
(Th1, Th2 e Th17). Nas pessoas com doença inflamatória intestinal (DII) (à direita) vários eventos contribuem para a
rotura da membrana mucosa, desregulação das junções epiteliais, aumento da permeabilidade intestinal e aumento da
aderência bacteriana às células epiteliais. Na DII as células inatas produzem anti-TNF alfa, interleucina-1- beta,
interleucina-12, interleucina-6 e quimocinas. Há uma expansão da lâmina própria, com aumento das células T CD4+, que
segregam mais interleucinas e quimocinas, que por sua vez, provocam o recrutamento de mais leucócitos e dando assim
origem a um ciclo de inflamação. Estas citocinas pró-inflamatórias são actualmente o alvo das novas terapêuticas para
a DII (a vermelho).

Manifestações Clínicas
As duas formas de DII distinguem-se pela extensão do tracto gastrointestinal afectada:
a DC afecta áreas proximais ao cólon e região perianal, provoca fístulas, granulomas e
atinge toda a espessura da parede intestinal. Na DC os granulomas podem estar
presentes em até 50% dos doentes e as fístulas em até 25%. A colite ulcerosa atinge
tipicamente o cólon, com lesão difusa de atingimento superficial, associada a
hemorragia e diarreia frequente, tenesmo e dor abdominal.

Semiologia

A DII é uma doença crónica, mas de carácter intermitente. Os sintomas podem variar de
ligeiros a graves, durante as recidivas, mas podem desaparecer ou regredir durante os
períodos de remissão. De uma forma geral, os sintomas dependem também do
segmento do tracto GI afectado.

Os sintomas apresentados pelos doentes podem estar directamente relacionados com


as alterações inflamatórias do tracto GI, podem ser sintomas gerais e inespecíficos, ou
podem tratar-se de manifestações extra-intestinais.

As manifestações clínicas relacionadas com a inflamação GI incluem a diarreia (pode


acompanhar-se de muco ou sangue, diarreia nocturna, incontinência fecal), obstipação
(pode ser o primeiro sintoma em doentes com DC limitada ao recto – proctite; pode
resultar de obstrução intestinal); dor ou rectorragia associada a movimentos intestinais,
urgência defecatória, tenesmo, cólica abdominal (na DC é frequente a localização no
quadrante inferior direito e região peri-umbilical; na CU a dor pode ser moderada a grave
e no quadrante inferior esquerdo) e náuseas ou vómitos (mais frequente na DC).

Os sintomas gerais incluem a febre, anorexia não selectiva, perda ponderal, cansaço,
hipersudorese nocturna, atraso de crescimento nas crianças e amenorreia primária.

As manifestações extra-intestinais incluem alterações músculo-esqueléticas (artropatia


axial ou periférica), cutâneas (eritema nodoso, pioderma gangrenoso), oftalmológicas
(esclerite, episclerite ou uveíte) e hepato-biliares (colangite esclerosante primária)
(Fig.3).

Complicações intestinais
O envolvimento gastrintestinal proximal ocorre sobretudo em crianças e em adultos de
grupos étnicos particulares (afro-americanos, etíopes); no primeiro grupo a endoscopia
digestiva alta é feita por rotina no estudo inicial da doença, pelo que esta diferença

184
pode apenas assentar na abordagem diagnóstica realizada nas diferentes faixas etárias.

A hemorragia caracteriza-se por sangramento profuso de úlceras e ocorre sobretudo na


CU; na DC a hemorragia maciça está sobretudo associada a ulceração do íleo e não do
cólon. Será pertinente referir que cerca de 5-10% dos indivíduos com DC apresentam
ulceração do estômago ou do duodeno.

A perfuração intestinal está associada à DC, embora possa aparecer nas duas doenças
em casos de megacólon. Os abcessos intra-abdominais estão também relacionados
com a DC.

A estenose e a obstrução podem estar relacionadas com a inflamação e edema


intestinal, ou com processos de fibrose crónica. Na DC a estenose inflamatória pode
melhorar com medicação, embora a fibrose possa necessitar de tratamento
endoscópico ou abordagem cirúrgica para evitar a obstrução. Na CU a estenose do
cólon é considerada maligna até prova em contrário.

As fístulas e o atingimento perineal são característicos da DC. O tratamento cirúrgico é


necessário nos casos que não respondem a tratamento médico ou quando se formam
abcessos; há um risco elevado de recidiva. As fístulas para o tracto urinário ou para a
vagina podem ocorrer e provocar pneumatúria, fecalúria ou permitir a passagem de ar
da vagina. Estas fístulas provocam com frequência infecções do tracto urinário e
ginecológicas.

O megacólon tóxico é uma complicação rara de colite, grave, que obriga a terapêutica
médica agressiva e, se não houver melhoria em 24 horas, intervenção cirúrgica urgente;
é mais frequente na CU (Fig.2).

Figura 2: Megacólon tóxico. A – imagem em radiograma abdominal (by Sinead Culleton); B – imagem intra-operatória; C
– peça operatória revelando dilatação focal maciça do cólon com numerosos pseudopolipos e mucosa hemorrágica. B e
C from: Ulcerative colitis. PathologyOutlines.com website. http://www.pathologyoutlines.com/topic/colonuc.html.
Accessed April 11th, 2017.

Nos doentes com CU há um risco aumentado de neoplasia do cólon após os 8 anos de


diagnóstico da doença, sobretudo nos casos em que o controlo da actividade
inflamatória não está optimizado. O risco na DC é semelhante nos casos em que há
uma grande área de cólon afectada, quando a doença é de longa evolução, com início
em idade precoce e com história familiar de cancro colo-rectal. A colangite esclerosante
primária também está associada a um aumento do risco de colangiocarcinoma e cancro
colo-rectal nos doentes com CU. Há também um aumento do risco de adenocarcinoma
do delgado na DC, embora seja raro.

185
Complicações extra-intestinais
As complicações extra-intestinais devem ser distinguidas das manifestações extra-
intestinais e devem ser relacionadas com a doença ou com os fármacos usados para
tratar a DII – exemplo: artropatia fármaco-induzida (corticóides, biológicos),
complicações oculares (glaucoma ou catarata induzida por corticóides), complicações
hepato-biliares (litíase biliar, esteatose hepática); complicações renais (nefrite tubulo-
intersticial fármaco-induzida); anemia (deficiência em ferro ou vitamina B12, citopénia
induzida por tiopurinas); complicações ósseas (osteoporose, fracturas);
tromboembolismo venoso; alterações do humor e ansiedade. Afectam cerca de 25% dos
doentes com DII e algumas podem anteceder o seu diagnóstico.

Figura 3: Fenótipo da Doença de Crohn. A – Classificação de Montreal (classificação por idade: A1 <16 anos, A2 17-40
anos, A3>40 anos); B – Principais manifestações extra-intestinais e doenças auto-imunes associadas. From Baumgart
D. Crohn’s Disease. Lancet 2012: 380 (9853): 1590-1605.

Diagnóstico
O diagnóstico da DII no adulto é estabelecido com base numa anamnese e exame
objectivo rigorosos, bem como no resultado de exames complementares de diagnóstico
(Figs. 4 e 5).

Na anamnese é importante questionar o doente sobre a semiologia anteriormente


descrita, a sua duração e evolução ao longo do tempo, bem como a história clínica
prévia: patologia médica conhecida, história de tuberculose, viagens recentes,
medicação habitual, antecedentes familiares e hábitos tabágicos.

O exame objectivo deve considerar os aspectos gerais, a palpação abdominal, a


avaliação da região perianal e a inspecção das áreas extra-intestinais potencialmente
afectadas (olho, cavidade oral, pele, articulações).

186
Exames laboratoriais
A avaliação laboratorial das fezes deve incluir a pesquisa de Clostridium dificille,
pesquisa de sangue oculto, doseamento de lactoferrina e da alfa-1-antitripsina (valor
preditivo negativo para inflamação intestinal) e da calprotectina (avalia actividade DII).

O estudo analítico deve incluir o hemograma; outros parâmetros incluem: velocidade de


sedimentação, proteína C reactiva, orosomucóide (relacionam-se com actividade
inflamatória); electrólitos, albumina, ferritina, cálcio, magnésio e vitamina B12 (podem
indicar défices de absorção); enzimas hepáticas e marcadores de função hepática
(bilirrubina, INR7, albumina). As serologias: VIH e eventuais infecções oportunistas
associadas, VHB, VHC e VZV. A imunologia deve incluir: p-ANCA e ASCA nos casos
em que não há classificação da DII: pANCA+ e ASCA- é sugestivo de CU, pANCA- e
ASCA+ é sugestivo de DC (o pANCA pode ser positivo na DC se houver atingimento do
cólon; o ASCA é mais específico para a DC; o ASCA tem menor sensibilidade quando o
diagnóstico diferencial é feito com tuberculose intestinal); anticorpos para doença
celíaca apenas se não houver manifestações típicas de DII (fístulas, doença perianal e
sangue nas fezes).

Recomenda-se o doseamento da TPMT antes de iniciar terapêutica com purinas, dada


a taxa de mutações na população ser próxima de 0,3% (dose deve ser ajustada).
Nalgumas situações, pode ser necessário dosear os fármacos biológicos em circulação
para aferir a adesão à terapêutica ou necessidade de ajuste de doses do fármaco. A
tuberculose deve ser excluída: o teste de Mantoux e o IGRA devem ser solicitados,
embora este último possa provocar falsos negativos nos doentes submetidos
previamente a metotrexato ou falsos positivos nos doentes com tuberculose
anteriormente tratada.

Imagiologia e Endoscopia
O radiograma abdominal pode contribuir para perceber as situações de colite e a sua
extensão. Permite também detectar situações de obstrução e perfuração, bem como
excluir megacólon tóxico. O radiograma abdominal com enema baritado não está
recomendado nas situações grave, mas pode ser útil para identificar fístulas e avaliar
grosseiramente a anatomia do cólon numa situação pré-operatória. O radiograma
torácico pode contribuir para excluir tuberculose e pesquisar áreas de ar livre sob o
diafragma nos casos de perfuração.

A sigmoidoscopia e a colonoscopia têm múltiplas funções: permitem visualização directa


de úlceras, inflamação, hemorragia e estenoses; realização de biópsias do cólon e íleo
terminal; e vigilância de displasia. A colonoscopia deve ser ponderada nos casos graves
ou fulminantes, dado o risco de perfuração.

A endoscopia digestiva alta deve ser realizada na presença de sintomas do tracto GI


superior. A cápsula endoscópica pode ser útil nos doentes com suspeita de DC que

7
INR: international normalized ration; VIH: virus da imunodeficiência humana; VHB: vírus da hepatite B; VHC: vírus da
hepatite C; VZV: vírus Varicella Zoster; p-ANCA: perinuclear antineutrophil cytoplasmic anibody; ASCA: anti-
Saccharomyces cerevisiae; TPMT: tiopurina metil transferase; IGRA: interferon gamma release assay; CMV:
citomegalovirus.

187
tiveram estudo prévio negativo, permitindo a avaliação de todo o intestino delgado. A
enteroscopia de duplo lúmen permite a realização de biópsias e tratamento de
estenoses na DC. Outros exames endoscópicos incluem a cromoendoscopia, sobretudo
para a vigilância de neoplasias, mas a relação custo-benefício está ainda a ser
estudada.

A CPRM8 deve ser solicitada se colestase ou suspeita de colangite esclerosante


primária. TC, ecografia e RMN: podem ser úteis para avaliar a extensão da doença; a
RMN é considerado o método gold standard para avaliar fístulas perianais na DC. A
ecoendoscopia pode ser utilizada, mas a acuidade está dependente do operador.

Figura 4: Doença de Crohn. A - Imagem de Tc revelando inflamação do íleo em doente com Doença de Crohn; B –
Imagem de Colonoscopia com úlcera de grandes dimensões e inflamação do cólon descendente, na Doença de Crohn;
C – Peça operatória extraída de doente com Doença de Crohn com atingimento íleo-cólico. A e C from: Wilkins T et al.
Diagnosis and Management of Crohn’s Disease. Am Fam Physician. 2011 Dec 15;84(12):1365-1375. B from:
http://emedicine.medscape.com/article/172940-overview acessed on 11/4/2017.

Figura 5: Colite Ulcerosa. A – Enema baritado com duplo contraste revelando colite total
(http://emedicine.medscape.com/article/183084-overview acessed on 11/4/2017); B – Colonoscopia com ileoscopia
revelando extensa inflamação e ulceração da mucosa (©2000-2006 gastrointestinalatlas.com); C – peça operatória com
lesão difusa e contínua do recto ao cólon (http://emedicine.medscape.com/article/172940-overview em 11/4/2017)

Anatomia Patológica
As biópsias obtidas nos exames endoscópicos devem ser avaliadas com enfâse nalguns
aspectos particulares: a distorção da arquitectura das criptas; o aumento do espaço sub-
criptal e a plasmocitose basal associados a colite crónica, atípicos numa colite infecciosa
aguda; os granulomas não caseosos são sugestivos de DC – mas granulomas caseosos
grandes ou necrosados devem fazer suspeitar de tuberculose, sobretudo em zonas
endémicas; a identificação das áreas alteradas em zonas globalmente preservadas
permite estadiar toda a extensão da doença; pesquisa de CMV nos doentes sob
imunossupressão; pesquisa de displasia ou massas atípicas; identificação de colite
linfocítica ou colagenosa em doentes com cólon aparentemente

8
CPRM: colangiopancreatografia por ressonância magnética; Tc: tomografia computorizada; RMN: ressonância
magnética nuclear.

188
normal – este diagnóstico pode coexistir no delgado na DC e deve ser pesquisado em
doentes com diarreia (Fig.6). As principais diferenças clínicas e histológicas entre as
duas DII estão apresentadas na Tabela 2.

Figura 6: A – Colite Ulcerosa crónica grave e activa, revelando ulceração da mucosa com aparência viliforme da mucosa
adjacente em regeneração e distorção da arquitectura estrutural. A lâmina própria também revela agregados linfóides
basais. (From Patil D et al. Inflammatory Disorders of the Large Intestine – Chapter 17. Odze and Goldblum Surgical
Pathology of the GI Tract. Clinical Gate 2015). B - Doença de Crohn, em que se observa granuloma sem destruição das
criptas (in https://librepathology.org/wiki/Granuloma em 12/4/2017). C – Doença de Crohn, com infiltrado inflamatório a
invadir parede de vaso sanguíneo.Imagens com coloração em Hematoxicilina-Eosina. (1996 Johns Hopkins School of
Medicine.)

Diagnóstico
O diagnóstico de DC e CU é estabelecido com base nos dados da história clínica, exame
objectivo, resultados analíticos, serológicos, radiológicos, endoscópicos e histológicos.
As principais diferenças entre elas estão apresentadas na Tabela 2.

CARACTERÍSTICAS COLITE ULCEROSA DOENÇA DE CROHN


Diarreia com dor abdominal e
Diarreia frequente em pequena
subnutrição
quantidade, com urgência
CLÍNICAS Massa abdominal
defecatória
Lesões peri-anais
Hematoquézias
Adenopatias palpáveis
Lesões assimétricas e transmurais
Inflamação do cólon superficial e
descontínuas/segmentares
difusa
Envolvimento sobretudo do íleo e
Envolvimento do recto, mas
cólon ascendente, poupa o recto
punctiforme
Aparência em pedra de calçada
ENDOSCÓPICAS E Úlceras e erosões planas
Úlceras longitudinais
RADIOLÓGICAS Hemorragia espontânea
Fissuras profundas e trajectos
Pseudopolipos
fistulosos
Estenoses
Estenoses
Abcessos
Abcessos
Aumento da gordura peri-rectal Aumento da gordura mesentérica
Inflamação difusa da mucosa e Inflamação granulosa (sem ter de
submucosa haver rotura de criptas)
HISTOPATOLOGIA
Distorção da arquitectura das Fissuras ou úlceras aftosas;
criptas com granulomas de mucina inflamação transmural
MARCADORES
ANCA+ ASCA+
SEROLÓGICOS
Tabela 2: Diferenças entre Colite Ulcerosa e Doença de Crohn.

189
Diagnóstico Diferencial
O diagnóstico diferencial deve ter em conta outras situações infecciosas e inflamatórias,
sintetizadas na Tabela 3.

COLITE ULCEROSA DOENÇA DE CROHN


Colite Aguda Auto-Limitada Tuberculose Intestinal
Colite por amebíase Doença de Behçet
Schistosomíase Colite Ulcerosa
PRINCIPAIS
Doença de Crohn Enteropatia a AINEs
DIAGNÓSTICOS
Cancro do cólon Síndrome do Cólon Irritável
DIFERENCIAIS
Síndrome do Cólon Irritável Doença Celíaca
Tuberculose Intestinal
Enteropatia a AINEs
Colite infecciosa, colite isquémica, Colite isquémica, colite
colite rádica, vasculite IgA (púrpura microscópica, colite rádica,
OUTROS
de Henoch-Schönlein), colite diverticulite, enteropatia a AINEs,
DIAGNÓSTICOS
linfocítica ou colagenosa, doença enterite eosinofílica, linfoma
de Behçet, colite associada ao HIV intestinal, cancro do cólon
Tabela 3: Diagnóstico diferencial na Colite Ulcerosa e na Doença de Crohn.

Tratamento
A abordagem ao doente com DII requer uma abordagem multidisciplinar e um
esclarecimento ao doente quanto a efeitos da medicação a longo prazo, bem como a
necessidade do cumprimento da terapêutica. O tratamento deve ser baseado no tipo de
DII, a sua localização e gravidade, as comorbilidade e complicações, a resposta obtida
no tratamento dos sintomas, a tolerância à medicação, o acesso do doente a opções de
métodos de diagnóstico e tratamento e a história prévia de recidivas. O objectivo do
tratamento deverá ser a optimização e manutenção da qualidade de vida do doente,
tratar a doença activa (eliminar sintomas, minimizar efeitos secundários, reduzir a
inflamação intestinal e promover a cicatrização da mucosa), manter a remissão sem
recorrer a corticoterapia, evitar complicações, hospitalização ou cirurgia e manter um
bom estado nutricional. Os índices de actividade de doença usados no passado têm-se
revelado ineficazes para prever a remissão endoscópica, pelo que a PCR e calprotectina
fecal têm sido usadas para detectar DII activa.

A dieta deve ser adaptada e nos períodos de doença activa deve ser pobre em fibras. A
cessação tabágica deve ser encorajada (embora esteja associada a agravamento da
doença na CU).

Do ponto de vista farmacológico, várias hipóteses podem ser equacionadas. Os


aminosalicilatos, agentes anti-inflamatórios, que incluem o ácido 5-amicosalicilico (5-
ASA) e a messalazina, podem ser usados em preparação oral (sulfassalazina,
messalazina) ou rectal (messalazina), quer no tratamento das recidivas, quer na fase de
manutenção. As doses devem ser ajustadas de acordo com a fase da doença. Os
doentes sob sulfassalazina deverão fazer suplementação com acido fólico.

Os corticóides permitem um rápido alívio e supressão dos sintomas, induzindo remissão


em doentes com primeira manifestação ou exacerbação num espaço de 12 meses. No
entanto, não são usados como terapia de manutenção, dado os efeitos

190
secundários da utilização prolongada. A via de administração pode ser endovenosa
(metilprednisolona, hidrocortisona), oral (prednisona, prednisolona, budesonido,
dexametasona) ou rectal (enemas, espumas ou supositórios). Devem ser administrados
em conjunto com suplementação de cálcio e vitamina D (embora os estudos sejam
controversos), devendo ser monitorizada a tensão arterial e a glicémia. O budesonido
(rectal) pode ser uma opção em doentes com atingimento distal que não toleram
corticóides.

As tiopurinas, azatioprina ou mercaptopurina, são eficazes como terapêutica de


manutenção, mas não para induzir a remissão, embora possam ser usadas como
adjuvante dos corticóides neste último caso. Devem ser evitadas em doentes com
deficiência em TPMT. Estão associadas a baixa taxa de infecções, mas a sua utilização
deve ser cautelosa nos idosos.

Os inibidores da calcineurina, como a ciclosporina e o tacrolimus, têm utilização limitada


apenas aos casos de colite grave refractária aos corticóides; a concentração de
tacrolimus deve ser doseada no sangue e as doses ajustadas. Devem ser
descontinuados ao fim de 6 meses, dado o grau de nefrotoxicidade.

O metotrexato pode ser usado na DC, na indução e manutenção da remissão. Só deve


ser utilizado para manutenção nos doentes com contra-indicação para as tiopurinas;
deve ser evitado em mulheres em idade fértil que desejem engravidar. É uma boa opção
nos doentes sob anti-TNF alfa, dado reduzir a imunogenicidade. Deve ser realizada
suplementação com ácido fólico. A hepatotoxicidade é uma complicação frequente, mas
é habitualmente ligeira e reversível.

Os agentes anti-TNF alfa podem constituir a primeira linha de tratamento nos doentes
com doença agressiva ou CD perianal. O infliximab e o adalimumab estão aprovados na
Europa e pela DGS9 para o tratamento da DII moderada a grave sem resposta a outros
fármacos. O infliximab é utilizado como terapêutica de resgate na CU grave refractária
à corticoterapia. A dose e os intervalos de administração destes fármacos podem ser
ajustados em função da resposta à terapêutica. Estes agentes estão associados a bom
controlo da doença, com diminuição dos períodos de internamento e do número de
recidivas. Porém, aumentam o risco de infecções oportunistas ou reactivação de
infecções latentes; o risco de neoplasias e linfomas é baixo, mas deverá ser
considerado. O certolizumab está aprovado para utilização nos Estados Unidos da
América, mas ainda não tem aprovação em Portugal. O agente anti-alfa4- integrina
natalizumab tem sido utilizado e já foi aprovado pela FDA para a DC moderada a grave,
mas ainda não é utilizado na Europa.

Em termos de antibioterapia, são habitualmente utilizados o metronidazol e a


ciprofloxacina no tratamento das complicações da DC (doença perianal, fístulas, massas
inflamatórias e sobrecrescimento bacteriano ao nível ao nível das estenoses). Nos
doentes com diarreia, deve ser pesquisada a presença de Clostridium difficile. Na CU a
antibioterapia só tem indicação nos casos de colite fulminante.

Os agentes pró-bióticos podem ser usados, mas não há evidência de eficácia no


controlo da doença. Os anti-diarreicos como a loperamida podem ser usados se a colite
não for fulminante; a colestiramina pode ser usada se o doente tiver sido

9
DGS: Direcção Geral de Saúde, FDA: Food and Drug Administration.

191
submetido a ressecção ileal. A analgesia deve ser optimizada, mas o uso de opióides
deve ser evitado, dada a associação a aumento da mortalidade nos doentes com DII. A
suplementação com vitamina B12, vitamina D ou ferro poderá ser necessária.
CU DISTAL CU EXTENSA DC
Sulfassalazina ou outro
LIGEIRA 5-ASA oral ou rectal 5-ASA tópico ou oral 5-ASA apenas para
atingimento cólico
Corticóide oral Corticóide oral
5-ASA oral ou tópico AZA ou 6-MP
MODERADA 5-ASA rectal ou oral
AZA ou 6-MP MTX
Anti-TNF Anti-TNF
5-ASA rectal e oral Corticóide ev Corticóide ev ou oral
GRAVE Corticóide oral ou ev CSA ev MTX sc ou IM
Corticóide rectal Infliximab ev IFX ou ADA
AZA ou 6-MP ou AZA ou 6-MP ou anti- AZA ou 6-MP ou anti-
CORTICO- preferencialmente TNF ou TNF ou
-RESISTENTE OU anti-TNF ou preferencialmente preferencialmente
DEPENDENTE combinação AZA/6- combinação AZA/6- combinação AZA/6-MP
MP + anti-TNF MP + anti-TNF + anti-TNF
5-ASA oral ou rectal 5-ASA oral
QUIESCENTE AZA ou 6-MP ou MTX
AZA ou 6-MP oral AZA ou 6-MP oral
Antibióticos orais
AZA ou 6-MP
PERIANAL
Infliximab ev
Adalimumab sc
Tabela 4: Terapêutica da Doença Inflamatória Intestinal de acordo com a evolução da doença. 5-ASA: ácido 5-
aminosalicilico, AZA: azatioprina, 6-MP: 6-mercaptopurina; TNF: tumor necrosis factor; MTX: metotrexato; ev:
endovenoso; sc: sub-cutâneo.

O tratamento cirúrgico pode constituir uma alternativa no tratamento de complicações


resistentes à terapêutica médica.

Prognóstico
A mortalidade nos doentes com DII é 1,4 - 5 vezes superior à da população geral, sendo
mais acentuada na DC. A principal causa de mortalidade é a própria doença em si,
podendo coexistir outras causas de morbilidade importante. A DII não está associada a
um aumento do risco cardiovascular. No entanto, como já descrito anteriormente, estes
doentes têm um risco acrescido de neoplasia, pelo que devem ser submetidos a
colonoscopia em cada 1-2 anos.

A qualidade de vida dos doentes é afectada pela doença em si, pelas complicações
intestinais e extra-intestinais e pelos próprios efeitos secundários da terapêutica,
sobretudo a corticoterapia. Há um aumento do risco de DII nos doentes com asma e
DPOC10, o que também agrava a morbilidade nestes doentes. O impacto psicológico
afecta sobretudo os doentes mais jovens e está associado a sintomas de depressão e
ansiedade. As recidivas da doença são frequentes e variam na CU e na DC consoante
a extensão das lesões, a evolução ao longo dos anos e a adesão à terapêutica. De uma
forma geral, e pela gravidade e frequência das complicações, considera-se que os
doentes com DC têm pior qualidade de vida que os doentes com CU.

10
DPOC Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica.

192
ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- pensar em DII se doentes jovens com diarreia mucosa ou sanguinolenta de longa
duração e contexto familiar sugestivo;
- em doentes com DII diagnosticada com recidiva da doença, pensar em efeitos
secundários da doença; pesquisa de infecção a CMV em doentes imunossuprimidos
- pedir sempre colaboração de colegas de Gastrenterologia.

TAKE HOME MESSAGES


A DII é uma doença que afecta doentes em idade jovem de ambos os sexos e tem
havido um aumento da prevalência – doença emergente. O processo patogénico
envolve factores genéticos, ambientais, desregulação imune e o microbioma
individual.
As DII distinguem-se em Colite Ulcerosa e Doença de Crohn e o diagnóstico é
estabelecido com base em dados clínicos, analíticos, imagiológicos e estudos
endoscópicos.
A CU caracteriza-se por atingir sobretudo o recto, embora possa provocar pan-
colite. As lesões são contíguas, com inflamação superficial e hemorragia
espontânea. A histologia é particular pela distorção da arquitectura das criptas
intestinais. Está associada a ANCA+.
A DC provoca lesões descontínuas e afecta sobretudo o íleo e o cólon ascendente,
com atingimento transmural. As úlceras são longitudinais e fistulizam. A histologia
revela granulomas sem destruição de criptas. Associada a ASCA+.
A DII está associada a manifestações extra-intestinais, como uveíte, eritema nodoso
e espondilartropatia.
O tratamento assenta na utilização de imunomoduladores e imunossupressores.
A mortalidade está aumentada nestes doentes e há alterações importantes na
qualidade de vida.

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endoscopic remission. Inflamm Bowel Dis. 2015 Apr;21(4):824-31.

194
PARTE III – ATINGIMENTO DE
ÓRGÃO-ALVO NA DOENÇA AUTO-
IMUNE

195
1. ALTERAÇÕES NEUROLÓGICAS NAS DOENÇAS
AUTO-IMUNES

Introdução
As doenças auto-imunes (DAI) têm um espectro semiológico amplo, que envolve o
sistema nervoso, central (SNC) ou periférico (SNP), com manifestações clínicas
desafiantes, quer pelo diagnóstico, quer pelo tratamento. Estas manifestações podem
ser primárias ou secundárias, estando habitualmente associados a diferentes
mecanismos imunomediados. O SNC e o SNP apresentam particularidades a este nível,
esquematizadas na Figura 1, com o exemplo de resposta imunitária a agentes
infecciosos, embora os mecanismos sejam idênticos nas DAI.

Tentaremos neste capítulo sistematizar as DAI que atingem primariamente o sistema


nervoso, bem como as DAI sistémicas com repercussão no SNC e SNP; abordaremos
em particular algumas DAI que afectam a junção neuro-muscular. Dada a extensão de
algumas patologias, serão desenvolvidas apenas algumas síndromes.

Fig.1: Imunidade Inata no Sistema Nervoso Periférico e Central. A: Quando há infecção periférica, as células inatas do
sistema imunitário estimulam linfócitos T. As células dendríticas internalizam antigénios proteicos, processam-nos em
péptidos e apresentam-nos à superfície a moléculas do complexo major de histocompatibilidade tipo II; migram então
para os nódulos linfáticos e apresentam os antigénios a células CD4+ naïves. As células dendríticas dirigem a
subsequente resposta inflamatória, descodificando sinais distintos associados aos agentes patogénicos e transmitindo
esta informação às células T, por forma a que estas produzam citocinas reguladoras como a IL-12 (para as Th1), IL-4
(para as Th2) ou IL-6/TGF-β (para as Th17). Para além disso, o ambiente próprio do gânglio linfático promove informação
sobre o local da infecção (ex: pele, intestino, pulmão). Com esta informação, as células T migram para os tecidos
infectados. Mediante reactivação, as células Th1, Th2 e Th17 expressam citocinas específicas e recrutam as células
inatas residentes nesses tecidos, que vão actuar, por exemplo, em conjunto com o complemento, para eliminar a
infecção. B: As células residentes do sistema nervoso central, microglia e astrócitos, exercem múltiplas funções, incluindo
a protecção e adaptação das respostas do SNC às infecções ou a outro tipo de estímulos. As citocinas e quimiocinas
expressas por estas células residentes também promovem o recrutamento de células linfóides e mielóides

196
circulantes da periferia, para ajudar na eliminação do agente patogénico. (From Ransohoff R and Brown M. Innate
immunity in the central nervous system. J Clin Invest. 2012;122(4):1164-1171.)

Doenças Auto-Imunes e Sistema Nervoso Central


O SNC tem um estatuto imunológico privilegiado, de forma a manter a homeostasia
necessária para a função neuronal e defesa de agressões externas (FIg.1). A sua
incapacidade para desenvolver respostas imunes inatas potentes e robustas requer uma
interacção entre as células imunes periféricas e as residentes do SNC. Estes processos
inflamatórios estão subjacentes a doenças como a Esclerose Múltipla (EM) e os vários
tipos de encefalite auto-imune (EAI), que iremos abordar seguidamente. Vamos também
destacar a Angeíte Primária do SNC, enquanto vasculite de órgão único, com
manifestações neurológicas importantes.

Esclerose Múltipla
A EM é uma doença auto-imune caracterizada por inflamação crónica, desmielinização
e gliose, afectando o SNC e, muito raramente, o SNP. Na EM há destruição da mielina
dos axónios do SNC, com subsequente destruição progressiva.

A evolução da EM é variável e imprevisível, sendo que na maioria dos doentes se


manifesta por défices neurológicos reversíveis, que poderão agravar ao longo do tempo
(Fig.2). Afecta sobretudo mulheres (ratio 2:1), com início dos sintomas normalmente
entre os 20 e os 45 anos. O diagnóstico é baseado em dados da clínica, da Ressonância
Magnética Nuclear (RMN) e líquido cefalorraquidiano (LCR).

A EM pode ser classificada de várias formas, que não estão directamente relacionadas
com mecanismos biológicos comuns. A mais consensual, foi estabelecida com base em
características clínicas e evolução da doença (Fig. 2). Assim, distinguem-se 4 sub- tipos
de EM:

1) Recidiva-remissão: a forma mais comum, afecta 85% dos doentes; caracteriza- se


por exacerbações seguidas de períodos de remissão, em que os sintomas melhoram
ou desaparecem;

2) Progressão Secundária: pode ocorrer nalguns doentes com doença do tipo


recidiva-remissão, mas a doença continua a agravar, com ou sem períodos de
remissão, ou com maior gravidade dos sintomas;

3) Progressão Primária: afecta cerca de 10% dos doentes, com agravamento


gradual desde o início, sem recidivas ou exacerbações, mas eventuais períodos de
plateau;

4) Progressão-remissão: forma rara, apresenta uma forma progressiva no início, com


exacerbações intermitentes e agravamento dos sintomas ao longo do tempo; sem
períodos de recidiva.

197
Fig. 2: Tipos e evolução da Esclerose Múltipla. À esquerda: os 4 tipos principais de Esclerose Múltipla (Adapted form
Lublin FD et al. Defining the clinical course of multiple sclerosis: results of na International survey. Neurology 1996;
46:907-911); à direita: evolução clínica com tradução radiológica em Ressonância Magnética Nuclear (setas verticais),
que sugere períodos de exacerbação da doença sem tradução clínica. (From Fox RJ and Cohen JA. Multiple Sclerosis:
the importance of early recognition and treatment. Clev Clin J of Med 2001;68: 157-171).

A etiologia da EM não está totalmente esclarecida, mas envolve uma susceptibilidade


genética e um factor desencadeante (vírus, alterações metabólicas ou ambientais), que
desenvolvem uma resposta inflamatória auto-sustentada e leva à destruição auto- imune
dos axónios do SNC. A desmielinização dos axónios corticais é detectada por RMN
numa fase inicial da doença. A observação em RMN de placas de oligodendrócitos nas
áreas lesionadas sugere o seu papel na remielinização; com a destruição destas células,
a inflamação crónica leva a uma progressiva desmielinização (Fig. 3).

Fig.3: Processo inflamatório na Esclerose Múltipla. Os linfócitos B e T e as células apresentadoras de antigénio (APC),
incluindo macrófagos, entram no sistema nervoso central (CNS), onde segregam citocinas que vão destruir os
oligodendrócitos. Dado que estas células produzem mielina, quando são destruídas, não podem reparar os axónios
desmielinizados, o que vai alterar a condução eléctrica. Os linfócitos atravessam a barreira hemato-encefálica através
de um receptor de superfície, a α4-integrina, acumulando-se com outras células inflamatórias na substância branca. A

198
este nível, as células T, os macrófagos e as células da microglia libertam osteopontina (OPN), IL-23, IFN-γ e factor de
necrose tumoral (TNF), que vão danificar a mielina. Concomitantemente, os linfócitos B (plasmócitos) produzem
anticorpos específicos contra a mielina, que interagem com o complexo terminal da cascata do complemento, produzindo
complexos de ataque de membrana, que vão atacar os oligodendrócitos. APL: altered peptide ligands. (From Nature
Reviews Immunology 3, 483-492 (June 2003)).

As manifestações clínicas iniciais são normalmente alterações sensitivas, sobretudo


parestesias, disestesias, diplopia, ataxia, vertigem e alterações do esfíncter urinário,
com incontinência vesical. Cerca de 30% dos doentes apresentam espasticidade
moderada a grave, sobretudo nos membros inferiores. Outra alteração comum é a
parestesia que envolve apenas uma perna, com irradiação pélvica, abdominal e mesmo
torácica. As alterações sensitivas podem ser transitórias ou evoluir para dor neuropática
crónica. A nevralgia do trigémeo pode também ocorrer, tal como a neurite óptica, que
pode culminar com perda total de visão. O cansaço ocorre em cerca de 90% dos doentes
e é a principal causa de abstinência laboral. A obstipação e disfunção sexual são
também observados com frequência. O sinal de Lhermitte pode ser encontrado nestes
doentes, embora não seja patognomónico da doença: a flexão da cabeça provoca uma
sensação de choque eléctrico que se estende para os membros superiores e dorso.

Fig.4: As imagens de RMN correlacionam-se com o grau de degeneração na Esclerose Múltipla. Os pontos negros nas
sequências de T1 representam destruição tecidular grave, incluindo perda axonal e neuronal. As sequências de
imagens em T1, realizadas com 2 meses de intervalo representam um processo inflamatório activo. (From Barkhof, F.
et al. Nat. Rev. Neurol. 5, 256–266 (2009)).

ALTERAÇÕES CLÍNICAS À APRESENTAÇÃO


DADOS ADICIONAIS DE RMN
EPISÓDIOS PRÉVIOS SINAIS DO EXAME OBJECTIVO OU FOLLOW-UP CLÍNICO
2 ataques 2 lesões -
Evidência de disseminação no
2 ataques 1 lesão
espaço
Evidência de disseminação no
1 ataque 2 lesões tempo
Evidência de disseminação de
1 ataque 1 lesão
lesões no tempo e no espaço
Disseminação ao longo do
espaço por 2 exames:
Evolução Progressiva ao longo
- RMN-CE
de 1 ano
- RMN-Medula espinhal
- Bandas oligoclonais no LCR

Tabela 1: Critérios de McDonald para o diagnóstico de Esclerose Múltipla.

199
O diagnóstico de EM é estabelecido com base em dados clínicos e imagiológicos,
nomeadamente da RMN. As lesões típicas surgem nas regiões sub-corticais e peri-
ventriculares, bem como no tronco cerebral, cerebelo e medula espinhal (Fig. 4). Os
critérios de diagnóstico de McDonald foram estabelecidos em 2010 e estão
sistematizados na Tabela 1.

O tratamento da EM tem por objectivo encurtar os períodos de exacerbações agudas,


diminuir a sua frequência e promover alívio sintomático. Actualmente estão aprovados
para utilização fármacos DMARDs (Disease Modifying Anti-Rheumatic Drug) como o
IFNβ1a, o IFNβb, o dimetilfumarato, a teriflunomida, o acetato de glatiramer, o
mitoxantrone, o natalizumab, o alemtuzumab e o fingolimod. Em offlabel podem ser
usados a azatioprina, o metotrexato, a ciclofosfamida, o micofenolato de mofetil e
cladribina. Estão em curso estudos para a aplicação na EM dos agentes laquinimod,
daclizumab, rituximab e ocrelizumab.

Encefalites imunomediadas
Ao longo dos anos, foram sendo descritas situações de encefalite rapidamente
progressiva, síndrome cerebelar, ou encefalopatia crónica semelhante a processo
degenerativo. Actualmente, estas situações integram diferentes espectros de uma
mesma doença: a encefalite auto-imune. Esta doença está associada à presença de
anticorpos contra as proteínas da superfície neuronal, com alterações do LCR e RMN
compatíveis com quadro inflamatório, verificando-se após imunossupressão. Ao
contrário de outras DAI sistémicas com atingimento do SNC, na EAI os anticorpos
também são produzidos no próprio SNC (Tabela 2). Há actualmente 16 tipos de EAI com
anticorpos dirigidos a receptores de neurónios inibitórios ou excitatórios ou proteínas
envolvidas na integração do sinal somato-dendrítico, modulação de receptores,
reuptake de vesículas sinápticas, ou sinaptogénese. O trigger imunológico é
frequentemente um tumor ou infecção viral, sobretudo nas situações associadas a
encefalite a anticorpos anti-NMDA.

Um outro tipo de encefalite auto-imune classicamente descrita, a encefalite de


Rassmussen, é mediada sobretudo por linfócitos T, que atacam um ou mais epitopos
cerebrais, com eventual formação de auto-anticorpos. Este tipo é raro e é caracterizado
por encefalite unilateral do córtex cerebral, epilepsia resistente a fármacos e progressiva
deterioração cognitiva e neurológica. A terapêutica imunomodeladora nem sempre é
eficaz, sendo muitas vezes necessária terapêutica cirúrgica para deter o processo
inflamatório - hemisferectomia.

Por uma questão de sistematização, abordaremos neste manual apenas a Encefalite


anti-receptores NMDA, Encefalite Límbica e a Síndrome de Stiff-Person.

200
PRINCIPAIS
SÍNDROME ALTERAÇÕES RMN FREQUÊNCIA TIPO DE
ANTICORPO ALTERAÇÕES
PRINCIPAL (FLAIR/T2) DE CANCRO CANCRO
CLÍNICAS
Psiquiátricas
Normal ou
(adultos); Encefalite a Geral 40%;
Receptor alterações
convulsões, receptores 58% ♀ 18-45 Teratoma
NMDA transitórias sem foco
discinésia NMDA anos
específico
(crianças)
Timoma,
Hiperintensidade de
Receptor Perda de Encefalite Pulmão
sinal restrita aos 65%
AMPA memória Límbica (Pequenas
lobos temporais Células)
Perda de Encefalite límbica Hiperintensidade de Pulmão
Receptor
memória, com convulsões sinal restrita aos 50% (Pequenas
GABAb
convulsões precoces lobos temporais Células)
Perda de Hiperintensidade de
LGI1 memória, Encefalite límbica sinal restrita aos 5-10% Timoma
convulsões lobos temporais
Síndroma de
Alterações do Normal ou Geral 20%;
Morvan,
CASPR2 sono, hiperintensidade nos S. Morvan Timoma
Encefalite
neuromiotonia Límbica lobos temporais (20-50%)
Encefalite com Hiperintensidade de
Receptor convulsões sinal em múltiplas
Convulsões 25% Timoma
GABAa refractárias, áreas corticais e
status epilepticus sub-corticais
Normal ou
Confusão,
DPPX Encefalite alterações em áreas <10% Linfoma
diarreia inespecíficas
Letargia,
sintomas
Receptor psiquiátricos, Hiperintensidade de
Encefalite dos
2 movimentos sinal nos gânglios da 0% ?
gânglios da base
Dopamina involuntários, base
alterações da
marcha
Normal ou
Perda de hiperintensidade de Linfoma de
mGluR5 Encefalite Raros
memória sinal em várias Hodgkin
regiões corticais
Neurexina Confusão,
Encefalite Normal 0% ?
3α convulsões
Perturbação do
sono REM e
Alterações do
IgLON5 NREM, disfunção Normal 0% ?
sono
do tronco
cerebral
Instabilidade Ataxia Normal ou atrofia Linfoma de
DNER >90%
da marcha cerebelosa cerebelosa Hodgkin
Pulmão
VGCC tipo Instabilidade Ataxia Normal ou atrofia
>90% (Pequenas
P/Q da marcha cerebelosa cerebelosa
Células)
Instabilidade Ataxia Normal ou atrofia Linfoma de
mGluR1 Raros
da marcha cerebelosa cerebelosa Hodgkin
Timoma,
Rigidez Normal ou
Receptor PERM, Síndrome pulmão,
muscular, alterações de áreas <5%
da glicina Stiff-Person Linfoma de
espasmos inespecíficas
Hodgkin
Mama,
Síndrome Stiff- Normal ou
Rigidez, Pulmão
Anfifisina Person, alterações de áreas >90%
espasmos (pequenas
encefalomielite inespecíficas
células)
Tabela 2: Principais características clínicas associadas a anticorpos contra as proteínas da superfície celular neuronal e
receptores sinápticos. NMDA, N-methyl-D-aspartate; AMPA, _-amino-3-hydroxy-5-methyl-4-isoxazolepropionic acid;
GABAb, gamma-aminobutyric acid type B; LGI1, leucine-rich glioma inactivated 1; CASPR2, contactin-associated protein-
like 2; GABAa, gamma-aminobutyric acid type A; DPPX, dipeptidyl-peptidase-like protein-6; mGluR, metabotropic
glutamate receptor; DNER, delta/notch-like epidermal growth factor-related receptor; VGCC, voltage-

201
gated calcium channel; Gly, glycine; REM, rapid-eye-movement sleep; NREM, non-rapid-eye-movement sleep; PERM,
progressive encephalomyelitis with rigidity and myoclonus; MRI FLAIR, magnetic resonance imaging fluid-attenuated
inversion recovery.

Encefalite Anti-Receptor NMDA (EARNMDA)


Os doentes com este quadro clínico apresentam anticorpos que expressam uma
mutação (delN368/G369) da sub-unidade GluN1 do receptor NMDA, detectável
laboratorialmente, e que vai gerar processos de imuno-reactividade. A EARNMDA
afecta sobretudo mulheres jovens (idade média 22 anos, 80% mulheres), sendo que
40% dos doentes têm menos de 18 anos. Os potenciais agentes despoletadores são
tumores, sobretudo teratomas do ovário, embora em 55-60% das situações não seja
identificado o factor etiológico (Fig. 5).

Figura 5: Triggers para a encefalite anti-receptores NMDA e modelo proposto para a activação de células. O esquema
apresenta 2 possíveis causas etiológicas para a doença: tumor (normalmente teratoma do ovário) ou infecção (encefalite
a Herpes simplex). No teratoma ovárico, o tecido nervoso presente no tumor contém neurónios com receptores NMDA,
que são libertados e atingem os nódulos linfáticos. Na encefalite a Herpes simplex, a inflamação induzida pelo vírus, a
necrose tecidular e a degeneração neuronal podem libertar antigénios, que são transportados até aos nódulos linfáticos;
a este nível, o antigénio é apresentado a células B memória e os plasmócitos produzem anticorpos. (From Dalmau J et
al. Autoantibodies to Synaptic Receptors and Neuronal Cell Surface Proteins in Autoimmune Diseases of the Central
Nervous System. Physiol Rev 97: 839–887, 2017)

O quadro clínico sugere uma diminuição imunomediada da função receptora: os doentes


com IgG dirigida à sub-unidade GluN1 normalmente apresentam manifestações neuro-
psiquiátricas rapidamente progressivas, que podem levar ao coma em dias ou semanas.
Cerca de 70% dos doentes apresenta pródromo com cefaleia ou febre, seguido de
manifestações psiquiátricas: ansiedade, insónia, pensamento delirante, alucinações,
paranóia, alterações do discurso, mania, comportamento agressivo, alternando com
agitação extrema, e catatonia (Fig.6).

202
Surgem então convulsões, diminuição do discurso, prostração, discinésia da face e
membros, coreio-atetose, postura distónica, rigidez e disfunção autonómica.

Fig. 6: Evolução Clínica da Encefalite a anticorpos anti-NMDA. (From Dalmau J et al. Autoantibodies to Synaptic
Receptors and Neuronal Cell Surface Proteins in Autoimmune Diseases of the Central Nervous System. Physiol Rev 97:
839–887, 2017)

Do ponto de vista laboratorial, pode haver aumento de creatinina quinase (CK) por
rabdomiólise; o líquido cefalorraquidiano (LCR) revela IgG contra a sub-unidade GluN1
do receptor NMDA, bem como outras alterações inflamatórias como pleiocitose ou
aumento da proteinorráquia. O electroencefalograma (EEG) revela predomínio de ondas
delta, embora as características específicas da EARNMDA possam não estar sempre
presente. A RMN-CE é normal em 60% dos doentes; os restantes 40% apresentam
alterações ligeiras ou transitórias sub-corticais, cerebelosas ou mesencefálicas.

Cerca de 80% dos doentes recuperam ou melhoram substancialmente com


imunossupressão dirigida à eliminação de plasmócitos produtores de anticorpos
(corticóides, imunoglobulina endovenosa, plasmaferese, rituximab ou ciclofosfamida),
ressecção tumoral (se for o caso), terapêutica sintomática e de suporte. O processo de
recuperação é lento, sendo que os défices cognitivos são os que mais tardiamente
recuperam, o que vai de algum modo influenciar a reintegração social destes doentes.

Encefalite Límbica (EL)


A encefalite límbica consiste num processo inflamatório que envolve o sistema límbico,
incluindo os lobos temporais internos, o hipocampo, a amígdala, o córtex frontal e

203
cingulado. A etiologia está relacionada com neoplasia de pequenas células do pulmão,
encefalite auto-imune e infecções virais.

O quadro clínico inclui o desenvolvimento rápido de alterações do humor, depressão,


ansiedade e incapacidade de formular novas memórias; pode haver também alguma
amnésia retrógrada referente a semanas ou meses precedentes ao início da doença. O
EEG e a RMN-CE tipicamente revelam envolvimento do lobo temporal. A manifestação
característica típica da EL é a amnésia anterógrada para pessoas, lugares, objectos,
factos e eventos, como falha nos mecanismos de memória explícita ou declarativa.

De entre os anticorpos associados à encefalite auto-imune, há 3 que afectam


predominantemente o sistema límbico, por vezes com particular envolvimento do
hipocampo. Estes anticorpos têm como alvos o receptor AMPA (ácido α-amino-3-
hidroxi-5-metil-4-isoxazolpropiónico), o receptor GABAb (ácido gama-amino-butírico tipo
B) e o LGI1 (leucine-rich glioma inactivated 1). A abordagem terapêutica é semelhante
à da EARNMDA.

Síndrome de Stiff-Person (ou Stiff-man)


A Síndrome de Stiff-Person é caracterizada por rigidez muscular e espasmos dolorosos
que atingem sobretudo os músculos para-vertebrais, abdominais e dos membros
inferiores; os membros superiores, o pescoço e a face são menos frequentemente
envolvidos. Os espasmos podem ser espontâneos ou provocados por movimento ou por
um estímulo sensorial (táctil, auditivo) ou emocional. Os estudos electrofisiológicos
revelam actividade da unidade motora sustentada, levando à co- contracção de
músculos agonistas e antagonistas em simultâneo. Os sintomas melhoram durante o
sono, com benzodiazepinas ou outros fármacos GABAérgicos. A RMN-CE ou espinhal
pode ser normal. O LCR é normal na maioria dos doentes, embora possa apresentar
aumento das bandas oligoclonais em cerca de 35% dos casos.

As variantes da Síndrome de Stiff-Person incluem a síndrome dos “membros rígidos” e


a encefalomielite progressiva com rigidez e mioclonias (Fig.7).

Figura 7: Síndrome de Stiff-Person. A – Electroencefalograma revelando actividade motora de baixa frequência, que
ocorre simultaneamente nos músculos agonistas e antagonistas, mesmo durante o período de relaxamento. (From Khade
SS et al. Forty-year-old lady with tightness in lower limbs. Annals of Indian Academy of Neurology 2012;15(1): 15-18.) B:
Rigidez muscular abdominal e dos membros superiores em doente com neoplasia da mama. (From Rosin L, et al. Stiff-
man Syndrome in a woman with breast cancer. Neurology January 1998 vol. 50 no. 1 94-98)

204
VASCULITE DE ÓRGÃO ÚNICO NO SISTEMA NERVOSO CENTRAL

Angeíte Primária do Sistema Nervoso Central (APSNC)

A APSNC é rara e pode atingir artérias leptomeníngeas, corticais e subcorticais de


pequeno e médio calibre. A inflamação caracteriza-se por granulomatose, necrose
fibrinóide da parede dos vasos ou infiltrados linfocitários. As manifestações podem ser
variadas: meningite sub-aguda ou crónica, predominantemente do sexo masculino, que
se apresenta como cefaleia ou enxaqueca com 3 a 6 meses de duração, seguida de
sintomas neurológicos focais ou generalizados; confusão, défice de memória e
concentração; outros sintomas incluem hemiparésia, convulsões, ataxia e paralisia de
par craniano. O LCR revela hipercelularidade e hiperalbuminémia, embora os achados
clínicos e radiológicos sejam bastante inespecíficos. A RMN pode apresentar áreas de
isquémia e a angiografia pode revelar estenoses ou obliterações de vaso (Fig.8). A
biópsia cerebral revela as lesões típicas da doença. As recomendações para o
tratamento seguem as das vasculites sistémicas, combinando corticoterapia e
ciclofosfamida. O índice de recidiva é de cerca de 25% e a sobrevida reduzida.

Figura 8: Angeíte Primária do Sistema Nervoso Central. A: Plano axial de RMN que revela área de enfarte na substância
branca subcortical direita (seta), juntamente com enfartes lacunares no globo pálido (cabeça de seta). B: Plano axial em
RMN com enfartes na substância branca subcortical esquerda (distribuição da artéria cerebral posterior) (seta branca) e
hipocampo posterior à esquerda (seta preta). C: Angiograma cerebral de subtracção digital lateral direito, revela estenose
próxima do segmento A2 da artéria cerebral média e estenose grave distal aos segmentos arteriais peri-calosos (seta).
A artéria cerebral média é pouco visível. D: Angiograma de subtracção digital antero- posterior da carótida comum direita,
revelando estenose significativa do segmento M2 (setas) com subsequente atenuação dos segmentos distais. E e F:
injecção da artéria vertebral esquerda antero-posterior (E) e artéria carótida comum esquerda (F) correlacionam-se com
imagem da RMN em B. (From Pomper M et al. CNS Vasculitis in Autoimmune Disease: MR imaging findings and
correlation with angiography. American Journal of Neuroradiology January 1999, 20 (1) 75-85.)

205
Doenças Auto-Imunes e Sistema Nervoso Periférico
A definição de neuropatia periférica engloba o envolvimento de qualquer estrutura do
SNP: corpo do neurónio, mielina, axónio e mesmo células da glia (Fig.9). Apesar da
existência da barreira hemato-neural, tanto a imunidade humoral como a celular pode
ser dirigida contra os axónios e a mielina periféricos. A vigilância imunitária é realizada
por linfócitos B e T que atravessam a barreira hemato-neural; as células apresentadoras
de antigénios, como os macrófagos, são frequentes no SNP. As Células de Schwann
podem também actuar como células apresentadoras de antigénio.

Fig.9: Patofisiologia da neuropatia periférica, de acordo com o tipo de doença e estrutura neuronal afectada. (From
Callaghan B, et al. The Importance of Rare Subtypes in Diagnosis and Treatment of Peripheral Neuropathy – a review.
JAMA Neurol. 2015;72(12):1510-1518)

A classificação da neuropatia imune tem sido ampliada, por forma a abranger síndromes
específicas que partilham características clínicas, electrofisiológicas, serológicas e
prognósticas únicas. Distinguem-se 3 grupos principais de neuropatias periféricas
imunomediadas associadas às doenças auto-imunes: neuropatia sensorial,
mononeuropatia múltipla e poliradiculoneuropatia desmielinizante inflamatória crónica
(Tabela 3, Fig. 10). Durante muitos anos, o protótipo de neuropatia desmielinizante
periférica imunomediada era a Síndrome de Guillain-Barré. Actualmente, sabe-se que
este quadro clínico é apresentado em situações muito variadas, com etiologias e
processos fisiopatológicos muito diferentes, pelo que o quadro clínico não é
exclusivamente auto-imune e não será desenvolvido neste manual.

As Neuropatias Sensoriais (também designadas “Gangliopatias”) resultam sobretudo


de lesão das raízes dos gânglios dorsais; a este nível a barreia hemato-neural não é tão
densa como noutras localizações, dado o padrão fenestrado, para penetração de
capilares, o que permite que anticorpos e agentes tóxicos alcancem os corpos
neuronais. Estes gânglios emitem neurónios com longos axónios que, por esta razão,
têm uma grande necessidade de aporte metabólico, o que aumenta a sua
vulnerabilidade. Do ponto de vista clínico, o exame neurológico revela dano sensorial e
os défices são piores na porção proximal dos membros e na face. Os sintomas

206
observados estão associados ao tipo de neurónio afectado: se houver dano funcional
em grandes neurónios, vai ocorrer ataxia da marcha, desequilíbrio, arreflexia perda de
sensibilidade vibratória e postural; se forem lesados neurónios de pequena ou média
dimensão, pode surgir hiperestesia, dor e alodinia. Os sintomas autonómicos ou motores
ligeiros também são frequentemente detectados, particularmente se associados a
situações paraneoplásicas ou imunomediadas (Síndrome de Sjögren, Hepatite Auto-
imune e Doença Celíaca). O tratamento baseia-se em corticoterapia e imunoglobulina
endovenosa, mas têm vindo a ser desenvolvidas outras abordagens terapêuticas, como
ciclofosfamida, micofenolato de mofetil ou ciclosporina.

Fig. 10: A: Representação esquemática do Sistema Nervoso Periférico. B: Tipos de Neuropatia Periféricas mais
frequentemente associados às Doenças Auto-Imunes (“Ganglionapathy” equivale a Neuropatia Sensorial) (From
Clinical and Developmental Immunology 2012(2):236148 · July 2012)

NEUROPATIA
NEUROPATIA MONONEURITE DESMIELINIZANTE
CARACTERÍSTICAS
SENSORIAL MULTIPLEX INFLAMATÓRIA
CRÓNICA
DÉFICES Multifocais, Multifocais, Simétricos
SENSORIAIS assimétricos assimétricos
Multifocais,
DÉFICES MOTORES Ausentes
assimétricos
Simétricos
ROT Hipo/arreflexia global Hipo/arreflexia focal Hipo/arreflexia global
PROTEÍNAS LCR /N N 
Desmielinização de
Lesão corpo celular, nervos e
Isquémia do nervo,
NEUROPATOLOGIA infiltrados
perda de axónios
terminações,
inflamatórios (CD8+) infiltrados
inflamatórios
Sensorial e motora,
Apenas sensorial, Sensorial, motora,
NEUROFISIOLOGIA multifocal multifocal, axonal
difusa,
desmielinizante
Síndroma de Sjögren
PRINCIPAIS DAI Lúpus Eritematoso
Hepatite Auto-Imune Vasculites
ASSOCIADAS Doença Celíaca Sistémico

Tabela 3: Neuropatias periféricas imunomediadas associadas a doenças auto-imunes. ROT: reflexos osteo-tendinosos;
LCR: líquido cefaloraquidiano; N: normal; DAI: doença auto-imune.

207
A Mononeurite Múltipla (MM), ou Mononeurite Multiplex, é um subtipo pouco frequente
de neuropatia periférica e implica o dano de pelo menos dois ramos nervosos periféricos
(Fig.11). O quadro clínico caracteriza-se por uma tríade de dor, assimetria e défices
multifocais, relacionados com lesão de axónios longos de neurónios motores ou
sensitivos. Estes défices podem conduzir a deficiência motora ou sensitiva, estando o
primeiro caso associado a pior prognóstico, dada a relação com lesão isquémica. A
evolução é tipicamente aguda ou sub-aguda, com défices recidivantes ou progressivos.
A Mononeurite Múltipla está associada a vasculites primárias, por lesão directa dos vasa
vasorum, embora possa ocorrer noutras DAI. As vasculites que estão mais associadas
à MM são a Poliangeíte Microscópica, a Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte, a
Granulomatose com Poliangeíte e a Poliarterite Nodosa. O tratamento destes casos
assenta na imunossupressão, sendo que nos casos refractários pode ser considerado
o rituximab, a imunoglobulina endovenosa e a plasmaferese. Há ainda casos de MM
associados a vasculites secundárias a outras DAI, como o LES, a AR ou a ES.

Fig. 11: Alterações clínicas de Mononeurite Múltipa provocada por vasculite sistémica. A: atrofia dos músculos
interósseos dorsais por lesão do nervo cubital; B: mão pendente por lesão do nervo radial; C: eritema purpúrico no dorso
do pé esquerdo; D: atrofia hipotenar e eritema livedóide. (From Martinez A. Et al. Autoimmune Neuropathies associated
to Rheumatic Diseases, Autoimmunity Reviews (2017))

A Poliradiculoneuropatia Desmielinizante Inflamatória Crónica (PDIC) caracteriza-


se por um padrão de fraqueza dos segmentos proximal e distal dos membros, simétrica,
com ou sem atrofia muscular aguda, acompanhada de alterações sensoriais,
tipicamente a perda de sensibilidade vibratória postural. Distingue-se da Síndrome de
Guillain-Barré pela duração dos défices ser superior a 8 semanas. A evolução
caracteriza-se por recidivas frequentes, mas apresenta boa resposta à corticoterapia.
Está associada a várias DAI, sobretudo o LES e SSj, podendo os sintomas anteceder
ou suceder à semiologia da DAI associada. A apresentação clássica é um quadro sub-
agudo de evolução progressiva de sintomas sensório- motores, que envolvem os
segmentos proximal e distal, associados a arreflexia. O diagnóstico diferencial deve
incluir neuropatias hereditárias, associadas a diabetes e

208
polirradiculopatias paraneoplásicas ou infecciosas. A terapêutica passa por
corticoterapia, imunoglobulina endovenosa e plasmaferese. Será importante referir
ainda que a PDIC é a neuropatia mais frequentemente associada aos fármacos anti-
TNF alfa, podendo os sintomas começar desde a primeira semana até vários anos após
o início da terapêutica. Nestas situações, deve suspender-se o fármaco e tratar como
nos restantes casos, sendo o prognóstico habitualmente favorável.

Doenças Auto-Imunes que afectam SNC e o SNP


Há doenças auto-imunes desmielinizantes que afectam o SNC e SNP, quer sequencial,
quer simultaneamente. Embora sejam descritas desde há muito, a sua prevalência é
inferior às DAI neurológicas “clássicas” que afectam apenas o SNC ou SNP, como a
Esclerose Múltipla (EM), a Polineuropatia Desmielinizante Inflamatória Crónica (PDIC)
ou a Síndrome de Guillain-Barré (SGB), pelo que têm vindo a ser feitas tentativas para
definir ou reconhecer estas DAI, que atingem tanto SNC como SNP. Habitualmente, a
desmielinização começa com o envolvimento do SNC e subsequente lesão do SNP,
sendo nalguns casos a evolução auto-limitada.

Foram propostos 3 mecanismos potenciais para a etiologia auto-imune destas doenças:

1) podem ser provocadas por reactividade auto-imune comum aos antigénios e


epitopos presentes quer no SNC quer no SNP;
2) podem ser devidas a um aumento da susceptibilidade a doença auto-imune, o que
nalguns casos pode ser provocado ou exacerbado por tratamento imunomodelador
(ex: IFN beta);
3) a sua ocorrência simultânea pode ser apenas coincidente.
Outro exemplo de DAI que envolve de forma variável o SNC e o SNP, ou ambos, é a
sobreposição e/ou espectro clínico contínuo da Síndrome de Miller-Fisher (SMF), como
variante do SGB, e a encefalite de Bickerstaff (ETCB), que afectam sobretudo o
mesencéfalo. Dados recentes de grandes cohorts de doentes têm demonstrado auto-
anticorpos e infecções prévias comuns, bem como resultados concordantes de
investigação clínica, neurorradiológica e neuropsicológica; estes dados têm sugerido
que estas três patologias provavelmente não constituem doenças separadas, mas antes
um espectro continuum com envolvimento variável do SNC e SNP.

Doenças Auto-Imunes da Junção Neuro-Muscular


Nas doenças que afectam a junção neuro-muscular, os anticorpos ligam-se a alvos na
superfície celular (receptor da acetilcolina e canais de cálcio dependentes de voltagem),
alterando a sua estrutura e função: provocam internalização dos receptores, bloqueio
dos receptores de acetilcolina ou alterações mediadas pelo complemento na junção
neuromuscular (Fig.12). Na Miastenia Gravis (MG) são afectadas as membranas pós-
sinápticas; na Síndrome de Lambert-Eaton e na Neuromiotonia, as membranas pré-
sinápticas.

209
Figura 12: Alterações neurofisiológicas na Miastenia Gravis (MG), Síndrome de Lambert Eaton (LEMS) e Neuromiotonia.
Nos doentes com MG, a diminuição de acetilcolina resulta em potenciais evocados de baixa amplitude, que, com
estimulação repetitiva, vão descendo abaixo do potencial necessário para desencadear um potencial de acção na célula
muscular. Na LEMS, o potencial de acção da célula muscular inicialmente é baixo, mas vai aumentando com a
estimulação repetitiva (acumulação de cálcio na fenda pré-sináptica, que leva à libertação da acetilcolina). A
neuromiotonia adquirida está associada a um potencial de acção inicial alargado e repetida estimulação neuronal, o que
pode provocar aumento da libertação de acetilcolina e prolongamento do potencial evocado. (From Crisp S, et al.
Autoimmune synaptopathies. Nature Reviews, 2016; 17:103-117).

Miastenia gravis
A MG é uma DAI em que os anticorpos se ligam aos receptores da acetilcolina ou
moléculas relacionadas na membrana pós-sináptica da junção neuro-muscular,
provocando fraqueza muscular, segmentar ou generalizada, mais frequentemente
proximal, quase sempre com envolvimento dos músculos peri-orbitários, provocando
diplopia e ptose. O padrão costuma ser simétrico, excepto no envolvimento ocular, e a
fraqueza muscular aumenta com o exercício, sem rigidez matinal acompanhante.

A MG apresenta uma incidência anual de 8-10/1.000.000 casos/ano e uma prevalência


de 150-250 casos/1.000.000 indivíduos.

O diagnóstico da MG é realizado mediante a combinação de sinais e sintomas


relevantes e positividade para auto-anticorpos. Os anticorpos contra os receptores da
acetilcolina, a quinase específica do músculo e o receptor da lipoproteína relacionada
com o péptido 4 são específicos e sensíveis para a detecção de MG e a definição dos
seus sub-grupos. A localização dos antigénios na junção neuromuscular e no músculo
esquelético estão representados na Figura 13.

210
Fig.13: Junção Neuromuscular e patogénese da Miastenia Gravis. A transmissão neuromuscular envolve a libertação de
acetilcolina da membrana pré-sináptica, que se liga aos receptores de acetilcolina na membrana pós-sináptica. Os
receptores interagem com outras proteínas de membrana, que envolvem a Dok7 e a rapsina. A mutação nestas proteínas
é importante na MG congénita. Anticorpos contra a quinase específica do músculo (MuSK) e contra o receptor da
lipoproteína relacionado com o péptido 4 (LRP4), induzem a fadiga miasténica. A acetilcolina é degradada por
acetilcolinesterase local e a inibição da acetilcolinesterase leva a uma melhoria sintomática nos doentes com MG. (From
N Engl J Med 2016;375:2570-81.)

Como referido, foram identificadas variantes da MG, com base nos tipos de anticorpos
circulantes, na lesão muscular, na avaliação do timo e no próprio fenótipo da doença,
que determinam o acompanhamento e abordagem terapêutica a adoptar (tabela 4). Nas
situações seronegativas, os testes neurofisiológicos e a resposta à terapêutica podem
fundamentar o diagnóstico; ainda assim, os testes devem ser repetidos 6 a 12 meses
depois, dada a possibilidade de falsos negativos. A hipótese de timoma deve ser
excluída por exames de imagem e imunologia direccionada.

SUB-GRUPOS MG ANTICORPO IDADE INICIAL TIMO


Início precoce Receptor da Acetilcolina <50 anos Hiperplasia comum
Início tardio Receptor da Acetilcolina ≥50 anos Atrofia comum
Timoma Receptor da Acetilcolina Qualquer Linfoepitelioma
Quinase específica de Quinase específica de
Qualquer Normal
músculo músculo
LRP4 LRP4 Qualquer Normal
Seronegativa Indetectável Qualquer Variável
Ocular Variável Qualquer Variável
Tabela 4: Principais sub-grupos de Miastenia Gravis (MG). LRP4: receptor da lipoproteína relacionado com o péptido 4.

211
A ptose e a diplopia são com frequência os sinais iniciais, mas apenas 15% dos doentes
têm doença limitada aos músculos peri-orbitários. Nestes casos, ao fim de 2 anos, a
doença geralmente persiste como fraqueza ocular focal e não progride mais. Metade
dos doentes tem anticorpos detectáveis, sendo nestes casos maior o risco de
subsequente generalização da doença (Fig.14-A). Com frequência os doentes com MG
apresentam outras patologias co-existentes, como o timoma (10%) e outras DAI, como
a tiroidite auto-imune, o Lúpus Eritematoso Sistémico e a Artrite Reumatóide (Fig.14-B).

Fig.14: A – Sub-grupos de miastenia gravis, em termos de proporção relativa. B – Patologias co-existentes nos doentes
com miastenia gravis. MuSK: quinase especifica do músculo; LRP4: receptor da lipoproteína relacionada com o péptido
4. (From N Engl J Med 2016;375:2570-81.9)

Os anticorpos anti-titina, que surgem sobretudo em doentes com timoma e MG de início


tardio, estão associados a doença mais grave. O anticorpo contra o receptor da
rianodina, também associado as estas variantes da MG, é um marcador de doença
muito grave.

A abordagem terapêutica envolve uma vertente sintomática, imunossupressora e de


suporte e o alvo terapêutico deve ser a remissão completa. Os fármacos mais
frequentemente utilizados são: piridostigmina – efeito sintomático; prednisona ou
prednisolona – imunomodulação; azatioprina, micofenolato de mofetil e ciclofosfamida
– supressão de células T e B; rituximab – supressão de células B; metotrexato – inibidor
do metabolismo do folato; ciclosporina e tacrolimus – supressão de células T e natural
killers; imunoglobulina endovenosa – supressão de células T e B e neutralização de
auto-anticorpos. Estão descritas situações de transplante de stem cells hematopoiéticas
com boa resposta; nos casos de timoma, deve ser realizada timectomia. Nas crises
miasténicas, pode ser necessária a admissão em unidade de cuidados intensivos. De
uma forma geral, a resposta à terapêutica é boa e o prognóstico, em termos de força
muscular, capacidade funcional, qualidade de vida e sobrevivência, é favorável.

Síndrome de Lambert-Eaton
A Síndrome de Lamber-Eaton (SLbE) é uma doença rara que afecta a membrana pré-
sináptica da junção neuromuscular. Provoca uma diminuição na libertação da

212
acetilcolina, o que leva a um quadro clínico de fadiga muscular proximal, diminuição dos
reflexos tendinosos e disautonomia. As principais diferenças entre a SLbE e a MG estão
sumariadas na Tabela 5.

SÍNDROME DE LAMBERT EATON MIASTENIA GRAVIS


Anticorpos contra a superfície do nervo de onde a Anticorpos contra a superfície do músculo onde
acetilcolina é libertada estão os receptores de acetilcolina
Começa nas extremidades, com evolução
Começa nos olhos, com progressão distal
proximal
A fadiga melhora com o exercício A fadiga agrava com o exercício
Associada a cancro de pequenas células do
Associada a timoma
pulmão
Terapêutica: aminopiridinas Terapêutica: inibidores da acetilcolinesterase
Tabela 5: Principais diferenças entre Síndrome de Lambert-Eaton e Miastenia Gravis.

Na SLbE, a libertação de acetilcolina da superfície sináptica do motoneurónio está


alterada, pela destruição dos canais voltaicos dependentes de cálcio (VGCC). No
entanto, como as reservas de acetilcolina e a resposta pós-sináptica permanecem
intactas, a estimulação repetitiva e voluntária ajuda a despoletar o potencial de acção
que vai levar à contracção muscular.

Em cerca de 40% dos casos, a SLbE é precedida ou acompanhada posteriormente de


neoplasias, sendo a mais frequente a neoplasia de pequenas células do pulmão; está
também associada à neoplasia de não pequenas células do pulmão, linfossarcoma,
timoma, carcinoma da mama, estômago, cólon, próstata, bexiga, rim ou vesícula biliar.

O início dos sintomas é lento e insidioso. Surge fadiga muscular, sobretudo ao nível dos
músculos proximais dos membros inferiores, que agrava com o aumento da
temperatura. Os sintomas oculares são raros. Pode surgir xerostomia e um sabor
metálico desagradável. A disfunção disautonómica inclui impotência no homem e
hipotensão ortostática.

O tratamento inclui aminopiridinas e, nos casos graves, imunossupressão,


imunoglobulina endovenosa e plasmaferese. Nas situações paraneoplásicas, o
tratamento oncológico deve acompanhar a abordagem da SLbE.

Doenças Auto-Imunes Sistémicas com complicações neurológicas


As doenças auto-imunes sistémicas têm frequentemente atingimento do sistema
nervoso, quer por via directa ou indirecta.

Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) e Síndrome do Anticorpo Anti-Fosfolípido (SAAF)


A designação “neurolúpus” refere-se a alterações neurológicas e psiquiátricas
relacionadas com o LES. O LES apresenta envolvimento neurológico frequente,
podendo atingir até 75% dos doentes durante a evolução natural da doença. O
envolvimento do SNC pode ser primário ou secundário, por exemplo, à terapêutica,
infecções ou alterações metabólicas; as manifestações podem classificar-se em
trombóticas ou não trombóticas. As manifestações trombóticas têm origem

213
multifactorial, como aterosclerose precoce e estado pró-coagulante associado à
presença de anticorpos associados à SAAF (anticorpo anti-cardiolipina, anticorpo anti-
β2-glicoproteína1, anticoagulante lúpico). Os doentes com LES e eventos cerebrais
isquémicos, permanentes ou transitórios, sobretudo se recorrentes, devem ser
avaliados para a possibilidade de SAAF concomitante ou fonte valvular de êmbolos,
como a endocardite de Libman-Sacks. As manifestações não trombóticas do SNC são
habitualmente inflamatórias, provocadas por acção directa dos auto-anticorpos ou
deposição complexos imunes; incluem cefaleia, psicose, convulsões, disfunção
cognitiva, encefalopatia aguda ou sub-aguda, mielite, perturbações do movimento
(incluindo coreia e outras doenças extra-piramidais), ataxia, neuropatia de pares
cranianos e alterações psiquiátricas (Tabela 6).

SÍNDROMES NEUROPSIQUIÁTRICOS NO LES – CLASSIFICAÇÃO DA AMERICAN COLLEGE OF


RHEUMATOLOGY, 1999
Sistema Nervoso Central Sistema Nervoso
Periférico
Meningite asséptica
Doença cerebrovascular
Síndrome desmielinizante Polirradiculoneuropatia desmielinizante
Cefaleia inflamatória aguda
Alteração do movimento Neuropatia autonómica
Mielopatia Mononeuropatia
Convulsões Miastenia gravis
Estado Confusional agudo Neuropatia craniana
Perturbação de Ansiedade Plexopatia
Disfunção cognitiva Polineuropatia
Alterações do humor
Psicose
Tabela 6: Síndromes Neuropsiquiátricos no Lúpus Eritematoso Sistémico, de acordo com a classificação da American
College of Rheumatology.

Fig.15: Mecanismos fisiopatológicos subjacentes ao neurolúpus. A: Os eventos neurológicos focais e difusos podem
resultar de mecanismos auto-imunes ou inflamatórios directamente relacionados com o LES ou secundários a
complicações da doença, como infecção. B: A lesão vascular envolve vasos de pequeno e grande calibre, sendo mediada
por anticorpos anti-fosfolípido, imunocomplexos, leucoaglutinação, podendo resultar em eventos neuropsiquiátricos
focais (por exemplo, acidente vascular cerebral) ou difusos (como disfunção cognitiva). A lesão inflamatória vai provocar
aumento da porosidade da barreira hemato-encefálica, formação de imunocomplexos e produção de interferão alfa e
outros mediadores inflamatórios, o que vai aumentar as manifestações neuropsiquiátricas difusas. aPL, antiphospholipid
antibodies; BBB, blood–brain barrier; MMP, matrix metalloproteinase; NPSLE, neuropsychiatric systemic lúpus
erythematosus; pDC, plasmacytoid dendritic cell. (From Hanly J. Diagnosis and management of neuropsychiatric SLE.
Nat. Rev. Rheumatol. advance online publication 11 February 2014)

O atingimento do SNP pelo LES é menos frequente, mas pode afectar até 10% dos
doentes, sobretudo por processos de vasculite. As alterações mais frequentemente
descritas são a neuropatia do trigémeo, que pode anteceder o diagnóstico de LES em
anos; a polineuropatia sensitiva ou sensitivo-motora simétrica distal (a mais frequente)
sub-aguda ou crónica; e a polirradiculoneuropatia desmielinizante inflamatória crónica.

214
A medicação pode também provocar efeitos secundários: por exemplo, a miopatia está
associada à corticoterapia e à hidroxicloroquina.

O diagnóstico implica a exclusão de outras causas orgânicas, sendo necessário recorrer


a métodos complementares de diagnóstico, como doseamento de auto- anticorpos,
avaliação do LCR, estudos electrofisiológicos, avaliação neuropsicológica e exames de
imagem. O tratamento deve ser dirigido à causa primária ou secundária, sendo o
prognóstico variável.

Síndrome de Sjögren (SSj)


O atingimento neurológico pode surgir antes, depois ou concomitante aos sintomas de
sicca. As complicações do SNC estão presentes em cerca 15% dos doentes, incluindo
nevralgia do trigémeo, AVC, hemorragia, convulsões, meningoencefalite asséptica e
mielite transversa. A lesão vascular está descrita em associação com os anticorpos anti-
neuronais ou anti-Ro+. É importante ressalvar também que a SSj com envolvimento
neurológico pode mimetizar um quadro de EM, pelo que é importante um diagnóstico
diferencial cuidado.

O SNP está afectado em até 30% dos doentes com SSj e o seu atingimento está
habitualmente dividido em sete tipos: ataxia sensorial, neuropatia sensorial (sem ataxia),
neuropatia do trigémeo, neuropatia autonómica (associada a anticorpos contra o
receptor muscarínico tipo 3), envolvimento de pares cranianos múltiplos,
mononeuropatia múltipla e radiculoneuropatia.

Esclerose Sistémica (ES)

O envolvimento neurológico da ES tem vindo a ser mais reconhecido, à medida que o


seu processo fisiopatológico vai sendo melhor compreendido. A nível do SNC, pode
provocar cefaleia, convulsões, défice cognitivo e perturbações do humor (depressão e
ansiedade). O atingimento periférico envolve a síndrome do túnel cárpico, neuropatia do
trigémeo, polineuropatia sensorial distal e simétrica e miopatia proximal.

Artrite Reumatóide (AR)

O envolvimento do SNC é raro e os sintomas são semelhantes aos provocados por


vasculite, como AVC, convulsões e meningite (associada à presença de nódulos
reumatóides). A sinovite destrutiva associada à sub-luxação atlanto-axial pode provocar
deformidade e compressão cervical da medula espinhal.
A nível periférico, as lesões são provocadas por fenómenos de vasculite e pela pressão
provocada pelos nódulos reumatóides. As complicações mais frequentes são a
neuropatia sensitiva periférica, de predomínio axial, provocada por vasculite; a
mononeurite múltipla, menos frequente mas com evolução clínica mais grave; a
neuropatia periférica por compressão directa de nervos isolados, sendo os mais
frequentes o mediano, o cubital, o plantar interno ou externo e o peronial; e a neuropatia
sensitivo motora dos membros superiores e inferiores, mais grave e com

215
pior prognóstico. Podem ser ainda detectados processos de miosite, sendo a biópsia
muscular positiva em 40% dos casos.

O próprio tratamento da AR pode provocar efeitos secundários com envolvimento


neurológico: o ouro está associado a síndrome de Guillain-Barré; a hidroxicloroquina a
cefaleia, perturbações psicóticas, neuropatia e miopatia; a D-penicilamina a alterações
do paladar, miopatia inflamatória ou miastenia; os salicilatos a défices auditivos; os
agentes anti-TNFα a desmielinização com episódios semelhantes a esclerose múltipla.

Doença Inflamatória Intestinal (DII)


As manifestações neurológicas da DII podem ser provocadas por vários mecanismos:
má absorção e défices nutricionais, sobretudo de vitaminas B1, B12, E, ácido fólico e
nicotinamida; agentes metabólicos; infecções a complicar imunossupressão; efeitos
laterais da medicação (metronidazol, sulfassalazina, corticoesteróides ou ciclosporina
A) ou de cirurgias; tromboembolismo; ou alterações imunológicas. A hipótese do “eixo
neuro-intestinal” defende ainda que o stress inflamatório existente na DII é detectado no
hipotálamo, que vai responder mediante a libertação de factor de libertação da
corticotropina, com efeitos na secreção cortico-adrenérgica, resposta autonómica e
estimulação ou supressão de funções imunológicas.

Em termos de envolvimento do SNC, estão descritos episódios de acidente vascular


cerebral, convulsões, neuropatia óptica, enxaqueca, alterações cerebelosas, síndromes
vestibulares, EM, mieloradiculopatias, parésias de pares cranianos, abcessos epidurais
e tumores do SNC.

A neuropatia periférica é uma das manifestações mais frequentes de DII, quer imuno-
mediada, quer secundária a terapêutica com metronidazol, manifestando-se por
parestesias, pelo envolvimento de pequenas fibras (autonómicas ou sensoriais), e
aumento do limiar para sensibilidade térmo-álgica. A MG está também associada à DII,
ocorrendo com mais frequência na colite ulcerosa do que na doença de Crohn.

Tiroidite de Hashimoto
A encefalite de Hashimoto é uma manifestação rara da tiroidite auto-imune, embora
também possa estar associada à doença de Graves, tem um quadro de instalação sub-
agudo, intercalando períodos de recidiva e remissão. Clinicamente, manifesta-se por
flutuações do estado de consciência, alterações neurológicas focais ou difusas, cefaleia
e alterações cognitivas. O LCR revela alterações inflamatórias, há elevação dos títulos
de anticorpos anti-tiroideus e alterações do electroencefalograma. Apresenta boa
resposta à corticoterapia.

Vasculites
As vasculites, como descrito no capítulo II.8, são síndromes ou doenças provocadas
pela inflamação e necrose da parede vascular, podendo atingir vasos de pequeno,
médio e grande calibre. Classificam-se em primárias ou secundárias, consoante a sua

216
associação a outras doenças, como a Artrite Reumatóide ou o Lúpus Eritematoso
Sistémico. As alterações imunomediadas e a isquémia da parede vascular são as
principais causas dos sintomas provocados no Sistema Nervoso Central (SNC) e
Sistema Nervoso Periférico (SNP). A sobreposição de um complexo espectro de
manifestações clínicas pode dificultar o reconhecimento do atingimento neurológico
nestas situações, o que atrasa o diagnóstico e, consequentemente, o tratamento.

VASCULITE DE GRANDES VASOS

Arterite Temporal

As manifestações clínicas do SNC relacionam-se com a região anatómica da artéria


carótida afectada. O sintoma inicial mais frequente é a enxaqueca (33%), localizada
sobretudo na região temporal, e a complicação mais comum e grave é a perda unilateral
ou bilateral de visão, por neuropatia isquémica do nervo óptico. As complicações do
SNP afectam 15% dos doentes e incluem polineuropatia sensitivo- motora distal e
simétrica ou mononeuropatia múltipla. A polimialgia reumática coexiste em 40% destes
doentes, o que aumenta o risco de perda de visão. O tratamento assenta em
corticoterapia.

Doença de Takayasu

A disfunção neurológica pode ser a primeira manifestação da doença, embora seja mais
frequente o aparecimento no curso da doença. O envolvimento da carótida interna está
associado a neuropatia óptica isquémica, parésias isoladas dos pares cranianos ou
AVC. O envolvimento do SNP é raro, com défice sensitivo-motor sub- agudo com
distribuição do plexo cervico-braquial.

VASCULITE DE MÉDIOS VASOS

Poliarterite Nodosa

As manifestações neurológicas são comuns, embora os sintomas neurológicos ocorram


já tarde no curso da doença, como a encefalopatia multifocal (40%). Os sinais
neurológicos incluem alterações da personalidade e da memória, cefaleia atípica
persistente, afasia, hemiplegia, alterações visuais (turva, hemianópsia), convulsões,
mielite transversa e hemorragia sub-aracnoideia. Até 65% dos doentes apresentam
alterações no SNP, como mononeurite múltipla dolorosa e polineuropatia sensitivo-
motora distal simétrica. O tratamento passa por corticoterapia e outros
imunossupressores, como a ciclofosfamida.

VASCULITE DE PEQUENOS VASOS

Granulomatose Eosinofílica

Os eventos neurológicos a nível do SNC são raros, podendo incluir paralisia do VII ou
X par craniano, AVC isquémico ou hemorrágico, convulsões e coma. O envolvimento

217
do SNP atinge até 60% dos doentes, sendo mais frequentes a mononeurite múltipla ou
neuropatia axonal sensitiva simétrica ligeira. Esta neuropatia ocorre por isquémia dos
vasa vasorum que circundam o nervo, que leva à perda de axónios sensitivos e motores.
Os estudos electrofisiológicos são fundamentais para o diagnóstico, podendo ser
necessária biópsia de nervo. O tratamento assenta na imunossupressão.

Poliangeíte Granulomatosa

O envolvimento neurológico acomete cerca de 50% destes doentes na sequência de


lesões granulomatosas necrotizantes de pequenos vasos. A nível do SNC, as
complicações dependem da presença de vasculite, extensão contígua ou propagação
granulomatosa. Os granulomas provocam sobretudo meningite basilar, disfunção do
lobo temporal, oclusão do seio venoso e neuropatia do II, VI e VII pares cranianos. Ao
nível do SNP, a manifestação mais frequente é a mononeurite múltipla (10-22%). O
diagnóstico passa pela confirmação histológica; na abordagem terapêutica, os novos
agentes anti-TNF alfa ainda não revelaram benefício na fase activa ou de manutenção
da doença.

VASCULITE DE VASO DE CALIBRE VARIÁVEL

Doença de Behçet

O neuro-Behçet, envolvimento do SNC pela doença de Behçet, atinge cerca de 30% dos
doentes, podendo manifestar-se de forma aguda ou crónica. Na forma aguda pode
ocorrer meningoencefalite aguda com lesões focais, que se traduzem por áreas de alta
intensidade em T2 ou FLAIR na RMN-CE; a forma crónica caracteriza-se por quadro
demencial lentamente progressivo, ataxia e disartria. Esta última forma de apresentação
é resistente à corticoterapia, ciclofosfamida e azatioprina, havendo estudos que
sugerem resposta favorável a doses baixas de metotrexato, pulsos de metilprednisolona
endovenosos e antagonistas do TNF alfa. O envolvimento do SNP é raro, embora possa
surgir polineuropatia simétrica distal e mononeurite múltipla.

Conclusão
O atingimento do sistema nervoso por doenças auto-imunes é complexo, sendo
importante distinguir as doenças que primariamente afectam o SNC ou o SNP das que
o afectam indirectamente, por processos trombóticos ou inflamatórios. Dentre os
processos de envolvimento secundário, está ainda a toxicidade medicamentosa e as
infecções inerentes à condição de imunossupressão da maior parte destes doentes.
Embora haja um espectro clínico semelhante entre várias doenças, é o seu rápido
reconhecimento e implementação de terapêutica que podem prevenir danos
neurológicos permanentes, que vão afectar a qualidade e mesmo a sobrevida dos
doentes.

218
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- alterações neurológicas de novo em doentes com DAI conhecida: ponderar Tc-
CE/RMN-CE, PL (o LCR apresenta aumento das bandas oligoclonais ou meningite
linfocítica); excluída infecção ou neoplasia, pode ser necessária implementação
precoce de terapêutica imunossupressora.

TAKE HOME MESSAGES


O sistema nervoso é atingido por DAI de diferentes formas: primariamente, o SNC
pela EM e encefalites auto-imunes; o SNP por neuropatias sensoriais, mononeurite
múltipla e polirradiculoneuropatias desmielinizantes.
A MG e a SLE afectam a junção neuro-muscular.
O atingimento secundário é frequente no LES, SSj e nas vasculites, mas está
associado a uma grande parte das DAI abordadas neste manual.
O primeiro passo para diagnosticar complicações do SN nestas situações é pensar
nelas!

Bibliografia
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220
2. OLHO E DOENÇAS AUTO-IMUNES

Introdução
As doenças auto-imunes sistémicas podem, por definição, envolver vários órgãos,
podendo o olho ser um deles. As queixas podem ser variadas, desde xeroftalmia, a
prurido, olho vermelho, sensação de corpo estranho ou fotofobia, sendo fundamental a
correcta avaliação de cada doente para que se chegue ao diagnóstico certo e se
implemente terapêutica adequada. Neste capítulo, abordaremos apenas algumas das
DAI com envolvimento ocular.

Artrite Reumatóide
Cerca de 25% dos doentes com Artrite Reumatóide (AR) podem ter manifestações
oculares – queratoconjuntivite sicca, esclerite, episclerite, queratite, ulceração da córnea
periférica e entidades menos comuns, como coroidite, vasculite retiniana, nódulos na
episclera, descolamento de retina e edema macular.

A queratoconjuntivite sicca, ou síndrome do olho seco, é a manifestação ocular mais


comum da AR, com uma prevalência de 15 a 25%. Um teste simples para avaliar a
função da glândula lacrimal é o Teste de Schirmer – realiza-se inserindo uma tira de
Schirmer no olho previamente seco, na pálpebra inferior; após 5 minutos, se a tira medir
menos de 10 mm de lágrima, pode assumir-se que as glândulas lacrimais não estão a
funcionar correctamente. Se estiver disponível uma lâmpada de fenda, o exame da
córnea pode revelar queratopatia erosiva ou filamentos. O principal alvo do tratamento
do olho seco é manter a lágrima. Os doentes devem ser informados quanto a medidas
simples, como o uso de óculos de sol e a utilização de lágrimas artificiais.

A esclerite ou episclerite em doentes com AR ocorre em 4 a 10% dos casos. No entanto,


a AR consiste na causa mais frequente de esclerite, correspondendo entre 18 e 33%
dos casos. Os sintomas da esclerite e episclerite podem ser semelhantes, mas a dor na
esclerite é mais evidente e intensa. A dor à palpação do globo ocular pode ajudar a
diferenciar as duas – os doentes com esclerite têm dor à palpação, enquanto que os
doentes com episclerite não têm.

Entre as variações de esclerite, a esclerite necrotizante com inflamação é a mais


destrutiva. Além de achados oculares, podem ser encontradas áreas avasculares da
esclera ou necrose rodeadas por edema da esclera. Complicações incluem perda de
espessura da esclera, estafiloma ou perfuração. A esclerite necrotizante sem inflamação
é um sinal de AR de longa evolução e pode levar a escleromalácia perforans.

Entre as duas formas de episclerite, a episclerite simples é mais comum em doentes


com AR. A presença de nódulos subconjuntivais móveis sobre a esclera diferencia a
episclerite nodular da episclerite simples. Ambas as formas de episclerite podem ser
confundidas com conjuntivite grave pela aparência vermelha viva do olho; pode ser
diferenciada com a ajuda de história clínica e exame físico.

221
É importante diagnosticar e distinguir correctamente esclerite e episclerite pelas
potenciais complicações oculares e sistémicas associadas à esclerite. Doentes com
episclerite associada à AR têm doença sistémica mais greve e maior taxa de mortalidade
do que os doentes sem esclerite. O tratamento inicial da esclerite e da episclerite deve
passar pelo alívio da dor e controlo na progressão da doença. A terapêutica inicial inclui
indometacina oral ou outros anti-inflamatórios não esteróides. Doentes que não
respondam a estes fármacos podem iniciar corticóides tópicos ou medicação
imunossupressora sistémica.

A doença da córnea na AR pode ser uma complicação isolada, mas está frequentemente
associada a queratoconjuntivide sicca ou a uma forma de esclerite anterior. O espectro
da doença pode incluir queratite, queratite esclerosante e queratite ulcerativa periférica
ou para-central. A queratite aguda tem sido identificada em 30 a 70% dos doentes com
esclerite ou episclerite associada a AR – é marcada por infiltrado celular inflamatório,
que pode resultar em cicatriz da córnea, ulceração ou destruição.

A queratite esclerosante é um processo crónico, marcado por uma área de córnea


opacificada e vascularizada. Esta área de opacificação pode ser mais evidente com
coloração com fluoresceína. A queratite ulcerativa periférica pode ocorrer em
associação com esclerite e é marcada pela diminuição da espessura da córnea. Sem
tratamento, pode ocorrer perfuração e perda visual. Geralmente são necessários
corticóides tópicos, terapêutica imunossupressora, cirurgia ou uma combinação destas
abordagens para preservar a visão.

Outras manifestações oculares menos comuns incluem coroidite, vasculite retiniana,


nódulos na episclera, descolamento de retina e edema macular

Artrite Idiopática Juvenil


A Artrite Idiopática Juvenil (AIJ) é responsável pode cerca de 80% de casos de uveítes
nas crianças. O atraso no diagnóstico pode levar a catarata, glaucoma e cegueira.
Embora a uveíte possa ser encontrada em todas as formas de AIJ, é mais comum no
subtipo pauci-articular. A maior parte dos doentes podem ter visão enevoada ou não ter
sequer sintomas. À observação, o doente pode apresentar diminuição da acuidade
visual, queratopatia em banda, sinéquias, cataratas ou pressão ocular elevada. A
terapêutica envolve monitorização apertada por colegas de oftalmologia e o uso de
agentes cicloplégicos (paralisação da acomodação), corticóides, anti-inflamatórios não
esteróides ou terapêutica imunossupressora.

Síndrome de Sjögren
A principal manifestação ocular de Síndrome de Sjögren é a queratoconjuntivite sicca.
Os sinais e sintomas são semelhantes aos da queratoconjuntivite seca associada à AR.
Além das opções terapêuticas já descritas, podem ser usados comprimidos de 5 mg de
pilocarpina (Salagen®), até quatro vezes por dia, para melhorar os sintomas de
xeroftalmia e xerostomia, embora este fármaco seja dispendioso e esteja associado a
cefaleia forte.

222
Espondilartropatias
Entre as espondilartropatias seronegativas, a uveíte na espondilite anquilosante é a
manifestação ocular mais comum. Ocorre em cerca de 25% dos doentes com espondilite
anquilosante, em até 37% dos doentes com artrite reactiva, em cerca de 20% de doentes
com artrite psoriática e em até 9% dos doentes com artrite enteropática. Os sintomas
oculares podem ser uni ou bilaterais e a dor é causada por espasmo ciliar, em resposta
a inflamação da câmara anterior. As complicações incluem glaucoma, catarata ou
cegueira.

Lúpus Eritematoso Sistémico


Ocorre doença ocular em cerca de 20% dos doentes com Lúpus Eritematoso Sistémico
(LES). Nalguns casos, a doença ocular pode indicar reactivação de LES previamente
em remissão. As manifestações oculares externas incluem queratoconjuntivite sicca,
conjuntivite, uveíte, episclerite, esclerite, queratite e um eritema discóide sobre as
pálpebras, que pode se confundido com blefarite.

O envolvimento neuro-oftalmológico no LES é primariamente causado por micro-


enfartes, hemorragias ou vasculite em várias localizações do olho. As complicações
típicas incluem neurite óptica, neuropatia óptica isquémica, hemianópsia, amaurose,
oftalmoplegia internuclear, anomalias pupilares, anomalias oculomotoras, pseudotumor
cerebri e alucinações visuais.

A doença da retina ocorre primeiramente em doentes com LES activo e pode incluir
exsudados algodonosos, hemorragias retinianas, vasculite retiniana e retinopatia
proliferativa. A doença da retina tem elevada morbilidade e deve ser tratada de forma
agressiva.

Em doentes com LES sob Hidroxicloroquina deve ser feita vigilância oftalmológica anual
– ver capítulo II.4.

Arterite de Células Gigantes


Até 50% dos doentes com arterite de células gigantes apresentam sintomas oculares
que incluem dor, diplopia, perda de visão e amaurose fugaz, além de cefaleia,
claudicação da mandíbula e cervicalgia. É importante referir que o envolvimento ocular
é comum na ausência de sinais ou sintomas sistémicos.

Os doentes têm dor à palpação da artéria temporal ou diminuição do pulso, mas o


diagnóstico é confirmado por biópsia da artéria temporal e elevação da velocidade de
sedimentação e proteína C reactiva. A biópsia permanece positiva até duas semanas
após início da terapêutica com corticóides.

223
DOENÇA MANIFESTAÇÕES OCULARES
Queratoconjuntivite sicca, esclerite, episclerite, queratite
Artrite Reumatóide ulcerativa, coroidite, vasculite retiniana, nódulos na episclera,
descolamento da retina, edema macular
Artrite Juvenil Uveíte

Síndrome de Sjögren Queratoconjuntivite sicca


Espondilite
Uveíte
Anquilosante
Artrite Reactiva Conjuntivite, uveíte, queratite

Artrite Enteropática Uveíte, episclerite, queratite ulcerativa periférica

Artrite Psoriática Uveíte, conjuntivite, queratite


Queratoconjuntivite sicca, conjuntivite, uveíte, episclerite,
queratite, hemorragias retinianas, vasculite retiniana, retinopatia
Lúpus Eritematoso
proliferativa, neurite óptica, neuropatia óptica isquémica,
Sistémico
hemianópsia, amaurose, oftalmoplegia internuclear, anomalias
pupilares, anomalias oculomotores, alucinações visuais
Arterite de Células
Amaurose fugaz, diplopia, perda de visão
Gigantes
Uveíte, nódulos conjuntivais, paralisia de nervos cranianos,
Sarcoidose
aumento das glândulas lacrimais, neuropatia óptica
Granulomatose com Proptose/exoftalmia, celulite orbitária, uveíte, úlcera da córnea,
Poliangeíte (Wegener) neuropatia óptica
Doença de Behçet Uveíte, hipopion
Síndrome Anticorpo
Retinopatia vaso-oclusiva, neuropatia óptica isquémica
Anti-fosfolípidico
Poliarterite nodosa Episclerite, esclerite, neuropatia óptica

Arterite de Takayasu Retinopatia vaso-oclusiva, neuropatia óptica isquémica, catarata

Dermatomiosite Edema da pálpebra/conjuntiva, retinopatia, uveíte


Tabela 1: Manifestações oculares de Doenças Autoimunes

TAKE HOME MESSAGES


As doenças auto-imunes sistémicas podem apresentar manifestações oculares que podem
inclusivamente ser a primeira manifestação de doença.

O índice de suspeição deve ser elevado, não só para a referenciação a Oftalmologia, mas
também para saber quando pesquisar uma doença auto-imune sistémica.

Muitas vezes a terapêutica das manifestações oculares passa por terapêutica tópica e
sistémica.

Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3
• Ocular manifestations of autoimmune disease, Patel SJ, Lundy DC, 2002, American Family
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224
3. RIM E DOENÇAS AUTO-IMUNES

Introdução
As Doenças Auto-Imunes (DAI) constituem um grupo heterogéneo de patologias, mas
partilham entre si alterações da imunorregulação, como a produção de auto- anticorpos,
levando a manifestações comuns, como a lesão renal. As alterações da função renal
podem surgir associadas a diferentes DAI, das quais abordaremos de forma genérica a
Síndrome de Sjögren (SSj), a Esclerose Sistémica (ES), as Miosites Inflamatórias
(Polimiosite (PM) e Dermatomiosite (DM)), o Lúpus Eritematoso Sistémico (LES), a
Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido (SAAF), a Artrite Reumatóide (AR) e as
Vasculites. Cada uma destas patologias pode apresentar diferentes alterações na
biópsia renal – figura 1 e tabela 1.

Figura 1: Vias imunológicas de lesão glomerular. CKD – chronic kidney disease; GBM – glomerular basement membrane;
PR3 – proteinase 3; LAMP-2 – lysosome-associated membrane protein 2; MPO – myeloperoxidase; PLA2R
– secretory phospholipase A2 receptor; α3(IV)NC1 – non-collagenous 1 (NC1) domain of the α3 chain of type IV collagen;
aHUS – atypical haemolytic uraemic syndrome. From The immune system and kidney disease: basic concepts and
clinical implications. Kurts et al, Nature Reviews Immunology 13, 738-753 (2013).

A semiologia associada ao envolvimento renal é variada e os doentes podem apresentar


um quadro constitucional inespecífico, com sensação de mal-estar geral, febre, mialgia,
perda ponderal, anorexia, artralgia ou mesmo artropatia migratória. Nos casos
associados a síndrome nefrótico, destaca-se o edema (de peri-orbitário, perimaleolar e
hidrocelo, a ascite e anasarca), com ganho ponderal e urina espumosa.

225
O pródromo pode variar de dias a meses, sem manifestações específicas de órgão. É
importante ressalvar que em doentes com outras patologias, como a diabetes mellitus
ou a hipertensão arterial, sobretudo se forem idosos, a etiologia auto-imune pode ser
facilmente relegada, pelo que a abordagem de uma lesão renal de novo deve incluir uma
elevada suspeição clínica e diagnóstico diferencial exaustivo. Analiticamente, destaca-
se sedimento urinário alterado (hematúria, proteinúria, cilindros granulosos, celulares ou
com hemoglobina), disfunção renal e imunologia positiva. A biópsia renal permite
estabelecer o diagnóstico, o prognóstico e orientar a abordagem terapêutica.

ACHADOS DA BIÓPSIA RENAL DOENÇA AUTO-IMUNE


NEFRITE TUBULOINTERSTICIAL SSj, AR
GN MESANGIAL PROLIFERATIVA / NEFROPATIA IGA SSj, PM, DM, LES, AR

GE SEGMENTAR FOCAL SSj, LES, SAAF, AR

GN CRIOGLOBULINÉMICA MEMBRANO-PROLIFERATIVA SSj


DOENÇA DE LESÃO MÍNIMA SSj, PM, LES, SAAF, AR
NEFROPATIA MEMBRANOSA SSj, PM, DM, Nefrite lúpica classe V, SAAF, AR
AMILOIDOSE RENAL SECUNDÁRIA SSj, AR

MICROANGIOPATIA TROMBÓTICA SAAF, crise renal esclerodérmica


GN PROLIFERATIVA DIFUSA DM
NEFROPATIA IGM LES
GLOMERULOPATIA COLAPSANTE LES
NEFRITE LÚPICA Nefrite lúpica I-VI, nefrite lúpica proliferativa
fármaco-induzida
GN FIBRILHAR SAAF, AR
GN CRESCÊNTICA NECROTIZANTE ES, AR

GN PROLIFERATIVA FOCAL AR
GN CRESCÊNTICA COM GE FOCAL SEGMENTAR PM
NEFROPATIA C3 SAAF
Tabela 1: Alterações histológicas na biópsia renal, de acordo com as doenças auto-imunes relacionadas. GN –
glomerulonefrite, IgA – Imunoglobulina A, GE – glomeruloesclerose, IgM – Imunoglobulina M. SSj – Síndrome de Sjögren,
AR – Artrite Reumatóide, PM – Polimiosite, DM – Dermatomiosite, LES – Lúpus Eritematoso Sistémico, SAAF
– Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido, ES – Esclerose Sistémica. Adaptado de Kronbichler A. and Mayer G., BMC
Medicine 2013; 11:95.

Síndrome de Sjögren
A Síndrome de Sjögren Primária (capítulo II.2), enquanto síndrome sistémica, pode
apresentar manifestações extra-glandulares, atingindo os pulmões, vasos sanguíneos,
pele, tracto gastrintestinal, sistema nervoso central e periférico, aparelho músculo-
esquelético e rim. A Síndrome de Sjögren secundária está associada a outras doenças
auto-imunes que também provocam lesão renal, como o LES, ES ou AR. O atingimento
renal da SSj varia de 4,2% a 67% dos doentes, variando os dados com os coortes e
respectivos critérios de inclusão utilizados.

226
A nefrite tubulointersticial (NTI), com subsequente tubulopatia, é o achado mais
frequente nas biópsias renais realizadas a doentes com SSj (Fig.2). A acidose tubular
renal distal (tipo 1) (ATR) é a manifestação clínica mais frequente, com gravidade
variável, de ligeira a potencialmente fatal. A ATR proximal (tipo 2) e as lesões
glomerulares são raras.

Figura 2: Apresentação histológica da nefrite tubulointerstiticial da Síndrome de Sjögren. Coloração Masson Tricrómio.
A) Células mononucleares no interstício, com atrofia tubular e fibrose intersticial. B: Infiltrado de linfócitos e plasmócitos
(seta). From Renal Involvement in Primary Sjögren Syndrome. François H et Mariette X. Nature Reviews Nephrology 12,
82-93 (2016).

O tratamento de primeira linha consiste em corticoterapia, juntamente com outros


fármacos imunossupressores (hidroxicloroquina, rituximab, ciclofosfamida). A
suplementação crónica com bicarbonato e/ou electrólitos permite prevenir complicações
letais.

Crise Renal Esclerodérmica


Na Esclerose Sistémica (capítulo II.5) a produção e deposição de matriz extracelular e
colagénio, com subsequente fibrose e disfunção de órgão, atinge a pele, o tracto
gastrintestinal, o coração, o pulmão e o rim. A crise renal esclerodérmica (CRE) ocorre
em cerca de 5% dos doentes com ES e foram já identificados alguns factores de risco
com valor preditivo: duração da doença inferior a 4 anos, espessamento cutâneo
progressivo anterior ao atingimento renal, aparecimento de novo de anemia e
atingimento cardíaco (derrame pericárdico ou insuficiência cardíaca congestiva). A
positividade para o anticorpo anti-RNA polimerase III constitui um importante factor de
risco para a CRE, ao contrário dos anticorpos anti-topoisomerase I e anti-centrómero,
associados a melhor prognóstico quanto ao atingimento renal. Em vários estudos a
corticoterapia prolongada (>15 g/ dia) surge também associada à CRE.

A CRE surge em doentes normotensos em cerca de 10% dos casos: nestas situações
está particularmente associada a corticoterapia prolongada ou anemia hemolítica
microangiopática, havendo maior risco de mortalidade e necessidade de iniciar técnica

227
de substituição renal mais precocemente. Nos doentes hipertensos (tensão arterial >
150/100 mm Hg), cerca de 90% das situações de atingimento renal, a CRE é
acompanhada de sintomas de hipertensão maligna, insuficiência ventricular esquerda,
encefalopatia hipertensiva e arritmia.

Figura 3: Fisiopatologia da crise renal esclerodérmica. From Scleroderma Renal Crisis and Renal Involvement in
Systemic Sclerosis. Woodworth T et al. Nature Reviews Nephrology 12, 678-691 (2016).

O diagnóstico da CRE é confirmado por biópsia, que costuma revelar um processo


microangiopático trombótico, afectando sobretudo os pequenos vasos. As lesões
vasculares são acompanhadas de trombose, material mixóide e, mais tarde, lesões em
“pele de cebola” e esclerose da camada fibroíntima (Fig.4).

Figura 4: Lesão histológica na crise renal esclerodérmica. From Scleroderma Renal Crisis and Renal Involvement in
Systemic Sclerosis. Woodworth T et al. Nature Reviews Nephrology 12, 678-691 (2016).

O tratamento da CRE assenta na utilização precoce de inibidores da enzima de


conversão da angiotensina (IECA), afim de evitar a progressiva deterioração ou mesmo
reverter a lesão renal. Se a tensão arterial não estiver controlada, podem ser usados
outros anti-hipertensores: bloqueadores dos canais de cálcio, beta/alfa bloqueantes ou
minoxidil. A técnica de substituição renal pode ser necessária em até

228
50% dos doentes, sobretudo para controlo da sobrecarga hídrica, embora nalguns casos
possa ser posteriormente interrompida. Nas situações graves, o transplante renal pode
ser necessário, com uma taxa de sobrevida de 56,7% a 5 anos. Nestes doentes
transplantados, a ciclosporina A deverá ser evitada, dado estar relaciona a lesão renal
aguda em doentes com ES.

Dermatomiosite e Polimiosite
As miopatias inflamatórias (capítulo II.7), dermatomiosite e polimiosite, apresentam
manifestações clínicas semelhantes, como a fadiga muscular das cadeias proximais,
miosite, presença de anticorpos, elevação das enzimas musculares, alterações
electromiográficas e manifestações extra musculares. O atingimento renal é raro e
ocorre por diferentes mecanismos.

A rabdomiólise com libertação de mioglobina pode, por um lado, provocar necrose


tubular aguda, com deterioração da função renal. Por outro lado, vários estudos
descrevem glomerulonefrite (GN) crónica nestes doentes, sendo que, na PM, a GN será
sobretudo mesangial proliferativa e na DM predomina a nefropatia membranosa.

O tratamento consiste em doses elevadas de corticoterapia, embora o prognóstico


possa ser melhorado pela utilização de outros imunossupressores: na DM, a azatioprina,
a ciclofosfamida e a hidroxicloroquina; na PM, o metotrexato, a ciclofosfamida, a
imunoglobulina endovenosa e a ciclosporina A. Verificou-se que a mortalidade destes
doentes é variável: no caso da DM, está relacionada com a presença de neoplasias ou
falência multi-orgânica; no caso da PM, com rabdomiólise aguda, seguida de
hipercaliémia grave e acidose metabólica grave.

Lúpus Eritematoso Sistémico


O Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) apresenta uma grande heterogeneidade de
manifestações clínicas (capítulo II.4), estando a nefrite lúpica NL) associada a pior
prognóstico. A sobrevida destes doentes a 5 anos é actualmente estimada em 95%.
Quando está presente, a NL manifesta-se no primeiro ano de doença em cerca de 50%
dos casos.

A nefrite lúpica está definida pela American College of Rheumatology (ACR) como
proteinúria persistente > 0,5 g/24 horas ou >3+ na fita reagente, e/ou presença de
cilindros com eritrócitos, hemoglobinúricos, granulares, tubulares ou mistos.

Há várias manifestações de doença renal no LES, sendo a mais frequente a


glomerulopatia mediada por imunocomplexos. O tipo de lesão glomerular vai depender
precisamente do local de deposição dos imunocomplexos, sendo estes formados
principalmente à custa dos anticorpos anti-double stranded DNA (anti-dsDNA). Estes
anticorpos ligam-se ao DNA de vários modos: o DNA encontra-se sob a forma de
nucleossoma (o nucleossoma consiste em DNA em dupla hélice enrolado em torno de
um octâmero de histonas), aos quais os anti-dsDNA se vão ligar, actuando depois como
auto-antigénios, formando imunocomplexos que se vão depositar em diferentes locais
do glomérulo. Os níveis de complemento C3 e C4 correlacionam-se com a actividade
da doença, havendo diminuição dos seus níveis séricos durante a fase

229
activa da doença – por consumo, na formação dos imunocomplexos (Fig. 5). Os
anticorpos anti-C1q têm sido detectados nos doentes com nefrite lúpica activa e
apresentam uma forte correlação com os níveis de proteinúria, podendo vir a ser um
biomarcador de actividade de doença renal.

Figura 5: Fisiopatologia da nefrite lúpica – formação de imunocomplexos com activação do complemento e indução de
mediadores inflamatórios, o que resulta em quimiotaxia e activação de células inflamatórias no rim; por sua vez, libertam-
se mais sinais e mediadores pró-inflamatórios, provocando lesão celular e estrutural dos elementos no parênquima renal.
From Lúpus nephritis: lessons from murine models. Nat. Rev. Rheumatol. 6, 13–20 (2010).

De acordo com as recomendações internacionais, todos os doentes com evidência de


NL activa, sem terapêutica prévia, devem ser submetidos a biópsia renal, com vista à
classificação histológica e subsequente tratamento dirigido, de acordo com a
International Society of Nephrology / Renal Pathology Society – critérios ISN/RPS
(Tabela 2).
Classificação da Nefrite Lúpica – Critérios ISN/RPS
Classe I NL mínima mesangial
Classe II NL mesangial proliferativa
Classe III NL focal
III (A) Lesões activas
III (A/C) Lesões activas e crónicas
III (C) Lesões crónicas
Classe IV NL difusa
IV (A) Lesões activas
IV (A/C) Lesões activas e crónicas
IV (C) Lesões crónicas
Classe V NL membranosa
Classe VI NL esclerosada avançada
Tabela 2 – Critérios de Classificação de Nefrite Lúpica, de acordo com a International Society of Nephrology (ISN) /
Renal Pathology Society (RPS). NL: Nefrite Lúpica.

230
Figura 6: A: Nefrite lúpica classe III: em MO, glomérulos com hipercelularidade, necrose capilar e tecido cicatricial
aderente à cápsula de Bowman juntamente com área mesangial sem alterações; B: Nefrite lúpica classe III: IF, depósitos
imunes granulares na membrana basal; C: Nefrite lúpica classe IV: MO, glomérulos com hipercelularidade endocapilar
com perda de capilares; D: Nefrite lúpica classe IV: IF, depósitos granulares alongados ao longo da membrana basal,
subendoteliais. MO: microscopia óptica; IF: imunofluorescência. From Journal of Autoimmunity 74, June 2016.

Dado que o objectivo deste capítulo não é apreender conhecimentos pormenorizados


sobre NL, abordaremos de forma geral a sua orientação terapêutica. A ACR recomenda
que o tratamento seja baseado na classificação da Nefrite Lúpica (critérios ISN/RPS):
os doentes com NL de classe I e II geralmente não necessitam de terapêutica
imunossupressora; os doentes com NL de classe III e IV requerem terapêutica
imunossupressora agressiva com corticóides e outros imunossupressores (micofenolato
de mofetil (MMF) ou ciclofosfamida (CYC)). Os doentes com NL de classe V, caso
tenham achados sugestivos de classe III ou IV, devem ser tratados como nestas duas
últimas classes; se os achados forem apenas compatíveis com classe V, sugere-se
tratamento com corticóides e MMF, embora não haja um claro consenso quanto a este
último fármaco; os doentes em classe VI normalmente acabam por precisar de técnica
de substituição renal. Podem ser utilizados fármacos adjuvantes: a hidroxicloroquina,
em todos os doentes, para evitar os flares de doença; os inibidores da enzima de
conversão da angiotensina ou antagonistas dos receptores da angiotensina, de forma a
reduzir a proteinúria em cerca de 30% e atrasar a progressão da NL para doença renal
terminal. Para este efeito, a tensão arterial também deve estar controlada, com níveis
abaixo dos 130/80 mm Hg. A terapêutica de manutenção para os doentes que
responderam à indução pode assentar no MMF ou azatioprina. Nos “não
respondedores” à indução, pode ser usado outro fármaco imunossupressor (CYC, MMF)
ou o anticorpo monoclonal anti-CD20 Rituximab. Estudos prospectivos recentes têm
incluído o tacrolimus e o Belimumab no tratamento da NL, aguardando-se resultados a
longo prazo e novas recomendações.

231
Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido
O Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolipído (SAAF) (capítulo II.6) define-se por trombose
vascular ou morbilidade obstétrica associada a anticorpos (anticorpo anti-cardiolipina,
anticoagulante lúpico (ACL), anticorpo anti-beta2-glicoproteína1) positivos por um
período superior a 12 semanas. Pode classificar-se como primário ou secundário,
consoante esteja ou não associado a outra doença auto-imune.

Figura 7: Diferentes formas de apresentação clínica da lesão renal no Síndrome Anticorpo Anti-fosfolípido. aPL,
antiphospholipid antibody; APS, antiphospholipid syndrome; APSN, APS-associated nephropathy; CAPS, catastrophic
APS. From Sciascia, S. et al. Nat. Rev. Nephrol. 10, 279–289 (2014)

As manifestações renais do SAAF podem resultar de trombose em qualquer segmento


da vascularização renal (Fig.7). A estenose da artéria renal é uma complicação
frequente do SAAF, provocando hipertensão renovascular e, na ausência de
anticoagulação eficaz e controlo da tensão arterial, nefropatia vascular. A trombose da
veia renal ou da veia cava inferior está associada a proteinúria nefrótica, sobretudo nos
doentes com ACL+. A designação “nefrite do SAAF” refere-se normalmente a lesão
renal provocada por vasculopatia intra-renal, que pode ser aguda, como no caso
microangiopatia trombótica, e/ou crónica, como no caso da arterioesclerose, hiperplasia
fibrótica da íntima ou atrofia cortical focal.

O tratamento passa, como referido, pelo controlo da tensão arterial e anticoagulação


eficaz (INR>3). A imunossupressão está apenas recomendada nos casos de SAAF
catastrófico, em que ocorre isquémia de pequenos vasos e de órgãos parenquimatosos.
Nestes casos, a abordagem terapêutica passa pela combinação de anticoagulação,
corticoterapia, imunoglobulina endovenosa e plasmaferese, sendo a mortalidade muito
elevada.

Artrite Reumatóide
A artrite reumatóide (AR), (capítulo II.1) enquanto doença sistémica, para além da
membrana sinovial, atinge também outros órgãos, como o rim. As lesões renais
associadas à AR são variadas e incluem glomerulonefrite mesangial, amiloidose,
nefropatia membranosa, glomerulonefrite proliferativa focal, nefropatia de lesão

232
mínima e nefrite intersticial aguda (tabela 1). O desenvolvimento de nefropatia
membranosa raramente é concomitante com as manifestações de AR, excepto se
iatrogénica, ou seja, secundária à terapêutica com DMARDs (penicilamina, bucilamina
ou sais derivados do ouro) ou anti-TNF alfa (etanercept e adalimumab). A amiloidose
secundária, decorrente da elevação das proteínas de amilóide sérico A circulantes,
enquanto marcadores inflamatórios sistémicos, tem uma prevalência de 5,8% e está
associada a pior prognóstico. A glomerulonefrite mesangial está provavelmente
associada à própria AR, uma vez que está directamente relacionada com elevados
níveis de factor reumatóide.

O tratamento da lesão renal nestes doentes está associado à suspensão da iatrogenia,


quando identificada, ou terapêutica imunossupressora. Nos doentes com amiloidose, o
etanercept reduz a proteinúria e o amilóide sérico A circulante.

Vasculites
O atingimento renal é frequente nas vasculites associadas ao anticorpo anti- citoplasma
do neutrófilo (ANCA) (capítulo II.8), atingindo entre 25% e 75% dos doentes com
manifestações sistémicas. Destes, cerca de 35% evoluem para insuficiência renal
crónica terminal, com necessidade de técnica de substituição renal. Nas restantes
vasculites auto-imunes, a prevalência do atingimento renal é difícil de estimar e as
lesões são bastante heterogéneas. O atingimento renal provocado por vasculites
fármaco-induzidas, associadas a infecções, neoplasias ou embolização de colesterol ou
mixoma auricular não são do âmbito deste manual, pelo que não serão abordadas.

A glomerulonefrite necrotizante é a lesão renal mais frequente nas vasculites de


pequenos vasos, que incluem a Granulomatose com Poliangeíte (anteriormente
conhecida por Granulomatose de Wegener) (GPA), a Poliangeíte Microscópica (PAM) e
a Granulomatose com Poliangeíte Eosinofílica (previamente designada Síndrome de
Churg-Strauss) (GPAE). As manifestações renais diferem noutros tipos de vasculites de
pequenos vasos: na vasculite a IgA (anterior Púrpura de Henoch-Schönlein) a nefrite é
mediada pela deposição de IgA, mas, ao contrário da nefropatia IgA, a lesão renal remite
após a resolução da doença, não progredindo para a cronicidade; na Crioglobulinémia
Essencial, os depósitos de crioglobulinas provocam glomerulonefrite membrano-
proliferativa; na Vasculite Limitada ao Rim ou Glomerulonefrite Rapidamente
Progressiva Idiopática, surge uma glomerulonefrite pauci-imune crescêntica.

O tratamento deve ser dirigido ao tipo de vasculite, à extensão da lesão renal e adaptado
às condições do doente. Habitualmente são usados agentes imunossupressores, como
os corticóides ou a ciclofosfamida, ou agentes biotecnológicos, como o rituximab, mas
a abordagem terapêutica pode também passar por plasmaferese, hemodiálise e mesmo
transplante renal. Será ainda relevante realçar que nestes doentes há um aumento da
morbilidade cardiovascular, pelo que é necessário um controlo apertado da tensão
arterial e outros factores de risco cardiovascular.

233
Conclusão
O atingimento renal pelas doenças auto-imunes é heterogéneo, podendo variar de
ligeiro a catastrófico; desde tratável apenas com fármacos que controlam a tensão
arterial, a justificar transplante renal. O conhecimento do mecanismo fisiopatológico
subjacente a cada uma das patologias abordadas permite manter uma vigilância
adequada nos doentes com patologia auto-imune, intervindo atempadamente e evitando
a progressão da lesão renal. Nalgumas situações, a doença renal pode ser a primeira
manifestação de doença, pelo que é importante manter um nível de suspeição clínica
elevada e realizar um diagnóstico diferencial rigoroso, recorrendo aos meios
complementares de diagnóstico necessários.

ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA:

• Sedimento urinário activo com proteinúria, hematúria e cilindros, na ausência de


outra causa evidente, deve ser investigada e a função renal acompanhada –
ponderar encaminhar o doente para consulta.
• Agravamento da função renal deve ser investigado e eventualmente justificar
internamento.

TAKE HOME MESSAGES


As doenças auto-imunes (DAI) abordadas, sistémicas, atingem o rim de diferentes
formas. É importante em cada doente investigar se uma alteração da função renal
pode resultar da evolução natural da doença, ser decorrente da terapêutica em
curso ou ter outra etiologia.
A biópsia renal pode estar indicada em doentes com nefropatia a esclarecer; nos
casos da nefrite lúpica, permite orientar a abordagem terapêutica.
O tratamento da lesão renal nas DAI passa normalmente por imunossupressão e
controlo adequado da tensão arterial.

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• Woodworth et al. Scleroderma renal crisis and renal involvement in systemic sclerosis. Nat. Rev.

235
4. PELE E DOENÇAS AUTO-IMUNES

Introdução
As lesões cutâneas podem apresentar-se como primeira manifestação de doenças auto-
imunes (DAI) sistémicas. O espectro de lesões é variado, sendo o seu reconhecimento
e diagnóstico complexos. O diagnóstico pode ser estabelecido muitas vezes apenas
com elementos clínicos, pelo que a familiaridade com a sua forma de apresentação e
colaboração com colegas de Dermatologia é fundamental. As formas de expressão
cutânea das DAI é extensa, pelo que apenas abordaremos aspectos essenciais de
algumas doenças: Lúpus Eritematoso, Esclerodermia, Vasculites e Artrite Reumatóide.

Lúpus Eritematoso
O Lúpus Eritematoso (LE) é uma doença sistémica (capítulo II.4), com envolvimento
cutâneo em cerca de 80% dos doentes, sendo por vezes esta a primeira manifestação
da doença. A relevância da sua expressão dermatológica está bem patente nos critérios
de diagnóstico para o LE estabelecidos pela Systemic Lúpus International Collaborating
Clinics (SLICC), em que 4 dos 11 critérios não imunológicos são muco- cutâneos: LE
agudo ou sub-agudo, LE crónico, úlceras orais ou alopécia não cicatricial.

O espectro de lesões cutâneas é variado, tal como a doença em si, distinguindo-se LE


sistémico (LES) de LE cutâneo (LEC); LE agudo, sub-agudo ou crónico; LE induzido por
fármacos e LE neonatal. As lesões cutâneas podem ser específicas de Lúpus ou
inespecíficas (Tabelas 1 e 2). A expressão clínica das lesões varia de acordo com a
natureza do infiltrado inflamatório (Fig. 1). A abordagem terapêutica vai assim depender
da extensão destas lesões e eventual envolvimento sistémico. As manifestações
específicas serão abordadas de forma genérica, estando as manifestações
inespecíficas descritas no capítulo de semiologia deste manual (capítulo I.1).

Figura 1: Natureza e profundidade do infiltrado inflamatório nas lesões específicas de Lúpus. ACLE: Acute Cutaneous
Lúpus Erythematosus, SCLE: Subacute Cutaneous Lúpus Erythematosus, DLE: Discoid Lúpus Erythematosus, TLE:
Tumid Lúpus Erythematosus, LEP: Lúpus Erythematosus Profundus. From Bolognia, Jorizzo and Rapini: Dermatology,
Elsevier, 2003.

236
Figura 2: Esquema de distribuição e características das lesões cutâneas no Lúpus.

LESÕES HISTOPATOLOGICAMENTE ESPECÍFICAS DO LÚPUS ERITEMATOSO (LE)


LE CUTÂNEO CRÓNICO
• LE discóide localizado (cabeça e pescoço)
• LE discóide generalizado (disseminado)
• LE verrucoso (ou hipertrófico)
• LE túmido
• LE profundo (paniculite lúpica)
- com LE discóide
- com LE sistémico
• LE mucoso
• Overlap LE cutâneo – líquen plano
• LE pernio
• LE discóide com envolvimento sistémico
LE CUTÂNEO SUB-AGUDO
• Papuloescamoso (psoriasiforme)
• Anular (policíclico)
LE CUTÂNEO AGUDO
• Eritema malar facial localizado
• Eritema máculo-papuloso generalizado - face, couro cabeludo, pescoço, tórax, face
extensora dos braços e dorso das mãos (fotodistribuição)
• LE bolhoso
Tabela 1: Classificação do Lúpus Eritematoso associado a lesões cutâneas (I). Adaptado de An Bras Dermatol.
2005;80(2):119-31.

237
LESÕES HISTOPATOLOGICAMENTE INESPECÍFICAS DO LÚPUS ERITEMATOSO (LE)
Vasculite
• Vasculite leucocitoclástica
• Vasculite urticariforme
• Periarterite nodosa-like
Vasculopatia
• Doença de Degos-like
• Atrophie blanche
Telangiectasias peri-ungueais
Livedo reticularis
Tromboflebite
Fenómeno de Raynaud
Eritromelalgia
Alopécia (não cicatricial)
• Lúpus hair
• Eflúvio telógénico
Alopécia areata
Esclerodactilia
Nódulos reumatóides
Calcinose cutânea
Lesões bolhosas inespecíficas
• Epidermólise bolhosa adquirida
• Dermatite herpetiforme-like
• Pênfigo eritematoso
• Penfigóide bolhoso
• Porfíria Cutânea Tarda
Urticária
Mucinose
Anetodermia / cútis laxa
Acantose nigricans
Eritema multiforme
Úlceras de Pernas
Líquen Plano
Tabela 2: Classificação do Lúpus Eritematoso associado a lesões cutâneas (II). Adaptado de An Bras Dermatol.
2005;80(2):119-31.

Lúpus Eritematoso Cutâneo Agudo (LECA)

As lesões de LECA são raras e habitualmente transitórias, podendo durar de horas a


dias. Estão localizadas em áreas foto-expostas, cursando com fotossensibilidade (Figs.
3 e 4). Incluem pelo menos uma das seguintes apresentações: eritema malar, eritema
maculo-papular, lúpus bolhoso e quadro clínico de necrólise epidérmica tóxica- like.
Afecta cerca de 20-60% dos doentes com LES, tipicamente com envolvimento renal,
positividade para ANA e anticorpo anti-dsDNA e hipocomplementémia. Detectam-se
depósitos de imunoglobulina subepidérmicos ao nível das lesões cutâneas (>95%) e em
áreas de pele foto-exposta sem lesão (75%).

As lesões de LECA poupam os sulcos naso-genianos, podendo atingir a região frontal,


peri-orbitária, cervical e V do pescoço. Tipicamente não deixam sequelas de atrofia
cutânea ou hipo/hiperpigmentação. Frequentemente acompanham um surto de

238
actividade imunológica no contexto de LES, correlacionando-se com a actividade da
doença sistémica.

Figura 3: Lesões de Lúpus Eritematoso Cutâneo Agudo em áreas foto-expostas: face (A) e V do pescoço (B).

Figura 4: Lesões de Lúpus Eritematoso Cutâneo Agudo: mãos (A, B) e eritema malar, poupando tipicamente as regiões
peri-orbitárias e sulcos nasogenianos (C).

Na abordagem a estas lesões, é importante estabelecer o diagnóstico diferencial com


outras dermatoses, consoante a sua localização:

- face: rosácea e dermite seborreica (muito frequentes), dermites de


contacto/irritativas/alérgicas/fotoalérgica, dermite atópica, fotossensibilidade, lúpus
túmido, eritema polimorfo à luz, entre outras.

-lesões disseminadas: eczemas, exantemas virais, toxidermias, eritema polimorfo à luz,


urticária solar, dermatomiosite, entre outras.

Lúpus Eritematoso Cutâneo Subagudo (LECS)

Esta forma de doença não é puramente cutânea, podendo acompanhar-se de astenia,


artralgia e febre, embora o envolvimento sistémico seja raro. Em cerca de 15% das
situações, há evolução para LES, tipicamente no eritema na variante papulo- escamosa,
com leucopénia, elevação do ANA e anticorpo anti-SSA. Detectam-se depósitos de
imunoglobulinas sub-epidérmicos apenas em 50% das lesões, podendo também estar
detectáveis em 30% da pele sem lesões. É menos frequente na

239
população negra e latina, com uma prevalência mais elevada em mulheres. O LECS
pode surgir em contexto iatrogénico, secundário a fármacos, como a hidroclorotiazida,
anti-inflamatórios não esteróides, estatinas, diltiazem, terbinafina ou griseofulvina; estas
lesões podem resolver ou persistir após a suspensão do fármaco.

As lesões apresentam foto-distribuição, podem ser mais ou menos infiltradas à palpação


e evoluem em semanas a meses. Não resolvem habitualmente com atrofia cutânea, mas
discromias e telangiectasias podem ser persistentes. As lesões de LECS raramente se
localizam abaixo do tronco. Apresentam duas variantes: a anular/policíclica e papulo-
escamosa (Fig.5). As lesões anulares podem ter um bordo eritemato-descamativo, bem
como vesículas e crostas, com área central habitualmente. As duas variantes clínicas
do LECS podem estar presentes no mesmo doente em simultâneo.

Figura 5: Lúpus Eritematoso Cutâneo Subagudo: A – padrão pápuloescamoso limitado a áreas foto-expostas no tronco;
B – padrão anular-policíclico, com placas anulares com bordo eritematoso e descamativo, área central hipopigmentada,
com lesões confinadas ao dorso e mãos; C – padrão anular-policíclico com alguns meses de evolução.

Perante a suspeita de LECS, impõe-se o diagnóstico diferencial com outras entidades:


- variante papulo-escamosa: psoríase, sífilis secundária, toxidermia, fotodermatoses,
eczema, entre outros.
- variante anular policíclica: dermatofitia, granuloma anular, eritemas figurados,
urticária, vasculite urticariforme, sarcoidose, doença de Hansen (lepra), entre outros.

Lúpus Eritematoso Discóide Crónico (LEDC)

Apresenta baixa incidência de doença sistémica (5-10%), embora consista na


manifestação cutânea mais frequente do LES (25%). Tipicamente detectam-se
depósitos de imunoglobulina sub-epidérmicos ao nível das lesões, sendo geralmente
indetectáveis nas áreas de pele sem envolvimento patológico. As lesões podem durar
de meses a vários anos, com formas clínicas habitualmente mais graves na raça negra
(Figs.6 e 7). Apresenta maior prevalência entre os 20 e os 45 anos, sendo mais
frequente no sexo feminino. A fotossensibilidade é menos evidente do que no LECA e
LECS.

O LEDC manifesta-se de três formas: localizado (somente acima do pescoço),


generalizado e hipertrófico. Assume-se que quanto maiores e mais extensas as lesões,
maior o risco de progressão para LES. As lesões podem ter uma apresentação clínica
variada: placas eritematosas com bordos bem delimitados e telangiectasias; placas
cobertas por escamas aderentes esbranquiçadas com oclusão folicular e placas
cicatriciais, atróficas, com hipo ou hiperpigmentação, entre outras.

240
Figura 6: Lúpus Cutâneo Crónico Discóide: A – lesão precoce no rosto; B – lesão descamativa com escama queratinosa
que infiltra os folículos pilosos; C – lesões ao nível do pescoço e mento.

Figura 7: Lúpus Cutâneo Crónico Discóide: A – lesões discóides ao nível do braço, evidenciado bordos papulares e
descamativos, com halo central hipopigmentado; B – lesões sequelares com atrofia e hipopigmentação; C – lesões
sequelares no couro cabeludo, com atrofia (folículos pilosos fibrosados).

Na abordagem das lesões de LEDC, o diagnóstico diferencial inclui: infiltrado linfocítico


de Jessner, erupção polimorfa à luz, linfocitoma cútis, linfomas cutâneos, granuloma
facial, sarcoidose e líquen plano, entre outros.

Figura 8: Lúpus Cutâneo Crónico Hipertrófico: A – lesões em áreas foto-expostas da face, simétricas; B – lesões
disseminadas, descamativas, com nódulos e placas hiperqueratósicos descamativos.

Lúpus Cutâneo Crónico Profundo – Paniculite Lúpica

A paniculite lúpica pode caracterizar-se na fase aguda por uma ou mais lesões
inflamatórias e dolorosas, subcutâneas, em placa ou nodulares; lesões estabelecidas
nas quais não exista mais inflamação. A atrofia do tecido celular subcutâneo é a regra,

241
observando-se lipoatrofia secundária e com desfiguração da normal anatomia (Fig. 9).
A paniculite lúpica pode durar de meses a anos, sendo mais prevalente no sexo
feminino. As localizações mais frequentes são os braços, ombros, mama (mulher), coxa
e região malar. Em cerca de 35-50% dos casos, a doença evolui para LES; cerca de
70% dos doentes apresenta também lesões de LEDC sobre as placas/nódulos de
paniculite lúpica. O diagnóstico diferencial inclui outras paniculites, morfeia, linfoma
cutâneo paniculite-like e infecções.

Figura 9: Lesões de Paniculite Lúpica: A – braços, B – abdómen e região inguintal, C – coxa.

Lúpus Cutâneo Crónico Túmido (LCCT)

O LCCT é uma variante de lúpus cutâneo crónico. Observam-se placas eritemato-


violáceas, infiltradas, habitualmente bem delimitadas, sem descamação ou tampões
foliculares (Fig.10). Distingue-se do LEDC por não ter envolvimento epidérmico, não
deixar cicatriz e ou discromia residual. As localizações mais típicas são a face e o tronco.
O diagnóstico diferencial inclui infiltrado linfocítico de Jenssen, sarcoidose, granuloma
facial, linfomas cutâneos, entre outros.

Figura 10: Lúpus Cutâneo Crónico Túmido: A – lesão no dorso, B – lesão no V do pescoço.

Esclerodermia
O termo Esclerodermia designa doença sistémica com esclerose da pele, tecido celular
subcutâneo, vasos e órgãos como o pulmão, o coração ou o esófago (capítulo

242
II.5) (Fig.11). É uma doença rara, que atinge sobretudo mulheres entre os 30 e os 50
anos.

Figura 11: Espectro de doenças dentro do quadro da Esclerodermia.

O atingimento cutâneo pode conduzir a um diagnóstico clínico de algumas patologias


do espectro da esclerodermia. Por exemplo, os critérios de diagnóstico e classificação
de Esclerose Sistémica pelo American College of Rheumatology (ACR) e European
League Against Rheumatism (EULAR) de 2013 determinam que o espessamento
cutâneo dos dedos e extensão proximal às articulações metacárpico-falângicas é
suficiente para estabelecer o diagnóstico de ES limitada.

As manifestações cutâneas das doenças esclerodérmicas incluem também outro tipo de


lesões para além da fibrose cutânea, como o fenómeno de Raynaud ou as
telangiectasias. O tratamento das lesões esclerodérmicas deverá ser adaptado a cada
situação clínica, consoante se trate de fibrose cutânea, úlceras, prurido ou calcinose, e
de eventual envolvimento sistémico.

Esclerose Sistémica Difusa (ESD)

A ESD tipicamente apresenta alterações cutâneas, como o espessamento cutâneo das


mãos, fenómeno de Raynaud, artrite e outras alterações inespecíficas, como astenia,
perda ponderal ou mioartralgias. O envolvimento cutâneo apresenta uma fase inicial em
que atinge apenas dedos, mãos e face, podendo durar de meses a anos;
posteriormente, atinge antebraços, pernas, e mesmo a totalidade do tegumento,
incluindo o tronco e a porção proximal dos membros. As lesões cutâneas passam por 3
estadios: edema (nas mãos – puffy fingers), esclerose e atrofia (Figs.12 e 13). A maioria
dos doentes apresenta fenómeno de Raynaud nas fases iniciais da doença.

243
Figura 12: Esclerose Sistémica Difusa: A – esclerose cutânea a nível das mãos e microstomia, com boca pregueada; B
– atrofia cutânea, com pitting scars e reabsorção de parte da falange distal em D3; C – atrofia cutânea, com
telangiectasias palmares, ulceração e pitting scars nas polpas digitais e reabsorção das extremidades distais de D2 e
D3.

Figura 13: Esclerose Sistémica Difusa (II): Microstomia, com boca pregueada e telangiectasias peri-orais; B – extensa
atrofia cutânea, com retracção muscular e anquilose de algumas articulações do carpo e mãos.

A ESD apresenta frequentemente envolvimento sistémico: esófago (74%), miocárdio


(81%), pulmão (74%), pleura (81%), pericárdio (53%), rim (51%), entre outros. Do ponto
de vista histológico, caracteriza-se pela deposição de colagénio na derme e tecido
celular subcutâneo, com envolvimento dos anexos, sendo observável um infiltrado
linfocítico na interface derme / tecido celular subcutâneo – achados histológicos não
patognomónicos.

O diagnóstico diferencial inclui esclerose sistémica localizada, morfeia generalizada,


escleredema adultorum, fasceíte eosinofílica, escleromixedema e síndromas de
sobreposição (esclerodermatomiosite e doença mista do tecido conjuntivo).

Esclerose Sistémica Localizada – CREST

A ES localizada é habitualmente mais benigna e indolente que a ESD, apresentando um


envolvimento cutâneo limitado, geralmente apenas na face e dedos, sendo que o
atingimento visceral surge mais tardiamente no decorrer da doença. O acrónimo CREST
designa: Calcinose, fenómeno de Raynaud, dismotilidade Esofágica, eSclerodactilia e
Telangiectasias (Fig.14).

244
Figura 14: Esclerose Sistémica Localizada. A – Dismotilidade Esofágica (Andrew Taylor, MD, Professor, Abdominal
Imaging, Department of Radiology, University of Wisconsin Medical School, Madison); B – Telangiectasias faciais; C –
Calcinose ao nível das mãos, com flexão por deformação de D4 e D5 e úlceras digitais nos pontos de calcinose (Ashima
Makol, M.D., and Steven R. Ytterberg, M.D. N Engl J Med 2011; 364:2245); D – Extensa calcinose cútis no doente referido
em C, visível no radiograma das mãos (idem).

Esclerodermia Circunscrita – Morfeia

A morfeia é uma forma de esclerodermia que atinge apenas a pele, de forma simétrica
ou assimétrica, habitualmente localizada apenas numa área do tegumento cutâneo. Não
se associa ao fenómeno de Raynaud e a esclerodactilia não é uma forma frequente de
apresentação clínica. Ocorre habitualmente em adultos, excepto a forma linear, típica
da idade pediátrica. Apesar de poder apresentar positividade para os anticorpos ANA,
não está relacionada com a esclerose sistémica. Pode apresentar-se de varias formas:

- Circunscrita: placas ou bandas (Fig.15) – tronco, membros, face, genitais.


- Linear: membros superior ou inferior, cabeça (Fig.16)
- Frontoparietal: en coup de sabre
- Generalizada
- Pan-esclerótica

Figura 15: Morfeia em placas (A, B, C).

Figura 16: Diferentes tipos de Morfeia: A – Morfeia generalizada, B – Morfeia Linear; C – Morfeia en coup de sabre.

245
A associação entre morfeia e a infecção por Borrelia burgdorferi, descrita classicamente
nos países do norte e centro da Europa, é polémica e a terapêutica de longa duração
com antibioterapia sistémica é controversa. O diagnóstico desta dermatose deve ser
suportado histologicamente e fornecido tratamento imediato, de forma a minimizar as
sequelas. A terapêutica passa pela utilização de corticosteróides tópicos, inibidores da
calcineurina tópicos, corticóides sistémicos, metotrexato, fototerapia, cuidados de penso
nas lesões ulceradas, entre outros.

Dermatomiosite
A dermatomiosite (DM) (capítulo II.7) é uma doença sistémica, rara, que atinge
tipicamente a pele e os músculos, sendo mais frequente em mulheres. Tem uma
incidência tipicamente bimodal: em idade pediátrica, a DM juvenil (10 – 15 anos) e no
adulto (45-57 anos).

Do ponto de vista clínico, caracteriza-se por miopatia proximal e simétrica dos músculos
extensores; o atingimento cutâneo é frequente e pode preceder o envolvimento
muscular em cerca de 50% dos casos. O envolvimento sistémico inclui pneumonite
intersticial / lesão alveolar difusa, envolvimento esofágico, artralgia / artrite não erosiva
e vasculite, entre outros.

As manifestações cutâneas de DM podem ser muito características, como o eritema


heliotropo e as pápulas de Gottron em contexto de fotossensibilidade, ou inespecíficas,
como a poiquilodermia, a dermite do couro cabeludo, a distrofia das cutículas ou a
calcinose cutânea (Figs.17-19).

Figura 17: Diferentes formas de apresentação do eritema heliotropo.

Figura 18: A e B – Pápulas de Gottron com diferentes formas de apresentação; C – Eritema peri-ungueal e
telangiectasias.

246
Figura 19: A – Eritema violáceo descamativo, simétrico e localizado; B – Eritema violáceo descamativo, difuso,
fotossensível (atinge a prega cutânea ao nível das articulações interfalângicas, ao contrário do Lúpus Eritematoso); C –
Poiquiloderma no adulto, em xaile (American College of Rheumatology, 2009); D – Poiquiloderma na DM Juvenil.

Em cerca de 30 a 60% dos casos, observam-se na face placas eritemato-violáceas mal


delimitadas, por vezes edematosas, que tipicamente envolvem as pálpebras superiores
e a pele peri-orbitária – eritema heliotropo. Pode estender-se às regiões malares, nariz,
região fronto-temporal e pavilhões auriculares. A área peri-oral e os sulcos naso-
genianos são poupados.

No dorso das mãos podem surgir pequenas manchas/placas eritemato-violáceas,


finamente descamativas, com distribuição linear sobre as articulações metacárpico-
falângicas e interfalângicas – sinal de Gottron. Podem também surgir pápulas eritemato-
violáceas, planas, infiltradas – pápulas de Gottron - no dorso das articulações dos dedos
e em localização peri-ungueal.

A fotossensibilidade é uma característica clínica importante, podendo observar-se


placas eritematosas extensas, habitualmente simétricas, no pescoço, membros, V do
decote, dorso e ombros (sinal do xaile). A maioria dos doentes com dermatomiosite
refere prurido intenso, achado menos frequente nos doentes com LE.

A calcinose cutânea e vasculite de pequenos vasos são achados clínicos mais


frequentes na DM juvenil que na DM de adultos. A DM do adulto está frequentemente
associada a neoplasias e síndromas de sobreposição. No adulto, dada a frequência da
dermatomiosite paraneoplásica, em todos os doentes sem história conhecida de
neoplasia, deve ser realizada investigação nesse sentido.

O diagnóstico diferencial dos achados clínicos de DM é extenso, incluindo dermites de


contacto e outros eczemas, psoríase, linfomas cutâneos, toxidermias, fotodermatoses,
LE, esclerodermia, entre outros.

Vasculites
As manifestações cutâneas são frequentemente observadas em quase todo o tipo de
vasculites (capítulo II.8). Na pele, do ponto de vista fisiopatológico, as vasculites podem
envolver os vasos de pequeno calibre (fundamentalmente localizados na derme) ou
médio calibre (transição derme-tecido celular subcutâneo e tecido celular subcutâneo
propriamente dito). A natureza dos vasos envolvidos ditará a correspondente
apresentação clínica.

247
As vasculites cutâneas apresentam um espectro clínico muito variado, incluindo várias
entidades, algumas estritamente cutâneas, outras fazendo parte de vasculites
sistémicas com expressão cutânea. Dado o objectivo deste manual versar sobre as
doenças sistémicas, não iremos aprofundar as vasculites estritamente cutâneas.

Do ponto de vista clínico, a púrpura palpável é o achado mais típico quando nos
referimos a vasculite cutânea de pequenos vasos: pápulas purpúricas, palpáveis,
habitualmente com início nos membros inferiores (áreas de pressão) que podem
coalescer em placas e inclusivamente necrosar e ulcerar. Nódulos subcutâneos
palpáveis e por vezes paniculite são lesões típicas de vasculite de médios vasos; estas
lesões frequentemente originam necrose cutânea com ulceração. Livedo reticular ou
racemosa é um achado frequente em várias vasculites com envolvimento cutâneo, mas
também em vasculopatias sem vasculite.

As vasculites sistémicas podem expressar-se na pele pelos sinais supracitados e outras


manifestações do foro vascular como tromboflebite, gangrena ou fenómeno de
Raynaud, entre outros. Por outro lado, fenómenos imunológicos de expressão cutânea
são achados clínicos inespecíficos, mas que frequentemente acompanham doenças
imuno-mediadas como as vasculites, como o pioderma gangrenoso, a dermatite
intersticial granulomatosa ou a urticária. (Tabela 3).

A biópsia cutânea para exame histopatológico com hematoxilina & eosina


(preferencialmente incisional e não puncional) e para estudo de imunofluorescência
directa é fundamental na abordagem clínica das vasculites com expressão cutânea.

LESÃO CUTÂNEA M AIS LESÃO CUTÂNEA MAIS


VASCULITE SISTÉMICA
FREQUENTE CARACTERÍSTICA

Vasculite IgA Púrpura, urticária Púrpura, urticária


Vasculite Crioglobulinémica Púrpura Púrpura pigmentada
Poliarterite Nodosa Púrpura Nódulos, livedo
Poliangeíte Microscópica Púrpura Púrpura
Granulomatose Eosinofílica Púrpura Granuloma necrotizante
com Poliangeíte extra-vascular
Poliangeíte Granulomatosa Púrpura Úlceras orais, hiperplasia
gengival

Tabela 3: Sinais cutâneos de vasculites sistémicas

Vasculite IgA

A vasculite IgA, previamente designada Púrpura de Henoch-Schönlein, manifesta-se de


uma forma geral por púrpura palpável associada a artrite, sintomas gastrointestinais e
nefropatia. Ocorre sobretudo em crianças, sendo rara na idade adulta. Do ponto de vista
fisiopatológico, resulta da deposição de complexos imunes (IgA) nos pequenos vasos,
sendo estes despoletados por agentes infecciosos ou tóxicos.

Numa fase inicial, observam-se habitualmente manchas eritemato-violáceas e


posteriormente pápulas purpúricas (púrpura palpável), que podem coalescer em placas.
Com o envolvimento de maior quantidade de vasos superficiais, podem surgir vesículas
hemorrágicas, bolhas, necrose e ulceração. As áreas mais atingidas são as superfícies
extensoras dos membros, glúteos e tronco com raro envolvimento da face.

248
As lesões cutâneas habitualmente progridem com carácter aditivo no tegumento,
habitualmente em sentido caudal-cefálico.

Figura 20: Vasculite Ig A. A – lesões purpúricas em reabsorção com áreas de coalescência peri-maleolares, com
aparecimento de bolhas e úlceras necrosadas; B – pormenor de lesões purpúricas em diferentes fases de evolução.
Cortesia Unidade de Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral.

Vasculite Crioglobulinémica

A Crioglobulinémia pode ser idiopática (essencial) ou secundária a outras doenças


sistémicas, como infecções (hepatite C), neoplasias (particularmente hematológicas) ou
doenças auto-imunes. É mediada por complexos imunes formados por crioglobulinas
(anticorpos que precipitam a temperaturas baixas). Do ponto de vista fisiopatológico,
importa distinguir dois tipos principais: a crioglobulinémia do tipo I e as crioglobulinémias
mistas (tipos II e III).

As manifestações cutâneas ocorrem em 60-100% dos doentes com crioglobulinémia


sintomática, sendo frequentemente a primeira manifestação da doença, juntamente com
artralgia e cansaço. A púrpura palpável nas extremidades inferiores é a primeira
manifestação em 92% dos doentes. Em 10-25% dos doentes podem surgir úlceras com
crostas hemorrágicas (Fig.21-A).

Figura 21: A – Crioglobulinémia (Thomas Habif, http://www.dermnet.com/Cryoglobulinemia/picture/23113), B –


Poliarterite Nodosa – nódulos duros e eritematosos, com ulceração central; C – Poliarterite Nodosa – nódulos
subcutâneos, inespecíficos, duros e dolorosos, podendo consistir na primeira manifestação da doença. (B, C -
http://emedicine.medscape.com/article/330717-clinical#b3, consultado a 8/4/2017).

249
Poliarterite nodosa (PAN)

A PAN é habitualmente classificada como vasculite sistémica de médios vasos.


Caracteriza-se por inflamação de artérias, veias, arteríolas e vénulas com envolvimento
potencial de vários órgãos e sistemas, sendo os mais frequentes a pele, as articulações,
os nervos periféricos, o intestino e o rim. A etiologia é desconhecida na maioria dos
casos. Existe uma variante de PAN denominada PAN cutânea, com envolvimento
estritamente cutâneo.

As lesões cutâneas são habituais nos doentes com PAN (embora a sua frequência se
reduza acima dos 65 anos). Os nódulos cutâneos ou subcutâneos, dolorosos, são as
lesões cutâneas mais características da PAN, localizando-se sobretudo nos membros
inferiores (Fig.21-B, C). O livedo reticular ou livedo racemosa pode preceder ou
acompanhar o seu aparecimento. Em situações mais graves, os nódulos podem ulcerar
ou coalescer, originando úlceras por vezes extensas e recalcitrantes. Observam-se por
vezes púrpura palpável, fenómeno de Raynaud, isquémia digital, hemorragias
perigungueais, entre outras manifestações.

Poliangeíte Microscópica (PAM)

A PAM é uma vasculite ANCA-positiva, de pequenos vasos, não granulomatosa, com


manifestações cutâneas em 30-58% dos casos. As mais frequentes são a púrpura
palpável, na porção distal dos membros, mas podem também surgir úlceras orais,
necrose, ulceração, nódulos e edema facial. Todas estas lesões desaparecem
rapidamente após o tratamento.

Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte (GEP)

A GEP, anteriormente conhecida como síndrome de Churg Strauss, é uma vasculite


ANCA positiva, de pequenos vasos, que se caracteriza por rinite alérgica, asma,
eosinofilia, pneumonite crónica ou gastroenterite eosinofílica. As lesões cutâneas na
GEP surgem em 40-70% dos casos e raramente são inaugurais. O sinal mais frequente
é a púrpura palpável nas extremidades dos membros inferiores, por vezes
acompanhada de necrose. Podem também surgir nódulos ou pápulas nos membros
superiores, cotovelos, dedos, couro cabeludo e mama, tipicamente com crosta central
ou ulceração (Fig.22 – A, B).

Figura 22: A – Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte (From DermNet New Zeland); B – Granulomatose Eosinofílica
com Poliangeíte no cotovelo (From http://emedicine.medscape.com/article/1083013-clinical#b4); C – Granulomatose com
Poliangeíte (From http://emedicine.medscape.com/article/1085290-overview#a1)

250
Granulomatose com Poliangeíte (GP)

A GP, previamente designada granulomatose de Wegener, é também uma vasculite


ANCA positiva, de pequenos vasos, com envolvimento das vias respiratórias, pulmão e
rim, embora todos os órgãos possam ser afectados. As lesões cutâneas surgem em 14-
77% dos casos, dependendo das séries. A lesão mais observada é a púrpura palpável
nas extremidades dos membros inferiores, sendo que estas pápulas podem coalescer.
Por vezes, observam-se placas extensas, ulceradas e dolorosas, que podem preceder
as manifestações sistémicas em meses a anos (Fig.22-C). Estão também descritos
casos de isquémia digital, entre outros.

Doença de Behçet

A doença de Behçet é uma vasculite que afectas artérias e veias de calibre variável
(capítulo II.8.3). O envolvimento muco-cutâneo está presente na grande maioria dos
doentes: as úlceras orais são a primeira manifestação em 25-75% dos casos, têm 1-3
cm de diâmetro, são dolorosas, de profundidade variável e têm uma base fibrinóide
amarelada rodeada de eritema, podendo surgir várias úlceras em simultâneo. As úlceras
orais da doença de Behçet habitualmente remitem espontaneamente, mas apenas ao
fim de algumas semanas. As úlceras genitais estão presentes em 60-80% dos casos,
com menor taxa de recidiva e mais específicas mais esta entidade. Nas mulheres
surgem habitualmente nos grandes lábios; nos homens no escroto. Também estão
descritas úlceras oculares e perineais. O exame histopatológico destas lesões não é
específico para o diagnóstico.

As úlceras orais recorrentes entram no diagnóstico diferencial de uma entidade bem


mais frequente que a doença de Behçet – a aftose oral recorrente. Esta entidade é
benigna e pode tornar-se crónica.

As lesões tipo pseudofoliculite estão presentes em 39-60% dos casos. Observam-se


pápulas eritematosas não foliculares que evoluem para pústula, habitualmente com
cicatriz residual. Localizam-se sobretudo no tronco, membros inferiores e glúteos. São
lesões inespecíficas e facilmente confundidas com outras entidades. Em 30-40% dos
casos pode observar-se paniculite, habitualmente com envolvimento na região pré-
tibial, sendo denominadas lesões eritema nodoso-like.

O teste de patergia é uma reacção de hipersensibilidade induzida através de um


traumatismo cutâneo (habitualmente com agulha) que clinicamente se assemelha a uma
pseudo-foliculite.

Arterite de Takayasu e Arterite de Células Gigantes

A arterite de Takayasu é uma arterite rara e crónica de origem desconhecida, que afecta
sobretudo a aorta, os seus ramos principais e as artérias pulmonares. As manifestações
surgem em 2,8 – 28% dos doentes, podendo estar relacionadas directamente com a
oclusão de grandes vasos, como fenómeno de Raynaud unilateral, gangrena digital ou
hipocratismo digital unilateral.

A arterite de células gigantes, ou vasculite de Horton, é uma vasculite de grandes vasos


que pode estar associada a alterações cutâneas, podendo ser inaugurais.

251
Normalmente surgem como consequência da isquémia provocada pela oclusão de
artérias cranianas. A apresentação dermatológica clássica assenta em úlceras com
necrose do couro cabeludo e língua.

Artrite Reumatóide
As manifestações extra-articulares da artrite reumatóide surgem nas formas mais
duradouras e agressivas da doença (capítulo II.1). As dermatoses que podem ocorrer
no contexto de artrite reumatóide são muitas e variáveis, compreendo várias entidades.
Alguns exemplos são os nódulos reumatóides, vasculite reumatóide, dermatoses
neutrofílicas, entre outras.

Granulomas em paliçada – Nódulos Reumatóides

Os nódulos reumatóides surgem em cerca de 25% dos doentes, tipicamente associados


a factor reumatóide positivo. Estas lesões desenvolvem-se habitualmente nas fases
tardias da doença, mas podem preceder as manifestações articulares. As áreas mais
atingidas estão associadas a maior tracção mecânica sobre a pele, como o olecrânio,
mãos, proeminência sagrada, tendão de Aquiles e pavilhão auricular. Mais raramente,
podem atingir tendões, bainhas sinoviais, ossos, escleróticas, dura-máter, cordas vocais
e mesmo órgãos internos, como os pulmões e o coração.

O tamanho destes nódulos varia de 5 a 15 mm, sendo normalmente indolores, de


consistência dura, normopigmentados, habitualmente fáceis de observar e palpar.

O diagnóstico diferencial inclui nódulos pseudo-reumatóides, granuloma anular


subcutâneo, nódulos de Heberden e Bouchard, tofos gotosos ou reacções a corpo
estranho.

Vasculite Reumatóide

A vasculite reumatóide atinge 1-5% dos doentes com artrite reumatóide, normalmente
com longa evolução da doença. As manifestações cutâneas são variadas e incluem
petéquias digitais, púrpura palpável e úlceras (lesões de Bywater) que podem invadir os
tecidos profundos e provocar gangrena periférica. Está normalmente associada a pior
prognóstico.

Conclusão
As manifestações cutâneas podem anteceder em meses a anos outras manifestações
de doenças auto-imunes sistémicas. Saber reconhecer determinadas lesões pode
significar um diagnóstico precoce e antecipado, permitindo antever e evitar
complicações da evolução natural da doença. O diagnóstico diferencial impõe o despiste
de infecções, neoplasias, reacções a fármacos, dermites de contacto, fotodermatoses,
entre outras. O diagnóstico é muitas vezes clínico e a correlação clínico-patológica é
essencial nos casos complexos. A colaboração e abordagem

252
multidisciplinar facilita o diagnóstico atempado e permite um melhor seguimento do
doente.

SERVIÇO DE URGÊNCIA:
Manchas ou placas eritematosas em áreas fotossensíveis associadas a artralgias, fenómeno
de Raynaud, úlceras orais ou alterações hematológicas – pensar em Lúpus eritematoso.
Espessamento cutâneo e fenómeno de Raynaud – pensar em Esclerose sistémica.
Pápulas de Gottron, heliotropo, fotossensibilidade – pensar em Dermatomiosite.
Púrpura palpável, nódulos subcutâneos ou úlceras na ausência de doença venosa/arterial
em doentes jovens sem doença conhecida – pensar em vasculites.
Nódulos duros em superfícies de tracção podem anteceder manifestações articulares na
artrite reumatóide.
A colaboração com colegas de Dermatologia é essencial.

TAKE HOME MESSAGES


O LES apresenta lesões cutâneas específicas e inespecíficas; destacam-se a
fotossensibilidade, o lúpus eritematoso discóide crónico e as úlceras orais.
A esclerodermia pode ser classificada em diferentes entidades consoante a
extensão e a localização das áreas de fibrose cutânea bem como a presença de
outros achados clínicos (ex: fenómeno de Raynaud).
A dermatomiosite apresenta sinais muito característicos: pápulas de Gottron e
heliotropo num contexto de fotossensibilidade.
As vasculites e a artrite reumatóide apresentam lesões variadas, como a púrpura
palpável e as úlceras dos membros inferiores.

Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3
• Habifetal, ClinicalDermatology, 5th Edition, 2009, Expert Consult
• Wolff et al, Fitzpatrick’s Color Atlas of Clinical Dermatology, 5thEdition, 2005, McGraw-Hill
• Guerra Rodrigo et al, DermatologiaFicheiroClínicoe Terapêutico, 2010,
FundaçãoCalousteGulbenkian.
• Bolognia, Dermatology, 2nd edition, 2007, Elsevier
• www.emedicine.com/Dermatology

Nota: as imagens não creditadas nas legendas foram retiradas do livro “Fitzpatrick’s Color Atlas of Clinical
Dermatology”, indicado na referência acima. Parte das referências foram integradas nas legendas, pelo que
não foram repetidas na Bibliografia final.

253
5. ALTERAÇÕES HEMATOLÓGICAS NAS DOENÇAS
AUTO- IMUNES

Introdução
São múltiplas as manifestações das doenças auto-imunes que têm como alvo primário
os tecidos conectivos, tendo muitas vezes atingimento multi-orgânico. Há,
invariavelmente, uma interacção complexa entre factores predisponentes genéticos e
factores desencadeantes ambientais, levando à desregulação das vias de regulação
imune e a inflamação persistente. Neste contexto, há múltiplas reacções celulares e
moleculares que podem envolver os tecidos hematopoiéticos e as células sanguíneas
periféricas, fazendo com que as alterações hematológicas nas doenças auto-imunes
sejam achados frequentes.

Anemia
A anemia, definida como estado decorrente de níveis reduzidos de hematócrito e/ou
hemoglobina (Hb), inclui diversas variantes que podem ter patogénese auto-imune ou
não auto-imune. Atendendo à persistente activação imune das doenças auto-imunes,
não é surpreendente que a variante mais frequentemente observada seja a anemia de
doença crónica, onde as citoquinas têm um papel importante. Muitas vezes há
concomitância de outro tipo de anemia.

NÃO AUTO-IMUNE
Anemia de doença crónica
Anemia ferropénica
Anemia sideroblástica
Hipoplasia eritróide da medula
Toxicidade de fármacos

AUTO-IMUNE
Anemia hemolítica auto-imune
Aplasia pura de células eritróides
Anemia aplástica
Anemia perniciosa
Deseritropoiese auto-imune
Anemia hemolítica induzida por fármacos
Tabela 1: Patogénese da anemia em doenças auto-imunes

A anemia de doença crónica é geralmente normocítica e normocrómica ou, menos


frequentemente, microcítica e hipocrómica – definida por ferropénia, níveis de

254
transferrina normais ou diminuídos, saturação de transferrina diminuída, ferritina normal
ou aumentada, reticulócitos normais ou diminuídos, reservas de ferro do sistema
reticuloendotelial normais ou aumentadas, na presença de medula óssea normal com
normal ratio entre série eritróide e mielóide.

CITOQUINA ACÇÃO EFEITO


Inibe a proliferação e diferenciação de células Inibe eritropoiese
eritróides
Inibe a produção de eritropoietina (EPO) Inibe eritropoiese
Diminui a resposta à EPO das células Inibe eritropoiese
TNF α
progenitoras
Induz a transcrição da ferritina Alteração do metabolismo
do ferro
Diminui a semi-vida dos eritrócitos Eritrofagocitose
Inibe proliferação e diferenciação de células Inibe eritropoiese
eritróides
Reduz produção de EPO Inibe eritropoiese
Interferão γ

Inibe a expressão de ferroportina Alteração do metabolismo


do ferro
Inibe proliferação e diferenciação de células Inibe eritropoiese
eritróides
IL-1
Inibe a produção de EPO Inibe eritropoiese
Induz transcrição de ferritina Inibe eritropoiese
Induz transcrição de ferritina Alteração do metabolismo
do ferro
IL-6
Estimula a produção hepática de hepcidina Alteração do metabolismo
do ferro
Induz transcrição de ferritina Alteração do metabolismo
do ferro
IL-10
Aumenta a expressão de transferrina do Alteração do metabolismo
sistema reticuloendotelial e o uptake de ferro do ferro
Tabela 2: Citoquinas na patofisiologia da anemia de doença crónica (TNF α: Factor de Necrose Tumoral α, IL:
interleucina)

A anemia, manifestação extra-articular na Artrite Reumatóide (AR) (de 33 a 60% dos


doentes), está associada a um impacto negativo nos sintomas e na qualidade de vida
do doente, sendo que, normalmente, estes doentes apresentam uma doença mais
grave. Na AR de instalação recente, foi encontrado em 64% dos doentes anemia leve,
predominantemente no primeiro ano da doença. Foi classificada como anemia de
doença crónica em 77% dos doentes e anemia ferropénica em 23%, embora com

255
sobreposição frequente. Estes dois tipos de anemia são as variantes mais frequentes
na AR; enquanto a anemia perniciosa, a aplasia pura de células eritróides, a anemia
hemolítica ou a anemia sideroblástica são raras. A anemia aplástica tem sido reportada
como efeito secundário de fármacos.

A anemia é uma comorbilidade frequente no Lúpus Eritematoso Sistémico (LES),


observada em 38-52% dos doentes, frequente como um dos sintomas à data de
apresentação da doença. Trata-se de uma manifestação hematológica fortemente
associada com a actividade da doença e com dano precoce e tardio durante o curso da
doença, tendo sido também identificado como um preditor de flare e de mortalidade. A
anemia de doença crónica é o tipo mais frequente de anemia nos doentes com LES,
com uma prevalência de 37 a 73%. A anemia ferropénica é o segundo tipo mais
prevalente, com uma prevalência de 36%. A anemia hemolítica, incluída nos critérios
hematológicos do American Collage of Rheumatology para o diagnóstico de LES, tem
uma prevalência de 7 a 28%, muitas vezes representando a manifestação inicial de LES.
Nestes doentes a anemia hemolítica está frequentemente associada à presença de
anticorpos anti-fosfolípidos circulantes e relacionada com o envolvimento renal. A
anemia hemolítica tem sido proposta como um marcador de actividade de doença e um
preditor de mau prognóstico. Outros tipos de anemia, como a anemia perniciosa, a
anemia sideroblástica, a anemia hemolítica microangiopática ou a aplasia pura das
células eritróides são pouco comuns no LES. Num número pequeno de doentes de LES,
a anemia aplásica pode ocorrer, sobretudo devido a toxicidade por fármacos.

Na Síndrome de Sjögren a anemia foi detectada em 20% dos doentes, sendo que
anemia grave (<9g/dL) em apenas 4%. A anemia de doença crónica constitui o achado
mais comum, enquanto que a anemia hemolítica, a anemia aplástica, a anemia
perniciosa e a aplasia eritróide raramente ocorrem.

A anemia tem sido reportada como um preditor de prognóstico favorável na Esclerose


Sistémica; numa coorte de doentes a prevalência foi de 25%. A variante mais comum é
a anemia de doença crónica, enquanto a anemia hemolítica, a anemia hemolítica
microangiopática e a anemia perniciosa têm sido raras.

Em doentes com Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido (SAAF) a prevalência de


anemia hemolítica é de 10,4% e de 28,6% quando associado a uma outra doença auto-
imune. Numa coorte de 1000 doentes com SAAF, a anemia hemolítica tinha uma
frequência cumulativa de 9,7%, sendo a manifestação de apresentação da doença em
6,6% dos casos. Há uma associação significativa entre anemia hemolítica e outras
manifestações de SAAF como livedo reticularis e anomalias de válvulas cardíacas.

Leucopénia
Nas doenças do tecido conjuntivo, a leucopénia, definida como uma contagem de
leucócitos <4000/mm3, pode estar relacionada com mecanismos imuno-mediados ou
não imuno-mediados.

256
DESTRUIÇÃO PERIFÉRICA DE LEUCÓCITOS MEDIADA POR ANTICORPOS
Auto-anticorpos anti-granulócitos, anti-linfócitos e anti-monócitos
SEQUESTRO PERIFÉRICO
Hiperesplenismo
Aumento da marginação
APOPTOSE DESREGULADA

DISFUNÇÃO DA MEDULA ÓSSEA


Diminuição da hematopoiese devido a auto-imunidade humoral ou mediada por células
Paragem da maturação
Resposta de mobilização inadequada
FALÊNCIA DA MEDULA ÓSSEA POR FÁRMACOS
Tabela 3: Patogénese da leucopénia em doenças do tecido conjuntivo auto-imunes 2

No Lúpus Eritematoso Sistémico a leucopénia é uma manifestação comum, reportada


em 20-64% dos doentes; todavia, a leucopénia grave (<2000/mm3) é pouco frequente.
É pertinente salientar que a leucopénia, por si só, não é identificada como a principal
causa de aumento de susceptibilidade a infecções, facto que foi principalmente atribuído
à terapêutica, sobretudo ao uso de corticóides.

Numa série de 380 doentes com Síndrome de Sjögren a incidência de leucopénia


moderada foi de 16%, sendo grave em apenas um caso. Na análise univariada, doentes
leucopénicos apresentavam-se com maior prevalência de neuropatia periférica,
anticorpos anti-Ro/SSA-A e anti-La/SS-B, factor reumatóide, crioglobulinémia e
hipocomplementémia.

Na Síndrome Anticorpo Anti-fosfolípido, na avaliação de uma coorte de 1000 doentes, a


leucopénia era significativamente mais frequente nos casos associados a outra doença
auto-imune, sugerindo que outros factores para além dos anticorpos anti- fosfolipídicos
possam ter um papel patogénico.

Neutropénia
A neutropénia, definida como contagem de neutrófilos <1500/mm3, ao coexistir com
esplenomegália e Artrite Reumatóide (AR), compõe a Síndrome de Felty (SF), uma
variante rara da AR (<1%) com manifestações extra-articulares peculiares e base
genética (90% dos doentes com SF têm antigénio leucocitário DR4). A neutropénia
parece ser mediada imunologicamente, com o envolvimento de diferentes mecanismos
celulares e humorais, levando a uma interligação complexa de defeitos na produção,
distribuição, destruição e apoptose. A neutropénia na SF é geralmente crónica,
frequentemente grave e associada a morbilidade por infecções recorrentes. De facto, as
infecções bacterianas são a principal causa de aumento de mortalidade nestes doentes.

257
Nos doentes com Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) a neutropénia é uma
manifestação hematológica frequente, com uma prevalência de 20 a 47%, sendo raras
a neutropénia grave ou agranulocitose (contagem absoluta <500/mm3). A neutropénia
no LES é provavelmente imuno-mediada, uma vez que têm sido detectados auto-
anticorpos anti-neutrófilo; no entanto, não se encontrou uma clara correlação com a
neutropénia, cujo desenvolvimento provavelmente requer mecanismos mais complexos.

Na Síndrome de Sjögren a neutropénia foi observada em 7% dos casos, sendo


geralmente ligeira, sem necessidade de terapêutica. A patogénese da
neutropénia/agranulocitose é provavelmente imune e têm sido sugeridos mecanismos
humorais e celulares que afectam a granulopoiese na medula óssea e/ou mediam a
destruição periférica de neutrófilos.

Linfopénia
Nos doentes com Artrite Reumatóide, a linfopénia (contagem de linfócitos <1500/mm3)
tem sido observada entre 15 a 30%.

A linfopénia é uma das manifestações hematológicas mais comuns no Lúpus


Eritematoso Sistémico (LES), sendo um dos critérios do American College of
Rheumatology para a classificação da doença. Tem sido reportada com uma
prevalência entre 20 e 82%. Num estudo longitudinal envolvendo 591 doentes adultos
de LES, a linfopénia foi associada com manifestações clínicas/imunológicas graves,
como envolvimento renal, leucopénia, trombocitopénia, níveis elevados de anticorpos
anti-dsDNA e anticorpos anti-Ro/SS-A, precocemente e durante o curso da doença.
Além disso, e porque a linfopénia moderada/global se associa fortemente com a maior
actividade da doença e dano, a contagem de linfócitos tem sido sugerida como sendo
um bom biomarcador para monitorizar a actividade da doença.

Numa grande série de doentes com Síndrome de Sjögren, a linfopénia foi encontrada
em 9% dos doentes. Estes doentes mostraram uma maior frequência de envolvimento
renal e anticorpos anti-La/SS-B.

Em doentes com Síndrome Anticorpo Antifosfolipídico (SAAF) associado a outras


doenças auto-imunes a linfopénia é significativamente mais frequente (75%) que em
doentes apenas com SAAF (41%).

Na Dermatomiosite a linfopénia é uma manifestação hematológica frequente, com uma


prevalência de 85% em doentes não tratados, afectando todos os subtipos de linfócitos,
embora as alterações mais evidentes envolvam a linhagem de células T CD8+.

Linfopénia T CD4+
A linfopénia T CD4+, sobretudo devido a diminuição da subpopulação CD4+/CD45RA+,
tem sido reportada em cerca de 5% dos doentes com Síndrome de Sjögren (SS). A
desregulação da apoptose está provavelmente envolvida na sua patogénese,

258
enquanto que o papel dos anticorpos contra células T CD4+ é incerto. As contagens
absolutas de linfócitos T CD4+ têm sido significativamente inferiores em doentes com
SS com positividade para anti-Ro/SS-A.

A linfopénia T CD4+ também tem sido reportada em doentes com Síndrome Anticorpo
Antifosfolipídico.

Trombocitopénia
Nas doenças de tecido conjuntivo a trombocitopénia, contagem de plaquetas
<100.000/mm3, pode ser imuno-mediada ou não imuno-mediada.

NÃO AUTO-IMUNE
Trombopoiese ineficaz ou alterada
Níveis de trombopoietina circulantes efectivos baixos
Diluição periférica de plaquetas, sequestro ou consumo
AUTO-IMUNE
Auto-imunidade específica humoral e mediada por células
Anticorpos anti-trombopoietina
Anticorpos anti-fosfolipídico
Tabela 4: Patogénese da trombocitopénia em doenças do tecido conjuntivo autoimunes 2

Nos doentes com Artrite Reumatóide a trombocitopénia foi sobretudo reportada como
um efeito induzido por fármacos e pouco frequentemente relatado como sendo
associada à doença. Por outro lado, a trombocitopénia é uma característica
hematológica na instalação da Síndrome de Felty.

Nos doentes com Lúpus Eritematoso Sistémico a trombocitopénia é uma manifestação


comum, compreendida entre os critérios hematológicos para classificação da doença
pelo American College of Rheumatology. Há vários mecanismos provavelmente
envolvidos na sua patogénese – a destruição/agregação periférica de plaquetas devido
a autoanticorpos específicos, anti-corpos anti-trombopoietina (TPO), níveis circulantes
efectivos baixos de TPO e megacariopoiese compensatória ineficaz. Nos doentes com
LES a prevalência de trombocitopénia situa-se entre 8 a 31%, enquanto a
trombocitopénia grave (<50.000/mm3) é menos frequente (~5%).

A associação de trombocitopénia com a presença de anticorpos anti-fosfolipídicos e


anti-dsDNA tem sido frequentemente reportada.

Em vários estudos, a trombocitopénia surge como um indicador major de morbilidade


cumulativa, afectando o prognóstico, bem como um preditor major de mortalidade do
LES. A contribuição da trombocitopénia para uma pior sobrevivência no LES não é
primariamente devido a complicações hemorrágicas, mas sobretudo depende da sua
associação a uma doença mais agressiva, em particular se paralela a anemia hemolítica
e envolvimento renal.

259
Nos doentes com Síndrome de Sjögren há uma prevalência de 11% de trombocitopénia.
Os doentes com trombocitopénia apresentaram uma mais elevada prevalência de
envolvimento renal e anticorpos anti-La/SS-B.

A trombocitopénia é uma manifestação hematológica frequente da Síndrome Anticorpo


Anti-fosfolipídico, cuja prevalência tem sido situada entre 20 e 30%, sendo mais elevada
nos doentes com outra doença auto-imune associada (43% vs 21% nos doentes apenas
com SAAF). A trombocitopénia no SAAF é geralmente ligeira, raramente associada a
complicação hemorrágica, geralmente não necessitando de terapêutica. Todavia, foi
mostrado que representa um factor de risco para envolvimento cardíaco, neurológico,
cutâneo e articular. A trombocitopénia grave foi reportada em 3-10%. Em doentes com
trombocitopénia refractária associada a SAAF a esplenectomia geralmente oferece uma
boa resposta.

Bicitopénia/Pancitopénia
Os doentes com doença auto-imune do tecido conjuntivo podem apresentar anomalias
hematológicas que afectem mais do que uma linhagem celular, como consequência de
mecanismos patogénicos imunes ou não imunes, incluindo auto-imunidade subjacente,
apoptose desregulada, hemofagocitose, toxicidade de fármacos, fibrose medular,
síndromes mielodisplásicos ou necrose da medula óssea.

Síndrome de Evans
A bicitopénia auto-imune, ao acompanhar a ocorrência sequencial ou simultânea de
anemia hemolítica e trombocitopénia, define a Síndrome de Evans, uma condição
hematológica relativamente rara que tem sido descrita como primária ou em associação
com doenças linfoproliferativas e doenças auto-imunes do tecido conjuntivo, como
Lúpus Eritematoso Sistémico, Síndrome Anticorpo Anti-fosfolipídico e Dermatomiosite.

Púrpura Trombocitopénica Trombótica


A bicitopénia constitui uma característica cardinal na instalação de anemia hemolítica
microangiopática trombótica ou púrpura trombótica trombocitopénica (PTT). A PTT é
uma microangiopatia trombótica oclusiva microvascular grave, caracterizada por anemia
hemolítica microangiopática (indicada pela fragmentação de eritrócitos na morfologia de
sangue periférico), trombocitopénia grave e agregação plaquetária, na presença de
febre e vários graus e isquémia de tecidos e órgãos.

A PTT pode ser primária ou secundaria a fármacos, transplante de medula ou de órgão


e doenças auto-imunes. Trata-se de uma doença grave, requerendo diagnóstico
precoce e rápida instituição de terapêutica eficaz, incluindo plasmaferese.

A etiopatogénese é pouco clara. A lesão ou apoptose de células endoteliais, a


diminuição da actividade da metaloprotease que lisa o factor de Von Willebrand (i.e.

260
ADAMST-13), presença de imunocomplexos ou autoanticorpos, como anticorpos anti-
fosfolipídicos, podem estar envolvidos no desenvolvimento de PTT.

A PTT tem sido descrita nos doentes com Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) com maior
prevalência que na população geral. A apresentação clínica da PTT pode ocorrer antes
da apresentação do LES (73%), simultaneamente (12%) ou subsequentemente (15%).

A PTT raramente é reportada na Esclerose Sistémica ou doença mista do tecido


conjuntivo e ocasionalmente na dermatomiosite, polimiosite ou artrite reumatóide.

A PTT tem ainda sido documentada nos doentes com Síndrome Anticorpo
Antifosfolipídico, frequentemente como manifestação inicial da doença.

Hemofagocitose
Nas doenças do tecido conjuntivo, a bicitopénia/pancitopénia pode estar relacionada
com hemofagocitose.

A síndrome hemofagocítica reactiva é rara, mas grave, sobretudo observada em relação


com doenças linfoproliferativas ou infecções graves e infiltração do sistema
reticuloendotelial da medula óssea por histiócitos não malignos, que iniciam
hemofagocitose descontrolada.

A hemofagocitose tem sido descrita na artrite reumatóide, ocasionalmente na doença


mista do tecido conjuntivo, síndrome de Sjögren, esclerose sistémica e dermatomiosite,
embora a maior frequência tenha sido observada em doentes com LES. Na maioria dos
casos reportados, a síndrome hemofagocítica (SH) foi a manifestação de apresentação.
Além disso, em estudos a longo prazo, a SH parece definir um subgrupo de doença
grave, caracterizada por flares repetidos, possivelmente recorrência de hemofagocitose
e necessidade de imunossupressão prolongada.

Nos doentes com doença auto-imune do tecido conjuntivo, a anemia e a trombocitopénia


pareceram ser os factores hematológicos associados com a mortalidade da SH.

Leucocitose
Na ausência de infecção, de recorrência de doença ou corticoterapia, os doentes com
doenças auto-imunes raramente mostram elevação de contagem leucocitária. Numa
revisão de 180 doentes com esclerose sistémica, foi encontrada leucocitose em 14% e
correlacionada com miopatia activa e/ou envolvimento visceral avançado.

Linfocitose
A linfocitose (contagem de linfócitos >3000/mm3) é uma manifestação rara de Lúpus
Eritematoso Sistémico e Síndrome de Sjögren primário (SSp) (1%).

261
A linfocitose granular é uma condição pouco frequente, ocasionalmente observada na
SSp, tendo sido reportada com uma frequência de 19% na Síndrome de Felty (SF). Este
grupo de doentes com SF apresenta um elevado número de linfócitos granulares
periféricos e na medula óssea, cuja expansão pode ser reactiva ou tornar-se clonal,
dando origem a leucemia de grandes linfócitos granulares. Por este motivo, tem sido
sugerido que a SF e a leucemia de grandes linfócitos granulares possam representar
diferentes aspectos clínicos no mesmo espectro de doença.

Monocitose
A percentagem de monócitos em circulação em doentes com Lúpus Eritematoso
Sistémico é geralmente maior que nos doentes-controlo, mas uma monocitose absoluta
(monócitos >800/mm3) é pouco frequente; na instalação da Artrite Reumatóide, foi
reportada monocitose em doentes com sinovite.

Eosinofilia
A eosinofilia (eosinófilos >500/mm3) é frequentemente associada a infecções por
parasitas, atopia ou reacções alérgicas, e pode ocorrer em doenças auto-imunes,
incluindo a poliangeíte granulomatosa eosinofílica, miopatias eosinofílias ou fasceíte
eosinofília, bem como doenças auto-imunes do tecido conjuntivo.

Na artrite reumatóide a eosinofilia é positivamente correlacionada com manifestações


extra-articulares. De facto, o envolvimento pulmonar e a vasculite com neuropatia
associada e ulcerações cutâneas são três vezes mais frequentes em doentes com
eosinofilia.

A eosinofilia é pouco frequente no LES, tendo sido encontrado em 12% de doentes com
sindrome de Sjögren primária – doentes com eosinofilia tinham uma menor prevalência
de vasculite cutânea e biopsia de glândula salivar positiva.

Trombocitose
A trombocitose (contagem de plaquetas >400000/mm3) pode representar a expressão
de doença mieloproliferativa ou um processo reactivo na instalação de infecção,
neoplasia, hemorragia aguda, lesão tecidular por cirurgia, reacções a fármacos ou
doenças inflamatórias crónicas, como as doenças auto-imunes do tecido conjuntivo.

A trombocitose nas doenças do tecido conjuntivo pode depender da resposta da medula


óssea à trombopoietina, que actua como uma proteína de fase aguda, bem como outros
factores adjuvantes, como a interleucina 6.

A trombocitose é uma manifestação frequente da artrite reumatóide, correlacionando-


se com a actividade da doença.

Numa série de 465 doentes com LES, a trombocitose foi reportada com uma prevalência
de 3,65%. Para além de constituir uma expressão de doença activa, o súbito
aparecimento e persistência de trombocitose ou mesmo a aparente reversão de

262
trombocitopénia em doentes com LES foi sugerida como sendo indicativa de auto-
esplenectomia, particularmente na presença de anticorpos anti-fosfolipicos e/ou SAAF.

Nos doentes com esclerose sistémica, a trombocitose foi reportada como um parâmetro
de actividade da doença.

Neoplasias Hematológicas
Em estudos de coortes tem sido evidenciado que as doenças auto-imunes estão
associadas com maior risco a neoplasias hematológicas, provavelmente devido a
estimulação crónica do sistema imune e/ou factores genéticos e ambientais. Além disso,
a terapêutica farmacológica destas patologias pode contribuir para aumentar o risco
oncogénico, ora por mutagénese directa ou por interferência com a vigilância imune e/ou
proliferação de células imunocompetentes.

Uma meta-análise recente dos estudos de coorte disponíveis avaliando a relação entre
o desenvolvimento de linfoma não-Hodgkin (LNH) e as doenças auto-imunes mostrou
que o LNH é mais comum nestes doentes do que na população em geral, com um risco
aumentado para os doentes com Síndrome de Sjögren primário, moderado para Lúpus
Eritematoso Sistémico e baixo para Artrite Reumatóide. Na maior parte dos casos, o
desenvolvimento de doença auto-imune pareceu preceder a instalação do linfoma.

Há associações positivas mais evidentes para alguns subtipos específicos de LNH: o


linfoma difuso de células B está sobretudo aumentado na Artrite Reumatóide (AR), LES
e, em menor grau, na Síndrome de Sjögren (SS); o tipo linfoplasmocitário está
frequentemente associado com AR e o linfoma da zona marginal fortemente associado
com SS. Os linfomas de células T raramente são encontrados nos doentes com
patologia auto-imune.

Na AR, em consonância com a noção de que a inflamação crónica associada com a


persistente proliferação de células B pode favorecer os eventos oncogénicos de células
B, a actividade inflamatória significativa, a elevada classe funcional, a idade avançada
e doença de longa evolução têm sido identificados como factores de risco major para
desenvolvimento de LNH.

A noção de que o risco de doenças linfoproliferativas pode estar associado com a


terapêutica, em particular com antagonistas TNF alfa, é ainda debatida. Num estudo
com uma coorte de 74651 doentes com AR, o tratamento com fármacos modificadores
de doença, incluindo metotrexato, não mostrou ser um factor de risco para linfomas
malignos e não aumentou o risco em doentes com elevada actividade da doença. Tem
ainda sido sugerido que uma terapêutica eficaz, ao reduzir a actividade da doença, pode
inclusivamente reduzir a taxa de doença linfoproliferativa.

Os doentes com Lúpus Eritematoso Sistémico que desenvolvem LNH geralmente têm
uma doença agressiva; no entanto, a existência de nefropatia ou o uso de terapêutica
imunossupressora não parece conferir aumento do risco. O risco aumentado de doença
linfoproliferativa é observado mesmo precocemente no curso da doença (e, portanto,
provavelmente não relacionado com a terapêutica cumulativa), sugerindo que a
exposição a fármacos não é a principal causa do aparecimento de linfomas.

263
Os doentes com SS têm um risco 28 vezes superior à população em geral de
desenvolver linfoma da zona marginal. Nestes doentes, os sinais clínicos e biológicos
preditores e desenvolvimento de LNH parecem ser a esplenomegália, linfadenopatias,
vasculite cutânea, neuropatia periférica, anemia, linfopénia, bem como parotidomegália,
linfocitopénia T CD4+, crioglobulinémia mista monoclonal, hipocomplementémia e a
negativização de factor reumatóide previamente positivo.

Alterações no hemograma de um doente com patologia autoimune pode significar


intercorrência infecciosa ou neoplásica mas, também, actividade da doença.

TAKE HOME MESSAGES


As doenças autoimunes podem ter manifestações hematológicas, pelo que por
vezes é difícil diferenciar o que é da doença e o que é iatrogenia ou doença
hematológica isolada.
Há um aumento de probabilidade de desenvolvimento de doenças linfoproliferativas
nos doentes com patologia autoimune.
A própria terapêutica pensa-se que poderá ter um papel no aparecimento de doença
linfoproliferativa embora, até agora, a evidência seja escassa.

Bibliografia
1. Hematologic manifestations of connective autoimmune diseases, P.Fietta, G.Delsante,
F.Quaini, Clin Exp Rheumatol 2009; 27:140-154
2. Scleroderma and hemolytic anemia in a patient with deficiency of IgA and C4: a hitherto
undescribed association, Jones, E, et al, J Rheumatol 1987; 14: 609-12
3. Thrombocytosis in systemic lúpus erythematosus: a possible clue to autosplenectomy?, G.
Castellino et al, J Rheumatol 2007; 1497-501
4. The risk of lymphoma development in autoimmune diseases: a meta-analysis, E Zintzaras et
al 2005, Arch Intern Med; 165:2337-44
5. Association with chronic inflammation, not its treatment, with increased lymphoma risk in
rheumatoid arthritis, Baecklund et al 2006, Arthritis Rheum; 54:692-701
6. EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3

264
6. DOENÇAS AUTOIMUNES DA TIRÓIDE
Definição
As doenças autoimunes da tiróide (DAIT) são as DAI específicas de órgão mais comuns. A
sua prevalência está estimada em cerca de 5%, sendo mais frequentes em mulheres. As
principais DAIT são a Tiroidite de Hashimoto (TH) e a Doença de Graves (DG), responsáveis
pela maioria dos casos de hipotiroidismo e hipertiroidismo, respectivamente. Destacamos
ainda algumas entidades clínicas menos frequentes, que são consideradas variantes da TH
pelo mecanismo fisiopatológico de base.

Etiologia e Fisiopatologia
A etiologia das DAIT é complexa, admitindo-se que seja causada pela interacção de factores
ambientais e endógenos, em indivíduos geneticamente susceptíveis. Estão descritos
polimorfismos de alelos HLA (HLA-DR3, HLA-DR4 e HLA-DR5) e de CTLA-4 associados à TH.
Foram também descritos polimorfismos no receptor da tirotrofina (TSH-R) que contribuem para
a susceptibilidade para a DG. Os principais factores ambientais associados ao risco de
desenvolver DAIT são o tabagismo, stress, ingestão de iodo, fármacos (como o lítio e
amiodarona), exposição a radiação, infecções virais e bacterianas e microquimerismo fetal.
Do ponto de vista imunopatogénico, parece haver um evento inflamatório iniciador, seguido
de uma resposta auto-reactiva específica do sistema imunitário, com infiltração da tiróide por
linfócitos B e T. De acordo com o padrão de citocinas produzido pelas células T helper pode
haver duas evoluções distintas:
- A polarização Th1 leva a um predomínio de mecanismos de imunidade celular, com
infiltração linfocitária da tiróide exuberante e citotoxicidade mediada por linfócitos T CD8+
citotóxicos e pelo complemento. A apoptose, sobretudo através de mecanismos
dependentes do receptor Fas ou CD95, vai ter também um papel preponderante na
destruição da glândula tiroideia. Este mecanismo está na génese da Tiroidite de Hashimoto
e suas variantes.
- A polarização Th2 traduz-se numa dominância dos mecanismos de imunidade humoral,
com produção de anticorpos estimuladores dos receptores da TSH (TRAbs) e escassa
infiltração linfocitária, como no caso da Doença de Graves.
Os principais autoanticorpos associados às DAIT são os anticorpos anti-tiroperoxidase (anti-
TPO), anti-tiroglobulina (anti-Tg) e anti-TSH-R (TRAb).
Os anticorpos anti-TPO têm a capacidade de fixar o complemento, pelo que podem ter uma
acção citotóxica que contribui para perpetuar a inflamação. Os anti-Tg são menos frequentes
e têm um papel menos bem definido. Conjuntamente, os anticorpos anti-TPO e anti-Tg estão
presentes na maioria dos doentes com DAIT, apresentando elevado valor preditivo negativo.
Os TRAb estão presentes em mais de 90% dos casos dos DG e têm um efeito estimulador na
produção de hormona tiroideia (TRAb-e). Numa pequena fração de doentes com TH, podem
ser detectados anticorpos anti-TSH-R com efeito bloqueador (TRAb-b).
Os anticorpos antitiroideus podem ser identificados em indivíduos saudáveis, sem evidência
clínica ou laboratorial de disfunção tiroideia. Cerca de 25% das mulheres com mais de 60 anos
têm anticorpos anti-tiroideus. Os indivíduos portadores destes anticorpos apresentam maior
risco de desenvolver uma DAIT, especialmente tiroidite pós-parto e disfunção tiroideia
265
secundária ao uso de fármacos.

Apresentações Clínicas

DAI EPIDEMIOLOGI HISTOPATOLOGI LABORATÓRI CAPTAÇÃO


CLÍNICA ECOGRAFIA TRATAMENTO
T A A O DE I-131

Causa mais Infiltrado ↑ TSH


comum de linfocítico ↓ FT4 Tiróide
hipotiroidismo anti-TPO aumentada
difuso, com
. Prevalência Hipotiroidism (>90%) ou atrofiada.
TH centros Diminuída Levotiroxina
1:1000. o anti-Tg Difusamente
germinativos e
Pico (50%) hipoecogénic
células de
incidência na TRAb-b a.
Hurthle
4ª década. (10%)
F:M 10:1
Infiltrado Trifásico: Níveis de Tiróide Exame com
1-5% casos linfocítico 1. TSH e FT4 heterogénea, contra- Hipertiroidism
hipertiroidism difuso. Não há Hipertiroidism variáveis hipoecóica, indicação o: B-bloq
TI o. centros o anti-TPO de tamanho relativa
F:M 4:1. 30- germinativos 2. (50%) normal ou durante Hipotiroidismo
40 anos. nem células de Hipotiroidism Sem pouco amamentaçã : levotiroxina
Hurthle o elevação de aumentada o
3. parâmetros
Recuperação inflamatórios
Infiltrado para
20-30%
Prevalência 8- linfocítico com eutiroideu
trifásico (=TI) Hipertiroidism
11%. Anti- ocasionais 20-40% = TI o: B-bloq
TPO no 1º centros
TPP hipertiroidism anti-TPO = TI Diminuída (propranolol)
trimestre germinativos. o (60-85%) Hipotiroidismo
gravidez Disrupção e 40-50% : levotiroxina
agrava risco. colapso de hipotiroidismo
folículos.

Incidência Núcleo central Pródromos: TSH e FT4


3/100000/A de colóide sintomas variáveis
F:M 4:1. 40- rodeado por inespecíficos Aumento de Habitualment 1ªlinha: AINEs
50 anos. céls. Curso parâmetros e aumentada, 2ªlinha:
TSA Aumentada
Incidência multinucleadas trifásico (= TI) inflamatórios difusamente glicocorticóide
sazonal gigantes, que Dor à (Leuc, PCR ecogénica s
(Verão). foram palpação da e VS)
Associado a granulomas tiróide anti-TPO
Echovirus, (25%)
vírus Hipertrofia e
Causa + A
Coxsachie hiperplasia de Hipertiroidism ↓ TSH B-Bloq e
comume B de células o ↑ FT4 Tiróide fármacos anti-
hipertiroidism foliculares da
DG Gota ↑↑ FT3 difusamente Diminuida tiroideus. Iodo
o. tiróide. Oftalmopatia TRAB-e aumentada radioactivo.
F:M 10:1. 40- Escasso Dermopatia (90%) Cirurgia.
60 anos. colóide e
infiltração
linfocítica.
Tabela 1. Principais características das doenças autoimunes da tiróide. TH: Tiroidite de Hashimoto; TI: Tiroidite Indolor; TPP:
Tiroidite Pós-Parto; TSA: Tiroidite Subaguda; DG: Doença de Graves. Adaptada de: Anaya JM, Shoenfeld Y, et al. (2013). “Thyroid
disease and autoimmune diseases” in “Autoimmunity: From Bench to Bedside”. Bogota: El Rosario University Press; 537-555

Tiroidite de Hashimoto
A TH, tiroidite crónica autoimune ou tiroidite linfocítica crónica, é a principal causa de
hipotiroidismo nas regiões em que a alimentação fornece um aporte suficiente de iodo. Tem
uma prevalência de 1:1000, que aumenta com a idade, podendo afectar até 40% das mulheres
idosas. A média de idade de apresentação é aos 35 anos, sendo muito mais frequente em
mulheres (ratio 10:1). Pode apresentar-se como tiroidite autoimune gotosa ou tiroidite
autoimune atrófica. Além das manifestações clínicas e laboratoriais de hipotiroidismo, verifica-
se a presença de anti-TPO em >90% e de anti-Tg em 50% dos casos.
A TH tem sido associada ao aumento do risco de linfoma da tiróide, pelo que se devem realizar
ecografias tiroideias regulares para detecção precoce de nódulos suspeitos.
O tratamento consiste na administração de hormona tiroideia de substituição (levotiroxina)
266
com o objetivo de melhorar sintomas, normalizar a secreção de TSH e reduzir o tamanho da
glândula nas formas gotosas. Recomenda-se o tratamento apenas quando o valor da TSH é
superior a 10 mUI/L ou nas mulheres grávidas ou a planear engravidar.

Variantes da Tiroidite de Hashimoto


A Tiroidite Indolor (TI) caracteriza-se por apresentar uma evolução trifásica de hipertiroidismo
seguido de hipotiroidismo, com recuperação para um estado eutiroideu. A sua incidência não
está bem definida, mas corresponde a 1-5% dos casos de hipertiroidismo. Afecta sobretudo
mulheres (4:1) e tem uma idade de apresentação habitual entre os 30-40 anos.
A inflamação da tiróide, despoletada por factores externos, danifica os folículos e activa a
proteólise da tiroglobulina armazenada no colóide, libertando T3 e T4 de forma desregulada
na circulação, o que resulta em hipertiroidismo. Após exaustão da tiroglobulina, ocorre um
decréscimo da síntese hormonal, que pode levar a um estado de hipotiroidismo. À medida que
a inflamação diminui, os folículos regenerados retomam a síntese e secreção de hormona.
Deste modo, podem ocorrer flutuações clínicas e dos níveis séricos de TSH e FT4 ao longo
do tempo. Cerca de 50% dos doentes têm níveis aumentados de anti-TPO.
A Tiroidite Pós-Parto (TPP) ocorre no primeiro ano pós-parto, podendo também surgir após
aborto espontâneo ou induzido. A sua prevalência varia globalmente entre 8-11%. É mais
frequente em mulheres que apresentem títulos elevados de anti-TPO no final do primeiro
trimestre da gravidez, ou imediatamente após o parto. O risco é também elevado em mulheres
com outras doenças autoimunes – por exemplo, a diabetes tipo 1 aumenta três vezes o risco
- ou história familiar de DAIT. Cerca de um terço das doentes apresenta um curso trifásico
como a TI; as restantes apresentam apenas hipertiroidismo ou hipotiroidismo inaugural.
Estima-se que cerca de 80% das mulheres afectadas recuperam a função normal ao fim de
um ano. Depois do primeiro episódio, há probabilidade de recorrência em gestações futuras
de 70%.
A maioria dos doentes com TI e TPP não necessita de qualquer tratamento, uma vez que a
disfunção tiroideia não costuma ser suficientemente grave para causar sintomas. Aqueles que
apresentam manifestações clínicas, devem ter tratamento dirigido para a fase da doença em
que se encontram (beta-bloqueantes na fase de hipertiroidismo, levotiroxina na fase de
hipotiroidismo). O tratamento com levotiroxina deve ser prolongado nos casos de TPP se a
doente ainda estiver a amamentar ou se estiver a planear outra gravidez.
A Tiroidite Associada a IgG4 (TIgG4) foi recentemente listada como um subtipo de TH. É
caracterizada pela presença de fibrose e de um denso infiltrado linfoplasmocítico que, ao
contrário das outras variantes de TH, é rico em plasmócitos produtores de IgG4 (>20 células
por campo). O diagnóstico é baseado numa combinação de características clínicas,
serológicas e histológicas. A elevação dos níveis séricos de IgG4 é frequente mas não ocorre
em todas as situações. As técnicas de imagem podem auxiliar o diagnóstico e são úteis na
monitorização da doença. Os corticosteróides constituem a terapêutica de primeira linha; o
tamoxifeno e o rituximab podem ser usados como terapêutica de segunda linha nos casos
refractários.

Tiroidite Subaguda
A TSA (ou Tiroidite de Quervain) é a principal causa de dor localizada à tiróide. É uma tiroidite
inflamatória auto-limitada com um curso clínico semelhante ao da TI e da TPP. Admite-se que
267
tenha uma etiologia infecciosa viral, especialmente por Enterovirus (Coxsackie e Echovirus),
estando também associada aos vírus do sarampo, parotidite, adenovírus e Ebstein-Barr. A
incidência estimada é de 3 casos por cada 100000/ano, sendo descrita em adultos entre os
40 e os 50 anos de idade, sobretudo mulheres (razão de 4:1). Distingue-se das outras formas
de tiroidite por apresentar um período prodrómico de sintomas sistémicos como febre, astenia
e mialgias em 96% dos casos. Ao exame objectivo, a tiróide pode estar aumentada e dolorosa
à palpação. Além da variação das hormonas tiroideias ao longo do curso da doença, salienta-
se a elevação de parâmetros inflamatórios séricos.
Os anti-inflamatórios não esteróides são utilizados como terapêutica de primeira linha. Os
corticosteróides são usados nas situações em que os sintomas não são controlados ao fim de
2-3 dias; inicia-se prednisolona numa dose de 40 mg/dia, que deve ser reduzida gradualmente
ao longo de 6-8 semanas. Nos casos mais raros de tirotoxicose sintomática, pode ser
necessário o uso de beta-bloqueantes. Deve evitar-se o uso de fármacos anti-tiroideus, uma
vez que a produção hormonal não está aumentada.

Doença de Graves
A DG representa 80% dos casos de hipertiroidismo. É mais frequente em mulheres (ratio 10:1)
e tem um pico de incidência entre os 40 e os 60 anos. Os TRAb presentes em circulação
activam o receptor da TSH, estimulando a hipertrofia e hiperplasia folicular e aumentando a
produção de hormonas tiroideias (FT3 > FT4). Além das manifestações clínicas secundárias
ao excesso de hormonas em circulação (hipertiroidismo), podem surgir outras manifestações
características, tais como gota difusa, oftalmopatia e dermopatia.
A Oftalmopatia de Graves (OG) afecta 20-30% doentes e pode surgir antes ou depois dos
sintomas de hipertiroidismo. É causada por uma reação-cruzada entre os TRAb e o TSH-R
presente nos fibroblastos orbitários, que induz a produção de glicosaminoglicanos. Os sinais
característicos de OG são a proptose e o edema periorbitário; os principais sintomas incluem
irritação ocular, lacrimejo, dor retro-orbitária, visão turva e diplopia. A maioria dos doentes
apresenta um envolvimento ocular ligeiro e insidioso, mas em 5-10% dos casos pode haver
acometimento grave da visão.
Há várias estratégias de abordagem terapêutica da DG: 1) tratamento médico, incluindo
controlo de sintomas de hipertiroidismo (ex. beta-bloqueantes) e bloqueio da síntese de
hormona tiroideia (ex. propiltiouracilo, metimazol); 2) tratamento com iodo radioativo; 3)
tiroidectomia total.

Associação a outras Doenças Autoimunes


As DAIT estão frequentemente associadas a outras doenças autoimunes de órgão e
sistémicas. Em 2016 Fallahi e Ferrari publicaram um estudo que avaliou prospectivamente a
prevalência de outras doenças autoimunes em 3069 doentes com o diagnóstico de TH, em
comparação com dois grupos de controlo (sem patologia tiroideia e com bócio multinodular
não-tóxico). Verificaram que o grupo de doentes com TH apresentava maior risco de se
associar a outras doenças autoimunes, nomeadamente: diabetes tipo I, gastrite autoimune
crónica, doença celíaca, vitiligo, alopécia areata, esclerose múltipla, artrite reumatóide, lúpus
eritematoso sistémico, síndrome de Sjögren, esclerose sistémica, sarcoidose e
crioglobulinémia. Esta associação entre DAIT e doenças autoimunes sistémicas sublinha a
importância dos factores de susceptibilidade genética.

268
Os doentes com DAIT com evolução atípica ou que se apresentem com sintomas inespecíficos
de novo devem ser investigados para exclusão de outras doenças autoimunes concomitantes.

BIBLIOGRAFIA:
1. Anaya JM, Shoenfeld Y, et al. (2013). “Thyroid disease and autoimmune diseases” in “Autoimmunity: From Bench
to Bedside”. Bogota: El Rosario University Press; 537-555
2. Melo M. Tiroidites. Acta Med Port 2006; 19: 387-394.
3. Won Sang Yoo, Hyun Kyung Chung: Recent Advances in Autoimmune Thyroid Diseases. Endocrinol Metab 2016;
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4. Antonelli A, Ferrari SM et al: Autoimmune thyroid disorders. Autoimmun Rev. 2015; 14(2): 174-180

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6. Dulani Kottahachchia, Duncan J. Toplissa: Immunoglobulin G4-Related Thyroid Diseases. Eur Thyroid J. 2016
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7. Fallahi P, Ferrari SM, et al: The association of other autoimmune diseases in patients with autoimmune thyroiditis:
review of the literature and report of a large series of patients. Autoimmun Rev. 2016; Dec; 15(12): 1125-1128.

269
PARTE IV – ASPECTOS
PARTICULARES DAS DOENÇAS
AUTO-IMUNES

270
1. TERAPÊUTICA

1. CORTICÓIDES
Os corticóides endógenos têm actividade glucocorticóide (regulação do metabolismo
dos hidratos de carbono) e actividade mineralocorticóide (regulação do equilíbrio
eletrolítico). Os corticosteróides são, assim, classificados de acordo com as suas
potências relativas na retenção de sódio, efeitos no metabolismo dos hidratos de
carbono (HC) e efeito anti-inflamatório. As potências anti-inflamatórias acompanham os
efeitos no metabolismo dos HC, mas não os efeitos na retenção de sódio / efeito
mineralocorticóide; por esta razão os corticóides sintéticos são designados de
glucocorticóides quando são utilizados pelo seu efeito anti-inflamatório.

Os glucocorticóides são amplamente utilizados nas doenças auto-imunes pelos seus


efeitos anti-inflamatório e imunossupressor, bem como pela sua relativa rapidez de
acção quando comparados com outros imunomoduladores e imunossupressores. Estas
propriedades explicam-se pelos efeitos que exercem no sistema imunitário:

• diminuição da síntese de citocinas pro-inflamatórias como IL-1, IL-2 e


receptor da IL-2, IFN-α, IL-6 e TNF α;
• inibição da síntese de enzimas pró-inflamatórias secretadas por
macrófagos e outras células imunitárias;
• inibição da actividade da fosfolipase A2 com redução da produção
intracelular de prostaglandinas, leucotrienos e radicais de oxigénio;
• redução da transcrição da ciclooxigenase 2 (COX-2);
• diminuição do número de células T em circulação e da sua função;
• redução da expressão do receptor Fc – com consequente redução da
clearance de células sanguíneas revestidas por anticorpos;
• aumento do número de neutrófilos circulantes e alteração da adesão
leucocitária às células endoteliais.

ACTIVIDADE
DOSE ACTIVIDADE DURAÇÃO
ANTI-
GLUCOCORTICÓIDE EQUIVALENTE MINERALOCORTICÓIDE DE ACÇÃO
INFLAMATÓRIA
(MG) RELATIVA (H)
RELATIVA
HIDROCORTISONA 20 1 1 8 a 12
ACETATO DE
25 0,8 0,8 8 a 12
CORTISONA
PREDNISONA 5 4 0,8 12 a 36
PREDNISOLONA 5 4 0,8 12 a 36
METILPREDNISOLONA 4 5 0,5 12 a 36
TRIAMCINOLONA 4 5 0 12 a 36
Não usado para
FLUDROCORTISONA efeito anti- 10 125 12 a 36
inflamatório
DEXAMETASONA 0,75 30 0 36 a 72
DEFLAZACORTE 6 - - -
Tabela 1: Glucocorticóides, potência relativa e duração da acção.

271
Os glucocorticóides têm diferentes potências e duração de acção, pelo que a sua
aplicabilidade deve ser ajustada a cada situação clínica – tabela 1. A prednisona e
prednisolona são glucocorticóides potentes e mineralocorticóides fracos. O deflazacorte
tem mostrado menos efeitos adversos, principalmente no metabolismo ósseo e da
glucose, embora seja menos potente em termos de efeito anti-inflamatório e
imunossupressor – estudos com maior número de doentes e durabilidade seriam
desejáveis para esclarecer estes aspetos.

Indicações

Os glucocorticóides estão indicados em praticamente todas doenças auto-imunes


sistémicas, consoante o estado clínico do doente. Nalgumas situações, são fármacos
de 1ª linha e o elemento central da terapêutica, como na arterite de células gigantes,
polimialgia reumática e polimiosite; noutros casos, são usados para controlo rápido de
exacerbações, afim de induzir alívio rápido dos sintomas e reduzir a lesão de órgão-
alvo até os outros agentes terapêuticos (DMARDs sintéticos ou agentes
biotecnológicos) começarem a fazer efeito.
Após a introdução de um DMARD deve proceder-se à redução progressiva do
glucocorticóide até à sua suspensão, sempre que possível. Mesmo nos casos em que
o corticóide é o fármaco de 1º linha, salvo raras excepções, deve introduzir-se um outro
DMARD com o intuito de poupar a dose de corticóide e assim reduzir os efeitos adversos
da corticoterapia crónica.

Posologia e Modo de Administração

Os glucocorticóides sistémicos podem ser administrados por via oral, endovenosa (EV),
intra-muscular (IM) e intra-articular (IA). A via oral é a mais utilizada nas doenças auto-
imunes, ajustando-se a dose à gravidade das manifestações. A via EV é menos
frequente, geralmente na forma de “pulsos” de corticóide nas manifestações mais
graves (vide abaixo). A via IA, também designada de “infiltração”, é habitualmente
seleccionada para o controlo de artrite ou entesite localizada, sendo efectuada em toma
única, que pode ou não ser repetida posteriormente, geralmente com um intervalo de
alguns meses.
Nas doenças auto-imunes os corticóides sistémicos são habitualmente de toma diária,
de manhã, em toma única/ não fraccionada. Pode fazer-se administração destes
fármacos à noite ou em toma fraccionada – de manhã e à noite – mas estas formas de
administração estão associadas a maior supressão do eixo hipotálamo-hipófise-
suprarrenal. Nalgumas situações, é possível fazer tomas em dias alternados,
provocando menor supressão do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal.
Os limites que definem a corticoterapia de baixa, média e alta dose não estão bem
estabelecidos, contudo um comité da EULAR propôs em 2002 a seguinte classificação:

272
• BAIXA DOSE: ≤ 7,5 mg/dia de prednisona (ou equivalente)
- habitualmente usada como dose de manutenção. Frequente na artrite
reumatóide.
- menor incidência de efeitos adversos.

• MÉDIA DOSE: > 7,5 mg/dia e ≤ 30 mg/dia de prednisona (ou equivalente)


- usada no tratamento inicial de manifestações ligeiras a moderadas (ex. artrite)
em várias doenças auto-imunes.
- pode ser dose de manutenção em algumas situações (ex. miopatias
inflamatórias, vasculites).
- os efeitos secundários são consideráveis (e dose-dependentes) se a duração do
tratamento for prolongada.

• ALTA DOSE: > 30 mg e ≤ 100 mg/dia de prednisona (ou equivalente)


- usada habitualmente no tratamento inicial de manifestações subagudas, de
gravidade moderada, mas não letal, de várias doenças auto-imunes.
- estas doses devem ser usados durante o mínimo tempo possível, pelo risco de
ocorrência de efeitos secundários graves.

• MUITO ALTA DOSE: > 100 mg/dia de prednisona (ou equivalente)


- utilização rara – geralmente no tratamento inicial de complicações graves
potencialmente fatais ou com risco de perda de função de órgão nobre.

• PULSOS: corresponde à administração de ≥ 250mg/dia de equivalente de


prednisona, habitualmente por via EV, durante 1 a alguns dias (geralmente ≤ 5
dias).
- na prática clínica, as formulações mais usadas são os pulsos de
metilprednisolona EV na dose de 500 mg/dia a 1000 mg/dia. Devem ser
administrados lentamente em 1h a 2h, pelo risco de disritmias e mesmo morte
súbita associados a infusões rápidas.
- habitualmente usados nas complicações graves, que implicam risco de morte ou
perda/ lesão grave de órgão nobre. Utilização habitual nas complicações graves
de lúpus (ex. nefrite, vasculite do SNC ou pulmonar), vasculites e miopatias
inflamatórias.

Efeitos adversos

De um modo geral, os efeitos adversos da corticoterapia sistémica são dependentes da


dose e aumentam com a duração do tratamento. Assim, a corticoterapia sistémica
crónica resulta num hipercortisolismo/síndrome de Cushing iatrogénica, com todas as
manifestações que se lhe podem associar. Na tabela 2 encontram-se os principais
efeitos adversos do tratamento crónico com glucocorticóides sistémicos.

273
EFEITOS ADVERSOS DA CORTICOTERAPIA SISTÉMICA
Risco de infecção aumentado.
Aparência Cushingóide (obesidade central, fácies arredondado, buffalo hump)
Geralmente com doses moderadas a altas.
Estrias purpúricas, equimoses, pele fina, acne, hirsutismo, alopécia feminina, hipersudorese e
sudorese nocturna.
Hiperglicémia, Intolerância à glicose, Diabetes Mellitus.
Hipertensão arterial
Hiperlipidémia.Geralmente com doses moderadas a altas.
Risco aumentado de aterosclerose.
Miopatia com fraqueza muscular (não acompanhada de aumento das enzimas musculares;
ENMG normal). Surge geralmente com doses moderadas a altas. Reversível.
Osteopenia e osteoporose. Risco aumentado de osteonecrose.
Risco aumentado de úlcera péptica. Principalmente se houver uso concomitante de AINEs.
Cataratas; ↑ pressão intra-ocular.
Alterações do humor, insónia, psicose. Geralmente com doses moderadas a altas.
Diminuição da líbido, irregularidades menstruais e amenorreia.
Pseudotumor cerebri. Raro
Pancreatite.Raro
Tabela 2: Principais efeitos secundários da corticoterapia sistémica de longa duração.

Supressão do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal

Um dos efeitos adversos da corticoterapia sistémica crónica é a supressão do eixo


hipotálamo-hipófise-suprarrenal, com risco de insuficiência suprarrenal sintomática, se
houver suspensão abrupta ou redução rápida da dose da corticoterapia. A síndrome de
supressão/privação dos glucocorticóides caracteriza-se por fadiga, mialgias, artralgias,
mal-estar geral, depressão, mania, delirium e até mesmo despersonalização; distingue-
se da insuficiência suprarrenal por ocorrer em doentes com eixo intacto, mas o processo
fisiopatológico subjacente ainda não está bem esclarecido. Este quadro de abstinência
pode também simular uma exacerbação da doença de base. Tanto a insuficiência
suprarrenal como a síndrome de supressão dos glucocorticóides ocorrem mais
frequentemente quando as doses de glucocorticóides são reduzidas para níveis de
reposição fisiológicos – 5 a 7,5 mg/dia de prednisona ou menores.
O risco de supressão do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal depende da dose e
duração do tratamento, mas também da forma de administração dos glucocorticóides.
Assim, deve assumir-se supressão do eixo nas seguintes situações:

• qualquer doente que tenha feito 20 mg/dia de prednisona (ou equivalente) por ≥
3 semanas. Doses <20mg/dia de prednisona podem levar mais do que 3
semanas a induzir supressão, mas estes tempos não estão bem estabelecidos,
para mais que a dose é variável de doente para doente. Por esta razão, deve

274
considerar-se igualmente a existência de risco de supressão do eixo em
qualquer dose com duração > 3 semanas.

• a administração de glucocorticóide à noite (em vez de pela manhã), bem como


em doses fraccionadas (de manhã e à noite), está associada a indução de
supressão do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal mais rápida, pelo que, nestes
casos, 2 semanas podem ser suficientes para induzir a supressão do eixo.

• situações de stress cirúrgico ou por doença intercorrente.

Corticoterapia e situações de stress fisiológico

Os doentes submetidos a corticoterapia prolongada podem apresentar uma insuficiência


suprarrenal “relativa”, isto é, uma função suprarrenal que lhes permite elaborar
normalmente os processos fisiológicos quotidianos, mas que pode não responder
adequadamente quando sujeita a condições de stress extraordinárias, como acontece
nas cirurgias ou noutras condições médicas (ex.: infecções). Mesmo após a redução e
suspensão adequada da corticoterapia, o eixo hipotálamo-hipófise suprarrenal pode
levar vários meses a restabelecer completamente a sua função. Assim, considera-se
haver risco de insuficiência suprarrenal em todos os doentes que estejam sob
corticoterapia ou que tenham sido tratados (cronicamente) com glucocorticóides nos
últimos 12 meses e que se encontrem em situação de stress fisiológico. Nestas
situações deve ser aumentada transitoriamente a dose de corticóide. Apesar de não
haver directrizes precisas, foi estabelecido algum consenso em relação às seguintes
recomendações:
• administração profiláctica de hidrocortisona EV na dose de 100 mg 8/8h ou 50mg
6/6h nas situações de grande stress (ex.: cirurgia major, choque séptico, grande
traumatismo), podendo estas doses ser reduzidas em 50% por dia, à medida que
ocorre resolução do evento. No choque séptico deve fazer-se uma semana desta
dose suplementar de hidrocortisona antes de se proceder à sua redução
progressiva. Nestas situações pode ser necessária também suplementação com
fludrocortisona.

• em situações de menor gravidade ou em doentes sob corticoterapia de baixa


dose, a dose de hidrocortisona suplementar pode ser reduzida para metade (ex:
50mg 8/8h ou de 12/12h). Alternativamente, nos doentes tratados em
ambulatório sob baixa dose de corticóide submetidos a cirurgias minor ou que se
apresentem com doenças febris sem complicações, pode aumentar-se a dose
de corticóide para 15 mg/dia de prednisona (ou equivalente), retomando- se os
valores basais após a resolução do evento.

• nas doenças ligeiras, com apirexia (ex: faringite, cistite), não costuma ser
necessária a administração profiláctica de corticóide suplementar.

270
Desmame de Corticóides
O esquema de redução e suspensão da corticoterapia depende da dose e duração do
tratamento, da doença subjacente, das co-morbilidades do doente e da utilização
concomitante de outros agentes terapêuticos poupadores de corticóides, como os
DMARDs. Deve ser tido em consideração, por um lado, o risco de exacerbação da
doença de base e, por outro, o risco de desenvolvimento de sintomas de insuficiência
suprarrenal ou de privação da corticoterapia. Mais uma vez, não há directrizes bem
definidas para os esquemas de redução da corticoterapia, mas foram estabelecidas
algumas recomendações por consenso:

• doses altas ou muito altas (≥ 60mg/dia de prednisona) devem ser mantidas pelo
mínimo de tempo possível (4 a 10 semanas) e reduzidas para doses moderada
(≤ 30 mg/dia de prednisona). Nesta faixa as reduções podem ser feitas na base
de 10 a 20% a cada 1 a 2 semanas.

• doses moderadas (≤ 30 mg/dia de prednisona) podem ser reduzidas na base de


2,5 mg por semana até se atigir a dose de 10 mg/dia de prednisona.

• doses ≤ 10 mg/dia de prednisona devem ser reduzidas mais lentamente, não só


pelo maior risco de exacerbação da doença de base com reduções mais
abruptas, mas também por se tratarem de níveis de reposição fisiológicos (5 –
7,5 mg/dia de prednisona) com maior risco de desenvolvimento de sintomas de
insuficiência suprarrenal ou “síndrome da retirada de glucocorticóides”.
Reduções de 1 mg por mês são habitualmente usadas.

• ciclos de corticoterapia com duração < 3 semanas não induzem supressão do


eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal e não necessitam habitualmente de
redução progressiva – deve, contudo, considerar-se o risco de exacerbação dos
sintomas.

Gravidez e Amamentação
Fármacos de Categoria C: Recomenda-se o udo da dose mais baixa possível,
tentando evitar corticóides no primeiro trimestre durante a formação do palato.
Os corticóides são excretados pelo leite materno, mas parece ser possível a
continuação de tratamento se justificado pelo potencial de saúde para a mãe.

2. HIDROXICLOROQUINA
A Hidroxicloroquina (HCQ) é um anti-malárico que se comporta como uma base fraca
e interfere com funções celulares ácido-dependentes. O aumento que provoca no pH

271
tem efeitos imunomodulatórios: estabiliza as membranas lisossomais, atenua o
processamento e apresentação de antigénios, inibe a citoxicidade mediada por células,
tem efeito inibitório nas citocinas pró-inflamatórias (IL-1, IL-6, INF-γ) e estimula as anti-
inflamatórias, estimula a apoptose e promove a eliminação de linfócitos autoreativos,
tem efeito fotoprotetor, inibe a adesão e agregação plaquetária, e reduz o perfil lipídico
e a glicémia, por inibição da degradação da insulina.
Trata-se de um fármaco com boa absorção por via oral e boa biodisponibilidade. A HCQ
atravessa e penetra essencialmente os rins, medula óssea, baço, pulmões, glândulas
supra-renais e fígado. As concentrações mais elevadas são ao nível da retina e da pele,
nos melanócitos. Tem uma semivida de 40 dias e é eliminada pela urina inalterada.

Indicações
Está indicada na artrite reumatóide, LES ligeiro, Lúpus discóide, síndrome do anticorpo
anti-fosfolípido e síndrome de Sjögren.

Posologia e Modo de Administração


Em Portugal apenas está disponível a formulação de 400 mg. Estudos relativamente à
toxicidade, sugerem uma dose máxima de 6.5mg/kg/dia.

Efeitos adversos
As manifestações adversas mais frequentes são as gastrointestinais, cutâneas e do
sistema nervoso central (SNC).
As alterações gastrointestinais constituem a reacção adversa mais frequente, sobretudo
náuseas, vómitos e diarreia. Estes efeitos gastrointestinais são, em parte, relacionados
com a acção muscular que leva à dor abdominal. Os anti-maláricos não causam úlceras
ou complicações graves. As queixas podem ser minoradas muitas vezes com a toma ao
deitar ou, em alternativa, com a diminuição da dose para meio comprimido por dia, ou
em dias alternados e com posterior aumento para a dose máxima dentro de uma ou
duas semanas, conforme a tolerância. A hepatotoxicidade provocada anti-maláricos é
rara.
Podem ocorrer alterações cutâneas em cerca de 10% dos doentes, com diferentes
apresentações, sendo mais frequente o quadro de lesões maculo-papulares
pruriginosas em contexto alérgico. A reintrodução de anti-maláricos pode ser ponderada
mediante um regime de dessensibilização oral lento. Os doentes sob hidroxicloroquina
a longo prazo podem desenvolver hipopigmentação, frequentemente na face anterior da
perna. Pode ainda surgir hiper ou hipopigmentação do cabelo e da mucosa oral.
O envolvimento do SNC é raro e, geralmente, não se acompanha de gravidade. A
cefaleia constitui o efeito adverso mais frequente, seguida de tonturas. Estes efeitos
desaparecem espontaneamente ao longo de semanas, embora uma redução da dose
inicial possa ser necessária. Outras queixas incluem acufenos, insónia e agitação;

272
psicose e convulsões são muito raras. Há casos descritos de neuropatia tóxica, miopatia
e arritmias fármaco-induzidos, mas estariam associados à antiga formulação de
cloroquina, mais raros com a hidroxicloroquina.
A toxicidade oftalmológica grave é nos doentes submetidos a monitorização periódica.
Ainda assim, este é o efeito adverso mais temido, uma vez que pode provocar perda de
visão. A toxicidade ocular mais frequente dos anti-maláricos ocorre por lesão da córnea
(sempre reversível) e retinopatia. A deposição de fármaco ou dos seus metabolitos na
córnea está associada a doses diárias elevadas, e, portanto, é rara com a dose de
hidroxicloroquina 400 mg/dia. Estes depósitos não afectam a acuidade visual, mas
podem criar halos transitórios, ou fotossensibilidade, e são reversíveis depois de
descontinuar o fármaco.
A retinopatia é a complicação oftalmológica mais importante da terapêutica anti-
malárica. O mecanismo exacto pelo qual a HCQ pode levar à retinopatia não está
totalmente esclarecido, mas tem sido colocada a hipótese de que os anti-maláricos se
ligam à melanina no epitélio pigmentado da retina, efeito que pode danificar os
fotorreceptores subjacentes e pode levar à perda permanente de visão.
As anomalias mais precoces da retina não têm sintomatologia associada e podem
apenas ser detectadas na avaliação oftalmológica. Alterações “pré-maculopatia”
consistem em edema macular, aumento de pigmentação, aumento da granularidade e
perda do reflexo da fóvea. É desejável que as alterações sejam detectadas nesta fase
com recurso a exames complementares como Tomografia da Coerência Óptica (OCT)
e electroretinografia multifocal. Utilizando estes métodos de rastreio, apura-se que cerca
de 7% dos doentes sob hidroxicloroquina apresentem alterações da retina aos 5 anos
de uso do fármaco. É raro surgir sintomatologia associada, mas a detecção destas
alterações pode implicar alteração da dose ou descontinuação do fármaco.
A doença macular avançada, a verdadeira retinopatia, é caracterizada por uma área
central de despigmentação heterogénea da mácula, rodeada por um anel central de
pigmentação – uma lesão em “olho de boi”. Os sintomas nesta fase geralmente não são
reversíveis e podem incluir fotofobia, alteração da visão ao longe, visão nocturna
reduzida e defeitos de campo. A retinopatia grave, incluindo a lesão do epitélio
pigmentado da retina, parece poder progredir pelo menos durante três anos após o
fármaco ser descontinuado.
Outras manifestações de toxicidades raras nos anti-maláricos incluem agranulocitose e
anemia aplástica com a cloroquina, mas não há relatos destes efeitos com
hidroxicloroquina em doses <7mg/kg/dia.

Os anti-maláricos são fármacos seguros, não sendo habitualmente necessária a sua


monitorização. Nalguns países há testes para doseamento sérico da HCQ, para aferir o
cumprimento terapêutico dos doentes.
Todos os doentes medicados com hidroxicloroquina devem ter uma avaliação
oftalmológica de base no primeiro ano de terapêutica com este fármaco. Esta avaliação
deve incluir a observação do fundo ocular e da mácula para excluir qualquer doença
subjacente que possa interferir com a interpretação dos exames subsequentes. Se a
avaliação basal for normal, as avaliações seguintes podem ser

273
realizadas com frequência anual ou apenas aos cinco anos de terapêutica, dependendo
da presença de factores de risco major para a retinopatia tóxica – dose de HCQ superior
a 5 mg/kg do peso corporal real, mais de cinco anos de terapêutica com HCQ, doença
renal, uso concomitante de tamoxifeno e/ou presença de doença macular.
A dosagem de HCQ deve ser baseado no peso corporal real, com uma dose máxima de
≤5 mg/kg. Após cinco anos, todos os doentes devem ser avaliados pela oftalmologia
anualmente. As alterações da retina com HCQ podem ser rapidamente reversíveis em
doentes com alterações muito precoces, mas escotomas bilaterais ou maculopatia em
“olho de boi” são lesões com prognóstico clínico reservado. Nestas situações o fármaco
deve ser descontinuado.

Gravidez e Amamentação
Fármaco de Categoria C, sem contra-indicação na gravidez ou lactação, inclusive com
indicação para não interromper nos doentes com LES afim de evitar o flare de doença.

3. SULFASSALAZINA
A Sulfassalazina (SSZ) inibe o efeito pró-inflamatório da cascata do ácido araquidónico;
a quimiotaxia, migração, produção de enzimas proteolíticas e desgranulação dos
neutrófilos; aumenta a libertação de adenosina, inibindo a proliferação de células T,
ativação de células NK e B; reduz a síntese de imunoglobulinas e a produção de factor
reumatóide. O perfil de citocinas é também alterado no sentido anti-inflamatório.
A SSZ quando metabolizada no intestino dá origem a dois metabolitos activos:
sulfapiridina e 5-ASA. Até 30% da SSZ é absorvida pelo intestino delgado e a maioria
passa pela circulação entero-hepática, sendo excretada pela bílis. A sua
biodisponibilidade é de 10%. A sulfapiridina é absorvida em cerca de 90% no cólon
enquanto que 90% do 5-ASA se mantém no cólon. A primeira é mais ativa nas
conectivites inflamatórias e o segundo na doença inflamatória intestinal. A SSZ e a
sulfapiridina distribuem-se amplamente pelo organismo e têm uma ligação às proteínas
plasmáticas de 99% e 50-70%, respectivamente. A semi-vida da SSZ é 6- 17h e da
sulfapiridina de 8-21h. A sulfapiridina é extensamente metabolizada pelo fígado por N-
acetilação, o que pode ser influenciado por factores genéticos. Nos acetiladores lentos
tem uma taxa de depuração muito menor e os seus níveis séricos são mais elevados. É
excretada na urina e o 5-ASA nas fezes.

Indicações
Este fármaco pode ser usado na Artrite Reumatóide, Artrite Psoriática (artrite extra-
axial), Espondilite Anquilosante (artrite extra-axial), Artrite reactiva crónica, Artrite
Enteropática, Artrite inflamatória juvenil.

274
Posologia e Modo de Administração
Estão disponíveis comprimidos de 500 mg. O tratamento deve ser iniciado com
500mg/dia, sendo escalada a dose semanalmente até 3g/dia. Se ocorrer intolerância,
deve reduzir-se progressivamente a dose até atingir um ponto de tolerância.

Efeitos Adversos
Os principais efeitos adversos são do foro gastrointestinal, com aparecimento de
náuseas, desconforto abdominal, toxicidade hepática e diarreia, havendo ainda
descrição de efeitos no SNC (tonturas, cefaleias), mucocutâneos (eritema generalizado,
eritema multiforme, síndrome de Steven-Johnson, fotossensibilidade) e pulmonares
(pneumonia eosinofílica).

Gravidez e Amamentação
Fármaco de Categoria B-C para gravidez. Atravessa a placenta, mas não foram
documentadas alterações fetais. É sugerida prudência durante a lactação.

4. METOTREXATO
O Metotrexato (MTX) é um análogo do ácido fólico. Uma vez dentro da célula, sofre
poliglutamação (MTX-PG), o que irá activar as suas propriedades anti-inflamatórias e
anti-proliferativas. Através de mecanismos de inibição enzimática, o MTX leva a um
aumento da adenosina intra e extracelular, redução da síntese de pirimidinas e inibição
de reacções de transmetilação. A adenosina é um potente anti-inflamatório que regula
funções das células inflamatórias endoteliais e modula a acção das citocinas dos
monócitos e macrófagos (↑ anti-inflamatórios - IL-1, IL-10 e ↓ pró- inflamatórios – TNFα,
IL-6, IL-8, MIP-1α, LTB4 e NO). Há também uma inibição da síntese de colagenases,
redução da activação macrofágica e translocação de resposta Th1 para Th2.
Em doses baixas (<15mg/semana) a absorção oral é igual à subcutânea. A sua
absorção é rápida e sofre recirculação hepática. A sua biodisponibilidade é de ~70%. A
sua ligação às proteínas plasmáticas é de 50-60% e a semivida é de 6h. Acumula
facilmente nos fluidos no terceiro espaço.
A maior parte do MTX é excretado na urina durante as primeiras 12h após a
administração, exceptuando a sua forma MTX-PG.

Indicações
Pode ser usado no tratamento de Artrite Reumatóide e condições associadas (ex.
Síndrome de Felty), Artrite Idiopática Juvenil, Artrite Psoriática, Lúpus Eritematoso
Sistémico (pele e articulações), Vasculites ligeiras – como poupador ou adjuvante da

275
corticoterapia (Granulomatose com Poliangeíte, Arterite de Takayasu, Policondrite
Recidivante, Arterite de Células Gigantes, Polimialgia Reumática), Miosites.

Posologia e Modo de Administração


Este fármaco está disponível em comprimidos de 2,5 mg e na forma injectável com
dosagem variável.
Sugere-se iniciar com 5-10mg/semana e aumentar a cada 4-8 semanas até
25mg/semana. Quando ultrapassar os 15 mg/semana a toma pode ser dividida em duas
com espaçamento de 6-12h. A forma subcutânea pode ser administrada em caso de
intolerância gastrointestinal ou ineficácia da via oral. Deve ser suplementado de Ácido
Fólico 5mg/semana, excepto no dia da toma de MTX.

Efeitos adversos
Os efeitos adversos são do foro gastrointestinal (dispepsia, náuseas, anorexia,
toxicidade hepática), hematológicos (mielossupressão), pulmonares (pneumonite
intersticial aguda, fibrose intersticial, edema pulmonar não-cardiogénico, pleurite,
nódulos pulmonares) e mucocutâneos (úlceras no tracto digestivo).

Gravidez e Amamentação
Fármaco de Categoria X. Está contra-indicado na gravidez e lactação. Deve ser
descontinuado 3 meses antes da concepção.

5. LEFLUNOMIDA
A Leflunomida é um pro-fármaco, que é rápida e completamente convertido no seu
metabolito activo. Inibe reversivelmente a dihidroorotato desidrogenase, o que resulta
na inibição da síntese de pirimidinas e interfere com a transdução de sinal intercelular.
Esta alteração reduz a população de linfócitos activos e auto-reactivos, inibe a
quimiotaxia neutrofílica e o recrutamento de células inflamatórias às articulações e
bloqueia a activação do NF-kB.
A absorção é rápida e completa no tracto GI. Tem uma ligação às proteínas plasmáticas
>99%. O volume de distribuição é baixo e sofre recirculação entero- hepática. Tem uma
semivida de 2 semanas e cerca de 90% da leflunomida é excretada ao fim de 28 dias,
de igual forma pelo tracto GI e pela urina. A administração de colestiramina reduz a sua
semi-vida para 1-2 dias.

Indicações
Pode ser usada na Artrite Reumatóide, LES ligeiro, Artrite Psoriática (artrite extra- axial),
Espondilite Anquilosante (artrite extra-axial), Granulomatose com Poliangeíte
(manutenção de remissão após pulso de ciclofosfamida), Artrite Idiopática Juvenil.

276
Posologia e Modo de Administração
É usada como dose de carga de 100mg/dia durante 3 dias, seguida de dose de
manutenção de 20mg/dia. Se toxicidade/intolerância a dose deverá ser reduzida para
10mg/dia.

Efeitos adversos
Os efeitos adversos são do foro gastrointestinal (diarreia, dispepsia, dor abdominal e
náuseas, toxicidade hepática), cardiovascular (hipertensão, hipercolesterolémia),
mucocutâneos (rash, síndrome de Steven-Johnson, necrólise epidérmica tóxica),
pulmonar (pneumonite intersticial, fibrose pulmonar), hematológicos (mielossupressão).
A administração de colestiramina 8g 8/8h durante 11 dias ajuda a reduzir os efeitos
adversos.

Gravidez e Amamentação
Fármaco de Categoria X: Contra-indicado na gravidez e amamentação.
Deve ser realizado um teste de gravidez antes de iniciar a medicação e, no caso de
desejo de concepção, deverão ser medidos os valores séricos do metabolito activo em
duas ocasiões separadas por 14 dias (<0.02ng/mL); a doente deverá aguardar 3 ciclos
menstruais completos. A administração de colestiramina 8g 8/8h durante 11 dias ajuda
a reduzir o período de desmame.

6. AZATIOPRINA
A Azatioprina (AZA) é um pro-fármaco que é convertido em 6-mercaptopurina (6-MP),
análogo das purinas, inibindo a proliferação e população linfocitária circulante, o que vai
inibir a produção de anticorpos e monócitos, suprimindo a actividade das células NK;
inibe deste modo a imunidade celular e humoral.
Trata-se de um fármaco com boa absorção oral e rapidamente convertido em 6-
mercaptopurina. Tem uma biodisponibilidade média de 47%. O volume de distribuição
de 4-8 L/Kg. A semivida da AZA é <15min e da 6-MP é 1-3 h.
Apenas 1% da 6-MP é excretada inalterada na urina. A maioria é convertida em
metabolitos inactivos por duas enzimas, xantina oxidase e tiopurina metiltransferase, ou
por outras enzimas em nucleótidos citotóxicos de tiopurina. Todos são excretados por
via urinária.

Indicações
A AZA é maioritariamente utilizada nas doenças auto-imunes do tecido conjuntivo,
sendo pouco eficaz na doença articular inflamatória. Tem indicação na nefrite lúpica (em
associação a corticoterapia – 2ª linha – e como manutenção após pulso de

277
ciclofosfamida), podendo ainda ser direccionada a outras manifestações de LES (como
poupador de corticóide). O tratamento com AZA é também utilizado na doença de
Behçet, na doença ocular inflamatória, nas miosites inflamatórias, nas vasculites (como
poupador de corticóide ou manutenção pós-pulso de ciclofosfamida), na esclerose
sistémica ou nas síndromes de sobreposição.

Posologia e Modo de Administração


Deve iniciar-se com 1 mg/kg/dia e, se tolerado, aumentar até 2-2.5 kg/kg após 2-4
semanas.

Efeitos Adversos
Hematológicos (mielossupressão), GI (toxicidade hepática, colestase grave, doença
hepática veno-oclusiva, hiperplasia nodular regenerativa, pancreatite), malignidade
(risco aumentado), infecção.
No início do tratamento, deve ser feito o doseamento da enzima tiopurina
metiltransferase (TPMT), para aferir a dose máxima de AZA que se pode realizar para
cada doente.

Gravidez e Amamentação
Fármaco de categoria D. Pode ser usado na gravidez e lactação.

7. CICLOFOSFAMIDA
A Ciclofosfamida (CYC) é um agente alquilante que provoca ligações cruzadas no DNA
e nas suas proteínas, levando à apoptose celular. Como consequência, há uma
diminuição na população linfocitária circulante e na sua proliferação, com subsequente
diminuição na produção de anticorpos e na supressão da reacção de hipersensibilidade
tardia a novos anticorpos.
A administração oral e parentérica do fármaco leva a concentrações plasmáticas
semelhantes. A ligação às proteínas plasmáticas é de 20% e tem uma boa distribuição
tecidular. A CYC é rápida e extensamente metabolizada pelo fígado em metabolitos
activos e inactivos, alguns pelo citocromo P-450. A semi-vida é de 5-9h e a actividade
alquilante é indetectável na maioria dos doentes 24h após uma dose de 12 ml/kg.
Cerca de 30-60% do fármaco é eliminado pela urina como metabolitos inactivos. Apesar
da semi-vida ser aumentada na doença hepática, não existe aumento da sua toxicidade.
Por outro lado, na doença renal é necessário ajuste conforme a taxa de filtração
glomerular. A CYC é eliminada pela diálise e deve ser administrada após cada sessão.

278
Indicações
A CYC está indicada nas manifestações graves de LES (nefrite lúpica, neurolúpus),
vasculite necrotizante sistémica, doença de Goodpasture, esclerose sistémica, artrite
reumatóide (vasculite grave), artrite idiopática juvenil grave.

Posologia e Modo de Administração


O modo de administração e doses totais dependem da patologia e do protocolo de cada
serviço. Geralmente as doses de pulso são 0.5-1g/m2 e na terapêutica oral 2 mg/kg.

Efeitos Adversos
Hematológicos (mielossupressão), susceptibilidade a infecções, urológicos (cistite
hemorrágica – minorada pela administração prévia de mesna, neoplasia da bexiga),
susceptibilidade a neoplasias, insuficiência ovárica grave, azoospermia, pulmonares
(pneumonite, fibrose), cardiotoxicidade.
A toxicidade da CYC pode ser reduzida diminuindo as doses, alternando com
corticoterapia, efectuando profilaxia para as infecções e administrando mesna, como
referido.

Gravidez e Amamentação
Categoria D. Contra-indicado na gravidez e amamentação.

8. BIOLÓGICOS
Nos últimos anos, com a contínua investigação desenvolvida na área da
imunossupressão, foi possível um melhor esclarecimento sobre as bases
fisiopatológicas e imunológicas de várias doenças auto-imunes, o que, combinado com
um grande investimento no desenvolvimento biofarmacológico, permitiu a introdução de
terapêuticas biológicas. Estes agentes farmacológicos actuam em componentes
específicos da resposta imune que se encontram desregulados e que se admite estarem
na génese do desencadeamento e manutenção do processo da doença. Na artrite
reumatóide (AR), por exemplo, há evidência da existência de expressão aumentada de
citocinas pro-inflamatórias, como o factor de necrose tumoral α (TNFα), interleucina-1
(IL-1) e interleucina-6 (IL-6), entre outras. Os agentes que têm como alvos estes
mediadores, em particular o TNFα, demonstraram já elevada eficácia no tratamento de
doentes com AR e outras doenças inflamatórias sistémicas. A capacidade dos inibidores
do TNFα em melhorar não só os sinais e sintomas da doença, mas também preservar a
capacidade funcional, a qualidade de vida e em inibir a progressão da doença, veio
alterar as expectativas de doentes e médicos relativamente ao tratamento destas
doenças. O seu sucesso tem levado à

279
investigação de fármacos dirigidos a outras citocinas relevantes para a patogénese de
várias doenças auto-imunes.

MECANISMO AÇÃO FÁRMACO INDICAÇÕES

Artrite Reumatóide; Artrite Psoriática; Espondilite


ETANERCEPT Anquilosante; Outras espondilartropatias; Artrite
Idiopática Juvenil; Doença Inflamatória Intestinal.

Artrite Reumatóide; Artrite Psoriática; Espondilite


Anquilosante; Outras espondilartropatias; Artrite
INFLIXIMAB
Idiopática Juvenil; Doença Inflamatória do
Intestinal.
Anti - TNFα
Artrite Reumatóide; Artrite Psoriática; Espondilite
ADALIMUMAB Anquilosante; Outras espondilartropatias; Artrite
Idiopática Juvenil; Doença Inflamatória Intestinal.

Artrite Reumatóide; Artrite Psoriática; Espondilite


GOLIMUMAB
Anquilosante.

Artrite Reumatóide; Doença Inflamatória Intestinal;


CERTOLIZUMAB
Psoríase em placas.

Anti – IL-6 TOCILIZUMAB Artrite Reumatóide; Artrite Idiopática Juvenil.

Psoríase, Artrite Psoriática, Doença Inflamatória


Anti-IL-12/23 USTECINUMAB
Intestinal

Psoríase, Artrite Psoriática, Espondilite


Anti-IL-17 SECUCINUMAB
anquilosante

Inibição células T ABATACEPT Artrite Reumatóide; Artrite Idiopática Juvenil.

Depleção células B RITUXIMAB Artrite Reumatóide

Redução resposta
BELIMUMAB Lúpus Eritematoso Sistémico
células B

BARICITINIB
Inibidor da Jak Artrite Reumatóide.
TOFACITINIB

Tabela 3 – Principais agentes biológicos e indicações clínicas.

Existem várias classes de fármacos biológicos, que se podem dividir da seguinte


forma:
• Inibidores da função de citocinas, sendo os mais comuns e mais usados os anti-
TNFα, mas existem também os inibidores da IL-1, IL-6 e, mais recentemente, da
IL-17.

280
• Inibidores da co-estimulação das células T.
• Depleção e/ou diminuição da resposta das células B
• Inibidor da jak.

Na tabela 3 estão representados sumariamente os principais fármacos biológicos, os


seus mecanismos de acção e principais indicações clínicas.
Quando os doentes têm indicação para terapêutica biológica e se pondera a sua
introdução, é necessário ter em consideração factores de risco e condicionantes do
doente que podem comprometer a segurança e/ou o tratamento.

É necessário apurar a existência de:


• História actual ou antecedentes pessoais de neoplasia
• Tuberculose activa ou latente
• História de doença desmielinizante
• Infecções graves crónicas ou recorrentes
• Sintomas ou sinais sugestivos de insuficiência cardíaca de classe III/IV NYHA
• Vacinação recente com vacina viva; plano nacional de vacinação e outras
vacinas importantes antes do início de terapêutica biológica actualizadas
• Cirurgia recente ou programada
• Gravidez (actual ou planeada)

Devem ser feitos, sempre antes do início da terapêutica, os seguintes exames:


• Hemograma completo, bioquímica sumária, eletroforese de proteínas
• Serologias para VHB, VHC, VIH e VDRL
• ANA (se positivo, anti-dsDNA)
• Radiograma de torácico
• Prova tuberculínica e IGRA
• Outros testes específicos, consoante a clínica do doente e/ou o fármaco
escolhido (ex: perfil lipídico no caso do Tocilizumab)

Durante o tratamento, é necessário manter uma vigilancia regular, afim de detectar e


gerir atempadamente as possíveis complicações do tratamento, sendo as mais
frequentes relacionadas com a imunossupressão. É importante explicar ao doente sinais
de alarme e estar particularmente atento ao aparecimento de febre ou outros sinais e
sintomas sugestivos de infecções bacterianas, virais ou outras, que obrigam à
interrupção do tratamento. Da mesma forma, o aparecimento de outros sintomas de
novo (ex. sintomas neurológicos, eritema, semiologia respiratória, linfadenopatias, etc.)

281
devem alertar para a possibilidade de uma reação adversa ao fármaco ou do
aparecimento/reactivação de outra patologia decorrente da depressão do sistema
imunitário - deve proceder-se igualmente à suspensão do tratamento até exclusão
destas hipóteses. A monitorização da função renal, hepática e hemograma são aspectos
fundamentais; o aparecimento de citopénias, pode revelar um efeito de mielotoxicidade,
devendo o tratamento ser suspenso caso a contagem de plaquetas seja <50.000/mcL
ou de leucócitos <1000/mcL.
Outros efeitos adversos e aspectos de segurança devem ser monitorizados através da
avaliação periódica do doente – exame clínico, laboratorial ou outros exames
complementares de diagnóstico. Os exames a solicitar e a sua respectiva periodicidade
vão depender de cada tipo de doente, do fármaco utilizado e da fase do tratamento.

TAKE HOME MESSAGES


Os corticóides devem ser feitos na menor dose e tempo mínimo possível. Deve ser
introduzido um outro DMARD com o intuito de suspender a corticoterapia ou poupar
na dose de corticóide.
Os efeitos adversos da terapia com corticóides são sistémicos e a sua gravidade
depende da dose e duração de tratamento.
A escolha do DMARD deverá variar consoante a doença e a respectiva gravidade.
Antes de iniciar terapêutica biológica, não esquecer a avaliação prévia para
actualização de vacinas e exclusão de infecção e/ou neoplasias activas.

Bibliografia
• Alheira FV, Brasil M. The role of glucocorticoids in mood symptoms modulation: a review.
Rev. Psiquiatr. RS. 2005;27(2):177-186.
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-
1924-3

• Buttgereit F, da Silva JAP, Boers M, et al. Standardised nomenclature for glucocorticoid


dosages and glucorticoid treatment regimens: current questions and tentative answers in
rheumatology. Ann Rheum Dis 2002;61:718-22.
• Hochberg, Marc C. et al. Rheumatology. 6th edition. Elsevier. 2015.
• Imboden, John et al. Current Diagnóstico e Tratamento Reumatologia. 2ª edição.
McGrawHill. 2008.

282
2. VACINAÇÃO NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES

Introdução
Nos últimos anos, tem-se verificado um avanço progressivo no tratamento de doenças
auto-imunes. Corticóides, azatioprina e metotrexato em baixa dose são
abundantemente usados como terapêutica neste grupo de doenças. Actualmente,
doentes com patologia refractária a estes regimes convencionais podem ainda ser
tratados com fármacos novos, biotecnológicos, incluindo anti-TNF, anticorpo
monoclonal anti-CD20 (Rituximab) entre outros. Deve ser tido em conta que a
manipulação do sistema imune inerente a este tipo de terapêuticas pode aumentar o
risco de infecção para estes doentes – tem sido estimado que há um risco de infecção
cerca de duas vezes superior ao da população geral. O risco de infecção é também
dependente do grau de imunossupressão associado a DMARD’s (Disease Modifying
Antirheumatic Drugs).

A vacinação é um método atractivo de prevenção de algumas doenças. A eficácia da


vacinação em doentes com patologia auto-imune pode, no entanto, ser reduzido e há
um risco de aumento de actividade da doença após a vacinação.

A EULAR (European League Against Rheumatism) publicou em 2010 um consenso de


peritos acerca das recomendações sobre vacinas em doentes com patologia auto-
imune.

1) Como parte da avaliação geral do doente numa primeira consulta, deve ser realizada
uma avaliação prévia do estado vacinal. Se tiver havido alguma falha prévia num
esquema vacinal, deve ser considerada a vacinação e devem ser inquiridos os doentes
quanto a reacções adversas que possam implicar contra- indicação para uma vacina no
futuro.

VACINAS QUE DEVEM SER CONFIRMADAS COMO ACTUALIZADAS DURANTE A


AVALIAÇÃO INICIAL
HAEMOPHILUS INFLUENZA B

HEPATITE A

HEPATITE B

PAPILLOMAVÍRUS

INFLUENZA

NEISSERIA MENINGITIDIS

RUBÉOLA (PARA MULHERES EM IDADE FÉRTIL)

STREPTOCOCCUS PNEUMONIAE

TÉTANO
Tabela 1: Vacinas a indagar ao doente numa primeira consulta.

283
2) As vacinas em doentes com patologia auto-imune devem idealmente ser
administradas durante a doença estável. Os estudos onde foi avaliada a resposta
vacinal que incluíram doentes com actividade moderada ou grave, apesar de não
mostrarem efeitos adversos mais frequentes ou agravamento da doença, foram
realizados com pequeno número de doentes e, portanto, não permitiram concluir quanto
à eficácia da vacinação nestes casos. Assim, com base nos riscos teóricos de flare de
doença após a vacinação, esta deve ser realizada durante a doença estável.

3) Vacinas vivas atenuadas – sarampo, papeira, rubéola, febre tifóide, varicela zoster
e febre amarela - devem ser evitadas sempre que possível em doentes
imunodeprimidos com doenças auto-imunes. Estas vacinas são preparadas a partir de
microorganismos vivos ou vírus cultivados em condições adversas levando à perda da
sua virulência mas mantendo a sua capacidade de induzir imunidade protectora e
duradoura.

A administração destas vacinas tem o potencial de infecção invasiva em doentes


imunodeprimidos. O risco é maior em vacinas vivas com um potencial de replicação
mais elevado (por exemplo, vacina da febre amarela) e não tanto em vacinas com um
baixo risco de replicação (por exemplo, vacina oral da febre tifóide, vacina
varicela/zoster).

Embora não haja, por enquanto, estudos com números suficientes, há evidência
crescente de que vacinas vivas atenuadas de vírus, como a vacina viva atenuada de
influenza, vírus varicela-zoster, sarampo-rubéola-papeira e febre amarela, podem de
facto ser seguras em doentes imunodeprimidos em situações específicas. Por enquanto,
no entanto, estas vacinas devem ser usadas com precaução em doentes sob terapêutica
imunossupressora, devendo ser realizada uma avaliação individual de risco/benefício,
incluindo actividade da doença, terapêutica, o potencial de replicação da vacina e o risco
de infecção.

4) A vacinação pode ser realizada durante o uso de DMARDs e anti-TNF mas


idealmente devem ser administradas antes do início de terapêutica dirigida a
células B.

Estudos realizados em doentes com artrite reumatóide e lúpus eritematoso sistémico


sob terapêutica modificadora de doença e anti-TNF mostraram níveis adequados de
anticorpos após vacinação. A resposta humoral após vacinação ficou, no entanto,
gravemente comprometida após tratamento com rituximab, pelo que se conclui que a
vacinação deve ser idealmente realizada antes do inicio desta terapêutica ou, se tal não
for possível, pelo menos 6 meses após início e 4 semanas antes da próxima toma.

5) A avaliação pós-vacinal de títulos de anticorpos não está rotineiramente


recomendado excepto para Hepatite B. Em doentes imunodeprimidos, a resposta à
imunização para Hepatite B (doseamento de título de anticorpo anti-HBs) deve ser
avaliada 4 a 8 semanas após ter sido completada a 3ª dose. Um título de anticorpo anti-
HBs >10 é considerado protector.

Títulos de anticorpos de sarampo, rubéola, varicela, pertussis e papeira não são


sensíveis ou específicos. As vacinas para Pneumococcus, tétano e Influenza são

284
claramente eficazes em doentes imunodeprimidos, pelo que não é recomendada a
avaliação de anticorpos na prática clínica.

6) Doentes que planeiam viajar devem ser observados em consulta de Medicina


do Viajante pelo menos com 6 meses de antecedência.

Doentes imunocomprometidos têm maior risco de contrair uma doença durante uma
viagem, particularmente em destinos com infecções endémicas passíveis de ser
prevenidas por vacinação. Assim, o planeamento atempado da viagem e observação
prévia por um especialista está recomendado. Vacinas inactivadas podem ser
administradas com segurança a doentes imunodeprimidos – estas incluem as
vacinas para hepatite A e B, encefalite japonesa, raiva, assim como as formas
inactivadas das vacinas para febre tifóide e poliomielite. A vacinação específica e
estratégias de quimioprofilaxia, incluindo a vacinação com vacinas vivas atenuadas
deve ser avaliada caso a caso.

Vacina Pneumocócica
A vacinação com a vacina pneumocócica polissacárida 23-valente e com a vacina
conjugada 13-valente é recomendada em doentes com imunossupressão iatrogénica,
incluindo corticóides sistémicos e DMARDs sintéticos e biológicos.

A infecção por Streptococcus pneumoniae é responsável por morbilidade e mortalidade


significativas em doentes com mais de 65 anos ou com patologia crónica sob terapêutica
imunossupressora. A vacinação tem um papel fundamental na protecção de infecções
causadas por esta bactéria. Actualmente, estão disponíveis duas vacinas
pneumocócicas – vacina polissacárida 23 valente (VPP23) e a vacina conjugada 13-
valente (VPC13).

A vacina 23-valente induz anticorpos primariamente por mecanismos independentes de


células T e, portanto, sem desenvolver memória imunológica. Os níveis de anticorpos
dirigidos aos antigénios da vacina permanecem elevados por pelo menos 5 anos e
diminuem progressivamente para níveis pré-vacina dentro de 10 anos. Um declínio mais
rápido pode ocorrer em doentes imunodeprimidos e idosos. Por esse motivo, os doentes
sob terapêutica imunossupressora devem ser revacinados com a vacina 23-valente nos
primeiros 5 anos após a primeira dose. Todavia, mais de uma re-vacinação não é
recomendada, uma vez que a vacinação com os antigénios polissacáridos pode induzir
uma resposta menos robusta de anticorpos em doses subsequentes. A vacina 13-
valente tem uma proteína conjugada na sua formulação que é reconhecida por células,
estimulando a resposta sérica de anticorpos e a memória imunológica. Assim, não está
indicada a re-vacinação com a vacina 13- valente. Esta vacina também potencia a
resposta imunológica à vacina 23-valente, estimula a imunidade das mucosas e diminui
a colonização nasal e da orofaringe.

Os doentes devem ser vacinados de acordo com o seguinte calendário (Figura 1):

- em doentes sem qualquer vacina pneumocócica prévia: deve ser dada uma dose
única de vacina 13-valente (VPC13), seguida de uma dose de vacina 23- valente
(VPP23) pelo menos 8 semanas depois; os doentes devem ser revacinados

285
com VPP23 pelo menos 5 anos após a primeira dose (esta segunda dose pode ser
administrada antes ou depois dos 65 anos);

- em doentes previamente vacinados com a vacina 23-valente (VPP23): deve ser


administrada uma única dose de vacina 13-valente (VPC13) 1 ou mais anos após
a última dose de vacina 23-valente; a revacinação com VPP23 deve ocorrer 5 anos
após a última dose e nunca antes de 8 semanas após a VPC13.

SEM VACINAÇÃO PRÉVIA

≥ 8 semanas ≥ 5 anos
VPC13 VPP23 VPP23

VACINAÇÃO PRÉVIA COM VPP23

≥ 1 ano ≥ 8 semanas
VPP23 VPC13 VPP23

≥ 5 anos

Figura 1: Esquema de vacinação Pneumocócica

Vacina da Gripe
É recomendada a vacinação anual de todos os doentes, independentemente da
terapêutica actual.

Embora não se saiba a incidência exacta da gripe em doentes com patologia auto-
imune, o risco de morte de infecções pulmonares está aumentado. A vacinação mostrou
diminuir o número de internamento e a mortalidade devido a infecção por influenza em
doentes com doenças auto-imunes. Os efeitos adversos da vacinação são comparáveis
aos dos controlos saudáveis.

Hepatite B
Todos os doentes com patologia auto-imune com serologia negativa para o vírus
da Hepatite B (negativos para antigénio HBs, anticorpo anti HBc e anticorpo anti-HBs)
devem ser vacinados. Em caso de positividade isolada para anticorpo anti-HBc e carga
viral negativa, a vacinação deve ser considerada.

A resposta à vacinação deve ser avaliada 1 a 2 meses após a terceira dose e a


revacinação deve ser considerada (0, 1 e 6 meses) se não for atingida a seropositividade
– esta é definida como tendo um título de anticorpos >10 IU/L.

286
Hepatite A
A vacinação é recomendada para doentes com patologia auto-imune a viajar para
países endémicos, preferencialmente com 2 doses separadas por 6 meses.

A vacinação actualmente é recomendada para indivíduos a viajar para países de


elevada prevalência (África, América Central e do Sul e partes da Ásia e da Europa de
Leste) ou durante um surto.

Nalguns doentes com doença hepática ou com maior risco de hepatotoxicidade, devido
a ocorrência de surtos ocasionais de Hepatite A relacionados com contaminação de
alimentos importados com o vírus, a vacinação deve ser considerada mesmo se não
relacionada com viagem.

Papillomavirus (HPV)
Deve ser considerada a vacina para HPV com o esquema de 3 doses (0, 2 e 6 meses)
em jovens adultos com patologia auto-imune que não tenham sido previamente
vacinados.

A vacina quadrivalente para o Papillomavírus humano é uma vacina recombinante


contra os serótipos 6, 11, 16 e 18. Está actualmente incluída no Plano Nacional de
Vacinação e com um esquema de 2 doses (0 e 2 meses) para todas as jovens do sexo
feminino de 10 a 13 anos; uma série de 3 doses (0, 2 e 6 meses) é usada para
mulheres entre 18 e 25 anos.

Doentes com Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) têm um aumento de incidência de


infecção por HPV e displasia cervical. É sugerido que adultos jovens com patologia auto-
imune, do sexo feminino e masculino, sejam considerados para vacinação se não
tiverem sido vacinados previamente. Trata-se de uma vacina segura e eficaz em
doentes com LES com doença estável.

Tétano
Doentes com patologia auto-imune devem seguir as recomendações do Plano Nacional
de Vacinação – vacinação com a vacina tétano e difteria a cada 10 anos.

A imunogenicidade para a vacinação para o tétano mostrou estar reduzida em doentes


com Lúpus Eritematoso Sistémico e Artrite Reumatóide, comparando com controlos
saudáveis, independentemente do uso de corticóides e imunossupressores. A eficácia
da vacina quando administrada 2 semanas após Rituximab foi semelhante à
monoterapia com metotrexato. Ainda assim, uma vez que a imunogenicidade pode estar
diminuída 1 a 3 meses após terapêutica de deplecção de células B, é recomendado que
se vacinem os doentes 4 semanas após o início da terapêutica ou, alternativamente, 6
a 8 meses após a última toma.

Em caso de feridas contaminadas em doentes que receberam Rituximab nas últimas


24 semanas, a imunização passiva com imunoglobulina anti-tetânica deve ser
administrada.

287
Zoster
Em doentes com patologia autoimune e com mais de 60 anos, é recomendada a
avaliação individual de risco/benefício para esta vacina.

A infecção por Herpes Zoster tem uma incidência de 34/1000 pessoas/ano e afecta 1
em cada 3 adultos. Após a infecção natural como varicela, o vírus reside latente. A
reactivação pode ocorrer, sobretudo em relação com alterações na imunidade celular.
A vacina reduz o risco de zoster em 51% e previne nevralgia pós-herpética em
67%. Em geral, com o aumento da idade à data da vacinação, a eficácia diminui, mas a
vacina mantém eficácia contra o zoster propriamente dito.

Doentes com patologia autoimune têm um risco aumentado de zoster – doentes


imunodeprimidos têm risco maior de exantema grave, disseminação visceral ou morte.
Por outro lado, a administração de vacinas vivas tem um potencial de risco de infecção
invasiva em doentes susceptíveis.

A vacinação deve ser avaliada individualmente, incluindo a idade do doente, a actividade


da doença, a terapêutica e o risco de infecção.

VACINA TIPO USO ESQUEMA DE DOSES


NÃO VIVAS

Influenza INACTIVADA Todos os doentesa Toma anual

Dose única (se 23-


Pneumocócica 13- valente anteriormente,
CONJUGADA Todos os doentesa
valente com mais de 1 ano de
intervalo)
Primeira dose: mais de
Pneumocócica 23- 8 semanas após 13-
INACTIVADA Todos os doentesa
valente valente; 2ª dose 5 anos
após 1ª
0, 1 e 6 mesese; avaliar
Serologia negativa para VHB Ac anti HBs 1 -2 meses
Hepatite B SUBUNIDADE OU Ac anti HBc isolado e após última dose;
carga viral negativa revacinar se título <10
IU/L
Viajantes para regiões
Hepatite A INACTIVADA 0 e 6 meses
endémicas
Jovens adultos (sexo feminino
Papillomavirus SUBUNIDADE e masculino) sem vacina 0, 2 e 6 meses
prévia

Tétano/Difteriab TOXÓIDE Todos os doentesa Cada 10 anos

VACINAS VIVAS ATENUADAS (VVA)C

Varicella Zoster VVA Doentes com DAI ≥60 anosf Dose única

Sarampo-Papeira-
VVA Doentes seleccionados Dose única
Rubéolab

Viajantes para áreas


Febre Amarelad VVA Dose única
endémicas
Tabela 2: Sumário da informação acerca de Vacinas, uso recomendado e esquema de doses 3

a. Idealmente ≥4 semanas antes de qualquer terapêutica imunossupressora ou ≥6 meses após rituximab, é indicada
baixa actividade da doença; b. Doentes com patologia auto-imune devem cumprir as recomendações do Plano

288
Nacional de Vacinação; c. A administração de vacinas vivas atenuadas deve ser avaliada caso a caso com avaliação de
risco/benefício que inclui actividade da doença, terapêutica, o potencial de replicação da vacina e o risco de infecção; d.
É recomendada consulta prévia com especialista em Medicina do Viajante; e. Podem ser usados esquemas rápidos
(0,1,2,12 meses) ou super rápidos (0,7,21,360 dias) de vacinação para VHB para indivíduos que vão viajar rapidamente
e que enfrentam exposição iminente ou que vão para áreas de desastre. Uma vacina combinada VHA+VHB pode também
ser usada no mesmo esquema de 3 doses (0,7 e 21-30 dias) com um booster aos 12 meses. Todavia, estes esquemas
de vacinação não foram testados em doentes com patologia autoimune; f. Doentes sob prednisolona <20 mg/dia,
corticóides há menos de 2 semanas, corticóides tópicos ou intra-articulares, metotrexato de baixa dose (definido como
<0.4mg/kg/semana), azatioprina (<0.3 mg/kg/dia) ou 6-mercaptopurina (<1.5 mg/kg/dia).

Bibliografia
1. EULAR recommendations for vaccination in adult patients with autoimmune inflammatory
rheumatic diseases, S van Assen et al, Ann Rheum Dis 2011; 70:414-422.
2. Vaccination in patients with chronic rheumatic or autoimmune diseases, T. Glück, U. Müller-
Ladner, Clin Infect Dis 2008: 46(9):1459-1465.
3. Recommendations for vaccionation in adult patients with systemic inflammatory rheumatic
diseases from the Portuguese society of rheumatology, I. Cordeiro et al, Acta Reumatol Port Online
2016 Apr-Jun;41(2):112-30.
4. Vaccionation of adult patients with systemic lúpus erythematosus in Portugal, Maria Francisca
Moraes-Fontes et al, International Journal of Rheumatology 2016.

289
3. URGÊNCIAS/EMERGÊNCIAS E DOENÇAS AUTO-IMUNES

Introdução
As situações de urgência/emergência relativas às doenças auto-imunes (DAI) são
frequentes e podem ser de vários tipos - exacerbação de DAI pré-existente, quer por
agudização de sintomas crónicos previamente controlados, quer pelo aparecimento de
semiologia nova; infecções provocadas pela terapêutica imunossupressora;
agravamento de uma doença prévia pela DAI ou tratamento associado; reacções
secundárias a fármacos administrados em DAI sistémica.

Vários órgãos podem ser afectados em simultâneo ou separadamente, por uma ou


mais DAI – ver Tabela 1.

ÓRGÃO OU SISTEMA ATINGIDO MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS


Encefalopatia
Psicose
Neuropatia de pares cranianos
Convulsões
SISTEMA NERVOSO Meningite bacteriana / asséptica
Acidente Vascular Cerebral
Trombose venosa
Hemorragia intracraniana
Neurite óptica
OLHO Iridociclite
Esclerite
Pericardite
Miocardite
CORAÇÃO Endocardite
Tamponamento
Enfarte Agudo do Miocárdio
ARDS (Adult Respiratory Distress Syndrome)
Pneumonite
PULMÃO Hemorragia alveolar difusa
Insuficiência respiratória (fadiga muscular)
Gastrite
GASTROINTESTINAL Hemorragia e/ou perfuração de úlcera péptica
Pancreatite aguda
Glomerulonefrite aguda
RIM Nefrite Intersticial aguda
Arterite Difusa
Trombocitopénia, púrpura trombótica
SANGUE trombocitopénica Anemia Aplásica
Hemólise
Dermatite exfoliativa
PELE Síndrome de Stevens Johnson
Necrólise epidermóide tóxica
Artrite séptica
OSSOS E ARTICULAÇÕES Fracturas osteoporóticas
Deslocação atlanto-axial
Tabela 1: Situações urgentes/emergentes em doenças auto-imunes, por órgão atingido.

290
Cada doença auto-imune pode também estar associada a várias situações urgentes
ou emergentes específicas, separadas ou em simultâneo – Tabela 2.
DOENÇA AUTO-IMUNE CONDIÇÃO CLÍNICA URGENTE/EMERGENTE
Sub-luxação Atlanto-axial
Scleromalacia perforans
Vasculite
ARTRITE REUMATÓIDE
Exacerbação aguda de sinovite
Infecções
Artrite crico-aritnóide
Iridociclite
ESPONDILARTROPATIA
Valvulopatia
SERONEGATIVA
Fracturas osteoporóticas
Convulsão, psicose, encefalopatia, meningite asséptica
Mielite transversa
Pericardite, tamponamento cardíaco, miocardite, endocardite
Pneumonite, ARDS
Glomerulonefrite aguda
LÚPUS ERITEMATOSO
Vasculite
SISTÉMICO
Crise hipertensiva
Pancreatite Aguda
Poliserosite
Infecção/sépsis
Lúpus neonatal
SAAF catastrófico
Acidente Vascular Cerebral, mononeurite multiplex
Enfarte Agudo do Miocárdio
SÍNDROME ANTICORPO
Tromboembolismo e enfarte pulmonar
ANTI-FOSFOLÍPIDO
Trombose retiniana
Trombocitopénia
Isquémia placentária e aborto/morte fetal
Acidose Tubular Renal Distal
SÍNDROME DE SJÖGREN
Paralisia hipocaliémica
Vasculite cerebral
Síndrome Pulmão-Rim
Hemorragia alveolar, com insuficiência respiratória
Compromisso da via aérea
Nefrite/Glomerulonefrite com IR rapidamente progressiva
VASCULITE
Vasculite mesentérica
Neurite óptica
Uveíte
Crise hipertensiva
Necrose
Crise Renal Esclerodérmica
Fibrose miocárdio – arritmia
ESCLEROSE SISTÉMICA
Vasculite e isquémia digital
Insuficiência cardíaca direita
Fadiga muscular respiratória – insuficiência respiratória
MIOSITES INFLAMATÓRIAS Fibrose pulmonar (se síndrome anti-sintetase)
Rabdomiólise – insuficiência renal
Inflamação da cartilagem (ouvido, nariz, traqueia/laringe –
POLICONDRITE
obstrução da via aérea)
RECIDIVANTE
Regurgitação/Aneurisma da Aorta
Artrite Séptica
ARTRITE OUTRA ETIOLOGIA Artrite Reactiva

Tabela 2: Principais situações clínicas urgentes/emergentes consoante a doença auto-imune. IR: Insuficiência renal.

291
Os fármacos habitualmente usados no tratamento das DAI estão também associados a
condições clínicas que podem assumir um carácter urgente – Tabela 3.

Um estudo realizado por Núñez et al realizado num serviço de urgência de um hospital


terciário, revelou que, de entre os doentes com DAI, os que tinham AR e LES eram os
que mais recorriam ao SU. O principal motivo de consulta seria de foro cardiovascular,
o que poderá estar relacionado com a aterosclerose precoce nestas doenças.

Cerca de 10-25% dos doentes com DAI necessitam de hospitalização e, entre estes, 1/3
requerem internamento em Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), sobretudo por
falência respiratória. Consoante as séries, a mortalidade destes doentes em UCI pode
chegar aos 55%, sendo critérios de mau prognóstico um score de APACHE11 elevado,
disfunção multi-orgânica, idade elevada e citopénias; a gravidade da doença e co-
morbilidades existentes são factor de risco independente para um aumento da
mortalidade em UCI. As DAI que motivam mais admissões em UCI, segundo um estudo
de Quintero et al, são o LES, a AR e as vasculites sistémicas.

Fármacos Condição clínica urgente


AINEs Gastrite aguda, hemorragia ou perfuração de úlcera péptica, enterite
aguda, nefropatia por analgésicos, nefrite intersticial aguda,
reacções de hipersensibilidade, trombocitopénia, pancitopénia,
síndrome de Stevens-Johnson, eritema multiforme, necrólise
epidermóide tóxica
Corticoesteróides Psicose, insuficiência adrenérgica aguda por privação
DMARDs Reacções de hipersensibilidade, trombocitopénia, anemia aplásica,
dermatite exfoliativa, síndrome de Stevens-Johnson, cistite
hemorrágica
Tabela 3: Situações clínicas urgentes provocadas por fármacos usados no tratamento de doenças auto-imunes. AINE:
Anti-Inflamatório Não Esteróide, DMARD: disease modifying anti-rheumatic drugs.

Urgências e Emergências Auto-Imunes


As complicações urgentes e emergentes relacionadas com doenças auto-imunes
sistémicas podem ser extensas, como se depreende das tabelas anteriores. Assim
sendo, vamos apenas desenvolver algumas situações com impacto clínico importante.

ESCLEROSE SISTÉMICA
A esclerose sistémica envolve disfunção de vários órgãos, por fibrose e esclerose dos
vasos periféricos e viscerais, por sobreprodução de colagénio no tecido conjuntivo,
alterações macrovasculares e por alterações na imunidade humoral e celular.

• Crise Renal Esclerodérmica

A crise renal esclerodérmica (CRE) (capítulo II.5) é mais frequente nos doentes com
Esclerose Sistémica Cutânea Difusa, sobretudo durante os primeiros 4 a 5 anos de
doença. A tensão arterial costuma estar elevada, embora possa ocorrer em doentes
normotensos, e os factores de risco incluem doença cutânea difusa rapidamente

11
APACHE: Acute Physiologic Assessment and Chronic Health Evaluation

292
progressiva, anemia de novo inexplicável, eventos cardíacos de novo (derrame
pericárdico, insuficiência cardíaca congestiva), elevadas doses de corticosteróides ou
tratamento prévio com ciclosporina e a presença de anticorpo anti-RNA polimerase III.
Esta síndrome é caracterizada por hipertensão arterial elevada, insuficiência renal
rapidamente progressiva, aumento da actividade da renina plasmática, anemia
hemolítica microangiopática e trombocitopénia. Pode também ocorrer derrame
pericárdico, insuficiência cardíaca congestiva, dispneia, cefaleia, convulsões, alterações
na fundoscopia e sedimento urinário.

O tratamento da CRE assenta na utilização de inibidores da enzima de conversão da


angiotensina, que reverte a hiperreninémia subjacente e possibilita o controlo da
hipertensão arterial. Podem ser utilizados antagonistas dos canais de cálcio para
optimizar o controlo da tensão arterial, de forma gradual. A hemodiálise pode ser
necessária.

• Doença Intersticial Pulmonar

Nos doentes com doença restritiva moderada a grave, as alterações intersticiais


propagam-se nos lobos pulmonares superiores. A redução na função respiratória está
associada a elevada mortalidade; o prognóstico está comprometido em doentes com
capacidade vital forçada < 55% e DLCO < 40% dos valores previstos como normais.
Nas situações de alveolite aguda pode ser usada corticoterapia em dose baixa,
ciclofosfamida ou micofenolato de mofetil.

• Hipertensão Arterial Pulmonar

O atingimento das arteríolas pulmonares pode provocar hipertensão arterial pulmonar


(> 25 mm Hg), associada a dispneia de esforço progressiva, síncope, isquémia cardíaca
direita com angor e insuficiência cardíaca direita; um sintoma atípico de dilatação da
artéria pulmonar é a disfonia, por compressão e paralisia do nervo recorrente laríngeo.
A cateterização da aurícula direita está indicada nos doentes sintomáticos para
avaliação rigorosa da pressão arterial pulmonar. Podem ser usados antagonistas dos
receptores da endotelina-1, inibidores da fosfodiesterase ou prostanóides endovenosos;
a anticoagulação pode ser ponderada na profilaxia de tromboembolismo pulmonar.

SÍNDROME DO ANTICORPO ANTI-FOSFOLÍPIDO (SAAF)


Qualquer órgão pode ser atingido por trombose venosa ou arterial pelo SAAF (capítulo
II.6). As manifestações ao nível do sistema nervoso central incluem eventos trombóticos
arteriais, com possibilidade de epilepsia associada, alterações psiquiátricas e síndromes
neurológicas não trombóticas. As manifestações cardíacas incluem doença valvular e
coronária. O atingimento pulmonar inclui hipertensão e tromboembolismo pulmonar,
hemorragia alveolar e ARDS (acute respiratory distress syndrome). As manifestações
renais incluem trombose dos capilares glomerulares, microangiopatia trombótica,
necrose cortical, trombose da artéria e da veia renal. No tracto gastrointestinal pode
ocorrer perfuração esofágica, colite isquémica, enfarte

293
hepático e esplénico. Outras alterações incluem trombocitopénia, morbilidade
obstétrica, enfarte testicular e prostático.

O SAAF Catastrófico surge como falência multi-orgânica num doente com SAAF,
embora possa ser esta a primeira manifestação da doença; é considerada uma
emergência auto-imune. Trata-se de um episódio clínico isolado e não de uma variante
da doença. Os factores precipitantes mais frequentes são cirurgia, infecções,
contraceptivos orais e anticoagulação ineficaz. A coagulação intravascular disseminada
é frequente e a morte ocorre em mais de 60% dos doentes. A plasmaferese pode ser
utilizada nos doentes que não respondam a outra terapêutica.

VASCULITES SISTÉMICAS
A maioria das vasculites são sistémicas e podem envolver vários órgãos. As vasculites
primárias podem atingir vasos de diferentes calibres – algumas das principais situações
urgentes estão enunciadas na Tabela 4, de acordo com o tipo de vasculite. As vasculites
secundárias podem estar associadas a uma DAI, como artrite reumatóide ou lúpus
eritematoso sistémico, ou podem ser secundárias a outras doenças, como sarcoidose,
neoplasias ou infecções bacterianas graves.
TIPO DE VASCULITE, POR CALIBRE DE VASO CONDIÇÃO CLÍNICA URGENTE
GRANDES VASOS
Arterite de Células Gigantes Perda de visão súbita
Insuficiência Vértebro-Basilar
Aortite
Arterite de Takayasu Angor, Enfarte Agudo Miocárdio
MÉDIOS VASOS
Poliarterite Nodosa Colite isquémica, enfarte mesentérico
Pancreatite
Glomerulonefrite aguda, nefropatia
isquémica
Hipertensão maligna
Enfarte Agudo do Miocárdio
PEQUENOS VASOS
Poliangeíte Microscópica Insuficiência Renal rapidamente progressiva
Hemorragia pulmonar
Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte Hemorragia Pulmonar por granuloma
necrotizante
Insuficiência Renal rapidamente progressiva
Granulomatose com Poliangeíte Miocardite
Insuficiência Renal rapidamente progressiva
Insuficiência respiratória (obstrução da via
aérea, hemorragia alveolar)
Síndrome Goodpasture (Ac.anti-MBG) Hemorragia alveolar
Insuficiência Renal rapidamente progressiva
Vasculite Ig A Vasculite Mesentérica
Síndrome nefrítico/nefrótico
Crioglobulinémia Púrpura, ulceração cutânea
Neuropatia periférica
Insuficiência renal
Tabela 4: Situações clínicas urgentes associadas a vasculites sistémicas, consoante o calibre do vaso afectado.

294
Em geral, as exacerbações de vasculites sistémicas requerem escalada do tratamento
imunossupressor, ou seja, corticosteróides, azatioprina, ciclofosfamida, ciclosporina,
imunoglobulina, micofenolato de mofetil ou rituximab, consoante o atingimento orgânico
e o diagnóstico específico. As situações potencialmente fatais são geralmente geridas
com pulsos de metilprednisolona. Caso se trate de uma situação inicial, a confirmação
do diagnóstico não deve atrasar a instituição da terapêutica.

• Vasculite do Sistema Nervoso Central (SNC)

Algumas vasculites sistémicas provocam oclusão e necrose de vasos sanguíneos no


SNC, incluindo artérias e veias de diferentes calibres. Estas vasculites podem ser
classificadas por 3 categorias:

→ Doenças auto-imunes do tecido conjuntivo: lúpus eritematoso sistémico,


esclerodermia, artrite reumatóide, síndrome de Sjögren, doença mista do tecido
conjuntivo e doença de Behçet;
→ Vasculites sistémicas necrotizantes: poliarterite nodosa, granulomatose
eosinofílica com poliangeíte, poliangeíte microscópica e doença de Kawasaki;
→ Vasculites sistémicas granulomatosas: poliangeíte granulomatosa e
granulomatose linfomatóide.

A abordagem diagnóstica deve ser peremptória na exclusão de infecção e incluir exame


de imagem, preferencialmente RMN-CE, e análise de líquido cefalorraquidiano
– habitualmente com pleiocitose, com prevalência de plasmócitos e menor número de
polimorfonucleados, e dissociação cito-proteica. A angiografia cerebral permite
identificar estenose segmentar de vasos intra-cranianos; a PET permite detectar lesões
extra-SNC. O tratamento é semelhante ao acima descrito.

SÍNDROME PULMÃO-RIM (SPR)


O termo síndrome pulmão-rim estava inicialmente associado à então denominada
Síndrome de Goodpasture no contexto de insuficiência respiratória e renal aguda por
hemorragia alveolar e glomerulonefrite rapidamente progressiva. Do ponto de vista
imunopatológico, percebeu-se que este quadro clínico podia ocorrer por três processos
distintos: mediado por anticorpos (tipo 1), relacionado com os anticorpos anti-membrana
basal glomerular (MBG); mediado por imunocomplexos (tipo 2), relacionado com o
Lúpus Eritematoso Sistémico; ou pauci-imune (tipo 3), associado a vasculites ANCA
positivo (ANCA+).

A causa mais frequente de SPR nos adultos são as vasculites ANCA+, seguida pelas
situações mediadas por anticorpos anti-MBG. No entanto, podem surgir outras situações
que, embora menos frequentes, fazem parte do diagnóstico diferencial do SPR – Tabela
5.

295
CAUSAS DE SÍNDROME PULMÃO-RIM DE ORIGEM NÃO AUTO-IMUNE
Doença Cardiovascular – insuficiência cardíaca congestiva, doença valvular, tumores auriculares
Lesão renal com edema pulmonar
Alterações da hemostase – trombocitopénia, urémia, coagulação intravascular disseminada, fármacos
(anticoagulantes, antitrombóticos, antiplaquetários ou trombolíticos)
Barotrauma
Infecções – leptospirose, S. aureus, Legionella pneumophila, Hantavirus, malária
Eventos embólicos
Hipertensão maligna com insuficiência renal e cardíaca
Neoplasia – tumor primário do pulmão ou metástases
Toxinas – intoxicação a paraquat, solventes, cannabis, cocaína
Hemosiderose idiopática
Linfangioliomatose
Hemangiomatose capilar pulmonar
Tabela 5: Causas não auto-imunes de Síndrome Pulmão-Rim.

Foram identificados alguns marcadores de mau prognóstico no SPR: a presença de


anticorpos ANCA, idade avançada e a necessidade de hemodiálise. Como noutras
situações emergentes, a confirmação do diagnóstico não deve atrasar o tratamento, que
passa por pulsos de metilprednisolona, seguido de altas doses de corticoterapia,
juntamente com ciclofosfamida – Figura 1. Estudos mais recentes têm mostrado eficácia
do rituximab e da plasmaferese. A terapêutica de manutenção pode ser feita com
metotrexato, azatioprina e micofenolato de mofetil.

Figura 1: Algoritmo proposto para o diagnóstico e tratamento da Síndrome Pulmão-Rim. From Gutiérrez-Gonzaléz LA.
Rheumatologic Emergencies. Clin Rheumatol 2015. DOI 10.1007/s10067-015-2994-y.

296
LÚPUS ERITEMATOSO SISTÉMICO
O flare lúpico pode ser provocado por stress, exposição solar, abstinência/redução de
corticosteróides, gravidez, infecção, entre outras causas. A infecção deve ser excluída
em doentes lúpicos febris, antes de a febre ser atribuída ao LES. Uma contagem de
leucócitos baixa e proteína C reactiva normal favorece a actividade lúpica.

RESPOSTA DE SITUAÇÕES CLÍNICAS URGENTES A CORTICOTERAPIA


FAVORÁVEL DESFAVORÁVEL
Dermatite grave por lúpus cutâneo sub-agudo Trombose
Poliartrite aguda Doença renal terminal
Poliserosite Glomerulonefrite membranosa
Miocardite Psicose sem relação com LES
Pneumonite lúpica
Glomerulonefrite
Anemia hemolítica
Trombocitopénia
Atingimento SNC difuso
Crise lúpica (febre elevada e prostração)
Tabela 6: Resposta de situações clínicas urgentes à corticoterapia, no contexto de Lúpus Eritematoso Sistémico (LES).
SNC: Sistema Nervoso Central.

As complicações urgentes/emergentes podem assumir diferentes graus de gravidade,


consoante o órgão afectado:

→ coração e vasos: atingimento valvular (regurgitamento valvular, endocardite de


Libman-Sacks), pericardite (pode ser assintomática ou acompanhar-se de dor
pleurítica ou tamponamento), disfunção miocárdica (insuficiência cardíaca,
taquicárdia, arritmia, disfunção diastólica, miocardite), cardiopatia isquémica
(aterosclerose precoce, com aumento do risco coronário e enfarte agudo do
miocárdio);
→ pulmão: pneumonite lúpica (rara, inclui febre, dispneia, tosse produtiva,
hemóptise, dor pleurítica e hipoxémia), hemorragia pulmonar (raro), ARDS;
→ neuropsiquiátrico: acidente vascular cerebral, acidente isquémico transitório,
convulsões, síndrome confusional agudo;
→ rim: nefropatia medicamentosa, glomerulonefrite, vasculopatia, nefrite intersticial
aguda.

O tratamento das exacerbações do LES passa pela identificação do agente precipitante


e aumento da corticoterapia, nas situações em que se prevê resposta favorável – Tabela
6. Nalgumas situações, é necessário combinar outros fármacos imunossupressores,
como azatioprina, ciclofosfamida, micofenolato de mofetil, imunoglobulina ou rituximab.
Para além do controlo da actividade da doença, é importante manter a remissão e evitar
complicações secundárias.

• Púrpura Trombótica Trombocitopénica (PTT)

A PTT no LES caracteriza-se por envolvimento do SNC, renal, trombocitopénia, anemia


e a presença de esquizócitos no sangue periférico. Pode mimetizar flares lúpicos e,
simultaneamente, ser confundida com outras entidades nosológicas, como a crise renal
esclerodérmica ou o SAAF catastrófico. A plasmaferese é o tratamento

297
indicado. A resposta aos imunossupressores é fraca se apenas for utilizada
corticoterapia; a ciclofosfamida pode ser usada como fármaco co-adjuvante e há casos
descritos de boa resposta ao rituximab. As recidivas são frequentes.

SÍNDROME DE ACTIVAÇÃO MACROFÁGICA (SAM)


A SAM constitui um quadro agudo de insuficiência hepática, coagulopatias de consumo
e encefalopatia, associado a activação de macrófagos na medula óssea com sinais de
hemofagocitose. Apresenta uma mortalidade de cerca de 70% e é frequentemente sub-
diagnosticado (30% de diagnóstico post-mortem). A apresentação clínica é
caracterizada por febre elevada, superior a 39 ºC, durante mais de 7 dias, hemorragia
interna, como melenas, alterações do SNC, como sonolência, eritema cutâneo, icterícia
e linfadenopatias – Tabela 7. A SAM pode ocorrer associada a várias doenças auto-
imunes, como lúpus eritematoso sistémico, artrite idiopática juvenil, doença de Still do
adulto, poliarterite nodosa e doença de Kawasaki. A SAM pode ser despoletada por
infecções (vírus Epstein-Barr, HIV) ou fármacos (ácido acetilsalicílico, anti-retrovirais,
sulfassalazina, corticoesteróides, azatioprina ou após terapêutica com agentes anti-TNF
alfa).

CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO DO SÍNDROME DE ACTIVAÇÃO MACROFÁGICA


CRITÉRIOS CLÍNICOS
Febre (>38,5ºC, durante mais de 7 dias)
Esplenomegália
Linfadenopatias
CRITÉRIOS LABORATORIAIS
Citopénia (Hb <9mg/dL, Plaquetas <100.000/mm 3, Neutrófilos <1000/mm 3)
Hipertrigliceridémia > 265 mg/dL
Hipofibrinogenémia <150 mg/L
Hiperferritinémia > 500 mcg/L
Actividade de células NK baixa ou ausente
Tabela 7: Critérios de Diagnóstico da Síndrome de Activação Macrofágica.

O tratamento da SAM inclui terapêutica de suporte, que pode incluir passagem por
Unidade de Cuidados Intensivos, para terapêutica e monitorização, com controlo
hidroelectrolítico, transfusões de plasma fresco congelado, antibioterapia (se infecção);
do ponto de vista farmacológico, está recomendada a utilização de ciclosporina
associada a corticoterapia; em estudo estão novas abordagens terapêuticas com
fármacos anti-IL1 (canakinumab), anti-CD25 (daclizumab) e anti-IL6 (tocilizumab).

ARTRITE AGUDA
A artrite aguda pode representar uma situação de novo ou uma exacerbação de uma
artrite pré-existente. As causas de artrite de novo podem classificar-se em monoartrite
(artrite séptica, gota, trauma) ou oligo/poliartrite (artrite reactiva, artrite viral, febre
reumática, infecção a VIH, infecção gonocócica disseminada). Nas situações de artrite
séptica, deve ser feita artrocentese imediata, com análise bioquímica e microbiológica
do líquido sinovial, não esquecendo a pesquisa de cristais (microscopia polarizada). Na
Tabela 8 estão sumarizados alguns aspectos importantes a ter em consideração na
análise do líquido sinovial.

298
AVALIAÇÃO DO LÍQUIDO SINOVIAL
→ A amostra deve ser anticoagulada com heparina ou EDTA líquido.
→ A viscosidade, agregados de mucina, proteína, glicose, pesquisa de ANA e Factor
Reumatóide não fornecem informação fidedigna, pelo que não deve ser solicitados.
→ A contagem leucocitária, cultura, coloração de Gram, Ziehl Neelsen e identificação de
cristais deve ser realizada em todas as amostras.
→ A hiperviscosidade do líquido sinovial interfere com a contagem celular, pelo que deve
ser privilegiada a contagem manual.
→ A microscopia com luz polarizada é preferencial para a identificação de cristais.
Tabela 8: Aspectos particulares da avaliação do líquido sinovial.

• Artrite Séptica

A apresentação clínica de uma artrite bacteriana aguda inclui o aparecimento rápido de


artralgia grave, calor e tumefacção, tanto num doente imunocompetente como num
imunossuprimido, embora os doentes mais idosos possam não revelar febre ou outros
sinais de inflamação. O atraso do diagnóstico de uma artrite séptica em 1 a 3 semanas
pode levar a destruição irreversível da articulação, com baixo outcome funcional. A
mortalidade associada pode chegar aos 20-33%, o que evidencia bem a necessidade
de um rápido diagnóstico e agilização do tratamento. A prevalência da artrite séptica
está particularmente aumentada nos doentes com AR, sobretudo se apresentarem
doença erosiva de longa evolução, e/ou estiverem sob corticoterapia. O tratamento com
agentes anti-TNF alfa também está associado a incidência aumentada de artrite séptica,
bem como a infecção por agentes oportunistas ou raros.

Normalmente, apenas uma articulação é afectada, mas em 10-30% dos casos pode
haver envolvimento poli-articular; tipicamente são atingidas as grandes articulações,
como joelho e anca – Tabela 9. O Staphylococcus aureus é o agente mais frequente,
seguido pelo Streptococcus spp., os agentes Gram negativos e os anaeróbios; as
infecções gonocócicas devem ser suspeitadas em doentes sexualmente activos. A
tríade clássica de disseminação gonocócica inclui tenossinovite aguda, dermatite e
artrite. A tenossinovite é mais frequente no dorso das mãos e punhos, enquanto a artrite
afecta mais o joelho, tornozelo, punho e cotovelo. As lesões cutâneas são
maculopapulares, mas podem ser também pustulosas, vesiculares ou bolhosas. As
lesões génito-urinárias localizadas são pouco frequentes na infecção gonocócica
disseminada.

CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO PARA ARTRITE SÉPTICA


Isolamento de um organismo na articulação afectada
Isolamento de um organismo noutra fonte, concomitante a artrite
Quadro clínico e líquido sinoval turvo após antibioterapia prévia
Evidência histológica ou radiológica de artrite séptica
Tabela 9: Critérios de Newman para o diagnóstico de Artrite Séptica – basta um estar positivo.

A aspiração de líquido sinovial é obrigatória nos doentes com artrite séptica e deve ser
colocado dreno se houver pus intra-articular. A análise citológica apresenta

299
tipicamente contagem leucocitária >50.000/mm3, com predomínio de neutrófilos, e os
níveis de glicose são baixos.

A artrotomia cirúrgica pode ser necessária nos casos de atingimento da anca ou ombros,
se co-existir osteomielite e se a infecção não estiver controlada ao fim de 5-7 dias de
drenagem articular. A antibioterapia deve ser endovenosa durante 14 dias (28 dias se
infecção a Staphylococcus ou agentes Gram negativo), seguida de antibioterapia oral
durante 2 a 6 semanas. Os fármacos usados para a doença gonocócica disseminada
são o ceftriaxone endovenoso, seguido de cefuroxime axetil ou amoxicilina/ácido
clavulânico; para as infecções a S. aureus, a ciprofloxacina ou levofloxacina; para os
agentes Gram negativos, os aminoglicosídeos.

A artrite reactiva pode ocorrer após um quadro de disenteria ou uretrite/cervicite a


Chlamydia. A tríade da previamente denominada tríade de Reiter inclui uretrite,
conjuntivite e artrite, embora possa não estar presente em todos os doentes. Na fase
aguda, o tratamento inclui anti-inflamatórios não esteróides (AINEs); o envolvimento
crónico pode ser tratado com metotrexato ou sulfassalazina.

• Agudização de artrite pré-existente

As exacerbações de artrite pré-existente, como no caso da Artrite Reumatóide, são


preferencialmente tratadas com corticoterapia e escalada nos DMARDs. É importante
distinguir estes casos de outras situações inflamatórias. Por exemplo, no caso de
agravamento súbito de dor num joelho com osteoartrite, deve ser considerada também
a rotura de quisto de Baker, a pseudogota, a osteonecrose ou a bursite de Anserine. O
líquido sinovial permite avaliar a presença de infecção e, em caso de exclusão, a
injecção de corticóides intra-articular poderá permitir alívio eficaz.

OUTRAS SITUAÇÕES URGENTES


Embora não seja uma situação exclusiva de doenças auto-imunes, a lombalgia aguda é
um sintoma muito frequente, mas que impõe uma história clínica cuidada e exame
objectivo rigoroso. Na Tabela 10 estão esquematizadas causas agudas e crónicas de
lombalgia, por tipo de condição clínica. Recordamos as “red flags” da lombalgia aguda:
síndrome da cauda equina, incontinências intestinal ou vesical, compressão medular,
hipotensão arterial e/ou assimetria de pulsos.

Alguns autores defendem também o carácter urgente da abordagem ao eritema nodoso,


dado tratar-se da paniculite mais frequente na prática clínica. Os doentes apresentam
nódulos dolorosos subcutâneos, mais frequentes nos membros inferiores. Os factores
desencadeantes incluem infecções (faringite estreptocócica, tuberculose), fármacos
(sulfonamidas, penicilina), sarcoidose, linfoma, doença inflamatória intestinal e doença
de Behçet. A evolução é habitualmente auto-limitada e a dor pode ser tratada com
AINEs; se persistir, pode ser usada corticoterapia, colchicina, iodeto de potássio ou
dapsona.

300
LOMBALGIA
SITUAÇÃO CLÍNICA AGUDA CRÓNICA
ESPONDILARTROPATIAS Síndrome Reiter Espondilite Anquilosante
SERONEGATIVAS Artrite Reactiva Artrite Psoriática
Artrite Enteropática
Espondilartropatia indiferenciada
NEOPLASIAS Mieloma Múltiplo
Metastização lombar
INFECÇÕES Abcessos epidurais Mal de Pott
METABÓLICAS Fractura osteoporótica Doença de Paget
MECÂNICAS Prolapso disco intervertebral Estenose canal lombar
Espondilose
Espondilolistese
DOR IRRADIADA Doença inflamatória pélvica Tumor pancreático
Cistite
Prostatite
Pancreatite
OUTRAS Rotura de aneurisma da aorta Psicossomática
abdominal Simulação
Dissecção da aorta
Tabela 10: Diagnóstico diferencial de lombalgia.

Considerações finais
O diagnóstico de algumas DAI assenta em exames imunológicos e biópsias, que podem
demorar mais de 10 dias até serem conclusivos – mais no caso dos anticorpos anti-
fosfolípido, que deverão ser repetidos ao fim de 12 semanas, para excluir a possibilidade
de falsos positivos. Em situações urgentes, são os testes laboratoriais de rápido
processamento que ajudam na decisão terapêutica até confirmação do diagnóstico –
por exemplo, as proteínas de fase aguda, como a proteína C reactiva e velocidade de
sedimentação, os doseamentos de C3 e C4 (que avaliam a via alterna e clássica
simultaneamente), o factor reumatóide, o VDRL, o teste de Coombs, a pro- calcitonina
e o fibrinogénio. A confirmação do diagnóstico de uma DAI não deve atrasar a instituição
de terapêutica adequada.

ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- Abordar o doente como um todo, de acordo com o algoritmo em situações graves: airway, breathing,
circulation, disability, exposure;
- Identificar lesões de órgão-alvo: enquadrável em DAI conhecida? Efeito de medicação? Infecção
intercorrente?
- A história clínica é fundamental: saber história pessoal ou familiar de doenças auto-imunes, uso de
anticonceptivos orais, eventos trombóticos passados, episódios de púrpura, úlceras ou abortos.
- No exame objectivo, não esquecer de avaliar a pele e pesquisar sinais como livedo reticular,
fenómeno de Raynaud, lesões peri-ungueais, pápulas de Gottron, eritema malar, fotossensibilidade ou
hemorragias em estilhaço.
- Alguns testes laboratoriais podem ajudar a orientar o diagnóstico: velocidade de sedimentação,
proteína C reactiva, fibrinogénio, pro-calcitonina, VDRL, C3, C4, Factor Reumatóide, Teste de Coombs.
- A suspeita de infecções não deve atrasar o início da terapêutica com imunossupressores ou
corticosteróides – ter em conta que o doente está hospitalizado, monitorizado e gravemente doente.

301
TAKE HOME MESSAGES
- As DAI são doenças sistémicas com amplo espectro de apresentação e
gravidade.
- As situações de urgência/emergência podem corresponder a flare de doença ou
a manifestação inicial.
- A maior parte dos doentes está sob tratamento imunossupressor, que tem efeitos
adversos e secundários importantes, dos quais se destacam as infecções.
- As DAI podem apresentar complicações graves, com necessidade de UCI.

Bibliografia
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302
4. GRAVIDEZ NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES

Introdução
As doenças auto-imunes (DAI) são mais prevalentes em mulheres, sobretudo em idade
reprodutiva. Com a evolução do conhecimento sobre a patogénese das DAI, bem como
o aparecimento de novos fármacos imunossupressores, a abordagem à mulher grávida
ou em amamentação com patologia auto-imune obriga a uma abordagem baseada na
relação benefício/risco da mãe e do feto/criança. Deste modo, o planeamento familiar
nestas doentes assume uma importância fundamental, beneficiando de um
acompanhamento multidisciplinar, que inclua o ginecologista- obstetra, o especialista
em DAI e o médico dos cuidados de saúde primários. Assim sendo, é importante ter
algumas noções sobre as alterações fisiológicas que ocorrem durante a gravidez, qual
o comportamento das diversas patologias durante a gravidez e potenciais complicações,
bem como a familiaridade com os fármacos habitualmente administrados nestas
patologias.

Alterações Fisiológicas na Gravidez


A gravidez afecta o sistema imune materno para permitir a sobrevivência do feto.
Verifica-se uma depressão da imunidade celular, um aumento da secreção de
imunoglobulinas e existe uma supressão da função linfocitária. O perfil de citocinas
dominante é o Th212, importante para a manutenção da gravidez. Estas alterações têm
implicações diferentes em doenças auto-imunes particulares, podendo alterar o
comportamento da própria doença, por exemplo aumentando o risco de exacerbação de
lúpus eritematoso sistémico (LES) ou diminuindo a actividade da artrite reumatóide.

A nível cardiovascular, vai haver aumento do débito cardíaco e aumento do volume


intravascular, o que poderá não ser problemático em grávidas sem patologia, mas que
poderá constituir um factor de descompensação em doentes com patologia cardíaca ou
renal. A taxa de filtração glomerular acompanha o aumento do débito cardíaco, pelo que,
numa doente com proteinúria pré-existente, esta irá provavelmente agravar durante a
gravidez.

A nível hematológico, vai haver um aumento dos elementos figurados do sangue


circulante, não acompanhado por um aumento proporcional do plasma. Deste modo, vai
haver uma anemia de diluição, que acaba por diminuir a viscosidade sanguínea. Por
outro lado, é frequente haver aumento da contagem de leucócitos, geralmente próximo
dos 12000/uL. Verifica-se, também, um aumento da velocidade de sedimentação,
resultante de aumento do fibrinogénio, pelo que este marcador deixa de ser útil na
monitorização de actividades de algumas DAI. Apesar da diminuição da viscosidade do
sangue, a gravidez constitui um estado pró-trombótico, que resulta de alterações nos
sistemas fibrinolítico e pró-coagulante, bem como de alterações mecânicas, como
estase venosa, compressão pelo útero ou, quando esta está indicada, imobilização.

12
Linfócito T helper tipo 2

303
A nível gastrointestinal, o útero grávido, bem como o efeito relaxante muscular da
progesterona, podem levar a sintomas de refluxo gastroesofágico e obstipação. Por
outro lado, diminui a produção de ácido clorídrico no estômago, diminuindo a incidência
de úlceras e melhorando as pré-existentes.

A nível respiratório, a progesterona favorece a diminuição da pCO 2 arterial, o que leva


ao aumento do volume corrente (e volume-minuto), bem como da frequência
respiratória, aumentando o pH sanguíneo. Para além disso, existe um ligeiro edema e
hiperémia de todo o tracto respiratório, que pode levar a sintomas de obstrução nasal e
obstrução das trompas de Eustáquio.

Fig. 1: A – Alterações na fisiologia pulmonar durante a gravidez; B – Alterações na taxa de filtração glomerular durante a
gravidez. From Lapinsky SE, Kruczynski K, Slutsky AS: Critical care in the pregnant patient, Am J Respir Crit Care Med
152:427–490, 1995

Durante a gravidez, a placenta produz uma série de hormonas, que podem alterar
algumas funções basais. Em primeiro lugar, existe a produção de uma hormona
relacionada com a TSH13, que leva ao aumento da glândula tiroideia e produção de
hormonas tiroideias. Isto não se reflecte num aumento real de hormonas tiroideias livres,
uma vez que existe um aumento da produção de globulina pelo fígado, embora alguns
sintomas da gravidez, como taquicardia, aumento da sudação e instabilidade emocional
possam ser atribuídos a esta alteração. A placenta produz também CRH, que aumenta
a produção de ACTH e, por conseguinte, de cortisol, levando a edema e insulino-
resistência. Existe também a produção de MSH, que resulta em aumento da
pigmentação em fases tardias da gravidez. Durante este período, existe ainda um
aumento do volume da hipófise e aumento da produção de prolactina, importante na
iniciação e manutenção da lactação.

13 TSH:
thyroid secreting hormone; CRH: corticotropin-releasing hormone; ACTH: adrenocorticotropic
hormone; MSH: melanocyte-stimulating hormone.

304
Do ponto de vista dermatológico, a hiperpigmentação, resultante do aumento da
produção de estrogénio, progesterona e MSH, ocorre sobretudo nas regiões fontais,
malar, pregas e linha branca; por vezes confunde-se com o eritema malar do LES. Pode
também haver eritema palmar e aranhas vasculares.

Para além das alterações da postura e da marcha, é comum haver artralgias


generalizadas, por vezes com ligeiro edema articular, mimetizando artrite, o que coloca
problemas no que concerne a diagnóstico diferencial entre exacerbação de patologia de
base e evolução normal da gravidez.

Doenças Auto-Imunes na Grávida


Apesar de a maioria das DAI afectar mulheres em idade fértil, a patologia em si não
altera a sua fertilidade, a menos que a doente tenha feito terapêutica
gonodossupressora previamente, como a ciclofosfamida. Por outro lado, as grávidas
com doença auto-imune devem ser sempre consideradas como doentes de alto risco,
uma vez que conferem à mãe, ao feto ou a ambos um risco acrescido de complicações.
As mães podem sofrer de HTA induzida pela gravidez (HTA após as 20 semanas), pré-
eclâmpsia (definida como HTA com proteinúria superior a 0.3 g/24 horas), eclâmpsia
(pré-eclâmpsia com convulsões), diabetes gestacional (PTGO positiva realizada entre
as 24-28 semanas), sépsis, exacerbação ou agravamento da doença e a ocorrência de
eventos trombóticos. No feto as complicações podem ser parto pré-termo (ou seja, parto
antes das 37 semanas), gravidez gemelar, anomalias congénitas ou a ocorrência de
nado-morto.

Lúpus Eritematoso Sistémico (LES)

Até há alguns anos, a gravidez em mulheres com LES era desaconselhada. Esta
abordagem já não se aplica actualmente, mas há que ter em atenção que existe um
maior risco de complicações, que vai depender das circunstâncias particulares da
doente. Em cerca de 13-60% das doentes, ocorre exacerbação do LES. São mais
frequentes nas doentes com doença activa antes da concepção, nas que tiveram
múltiplas exacerbações prévias ou nas que têm nefrite lúpica. As complicações mais
frequentes manifestam-se a nível cutâneo, hematológico, articular e renal. O tratamento
destas exacerbações pode incluir a hidroxicloroquina, corticoterapia (de preferência em
baixa dosagem), azatioprina e anti-inflamatórios não esteróides, sem riscos acrescidos
para a mãe e para o feto.

Em cerca de 6-20% das doentes ocorre pré-eclâmpsia. É mais frequente em doentes


com nefrite lúpica (classes III e IV da classificação da Organização Mundial de Saúde),
episódios prévios de pré-eclâmpsia e HELLP14, HTA pré-existente, síndrome de
anticorpo anti-fosfolípido (SAAF) acompanhante e doença activa. Se não houver contra-
indicação, deve ser instituída anti-agregação profiláctica.

14
HELLP: síndrome que ocorre durante a gravidez, como complicação da pré-eclâmpsia, que inclui Hemólise, elevação
das enzimas hepáticas (Elevated Liver enzymes) e trombocitopénia (Low Platelet count).

305
Figura 2: Alterações laboratoriais na pré-eclâmpsia e na nefrite lúpica.

A perda fetal pode ocorrer por aborto espontâneo, nado-morto ou morte neo-natal. Está
relacionada com nefrite lúpica activa (sobretudo se TFG < 60 mL/min ou proteinúria > 1
g / 24h), doença activa (título de anticorpo anti-dsDNa elevado e consumo das fracções
C3 e C4 do complemento), síndrome do anticorpo anti- fosfolípido, trombocitopénia no
1.º trimestre e HTA não controlada no 1.º trimestre.

O parto pré-termo é uma complicação que surge associada às doentes com nefrite
lúpica, LES em actividade, HTA, pré-eclâmpsia e SAAF.

Outras complicações incluem baixo peso à nascença (<2500g), bebé leve para a idade
gestacional (LIG) (percentil <10) e restrição de crescimento intra-uterino (RCIU)
(percentil <5). Estão também associadas à nefrite lúpica, LES em actividade, HTA,
hipoalbuminémia, SAAF e presença de anticorpo anti-Smith.

Na abordagem à grávida com LES, a doente deve ser avaliada em consulta


especializada em cada 4-6 semanas; em consulta de Ginecologia-Obstetrícia em cada
4 semanas até às 20 semanas, em cada 2 até às 28 e semanalmente a partir daí. Devem
ser solicitadas análises basais (C3, C3, anticorpo anti-SSA, anticorpo anti- SSB,
anticorpo anti-Sm, anticorpo anti-dsDNA, anticoagulante lúpico, anticorpo anti-
cardiolipina, anticorpo anti-beta2glicoproteína); mensalmente (C3, C4, anticorpo anti-
dsDNA, sedimento urinário com relação proteinúria/creatininúria). Deve realizar
ecografia mensal a partir das 7-13 semanas e provas de vitalidade e bem-estar fetal a
partir das 26 semanas.

Figura 3: Lúpus Neonatal (A – Ovalle M. The Many Faces of Lúpus: an approach to the assessment of a lúpus patient.
Clinical Medicine and Diagnostics 2013; 3 (2): 11 -17. ; B – Peres MF et al. Neonatal lúpus erythematosus: a report of
four cases. An. Bras. Dermatol. 2011, 86 (2).; C – Baselga E, et al. Immunologic, Reactive and Purpuric Disorders).

O lúpus neonatal está associado à presença de anticorpos Anti-SSA/Ro ou Anti-


SSB/La, havendo um risco inerente de 20%. Manifesta-se por eritema, hepatite,
trombocitopénia e bloqueio cardíaco (risco de 2-3%; a mortalidade do bloqueio completo
ronda os 20%). Deve ser realizada ecografia semanal em cada 16-26 semanas e
quinzenal após as 26 semanas. A utilização de corticoterapia e

306
imunoglobulina endovenosa é controversa, mas a hidroxicloroquina pode ser protectora.
À excepção do bloqueio cardíaco, as restantes alterações resolvem ao fim de 3-6
meses.

Síndrome do Anticorpo Anti-Fosfolípido (SAAF)

O diagnóstico de SAAF é estabelecido em critérios laboratoriais e clínicos, os quais se


distinguem em eventos obstétricos (≥ 3 abortos espontâneos <10 semanas, ≥ 1 aborto
espontâneo > 10 semanas, parto pré-termo < 34 semanas, pré-eclâmpsia, RCIU,
sofrimento fetal) e não-obstétricos (trombose venosa/arterial). A SAAF está, assim,
associada a perda fetal, pré-eclâmpsia e eclâmpsia (sobretudo se LES concomitante),
síndroma de HELLP (tende a ocorrer mais precocemente; no 2.º trimestre, associa-se a
enfarte hepático e complicações trombóticas), parto pré-termo (10-40%), RCIU e
trombose fetal e neonatal (rara).

Artrite Reumatóide (AR)

Na AR há uma tendência para melhoria da actividade da doença durante a gravidez e


exacerbação no pós-parto, embora seja difícil de avaliar e a VS perca a utilidade (o DAS
28 deve ser realizado utilizando a proteína C reactiva). Nestas doentes, é importante
avaliar a instabilidade da coluna cervical e amplitude de movimentos da anca. O
prognóstico é geralmente bom, embora estejam descritos casos de parto pré- termo,
com cesarianas mais frequentes, e baixo peso à nascença. O tratamento pode incluir
corticoterapia, sulfassalazina, hidroxicloroquina e anti-TNF alfa.

Esclerose Sistémica (ES)

A ES afecta frequentemente mulheres em idade fértil. Durante a gravidez, se por um


lado pode melhorar o fenómeno de Raynaud, há um agravamento da doença em cerca
de 20%. Nas doentes com hipertensão pulmonar (HTP) há uma mortalidade associada
de 17-33%, pelo que a gravidez não está recomendada nestas doentes. Nos casos em
que as doentes com HTP engravidam, pode ser proposta terapêutica com sildenafil,
epoprosterenol e cesariana electiva após as 32 semanas. O risco de crise renal
esclerodérmica surge sobretudo nas doentes em fase inicial de ES difusa, devendo ser
iniciada terapêutica com inibidores da enzima de conversão da aldosterona. A
terapêutica com corticóides deve ser ponderada, dado o perigo de alguns efeitos
secundários, sobretudo nos partos pré-termo, em que é necessário administrar altas
doses para maturação pulmonar.

Dermatomiosite / Polimiosite

Quando a doença surge durante a gravidez, há um risco de perda fetal importante; se a


doença já estiver estabelecida e controlada, a sobrevida fetal ronda os 80%. O
tratamento passa por corticóides, imunoglobulina endovenosa e azatioprina.

307
Abordagem da mulher em idade reprodutiva e doença auto-imune
Nas doentes com DAI deve ser providenciado aconselhamento a todas as mulheres,
sendo adequado o método contraceptivo à patologia de base, sob uma abordagem
multidisciplinar. A gravidez deve ser desaconselhada nos casos de hipertensão
pulmonar, doença renal crónica em estadios 4/5 (sobretudo se proteinúria >1 g /24
horas; nestas situações há risco de pré-eclâmpsia, morte fetal, progressão da doença
renal e necessidade de técnica de substituição renal), DAI activa e SAAF com
complicações recorrentes. Considerar também outras complicações como contra-
indicação: cardiomiopatia, doença valvular, doença intersticial pulmonar ou
manifestações neurológicas graves.

Nas doentes com DAI que expressem o desejo de engravidar deve ser adiada a
concepção até a doença estar controlada durante pelo menos 6 meses. Se a gravidez
já estiver estabelecida, devem ser suspensos os fármacos com risco teratogénico,
estabelecida uma vigilância apertada, providenciado controlo das exacerbações e
monitorização das complicações.

Relativamente à contracepção, a oral combinada pode ser usada no LES, se estiver


controlado e sem SAAF concomitante; a contracepção com progestativos pode ser
usada como opção. O DIU hormonal pode ser usado em doentes com SAAF; devem ser
evitados o anel vaginal, implantes ou injecções. A laqueação de trompas pode também
ser sugerida se não houver planos para mais gravidezes. Deve ser estabelecida uma
relação de confiança entre médico e doente, por forma a obter uma combinação se a
gravidez for fortemente contra-indicada e a medicação em curso teratogénica.

Fármacos na Grávida com Doença Auto-Imune


Os fármacos utilizados na mulher grávida e em amamentação com DAI devem ser
ponderados em função da evidência de risco estabelecida pela Food and Drug
Administration.

CATEGORIA DA FDA
A Estudos bem controlados em grávidas não demonstraram risco para o feto.
Estudos em animais não demonstraram risco (e não há estudos em humanos) ou estudos em
B animais mostraram risco e não há estudos em grávidas no 1º trimestre (sem evidência de risco
nos 2º e 3º trimestres).
Estudos em animais sugerem riscos e não há estudos em grávidas, mas o benefício é aceitável
C
face aos riscos.
Existe evidência de risco para o feto em estudos em humanos, mas o benefício é aceitável face
D
aos riscos.
Estudos em humanos ou animais demonstraram claro risco para o feto, e os riscos ultrapassam
X
claramente qualquer potencial benefício.

Tabela 1: Categorias de evidência da Food and Drug Administration (FDA).

308
FÁRMACO CATEGORIA
AINE C/D (3º trimestre)
Corticosteróides B (prednisolona) / C (outros)
Hidroxicloroquina C
Azatioprina D
Sulfassalazina B
Ciclosporina C
Tacrolimus C
IGIV C
Tabela 2: Fármacos e categoria de teratogenicidade segundo categorias da Food and Drug Administration.

Os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) devem ser utilizados em doses mínimas e


evitados no 3.º trimestre, dado o risco de encerramento do ducto arterial.

Os corticoesteróides não fluorados (prednisona, prednisolona, metilprednisolona)


atravessam mal a placenta, atingindo doses muito baixas no feto, ao contrário dos
fluorados (dexametasona, betametasona). Deve ser usada a dose mínima eficaz e, se
possível, fazer desmame; não devem ser utilizadas doses superiores a 10 mg/dia de
prednisolona ou equivalente. Os corticóides estão associados a HTA, diabetes
gestacional, pré-eclâmpsia, RCIU e parto pré-termo; há um risco baixo de fenda orofacial
durante o primeiro trimestre (1/300). Segundo um risco recente, a utilização de
corticoesteróides durante a gravidez foi considerada como factor de risco independente
para infecções (Desai et al, 2017).

A hidroxicloroquina não demonstra risco teratogénico, previne exacerbações, ajuda a


poupar corticóides e pode ser adjuvante de outro DMARD.

A azatioprina não está associada a risco para o feto, mas pode associar-se a LIG e parto
pré-termo. A sulfassalazina é também um fármaco seguro mas, dado que inibe a
absorção de ácido fólico, deve ser feita suplementação pelo menos 3 meses antes da
concepção.

A ciclosporina está associada a risco de pré-eclâmpsia, LIG e parto pré-termo.

A imunoglobulina endovenosa (IgIV) pode ser utlizada nas exacerbações de LES,


miopatias inflamatórias ou como fármaco de 2ª linha na SAAF obstétrica. Não tem
efeitos para o feto; aconselhada utilização de tromboprofilaxia.

FÁRMACO CATEGORIA
Metotrexato X
Micofenolato de mofetil D
Leflunomida X
Ciclofosfamida D
Varfarina X
Tabela 3: Fármacos e categoria de teratogenicidade segundo categorias da Food and Drug Administration

O metotrexato, enquanto fármaco antiproliferativo (pela inibição da di-hidrofolato


redutase) está associado a aborto espontâneo, embriopatia típica, tetralogia de Fallot

309
e defeitos da crista neural. Deve ser descontinuado 12 semanas antes da concepção e
deve ser feita suplementação com ácido fólico em alta dose.

O micofenolato de mofetil inibe a síntese de purinas e está associado a aborto


espontâneo, malformações craniofaciais, dos membros, coração, esófago e rins. Deve
ser descontinuado 12 semanas antes da concepção.

A leflunomida deve ser descontinuada pelo menos 2 anos antes da concepção; caso
contrário, deve ser realizado o protocolo de eliminação através da colestiramina (8g, 3id,
durante 11 dias, até níveis indetectáveis) pelo menos 6 meses antes da concepção. Se
ocorrer uma gravidez não planeada, deve ser realizado o protocolo de colestiramina sob
monitorização.

A ciclofosfamida deve ser descontinuada pelo menos 6 meses antes da concepção;


caso seja indispensável, deverá ser usada apenas no 2.º e 3.º trimestres – se necessária
antes, poderá ter de ser equacionada a interrupção da gravidez.

FÁRMACO CATEGORIA
ANTI-TNF:
Infliximab
Adalimumab
B
Certolizumab
Golimumab
Etanercept
RITUXIMAB C
ABATACEPT C
TOCILIZUMAB C
BELIMUMAB C
Tabela 4: Fármacos e categoria de teratogenicidade segundo categorias da Food and Drug Administration

Relativamente aos fármacos anti-TNF alfa, têm surgido cada vez mais estudos e a
experiência com a sua utilização mostra um perfil de segurança adequado, não se
preconizando a interrupção da gravidez nos dois primeiros trimestres. Os resultados
disponíveis, mostram inclusive que não houve efeitos adversos no desenvolvimento
físico e neurocognitivo ou alterações da imunocompetência em crianças até 1 ano de
idade. A terapêutica deve ser interrompida idealmente no 3.º trimestre: etanercept às
32 semanas, infliximab às 21 semanas e adalimumab às 28 semanas. Quando
administrados após o tempo de suspensão recomendado, podem aumentar o risco de
infecção pós-natal. O perfil de segurança do certolizumab necessita de maior validação
em estudos mais alargados. Nestes bebés devem ser adiadas as vacinas vivas (BCG e
Rotavírus) até aos 6 meses de idade. Quando possível, o doseamento dos níveis de
fármaco em circulação pode contribuir para a decisão sobre o momento adequado de
vacinação.

Quanto aos outros fármacos biológicos, sobretudo os que surgiram nos últimos 5 anos,
ainda não há dados suficientes, mas sabe-se que há um risco de supressão grave dos
linfócitos B com o Rituximab. Em cada caso, deve ser avaliado o risco- benefício.

A anticoagulação, necessária nas situações de SAAF, a varfarina está contra-indicada


durante a gravidez, pelo que deverá ser utilizada heparina de baixo peso molecular.

310
Os novos anticoagulantes orais ainda não foram testados em doentes grávidas, não
estando ainda sequer aprovados nos doentes com SAAF.

Quanto aos fármacos utilizados na vasodilatação pulmonar, sabe-se que o bosentano é


teratogénico, não havendo informação sobre prostaciclinas e sildenafil. A nifedipina
poderá ser utilizada em doses inferiores a 60 mg/dia; não há resultados conclusivos
relativamente à amlodipina. Os inibidores da enzima de conversão da angiotensina
deverão ser interrompidos antes da gravidez.

Amamentação
Durante o período de amamentação, as restrições medicamentosas são semelhantes
às do período da gravidez. Assim sendo, os fármacos compatíveis são: AINEs,
corticóides (tomar imediatamente após ou >4h após a toma), hidroxicloroquina,
sulfassalazina, azatioprina, ciclosporina, tacrolimus, IgIV e biológicos (consoante a
categoria). Os fármacos contra-indicados na amamentação são: metotrexato,
micofenolato de mofetil, leflunomida e ciclofosfamida. Particularizando fármacos
utilizados na ES, a nifedipina pode ser utilizada durante a gravidez e amamentação, em
doses inferiores a 60 mg/dia; quanto aos vasodilatadores pulmonares (sildenafil,
bosentano e prostaciclinas), ainda não há estudos suficientes.

Conclusão
As DAI são frequentes em mulheres em idade fértil, pelo que é importante abordar as
questões relacionadas com a concepção desde o início do seguimento. O planeamento
familiar deve ser alvo de abordagem multidisciplinar e a anticoncepção deve ser
ajustada à doente e à sua patologia. Há situações em que a gravidez deve ser
fortemente desaconselhada, como a hipertensão pulmonar.

ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA: grávidas com DAI = 2 DOENTES – avaliar progressão ou
complicações da doença de base na mãe; avaliar possibilidade de complicações no
feto; abordagem multidisciplinar.

TAKE HOME MESSAGES


As DAI atingem mulheres em idade fértil e é importante conhecer as complicações
que podem surgir na gravidez em cada uma delas, aconselhar sobre o planeamento
e momento de concepção, com controlo da doença activa e supressão atempada
de fármacos teratogénicos; saber que fármacos podem ser utilizados, por forma a
gerir e/ou prevenir complicações nos 2 doentes envolvidos: mãe e feto.

311
Bibliografia
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pregnant women with autoimmune inflammatory conditions: cohort study. BMJ 2017; 356:j895.

• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3

• Flint J et al. BSR and BHPR guideline on prescribing drugs in pregnancy and breastfeeding – Part
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• Saavedra Salinas MÁ, et al. Guías de práctica clínica para la atención del embarazo en mujeres
con enfermedades reumáticas autoinmunes del Colegio Mexicano de Reumatología. Parte 1.
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• Skorpen CG et al. The EULAR points to consider for use of antirheumatic drugs before pregnancy,
and during pregnancy and lactation. Ann Rheum Dis 2016; 0; 1-16.

312
5. OSTEOPOROSE

Introdução
A osteoporose é caracterizada por diminuição da massa óssea e deterioração da
microarquitectura do tecido ósseo, com consequente aumento da fragilidade óssea e
susceptibilidade a fracturas. Embora o diagnóstico da osteoporose assente na avaliação
quantitativa da densidade mineral óssea, que é um determinante major da força óssea,
o significado clínico da osteoporose assenta nas fracturas que daí advêm. Locais
frequentes para fracturas osteoporóticas incluem a coluna, anca, antebraço e úmero
proximal, representando uma causa major de morbilidade na população. As fracturas da
anca podem causar dor aguda e perda de função e conduzem quase sempre a
hospitalização. A recuperação é lenta e a reabilitação muitas vezes incompleta, sendo
que muitos doentes ficam permanentemente institucionalizados.

Em 2010, o número de mortes relacionadas com fracturas osteoporóticas foi estimado


em 43000 na União Europeia. Aproximadamente 50% das mortes relacionadas com
fracturas em mulheres são devidas a fracturas da anca, 28% a fracturas vertebrais e
22% a outras fracturas. Na Europa, a osteoporose é responsável por mais dano e perda
de anos de vida que a artrite reumatóide, embora menos do que a osteoartrite.

A definição de osteoporose da Organização Mundial de Saúde (OMS) baseia-se


essencialmente na quantificação da densidade mineral óssea (DMO) avaliada por
absorciometria radiológica de dupla energia (DEXA) (Tabela 1). De acordo com esta
classificação, Osteoporose significa DMO, medida por DEXA da coluna lombar ou do
colo do fémur, correspondendo a um índice T < - 2,5, sendo o índice T a expressão em
desvios-padrão da DMO do indivíduo em estudo, por comparação com a DMO de um
grupo jovem do mesmo sexo, correspondente ao grupo etário no pico de massa óssea.
Esta definição é válida para mulheres caucasianas em pós-menopausa.

CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO CLASSIFICAÇÃO


T≥-1 Normal

Osteopénia (baixa
- 2,5 < T < -1
massa óssea)

T ≤ - 2,5 Osteoporose

T ≤ - 2,5 + fractura de fragilidade Osteoporose Grave


Tabela 1: Classificação da Osteoporose (OMS) baseada no Índice T (“T Score). Índice T indica o número de desvios
padrão acima ou abaixo da média de densidade de massa óssea do adulto jovem

O objectivo da medição da densidade óssea é fornecer critérios de diagnóstico,


informação prognóstica quanto a probabilidade de fracturas futuras e uma linha de base
para monitorizar a história natural do doente tratado ou não tratado.

Nas mulheres pré-menopáusicas com factores de risco major para facturas, deve ser
utilizado o índice < -2 para definição de osteoporose (índice >, expressão em desvios-

313
padrão da DMO do indivíduo em estudo por comparação com a DMO de um grupo com
a mesma idade e sexo).

Nos homens com idades entre 50 e 65 anos recomenda-se que o diagnóstico de


osteoporose seja estabelecido quando, para além de índice T < -2,5, existirem outros
factores de risco para fractura.

As mulheres pré-menopáusicas saudáveis e os homens saudáveis com idade inferior a


50 anos, sem factores de risco, não preenchem critérios para realizar DEXA e o seu
resultado não deve ser usado para definir osteoporose.

Factores de Risco para Osteoporose


Em todas as mulheres pós-menopáusicas e todos os homens com mais de 50 anos
deve ser pesquisada a existência de factores de risco para a osteoporose. Na avaliação
clínica devem ser procurados sinais que façam suspeitar da existência de causas para
osteoporose secundaria ou de fracturas vertebrais.

FACTORES DE RISCO MAJOR PARA OSTEOPOROSE


Idade Superior a 65 anos
Fractura osteoporótica prévia
Fractura de fragilidade depois dos 40 anos

História de fractura da anca num dos progenitores

Corticoterapia sistémica (≥5 mg prednisolona ou equivalente durante ≥ 3 meses)

Menopausa precoce (<40 anos)


Hipogonadismo
Hiperparatiroidismo primário
Propensão para quedas aumentada
Tabela 2: Factores de Risco major para Osteoporose

FACTORES DE RISCO MINOR PARA OSTEOPOROSE


Artrite Reumatóide
História de hiperparatiroidismo clínico
Terapêutica crónica com anti-epilépticos

Baixo aporte de cálcio na dieta

Tabagismo activo

Etanolismo (≥3 unidades por dia)


Índice de Massa corporal (IMC) <19 kg/m2
Perda de peso superior a 10% relativamente ao peso do indivíduo aos 25 anos
Terapêutica crónica com heparina
Imobilização prolongada
Tabela 2: Factores de Risco minor para Osteoporose

314
Avaliação de Risco de Fractura
A avaliação clínica na osteoporose pretende determinar a existência de baixa massa
óssea, mas também identificar os indivíduos com elevado risco de fractura. O uso da
massa óssea apenas é insuficiente para determinar em que doentes intervir e, por isso,
têm sido desenvolvidas ferramentas de cálculo de risco como o FRAX®.

O FRAX® é um algoritmo informático (https://www.sheffield.ac.uk/FRAX/) que calcula a


probabilidade aos 10 anos de uma fractura major (anca, coluna, úmero ou punho) e a
probabilidade aos 10 anos de uma fractura da anca.

O risco de fractura é calculado a partir da idade, IMC e factores de risco, como fractura
de fragilidade prévia, história de fractura da anca de um dos progenitores, tabagismo
activo, outras causas de osteoporose secundária e consumo de álcool. A densidade
óssea do fémur pode ser introduzida opcionalmente para aumentar a predição de risco
de fractura (Figura 1).

A probabilidade de fractura difere marcadamente em diferentes regiões do mundo, pelo


que o FRAX® é calibrado para os países onde a epidemiologia de fractura é conhecida.

Actualmente não existe nenhuma política de rastreio universalmente aceite na Europa


para identificar indivíduos com osteoporose ou aqueles com elevado risco de fractura.
Assim, os indivíduos são identificados usando uma filosofia de avaliação caso a caso,
identificando indivíduos com fractura prévia ou que apresentem factores de risco
significativos.

Uma abordagem possível pode compreender a avaliação da probabilidade de fractura e


categorização de risco de fractura usando a idade, sexo, IMC e outros factores de risco
clínicos. Com esta informação apenas, alguns doentes em risco elevado podem ser
tratados mesmo sem avaliação da densidade óssea por DEXA – por exemplo, poder-
se-á tratar uma mulher com uma fractura de fragilidade prévia sem realizar DEXA.
Muitas vezes realizar-se-á a DEXA não para decisão de intervenção, mas para avaliação
basal da densidade óssea e posterior monitorização da eficácia de tratamento.

Assim, pode admitir-se que se deve avaliar o risco de fractura usando FRAX® e realizar
a avaliação de densidade óssea nos seguintes doentes:

• mulheres com mais de 65 anos e homens com mais de 70 anos;


• mulheres pós-menopáusicas com idade inferior a 65 anos e homens com idade
superior a 50 anos se apresentarem um factor de risco major ou 2 minor;
• mulheres pré-menopáusicas e homens com idade inferior a 50 anos, apenas se
existirem causas conhecidas de osteoporose secundaria ou factores de risco
major.

315
Figura 1: Imagem da página https://www.sheffield.ac.uk/FRAX/ onde se pode aceder à ferramenta FRAX® ajustada para
a realidade portuguesa.

Os doentes com probabilidade de fractura acima do limiar de intervenção devem ser


considerados para tratamento (Figura 2).

Figura 2: Avaliação de risco de fractura em países com fácil acesso a DEXA. A DEXA é realizada em mulheres com
factores de risco. Avaliação com DEXA e/ou tratamento não é recomendado onde a probabilidade do FRAX é inferior ao
limiar de avaliação (área verde). A avaliação da densidade óssea é recomendada nos restantes casos e o tratamento é
recomendado quando a probabilidade de fractura excede o limiar de intervenção (linha a tracejado).

316
Abordagem terapêutica geral
Além das medidas farmacológicas, podem ser instituídas alterações do estilo de vida,
hábitos alimentares e actividade física, com vista a modificação de factores de risco para
a osteoporose. Com estas medidas pretende-se manter a massa óssea e prevenir as
fracturas de fragilidade - Tabela 3.

1. Em toda a população
1.1 Alimentação
- assegurar aporte alimentar adequado de cálcio e vitamina D
Cálcio: ingestão diária ≥ 900 mg (limite superior adequado 2500 mg)
Vitamina D: valores mínimos adequados para < 60 anos: 5 ug/dia, ≥60 anos: 10 ug/dia (limite
superior 50 ug/dia)
- manter consumo proteico adequado às necessidades
- evitar consumo excessivo de cafeína, álcool, tabaco e sódio
1.2 Actividade física
- fomentar a prática de exercício/desportos com impacto em crianças e adolescentes;
exercício com carga/impacto em adultos ao longo da vida
2. Mulheres pós-menopáusicas e idosos
- assegurar aporte alimentar adequado de cálcio e vitamina D
- exercícios com carga/impacto
3. Idosos com risco de queda – Prevenção de fractura
- programas de exercício adaptados individualmente: marcha, fortalecimento muscular, treino
de postura e equilíbrio
- utilização de protectores das ancas
Tabela 3: Medidas não farmacológicas para prevenção de osteoporose

Tratamento
O tratamento farmacológico pretende reduzir o risco de fracturas.

Modeladores selectivos dos receptores de estrogénio

Os modeladores selectivos dos receptores de estrogénio (MSRE) são agentes não


esteróides que se ligam ao receptor de estrogénio e actuam como agonistas ou
antagonistas do estrogénio, dependendo do tecido-alvo. O conceito de MSRE surgiu da
observação que o tamoxifeno, um antagonista do estrogénio no tecido mamário, é um
agonista parcial no osso, reduzindo a taxa de perda óssea em mulheres pós-
menopáusicas. O raloxifeno é o único MSRE disponível para a prevenção e tratamento
de osteoporose pós-menopáusica. O raloxifeno previne a perda óssea e reduz o risco
de fracturas vertebrais em 30-50% em mulheres pós-menopáusicas com baixa
densidade óssea e com osteoporose, com ou sem fracturas vertebrais prévias, não
havendo redução significativa em fracturas de outras localizações. Durante o follow-up
do estudo MORE (Multiple Outcomes of Raloxifene Evaluation) verificou-se que o único
efeito adverso, ocorrendo de forma rara, era um aumento de trombose venosa profunda.
Mialgias e afrontamentos eram frequentemente reportados.

317
Bifosfonatos

Os bifosfonatos são análogos estáveis do pirofosfato caracterizados por uma ligação P-


C-P. Foram sintetizados vários bifosfonatos, cuja potência depende do cumprimento e
da estrutura da cadeia lateral. São inibidores potentes da reabsorção óssea e produzem
o seu efeito reduzindo o recrutamento e actividade de osteoclastos, aumentando a sua
apoptose. A biodisponibilidade dos bifosfonatos é baixa, cerca de 1% da dose ingerida,
e está alterada pelos alimentos, cálcio, ferro, café, chá e sumo de laranja. Os
bifosfonatos são rapidamente metabolizados no plasma, sendo que cerca de 50% são
depositados no osso e o remanescente é excretado na urina. A sua semi-vida no osso
é muito prolongada.

As moléculas mais usadas são alendronato (70 mg/semana) e risendronato (35


mg/semana). No estudo Fracture Intervention o alendronato mostrou reduzir a incidência
de fracturas vertebrais, punho e anca em cerca de 50% em mulheres com fracturas
vertebrais prévias. Em mulheres sem fractura prévia, não se verificou diminuição
significativa nas fracturas na população em geral, mas houve redução significativa em
cerca de um terço dos doentes que tinham um T Score de base inferior a – 2,5. O
risendronato mostrou reduzir a incidência de fracturas vertebrais e não vertebrais em
40-50% e 30-36%, respectivamente, em mulheres com fracturas vertebrais prévias.

O ibandronato diário (na dose de 2,5 mg) reduz o risco de fracturas vertebrais em 50-
60%, enquanto que um efeito nas fracturas não vertebrais foi apenas mostrado numa
análise post hoc de mulheres com um T Score basal inferior a -3.

O ácido zolendrónico reduz a incidência de fractura vertebral em 70% e as fracturas da


anca em 40%. A administração de ácido zolendrónico endovenoso pouco após uma
primeira fractura da anca mostrou reduzir o risco de fractura e a mortalidade.

O perfil de segurança dos bifosfonatos é favorável. Os bifosfonatos orais estão


associados a perturbações gastrointestinais ligeiras e alguns aminobifosfonatos
(alendronato e pamidronato) podem causar esofagite, embora seja raro. Os
aminobifosfonatos endovenosos podem induzir uma reacção de fase aguda transitória
com febre e dor óssea e muscular, que melhora ou desaparece após as administrações
subsequentes. A osteonecrose da mandíbula já foi descrita em doentes com neoplasia
a receber elevadas doses de pamidronato ou zolendronato endovenosos. A incidência
em doentes com osteoporose tratados com bifosfonatos orais e endovenosos parece
ser rara (na ordem dos 1/100.000 casos) e a sua relação causal com a terapêutica com
bifosfonatos ainda não foi confirmada.

Péptidos da família da hormona paratiroideia

A produção endógena contínua de hormona paratiroideia (PTH) observado no


hiperparatiroidismo primário ou secundário, ou a sua administração exógena, pode levar
a consequências deletérias para o esqueleto, particularmente no osso cortical. Todavia,
a administração intermitente de PTH (por exemplo, com injecções subcutâneas diárias)
resulta num aumento do número e actividade de osteoblastos,

318
levando a um aumento na massa óssea e a uma melhoria na arquitectura do esqueleto.

A molécula intacta (aminoácidos 1-84) e o fragmento N-terminal 1-34 (teriparatide) são


usados para o tratamento de osteoporose. O uso de qualquer um destes agentes
mostrou reduzir significativamente o risco de fracturas vertebrais, enquanto o
teriparatide mostrou ter um efeito também nas fracturas não vertebrais. As doses
recomendadas são de 20 ug de teriparatide e 100 ug de PTH diariamente, como injecção
subcutânea. O tratamento com PTH foi estudado quando administrado por 18 a 24
meses e os efeitos benéficos nas fracturas não vertebrais com teriparatide parecem
persistir até 30 meses após suspensão da terapêutica.

Os efeitos adversos mais frequentemente reportados em doentes tratados com PTH ou


teriparatide são náuseas, mialgias, cefaleias e tonturas. Nos doentes normocalcémicos,
pode haver ligeira elevação do cálcio sérico de forma transitória; as concentrações de
cálcio sérico atingem um pico máximo entre 4 e 6 horas e regressam ao basal 16 a 24
horas depois de cada toma de PTH ou teriparatide. A elevação é pequena e não é
necessária a monitorização de rotina do cálcio.

A utilização destes fármacos está contra-indicada em condições caracterizadas por


turnover ósseo anormalmente aumentado (por exemplo, hipercalcémia pré-existente,
doenças ósseas metabólicas que não a osteoporose, como hiperparatiroidismo e
Doença de Paget; elevação da fosfatase alcalina, radioterapia prévia ou neoplasias
ósseas activas ou metástases ósseas). A doença renal crónica grave também é uma
contra-indicação.

Ranelato de Estrôncio

O ranelato de estrôncio está indicado no tratamento de osteoporose pós-menopausa,


para reduzir o risco de fracturas vertebrais e da anca. Estudos em animais sugerem que
este fármaco pode interferir no processo de remodelling ósseo; no entanto, o mecanismo
de acção nos humanos permanece pouco claro. Estudos realizados mostraram eficácia
do ranelato de estrôncio em fracturas vertebrais e noutras localizações.

A dose diária recomendada é 2 gramas por via oral. A absorção é reduzida por alimentos
como leite e derivados e, assim, o fármaco deve ser administrado entre refeições;
idealmente, deverá ser tomado ao deitar, pelo menos 2 horas após o jantar. Não é
necessário nenhum ajuste de dose em relação com a idade ou com doença renal ligeira
e moderada (clearance de creatinina 30-70 mL/min). Em doentes com clearance inferior
a 30 mL/min o ranelato de estrôncio não é recomendado.

Os efeitos adversos observados são geralmente ligeiros e transitórios; os mais


frequentes são náuseas e diarreia, geralmente reportados no início do tratamento e que
desaparecem após o terceiro mês. Foi reportado um aumento na incidência de trombose
venosa após uma meta-análise de todos os estudos de fase III na osteoporose. Não foi
ainda estabelecida uma relação causal entre trombose venosa e o uso de ranelato de
estrôncio; ainda assim, o uso deste fármaco em doentes com história prévia de trombose
está contra-indicado. O tratamento deve ainda ser

319
suspenso em doentes em situações de elevado risco para trombose venosa como, por
exemplo, imobilização prolongada sem medidas de prevenção. De referir ainda que
foram reportados casos de reacção alérgica ao fármaco com eosinofilia e sintomas
sistémicos; se ocorrerem lesões cutâneas 2 meses após início do tratamento e se se
verificar esta reacção, deve ser suspenso o fármaco.

Denosumab

Para o processo de diferenciação, activação e sobrevivência de osteoclastos são críticos


o receptor activador do factor nuclear NFkB (RANK); o seu ligando RANKL, um membro
da superfamília do factor de necrose tumoral; e a osteoprotegerina (OPG), que actua
como um receptor de atracção para RANKL. Foi desenvolvido um anticorpo humanizado
contra o RANKL – o denosumab. Este anticorpo mostrou ligar-se especificamente a
RANKL com muito elevada afinidade, prevenindo a interacção com o receptor RANK.

A eficácia anti-fractura de denosumab na dose de 60 mg, administrada por via


subcutânea a cada 6 meses, foi avaliada em mulheres pós-menopausa com
osteoporose. Após 3 anos, houve uma redução de 68% na incidência de novas fracturas
vertebrais. A incidência de fracturas não vertebrais foi reduzida em 20% e fracturas da
anca em 40%. Os efeitos de denosumab no risco de fractura são particularmente
marcados em doentes com elevada probabilidade de fractura.

Os efeitos adversos não aumentaram com a administração a longo prazo de


denosumab. Há referência a ocorrência de osteonecrose da mandíbula.

Tratamentos de combinação ou sequenciais

Estes regimes terapêuticos incluem o uso concomitante ou sequencial de fármacos que


partilhem o mesmo modo de acção (por exemplo, dois ou mais inibidores da reabsorção
óssea) ou agentes com actividades diferentes (por exemplo, inibidor de reabsorção mais
um agente anabólico). Ainda não foi comprovada a sinergia em tratamentos de
combinação; no entanto, há dados que sugerem que a administração de um inibidor de
reabsorção (bifosfonato ou MRSE) após a terapêutica com análogos da PTH mantém
ou mesmo potencia o benefício ósseo observado durante o tratamento anabólico.
Contrariamente a estes dados, a administração prévia de bifosfonatos, particularmente
se associados a maior supressão de turnover ósseo, atrasa ou bloqueia os efeitos da
administração subsequente de bifosfonatos, PTH, denosumab e ranelato de estrôncio.

Outras intervenções farmacológicas


Calcitonina

A calcitonina é uma hormona endógena que inibe a reabsorção óssea osteoclástica. A


calcitonina do salmão é aproximadamente 40 a 50 vezes mais potente que a calcitonina
humana e a maioria dos ensaios clínicos foram realizados com calcitonina

320
de salmão. Para uso clínico, pode ser administrado por injecção ou aplicação nasal,
sendo que esta última formulação fornece uma actividade biológica de 25 a 50% quando
comparada com a formulação injectável (200 IU de calcitonina nasal será equivalente a
50 UI da formulação injectável).

A calcitonina aumenta a densidade mineral óssea de forma modesta na coluna lombar


e antebraço. Provavelmente reduz o risco de fractura vertebral; no entanto, a magnitude
do impacto nestas fracturas permanece questionável. O efeito nas fracturas não
vertebrais permanece pouco clara. A calcitonina pode ainda ter um efeito analgésico em
mulheres com fractura vertebral aguda, efeito esse que parece ser independente do seu
efeito na reabsorção osteoclástica.

Em conclusão, a necessidade de injecções repetidas e os elevados custos da


formulação nasal impedem provavelmente o uso de calcitonina a longo prazo como
primeira linha de terapêutica da osteoporose. As propriedades analgésicas podem, no
entanto, ser uma opção interessante para a dor aguda após uma fractura vertebral.

Terapêutica de substituição hormonal

Os estrogénios reduzem o turnover ósseo acelerado induzido pela menopausa e previne


a perda óssea em todos os locais ósseos, independentemente da idade e da duração
da terapêutica. Resultados de estudos observacionais e estudos randomizados
controlados mostraram que os estrogénios diminuem o risco de fracturas vertebrais e
não vertebrais (incluindo fractura da anca) em cerca de 30%, independentemente da
densidade óssea basal. Quando a terapêutica hormonal de substituição (THS) é
suspensa, a perda óssea regressa ao mesmo ritmo que antes da menopausa, mas a
protecção da fractura persiste por vários anos. No entanto, pensa- se que os riscos a
longo prazo da THS ultrapassam os benefícios. Na avaliação de uma coorte de mulheres
pós-menopausa na sétima década de vida, o uso combinado de estrogénios e acetato
de medroxiprogesterona foi associado a um aumento em 30% de doença coronária e
neoplasia da mama e com aumento em 40% de AVC. Verificou-se ainda um ligeiro
aumento no risco de demência.

Por ora, na ausência de estudos controlados mostrando a segurança a longo-prazo da


TSH, na maior dos países, esta é apenas recomendada para sintomas climatéricos, na
menor dose possível e por um período limitado de tempo.

Derivados da Vitamina D

O calcitriol é usado para o tratamento da osteoporose. Alguns, mas não todos os


estudos, mostram diminuição do risco de fractura vertebral; outros sugerem ainda que
os derivados da vitamina D têm acção directa na força muscular e diminuem a
probabilidade de queda em indivíduos idosos.

O principal problema com o uso de derivados de vitamina D é o risco de hipercalcéemia


e hipercalciúria. Os efeitos adversos de hipercalcémia prolongada incluem lesão renal e
nefrocalcinose. A janela terapêutica estreita implica vigilância frequente de cálcio sérico
e urinário em doentes sob esta terapêutica.

321
Vigilância e monitorização de eficácia de tratamento
A avaliação da densidade de massa óssea pode ser feita periodicamente dependendo
do valor inicial da massa óssea, da idade do doente e se foi instituída terapêutica:

• Em doentes com mais de 65 anos, com primeira DEXA sem alterações, não é
necessário repetir o exame;
• Em mulheres peri-menopausa com primeira DEXA normal, deve repetir-se o
exame pós os 65 anos;
• Em doentes com osteoporose que estejam sob terapêutica dirigida a nova DEXA
não deve ser repetida antes de 18 a 24 meses de terapêutica, podendo ser
realizada após 2 anos. Poderão ser excepções a esta regra doentes sob
corticóides em elevada dose, sob agonistas GnRH e após ooforectomia;
• Se a primeira DEXA mostrou osteopenia, a repetição do exame deverá ser
avaliada caso a caso, dependente da idade do doente e do índice T, embora
deva ser realizada apenas após 3 a 5 anos.

Osteoporose induzida por Corticóides


A osteoporose induzida por corticóides constitui a causa mais frequente de osteoporose
secundária, correspondendo a cerca de 25% de todas as causas de osteoporose.
Metade dos doentes sob corticoterapia por mais de seis meses têm osteoporose e cerca
de um terço desenvolve fracturas se a terapêutica se desenvolver por mais de um ano.

Os corticóides provocam um desequilíbrio no metabolismo de remodelação óssea


normal, aumentando a reabsorção e diminuindo a formação. Além disso, inibem a
produção pelo osso de factores de crescimento, como o insulin-like growth factor 1 (IGF-
1) e o transforming growth factor β (TGF-β) que têm actividade anabólica sobre o tecido
ósseo. Os corticóides reduzem ainda a produção de hormonas sexuais (estrogénios e
androgénios), actuando, directamente, a nível das gónadas ou, indirectamente, inibindo
a produção de gonadotrofinas (FSH e LH). Há ainda diminuição da absorção intestinal
e da reabsorção tubular renal de cálcio.

As doses diárias e cumulativas e o tempo de terapêutica com corticóides são factores


importantes na patogénese da osteoporose. A perda de massa mineral óssea ocorre
mais intensamente a nível do osso trabecular, em 10 a 20% nos primeiros 3 meses de
tratamento, seguida de uma perda mais lenta de cerca de 2% por ano. A nível do colo
do fémur o ritmo de perda de massa óssea é mais lento, em 2-3% no primeiro ano.

Não está esclarecido se existe uma dose mínima de corticóide que seja segura para o
osso – alguns autores determinaram uma dose de 5 mg de prednisolona (ou
equivalente) como limite inferior para dose deletéria para o osso. No entanto, um estudo
retrospectivo posterior documentou um aumento do risco relativo de fractura vertebral
para doses inferiores a 2,5 mg por dia de prednisolona e do risco relativo de fractura do
colo do fémur para doses superiores a 2,5 mg por dia.

322
Nos doentes sob corticóides é fundamental corrigir os factores de risco modificáveis
para osteoporose, adquirir hábitos dietéticos saudáveis, realizar exercício físico regular
e cumprir terapêutica com cálcio e vitamina D, no sentido de prevenir o aparecimento
de osteoporose.

TAKE HOME MESSAGES


A Osteoporose é uma doença do metabolismo do osso.
É necessário saber reconhecer os grupos e factores de risco e avaliar a sua
presença junto dos doentes – deve começar-se por corrigir os factores de risco
modificáveis.
A avaliação da densidade óssea é realizada pela densitometria óssea, podendo o
resultado deste exame indicar a necessidade de instituir terapêutica.
No grupo de doentes com patologia autoimune a Osteoporose induzida por
corticóides tem uma presença significativa, obrigando a uma monitorização e
actuação terapêutica provavelmente mais precoce.

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323
ANEXO I – LISTA DE ANTICORPOS
ANTICORPOS AR LES SAAF SSJ ES DMTC DM PM SAS MNAI MCI DII CBP HAI CEP GPA
Anti-CCP X
Factor
X X X X X
Reumatóide
ANA X X X X X X X X X X
Anti-dsDNA X X X X
Anti-Sm X
Anti-
X
nucleossoma
Anti-histona X
Anti-P
X
ribossómico
Anti-cardiolipina X X X
Anti-β2-
X X X
glicoproteína
Anticoagulante
X X X
lúpico
Anti-U1-RNP X X X
Anti-SSA/Ro X X X X X X X
Anti-SSB/La X X X
Anti-Ro52 X X X X X X
Anti-riboRNP X X X
Anti-Centrómero X X
Anti-Scl 70 X
Anti-Ku X X X X X
Anti-RNA
X X
polimerase III
Anti-PM/Scl X X X
Anti-Th/To X X
Anti-U3-RNP X
Anti-fibrilharina X
Anti-NOR-90 X X X
Anti-Jo1 X X X
Anti-Mi2 X
Anti-SRP X
Anti-cN1A/anti-
X
NT5C1A
Anti-TIF1γ X
Anti-HMGCR X
Anti-MDA5 X
Anti-tRNA
X
sintetase
Anti-Músculo
X X
Liso (ASMA)
Anti-mitocôndria
X
(AMA)
Anti-f-actina X
Anti-LKM1 X
Anti-citosol X
Anti-gp210 X
Anti-sp100 X
Crioglobulinas X
ANCA-C X X
ANCA-P X X X
ASCA X

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