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DE AUTOIMUNIDADE
CENTRO HOSPITALAR UNIVERSITÁRIO LISBOA CENTRAL
MANUAL DO CURSO
edição 2019
ÍNDICE
2
FICHA TÉCNICA
REVISÃO CIENTÍFICA:
Ana Catarina Rodrigues, Ana Margarida Antunes, António Panarra, Carla Noronha,
César Burgi, Filipa Lourenço, Heidi Gruner, Maria Francisca Moraes-Fontes (capítulo
miosites inflamatórias), Nuno Riso, Paulo Barreto, Pedro Mendes Bastos, Sofia Pinheiro,
Vera Bernardino.
DESIGN DO LOGÓTIPO:
Diogo Tavares.
Este manual foi redigido sem o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
3
FILIAÇÃO DOS AUTORES
Ana Lladó
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
Assistente convidada de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Nova de Lisboa
António Panarra
Assistente Graduado Sénior de Medicina Interna, Coordenador da Medicina Interna 7.2,
Unidade de Doenças Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar
Universitário Lisboa Central Assistente convidado de Medicina Interna, Faculdade de
Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa
Carla Noronha
Consultora de Medicina Interna, Coordenadora da Consulta de Doenças Auto-Imunes,
Hospital Beatriz Ângelo e Hospital CUF Descobertas
Mestre em Educação Médica, Universidade Católica Portuguesa
Assistente convidada de Medicina Interna, Faculdade de Medicina da Universidade de
Lisboa
Catarina Costa
Assistente Hospitalar de Medicina Interna, Medicina Interna 2.1, Unidade de Doenças
Auto- Imunes, Hospital de Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar
Univesitário de Lisboa Central
César Burgi
Interno 5.º ano Medicina Interna, Medicina Interna 2.4, Unidade de Doenças Auto-
Imunes, Hospital de Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar Universitário
Lisboa Central
Eunice Patarata
Assistente Hospitalar de Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto- Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário de Lisboa
4
Central
Filipa Lourenço
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 7.2 e Maternidade Alfredo da
Costa, Unidade de Doenças Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar
Universitário de Lisboa Central
Heidi Gruner
Assistente Graduada Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central
Assistente convidada de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Nova de Lisboa
João Oliveira
Assistente Hospitalar de Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças
Auto- Imunes, Hospital de Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar
Universitário Lisboa Central
Marta Moitinho
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças Auto-
Imunes, Hospital Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar Universitário de
Lisboa Central
Nuno Riso
Chefe de Serviço Medicina Interna, Unidade de Doenças Auto-Imunes, Hospital Curry
Cabral – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
Mariana Silva
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças Auto-
Imunes, Hospital Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar Universitário de
Lisboa Central
Paulo Barreto
Consultor Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças Auto-Imunes,
Hospital Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
Assistente convidado de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Nova de Lisboa
Pedro Silva
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Unidade de Urgência Médica, Hospital de São
José – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
Rita Ribeiro
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças Auto-
Imunes, Hospital Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar Universitário Lisboa
Central
5
Rui Malheiro
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Unidade de Doenças
Auto- Imunes, Hospital de Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar
Universitário Lisboa Central
Sara Castro
Assistente Hospitalar de Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto- Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central
Sofia Pinheiro
Assistente Graduada Medicina Interna, Medicina Interna 2.3, Coordenadora da Unidade
de Doenças Auto-Imunes do Hospital Santo António dos Capuchos – Centro Hospitalar
Universitário Lisboa Central
Assistente Convidada de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas,
Universidade Nova de Lisboa
Vera Bernardino
Assistente Hospitalar Medicina Interna, Medicina Interna 7.2, Unidade de Doenças
Auto-Imunes, Hospital Curry Cabral – Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central
Doutoranda em Medicina, Nova Medical School, Universidade Nova de Lisboa
6
NOTA INTRODUTÓRIA
Vera Bernardino
7
ÍNDICE DE SIGLAS
ACR – american college of rheumatology type 1
AINE – anti-inflamatório não esteróide HTP – hipertensão pulmonar
IFI – imunofluorescência indirecta
ALT – alanina aminotransferase IFN - interferão
ANA – anticorpo anti-nuclear IG - imunoglobulina
ANCA – anticorpo anti-citoplasma dos IL - interleucina
neutrófilos IVIg/IgIV– imunoglobulina endovenosa
APC – célula apresentadora de antigénio LCR – líquido cefalorraquidiano
AR – artrite reumatóide LDH – desidrogenase láctica
ARDS – acute respiratory distress syndrome LES – lúpus eritematoso sistémico
ASAS - Assessment of SpondylArthritis LNH – linfoma não Hodgkin
international Society LPS - lipopolissacárido
ASCA - anticorpo anti-Saccharomyces MBG – membrana basal glomerular
cerevisiae MCI – miosite de corpos de inclusão
AST – aspartato aminotransferase MHC – complexo major de
AVC – acidente vascular cerebral histocompatibilidade
AZA – azatioprina MMF – micofenolato de mofetil
BCR – receptor de linfócito B MNAI – miosite necrotizante auto-imune
CBP – cirrose biliar primária MPA – poliangeíte microscópica
CK – creatina quinase MTX – metotrexato
CMV – citomegalovirus NK – natural killer
CRE – crise renal esclerodérmica OCT – tomografia da coerência óptica
CREST – calcinose, Raynaud, dismotilidade PAMP – pathogen associated molecular
esofágica, esclerodactilia, telangiectasias patterns
CU – colite ulcerosa PAN – poliarterite nodosa
CYC - ciclofosfamida PCR – proteína C reactiva
DAI – doenças auto-imunes PET – positron emission tomography
DC – doença de Crohn PFR – provas de função respiratória
DII – doença inflamatória intestinal PM – polimiosite
DIP – doença do interstício pulmonar PsA – artrite psoriática
DM – dermatomiosite PTT – púrpura trombótica trombocitopénica
DMARD – disease modifying antirheumatic ReA – artrite reactiva
drug RMN – ressonância magnética nuclear
DMTC – doença mista do tecido conjuntivo RxT – radiograma torácico
EAI – encefalite auto-imune SAAF – síndrome do anticorpo anti-
EDTA – ácido etilenodiaminotetracético fosfolípido
EGPA – granulomatose eosinofílica com SAM – síndrome de activação macrofágica
poliangeíte SAS – síndrome anti-sintetase
ELISA - Enzyme-linked immunosorbent SLICC - Systemic Lúpus International
assay Collaborating Clinics
EM – esclerose múltipla SNC – sistema nervoso central
EMG – electromiograma SNP – sistema nervoso periférico
EnA – artrite enteropática SPR – síndrome Pulmão-Rim
EPO - eritropoietina SSj – síndrome de Sjögren
EPP – electroforese de proteínas plasmáticas SSZ - sulfassalazina
ES – esclerose sistémica TCR – receptor de linfócito T
ETE – ecocardiograma transesofágico TILT – tilt table test – teste de inclinação
ETT – ecocardiograma transtorácico TLR – Toll-like-receptors
EULAR – European League Against TNF – tumor necrosis factor
Rheumatism TPMT – tiopurina metiltranferase
FR – fenómeno de Raynaud UCI – unidade de cuidados intensivos
GI – gastrointestinal UD – úlcera digital
GN – glomerulonefrite UV – ultra-violeta
GPA – granulomatose com poliangeíte VHB – vírus da hepatite B
HAI – hepatite auto-imune VHC – vírus da hepatite C
HC – hidratos de carbono VIH – vírus da imunodeficiência humana
HCQ - hidroxicloroquina VS – velocidade de sedimentação
HLA – human leukocyte antigen VZV – vírus da Varicella Zoster
HTLV1 – human T-lymphotropic vírus
8
PARTE I – INTRODUÇÃO ÀS
DOENÇAS AUTOIMUNES
1. REVISÕES DE IMUNOLOGIA BÁSICA
Introdução
10
Fig. 2: Resposta do sistema imunitário inato e adapatativo. Retirado de
https://step1.medbullets.com/immunology/105041/innate-vs-adaptive-immunity, consultado a 1.3.2019.
Imunidade inata
A imunidade inata é composta por 4 barreiras defensivas: anatómica, eliminação mecânica,
barreiras fisiológicas e químicas – Tabela 2.
11
TIPO FUNÇÃO
Na camada epidérmica da pele:
Tight junctions impermeabiliza e bloqueia raios UV
Barreira Na derme: contém ácidos gordos que
anatómica/física Glândulas sub-cutâneas mantém pH entre 3 e 5
Tabela 2: Barreiras intrínsecas do sistema imune inato. Adaptado de Marshal J, Warrington R, Watson W. Na introduction to
immunology and immunolopathology. 2018;14(2): 49.
Figura
3: Vias do Complemento, de forma simplificada. MBL: mannose-binding lectin; MAC: membrane attack complex. A: Leslie M.
Immunology. The New View of Complement. Science 2012;337(6098):1034-7. B: Mathern D and Heeger P. Molecules Great
and Small: The Complement System. Clin J Am Nephrol 2015;10:1636-1650.
13
Figura 4: Células do Sistema Imunitário. Modificado a partir de Mikael Haggstrom CC BY-SA 3.0.
Tipo de % em Principais
Imagem Núcleo Funções Duração
Célula adultos alvos
Fagocitose Meses a
Macrófago Variável Variável
APC aos linf. T anos
Vários
Fagocitose Bactérias
Neutrófilo 40-75% Multi-lobado
Desgranulação
6h a dias
Fungos
Desgranulação
8-12 dias
Liberta enzimas, Parasitas
Eosinófilo 1 – 6% Bi-lobado (circula 4-5
factores de crescimento Alergenos
h)
e citocinas
Semi-vida
Desgranulação
Bi ou tri- entre
Basófilo <1%
lobado
Libertação de histamina,
horas a
Alergenos
enzimas e citocinas
dias
Desgranulação
Frequente Parasitas
Central, Libertação de Meses a
Mastócito nos
monolobado histaminas, enzimas, anos
Alergenos
tecidos
citocinas
14
Células Th:
Células T helper (CD4+): bactérias
mediadores de resposta intracelulares
Fortemente
Linfócitos imune Semanas Células T
20 – 40% corado e
(T) Células T citotóxicas a anos citotóxicas:
excêntrico
(CD8+): destruição células tumorais
celular ou infectadas por
vírus
Diferenciam-se em
Forma de Horas a
Monócito 2 – 6% macrófagos e células Vários
rim dias
dendríticas
Rejeição tumoral
Destruição de células
~15% dos Vírus
Natural infectadas
linfócitos Monolobado 7 – 10 dias Tumores
Killer Libertação de perforinas
circulantes
e granzimas1 que
induzem apoptose
Tabela 3: Características e funções das células envolvidas na imunidade inata. Adaptado de Marshall J, Warrington R,
Watson W et al. An introduction to immunology and immunopathology. Allergy Asthma Clin Immunol. 2018; 14(2):49.
Imunidade adaptativa
A imunidade adaptativa complementa a imunidade inata e é fundamental quando esta é
ineficaz. As principais funções da imunidade adaptativa são o reconhecimento de antigénios
específicos extrínsecos ao hospedeiro (“non-self”), distingui-los dos antigénios próprios do
hospedeiro (“self”), a geração de vias efectores específicas para cada antigénio ou célula
infectada por antigénio, e o desenvolvimento de memória imunológica, que rapidamente
elimine um patogénio específico num contacto subsequente.
A resposta adaptativa imune é a base para uma imunização eficaz contra doenças infecciosas.
As células da imunidade adaptativa incluem: linfócitos T específicas de antigénio, activadas
após o contacto com células APC, e os linfócitos B, que se diferenciam em plasmócitos, que
produzem anticorpos – Figs. 5 e 6.
Figura 5: Células da imunidade adaptativa. Retirado de Macmillan Publishers Ltd: Nature Reviews Cancer, 4, 11-22, copyright 2004.
1
Granzimas: proteínas que provocam lise na célula alvo.
15
Figura 6: Activação celular do sistema imune adaptativo. Retirado de http://www.pathophys.org/immunology/, consultado em
1.3.2019.
16
agentes externos, como vírus, e células tumorais. As células Th CD4+ são activadas pelo MHC
II e são importantes para estabilizar e maximizar a resposta imune, uma vez que, após
activadas por reconhecimento TCR, libertam citocinas que vão depois activar outras células.
Figura 7: Complexos MHC I e II. A: As células MHC I encontram-se em todas as células nucleadas do corpo, enquanto que as
células MHC II apenas estão em macrófagos, células dendríticas e linfócitos B. B: Uma célula dendrítica fagocita a parede
bacteriana e forma um fagossoma. Os lisossomas fundem-se com o fagossoma e criam um fagolisossoma, onde enzimas anti-
microbianas degradam a parede bacteriana. As protéases processam os antigénios bacterianos e a maioria dos epitopos
antigénicos são selecionados e apresentados na superfície celular, em conjunto comas moléculas MHC II. Os linfócitos T
reconhecem as APC e ficam assim activados. Imagem obtida em OpenStax CNX.
Tabela 4: Classificação, função e principais interleucinas libertadas pelos linfócitos Th CD4+. Retirado de
http://www.pathophys.org/immunology/, consultado a 1.3.2019.
Quando as células Th são induzidas por APC, podem responder por diferenciação de outras
células, sendo as mais frequentes a Th1, Th2 e Th 17 – Tabela 4. As células Th1 produzem
IFN-γ, que acciona a actividade bactericida dos macrófagos e estimula a imunidade anti-viral.
As citocinas produzidas por estas células permitem também a diferenciação de células B e a
opsonização de anticorpos. Uma resposta inapropriada destas células está associada ao
aparecimento de doenças autoimunes.
A resposta das células Th2 consiste na libertação de citocinas (IL-4, IL-5 e IL-13), envolvidas
no desenvolvimento de anticorpos produtores de imunoglobulina E, no recrutamento de
mastócitos e eosinófilos, que participam, por exemplo nas respostas inflamatórias agudas
observadas na alergia e na asma. É a este desequilíbrio nas citocinas produzidas pelas células
Th2 que estão associadas as condições atópicas.
As células Th17 estão associadas à produção de citocinas da família IL-17 e estão associadas
a respostas inflamatórias crónicas.
Um subtipo de linfócitos T CD4+, conhecido como linfócitos T reguladores (T reg)
17
desempenham um importante papel na resposta imune, uma vez que controlam respostas
aberrantes de auto-antigénios e o desenvolvimento de doenças autoimunes – Fig.8.
Figura 8: Funcionamento dos linfócitos T reguladores. Os linfócitos T reg são fundamentais para manter a tolerância
periférica, evitar doenças autoimunes e limitar as doenças inflamatórias crónicas. A partir de Vignali D, Collison L and Workman
C. How regulatory T cells work. Nat Rev Immunol 2008;8:523-532.
Linfócitos B
Os linfócitos B derivam também de stem cells hematopoiéticas da medula óssea e, após
deixarem a medula, expressam apenas um tipo de receptor de ligação a antigénio na sua
membrana, BCR. Ao contrário dos linfócitos T, os linfócitos B podem reconhecer directamente
um antigénio, sem necessidade de APC. Para além disso, os próprios linfócitos B podem
actuar como APC.
A principal função dos linfócitos B é a produção de anticorpos dirigidos a antigénios
extrínsecos que exijam posterior diferenciação. Quando são activados, os linfócitos B passam
por um processo de proliferação e diferenciação em plasmócitos produtores de anticorpos e
linfócitos B memória. Estas células sobrevivem a infecções passadas e continuam a expressar
receptores de ligação a antigénio, actuando rapidamente num novo episódio de exposição.
Estes anticorpos entram em circulação e fornecem protecção eficaz contra os patogénios. Os
plasmócitos têm uma semi-vida curta e sofrem apoptose quando o agente indutor de resposta
imune é eliminado.
Dada a sua função na produção de anticorpos, os linfócitos B desempenham um papel
fundamental na resposta imunitária, denominada humoral ou mediada por anticorpos, por
oposição à resposta imune mediada por células, primeiramente produzida por linfócitos T.
Figura 9: Diferenciação dos linfócitos B e produção de anticorpos. Após a sinalização no microambiente envolvente, os
linfócitos B naïves são activados e podem inicialmente diferenciar-se quer em plasmócitos secretores de anticorpos extra-
foliculares, de curta duração, ou podem permanecer no centro germinativo, onde sofrem hipermutação somática da região variável
da imunoglobulina, e só os linfócitos B com grande afinidade é que são selecionados para se diferenciarem em linfócitos B
memória, de longa duração, ou plasmócitos capazes de produzir outros tipos de isótipos de imoglobulinas, incluindo os isótipos
IgG, IgA e IgE. Moens L and Tangye S. Cytokine-mediated regulation of plasma cell generation: IL-21 takes center stage. Front
Immunol 2014;5:65.
19
Tabela 4: Tipos de imunoglobulinas e respectivas características. Retirado de https://microbiologyinfo.com/antibody-
structure-classes-and-functions/, consultado em 3.3.2019.
20
Figura 10: Principais diferenças no mecanismo de acção do sistema imunitário humoral e do sistema imunitário
mediado por células.
Autoimunidade
A autoimunidade é definida como um fenómeno através do qual anticorpos ou linfócitos T
reagem contra auto-antigénios, que quando se mantêm ao longo do tempo provocam doenças
autoimunes.
O sistema imunitário desenvolveu múltiplos mecanismos para controlar a auto-reactividade,
mas uma falha nalgum destes mecanismos pode levar à perda de tolerância imunitária, central
e periférica. O estímulo inicial para desenvolver doenças autoimunes (DAI) sistémicas ou
especificas de órgão envolve o reconhecimento de moléculas do self ou exteriores por
sensores inatos. Este reconhecimento, por seu torno, desencadeia uma resposta inflamatória,
que envolve linfócitos B e T auto-reactivos, previamente quiescentes.
As DAI podem ser específicas de órgão, como a diabetes tipo I, a esclerose múltipla ou a
miastenia gravis; ou sistémicas, como o lúpus eritematoso sistémico (LES), a artrite
reumatóide (AR) ou a síndrome de Sjögren (SSj).
Predisposição Genética
A maioria das DAI apresenta heterogeneidade clínica, decorrente de natureza poligénica e de
uma contribuição multifactorial, que envolve factores genéticos e ambientais. Há loci genéticos
transversais a várias doenças, que expressam com frequência genes relacionados, sugerindo
mecanismos comuns, embora o risco específico de cada alelo dentro de um locus varie
consoante a doença. De entre os factores de predisposição genética, encontram-se alguns
haplótipos de MHC, que exercem as associações mais fortes entre a maioria das DAI. No
entanto, outros genes têm sido frequentemente implicados, como PTPN22, CTLA4, IL23R e
21
TYK2. Algumas DAI monogénicas raras foram também identificadas, apresentando mutações
nos genes AIRE, FOXP3, IFIH1, DNASE1, TREX1, C1Q ou C4A.
22
Figura 11: Escape de linfócitos T e B à tolerância central e periférica. Durante a diferenciação, os precursores dos linfócitos
T e B com auto-reactividade são positivamente selecionados no córtex do timo e na medula óssea, respectivamente, e os que
apresentam baixa avidez para o self são exportados para a periferia. Por outro lado, os linfócitos T auto-reactivos com alta
afinidade para auto-antigénios expressos pelas células epiteliais da medula do timo, sob o controlo dos genes AIRE ou FEZF2,
são eliminados ou diferenciam-se em linfócitos Treg, enquanto que os linfócitos B auto-reactivos são eliminados ou o seu receptor
é editado – teoria convencional da delecção clonal. A tolerância central, contudo, é incompleta e alguns linfócitos T e B são
enviados para a periferia. Estas células são normalmente controladas por mecanismos de tolerância periférica, incluindo
moléculas inibitórias, anergia e supressão pelas células Treg. No entanto, em indíviduos geneticamente predispostos, uma lesão
tecidular, inflamação e a apresentação de neo auto-antigénios crípticos e sequestrados, ou mesmo mimetismo molecular, de
alguns microorganismos provoca uma quebra na tolerância e aparecimento de autoimunidade. Retirado de Theofilopoulos A,
Kono D and Baccala R. The Multiple Pathways to Autoimmunity. Nat Immunol. 2017;18(7): 716-724.
23
funcional. Alguns destes linfócitos podem converter-se em linfócitos Treg, que por sua vez vão
provocar anergia de linfócitos T CD4+ patogénicos, inibindo deste modo a autoimunidade. No
entanto, a anergia dos linfócitos T tem curta duração e pode ser revertida em certas condições
inflamatórias.
Os linfócitos B passam por um estado de anergia em resposta aos autoantigénios solúveis e
à delecção clonal em resposta a autoantigénios mais fortes, como os que surgem na superfície
celular da medula óssea, onde se diferenciam. Os linfócitos B que reagem fortemente com
antigénios solúveis, como as moléculas do self do centro germinativo dos tecidos periféricos
são também eliminadas por apoptose. Nos linfócitos B ocorre também a edição do receptor,
nos quais os linfócitos B que reagem com um autoantigénio transformam o gene do receptor
antigénico (imunoglobulina) uma outra vez para o transformar noutro receptor não-auto-
reactivo. Os linfócitos B em estado anérgico não são eliminados e podem também servir como
potencial reservatório de células auto-reactivas.
Os linfócitos B e T que escapam para a periferia podem também ficar quiescentes por um
processo de ignorância aos antigénios dos tecidos sequestrados antes das barreiras
anatómicas, ficando deste modo não-tolerantes e não-respondedores. No entanto, este
processo pode ser revertido por agentes infeciosos ou outras causas de dano tecidular.
Figura 12: Vias pelas quais os sensores dos ácidos nucleicos externos ou do self promovem a autoimunidade. Retirado
de Theofilopoulos A, Kono D and Baccala R. The Multiple Pathways to Autoimmunity. Nat Immunol. 2017;18(7): 716-724.
O microbioma e a autoimunidade
O microbioma consiste num ecossistema composto por microorganismos que residem nas
mucosas e na pele, numa relação de mútuo benefício com o hospedeiro, e que influenciam
numerosos processos fisiológicos, como a evolução do organismo, a longevidade, o
metabolismo e o desenvolvimento do sistema imunitário. Quando há distúrbios neste
ecossistema, a chamada disbiose, podem surgir inúmeros processos patológicos, que incluem
as doenças autoimunes. Exemplos clássicos são as DII, que incluem a doença de Crohn e a
colite ulcerosa, cujos indivíduos apresentam menor concentração de subtipos benéficos de
Clostridia e Bacteroides fragilis. A fermentação de fibras dietéticas por alguns clusters de
Clostridia exerce funções anti-inflamatórias, como a geração de linfócitos Treg periféricos;
25
alguns subtipos de B.fragilis produzem polissacárido A capsular, que fornece imunoprotecção
através da indução de linfócitos Treg produtores de IL-10. Os doentes com DII apresentam
também aumento de Escherichia coli e outras estirpes bacterianas com propriedades de
adesão ao epitélio que promovem uma resposta inflamatória mediada por linfócitos Th17.
As alterações do microbioma estão também relacionadas com a origem da diabetes tipo 1,
sendo que em países com aparecimento precoce desta doença as bactérias dominantes no
cólon produzem um lipopolissacárido imunoinibidor, enquanto que nos países em que a
diabetes tipo 1 não é tão prevalente, o microbioma apresenta bactérias com LPS
imunoestimulador. Estes resultados sugerem que a estimulação da imunidade inata precoce
pode reduzir a predisposição para DAI e fornecer uma potencial explicação para o mecanismo
subjacente à “hipótese higiénica” da autoimunidade – Fig.13.
A disbiose também está implicada em doenças fora do aparelho GI, como síndromes
neurológicas, quadros de ansiedade, enxaqueca, depressão, doenças neurodegenerativas e
neuroinflamatórias. Estão também descritos casos associados à AR, artrite reactiva, artrite
psoriática e espondilartropatias.
É importante ressalvar que grande parte da evidência científica a este respeito foi obtida a
partir de modelos animais – Fig. 14. No caso dos humanos, há várias limitações na
interpretação das alterações do microbioma, uma vez que o microbioma intestinal é altamente
dinâmico, apresenta flutuações diárias cíclicas, relacionadas com ritmos circadianos, e várias
taxas de crescimento bacteriano, sendo ainda afectado pelos hábitos alimentares e
medicamentosos.
Género e Autoimunidade
Há uma prevalência muito maior das DAI no género feminino. Contribuem para este facto as
hormonas gonadotróficas e os efeitos directos do cromossoma X.
Depois da puberdade, a contribuição das hormonas sexuais torna-se mais evidente, sugerindo
que os estrogénios estimulam e os androgénios inibem as respostas imunes e a
autoimunidade, pelo menos em modelos de ratinhos com predisposição para LES. As
hormonas femininas exercem vários efeitos, como a expressão de múltiplos genes
imunologicamente-relevantes, incluindo citocinas e moléculas sinalizadoras de TLRs. Os
estrogénios também interferem com a tolerância dos linfócitos B e a tolerância dos linfócitos T
poderá também estar afectada, uma vez que a expressão do gene AIRE no epitélio do timo é
inibida pelos estrogénios e estimulada pelos androgénios.
As hormonas sexuais e o microbioma também se influenciam mutuamente, sendo que as
diferenças de género na composição do microbioma também poderão contribuir para este viés
de género na autoimunidade.
A contribuição directa do cromossoma X ocorre essencialmente através de três mecanismos:
escape à inactivação pelo cromossoma X, perda de mosaicismo e aneuploidia. Os diferentes
graus de activação tecidulares, as variações individuais e étnicas, que expressam diferentes
tipos de activação e regulação imune, fazem com que o viés feminino não seja uniforme em
todas as DAI.
26
Figura 13: Potencial ligação entre o microbioma e o Lúpus Eritematoso Sistémico. SLE: Systemic lupus erythematosus, UV:
Ultraviolet, RNA: ribonucleic acid, DNA: deoxyribonucleic acid, dsDNA: double strand DNA, Ab: antibody, IC: Immune complex,
Th: T helper, Treg: Regulatory T-cell, DC: Dendritic cell, IL: Interleukin, IFN: Interferon, TNF-α: Tumor necrosis factor α, SCFA:
Short chain fatty acid, LPS: Lipopolysaccharide, LTA: Lipoteichoic acid, TLR: Toll like receptor, IgM anti-PC: Immunoglobulin M
anti-phosphorylcholine, PUFA: Polyunsaturated fatty acid, Vit: vitamin, HLA-DR: Human leukocyte antigen-DR isotype, PTPN22:
Protein tyrosine phosphatase, non-receptor type 22. Retirado de Saadat YR, Hejazian M, Bastami M et al. The role of microbiota
in the pathogenesis of lupus: Dose it impact lupus nephritis? Pharmacol Res. 2019 Jan;139:191-198.
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Yamamoto K. Mechansms of Autoimmunity – Recent Concept. JMAJ. 2004;47(9):403-406.
29
2. SEMIOLOGIA NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES
Introdução
As doenças auto-imunes (DAI) abordadas neste manual têm um carácter sistémico e,
como tal, podem apresentar simultaneamente sinais e sintomas de órgãos diferentes,
alguns deles comuns a patologias com outra etiologia, outros mais específicos, que
podem vir a sinalizar doença sistémica grave. A abordagem semiológica neste contexto
será necessariamente redutora. Tentaremos enunciar semiologia específica e
inespecífica das DAI, organizadas por sistemas de órgãos, introduzindo definições
simples de alguns conceitos e aprofundando um pouco mais outros que nos pareçam
relevantes.
SINTOMAS GERAIS
Os doentes podem apresentar sintomas gerais e inespecíficos, transversais a muitas
das doenças auto-imunes descritas neste manual. Entre eles estão a perda ponderal,
febre, hipersudorese nocturna, adenomegálias, astenia e adinamia. A exclusão de
doença linfoproliferativa ou infecção latente subjacentes, como tuberculose ou infecção
pelo VIH, são fundamentais para uma marcha diagnóstica adequada.
30
cicatrizam num espaço de 10 a 30 dias e deixam cicatriz em 60% dos doentes.
Estão associadas à Doença de Behçet.
Figura 1: A: Úlceras Orais (From 2015 ACR/ARHP Annual Meeting); B: Úlcera GenitaI no escroto(Borlu et al.
International Journal of Dermatology, 2016); C: Patergia (Ozkaya, et al. Research Gate, 2012).
31
pilosidade corporal. Classifica-se em areata, androgénica, cicatricial, universal e
de tracção. É importante não confundir com a perda capilar sazonal
(eflúvio/deflúvio). Está frequentemente associada ao Lúpus Eritematoso
Sistémico, embora também ocorra em situações de ansiedade.
Figura 3: Calcinose universalis em doente com dermatomiosite. A: Pormenor de cotovelo; B: Nódulos de calcinose no
radiograma de cotovelo correspondente; C: Nódulo e placa de calcinose no 1.º dedo da mão direita; D: Nódulo e placa
de calcinose no respectivo radiograma de mão. Cortesia Unidade de Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral.
Figura 4: A: Pápulas de Gottron (Garcia-Cruz A, NEJM 2010); B: Heliotropo (Vanessa Ngan); C: Microstomia (Cortesia
Unidade de Doenças Auto-Imunes Hospital Curry Cabral).
32
● Microstomia – redução da cavidade oral, avaliada no eixo vertical, observada
por vezes nos doentes com Esclerose Sistémica com envolvimento da face, por
fibrose progressiva e reabsorção dos tecidos peri-orais.
Figura 5: A: Sinal de Holster (From Remedica Journals); B: Nódulos Reumatóides (From visualdx.com); C: Nódulos
Reumatóides (Christopher Kelsey).
APARELHO MUSCULOESQUELÉTICO
As alterações músculo-esqueléticas são particularmente frequentes nas patologias
abordadas neste manual. Deste modo, e não sendo todos os sinais e sintomas de
seguida enunciados específicos das doenças auto-imunes mas compondo parte da
semiologia a considerar no diagnóstico diferencial, impõe-se nomear e esclarecer
alguns destes achados semiológicos: artrite, artrose, artralgia, rigidez matinal,
lombalgia, gonalgia, gonartrose, sacro-ileíte, nódulos de Heberden, nódulos de
Bouchard, dactilite, entesite, bursite, mialgia, miosite, fadiga proximal, condrite,
anquilose, espondilartrite.
33
poliartrite (mais de 4 articulações). A sua descrição pode ainda incluir ritmo
migratório, aditivo, intermitente; carácter uni/bilateral, simétrico/assimétrico;
duração aguda/crónica. Pode ter diferentes etiologias dentro do espectro
inflamatório: auto-imune (ex.: Artrite Reumatóide, Lúpus Eritematoso Sistémico),
paraneoplásico, reactiva, infecciosa ou micro-cristalina.
34
coxas e que costuma durar mais de um dia. Considera-se “aguda” se a duração
for inferior a 6 semanas, “sub-aguda” se de 6 semanas a 3 meses, “crónica” se
durar mais de 3 meses. Pode ter diferentes etiologias, como osteofitose, prolapso
de disco intervertebral, infecção, espondilartropatia, fractura ou neoplasia.
Figura 7: Nódulos de Heberden e Bouchard. (A: Priscilla D’Agostino; B: A. Poinier, M. Shoor, Healthwise).
35
costuma ser positiva. Presente na Polimialgia Reumática, Polimiosite e
Dermatomiosite.
36
distinção a presença ou ausência de doença associada à síndrome acral. O FR
secundário está associado a doenças, como a Esclerose Sistémica, Lúpus
Eritematoso Sistémico, Doença Mista do Tecido Conjuntivo, Síndrome de
Sjögren, Dermatomiosite, Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido, entre outras
(Tabela 2). No entanto, alguns autores sugerem que o FR, mesmo sem estar
associado a outra doença, não poderá ser classificado como primário se estiver
relacionado com complicações clínicas (necrose ou gangrena), alterações
analíticas (elevação da velocidade de sedimentação ou presença de auto-
anticorpos) ou capilaroscópicas.
Figura 8: Fisiologia do Fenómeno de Raynaud (Cortesia Creager MA: Raynaud’s phenomenon. Med Illus 2:84, 1983)
Figura 9: A: Fenómeno de Raynaud (Gayle Porter, 2015); B: Acrocianose nos dedos dos pés (Waikato District Health
Board, 2015); C: Cianose Pavilhão Auricular (DermNet New Zeland).
37
CAUSAS DE FENÓMENO DE RAYNAUD
NEUROLÓGICAS: polineuropatia
38
Figura 10: Representação esquemática de Livedo Reticularis, Livedo Racemosa e Púrpura Retiforme (Sepp N. Other
vascular disorders. In: Bolognia JL, Jorizzo J, Rapini RP. Dermatology. London: Mosby; 2003. p. 1651-9.)
Figura 11: A: Livedo Reticularis (Golderman SA, 2000); B: Livedo Racemosa (Jan R. Mekkes); C: Eritromelalgia (Khalid
F, et al. Case Reports in Medicine, 2012, Article ID 616125)
39
● Eritrocianose – condição provocada pela exposição ao frio, frequente em
mulheres jovens, caracterizada por edema dos membros e aparecimento de
lesões eritemato-violáceas.
Figura 12: A: Úlcera Digital (Abraham S and Steen V. Therapeutics and Risk Management, 2015); B: Ulceração e
isquémia digital com gangrena distal em vários dedos (Chatterjee S. Rheumatology and Immunology, 2014); C: Pitting
Scars (Mekkes JR, 2015).
● Pitting Scars – cicatrizes fibróticas ao nível da polpa dos dedos, que não
reabsorvem, correspondendo úlceras digitais prévias. Frequentes na Esclerose
Sistémica e Doença Mista do Tecido Conjuntivo.
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● Esclerodermia – designação de esclerose cutânea utilizada para descrever
doença com progressivo espessamento cutâneo e induração. Faz parte da
semiologia da Esclerose Sistémica.
Figura 13: A: Puffy fingers (Senthivel and Adebambo, Hospital Physician, 2009); B: Esclerodactilia (Cortesia Unidade de
Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral); C: Esclerodactilia (Mekkes, J.R.).
Figura 14: Eritema Nodoso (A: Cortesia Unidade de Doenças Auto-Imunes Hospital Curry Cabral; B: Schwartz and
Nervi, American Family Physician, 2007; C: Kay Shou-Mei et al, Color Atlas & Synopsis of Pediatric Dermatology,
McGraw/Hill, 2002).
ALTERAÇÕES HEMATOLÓGICAS
Nas doenças auto-imunes surgem com frequência alterações hematológicas, como
anemia, leucopénia/leucocitose ou trombocitopénia/trombocitose. Podem surgir em
simultâneo, como as citopénias que ocorrem no Lúpus Eritematoso Sistémico, por
exemplo, ou em separado. Por vezes, estas alterações são apenas reactivas, reflexo da
situação inflamatória sistémica inerente. Assim sendo, podem surgir achados
semiológicos inespecíficos como a púrpura, hepatomegália, esplenomegália; cansaço,
hipersudorese nocturna, perda ponderal, adenomegálias. Mais uma vez, o diagnóstico
diferencial impõe a exclusão de doenças linfoproliferativas e infecções latentes.
ALTERAÇÕES GASTROINTESTINAIS
O aparelho gastrointestinal (GI) também sofre acometimento por diferentes doenças
auto-imunes. Por exemplo, na Doença Inflamatória Intestinal (Doença de Crohn e Colite
Ulcerosa), podem surgir alterações ao longo do tracto GI: anorexia, úlceras orais, cólica
abdominal, diarreia, hematoquézias, dejecções de pus, rectorragias, tenesmo e falsas
vontades. Na Esclerose Sistémica, no contexto da dismotilidade
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esofágica, podem surgir queixas de disfagia, pirose ou enfartamento precoce; na
Síndrome de Sjögren é frequente a xerostomia. Na Colangite Esclerosante pode surgir
icterícia, colúria, acolia e dor abdominal; na Hepatite Auto-imune pode surgir anorexia,
náuseas, vómitos e icterícia.
Figura 15: A: Língua despapilada por xerostomia (from medscape.com); B: Úlceras Orais na Doença de Crohn
(Rehberger et al. European Journal of Dermatology, 1998).
ALTERAÇÕES OFTALMOLÓGICAS
As Doenças Auto-Imunes, enquanto doenças sistémicas, afectam com frequência o
globo ocular (Tabela 4). As manifestações mais frequentes são a uveíte, a esclerite, a
blefarite, a queratite, a xeroftalmia, a exoftalmia e a catarata.
42
simples e indolor, a esclerite necrotizante destrutiva, dolorosa, que pode até
conduzir à cegueira.
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ALTERAÇÕES DO SISTEMA NERVOSO
As alterações do Sistema Nervoso (SN) associadas às DAI serão alvo de um capítulo
próprio, mais adiante neste manual. O SN pode ser afectado por doenças sistémicas ou
doenças específicas de orgão, sendo que há semiologia transversal a estas diferentes
patologias. A Esclerose Múltipla, enquanto síndrome desmielinizante crónica, manifesta-
se por desequilíbrio, alteração da marcha, fadiga muscular, incontinência, diplopia,
alteração da acuidade visual ou alterações de memória. A Miastenia Gravis, que atinge
o músculo esquelético, provoca miopatia, que se pode repercutir em dispneia, disfagia,
disartria, parésia muscular, cansaço. O Lúpus Eritematoso Sistémico pode atingir o
sistema nervoso central (SNC) (alterações cognitivas, psicose, convulsões, mielopatia
transversa, coreia, mielite); a Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido pode provocar
acidentes vasculares cerebrais em qualquer segmento arterial ou venoso do SNC; as
vasculites, enquanto grupo heterogéneo, podem atingir o sistema nervoso central ou
periférico; a Síndrome de Sjögren está associada a disautonomia secundária.
ALTERAÇÕES PSIQUIÁTRICAS
As doenças que afectam o sistema nervoso central podem ter repercussão no
comportamento dos doentes. Por exemplo, o Lúpus Eritematoso Sistémico está
associado a episódios psicóticos. No entanto, os doentes com DAI têm habitualmente
queixas de ansiedade, depressão, irritabilidade e perturbação do sono. Alertamos para
um efeito secundário a doses elevadas de corticoterapia, a mania, sendo importante o
reconhecimento e intervenção precoces.
ALTERAÇÕES CARDÍACAS
O coração pode ser afectado por várias formas: fibrose miocárdica (Esclerose
Sistémica), provocando alterações do ritmo cardíaco, com palpitações, síncope,
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taquicardia e mesmo assistolia; enfarte agudo do miocárdio (Síndrome do Anticorpo
Anti-fosfolípido, Vasculites), com pré-cordialgia, hipersudorese, náuseas, insuficiência
cardíaca; envolvimento de serosas, nomeadamente, o pericárdio (Lúpus Eritematoso
Sistémico, Síndrome de Sjögren, Artrite Reumatóide), com toracalgia, cansaço e
dispneia; endocardite de Libman-Sacks (Lúpus Eritematoso Sistémico). Recentemente
tem sido destacada a relação entre a inflamação sistémica e a aterosclerose coronária,
situação que se poderá repercutir posteriormente em eventos isquémicos agudos.
ALTERAÇÕES ENDOCRINOLÓGICAS
A associação entre doenças auto-imunes (DAI) é frequente, em particular, a Tiroidite de
Hashimoto associada, por exemplo, ao Lúpus Eritematoso Sistémico. As DAI
endocrinológicas raramente surgem em simultâneo e a sua semiologia é importante
para realizar o diagnóstico (intolerância ao frio ou ao calor, alterações do trânsito
intestinal, do peso ou do ritmo de sono); são exemplos a Doença de Graves e a Diabetes
tipo 1, cada uma com as suas manifestações particulares. Será pertinente destacar
ainda a síndrome de Cushing secundária à corticoterapia, terapêutica habitualmente
utilizada nas DAI.
ALTERAÇÕES OBSTÉTRICAS
As complicações obstétricas podem surgir sobretudo associadas ao Lúpus Eritematoso
Sistémico (eclâmpsia, pré-eclâmpsia, aborto espontâneo, atraso de crescimento intra-
uterino), à Síndrome Anticorpo Anti-fosfolípido (morte fetal in útero, abortos de
repetição) e à Síndrome de Sjögren (malformações cardíacas congénitas).
Conclusão
As Doenças Auto-Imunes são doenças frequentes e apresentam sintomas por vezes
inespecíficos, comuns a outras doenças sistémicas ou doenças específicas de órgão. A
familiaridade com a semiologia das DAI pode permitir um diagnóstico precoce com um
número limitado de sinais ou sintomas, agilizando a abordagem terapêutica e evitando
complicações por vezes letais.
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- Semiologia frequente de Doenças auto-imunes: úlceras orais, fenómeno de
Raynaud, livedo reticularis, artrite, rigidez matinal.
- Semiologia muito sugestiva de algumas DAI: pápulas de Gottron, patergia,
vespertílio, esclerodactilia, heliotropo, úlceras digitais, uveítes.
45
TAKE HOME MESSAGES
A mesma doença auto-imune pode apresentar semiologia relativa a diferentes
órgãos e sistemas.
Úlceras orais, vespertílio, calcinose, pápulas de Gottron e heliotropo são
manifestações cutâneas habituais nas DAI.
Artrite, rigidez matinal, dactilite, entesite, miosite e espondilartrite são
manifestações musculoesqueléticas frequentes.
Fenómeno de Raynaud, livedo reticularis, telangiectasias e úlceras digitais
compõem manifestações vasculares e trombóticas.
Uveíte e xeroftalmia são manifestações oftalmológicas de DAI.
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● Clerc S, Cottin V. Poumon et vascularites. Révue des Maladies Respiratoires Actualités (2015) 7,
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● Clerc S, Cadranel J. Les conectivites. Révue des Maladies Respiratoires Actualités (2015) 7,
118-121.
46
3. LABORATÓRIO NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES
Introdução
A avaliação laboratorial é fundamental no diagnóstico e acompanhamento das doenças
autoimunes, mas é importante conhecer os fundamentos e limitações dos testes que
utilizamos, para escolher o que pedimos e interpretar os resultados de forma adequada.
47
sua carga eléctrica e massa molecular, ficando então divididas em bandas. O resultado
apresenta-se com um gráfico acompanhado do valor de cada banda: albumina, alpha 1,
alpha 2, beta e gamma – figura 1.
Figura 1: Electroforese de proteínas. (Fochesatto Filho L, Barros E. Medicina Interna na Prática Clínica. Porto Alegre:
Artmed; 2013.)
48
Existem alguns padrões gráficos característicos de certas doenças, como os picos
monoclonais na banda gamma, sugestivos de doença linfoproliferativa. As doenças
auto-imunes cursam normalmente com picos gamma policlonais – tabela 2.
O que é o Complemento?
O sistema do complemento é composto por mais de 20 proteínas, de membrana e
solúveis, que participam em vários mecanismos imunes. A maioria destas proteínas
estão inactivas, mas, em resposta ao reconhecimento molecular de componentes de
determinados agentes patogénicos, tornam-se sequencialmente activadas, por via
enzimática – cascata do complemento. O complemento pode ser activado por 3 vias
diferentes: a via clássica, a via alternativa e a via da manose ligada à lectina - ver figura
2. Cada via provoca a activação de C3, fragmentando-a em duas porções: C3b, de
maiores dimensões, que actua como opsonina, e C3a, pequeno fragmento que se
comporta como anafilotoxina, promovendo a inflamação. A fracção C3 activada activa a
via lítica, que provoca rotura na membrana celular de células e microorganismos. A
fracção C5a, também formada neste processo e que compõe os complexos de ataque
membranar, atrai macrófagos e neutrófilos e activa mastócitos.
Figura 2: Vias do complemento. (In Imunologia Celular e Molecular – 7ª Edição, Abbas & Lischtman & Pillai, Elsevier.
ISBN: 9788535247442)
49
O sistema do complemento desempenha um papel fundamental na inflamação e defesa
em infecções bacterianas. A cascata do complemento também pode ser activada
durante reacções transfusionais de sangue incompatível e durante a resposta imunitária
prejudicial que acompanha algumas doenças auto-imunes. Os défices de fracções ou
inibidores do complemento pode levar a várias doenças específicas, o que reflecte bem
o seu papel protector – ver tabela 3.
O que é um anticorpo?
Em primeiro lugar, importa explicar o que é um anticorpo, uma vez que é a base da
resposta imunitária humoral ou adquirida. Um anticorpo é uma glicoproteína produzida
por linfócitos B, que tem como função ligar-se a uma molécula específica, designada
por antigénio. Ao ligar-se ao seu alvo (antigénio), vai direcionar a restante resposta
imunitária para a estrutura a que pertence. Esta resposta pode inclui o sistema do
complemento e células efectoras, como os macrófagos.
O anticorpo é composto por duas regiões: a região Fab (antigen-biding fragment), de
estrutura variável, responsável pelo reconhecimento de antigénios, e a região Fc
(constant fragment), de estrutura preservada, e que permite aos anticorpos interagir com
o restante sistema imunitário – ver figura 3. Os anticorpos podem ser agrupados de
acordo com a sua região Fc em 5 classes, IgA, IgD, IgE, IgG, IgM, cada uma
desencadeando uma resposta imunitária distinta – ver tabela 4.
Figura 3: Esquema da imunoglobulina/anticorpo e dos diferentes isótopos. (In Douglas F Fix, 2016)
50
ISÓTIPO DE
FUNÇÃO EFECTORA ESPECÍFICA DO ISÓTIPO
IMUNOGLOBULINA
Opsonização de antigénios para fagocitose por macrófagos e neutrófilos
Activação da via clássica do complemento
Citotoxicidade mediada por células, dependente de anticorpos, mediada
IgG por célula natural killer
Imunidade neonatal: transferência de anticorpos maternos através da
placenta e do intestino
Inibição da activação dos linfócitos B por mecanismo de feedback
Activação da via clássica do complemento
IgM
Receptor de antigénio de linfócitos B naïve
Imunidade de mucosas: secreção de IgA para o lúmen dos tractos
IgA gastrointestinal e respiratório
IgE Desgranulação de mastócitos (reacções de hipersensibilidade imediata)
IgD Receptor de antigénio de linfócitos B naïve
Tabela 4: Funções efectoras das imunoglobulinas, consoante o isótipo. Ig: imunoglobulina. (Adaptado de In Imunologia
Celular e Molecular – 7ª Edição, Abbas & Lischtman & Pillai, Elsevier. ISBN: 9788535247442)
O que é um auto-anticorpo?
Um auto-anticorpo é um anticorpo cujo antigénio é uma molécula do próprio organismo
(endógena), que pode desencadear uma resposta imunitária desnecessária ou
prejudicial. A presença de auto-anticorpos não é sinónimo de doença auto-imune, pois
existe uma percentagem variável de indivíduos saudáveis nos quais é possível detectá-
los. Podem ser divididos em três grandes grupos, de acordo com o alvo:
1. Antigénio presente na maioria das células, como os anticorpos anti-
nucleares (ANA)
2. Antigénio presente em células específicas, como os anticorpos anti-
citoplasma de neutrófilos (ANCA)
3. Antigénio circulante fora das células, como o factor reumatóide (FR) ou os
anticorpos anti-fosfolípido (AAF).
51
Figura 4 – Técnicas para identificar anticorpos. A: imunofluorescência indirecta, 2: ELISA, 3: Immunoblot..(A: Pilas B.
Flow Citometry Facility, Roy J Carver Biotechnology Center; B: MBL International Corporation; C: Bridges A, Ann Intern
Med. 1993;118(12):929-936.)
Figura 2 – Esquema que relaciona padrão de Imunofluorescência Indirecta com Immunoblot na pesquisa de ANA (In
http://www.euroimmunblog.com/23-at-one-swoop/).
52
reacção cromática no meio de cultura, permitindo uma quantificação da quantidade de
auto-anticorpo mais rigorosa.
No Immunoblot é utilizada uma membrana de nitrocelulose que permite impregnar vários
antigénios a testar em simultâneo (figura 5). A ligação de autoanticorpos é detectada
através de uma reacção cromática semelhante ao ELISA, mas sem permitir quantificar
a sua concentração.
Em resumo, as principais diferenças entre estas técnicas é que a IFI é a técnica mais
sensível, uma vez que se utilizam células inteiras com todos os antigénios “in vivo” – em
ELISA e Immunoblot é necessário retirar os antigénios das células e colocar em
placas/membranas, ou seja, tem de se escolher/conhecer os antigénios que se pretende
analisar; o Immunoblot permite testar vários anticorpos ao mesmo tempo - em ELISA
testa-se um anticorpo de cada vez, mas pode ser quantificado.
Figura 3: Padrões de imunofluorescência de anticorpos anti-nucleares: homogéneo (a), mosqueado (b), fino granular (c),
nucleolar (d) e centrómero (e). Podem também ser reconhecidos padrões de membrana nuclear (f), citoplasmático
(g) ou negativos/inespecíficos (h). (in Krause et al. April 2015 Lúpus 24 (4-5); 516-29.)
A IFI é utilizada para detectar a presença de ANAs e descobrir a sua natureza, através
do título e da análise do padrão de imunofluorescência resultante (figura 3). Dada a sua
elevada sensibilidade, a probabilidade de ocorrerem falsos positivos é elevada, sendo
necessária confirmação dos seus resultados, através da pesquisa de autoanticorpos
específicos por ELISA, immunoblot ou outra técnica.
A análise do padrão de IFI é importante para orientar a pesquisa de outros
autoanticorpos subjacentes. Dos padrões de imunofluorescência existentes destacam-
se cinco: homogéneo, fino granular, nucleolar, citoplasmático e centrómero. As doenças
e os antigénios associados a cada padrão de IFI são apresentados na tabela 5.
53
Quando devem ser pedidos os ANA?
Os ANA devem ser pedidos em doentes com apresentações clínicas sugestivas de
algumas doenças auto-imunes, como as doenças do grupo das conectivites: Lúpus
Eritematoso Sistémico, Esclerose Sistémica, Síndrome de Sjögren e Miosites
inflamatórias. Geralmente consideram-se títulos positivos resultados com valor igual ou
superior a 1:160.
Apesar da sua importância no diagnóstico, a pesquisa de ANA deve ser criteriosa e a
sua interpretação cuidadosa, considerando sempre a possibilidade de falsos positivos.
Os ANA estão presentes em adultos saudáveis, sendo que a sua prevalência aumenta
com a idade (3-15% população geral, 10-37% população acima 65 anos). A presença
de ANA pode ainda ser provocada por infecções virais, neoplasias ou fármacos,
incluindo estatinas, beta-bloqueantes, inibidores da enzima conversora da angiotensina
e anti-inflamatórios não-esteróides. Dada a prevalência relativamente elevada de ANAs
em indivíduos saudáveis, o seu título ajuda-nos a valorizar a sua presença.
Outros autoanticorpos
Os ANA são dirigidos a antigénios nucleares presentes em todas as células do
organismo e para a sua detecção utilizamos as células HEp2 para melhorar a
capacidade do teste. Como explicado anteriormente, existem auto-anticorpos contra
antigénios de células específicas ou contra antigénios em circulação. Um exemplo de
antigénio circulante é o Factor Reumatóide, que é dirigido à fracção de Fc de
imunoglobulinas IgG. É positivo na Artrite Reumatóide, mas igualmente em outras
situações quando existe aumento de IgGs em circulação, como hipergamaglobulinémias
policlonais, síndrome de Sjögren ou LES – ver Anexo I.
54
EXEMPLOS DE OUTROS AUTO-ANTICORPOS
CONTRA ANTIGÉNIOS DE CÉLULAS ESPECÍFICAS
ANCA
Anti-tiroideus
CONTRA ANTIGÉNIOS EM CIRCULAÇÃO
Factor Reumatóide, anti-CCP
Tabela 6: Outros auto-anticorpos.
Bibliografia
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autoantibodies to celular antigens referred to as anti-nuclear antibodies. Ann Rheum Dis. 2014
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55
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• Slater CA, Shmerling RH et al. Antinuclear antibody testing. A study of clinical utility. Arch Intern
Med. 1996 Jul 8;156(13):1421-5.
56
4. RADIOLOGIA NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES
Introdução
No passado, a imagiologia nas doenças auto-imunes era confinada à radiografia das
mãos e das articulações sacroilíacas, ajudando a realizar o diagnóstico e a monitorizar
a actividade da doença. Nos últimos anos, novas técnicas de diagnóstico e
monitorização têm surgido, permitindo um diagnóstico mais precoce e rápida instituição
de tratamento tentando evitar, assim, progressão da doença.
MEDICINA
RX ECOGRAFIA RMN TC
NUCLEAR
Artrite Reumatóide - + + + -
Espondilartropatia - +- ++ + +-
Inflamatória
Artrite Gotosa +- +- +- - +-
Tabela 1: Utilidade das várias modalidades de imagem para diagnóstico precoce de patologia articular inflamatória (-
geralmente não útil, +- pode ser ou pode não ser útil dependendo das circunstâncias clínicas, + geralmente método de
escolha)2. RX: Radiograma, RMN: Ressonância Magnética Nuclear, TC: Tomografia Computorizada.
Radiografia
A radiografia convencional tem sido tradicionalmente o marcador para o diagnóstico e a
modificação terapêutica de doença nas artropatias inflamatórias e degenerativas. No
entanto, nos estados iniciais de artrite, os aspectos radiológicos não são específicos ou
estão ausentes. Se o exame clínico sugerir um diagnóstico, um radiograma normal não
será um exame adequado para o excluir.
Figura 1: A: Características radiológicas de artrite inflamatória – fase incial – o rx mostra osteopénia periarticular, que
apenas tme significado em combinaçãoo com sinais clínicos. O espaço interarticular está preservado. (de
Rheumatology in Practice) B: Radiograma de artrite inicial (Cortesia Behrang Amini MD/PhD).
57
As manifestações mais precoces da artrite reumatóide são o edema de tecidos moles
periarticular, seguido de osteopénia e erosões ósseas (Fig.1). Na doença precoce, o
espaço interarticular pode estar aumentado devido ao derrame articular e sinovite. Em
estados mais tardios de destruição articular, pode ocorrer desalinhamento ósseo e
destruição das epífises.
Deve ser salientado que em muitos tipos de artrite, as alterações são tipicamente não
erosivas e não deformantes; é o caso do Lúpus Eritematoso Sistémico e de outras
doenças auto-imunes do tecido conjuntivo (excluindo a artrite reumatóide), artrite
reactiva, artrite pós-viral e artrite enteropática. Nestes casos, não se irão encontrar
características radiológicas tardias, mas o tratamento precoce é igualmente importante
– não só para evitar sofrimento desnecessário dos doentes, mas também porque o
processo inflamatório pode levar a laxidão marcada dos ligamentos, com resultante
instabilidade, sub-luxações e perda de função.
Figura 2.1: Características radiológicas de dano estrutural em artrite inflamatória; A:perda uniforme de espaço
interarticular, B: erosões, (de Rheumatology in Practice)
58
Figura 2.2: Características radiológicas de dano estrutural em artrite inflamatória; C: erosões e perda total de espaço
interarticular, com desorganização de articulações e anquilose, D: erosão. (de Rheumatology in Practice)
ARTICULAÇÕES
CARACTERÍSTICAS
FREQUENTEMENTE
RADIOLÓGICAS
ENVOLVIDAS
1ª carpo-metacárpica (CMC),
Osteófitos, diminuição entrelinha
IFD, IFP, joelho, anca, MTF,
OSTEOARTRITE articular, quistos ósseos,
apófises da coluna cervical e
esclerose lombar
Articulações pequenas e
Edema tecidos moles,
grandes periféricas com
ARTRITE REUMATÓIDE osteoporose para-articular,
excepção da 1ªCMC e IFD;
(AR) diminuição entrelinha articular,
pode ocorrer subluxação da
erosões marginais C1-C2
Semelhante a AR, exceptuando
que as IFD são mais
ARTRITE PSORIÁTICA Dactilite, reacção perióstea,
frequentemente envolvidas e a
(AP) reabsorção óssea
osteoporose para-articular é
menos frequente
Grande erosão em “mordedura MTF, tornozelo incluindo
ARTRITE GOTOSA
de rato” médio-tarso, joelho
ESPONDILITE
(alterações da coluna
Sacroileíte, sindesmófitos,
também podem ser
rectificação da coluna cervical, Sacroilíacas, coluna lombar
vistas na Artrite de
coluna “em bambu”
Reiter, AP e artrite
enteropática)
Tabela 2: Características radiológicas e articulações envolvidas em doenças reumatológicas comuns 4 IFD: inter-
falângica distal, IFP: inter-falângica proximal, MTF. Metatarso-falângica.
59
Fig. 3: Alterações detectáveis em radiograma de coluna vertebral na Espondilite Anquilosante. A: Radiograma lateral da
coluna lombar, com sindesmófitos em L3, L5 e S1 (setas) (Radiographics 25(3):559-69; discussion 569-70 · May 2005),
B: Radiograma lateral da coluna lombar, demonstrando sindesmófitos seguidos, com rectificação dos corpos vertebrais,
formando a chamada “coluna em bambu” (Jean Schils, MD, Cleveland Clinic); C: Radiograma lateral da coluna cervical
com verticalização anterior, sindesmófitos em C3-C4, C5-C6 e anquilose das articulações intervertebrais de C2-C6
(Sudoł-Szopinska I, Urbanik A - Pol J Radiol (2013))
Tomografia Computorizada
A Tomografia Computorizada (TC) é útil na avaliação de áreas onde a anatomia é
complexa ou onde há estruturas sobrepostas, como a coluna vertebral. Permite
visualizar pormenorizadamente as articulações sacro-ilíacas, bem como detectar outros
achados, como osteonecrose da cabeça femoral, lesões osteocondrais, fracturas
ocultas ou lesões líticas. É inferior à Ressonância Magnética na visualização de tecidos
moles, mas é, também, mais barata e mais facilmente disponível.
Nas doenças com atingimento pulmonar, por exemplo, permite fazer a distinção entre
os tipos de lesão intersticial, específica ou inespecífica, o que vai, de algum modo,
orientar o tratamento. Quando há suspeita de lesões cardiovasculares, pode ser
realizada Angio-Tc para avaliação de obstruções de fluxo sanguíneo. Nos casos de
eventos isquémicos cerebrais, a Tc-CE pode contribuir para detectar áreas de
hipointensidade ou penumbra, embora os casos de vasculite de SNC dificilmente se
consigam avaliar por este método.
Ressonância Magnética
A Ressonância Magnética (RMN) é um método muito sensível para examinar
inflamação, seja nos tecidos moles, seja no osso. Na doença precoce, a utilização de
meio de contraste pode ainda aumentar a sensibilidade para tenossinovite ligeira,
sinovite articular e alterações de sinal da medula óssea.
A RMN pode ser usada nas suspeitas de complicações típicas de Artrite Reumatóide,
como erosão do processo odontóide do áxis e do ligamento transverso do atlas, que
levam a instabilidade da articulação atlanto-axial.
60
No que toca às espondilartropatias inflamatórias, a RMN das sacroilíacas é
frequentemente usada para avaliar a presença de sacroileíte. A tomografia
computorizada é mais sensível que a radiografia, mas não mostra as alterações da
medula óssea com fiabilidade.
Figura 4: a) e b) Imagens em corte coronal das articulações sacroilíacas mostrando alterações típicas de sacroileíte
com esclerose e edema (a STIR e b T1w)2
Ecografia
A ecografia permite avaliar articulações superficiais, como as articulações
metacarpofalângicas proximais (MCFP) das mãos, afim de detectar a presença de
derrame articular, proliferação sinovial e sinovite, bem como erosões ósseas. Pode
revelar ainda a presença de bursites nas articulações maiores e enteses. A ecografia é
ainda útil na avaliação de entesite periférica no que toca ao grupo de espondilartropatias
inflamatórias.
61
doentes com lesão renal conhecida ou de novo devem ser sujeitos a avaliação
ecográfica periódica e, em caso de biópsia, esta deverá também ser eco-guiada.
Medicina Nuclear
Os exames de Medicina Nuclear podem ser usados para avaliar artropatias
inflamatórias, embora a sua utilização esteja limitada à sua reduzida disponibilidade.
Bibliografia
• Rheumatology in Practice, J.A.P. Da Silva e A.D. Woolf, Springer
• Imaging in rheumatology: reconciling radiology and rheumatology. Insights Imaging; 2013 Dec;
4(6):799-810
• Imaging in rheumatology, AJ Grainger e D McGonagle. Imaging, 19 (2007), 310-322
• Rheumatology: 3. Getting the most out of radiology, Graham Reid, John M. Esdaile, CMAJ 2000;
162(9):1318-25
• Progress in imaging in rheumatology, Emilio Filippucci, Luca Di Geso and Walter Grassi, Nav.
Rev. Rheumatol 2014 Oct;10(10):628-34
62
5. CAPILAROSCOPIA PERI-UNGUEAL
Introdução
A capilaroscopia peri-ungueal é uma técnica não invasiva que permite avaliar a
microcirculação. Deste modo, permite fazer um diagnóstico diferencial do Fenómeno de
Raynaud (FR), inicialmente entre primário e secundário, bem como manter vigilância
periódica destes doentes – cerca de 15-20% dos doentes com FR primário inicial
evoluem para Raynaud secundário em 2 anos de seguimento. Assim sendo, constitui o
melhor factor preditivo da transição de FR primário para secundário.
Procedimento
A técnica para a realização de capilaroscopia depende do tipo de sonda utilizada. Na
Unidade de Doenças Auto-Imunes utilizamos a sonda Videocap® ligada a um
computador, que permite visualização directa da árvore capilar com diferentes
ampliações, captação da imagem através de um pedal, armazenamento e posterior
processamento destas imagens (Fig.1). Habitualmente, usamos ampliação de 200x,
sendo a área de observação captada superior ao campo de avaliação da rede vascular
(campo = 1 mm3).
Figura 1: Sonda Videocap® conectada a computador, pedal para captação de imagem e programa utilizado para
processamento das imagens. From Cutolo, Maurizio, and Vanessa Smith. "State of the art on nailfold capillaroscopy: a
reliable diagnostic tool and putative biomarker in rheumatology?." Rheumatology 52.11 (2013): 1933-1940.
Durante o exame e após a recolha de imagens, é feita uma avaliação qualitativa e semi-
quantitativa, onde são considerados alguns parâmetros: arquitectura estrutural e
distribuição dos capilares, transparência ou presença de edema intersticial, número de
capilares por milímetro quadrado, presença de dismorfias minor (tortuosidades,
cruzamentos, saca-rolhas, meandering, bifurcações simples) e major (dilatação major,
hemorragia peri-ungueal, ramificações complexas), rarefacção capilar e presença de
neoangiogénese (Figs. 2-4).
63
Figura 2: A: Exame capilaroscópico normal; B: Dismorfias minor (cruzamentos, meandering, tortuosidades); C: Dismorfias
major (dilatação de ansa distal > 50 mcm). Cortesia da Unidade de Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral.
Figura 3: A: Capilar gigante (dilatação de ansa capilar > 100 mcm) e rarefacção capilar; B: Hemorragia peri-ungueal por
rotura capilar (depósitos de hemossiderina a castanho); C: Ramificações complexas (neoangiogénese) e diminuição do
número de capilares por campo em doente com dermatomiosite. Cortesia da Unidade de Doenças Auto-Imunes do
Hospital Curry Cabral.
Figura 4: A: Hemorragia de origem traumática (onicofagia) – depósitos de hemossiderina sobrepostos a várias linhagens
de capilares; B – Artefacto – descontinuação do tegumento e neoangiogénese em contexto de sutura cutânea; C –
Iatrogenia (beta-bloqueantes não cardio-selectivos). Cortesia da Unidade de Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry
Cabral.
64
Figura 5: Esquema de classificação dos padrões de fenómeno de Raynaud secundário.
Fig. 6: Padrões esclerodérmicos na capilaroscopia peri-ungeual: A – precoce; B – activo; C – tardio. Cortesia da Unidade
de Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral.
65
hemorragia peri-ungueal e plexo venoso exuberante, com velocidade de circulação lenta
e sludge capilar.
Fig. 7: A – Esclerose Sistémica; B – Lúpus Eritematoso Sistémico; C – Dermatomiosite. Cortesia da Unidade de Doenças
Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral.
66
Fig. 9: Quadro de resumo com frequência relativa de achados capilaroscópicos em doenças auto-imunes. Lin, KM et al.
Clinical Applications of Nailfold Capillaroscopy in Different Rheumatic Diseases. J Intern Med Taiwan 209; 20: 238-247.
Conclusão
A capilaroscopia peri-ungueal é um método não invasivo para visualização directa da
microcirculação e deve ser incluído no estudo etiológico do fenómeno de Raynaud. Os
achados capilaroscópicos podem contribuir para o diagnóstico de algumas doenças,
como a Esclerose Sistémica, e correlacionam-se com algumas complicações clínicas,
como as úlceras digitais. Embora os achados de algumas doenças sejam inespecíficos,
uma alteração de novo no padrão habitual poderá sugerir uma síndrome de
sobreposição ou evolução da doença de base. Este método de diagnóstico não está
limitado ao espectro das doenças auto-imunes, podendo ser utilizado no estudo de
outras doenças com atingimento vascular, como a Diabetes Mellitus.
ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
• Doentes com Fenómeno de Raynaud de novo: bilateral – capilaroscopia: primário
versus secundário?; se unilateral, pensar em neoplasia ou síndrome obstrutivo. Enviar
para consulta!
47
TAKE HOME MESSAGES
• Estudo Fenómeno de Raynaud
• Monitorizar transição Raynaud 1rio para 2rio
• Diagnóstico precoce ES; monitorização Terapêutica, Prognóstico
• Úlcera Digital
• Estudo de doença sistémica com envolvimento microvascular
Bibliografia
• Hirschl, Mirko, et al. "Transition from primary Raynaud's phenomenon to secondary Raynaud's
phenomenon identified by diagnosis of an associated disease: results of ten years of prospective
surveillance." Arthritis & Rheumatism 54.6 (2006): 1974-1981.
• Cutolo, Maurizio, et al. "Identification of transition from primary Raynaud's phenomenon to
secondary Raynaud's phenomenon by nailfold videocapillaroscopy: comment on the article by
Hirschl et al." Arthritis & Rheumatism 56.6 (2007): 2102-2103.
• Gitzeimann G. “Preditive value of nailfold capillaroscopy in patients with Raynaud phenomenon”.
Clin Rheumtol 25 (2006): 153-8.
• Higashi, Viviane, et al. "Capilaroscopia Periungueal Seriada (CPU) como Parâmetro de
Monitoramento e Evolução de Pacientes com Diagnóstico Inicial de Fenômeno de Raynaud (FRy)
Isolado ou de Doença Indiferenciada do tecido Conjuntivo (DITC)." Rev Bras Reumatol 45.6 (2005):
351-356.
• Cutolo, Maurizio, and Vanessa Smith. "State of the art on nailfold capillaroscopy: a reliable
diagnostic tool and putative biomarker in rheumatology?." Rheumatology 52.11 (2013): 1933- 1940.
• Ghizzoni C, et al. Prevalence and evolution of scleroderma pattern at nailfold videocapillaroscopy
in systemic sclerosis patients: Clinical and prognostic implications. Microvacular Research 99
(2015) 92-95.
• Cutolo M, et al. Nailfold videocapillaroscopic patterns and serum autoantibodies in systemic
sclerosis. Rheumatol 2004; 43: 719-726.
• Cutolo, M. Atlas of Capillaroscopy in Rheumatic Diseases. 2010. Elsevier.
• Diógenes,A et al. Capillaroscopy is a dynamic process in mixed connective tissue disease.
Lúpus, 16 (2007), pp. 254–258
• Mugii N, et al. Association between nailfold capillary findings and disease activity in
dermatomyositis. Rhaumatol 2011;50:1091-1098.
• Pyrpasopoulou A, et al. Capillaroscopy as a screening test for clinical antiphospholipid syndrome.
European Journal of Internal Medicine 22 (2011) e158-e159.
• Ribeiro Cf, et al. Peringueal capillaroscopy in psoriasis. An Bras Dermatol. 2012;87(4):550-3.
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diseases: a prospective single blind observational study. Ann Rheum Dis 2003; 62:444-449.
• Ingegnoli F and Herrick A. Nailfold Capillaroscopy in Pediatrics. Arthritis Care and Research.
2013;65(9)1393-1400.
48
PARTE II – DOENÇAS AUTO-IMUNES
49
1. ARTRITE REUMATÓIDE
Definição
A artrite reumatóide é uma doença inflamatória crónica auto-imune sistémica,
caracterizada fundamentalmente por sinovite destrutiva, predominantemente simétrica,
sendo responsável por uma morbilidade e mortalidade aumentadas e prematuras nestes
doentes [1-5]. As primeiras descrições de AR remontam a 1800, na tese de Auguste
Beauvais “Sur la goutte asthénique primitive” [6]. Posteriormente, autores como Charcot,
Garrod e Bourdillon tiveram um contributo significativo na descrição e caracterização da
AR como entidade clínica distinta da gota, artrite psoriática e espondilite anquilosante
[6].
Epidemiologia
A prevalência estimada da AR, a nível global, ronda 1%. [8] Em Portugal, tendo em conta
o último Reuma Census (2011-2013), a prevalência da AR está estimada em 0.5-1%.
[9] A AR afecta mais indivíduos do género feminino (F:M 2:1), sendo que, em Portugal,
a prevalência da doença no género feminino é 4x superior em relação ao género
masculino (F 1.1%, M 0.3%) [8,9]. A faixa etária mais frequentemente envolvida é > 60
anos de idade. Para além do envolvimento a nível étnico, em que os latinos
desenvolvem AR mais agressiva em comparação com os caucasianos, as habilitações
literárias e o estatuto sócio-económico parecem ter um impacto significativo na evolução
da doença [10,11].
Etiologia
A origem da AR ainda não está totalmente esclarecida. Acredita-se que o estradiol tenha
um papel relevante como estimulador do processo inflamatório (activação dos
sinovócitos tipo B e inibição da apoptose nos linfócitos B), o que explica a maior
prevalência da doença no género feminino [8].
50
são o HLA-DR1, HLA-DR4 e HLA-DR14 [12]. A existência de tal epitopo permite que a
apresentação de antigénios se faça de maneira irregular com a consequente perda de
tolerância imunológica. Alterações epigenéticas (como seja a hipometilação do ADN) e
das vias de sinalização intracelular (JAK, NF-β), também contribuem para a
etiopatogenia da doença.
Figura 1: Factores que contribuem para o desenvolvimento da Artrite Reumatóide. From Nature Clinical Practice
Rheumatology (2007) 3, 644-650.
A existência isolada de cada um destes factores, porém, parece ser insuficiente para
desencadear a doença, admitindo-se ser necessária a presença de pelo menos um
segundo evento major para desencadear a doença. Assim se explica a expressão inicial
dos chamados anticorpos anti-péptido cíclico citrulinado (anti-CCP) e factor reumatóide
(IgG FR) anos antes do início das manifestações clínicas em doentes com AR (Fig.3)
[12]. Neste contexto, eventos infecciosos como sejam os causados por Citomegalovirus,
vírus Epstein-Barr, Parvovirus B19, micobactérias e o Mycoplasma spp são
considerados potenciais factores promotores da doença [14-17].
51
Figura 2: Citrulinação e indução de anticorpos anti-péptido cíclico citrulinado na Artrite Reumatóide pela
Porphyromonas gengivalis. From Nature Reviews Immunology 15, 30–44 (2015).
Fisiopatologia
A fisiopatologia da AR é de particular complexidade, assumindo uma expressão inicial
sistémica na sua fase pré-clínica, progredindo para uma fase clínica ao fim de vários
anos. Estes processos são aplicáveis de forma mais consistente à chamada AR
seropositiva (positiva para anticorpos anti-péptido cíclico citrulinado – anti-CCP – ou
para factor reumatóide – FR). A maioria dos doentes com AR apresenta-se com esta
seropositividade (70-84%); a forma de apresentação e processos fisiopatológicos
envolvidos na AR seronegativa permitem considerá-la quase como uma entidade clínica
distinta [18-19].
Figura 3: Percentagens cumulativas de doentes com 1 ou mais resultados positivos para FR IgM, anti-CCP e FR IgM
e/ou anti-CCP, antes do início da AR. Retirado de Nielen MMJ, van Schaardenburg D, Reesink HW, et al. Specific
autoantibodies precede the symptoms of rheumatoid arthritis: a study of serial measurements in blood donors. Arthritis
Rheum. 2004;50(2):380-6.
52
O FR e/ou anti-CCP podem preceder a apresentação clínica em cerca de 15 anos, em
50% dos indivíduos (Fig.3) [20]. Progressivamente, verifica-se um aumento na avidez (e
no título) destes, através da maturação por afinidade. Importa salientar que, uma vez
positivos para FR ou anti-CCP, os indivíduos raramente se tornam seronegativos [20].
Figura 4: Desenvolvimento e evolução da artrite reumatóide, em 3 fases principais. a) A doença inicia-se nos órgãos
linfóides periféricos, provavelmente por células dendríticas que apresentam auto-antigénios a células T auto-reactivas,
que por sua vez vão activar células B auto-reactivas através de citocinas e moléculas co-estimuladoras. Provocam assim
a formação de anticorpos e deposição de imunocomplexos ao nível das articulações. Após a migração das células imunes
para a articulação, a apresentação de antigénio também pode ocorrer na membrana sinovial. b) A propagação da doença
é mediada por imunocomplexos que se ligam aos receptores Fc dos macrófagos, neutrófilos e mastócitos. Deste modo
vai haver libertação de citocinas pró-inflamatórias, infiltração leucocitária e formação de pannus sinovial. c) O nível
elevado de citocinas activa e recruta, ao nível da sinovial, fibroblastos, macrófagos, osteoclastos e neutrófilos, que vão
libertar proteases, espécies reactivas de oxigénio, óxido nítrico e prostaglandina E2. O sinoviócitos são também activados
e invadem a cartilagem. Estas etapas contribuem para destruição irreversível do osso e cartilagem. BCR, B-cell receptor;
CCL, CC-chemokine ligand; CCR, CC-chemokine receptor; CD40L, CD40 ligand; CXCL, CXC-chemokine ligand; IL,
interleukin; LTB4, leukotriene B4; MMP, matrix metalloproteinase; TCR, T-cell receptor; TNF, tumour-necrosis factor;
VEGF, vascular endothelial growth factor. From Rommel et al. Nature Reviews Immunology 7, 191–201 (March 2007).
Manifestações Clínicas
A AR tem expressão inicial variável, habitualmente insidiosa, sendo que a simetria do
envolvimento articular é uma característica singular da doença. O quadro de artrite é
caracterizado por rigidez matinal nas articulações alvo, com uma duração superior a 30-
45 minutos, seguindo-se de edema articular à medida que a doença progride. É
frequente a monoartrite inicial, evoluindo progressivamente (em menos de 6 meses)
para uma poliartrite simétrica. A monoartrite exclusiva é rara, apresentando-se em cerca
de 5% dos doentes – afecta predominantemente ombros, joelhos e punhos. O
53
envolvimento está caracterizado na Figura 5, sendo que as articulações mais afectadas
são as metacárpico-falângicas, inter-falângicas proximais, punhos, cotovelos, ombros,
joelhos e metatársico-falângicas.
Figura 5: A – Envolvimento articular na Artrite Reumatóide, B – Deformação tardia nas articulações metacárpico-
falângicas e inter-falângicas proximais e esquema elucidativo do espessamento da membrana sinovial e destruição da
cartilagem (From Mayo Foundation for Medical Education and Research.)
Figura 6: Deformações tardias da Artrite Reumatóide. A: atrofia dos músculos interósseos, hiperflexão das articulações
metacárpico-falângicas com desvio cubital dos dedos, hiperextensão das articulações inter-falângicas proximais e dedo
em pescoço de cisne; B – Quistos sinoviais por sinovite e tenosinovite persistentes. From the Clinical Slide Collection on
the Rheumatic Diseases, copyright 1991, 1995, 1997. Used by permission of the American College of Rheumatology.
54
O envolvimento extra-articular deve ser abordado de forma agressiva, uma vez que
confere igualmente diminuição da esperança média de vida. É conhecido o risco
cardiovascular aumentado (pela inflamação crónica e pelo uso prolongado de
corticóides) [22]. Da mesma forma, o envolvimento pulmonar, como seja a fibrose
intersticial ou a bronquiolite obliterante com pneumonia organizada, tem mau
prognóstico e condiciona a utilização do metotrexato, fármaco de primeira linha a instituir
na AR [23]. A síndrome de Felty (associação de AR, esplenomegalia e neutropénia) é
rara e é tanto pior quanto mais marcada for a neutropénia. A mononeurite multiplex é
uma condição frequentemente subdiagnosticada. O envolvimento ocular (como a
scleromalacia perforans), renal (pela amiloidose secundária) ou cutâneo (nódulos
reumatóides) é cada vez menos frequente. Outras manifestações como a vasculite
reumatóide, o derrame pleural ou o derrame pericárdico têm-se tornado cada vez mais
raras (Fig.8).
Figura 7: Deformações tardias da Artrite Reumatóide a nível dos membros inferiores, em esquema (A) e em radiograma
de pé (B). (A – Calabro JJ. A critical evaluation of the diagnostic features of the feet in rheumatoid arthritis. Arthritis and
Rheumatism, 5(1):19-29, 1962. B – Wilder M et al. Diagnosic work-up of early rheumatoid arthritis in the foot and ankle
patient. The Foot and Ankle Online Journal, 2014; 7 (1): 6)
Figura 8: Manifestações extra-articulares da Artrite Reumatóide (MEAAR). A – Incidência de MEAAR numa população
de 8024 doentes, entre 1999-2011 (EAM: extra-articular manifestations; M. Prete et al. Autoimmunity Reviews 11 (2011)
123–131). B – Incidência cumulativa de manifestações extra-articulares graves ao longo de 10 anos, entre os períodos
1985-1994 e 1995-2007 (RA: Rheumatoid Arthritis, ILD – Interstitial Lung Disease; Turesson C. Curr Opin Rheumatol
2013, 25:360–366).
55
Diagnóstico
O diagnóstico é predominantemente clínico. A avaliação laboratorial ajuda a definir o
subtipo de AR que o doente apresenta. O FR tem uma sensibilidade e especificidade de
11-45.2% e 97-98% respectivamente. No entanto, os anticorpos anti-CCP têm uma
sensibilidade bastante superior, conferindo uma melhor caracterização da população de
doentes com AR – sensibilidade de 55-80%, igual especificidade que o FR [24].
Figura 8: Árvore de decisão com base nos critérios de 2010. RFA, reagentes de fase aguda. Adaptado de Aletaha D,
Neogi T, Silman AJ, et al. 2010 Rheumatoid arthritis classification criteria: an American College of
Rheumatology/European League Against Rheumatism collaborative initiative. Arthritis Rheum. 2010;62(9):2569-81.
doi:10.1002/art.27584.
56
ósseo, nem nos dá uma ideia da dinâmica óssea. Para nos auxiliar na melhor
caracterização da actividade da doença óssea, a ecografia articular e a ressonância
magnética surgiram como ferramentas fundamentais no controlo mais rigoroso da
doença. O núcleo de estudos da OMERACT (Outcomes and Measures in Rheumatoid
Arthritis Clinical Trials) revê constantemente as escalas de avaliação de dano articular
e em que medida a extensão desse dano prediz o prognóstico de um doente em
particular.
Figura 9: Radiograma de mãos em Artrite Reumatóide, com alterações típicas de doença tardia: diminuição da entrelinha
articular (por vezes com fusão articular), sub-luxação articular, osteoporose justa-articular, erosões e geodos (Case
courtesy of A.Prof Frank Gaillard, Radiopaedia.org, rID: 7245).
Terapêutica
Para falarmos de atitudes terapêuticas, temos primeiro que introduzir o conceito de
monitorização da actividade da doença. Estão disponíveis cerca de 5 escalas de
avaliação de actividade da doença, sendo que as mais frequentemente utilizadas são o
DAS-28 (Disease Activity Score-28 – quer utilizando a velocidade de sedimentação –
VS –, quer utilizando a proteína C reactiva – PCR), o CDAI (Clinical Disease Activity
57
Index) e o SDAI (Simplified Disease Activity Index). Na Tabela 2, estão definidos os
valores que integram a remissão, baixa actividade, moderada actividade ou elevada
actividade de doença.
DAS28 - VS 0 - 9.4 < 2.6 ≥ 2.6 - < 3.2 ≥ 3.2 - ≤ 5.1 > 5.1
DAS28 - PCR 0 - 9.4 < 2.6 ≥ 2.6 - < 3.2 ≥ 3.2 - ≤ 5.1 > 5.1
CDAI 0 - 76 ≤ 2.8 > 2.8 - 10.0 > 10.0 - 22.0 > 22.0
Caso haja falência de algum destes, é possível proceder ao switch entre inibidores do
TNF, ou então mudar o alvo terapêutico: anti-receptor IL-6 (tocilizumab), anti-CD20
(rituximab) ou agonista do CTLA-4 (abatacept). Estes também podem ser utilizados no
lugar dos inibidores do TNF alfa, em condições específicas ou caso existam contra-
indicações para a administração de inibidores do TNF alfa (como por exemplo, a
insuficiência cardíaca classificada como grau III-IV pela New York Heart Association –
NYHA).
Prognóstico
O prognóstico da AR pode estar comprometido quando há atraso no diagnóstico e
tratamento. A história natural da doença inclui exacerbações e recidivas frequentes e
cerca de 40% dos doentes acumulam algum grau de incapacidade ao fim de 10 anos,
embora estes dados sejam variáveis [28]. Uma intervenção precoce com DMARDs
oferece a melhor possibilidade de atingir a remissão da doença. Factores de mau
prognóstico incluem o genótipo HLA-DRB1*04/04, título elevado de FR ou A-CCP,
58
manifestações extra-articulares, grande número de articulações envolvidas, idade <30
anos, sexo feminino, sintomas sistémicos e início insidioso.
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- Pensar em AR se artrite inflamatória simétrica de início insidioso, sobretudo em
mulheres pós-menopáusicas -> encaminhar para consulta
- O início precoce do tratamento influencia o prognóstico e limitação funcional
subsequentes.
Bibliografia
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Education; 2016.
60
2. ESPONDILARTROPATIAS
Introdução
As espondilatropatias são um grupo heterogéneo de artropatias inflamatórias crónicas,
inter-relacionadas, afectando a membrana sinovial, as enteses e certos locais extra-
articulares. Este grupo reúne doenças inicialmente descritas individualmente, mas que
com o tempo, se percebeu que partilham muitas características clínicas. Definem-se
como seronegativas, por terem factor reumatóide negativo e ausência de auto-
anticorpos circulantes. Apresentam expressão clínica característica, que pode ser de
predomínio axial (articulações da coluna e sacro-ilíacas) ou de predomínio periférico.
Surgem adicionalmente algumas manifestações particulares: entesite, dactilite, uveíte
– a entesite é a característica patológica distinta deste grupo de doenças. Existe
também uma associação frequente com psoríase e doença inflamatória intestinal.
SUBGRUPOS DA DOENÇA
Espondilite Anquilosante
Artrite Psoriática
Artrite Reactiva
Artrite Enteropática
Espondilartrite Juvenil
Espondilartropatia Indiferenciada
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
Manifestações Osteoarticulares
- Envolvimento axial
- Artrite Periférica
- Entesite
Características extra-articulares
- Uveíte anterior aguda
- Envolvimento cardíaco (bloqueio cardíaco, insuficiência aórtica)
Background genético
- História familiar
- HLA-B27 +
Manifestações Específicas
- Psoríase
- Doença inflamatória intestinal
Tabela 1: Apresentação Clínica de Espondilartropatias
61
Epidemiologia
A prevalência estimada em indivíduos caucasianos é entre 0,5% e 2%; estes números
variam entre várias populações étnicas, sendo mais elevados em caucasianos e nativo-
americanos e menos em afro-americanos e asiático.
Etiologia e Fisiopatogénese
62
A etiologia da espondilartropatia é ainda não foi totalmente clarificada, mas tem sido
postulado que resulte de uma interligação complexa de factores genéticos e ambientais.
O envolvimento de factores genéticos na determinação da susceptibilidade da
espondilartropatia tem sido evidenciado com base no agrupamento de casos em
famílias. O primeiro factor genético identificado foi o antigénio HLA-B27, embora testes
subsequentes tenham levado à descoberta de outros genes importantes na
susceptibilidade para a doença, incluindo subtipos de HLA-B27 e outros genes do MHC,
embora não seja ainda claro como é que actuam na doença.
Shigella flexneri
Salmonella spp.
Yersinia enterocolitica
Yersinia pseudotuberculosis
Campylobacter jejuni
Clostridium difficile
63
relevantes incluem uma tendência para maior vascularização, maior infiltração de
células T CD4+ e células B CD20+ e poucos infiltrados linfóides.
Manifestações Clínicas
1) Manifestações Osteoarticulares
Dor nocturna
Início insidioso
64
Anquilose
Uma das principais preocupações dos doentes com SPA é a progressão para anquilose,
que resulta na ossificação dos ligamentos e das articulações costovertebrais e
esternocondrais (Figura 2). O primeiro sinal de uma postura anómala é a perda da
lordose lombar, seguida de uma cifose torácica e, em casos graves, progressão até à
região cervical. O movimento da coluna está restringido em todos os planos. A restrição
do movimento pode não ser proporcional ao grau de anquilose devido a espasmos
musculares secundários.
Figura 2: Evolução radiológica da espondilite anquilosante, com rectificação das vértebras cervicais (A), anquilose
torácica (B) e lombar (C), com sindesmófitos (C), com osteofitose degenerativa (C,D) e aumento da interlinha articular
ao nível as sacro-ilíacas. (Cortesia Unidade de Doenças Auto-Imunes Hospital Curry Cabral).
Fractura
Artrite periférica
Dactilite
A dactilite é muito característica da SPA, embora não totalmente específica. Não é tão
comum na EA, mas mais típico da ReA, PsA ou SPA indiferenciada. Ao contrário da
65
sinovite, o edema não é confinado a uma articulação, mas envolve todo o dedo (Figura
3). Trata-se de uma combinação de sinovite, entesite, tenossinovite e edema dos tecidos
moles.
Figura 3: Dactilite do segundo dedo da mão direita (*) (A: Apostolos Kontzias, Merck Manual, Springer Science and
Business Media 2017; B: Cortesia Hideki Maejima; C: Garg A and Gladman D. Reocgnizing psoriatic arthritis in the
dermatology clinic. Journal of the American Academy of Dermatology, Volume 63, Issue 5, November 2010, Pages 749)
A dor torácica anterior ocorre em cerca de 15% dos doentes e é geralmente o resultado
de artrite esternoclavicular, manubrioesternal ou esternocostal, podendo levar à redução
da expansão torácica. Nos primeiros 10 anos da doença pode ainda ocorrer artrite da
bacia e ombros, sintomas que afectam um terço dos doentes. O envolvimento das ancas
é geralmente bilateral, podendo levar a destruição grave e limitação funcional.
Entesite
A inflamação dolorosa das enteses – locais de inserção dos tendões, ligamentos, fáscia
ou cápsulas articulares aos ossos – é a característica patológica que distingue a PsA. A
entesite mais frequente é a dor no calcanhar (posterior ou inferior) relacionada com
inflamação do tendão de Aquiles ou da inserção da fáscia plantar. A dor surge de manhã,
assim que o doente coloca o pé no chão, e melhora com a deambulação. Esta entesite
não é dolorosa durante o sono, mas pode ser incapacitante e resistente à terapêutica
habitual. Outros sinais clínicos são a dor na crista ilíaca, na tuberosidade tibial anterior
ou na parede torácica anterior.
2) Manifestações Extra-articulares
66
É importante detectar e tratar uveíte anterior aguda rapidamente uma vez que a perda
visual pode ser irreversível. Apresenta-se tipicamente com dor ocular unilateral,
vermelhidão, fotofobia e lacrimejo, devendo motivar observação urgente pela
Oftalmologia. A principal complicação é a formação de sinéquias. A uveíte que se
desenvolve com PsA ou EnA enteropática tende a ser mais crónica e bilateral e
frequentemente envolve elementos posteriores.
Manifestações Cardíacas
Envolvimento Pulmonar
A doença pulmonar restritiva pode ocorrer na doença terminal, como resultado da fusão
costovertebral e costoesternal e expansão torácica limitada. A fibrose apical pode
ocorrer na doença grave e pode levar à colonização por bactérias ou fungos.
Envolvimento Renal
Tem sido reportada nefropatia IgA na EA. A referir ainda que a amiloidose é uma
complicação muito rara na doença prolongada.
Envolvimento Gastrointestinal
Manifestações Cutâneas
Pode estar presente uma ligeira anemia nomocítica e normocrómica de doença crónica.
O HLA-B27 está presente em 92% dos doentes com EA. Todavia, o HLA-B27, por si só,
não é diagnóstico, uma vez que se encontra em até 8% de indivíduos saudáveis. Assim,
a determinação da presença de HLA-B27 não é mandatória na
67
avaliação clínica, mas é especialmente útil para a classificação de doentes que têm
exames de imagem negativos.
Exames de Imagem
As radiografias simples da coluna, articulações sacroilíacas e articulações periféricas
podem revelar várias alterações estruturais. No entanto, não são úteis na doença
precoce não radiográfica, uma vez que as alterações estruturais radiográficas reflectem
as consequências da inflamação e não inflamação activa.
A sacroileíte radiográfica é o marco da EA e demora vários anos até que seja visível na
radiografia simples. As alterações mais precoces incluem a perda de definição das
margens corticais do osso sub-condral, erosões e esclerose. À medida que a erosão
progride, o espaço articular surge maior, depois fibroso, até que a anquilose óssea
oblitera a articulação. As alterações articulares geralmente tornam-se simétricas durante
o curso da doença.
Apesar do uso rotineiro desta expressão, deve ser salientado que o termo sacroileíte é
inapropriado – sacroileíte sugere que as radiografias podem demonstrar um aspecto
inflamatório das articulações sacroilíacas, mas as alterações observadas são já
resultado de um processo destrutivo.
Classificação
Os novos critérios de classificação para a espondilartropatia axial pela ASAS (Tabela
4) vieram permitir o diagnóstico precoce, pré-radiográfico de espondilite axial bem como
da espondilite estabelecida. A sacroileíte pré-radiográfica implica que não há alterações
radiográficas no momento, mas que se poderão vir a desenvolver ao longo do tempo.
68
Os anteriores critérios, da ESSG (European Spondyloarthropathy Study Group) (Tabela
5) e os critérios Amor (Tabela 6) incorporavam características axiais, periféricas, bem
como características extra-articulares, permitindo o diagnóstico de espondilartropatia,
mesmo na ausência de sacroileíte radiográfica. A principal diferença entre estes dois
grupos de critérios era o seu formato. Os critérios da ESG apenas podiam classificar
doentes com doença axial e/ou um envolvimento periférico, enquanto os critérios Amor
podiam também classificar doentes sem envolvimento axial ou articular periférico.
Todavia, quando estes critérios eram usados em doentes sem sacroileíte radiográfica,
a sua doença era referida como espondilartropatia indiferenciada, sem diferenciação
entre axial ou periférica. Estes critérios foram criados antes da disponibilidade da RMN,
uma ferramenta imprescindível para o diagnóstico precoce, uma vez que pode detectar
inflamação activa na coluna e articulações sacroilíacas não visíveis na radiografia
simples. O diagnóstico precoce permite a instituição de terapêutica antes do dano
estrutural permanente, permitindo alterar o curso natural da doença.
Entesite (calcanhar)
Uveíte
Dactilite
Psoríase
Colite/Doença de Crohn
Boa resposta a Anti-inflamatórios não esteróides
História familiar de SPA
HLA-B27
PCR elevada
*Inflamação compatível com sacroileíte na RMN ou sacroileíte
radiográica de acordo com os critérios modificados de Nova Iorque
Tabela 4: Critérios de Classificação ASAS para SPA axial (Assessment of SpondyloArthritis international Society).
69
DOENÇA LOMBAR INFLAMATÓRIA
ou
SINOVITE – assimétrica ou predominantemente nos membros inferior
É importante salientar que estes critérios são primariamente desenhados para o intuito
de classificação e investigação. Não há critérios de diagnóstico de SPA, pelo que na
prática clínica há que adoptar uma abordagem mais flexível. Uma proposta de esquema
diagnóstico está ilustrada na Figura 4.
70
Figura 4: Critérios de diagnóstico para Espondilite Anquilosante (esquema de decisão) (AS: espondilite anquilosante;
CRP: Proteína C Reactiva; SR: velocidade de sedimentaçãoo; NSAIDs:anti-inflamatórios não esteróides; SpA:
espondilartropatias) (de Rudwaleit,M.et al, How to diagnose axial dpondyloarthritis early. Ann Rheum Dis 2004;63:535-
43)
71
1) Espondilite Anquilosante (EA)
Critérios Clínicos
- Dor lombar e rigidez durante mais de 3 meses, que melhora com o exercício mas não
alivia com o repouso
- Limitação da mobilidade da coluna lombar em ambos os planos sagital e frontal
- Limitação da expansão torácica relativamente ao valor normal, corrigido para idade e sexo
Critérios Radiológicos
- Sacroileíte grau >2 bilateralmente ou grau 3-4 unilateral
Espondilite Anquilosante definitiva: presença de critério radiológico + pelo menos 1 critério clínico
Espondilite Anquilosante provável: pelo menos 3 critérios clínicos OU critério radiológico presente sem sinais
ou sintomas que correspondam aos critérios clínicos
Tabela 8: Critérios modificados de Nova Iorque para a Espondilite Anquilosante.
72
CRITÉRIOS CASPAR PARA ARTRITE PSORIÁTICA
Psoríase actual – score 2
História pessoal de psoríase (na ausência de psoríase actual) – 1 ponto
História familiar de psoríase em familiares de 1º ou 2º grau (na ausência de psoríase
actual ou história pessoal de psoríase) – 1 ponto
Dactilite – 1 ponto
Neoformação óssea justa-articular – 1 ponto
Negactividade para factor reumatóide
Distrofia ungueal
O doente tem Artrite Psoriática se a soma dos pontos é 3 ou mais
Tabela 9: Critérios CASPAR para a Artrite Psoriática.
A artrite reactiva consiste num episódio de artrite periférica asséptica que ocorre dentro
de um mês de uma infecção primária numa qualquer localização do corpo, geralmente
uma infecção genitourinária por Chlamydia trachomatis ou enterite devido a
enterobactérias Gram negativas como Shigella, Salmonella, Yersinia ou Campylobacter.
A infecção do tracto genitourinário por C. Trachomatis é o mais frequente factor
desencadeante de ReA nos países desenvolvidos, enquanto as infecções por
enterobacteriáceas são os agentes mais frequentes nos países em vias de
desenvolvimento. Em cerca de 25% dos casos não é possível identificar o agente
desencadeante.
73
ReA é tipicamente uma oligoartrite aguda, assimétrica e geralmente associada a uma
ou mais manifestações extra-articulares como inflamação ocular (conjuntivite ou irite
aguda), entesite, lesões mucocutâneas, uretrite e, em raras ocasiões, cardite. A
conjuntivite ocorre num terço dos doentes, geralmente ao mesmo tempo que os flares
de artrite e a uveíte anterior aguda pode ocorrer ao mesmo tempo em 5% dos doentes.
A tríade de artrite, conjuntivite e uretrite é denominada a Artrite Reactiva clássica. A
maior parte dos doentes não se apresentam, no entanto, com esta tríade.
A duração média da artrite é 4 a 5 meses, mas dois terços dos doentes têm sintomas
musculoesqueléticos que persistem por mais de um ano. Recorrências são mais
frequentes em doentes com ReA induzida por Chlamydia. Cerca de 15-30% dos doentes
têm artrite crónica ou recorrente crónica, sacroileíte ou espondilite. A maior parte dos
doentes com ReA crónica têm uma história familiar positiva de SPA ou são HLA-B27
positivos.
5) Espondilartropatia Indiferenciada
74
Ankylosing Spondylitis Disease Activity Score (ASDAS) inclui não só as questões do
BASDAI mas também marcadores biológicos de inflamação.
DOMÍNIO INSTRUMENTO
A avaliação funcional pode traduzir não só a actividade da doença, mas também a sua
gravidade. Assim, os vários instrumentos podem avaliar a perda de mobilidade/rigidez
(através da avaliação da flexão lombar e expansão torácica) e avaliar a postura anormal
(através da distância tragus-parede). O envolvimento da bacia está relacionado com a
gravidade da ossificação da coluna e é responsável por limitação funcional significativa.
É tipicamente bilateral e a distância inter-maleolar avaliada pelo BASMI reflecte o grau
de envolvimento da bacia.
Terapêutica
75
Tratamento farmacológico
76
A intensidade de sintomas e a progressão da doença nas espondilartropatias com
manifestações de predomínio axial é muito variável. Em muitos casos a intervenção não
farmacológica juntamente com AINEs é suficiente para controlar os sintomas. No caso
específico da espondilite axial, nenhum DMARD sintético clássico, incluindo o
metotrexato, mostrou eficácia. Ou seja, nos casos em que os AINEs não são suficientes
para o tratamento, o passo seguinte é um DMARD biológico - os anti TNF alfa (infliximab,
etanercept, adalimumab, golimumbab, certulizumab) e os anti IL17. Quando existem
manifestações periféricas, os DMARS sintéticos clássicos podem ter resultado
(sulfassalazina, metotrexato) – figura 5.
O tratamento da PsA depende do tipo de expressão articular. Na maioria dos casos há
sobretudo manifestações articulares periféricas e o tratamento faz-se com a mesma
estratégia que na AR. Quando o envolvimento é predominante axial, o tratamento segue
a estratégia da EA. Para além do anti-TNF, alguns novos DMARDs biológicos têm
demonstrado eficácia no tratamento da psoríase cutânea e PsA, como o ustekinumab
(anti IL-12/IL-23).
77
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78
3. SÍNDROME DE SJÖGREN
Definição
A síndrome de Sjögren (SSj) é uma doença auto-imune sistémica crónica, que se
caracteriza por uma infiltração linfocítica das glândulas exócrinas, sobretudo glândulas
lacrimais e salivares, levando à destruição tecidular e, consequentemente, à secura da
das mucosas. O seu espectro de manifestações clínicas é grande, podendo apresentar-
se sob a forma de síndrome sicca ou levar ao envolvimento sistémico.
A SSj pode surgir isolada – SSj primária – ou em associação com outras doenças auto-
imunes – SSj secundária –, como o lúpus eritematoso sistémico (LES), artrite
reumatóide (AR) e a esclerose sistémica (ES).
Epidemiologia
A SSj tem uma incidência estimada de 0.5 a 1% na população em geral; acomete,
geralmente, as mulheres na proporção de 9:1, entre a 4ª e a 5ª décadas de vida. A
incidência mundial estimada é de 1/2500 doentes/ano. A sua prevalência é semelhante
em todos os grupos étnicos.
Etiologia e Fisiopatologia
A etiologia da SSj ainda não está totalmente esclarecida. Vários estudos têm
demonstrado que determinados factores ambientais (vírus, stress, factores hormonais)
actuam como potenciais triggers no desenvolvimento da doença em indivíduos
geneticamente susceptíveis (com antigénios específicos do grupo HLA), conduzindo a
uma resposta imunológica aberrante, inflamação crónica e destruição tecidular (Fig.1).
Da acção conjunta destes 2 grupos de factores resulta a auto-agressão dirigida às
células epiteliais das glândulas exócrinas por células T (CD8+ > CD4+) e células B. A
hiperactividade das células B é a hallmark da doença, como é evidenciado pela
presença de hipergamaglobulinémia e auto-anticorpos específicos e não-específicos
(ex.: anticorpo anti-nuclear (ANA), anticorpo anti-Ro/SSA, anticorpo anti-La/SSB, factor
reumatóide e crioglobulinas), fenótipos clínicos e serológicos, mediados por
imunocomplexos, como neuropatia periférica, glomerulonefrite (GN), lesões vasculíticas
e hipocomplementémia. Esta sobreprodução de células B está também relacionada com
doenças linfoproliferativas, havendo um aumento de incidência de linfomas (sobretudo
Linfomas Não Hodgkin) nos doentes com SSj e um risco estimado 4-40x maior quando
comparado com o resto da população. Deste modo, a SSj representa um modelo de
estudo de auto-imunidade e transformação maligna.
Os principais vírus associados à etiopatogénese da SSj são o citomegalovirus, o vírus
de Epstein-Barr, Herpes Vírus tipo 6, retrovírus, vírus da hepatite C e enterovírus.
79
Figura 1: Representação de esquema fisiopatológico proposto para a Síndrome de Sjögren (SSj). Factores ambientais,
como vírus ou outros activadores da imunidade inata, provocam activação das células epiteliais e das células dendríticas.
A estimulação das células dendríticas leva à activação das vias I e II do interferão (IFN). Para além disso, a interleucina-
12 (IL-12) segregada pelas células dendríticas convencionais leva também à activação de células natural killers (NK) e
células Th1, que vão aumentar a produção de IFN gama e mediar a lesão tecidular. O IFN alfa e o IFN gama estimulam
a secreção de BAFF (B cell activating factor), activando as células B e T. Em indivíduos susceptíveis a SSj a activação
das células B vai levar à produção de auto-anticorpos pelos plasmócitos. As células epiteliais libertam auto-antigénios
que participam na formação de imuno-complexos e perpetuam o ciclo vicioso da activação do sistema imunitário. From
Nocturne G and Mariette X. Advances in understanding the pathogenesis of primary Sjögren’s Syndrome. Nat. Rev.
Reumatol., 2013: 1-13.
Manifestações Clínicas
Apesar de a SSj se caracterizar pelo envolvimento poliglandular, a infiltração peri-
epitelial nos órgãos parenquimatosos e a deposição de imunocomplexos resultante da
hiperactividade de células B, torna-a numa doença sistémica.
Manifestações Glandulares
A síndrome sicca caracteriza-se por xerostomia (sensação de secura da cavidade oral)
e está descrita em 95% dos doentes. Outros sintomas associados são a dor, disfagia e
fonação. A hipossecreção salivar pode propiciar a infecção local, cáries dentárias,
doença periodontal e queilite angular, pela ausência das propriedades anti- microbianas
da saliva. A superfície da língua pode começar por se apresentar eritematosa, com
fissuras e atrofia papilar filiforme, para se tornar seca e vitrificada nos estadios mais
avançados da doença (Fig.2-A).
A xeroftalmia (sensação de secura ocular) pode causar prurido e sensação de corpo
estranho, fotossensibilidade, fadiga ocular e redução da acuidade visual (Fig.2-C). A
hipossecreção lacrimal condiciona irritação e destruição crónica do epitélio corneano
(queratoconjuntivite sicca). Os doentes ficam mais susceptíveis às infecções oculares
(blefarite, queratite bacteriana e conjuntivite), assim como à úlcera de córnea.
80
Figura 2: A – Xerostomia (by Scully C, et al. Oral and Maxillofacial Surgery, 2016); B – Edema das glândulas parótidas
(American College of Rheumatology); C – Xeroftalmia (by Alan Kabat, O.D.).
Figura 3: Fenómeno de Raynaud (A e B from Hallett J et al. Merck Manual, Springer Science)
81
crioglobulinas em até 30% dos casos; ou de um processo não vasculítico associado à
presença de anticorpo anti-Ro/SSA e cujos achados clínicos mais característicos são as
lesões policíclicas fotossensíveis, semelhantes ao eritema anular.
Vasculite – pode surgir em até 15% dos doentes, geralmente vários anos após o
diagnóstico. É um factor de mau prognóstico, estando associada a um risco aumentado
de linfoma, com subsequente aumento da mortalidade. Normalmente afecta os
pequenos vasos da pele, mas outros órgãos podem ser acometidos como nervos,
músculos e rins. Histologicamente, existem dois tipos de vasculite relacionada com a
SSj: leucocitoclástica (infiltrado de células polimorfonucleadas) e linfocítica (infiltrado de
linfócitos e monócitos). Concomitante com os processos de vasculite, são habitualmente
detectadas crioglobulinas (tipo II, IgMk), títulos elevados de factor reumatóide e ANA,
hipergamaglobulinémia, hipocomplementémia e elevação da velocidade de
sedimentação (VS).
Figura 4: A, B, C, C, D: Vascullite leucocitoclástica de longa evolução em doente com fenómeno de Raynaud, que
melhorou após a terapêutica (Mutasim D., Sjögren’s Syndrome. Decision Support in Medicine, 2017); E – Úlcera de perna
por vasculite linfocítica em doente com Síndrome de Sjögren (©Útlitslaekning.is).
Renais - são pouco relatadas e podem ser de diversos tipos: doença renal intersticial,
mais frequente, caracterizada por hipocaliémia e hipostenúria; acidose tubular renal de
tipo 1 (ATR distal); GN, mais rara, e normalmente associada a vasculite sistémica,
hipocomplementémia e crioglobulinémia; e cistite intersticial.
82
sistema nervoso central (inclusive dos pares cranianos V, VII e VIII e mielopatia) pode
ocorrer, mas é raro.
Diagnóstico
O quadro clínico heterogéneo e a baixa valorização dos sintomas sicca pelo doente e
pelo médico podem explicar o atraso no diagnóstico, estimado em 9 anos desde o início
dos sintomas. O diagnóstico precoce é, contudo, importante para o tratamento
adequado, prevenção de complicações e melhoria da qualidade de vida.
O diagnóstico baseia-se em critérios clínicos, fisiológicos, imunológicos e histológicos.
De acordo com a European Classification Criteria de 1993 são necessários pelo menos
4 dos 6 critérios para estabelecer o diagnóstico de SSj primária (Tabela 1).
83
submetidos a vários estudos de validação, revelando que são mais fidedignos que os
anteriores.
II. Biópsia salivar de glândula salivar com sialoadenite linfocítica focal → score focal ≥ 1
foco/4mm2
III. Queratoconjuntivite sicca com coloração ocular score ≥ 3 (sem uso de colírios, cirurgia a
cataras ou cosmética nos últimos 5 anos)
Tabela 2: Critérios de Classificação da American College of Rheumatology, 2012.
84
linfócitos proeminentes e visíveis em torno dos ductos (seta) (Nordmark G et al. (2006) Mechanisms of Disease: primary
Sjögren's syndrome and the type I interferon system Nat Clin Pract Rheumatol 2: 262–269).
Figura 6: A - Teste de Schirmer e Teste de Fluoresceína (pouco realizado em Portugal) (Chang H et al. Sjögren Syndrome.
JAMA. 2010;304(4):486); B – Cintigrafia de Glândulas Salivares (1 e 2: glândulas parótidas, 3: região retro- parotídea, 4
e 5: glândulas sub-mandibulares; 6: área retro-mandibular; 7: cavidade oral).
Diagnóstico Diferencial
O diagnóstico de SSj deve ser bem documentado do ponto de vista clínico e laboratorial
uma vez que a síndrome sicca pode ter múltiplas causas, como a utilização crónica de
fármacos com propriedades anti-colinérgicas; a infiltração linfocítica das glândulas
exócrinas por granulomas (sarcoidose, tuberculose), por proteínas amilóides
(amiloidose) ou por células malignas (doenças linfoproliferativas); infecções crónicas
virais (VHC, VIH) podem induzir uma infiltração linfocítica das
85
glândulas exócrinas; ou outra patologia subjacente - os doentes podem ter uma SSj
primária ou secundária (Tabela 3).
Terapêutica
Actualmente não há tratamento curativo para a SSj. A terapêutica está centrada,
essencialmente, em 3 níveis de abordagem:
86
3) tratamento de órgão-alvo, destinado a sintomas extra-glandulares: os anti-
inflamatórios não esteróides, em geral, promovem o alívio dos sintomas
musculoesqueléticos minor, assim como o edema doloroso da glândula parótida; a
hidroxicloroquina na dose 200-400mg/dia melhora a astenia, artralgias e mialgias;
para o atingimento extra-glandular moderado, nomeadamente, artrite, púrpura
cutânea extensa e neuropatia periférica, 0,5mg/Kg/dia de prednisolona (PDN) ou
metotrexato podem ser suficientes; para o acometimento de órgão nobre, como
alveolite pulmonar, GN, lesão neurológica grave e vasculite sistémica, está
recomendada a associação da PDN a imunossupressores (ciclofosfamida,
azatioprina, micofenolato de mofetil). Relativamente aos fármacos biotecnológicos há
a referir que os inibidores do TNF-alfa não têm eficácia comprovada na SSj primária.
Por outro lado, o rituximab, anticorpo monoclonal anti-CD20+, é uma opção a
considerar. Sendo o seu alvo específico as células B, desempenha um papel
importante na modificação dos eventos etiopatogénicos da SSj primária, já que esta
doença se caracteriza por uma hiperactividade de células B.
Complicações e Prognóstico
A SSj tem habitualmente uma evolução benigna, progredindo muito lentamente ou
mantendo-se estável ao longo dos anos. As complicações mais frequentes incluem as
cáries dentárias, candidíase oral, doença periodontal, úlcera de córnea, perfuração e
amaurose. Por outro lado, existem excepções em que a doença evolui para
manifestações extra-glandulares, com dois grupos fenotípicos que determinam
prognósticos diferentes: a) expressão predominantemente peri-epitelial, com evolução
crónica mais estável (nefrite intersticial, doença hepática ou pulmonar; b) expressão
predominantemente extra-epitelial, com maior morbimortalidade (GN, neuropatia e
vasculite).
Estando subjacente uma hiperreactividade de células B, o linfoma B assume-se como a
complicação principal da doença, que ocorre em até 5-8% dos doentes. Os factores
associados a mau prognóstico, incluem: edema persistente da glândula parótida,
polineuropatia periférica, GN, linfopénia, vasculite/púrpura cutânea,
hipocomplementémia (C4), crioglobulinémia e presença de centros germinativos na
amostra de biópsia de tecido de glândula salivar.
ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
87
TAKE HOME MESSAGES
• A SSj atinge frequentemente as glândulas lacrimais e salivares, sendo as
queixas mais frequentes a xeroftalmia e a xerostomia.
• O diagnóstico diferencial inclui doenças infiltrativas, infecciosas e a
associação a outras doenças auto-imunes.
• O diagnóstico é estabelecido com elementos da clínica e exames
complementares de diagnóstico.
• O tratamento raramente envolve imunossupressão, excepto nos casos de
manifestações extra-glandulares.
Bibliografia
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Syndrome. Nat. Rev. Reumatol., 2013: 1-13.
88
4. LÚPUS ERITEMATOSO SISTÉMICO
Definição
O Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) é uma doença auto-imune sistémica com um
largo espectro de apresentação clínica que pode atingir quase todos os órgãos.
Epidemiologia
A incidência do LES praticamente triplicou nos últimos 40 anos, sobretudo devido a um
melhor diagnóstico em fases mais precoces da doença. A incidência é de 1 a 23 casos
por 100.000 habitantes por ano (Europa, América do Sul e América do Norte). Na
Europa, a prevalência é de 20 a 50/100.000 habitantes. Na maior parte dos doentes
(cerca de 65%), o LES manifesta-se entre os 16 e os 55 anos. Em cerca de 20% dos
doentes, a doença manifesta-se antes dos 16 anos de idade, em 15% depois dos 55
anos.
O LES afecta mais indivíduos do sexo feminino do que masculino, numa proporção de
9:1. É mais frequente em indivíduos de raça negra e latino-americanos do que nos
caucasianos. Os doentes do sexo masculino com LES têm menos fotossensibilidade,
mais serosite, mais idade ao diagnóstico e uma mortalidade mais elevada ao ano,
comparativamente às doentes do sexo feminino. O LES tende a ser mais ligeiro nos
idosos, com menos incidência de rash malar, fotossensibilidade, púrpura, alopécia,
fenómeno de Raynaud, envolvimento renal e do sistema nervoso central (SNC), mas
maior prevalência de serosite, envolvimento pulmonar, sintomas sicca e manifestações
musculoesqueléticas. Esta doença é mais comum nas áreas urbanas do que rurais.
A doença inicia-se com uma fase pré-clínica, caracterizada por anticorpos comuns a
outras doenças auto-imune sistémicas, e segue com uma fase auto-imune clinicamente
significativa e mais específica de doença. Durante este curso, períodos de maior
actividade de doença (os flares) interceptam períodos de remissão, culminando em dano
relacionado a doença e dano relacionado à terapêutica – como, por exemplo, alopécia,
eritema fixo, disfunção cognitiva, doença cardíaca valvular, necrose avascular, ruptura
tendinosa, artropatia de Jaccoud e osteoporose. O dano precoce é sobretudo
relacionado com a doença, enquanto que o dano tardio – sobretudo infecções,
aterosclerose – é geralmente relacionado com complicações de doença prolongada e
terapêutica imunossupressora.
89
Figura 1: História natural do LES; SLICC: Systemic Lúpus International Collaborating Clinics (índice de dano) (adaptado
de EULAR Textbook of Rheumatic Diseases)
Etiologia e Fisiopatogénese
O LES resulta de uma quebra nos mecanismos de tolerância imunológica, com formação
de anticorpos contra antigénios nucleares endógenos. Vários factores concorrem para
o desenvolvimento de lúpus – genéticos, ambientais e hormonais. Entre os factores
genéticos, encontram-se genes associados à resposta imunológica e inflamação,
aderência de células inflamatórias ao endotélio, e resposta tecidular à lesão. Os factores
ambientais incluem a radiação ultravioleta, fármacos e agentes infecciosos (vírus,
bactérias). Em relação aos factores hormonais, os estrogénios, incluindo os
contraceptivos hormonais, têm sido associados ao desenvolvimento de LES.
90
Figura 2: No LES diversas vias levam à produção de Interferão α (IFN α) mediada por ácidos nucleicos endógenos. A
produção aumentada de auto-antigénios durante a apoptose (relacionada com UV e/ou espontânea), clearance
diminuída, gestão desregulada e apresentação são factores importantes para o início da resposta auto-imune. Os
nucleossomas contêm perigosos ligandos endógenos que se podem ligar aos receptores de padrões moleculares
associadas a patogénios, sendo que estes nucleossomas são incorporados em bolhas apoptóticas, que promovem a
activação de células dendríticas e células B e a produção de, respectivamente, IFN e autoanticorpos. Os receptores de
superfície da célula como o BCR e FcRIIa facilitam a endocitose de ácido nucleico que contém material ou complexos
imunes e a ligação a receptores do endossoma da imunidade inata como as TLRs. Nas fases iniciais da doença, quando
os autoanticorpos e os complexos imunes podem ainda nem ter sido formados, os péptidos microbianos libertados por
tecidos lesados como LL37, podem ligar-se a ácidos nucleicos inibindo a sua degradação e, assim, facilitando a sua
endocitose e estimulação de TLR-7/9 em células dendríticas plasmocitóides. Quantidades aumentadas de ácidos
nucleicos endógenos relacionados com apoptose estimulam a produção de IFN e promovem auto-imunidade ao
quebrarem a auto-tolerância pela activação e promoção da maturação de células dendríticas convencionais (mielóides).
As células dendríticas imaturas promovem tolerância enquanto que células dendríticas maduras activadas promovem
auto-reactividade. A produção de auto-anticorpos pelas células B no LES é desencadeada pela disponibilidade de
antigénios endógenos e está largamente dependente da ajuda de células T, mediada por interacções de superfície de
célula (CD40L/CD40) e citoquinas (IL21). Os complexos imunes estimulam as células B por ligação BCR/TLR. (BCR:
receptor de célula B, FcR: receptor Fc, TLR: toll-like receptor). Adaptado de Bertsias, George K. et al. “Systemic Lúpus
Erythematosus: Pathogenesis and Clinical Features.” (2012).
Manifestações Clínicas
O LES pode afectar vários órgãos, resultando numa grande diversidade de
manifestações clínicas. De um modo geral, as manifestações clínicas do LES podem
dividir-se em sistémicas, mucocutâneas, músculo-esqueléticas, renais,
neuropsiquiátricas, cardiovasculares, pleurais e pulmonares, hematológicas,
gastrointestinais e oftalmológicas.
91
incluem eritema generalizado e lesões bolhosas. O eritema agudo pode evoluir sem
deixar cicatriz (Figura 3).
Figura 3: Manifestações cutâneas de Lúpus Eritematoso Sistémico. A: Lúpus cutâneo agudo (Généreau T et al. High-
Dose Intravenous Immunoglobulin in Cutaneous Lúpus Erythematosus. Arch Dermatol. 1999;135(9):1124-1125.); B:
Lúpus cutâneo sub-agudo (Mayor-Ibarguren et al. Subacute Cutaneous Lúpus Erythematosus Induced by Mitotane. JAMA
Dermatol. 2016;152(1):109-111.); C: Lúpus Discóide com distribuição malar; eritema (indicando actividade da doença),
folículos com queratina e atrofia da pele; o padrão característico de hiperpigmentação na borda activa da lesão e
hipopigmentação no centro inactivo é especialmente evidente em doentes de raça negra (EULAR Textbook on Rheumatic
Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3)
O lúpus cutâneo subagudo frequentemente não está associado a LES – 50% dos
doentes com este tipo de envolvimento cutâneo tem LES, mas apenas 10% dos doentes
com LES têm lúpus cutâneo subagudo. As lesões cutâneas podem ser anulares ou
psoriasiformes, e estão frequentemente associadas a anticorpos anti-Ro e anti-La e a
fotossensibilidade. Macroscopicamente, começam por ser pequenas lesões
eritematosas, papulares e descamativas, que evoluem com padrão psoriasiforme
(papuloescamoso) ou anular. As áreas mais frequentemente afectadas são os ombros,
antebraços, pescoço e metade superior do tronco. O lúpus cutâneo subagudo tem sido
associado à presença de anticorpos anti-Ro/SSA, deficiências congénitas de C2 e C4 e
alguns fármacos, como a hidroclorotiazida.
Figura 4: Distribuição das lesões cutâneas de Lúpus Eritematoso. (In Dermatology Essentials – ebook.)
92
O lúpus cutâneo crónico, também conhecido como lúpus discóide, afecta cerca de 25%
dos doentes com LES. As lesões consistem em placas eritematosas, infiltradas,
cobertas por escama e que se estendem aos folículos pilosos. Podem envolver a face,
pescoço e couro cabeludo; menos frequentemente, os pavilhões auriculares e a metade
superior do tronco. Evoluem com bordo inflamatório em halo e cicatriz central com
atrofia, telangiectasias e híper ou hipopigmentação.
O envolvimento mucoso, para além das úlceras orais (indolores; podem não estar
relacionadas com a actividade da doença), inclui placas esbranquiçadas e irregulares,
áreas de eritema, lesões cicatriciais esbranquiçadas.
Figura 5: Artropatia de Jaccoud. Fotografia (A) e radiograma de mãos (B) de um doente com Lúpus Eritematoso
Sistémico. As deformações das mãos revelam desvio cubital nas articulações metacarpo-falângicas, dedos em pescoço
de cisne ou em boutounnière, hiperextensão da articulação interfalângica do primeiro dedo, que se assemelham às
observadas na Artrite Reumatóide. A ausência de erosões na radiografia distingue-a da artrite deformante da Artrite
Reumatóide. (In Chaurasia, Ajay S et al. Jaccoud's arthropathy, The Lancet, Volume 381, Issue 9883, 2013.
93
O envolvimento renal resulta da formação e deposição de imunocomplexos no rim, com
inflamação glomerular e consequente glomerulonefrite – nefrite lúpica (NL). A
manifestação dominante da nefrite lúpica é a proteinúria, por vezes acompanhada de
hematúria e cilindrúria. A nefrite lúpica está classificada em 6 classes.
O envolvimento renal ocorre em 40-70% de todos os doentes com LES e é uma das
principais causas de morbilidade, mortalidade e admissão hospitalar.
A doença pulmonar intersticial pode ser uma complicação de LES em 3 a 13% dos
doentes, mas é raramente grave. A pneumonite aguda lúpica apresenta-se como tosse,
dispneia, dor torácica tipo pleurítica e febre, ocorrendo em 1 a 4% dos doentes. As
radiografias de tórax revelam infiltrados uni ou bilaterais.
94
Outras manifestações da doença podem ser o shrinking lung syndrome, tromboembolia
pulmonar e hipertensão pulmonar.
Critérios de Classificação
Numa tentativa de uniformizar os doentes incluídos em estudos, criaram-se critérios de
classificação do LES. Estes critérios não são critérios de diagnóstico e, como se pode
ver pelos critérios abaixo enumerados, deixam de foram várias manifestações possíveis
de lúpus (por exemplo, o envolvimento neurológico).
95
sensibilidade superior a 86%, especificidade superior a 95% e identificam doença de
longa duração. Para um doente ser classificado como tendo LES, tem que preencher
pelo menos 4 dos 11 critérios ao longo do tempo. Os critérios ACR 1997 valorizam muito
as manifestações mucocutâneas (4 de 11 critérios) e atribuem a mesma importância a
todos.
Os critérios SLICC 2012 são mais sensíveis (94%) e têm uma especificidade de 92%.
Com estes critérios, um doente é classificado como tendo LES se tiver nefrite lúpica
documentada por biópsia renal com ANA ou anti-dsDNA positivo, ou se preencher 4
critérios com pelo menos 1 critérios clínico e 1 critério imunológico/ANA positivo.
Diagnóstico
Para se diagnosticar LES é necessário integrar as manifestações clínicas de LES com
exames complementares de diagnóstico. Os exames complementares utilizados
incluem testes serológicos [pesquisa de autoanticorpos, nomeadamente ANA,
anticorpos extraíveis do núcleo (ENAs: anti-Ro, anti-La, Anti-Sm, anti-RNP), anti-
dsDNA, anti-P ribossómico], doseamento de fracções do complemento (C3, C4, CH50),
pesquisa de anticorpos anti-fosfolípidos, hemograma, exame sumário de urina com
sedimento urinário, assim como outros exames de acordo com a clínica do doente
(biópsia renal, eletrocardiograma, ecocardiograma, provas de função respiratória, TC
torácica de alta resolução, RMN encefálica, eletroencefalograma, electromiograma,
teste de Coombs, etc).
96
Os anticorpos anti-nucleares (ANA) são um bom teste de rastreio devido à sua elevada
sensibilidade (95%) e simplicidade. No entanto, a especificidade destes anticorpos é
baixa, sendo que estão também presentes na esclerose sistémica, polimiosite,
dermatomiosite, artrite reumatóide, tiroidite auto-imune, hepatite auto- imune, infecções,
neoplasias e em associação com muitos fármacos. Há ainda positividade para estes
anticorpos em indivíduos saudáveis – a formação de ANA é dependente da idade:
estima-se que 10-35% de indivíduos com >65 anos têm ANA detectável, geralmente em
títulos mais baixos que nas doenças auto-imunes. Em contraste com o baixo valor
preditivo positivo dos ANA, um doente com ANA negativos tem <3% de probabilidade
de ter LES, pelo que se trata de um teste útil para excluir este diagnóstico.
Avaliação da Actividade
À semelhança de outras patologias imunomediadas, também no LES é necessário
proceder à avaliação da actividade da doença. Para tal, existem algumas escalas
validadas, nomeadamente o SLEDAI (Systemic Lúpus Erythematosus Disease Activity
Index) e o BILAG (British Isles Lúpus Assessment Group Scale). Há várias outras
escalas, mas a sua apresentação está para além dos objetivos deste curso. O
importante, é utilizar uma escala (idealmente sempre a mesma) na avaliação seriada
destes doentes.
O SLEDAI é, porventura, um índice mais fácil e rápido de utilizar, pelo que é descrito
muito sucintamente. Avalia 24 itens: convulsões (8 pontos), síndrome cerebral orgânica
(8 pontos), visual (8 pontos), pares cranianos (8 pontos), cefaleia lúpica (8
pontos), cerebrovascular (8 pontos), vasculite (8 pontos), artrite (4 pontos), miosite (4
pontos), cilindros urinários (4 pontos), hematúria (4 pontos), proteinúria (4 pontos), piúria
(4 pontos), eritema malar de novo (4 pontos), alopécia (4 pontos), mucosas (4 pontos),
pleurite (4 pontos), pericardite (4 pontos), consumo de complementos (2 pontos),
aumento da ligação do DNA (2 pontos), febre (1 ponto), trombocitopénia (1 ponto),
leucopénia (1 ponto). A pontuação de cada item é atribuída se este estiver presente nos
últimos 10 dias à altura da avaliação clínica. A pontuação mínima é 0 e a máxima 105
pontos. Uma pontuação igual ou superior a 6 sugere doença activa, que necessita de
tratamento. A variação do índice é clinicamente significativa se houver uma melhoria de
6 pontos ou um agravamento de 8 pontos.
97
Avaliação de Dano
Na avaliação e seguimento dos doentes com LES, é importante avaliar o dano causado
quer pela doença quer pelos fármacos utilizados no seu tratamento.
Tratamento
Em relação ao tratamento do LES, estão actualmente disponíveis diferentes tipos de
fármacos e a sua utilização depende do tipo e gravidade dos órgãos envolvidos.
Mais de meio século depois da sua introdução, os corticóides continuam a ser a base
do seu tratamento. Dependendo da gravidade da doença, podem ser utilizados em
pulsos de dose elevada (metilprednisolona 500 – 1000 mg; doença grave em que é
necessário rápido controlo da actividade), em altas doses (0,5 ou 1 mg/kg/dia; sistema
nervoso, rim, vasculite), doses médias (0,2 a 0,5 mg/kg/dia; vasculite, hematológico,
serosite), ou em baixa dose (0,1 a 0,2 mg/kg/dia; serosite, pele, artrite). A utilização
destes fármacos não é isenta de efeitos adversos e pode contribuir para a acumulação
de dano nos doentes com LES – diabetes, hipertensão arterial, osteoporose, necrose
óssea avascular, cataratas, miopatia, entre outros.
98
hematológicas e articulares que não responderam ao tratamento com corticóides e
outros imunossupressores. Estão em curso estudos para perceber se é eficaz no
tratamento de formas graves do LES, como a nefrite lúpica e o lúpus neuropsiquiátrico.
É importante não esquecer que estes fármacos podem ter efeitos adversos,
nomeadamente mielotoxicidade, hepatotoxicidade, gastrointestinais. Pode ser
necessário monitorizar o tratamento com avaliações laboratoriais periódicas,
nomeadamente hemograma e função hepática. Não esquecer também que alguns
fármacos são seguros na gravidez e não devem ser suspensos nessa situação
(corticóides, ciclosporina, azatioprina), enquanto outros devem ser suspensos antes da
concepção, pelo risco teratogénico (metotrexato). O micofenolato mofetil está contra-
indicado durante a gravidez. Por último, e não menos importante, é preciso estar atento
também às comorbilidades dos doentes, e tratá-las.
Prognóstico
O prognóstico do LES vai depender da idade de início da doença e dos órgãos
envolvidos, sendo que os doentes com nefrite lúpica têm habitualmente pior prognóstico.
O tratamento intensivo da nefrite lúpica está associado a evolução mais favorável. Os
doentes com história de doença com múltiplos flares estão também associados a pior
prognóstico.
99
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Rheumatology nomenclature and case definitions for neuropsychiatric lúpus syndromes. Arthritis
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100
5. ESCLEROSE SISTÉMICA
Definição
A Esclerose Sistémica (ES) é uma doença sistémica crónica, cuja etiologia ainda não
está totalmente clarificada. É uma doença auto-imune do tecido conjuntivo,
caracterizada por lesão vascular e fibrose, atingindo pele e órgãos internos, com
mortalidade e morbilidade importantes.
Epidemiologia
É uma doença rara com uma prevalência estimada 1:10.000 habitantes, a nível mundial,
e incidência de 2:20.000.000/pessoa/ano. Há uma predominância do sexo feminino
(ratio 3:1) e um pico de incidência bi-modal, na 3ª e 5ª décadas de vida.
Etiologia e Fisiopatogénese
101
etiopatogénese da ES. Os linfócitos T também surgem envolvidos, através da libertação
de interleucinas inflamatórias, como IL-4, IL-3 e CXCL4.
Figura 1: O processo etiopatogénico na Esclerose Sistémica (ES). A activação dos fibroblastos e a fibrose subjacente à
ES são induzidos por activação endotelial e lesão vascular (1), conduzindo a reacção inflamatória descontrolada (2,3).
TGFβ – Transforming growth factor; PF4 – platelet factor 4; ROS – reactive oxygen species; ECM – extracellular matrix;
TLR4 – toll-like receptors 4; CTGF – connective tissue growth factor; PDGF – platelet-derived growth factor. (From
Allanore Y et al. Systemic Sclerosis. Nature Reviews (1) 2015:1.)
Manifestações Clínicas
102
A ES afecta vários órgãos, sendo que as manifestações clínicas variam consoante a
gravidade e subtipo da doença – ver Tabela 1. A manifestação mais frequente é o
fenómeno de Raynaud, decorrente de vasoespasmo e lesão endotelial, que pode
agravar, surgindo úlceras digitais (UD). As UD são uma complicação grave, com
importante morbilidade, risco de isquémia, necrose e auto-amputação, para além do
risco de sobreinfecção. Estes doentes requerem frequentemente internamento para
administração endovenosa de antibióticos e vasodilatadores, por vezes com
necessidade de desbridamento cirúrgico. O atingimento renal, pulmonar e cardíaco
pode evoluir com gravidade, estando associado a maior mortalidade.
ÓRGÃO /SISTEMA
MANIFESTAÇÕES
ENVOLVIDO
Espessamento cutâneo, telangiectasias, hiperpigmentação /
despigmentação, contracturas, fenómeno Raynaud, úlceras digitais,
PELE
perda substância da polpa digital, isquémia digital/ gangrena,
calcinose
Hipertensão arterial grave, protenúria, insuficiência renal rapidamente
RENAL
progressiva, vasculopatia crónica
Artralgias, artrite, miopatia, miosite, atrofia muscular, fricção/ atrito
MUSCULOESQUELÉTICO
tendões, acrosteólise
Doença intersticial pulmonar (pneumonia intersticial inespecífica),
PULMONAR derrame pleural, fibrose pulmonar, hipertensão pulmonar,
bronquiectasias
Palpitações, arritmias, alterações de condução, fibrose em banda
CARDÍACO/
(patch band fibrosis), derrame pericárdico, disfunção diastólica,
CARDIOVASCULAR
miocardite, hipertensão pulmonar
Disfagia, refluxo, úlceras, esófago Barrett, esofagite, saciedade
GASTRO
precoce, dismotilidade, enfartamento, diarreia/ obstipação, pseudo-
obstrução, má-absorção, vasculopatia com hemorragias, cirrose biliar
-INTESTINAL
primária
NEUROLÓGICO Síndrome canal cárpico, neuropatia periférica (por vasculite)
Tabela 1: Resumo de aspectos semiológicos associados a diferentes sistemas de órgãos na esclerose sistémica.
Diagnóstico Diferencial
103
necessária a colaboração de dermatologistas – as formas de morfeia generalizada, por
exemplo, podem ser difíceis de distinguir de uma esclerose sistémica localizada ou
mesmo dos chamados scleroderma mimicking syndromes. Do ponto de vista vascular,
devem ser tidas em conta outras causas de fenómeno de Raynaud e mesmo vasculites.
As alterações inflamatórias da ES podem ser sobreponíveis a outras DAI, como o lúpus
eritematoso sistémico, artrite reumatóide ou miosites, o que pode dificultar o diagnóstico
diferencial. É importante salientar que 20% dos doentes com ES apresentam síndromes
de sobreposição com outras DAI. A capilaroscopia peri- ungueal representa uma
contribuição importante na distinção entre fenómeno de Raynaud primário e secundário,
bem como na detecção precoce de ES em fase inicial, mediante a presença de
megacapilares – capítulo I.4.
Critérios de Classificação
ES CUTÂNEA DIFUSA
• Rápida progressão das alterações cutâneas após início de fenómeno de Raynaud
• Espessamento cutâneo na região proximal dos membros e tronco
• Envolvimento precoce de órgãos internos
• Fibrose intersticial pulmonar grave
• Envolvimento miocárdico
• Envolvimento renal precoce
• Pior sobrevida global
• 20-30% com ac. anti-Scl70 positivo
ES CUTÂNEA LIMITADA
• Longa evolução de fenómeno de Raynaud isolado
• Espessamento cutâneo acral (limitado a face, mãos, antebraços, pernas e pés)
• Envolvimento tardio de órgãos internos
• Desenvolvimento tardio de hipertensão pulmonar com ou sem doença intersticial
pulmonar
• Envolvimento gastrointestinal grave
• Associação a calcinose e telangiectasias
• 30-40% com Ac anticentrómero positivo
ESCLERODERMIA SINE SCLERODERMA
• Fenómeno de Raynaud
• Características imunológicas e capilaroscópicas típicas de esclerose sistémica
• Sem espessamento cutâneo
• Manifestações clínicas por envolvimento esplâncnico e vascular
SÍNDROME DE SOBREPOSIÇÃO (OVERLAP) COM ESCLEROSE SISTÉMICA
• Um dos três subtipos acima descritos com características clínicas e imunológicas de
outra doença auto-imune
Tabela 2: Características clínicas das variantes de Esclerose Sistémica.
104
A ES pode ser dividida em dois grandes grupos, segundo a extensão do envolvimento
cutâneo: se envolvimento proximal, considera-se ES cutânea difusa – Fig.2; se o
envolvimento ao nível dos membros for distal aos cotovelos e aos joelhos, com ou sem
envolvimento da face e pescoço, considera-se ES cutânea limitada – Fig.3. Um grupo
de doentes com ES cutânea limitada apresenta manifestações clínicas particulares,
constituindo o chamado Síndrome de CREST, acrónimo de calcinose, fenómeno de
Raynaud, dismotilidade esofágica, esclerodactilia e telangiectasias.
Figura 2: Escleroses Sistémica (ES) Cutânea Difusa. A: o envolvimento grave da pele na ES cutânea difusa afecta a
aparência facial; B: a função das mãos é frequentemente afectada, com aparecimento de úlceras digitais e ulceração
nas áreas de pressão ou trauma; C: alterações tróficas nas fases tardias da doença; D: hipopigmentação típica da pele
espessada, com perda de pilosidade ao nível dos membros; E: alterações tróficas das mãos num estadio tardio da
doença. (From Denton C and Khanna D. Systemic Sclerosis, Lancet 2017; 52:53-58.)
105
Figura 3: Esclerose Sistémica Cutânea Limitada. A: perda de tecidos moles peri-orais; B: esclerodactilia; C:
telangiectasias faciais; D: capilares peri-ungueais dilatados; E: calcinose cútis extensa. (From Denton C and Khanna D.
Systemic Sclerosis, Lancet 2017; 52:53-58.)
Diagnóstico
Existem vários anticorpos (Ac.) presentes nos doentes com ES, embora nem todos
sejam específicos. Entre eles estão os anticorpos antinucleares (ANA), presentes em
95% dos doentes. Além destes destacam-se: Ac. anti- topoisomerase I (Scl 70), Ac. Anti-
Centrómero, Ac. Anti-RNP U1 – anti-fibrilharina, Ac. Anti-RNP U3, Ac. anti – RNA
polimerase III, Ac. Anti-Pm/Scl e Ac. Anti-Th/To (Tabela 3). Os auto-anticorpos
específicos da ES são raros noutras doenças e não está totalmente ainda clarificado o
seu papel na patogénese da doença. Estão geralmente presentes no início das
manifestações clínicas e não se alteram ao longo do curso da doença. Os seus alvos
106
são proteínas ribonucleadas e enzimas nucleares (topo e poli isomerases) e a sua
documentação prende-se sobretudo com as manifestações clínicas que lhes estão
associadas e por serem reconhecidos indicadores de prognóstico.
ANTI-CENTRÓMERO
• Associado à forma limitada da doença
• Maior tempo de evolução de doença à data do diagnóstico
• Pouco frequente associação a fibrose pulmonar
• Menor risco de crise renal
• Associação a hipertensão arterial pulmonar (lesão vascular)
ANTI TOPOISOMERASE I (SCL70)
• Doença mais grave
• Associação a doença intersticial pulmonar / fibrose pulmonar
• Associação a crise renal
• Envolvimento Gastrointestinal mais grave
• Associação a envolvimento cardíaco
ANTI-RNP U3
• Forma difusa
• Envolvimento multiorgânico
• Mais frequente na raça negra
• Frequente fibrose pulmonar grave e associação a hipertensão pulmonar
• Envolvimento GI grave (má-absorção, pseudo-obstrução)
ANTI-RNA POLIMERASE 3
• Espessamento cutâneo mais grave
• Maior frequência de crise renal
• Rara associação a fibrose intersticial grave
Tabela 3: Anticorpos mais frequentemente associados à Esclerose Sistémica.
107
Envolvimento de órgão-alvo e Avaliação da Actividade da Doença
Sendo a ES uma doença crónica, com envolvimento possível da pele e de vários órgãos
internos, a actividade e evolução da doença são altamente variáveis, pelo que a sua
avaliação e monitorização diferem de doente para doente (Figura 4). Apesar de não
haver fármacos modificadores de doença para a ES, a abordagem precoce da doença
está associada a redução da mortalidade.
Figura 4: Atingimento multi-orgânico da Esclerose Sistémica, com aspectos clínicos, histológicos e radiológicos. A
vasculopatia digital pode levar a ulceração, necrose e amputação em casos graves – A: úlcera digital, B: necrose seca;
C: auto-amputação; D: pseudo-obstrução intestinal; E: ectasia vascular do antro gástrico. A fibrose pulmonar pode ser
identificada pelo alargamento do tronco arterial pulmonar relativamente à aorta e, se estiver ausente, é mais frequente
revelar hipertensão arterial pulmonar – F: fibrose pulmonar com pneumonia intersticial atípica em Tc pulmonar de alta
resolução; G: fibrose pulmonar com pneumonia intersticial inespecífica em TC pulmonar de alta resolução; H: hipertensão
arterial pulmonar à histologia; I: hipertensão arterial pulmonar em TC de tórax; J: fibrose cardíaca, K: crise
Denton C and Khanna D. Systemic
renal esclerodérmica; L: contracturas digitais; M: calcinose; N: acro-osteólise. From
Sclerosis, Lancet 2017; 52:53-58.)
Microcirculação
A capilaroscopia peri-ungueal – ver capítulo I.4 – deve ser solicitada no estudo inicial e
repetida periodicamente, uma vez que a evolução dos padrões esclerodérmicos
apresenta boa correlação com o envolvimento sistémico.
108
Envolvimento Cutâneo e Musculoesquelético
A pele está quase sempre afectada nos doentes com ES, excepto nos casos sine
scleroderma. Apesar de a pele poder provocar morbilidade significativa (prurido,
despigmentação, úlceras digitais), não está por si só associada a um aumento da
mortalidade. Sabe-se, no entanto, que o envolvimento cutâneo extenso ou rapidamente
progressivo, está associado a atingimento orgânico – ES difusa. Normalmente, a
espessura cutânea tende a aumentar na fase precoce da doença difusa e a diminuir na
fase tardia, comum pico de envolvimento aos 12-18 meses após o início do
espessamento cutâneo.
Envolvimento Gastrointestinal
O envolvimento do tracto gastrointestinal (GI) afecta a maioria dos doentes com ES,
com diferentes graus de gravidade, e qualquer segmento pode ser afectado, por
diferentes processos: a fibrose atinge o músculo liso e torna a parede dos órgãos
atrófica; a neuropatia esplâncnica, induzida por vasculopatia, provoca dismotilidade.
Os sintomas associados ao atingimento do tracto GI superior incluem disfagia, refluxo
gastro-esofágico, pirose e enfartamento pós-prandial. Menos frequentemente, pode
surgir laringite, gengivite, erosão do esmalte dentário, irritação crónica da orofaringe e
disfonia. A ectasia vascular gástrica antral (estômago em melancia) é uma manifestação
rara, que pode provocar anemia silenciosa e associado ao anticorpo anti-RNA
polimerase III (Figura 5).
109
Figura 5: 1: Estômago em melancia (GAVE – gastric antral vascular ectasias) (From Miller ML: Winners of the 2002
American College of Rheumatology Annual Slide Competition [submitted by April Chang-Miller and Mark V. Larson]
Arthritis Rheum 2003; 48(10):2737-2738). 2: Estudo manométrico do esófago, com suporte em radiograma simples, com
aumento da peristalse esofágica em resposta a estimulação nervosa transcutânea (A – antes da estimulação, B –
30 minutos após estimulação) ( Kaada B (1984) Systemic sclerosis: Successful treatment of ulcerations, pain, Raynaud's
phenomenon, calcinosis, and dysphagia by transcutaneous nerve stimulation — A case report. Acupuncture & Electro-
Therap Res Int J9: 31-44); 3: Escala de Rodnan, para avaliação do espessamento cutâneo.
Envolvimento Pulmonar
A fibrose pulmonar, ou doença intersticial pulmonar (DIP), está presente em até 80%
dos doentes com ES, mas apenas 25-30% desenvolvem doença progressiva. A DIP é
uma complicação precoce, com muitos doentes a desenvolver doença restritiva grave
nos 5 primeiros anos de doença. As provas de função respiratória (PFR) não são
sensíveis nem específicas o suficiente para determinar envolvimento precoce, pelo que
a TC de tórax de alta resolução é necessária para confirmar o diagnóstico. A maioria
dos doentes apresenta pneumonite intersticial fibrótica inespecífica, pelo que a biópsia
pulmonar não é necessária. A TC Tórax de alta resolução não é necessária anualmente,
excepto se alterações na espirometria que sugiram progressão da DIP; nestas
situações, o radiograma do tórax (RxT) pode ser realizado anualmente. As provas de
função respiratória (PFR) com avaliação da difusão do monóxido de carbono (DLCO)
devem ser realizadas na avaliação inicial e após 6 meses a 1 ano, nos primeiros 4 anos,
se não houver alterações e dependendo do risco. A broncoscopia com lavado bronco-
alveolar só é realizada se for necessário excluir infecção atípica, neoplasia ou
sarcoidose. Pode ainda ser feita prova de marcha durante 6 minutos, na avaliação inicial
e depois anualmente.
A hipertensão arterial pulmonar (HTP) afecta cerca de 15% dos doentes com ES,
110
sendo predominante nos doentes com ES cutânea limitada. Dado a sua contribuição
para a mortalidade destes doentes, o diagnóstico e detecção precoces são
fundamentais. O principal método utilizado para a detecção da HTP é o ecocardiograma
transtorácico (ETT), embora possa não detectar até 15-20% de casos de regurgitação
tricúspide e 30% de HTP. Foi estabelecido um algoritmo de consenso (http://detect-
pah.com) para estabelecer a HTP, com base em dados clínicos, laboratoriais, resultados
das PFR e ETT. Há factores de risco clínicos que podem ser rapidamente reconhecidos:
diminuição da DLCO, presença de anticorpos anti- centrómero, padrão do ANA e
duração da doença. O cateterismo direito é considerado o gold standard para distinguir
HTP de outras causas de hipertensão pulmonar, como disfunção sistólica ou diastólica.
Envolvimento Renal
A crise renal esclerodérmica (CRE) caracteriza-se por aumento súbito da tensão arterial
associada a insuficiência renal aguda, sendo mais frequente nos doentes com ES difusa
e anticorpos anti-RNA polimerase III. A apresentação típica manifesta-se por quadro
abrupto de hipertensão arterial grave com cefaleia, alterações da visão, convulsões,
insuficiência cardíaca congestiva, derrame pericárdico, anemia hemolítica
microangiopática, trombocitopénia e insuficiência renal oligúrica rapidamente
progressiva. Os exames complementares revelam hematúria microscópica, cilindros
eritrocitário, proteinúria e hiperreninémia. A biópsia renal revela alterações nas artérias
interlobulares, edema da íntima, com proliferação celular intensa e deposição de
mucopolissacáridos, seguida de necrose fibrinóide na parede dos vasos (Fig. 4).
A doença renal crónica não está bem descrita e a presença de alterações como
proteinúria, hipertensão ou elevação da creatinina não predizem futura CRE. Estes
doentes devem realizar doppler de artérias renais para avaliar o envolvimento vascular.
Em todos os doentes deve ser realizada avaliação regular da tensão arterial, sobretudo
nos doentes com Ac. Anti-RNA polimerase III. A função renal deve ser avaliada
periodicamente: creatinina sérica na avaliação inicial e depois em cada consulta;
depuração de creatinina ou relação proteínas/creatinina urinária inicialmente e depois a
cada 3 ou 6 meses, se existirem sinais de eventual risco renal acrescido.
Envolvimento Cardíaco
O atingimento cardíaco é frequente na ES e contribui para sintomas como dispneia,
cansaço, síncope, tonturas e palpitações. A fibrose cardíaca, embora atinja o miocárdio
e/ou o sistema de condução, é frequentemente subclínica. Os ventrículos podem ser os
dois atingidos, com distribuição dispersa e irregular. Distingue-se da doença coronária
aterosclerótica por ausência de artérias afectadas, de depósitos de hemossiderina ou
atingimento das camadas subendocárdicas.
A neuropatia autonómica é rara, mas está descrita, manifestando-se por taquidisritmias
por vezes assintomáticas e fatais. Surge com mais frequência em doentes com
envolvimento musculoesquelético e miocárdico. Pode também ocorrer pericardite ligeira
que, embora seja maioritariamente auto-limitada e não requeira
111
tratamento específico, pode evoluir para crise renal esclerodérmica.
A detecção precoce de envolvimento cardíaco e o diagnóstico de cardiotoxicidade
permite um tratamento precoce, com prevenção de cardiomiopatia, e melhora o
diagnóstico. Deste modo, é importante caracterizar e monitorizar a função cardíaca
nestes doentes, através de:
• Exame objectivo e avaliação de factores de risco cardiovasculares
• Electrocardiograma simples ou Holter de 24h – detecção de alterações da
condução ou arritmias
• Radiograma torácico – pesquisa de derrame pericárdico e/ou aumento do
índice cardiotorácico
• Ecocardiograma transtorácico bidimensional (ETT) com estudo doppler –
fornece informação sobre a fracção de ejecção do ventrículo esquerdo, função
diastólica, gradiente da válvula tricúspide, diâmetro do ventrículo direito,
alterações da cinética segmentar e possível presença de hipertensão pulmonar.
• Doseamento de NTproBNP
• Prova de marcha de 6 minutos
• Teste TILT
• Cateterização cardíaca direita – para confirmar e avaliar hipertensão pulmonar
detectada em ETT se >35 mm Hg.
• RMN cardíaca – avaliação da reserva coronária e pode também demonstrar
persistência de edema inflamatório ou fibrose; exame preferencial se suspeita
de miocardite.
Tratamento
112
tratamento. As úlceras digitais requerem terapêutica tópica e endovenosa – iloprost,
nifedipina, antibioterapia -, bem como vigilância e acompanhamento regular. O
bosentano pode ser utilizado na recorrência de novas UD.
A DIP pode ser tratada com ciclofosfamida (oral diariamente ou pulsos endovenosos
mensais) ou micofenolato de mofetil; embora a duração não esteja ainda definida,
Denton et al sugerem 4 a 5 anos de PFR estáveis antes de começar a desmamar estes
fármacos. O transplante de células estaminais hematopoiéticas pode ser usado em
doentes com DIP moderada a grave, tendo sido esta a principal indicação terapêutica
nos estudos ASTIS e SCOT. Estão em curso ensaios clínicos para a utilização de
fármacos como o nintedanib, a perfenidona e o rituximab para a DIP. O transplante
pulmonar tem sido uma opção nalguns centros de referência, mas ainda sem dados
significativos.
113
estaminais hematopoiéticas uma opção terapêutica em doentes com complicações
graves que não melhoraram ou pioraram com agentes imunossupressores
convencionais.
Prognóstico
A ES apresenta maior mortalidade que a população geral (risco 2,72 vezes superior),
estando a sobrevida aos 5 anos estimada em 74,9%. O envolvimento pulmonar e
cardíaco está associado a maior mortalidade. Estão associadas a mau prognóstico as
situações de hipertensão arterial pulmonar, fibrose pulmonar e doença difusa.
Conclusão
A ES é uma doença complexa, cujo processo etiopatogénico assenta em dano vascular,
inflamação e fibrose. O fenómeno de Raynaud é uma manifestação muito frequente,
sendo também atingidos com frequência a pele e o tracto gastrointestinal. O
envolvimento pulmonar (fibrose pulmonar e hipertensão pulmonar) e cardíaco estão
associados a pior prognóstico.
O tratamento é direccionado para a vasodilatação, imunomodulação e
imunossupressão. Novos fármacos anti-fibróticos estão actualmente a ser testados em
ensaios clínicos, mas ainda sem resultados válidos.
ASPECTOS PRÁTICOS
• A ES atinge praticamente todos os órgãos, sendo o envolvimento vascular,
cutâneo e GI o mais frequente.
• O tratamento de primeira linha deve incluir antagonistas de canais de cálcio.
• O envolvimento pulmonar e cardíaco está associado a pior prognóstico.
114
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115
6. SÍNDROME DO ANTICORPO ANTI-FOSFOLÍPIDO
Definição
A Síndrome do Anticorpo Anti-Fosfolípido (SAAF) é admitida como condição pró-
trombótica caracterizada por trombose venosa ou arterial e/ou morbilidade obstétrica,
juntamente com imunologia persistentemente positiva para os anticorpos anti-
fosfolípidos: anticoagulante lúpico (ACL), anticorpo anti-cardiolipina (ACA) e anticorpo
anti-beta2 glicoproteína1 (AB2GP1). A SAAF pode classificar-se em primária, nas
situações em que não está associada a outras condições clínicas, ou secundária,
quando associada a outras doenças sistémicas, sendo a mais frequente o Lúpus
Eritematoso Sistémico (LES), mas também infecções, fármacos e neoplasias.
Epidemiologia
A SAAF pode manifestar-se de formas diferentes: portadores assintomáticos de
anticorpos persistentemente positivos; SAAF “clássica”, que cumpre critérios clínicos e
laboratoriais, como veremos adiante; SAAF obstétrica; doentes com imunologia positiva,
mas manifestações clínicas não-trombóticas (como trombocitopénia, anemia hemolítica
ou livedo reticular); e a SAAF catastrófica.
Etiologia e Fisiopatogénese
A etiopatogénese subjacente à SAAF sugere um processo patogénico faseado e
multifactorial. Numa primeira fase os anticorpos específicos da SAAF ligam-se às
proteínas plasmáticas e às proteínas superficiais das células do endotélio vascular ou
das plaquetas, promovendo um estado pró-coagulante (Fig.1 e Fig.2B). Numa segunda
fase um evento precipitante vai alterar o equilíbrio homeostático entre factores pró e
anti-coagulantes; este trigger pode ser uma infecção, uma lesão endotelial, inflamação,
ou outros factores pró-coagulantes imunológicos ou não- imunológicos, como os anti-
conceptivos orais estrogénicos, cirurgia ou imobilização. A própria constituição genética
do indivíduo, no que concerne a mediadores inflamatórios, também pode influenciar
fortemente as manifestações clínicas da SAAF, como um excesso de produção das
fracções C3a e C5a do complemento.
Publicações recentes têm contribuído para uma melhor compreensão dos mecanismos
fisiopatológicos subjacentes a este processo patogénico. Arachchilage D e Laffan M
1
AVC: acidente vascular cerebral; EAM: enfarte agudo do miocárdio; TVP: trombose venosa profunda.
116
propuseram que a conformação da exposição antigénica nos anticorpos anti-
fosfolipídicos pode influenciar o fenótipo da SAAF (British Journal of Haematology 2017).
Sacharidou et al. propuseram que o receptor 2 da apoliproteína E (apoER2), um receptor
de lipoproteínas, quando ligado a anticorpos anti-fosfolípido, modula a sinalização
intracelular das células endoteliais, plaquetas e trofoblasto, aumentando a predisposição
para trombose. A activação da apoER2 diminui a activação da enzima sintetizadora de
óxido nítrico endotelial. Deste modo, irá haver uma insuficiência em óxido nítrico, o que
contribui para a trombose e oclusão não trombótica mediada pelos anticorpos
específicos da SAAF.
Figura 1: Mecanismos de coagulação mediados por anticorpos anti-fosfolípido (aPL). A acção dos anticorpos anti-
fosfolípido promove a coagulação por várias vias. (1) Os aPL interagem com as células endoteliais, inicialmente através
da ligação à beta2-glicoproteína-1 presente na superfície celular, e induzem um fenótipo endotelial pró-coagulante e pró-
inflamatório. (2) Os aPL provocam um aumento na produção do factor de expressão tecidular nas células endoteliais e
monócitos em circulação e promovem a adesão de leucócitos endoteliais, com secreção de citocinas e produção de
prostaglandina E2 (PGE2). (3) Os aPL reconhecem as proteínas de ligação aos fosfolípidos nas membranas plaquetárias
e ligam-se a elas, o que aumenta a agregação plaquetária. (4) Os aPL interferem com os componentes plasmáticos da
cascata de coagulação, inibindo a actividade anticoagulante e afectando a fibrinólise. Todos estes mecanismos
contribuem para um estado pró-coagulante mas, por si, não levam à formação de um coágulo. Para este processo, são
necessárias duas etapas: a presença de aPL constitui uma primeira fase; a presença de outra condição pró-coagulante
constitui a segunda fase; juntas, levam à coagulação propriamente dita, mediada pelo complemento. From Meroni et al.
Pathogenesis of antiphopholipid syndrome: understanding the antibodies. Nature Reviews 2011 (7): 330-339.
Manifestações Clínicas
Como referido, as manifestações clínicas caracterizam-se por tromboses venosas e
arteriais, morbilidade obstétrica e trombocitopénia ligeira a moderada. O envolvimento
de apenas um ou múltiplos vasos pode originar variadas apresentações clínicas,
inclusive num mesmo indivíduo (Fig.2). As manifestações clínicas mais frequentes são
a trombose venosa profunda, o AVC e o tromboembolismo pulmonar.
117
O envolvimento clínico da SAAF pode ser multi-orgânico: trombose periférica (TVP,
tromboflebites superficiais e tromboses arteriais e venosas nos membros, trombose da
veia subclávia e da jugular), neurológico (enxaqueca, AVC, AIT2, epilepsia, demência
multi-enfartes, coreia, encefalopatia aguda, mielite transversa, depressão, síndrome de
Guillain-Barré), pulmonar (TEP, HTP, microtrombose pulmonar), cardíaca (disfunção ou
estenose valvular, EAM, angina, miocardiopatia, vegetações não infecciosas, re-
trombose de bypass coronário), renal (trombose glomerular, enfarte renal, trombose de
artéria ou veia renal), gastrointestinal (isquémia mesentérica ou esofágica), enfarte
esplénico, cutânea (livedo reticular, úlceras cutâneas, lesões de pseudo-vasculite,
gangrena digital, necrose cutânea – Fig. 3), osteoarticular (artralgia, artrite, necrose
óssea avascular), oftalmológica (amaurose fugaz, trombose da artéria renal),
otorrinolaringológica (perfuração do septo nasal), hematológica (trombocitopénia
<100.000, anemia hemolítica), obstétrica (pré-eclâmpsia, eclâmpsia, abruptio
placentae3), fetal (aborto precoce <12 semanas, aborto tardio >12 semanas, restrição
do crescimento intra-uterino, partos prematuros, nado morto).
Figura 2: A – Esquema genérico com manifestações clínicas da Síndrome do Anticorpo Anti-Fosfolípico, com
envolvimento multi-orgânico. Cohen D et al. Diagnosis and management of the antiphospholipid syndrome. BMJ
2010;340:c2541. B – Efeitos principais dos anticorpos anti-fosfolípido (aPL) na placenta. Vários mecanismos estão
associados à perda fetal mediada por aPL. A trombose placentária pode ser induzida pelos aPL ligados a monócitos,
células endoteliais, plaquetas e componentes plasmáticos da cascata de coagulação. From Meroni et al. Pathogenesis
of antiphopholipid syndrome: understanding the antibodies. Nature Reviews 2011 (7): 330-339.
A SAAF Catastrófica é uma forma grave de SAAF em que ocorre trombose simultânea
de pequenos vasos, o que pode levar a falência multi-orgânica – 3 ou mais órgãos em
menos de uma semana; é uma manifestação rara, que ocorre em menos de 1% dos
casos, com 50% de mortalidade. Num estudo de Bucciarelli et al baseado no CAPS
2
AIT: acidente isquémico transitório, TEP: tromboembolismo pulmonar, HTP: hipertensão pulmonar; SIRS: systemic
inflammatory response syndrome.
3
Termo em latim ainda hoje utilizado para designar descolamento prematuro da placenta.
118
Registry4, a maioria destes episódios é precedida de infecção e as manifestações
clínicas dependem da extensão das manifestações trombóticas e do SIRS.
Figura 3: Lesões cutâneas na Síndroma do Anticorpo Anti-Fosfolípido. Placas necróticas reticuladas de diferentes
dimensões ao nível do maléolo externo (A), face anterior da coxa (B) e face interna da coxa (C). From Blume J and Miller
C. Antiphospholipid Syndrome: A Review and Update for the Dermatologist. Cutis. 2006;78:409-415.
Critérios de Diagnóstico
O diagnóstico da SAAF é estabelecido com base num evento clínico e um evento
laboratorial (Sidney, 2005):
- EVENTO CLÍNICO:
4
CAPS Registry – Catastrophic Anti-Phospholipid Syndrome, registo internacional criado em 2000 para registo de
doentes e complicações.
5
ELISA: enzyme-linked immunosorbent assay.
119
• Anticorpo anti-beta2-glicoproteína-1 – isótipos IgM e/ou IgG no soro ou plasma,
avaliadas por ELISA.
A SAAF catastrófica pode ser definida como definitiva ou provável. O primeiro caso
preenche os 4 critérios; no segundo há evidência de envolvimento de pelo menos dois
órgãos na ausência de confirmação laboratorial da imunologia ao fim de 6 semanas nos
casos em que os doentes tenham falecido, no caso de não haver confirmação
histológica ou se os eventos clínicos foram espaçados no tempo. Tem havido alguns
casos descritos de SAAF catastrófica paraneoplásica, associados sobretudo a tumores
sólidos, provavelmente pela produção de autoanticorpos pelo sistema imunitário como
resposta a antigénios tumorais, produção de imunoglobulinas monoclonais com acção
anti-fosfolipídica ou secreção de anticorpos anti-fosfolípido por células tumorais
(Ideguchi et al).
O estudo analítico deve incluir o estudo de coagulopatias: pesquisa dos anticorpos anti-
fosfolípido (ACA, ACL, AB2GP1), crioglobulinas, criofibrinogénio, actividade de proteína
C, actividade da proteína S, mutação do factor V de Leiden. Deve ser tido em atenção
que os valores do ACL, Proteína C e S poderão estar alterados se já tiver sido iniciada
anticoagulação. Estão em estudo outros anticorpos para SAAF, nomeadamente o
anticorpo anti-fosfatidilserina/pro-trombina e o anticorpo anti- fosfatidiletanolamina,
embora a sua utilização ainda não esteja estandardizada. Deve ser também solicitado
hemograma, esfregaço de sangue periférico, estudos de coagulação, anticorpo anti-
nuclear, factor reumatóide e D-dímeros.
120
SITUAÇÕES EM QUE SE DEVE PESQUISAR ANTICORPOS ANTI-FOSFOLÍPIDO
TROMBÓTICAS
- Trombose arterial < 50 anos
- Trombose venosa sem causa aparente < 50 anos
- Tromboses recorrentes
- Tromboses em locais pouco frequentes
- Doentes com eventos trombóticos venosos e arteriais
- Qualquer doente internado por microangiopatia trombótica de etiologia desconhecida
M ANIFESTAÇÕES OBSTÉTRICAS
- ≥1 perdas fetais > 10 semanas de gestação sem causa evidente
- Restrição do crescimento intra-uterino grave, sem causa evidente
- Pré-eclâmpsia precoce ou grave
- ≥3 abortos espontâneos < 10 semanas de gestação
DOENTES COM LES
- Estudo inicial
- Repetir antes de gravidez, cirurgia, transplante, tratamentos à base de estrogénios ou na
presença de eventos neurológicos, vasculares ou obstétricos de novo
Tabela 1: Situações em que se devem pesquisar anticorpos anti-fosfolípico. Adaptado de Cohen D, et al. Diagnosis and
management of the antiphospholipid Syndrome. BMJ 2010;340:c2541
A biópsia cutânea pode ser necessária nos doentes com lesão cutânea a esclarecer,
devendo ser excluído processo de vasculite.
Tratamento
O tratamento da SAAF deve ser direccionado para o tratamento de eventos clínicos e a
imunossupressão só deve ser utilizada na presença de SAAF catastrófica ou outras
situações clínicas associadas com LES; não há benefício em tentar eliminar anticorpos
da circulação, uma vez que uma a três semanas após a interrupção da terapêutica
retomam concentrações séricas detectáveis. O risco de recorrência de trombose é
elevado nos primeiros seis meses após interrupção da terapêutica, sugerindo um efeito
de rebound. Esta é uma das razões que sustenta a necessidade de anticoagulação
crónica em doentes que sofreram eventos trombóticos.
Nos doentes com diagnóstico definitivo de SAAF com um primeiro evento trombótico
venoso, deve ser instituída anticoagulação com antagonistas da vitamina K (AVK) para
um INR alvo entre 2,0 – 3,0. Nos doentes com SAAF provocada por evento trombótico
arterial, há alguma controvérsia quanto à utilização em monoterapia de anticoagulação
com varfarina e INR alvo de 3,0 – 4,0 ou terapêutica combinada com anti-agregante e
INR alvo de 2,0 – 3,0. Nos doentes refractários, poderá ser necessário aumentar o INR
alvo. O risco hemorrágico associado a esta anticoagulação foi estimado entre 0,8- 1,6%
em doentes com INR 2,0 – 3,0.
121
doentes com baixo risco de trombose recorrente. Actualmente, estão em curso estudos
de fase III em vários países: RAPS, TRAPS, ASTRO-APS, entre outros.
A SAAF catastrófica obriga a uma abordagem agressiva que inclui anticoagulação com
heparina, corticoterapia em doses elevadas, plasmaferese e/ou imunoglobulina
endovenosa; nos casos refractários poderá ser usado o rituximab. O eculizumab e o
defibrotido têm sido descritos em casos isolados, sem grande sucesso. Outros fármacos
que inibem a ligação dos anticorpos à superfície dos fosfolípidos, como TIFI (inibe a
ligação do AB2GP1) ou o MBB2 (impede a activação do complemento após a ligação
do ACL e AB2GP1), estão ainda em investigação.
Prevenção
Nos doentes com imunologia positiva para SAAF mas sem nenhum evento clínico
associado, deve ser feita uma estratificação do risco de trombose, a fim de tratar ou
suprimir outros factores de risco cardiovascular – HTA, dislipidémia, diabetes, nefrite a
SAAF, tabagismo, sedentarismo, entre outros. A abordagem deverá ser feita em função
das características do doente, tendo também em atenção a presença de outras
trombofilias ou doenças subjacentes, como o LES. A anti-agregação profiláctica em
doentes com títulos elevados de anticorpos não revelou benefício para evitar a
recorrência de eventos trombóticos. Nos doentes com risco elevado, ou seja, com LES
e imunologia com títulos persistentemente elevados, poderá ser realizada profilaxia
primária com hidroxicloroquina e aspirina em baixa dosagem. Nos doentes que vão ser
submetidos a cirurgia e/ou imobilização prolongada, está recomendada heparina de
baixo peso molecular (HBPM) em dose profiláctica.
122
Outros fármacos têm sido sugeridos como adjuvantes na redução do risco de trombose,
como as estatinas e a vitamina D, embora haja alguma controvérsia na sua indicação.
Prognóstico
A SAAF é uma doença que afecta uma população jovem, pelo que é importante avaliar
cuidadosamente as lesões decorrentes dos fenómenos trombóticos e investir no
tratamento de factores de risco cardiovascular. Um estudo a 10 anos promovido por
Cervera et al, Euro-Phospholipid Project, estimou a sobrevida a 10 anos em 91%. A
morbilidade está associada sobretudo a tromboses arteriais. A mortalidade está
associada principalmente a trombose e infecção.
Foram identificados alguns factores de risco para a SAAF catastrófica com elevada
mortalidade: idade >36 anos, LES, envolvimento pulmonar e renal e ANA positivo. O
envolvimento cerebral foi identificado como a principal causa de morte nestes doentes,
seguido de envolvimento cardíaco e infecção.
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- AVC em doente com <55 anos, pensar em SAAF e outras trombofilias.
- TVP ou TEP em jovem: pensar em SAAF.
- Mulheres com abortos de repetição sem outra causa: pensar em SAAF.
- Reconhecimento rápido da SAAF permite evitar tromboses futuras.
- Encaminhar doentes com SAAF para especialista em DAI.
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124
7. MIOPATIAS INFLAMATÓRIAS
Definição
As miopatias inflamatórias idiopáticas (MII) são um grupo de patologias raras e
heterogéneas, que inclui a Polimiosite (PM), a Dermatomiosite (DM) e a Miosite de
Corpos de Inclusão (MCI), nos adultos, e a DM Juvenil, nas crianças. Todas partilham
algumas características na apresentação clínica, nomeadamente diminuição da força
muscular proximal, diminuição da capacidade aeróbica muscular e inflamação muscular,
com envolvimento multissistémico. A DM distingue-se da PM por apresentar
manifestações cutâneas. Dentro das MII existe também a Síndrome Anti-Sintetase
(SAS), caracterizada pela positividade para auto-anticorpos anti-sintetase, em que o
envolvimento pulmonar sob a forma de doença do interstício pulmonar (DIP) determina
o prognóstico. A Miosite Necrotizante Auto-Imune (MNAI) está associada a miopatia
necrotizante com início agudo, associada ou não a neoplasias, infecções virais e outras
doenças auto-imunes, bem como aos anticorpos anti-SRP e anti-HMGCR.
Epidemiologia
As MII são doenças raras, com uma incidência combinada de 5-10 casos por
1.000.000 habitantes anualmente, uma predominância 2:1 do sexo feminino, e com dois
picos nos grupos etários 5-15 e 40-50 anos. O grupo étnico mais atingido é o
caucasiano. O aparecimento da doença surge normalmente de modo insidioso, com
evolução lenta e duração superior a dois meses. A MCI tem uma predominância no sexo
masculino.
Etiologia e Fisiopatogénese
As MII resultam da interacção de factores genéticos e ambientais, estando envolvidos
mecanismos da imunidade adaptativa, através de linfócitos B e T, e inata, através da
produção de citocinas inflamatórias (ver Figuras 1 e 2).
A associação das MII a genes dos alelos HLA classe II tem vindo a ser demonstrada:
HLA-DRB1*0301 e DQA1*0501 nos caucasianos, HLA-B7 nos asiáticos. Há ainda
associação entre sub-tipos de miosites e perfil de auto-anticorpos, como por exemplo,
os anticorpos anti-Jo1 estão ligados aos genes HLA-DRB1*0301 e DQA1*0501,
enquanto que os anticorpos anti-Mi2 estão ligados aos genes DRB1*07 e DQA*0201;
os genes DRB1*0101 e DRB1*0301 estão associados a um MCI com início rápido e
precoce. Deste modo, a interacção entre genes está associada a determinados
fenótipos, sendo ainda relevante destacar que esta relação genética com alelos do MHC
II sugere que a resposta imune seja desencadeada por linfócitos T. Estão também
envolvidos genes não-HLA, associados sobretudo à produção de citocinas inflamatórias.
O papel dos factores genéticos está ainda mal-esclarecido, mas sugere-se uma
interacção com factores ambientais, como infecções, sobretudo virais (Coxsackie,
Parvovirus B19, echovirus, Influenza, HIV, HTLV1) e parasitárias (Trypanosoma cruzi
125
e Toxoplasma), exposição a radiação UV e défice de vitamina D ou fármacos (estatinas,
cimetidina, cloroquina, colchicina, álcool).
126
Figura 2: Mecanismo Fisiopatológico para Polimiosite e Miosite de Corpos de Inclusão, mediado por células T. As células
CD8+ expandem-se na periferia e no próprio endomísio, atravessam a membrana endotelial e ligam-se directamente ao
MHC I expresso de forma aberrante na superfície da fibra muscular – formam o compleo MHC-CD8. A up-regulation de
moléculas co-estimuladoras (BB1 e ICOSL) e dos seus ligandos (CD28, CTLA-4 e ICOS), bem como da ICAM-1 ou LFA-
1, estabilizam a interacção sináptica entre asa células CD8+ e o MHC classe I nas fibras musculares. As células Th17
reguladoras desempenham um papel fundamental na activação das células T. A necrose das fibras musculares é
mediada por grânulos de perforinas, libertados de células T auto-agressivas. Citocinas, como IFN γ, IL-1 e TNF, libertadas
pelas células T activadas podem estimular a citotoxicidade. As células B activadas ou as células dendríticas
plasmocitárias são clonadas no endomísio e participam no processo inflamatório, embora de modo ainda indefinido.
Manifestações Clínicas
As manifestações clínicas mais comuns são fraqueza muscular proximal, associada a
mialgia, habitualmente de instalação progressiva. É frequente os doentes apresentarem
dificuldade em levantar-se de uma cadeira sem apoio das mãos, subir escadas ou
mesmo pentear-se. Os músculos oculares são poupados, mas os da face podem ser
atingidos, sobretudo na MCI. Em casos avançados, os músculos faríngeos e extensores
do pescoço podem estar afectados, provocando disfagia e dificuldade em segurar a
cabeça, respectivamente.
Existem 3 padrões diferentes de evolução, afetando cada um cerca de 1/3 dos doentes:
monogénico, recorrente-remitente e crónico persistente.
127
Dermatomiosite (DM)
Polimiosite
A polimiosite é rara e o seu diagnóstico é muitas vezes confundido com o de MCI, miosite
necrotizante ou distrofia inflamatória. Considera-se um diagnóstico de exclusão,
definindo-se como miopatia sub-aguda proximal em doentes sem lesões cutâneas,
história familiar de doença neuro-muscular, exposição a fármacos miotóxicos,
envolvimento de músculos faciais ou peri-orbitários doença endocrinológica ou fenótipo
sugestivo de MCI.
Fig.3: Aspectos clínicos das miosites inflamatórias. A: eritema heliotropo, em doente com dermatomiosite; B: pápulas de
Gottron em doente com dermatomiosite; C: atrofia dos músculos da mão e antebraços em doente com miosite de corpos
de inclusão. (In Malik A et al. Idiopathic Inflammatory Myopathies: Clinical Approach and Management. Front. Neurol.
7:64)
A MCI foi inicialmente identificada num grupo de doentes sem resposta aos
glucocorticóides e o seu diagnóstico é pouco comum antes dos 45 anos de idade. Existe
uma diminuição da força muscular assimétrica e frequentemente apresenta um
128
padrão misto, tanto proximal como distal. A sua instalação é insidiosa e o aparecimento
dos sintomas pode preceder o diagnóstico em vários anos.
Síndrome Anti-Sintetase
A SAS caracteriza-se por miosite, poliartrite (pode ser erosiva), mechanic hands,
fenómeno de Raynaud, febre e DIP.
A associação das MII, particularmente no caso das DM, com neoplasias, está bem
estabelecida, sugerindo que se pode tratar de um processo paraneoplásico. Como
factores de risco para esta associação foram identificados factores de risco histológicos
e clínicos, como evidência de lesão capilar na biópsia muscular, necrose cutânea,
vasculite leucocitoclástica cutânea, idade mais avançada e disfagia. Os auto- anticorpos
dirigidos para Transcription Intermediary Factor 1-gamma (TIF1g) 14 e uma proteína da
matriz nuclear NXP2 também parecem associados a neoplasias.
Diagnóstico
O diagnóstico de MII é baseado nas manifestações clínicas e exame objectivo exaustivo,
juntamente com a demonstração de dano muscular, que habitualmente é feito através
da elevação das enzimas do músculo esquelético, creatina quinase (CK) e aldolase,
biópsia muscular (realizada por anatomopatologista experiente em patologia muscular),
eletromiografia (EMG) e estudo dos auto-anticorpos. As transaminases podem estar
também elevadas, dado que pode atrasar o diagnóstico, por associação a doenças
hepáticas.
A biópsia muscular deve ser realizada nos doentes que não apresentem alterações
cutâneas específicas de DM. Porém, uma biópsia normal não exclui MII e justifica-se a
realização de RMN Muscular para exclusão de outra etiologia e, simultaneamente,
determinação do local apropriado para biópsia. Nos casos de DM, observa-se
inflamação peri-vascular, sobretudo nos septos interfasciculares ou à periferia das
fascículas musculares, hipoperfusão e atrofia perifascicular; na PM e MCI a inflamação
é também peri-vascular, mas concentrada em múltiplos focos no endomísio e vacúolos
auto-fágicos, no caso da MCI (figura 4). Nas crianças, a biópsia muscular é evitada
sempre que possível, sendo utilizada a calculadora de probabilidades, com boa
sensibilidade.
129
Fig. 4: Aspectos histológicos da biópsia muscular. A: células inflamatórias ao nível do endomísio (setas) e variações do
tamanho das fibras musculares sem padrão específico, em doente com polimiosite; B: atrofia perifascicular (triângulos)
com aumento do tecido conjuntivo endomisial (asteriscos) e infiltrados inflamatórios (setas) em doentes com
dermatomiosite; C: fibras atróficas e hipertróficas (asterisco) com vacúolos marginados (setas), em doente com miosite
de corpos de inclusão. (In Malik A et al. Idiopathic Inflammatory Myopathies: Clinical Approach and Management. Front.
Neurol. 7:64)
Deste modo, na avaliação inicial básica deve realizar-se estudo analítico com
hemograma, velocidade de sedimentação (VS) e proteína C reactiva (PCR), estudo da
função renal, estudo da função hepática, estudo básico do metabolismo fosfo-cálcico,
bem como avaliação do risco cardiovascular e serologias virais (VIH, VHB e VHC).
No caso das MII, os auto-anticorpos são detectados em cerca de 50-60% dos doentes
e os seus alvos são nucleares e citoplasmáticos, sendo que existem auto-anticorpos
específicos de miosites e auto-anticorpos associados a miosites. Estes últimos (anti-
SSA/Ro, anti-Ro52, anti-Ro60, anti-SSB/La, anti-PM-Scl 75, anti-PM-Scl 100, anti-Ku,
anti-U1RNP, anti-cN-1A) estão presentes em cerca de 20% dos doentes e, apesar de
poderem estar associados a outras doenças auto-imunes, representam um dado
importante. Podem também estar presentes em doentes com síndrome de sobreposição
de miosite e outra doença do tecido conjuntivo.
Os doentes com MII, como referido, têm um risco acrescido de neoplasia, não só a DM,
mas também a PM e a MNAI, pelo que se recomenda rastreio regular das neoplasias
mais frequentemente associadas. Sugere-se então a realização de Tomografia
Computorizada Toraco-Abdomino-Pélvica, estudos endoscópicos (endoscopia digestiva
alta e colonoscopia), mamografia e ecografia mamária em doentes do sexo feminino,
mielograma e biópsia óssea. Caso não se verifique resposta à terapêutica e persistam
dúvidas relativamente à existência de neoplasia, a realização de FDG-PET TC deve ser
ponderada. Os marcadores tumorais (PSA, CA- 125, CA 19.9, CEA e alfa-fetoproteína)
podem ser úteis em determinadas situações.
130
AUTO ANTICORPO FREQUÊNCIA ASSOCIAÇÃO CLÍNICA
Anticorpos anti sintetase
Todos 30-40%
Anti-Jo1 15-20%
Anti-PL12 <5%
Anti-PL7 <5%
Anti-EJ <5% SAS
Anti OJ <5%
Anti-KS <5%
Anti-Ha <1%
Anti-Zo <1%
Outros anticorpos específicos de miosites
Alterações cutâneas, boa resposta
Anti-Mi2 <10%
tratamento
Anti-SRP 5-10%
Miopatia necrotizante
Anti-HMGCR -
Anti-cN1A/anti-NT5C1A - Miosite Corpos Inclusão
Novos auto anticorpos específicos de miosites
Tabela 1: Auto-Anticorpos Específicos de Miosites. SAS: síndrome anti-sintetase, DIP: doença de interstício pulmonar.
Diagnóstico diferencial
131
Critérios de Classificação
Tabela 1: Critérios de Classificaçao da EULAR/ACR para miopatias inflamatórias idiopáticas (MII) da criança e do adulto.
Critérios a adoptar quando não é encontrada outra causa para os sinais e sintomas apresentados. A probabilidade de
MII com biópsia muscular = 1/[1+exponencial (5,33 – pontuação)]; probabilidade ded MII sem biópsia muscular =
1/[1+exponencial (6,49 – pontuação)]. Calculadora online: www.imm.ki.se/biostatistics/calculators/imm. CK: creatinina
quinase, LDH: lactato desidrogenase; AST/GOT: aspartato aminotransferase; ALT/GPT: alanina aminotransferase.
(Adaptado de Lundberg IE, et al. Ann Rheum Dis 2017;0:1-10)
132
Figura 5: Classificação de sub-grupos de miosite inflamatória idiopática (MII). MS: membro superior, MI: membro inferior,
PM: polimiosite, MNIM: miopatia necrotizante imuno-mediada, MCI: miosite de corpos de inclusão, DMA: dermatomiosite
amiopática, DM: dermatomiosite, DMJ: dermatomiosite juvenil.
Avaliação de Dano
Relativamente à avaliação do dano, existe o índice Myositis Damage Index permite
avaliar eventos que traduzem lesão de órgão em todos os sistemas. É necessário que
esses eventos se tenham iniciado após o diagnóstico e com a duração mínima de 6
meses. O índice não distingue entre dano causado pela actividade de doença ou pela
terapêutica realizada.
133
Tratamento e Monitorização
Relativamente ao tratamento das miosites, existem poucos estudos controlados
randomizados das hipóteses terapêuticas disponíveis, baseando-se uma parte
significativa do tratamento em casos clínicos isolados.
Nestes casos, utiliza-se habitualmente MMF (500 mg 2x/dia que pode ser titulado até 2-
3 g/dia), um inibidor da proliferação das células B e T, que tem assumido um papel mais
preponderante nos últimos anos, especialmente nos doentes com envolvimento
pulmonar. Da mesma forma, os inibidores da calcineurina, tacrolimus e ciclosporina,
também parecem ter eficácia nos doentes com SAS.
134
Nos últimos anos têm surgido vários casos clínicos e um ensaio clínico relativamente ao
uso de RTX neste grupo de doentes refractários a outras terapêuticas. Salienta-se que
a sua utilização leva a uma diminuição das dosagens de glucocorticóides e que a
presença de auto-anticorpos anti-sintetase e anti-Mi2 são preditores de boa resposta à
terapêutica.
Para além da terapêutica médica dirigida, os doentes com MII necessitam de outras
terapêuticas de suporte, nomeadamente fisioterapia, exercício físico regular e
prevenção da osteoporose, para além das imunizações habituais que devem ser
realizadas o mais precocemente possível (ver Capítulo IV.2).
Conclusão
As miopatias inflamatórias consistem num grupo heterogéneo, com diferentes
apresentações fenotípicas e mecanismos fisiopatológicos subjacentes. O
desenvolvimento de novos anticorpos e exames de imagem permitiu melhorar e acelerar
o diagnóstico. O diagnóstico diferencial deve ser rigoroso, assim como o despiste de
neoplasias subjacentes. O tratamento é ainda inespecífico, consistindo na utilização de
glucocorticóides e outros imunossupressores.
135
ASPECTOS PRÁTICOS
• Doentes com fadiga muscular proximal bilateral: pedir avaliação de CK e
aldolase.
• Se heliotropo, pápulas de Gottron ou eritema em xaile, pensar em
dermatomiosite.
• Excluir neoplasia e manter rastreios durante 5 anos.
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136
8. VASCULITES
Definição
O termo vasculite define a inflamação das paredes dos vasos, que leva ao compromisso
da sua integridade, com consequente isquémia tecidular e necrose a jusante. Os vasos
atingidos variam de acordo com o tipo (artérias ou veias), tamanho (grandes, médios ou
pequenos vasos) ou localização, originando manifestações clínicas diferentes – a
distribuição de órgãos afectados pode mesmo sugerir um tipo particular de vasculite
(Fig.1). São definidos como grandes vasos a aorta e os seus ramos principais; médios
vasos são as principais artérias e veias dos órgãos e respectivos ramos principais;
pequenos vasos são artérias, arteríolas, capilares, vénulas e veias intra-
parenquimatosas.
Classificação
A International Chapel Hill Consensus Conference realizada inicialmente em 1994, com
revisão em 2012, elaborou um sistema de nomenclatura para este grupo de doenças,
tendo a primeira categorização deste grupo de doenças sido realizada de acordo com o
tipo de vasos predominantemente atingido.
Figura 1: Distribuição de envolvimento de vasos por vasculites de pequenos, médios e grandes vasos. (From Jeannette
JC et al, 2012 Revised International Chapel Hill Consensus Conference Nomenclature of Vasculitides, ARTHRITIS &
RHEUMATISM 2013;65 (1): 1–11)
137
DENOMINAÇÃO DE VASCULITES DE ACORDO COM O CONSENSO DE CHAPEL HILL
VASCULITE DE GRANDES VASOS
Arterite de Takayasu
Arterite de Células Gigantes
Poliangeíte Microscópica
Granulomatose com Poliangeíte (Wegener)
Granulomatose eosinofílica com Poliangeíte (Churg-Strauss)
Vasculite de Pequenos Vasos mediada por complexos imunes
Doença anti-membrana basal glomerular
Vasculite Crioglobulinémica
Vasculite IgA (Henoch-Schönlein)
Vasculite urticariforme hipocomplementémica (Vasculite anti-C1q)
Como se pode ver pela tabela acima representada, as manifestações clínicas das
vasculites são variadas, habitualmente com atingimento sistémico, afectando vários
órgãos e apresentando sintomas constitucionais. Assim, perante um doente sem
diagnóstico estabelecido, com evidência de uma doença inflamatória e sistémica, a
hipótese de vasculite deve ser equacionada.
138
Vasculite de Grandes Vasos
A Arterite de Takayasu e a Arterite de Células Gigantes (ACG) atingem
predominantemente grandes vasos, embora também possa haver envolvimento de
médios vasos (por exemplo, atingimento da artéria oftálmica na arterite de células
gigantes). Afectam sobretudo mulheres, sendo que a Arterite de Takayasu ocorre
sobretudo antes dos 40 anos e a ACG em indivíduos mais idosos.
139
• Doença anti-membrana glomerular basal (Síndrome de Goodpasture): vasculite
afectando capilares glomerulares, capilares pulmonares ou ambos, com
deposição de autoanticorpos anti-membrana basal. O envolvimento pulmonar
provoca hemorragia alveolar e o envolvimento renal causa glomerulonefrite.
• Vasculite crioglobulinémica: vasculite com depósitos imunes de crioglobulinas
afectando pequenos vasos; a pele, os glomérulos e os nervos periféricos
também são geralmente afectados.
• Vasculite IgA (Henoch-Schönlein): Vasculite com depósitos imunes IgA
afectando pequenos vasos; envolve geralmente a pele, o tracto gastrointestinal
(qualquer segmento pode ser afectado, mas o intestino delgado é mais
frequente), provocando também artrite. Pode ocorrer glomerulonefrite
histologicamente indistinguível de nefropatia por IgA, mas com curso clínico
diferente.
• Vasculite urticariforme hipocomplementémica (Vasculite anti-C1q) é uma
vasculite acompanhada por urticária e hipocomplementémia, afectando
pequenos vasos e associada a anticorpos anti-C1q. Manifestações comuns são
glomerulonefrite, artrite, DPOC e patologia ocular.
140
Manifestações Clínicas
O diagnóstico de vasculite é um desafio, dada a heterogeneidade de apresentações, em
termos de gravidade e distribuição de órgãos. A suspeita de vasculite num doente com
doença inflamatória é fundamental para um diagnóstico rápido e agilização da
terapêutica.
Uma grande parte dos doentes começa por manifestar sintomas constitucionais, como
febre, perda ponderal, poliartralgias, cefaleia e astenia. As manifestações específicas
de órgão podem orientar para um diagnóstico específico:
Figura 2: Granulomatose de Wegener. A: Nariz em sela (BDJ Team 3, Article number: 16100 (2016)); B: Perfuração do
septo nasal (Cortesia Bechara Y Ghorayeb, MD).
141
Figura 3: A1 e A2: Lesões cutâneas de Poliarterite nodosa, com eritema nodoso associado (Sharma Y et al. Cutaneous
polyarteritis nodosa: a case report with a brief review of literature. Medical Journal of Dr DY Patil University, 2013: 6(4):
475-477); B: Úlcera do pé em doente com Poliarterite Nodosa (International Journal of Dermatology 48(9):1023- 5
· October 2009); C: Rash purpúrico (A Case of Cutaneous Vasculitis with Underlying Hepatitis C and Cryoglobulinaemia.
The Ulster Medical Journal, 77(1), 51–53.)
Figura 4: Episclerite (in www. ophthalmologytraining.com); B: Queratite ulcerativa periférica (The Lancet 2004 364, 2125-
2133); C: Esclerite em doente com Granulomatose com Poliangeíte (From Everett Allen, MD; reproduced with permission
from Usatine RP, Smith MA, Mayeaux EJ Jr, Chumley H, Tysinger J. The Color Atlas of Family Medicine. McGraw-Hill,
2009.)
142
- Tracto Gastrointestinal: a vasculite pode manifestar-se como hemorragia, dor
abdominal e abdómen agudo. A Vasculite IgA geralmente envolve o intestino delgado e
pode causar pancreatite.
Diagnóstico e Conclusão
A biópsia do (s) órgão(s) afectado(s) é fundamental para o diagnóstico da maior parte
das vasculites e para a exclusão de doenças que as possam mimetizar.
Atendendo a que há múltiplas doenças que podem manifestar-se com quadros clínicos
semelhantes aos das vasculites – sépsis, doença ateroembólica, doença vascular
ateromatosa, síndroma do anticorpo anti-fosfolipídico, mieloma múltiplo, endocardite,
síndromas paraneoplásicas, síndromas auto-inflamatórias, reacções de
hipersensibilidade, uso de cocaína ou anfetaminas -, é importante um diagnóstico
diferencial exaustivo para excluir eventuais patologias subjacentes, primárias ou
secundárias na etiologia da vasculite.
ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA: as manifestações de uma vasculite são múltiplas. No
entanto, pensar em vasculite se púrpura e/ou neuropatia periférica de novo,
alterações da função renal e nodularidade pulmonar sem cavitação em doente jovem
não fumador.
143
TAKE HOME MESSAGES
As vasculites são doenças provocadas pela inflamação da parede dos vasos.
Podem ser primárias ou secundárias e classificam-se conforme o tipo de vaso
predominantemente envolvido – pequenos, médios ou grandes vasos.
As causas mais frequentes de vasculites secundárias são neoplasias, infecções
ou fármacos.
Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-
1924-3
• Jeannette JC et al, 2012 Revised International Chapel Hill Consensus Conference
Nomenclature of Vasculitides, ARTHRITIS & RHEUMATISM 2013;65 (1): 1–11
• A Case of Cutaneous Vasculitis with Underlying Hepatitis C and
Cryoglobulinaemia. The Ulster Medical Journal, 77(1), 51–53.
• Sharma Y et al. Cutaneous polyarteritis nodosa: a case report with a brief review of
literature. Medical Journal of Dr DY Patil University, 2013: 6(4): 475-47
144
8.1 VASCULITES ANCA E POLIARTERITE NODOSA
Introdução
As vasculites são um grupo heterogéneo de doenças caracterizadas por inflamação da
parede dos vasos. A histologia pode ainda mostrar necrose da camada média e
inflamação da camada adventícia e íntima e, nalgumas vasculites, granulomas peri-
vasculares.
Etiologia e Fisiopatogénese
O grupo de vasculites ANCA é caracterizado pela presença de auto-anticorpos contra
antigénios citoplasmáticos dos neutrófilos. As especificidades mais comuns
reconhecidas por estes anticorpos correspondem maioritariamente às proteínas de
neutrófilos, proteinase 3 (PR3, dá origem aos anticorpos c-ANCA) e mieloperoxidase
(MPO, dá origem aos anticorpos p-ANCA). A indução e persistência de resposta auto-
-imune pelos ANCA envolve múltiplos mecanismos, que incluem estímulos ambientais
(por exemplo, sílica, fármacos e microorganismos), desregulação da expressão
genética, mimetismo de auto-antigénios e regulação aberrante de células T.
145
Figura 1: Factores etiológicos e patogénicos na Vasculite ANCA (AAV) – factores contribuintes para a etiologia (em azul)
e para patogénese (a vermelho). From Chen,M and Kallenberg, CGM. ANCA-associated vasculitides – advances in
pathogenesis and treatment, Nat Rev Rheumatol.2010; 6: 653-664.
Epidemiologia
A incidência da GPA varia entre 2 a 12/1.000.000 e a prevalência de 24 a 157/1.000.000
habitantes. A distribuição geográfica não é uniforme, sendo mais frequente nos países
do norte da Europa.
Manifestações Clínicas
As lesões granulomatosas do ouvido e tracto respiratório superior são as manifestações
mais frequentes, evidenciadas em mais de 75% dos doentes à data do diagnóstico; pode
tratar-se de rinite, sinusite, otite média crónica, nariz em sela e/ou perfuração do septo
nasal ou do palato mole – Figura 2. Outras manifestações mais raras, embora
sugestivas, incluem gengivite moriforme e úlceras linguais.
146
Figura 2: Manifestações Clínicas da Granulomatose com Poliangeíte. A – Nariz em Sela (American College of
Rheumatology, 2009); B e C – Gengivite Moriforme (A - EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015.
ISBN: 978-0-7279-1924-3; B – From http://www.dermis.net/dermisroot/en/25336/image.htm consultado em 21/5/2017).
O envolvimento pulmonar está presente em cerca de dois terços dos doentes, com
nódulos parenquimatosos bilaterais, cavitados em metade dos vasos e/ou hemorragia
alveloar em 10-20% dos doentes – Figura 3.
Figura 3: Envolvimento Pulmonar da Granulomatose com Poliangeíte. A e B: Tc Tórax de alta resolução, plano axial e
coronal - as imagens revelam lesões nodulares cavitadas (setas). (Machiori E, et al. Reversed Halo Sign – High
Resolution CT Scan Findings in 79 Patients. CHEST, 2012; 141 (5): 1260-1266). C: Radiograma Torácico com lesão
cavitada à esquerda. (Flossman O and Jayne D. Maintaining remission in a patient with vasculitis. Nature Clinical Practice
Rheumatology (2008) 4, 499-504). D: Tc Tórax em plano axial, com opacidades nodulares, multifocais, de pequenas
dimensões, com relação às artérias pulmonares. (From Travis WD, Colby TV, Koss MN, et al, eds. Non- Neoplastic
Disorders of the Lower Respiratory Tract. In: King DW, ed. Atlas of Nontumor Pathology. Washington, DC: American
Registry of Pathology and Armed Forces Institute of Pathology; 2002, Figure 4-3.). E: Radiograma torácico com lesões
cavitadas de diferente calibre e espessura de parede, bilaterais (From https://radiologykey.com/pulmonary- hemorrhage-
and-vasculitis/ consultado a 21/5/2017). F: Tc Tórax, plano axial, com lesões cavitadas parenquimatosas nos lobos
superiores, bilateralmente (From Kalra S et al. Wegener’s granulomatosis with subdural hematoma as the initial
manifestation. Int J crit Illn Sci 2013; 3: 88-90.)
O envolvimento do sistema nervoso periférico ocorre num terço dos doentes, sendo as
principais manifestações a mononeurite multiplex (79% does doentes com neuropatia
147
periférica) e polineuropatia sensitivo-motora. O envolvimento do sistema nervoso central
(SNC) é menos comum e pode ser observado em 6-13% dos doentes, geralmente numa
fase mais tardia da doença. A apresentação inicial com paquimeningite é uma das
manifestações do SNC e é sugestiva, embora não específica, de GPA.
As lesões cutâneas ocorrem em 10 a 50% dos doentes, sendo a púrpura palpável nos
membros inferiores a manifestação mais frequente. Pápulas necróticas nas superfícies
extensoras dos membros, nódulos ou ulceração extensa e dolorosa são formas de
apresentação mais raras, mas muito sugestivas da doença – Figura 4.
Figura 4: A: Lesões necróticas e purpúricas em doente com Granulomatose com Poliangeíte (EULAR Textbook on
Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3); B: Ulceração gangrenada piogénica do pavilhão
auricular em doente com Granulomatose com Poliangeíte (Comfere N et al. Cutaneous Manifestations of Wegener’s
granulomatosis: a clinicopathologic study of 17 patients and correlation to antineutrophil cytoplasmic antibody status. J
Cutan Pathol 2007: 34: 739-747.), C: Ulceração em nódulo eritematoso, com pus. (Nasir N et al. Cutaneous Ulcers as
Initial Presentation of Localized Granulomatosis with Polyangiitis: a Case Report and Review of the Literature. Case
Reports in Rheumatology, 2015 (2015))
148
além disso, enquanto 90% dos doentes com a forma sistémica têm c-ANCA, com um
padrão de imunofluorescência citoplasmático difuso, e especificidade anti-PR3, apenas
50 a 80% dos doentes com a forma localizada são ANCA positivos. Estas formas
limitadas/localizadas representam menos de um terço dos casos de GPA e ocorrem
sobretudo em mulheres e com idade mais jovem que na GPA sistémica. No entanto, a
maior parte destes doentes com GPA localizada vai evoluir para a forma sistémica ao
longo do tempo.
Diagnóstico
A combinação de características clínicas sugestivas nalguns doentes, associada à
detecção de c-ANCA (anti-PR3) pode ser suficiente para o diagnóstico. No entanto, a
confirmação histológica está recomendada para um diagnóstico definitivo.
A biópsia nasal e/ou dos seios nasais é de fácil procedimento, embora em apenas 20%
e 50% dos casos, respectivamente, os resultados contribuam para o diagnóstico. A
biópsia cutânea geralmente revela vasculite leucocitoclástica de pequenos vasos, o que
traduz um achado inespecífico. Os nódulos cutâneos são raros na GPA, mas podem
coincidir com vasculite necrotizante ou granulomatosa de arteríolas médias ou, mais
frequentemente, granulomas extra-vasculares.
149
não distinguir a Granulomatose com Poliangeíte da Poliangeíte Microscópica e das
doenças que mimetizam a vasculite.
POLIANGEÍTE MICROSCÓPICA
A Poliangeíte Microscópica (MPA) pertence ao grupo de vasculites de pequenos vasos
e vasculites ANCA.
Epidemiologia
A MPA, como as outras vasculites, é uma doença rara. Inicialmente pensava-se que
MPA e a Poliarterite Nodosa eram formas diferentes da mesma doença, pelo que os
dados epidemiológicos são escassos. A incidência anual é estimada em 3- 24/1.000.000
e a prevalência de 25-94/1.000.000 habitantes. A MPA tem sido detectada por todo o
mundo e pode afectar todos os grupos raciais, com uma maior predominância nos
caucasianos. Os doentes do sexo masculino são mais afectados, mas a diferença entre
os sexos é ligeira (ratio Masculino:Feminino de 1,8:1,1). A idade média ao diagnóstico
é de 50 anos.
Manifestações Clínicas
O diagnóstico de MPA é precedido, na maior parte dos casos, por sintomas gerais como
mialgias, artralgias e/ou, mais raramente, artrite. Pode ocorrer um curso indolente da
doença, de meses ou até anos, antes do diagnóstico, com sintomas gerais leves ou até
mesmo hemóptises episódicas.
150
de biópsia brônquica pode ser ainda detectada arterite brônquica. A fibrose intersticial
pulmonar pode também ser uma complicação da MPA.
Figura 5: Envolvimento cutâneo na Poliangeíte Microscópica. A: Púrpura palpável, com evolução para flictenas e úlceras
em doente com Poliangeíte Microscópica (Endo Y et al. Myeloperoxidase-antineutrophil cytoplasmic antibody- negative
microscopic polyangiitis with pulmonary haemorrhage and IgA nephropathy. Case Rep Dermatol 2011; 3 (1) 22-27.) B:
Angeíte leucocitoclástica na Poliangeíte Microscópica (Farid-Moyaer M et al.
http://emedicine.medscape.com/article/334024-clinical#b4 consultado a 21/5/2017); C: Lesões ulceradas nos membros
inferiores em doente com Poliangeíte Microscópica (Dean SM et al. Color Atlas and Synopsis of Vascular Diseases ,
McGraw Hill Education).
Diagnóstico
Os doentes com MPA apresentam alterações analíticas que traduzem a natureza
inflamatória sistémica da doença, como aumento da velocidade de sedimentação e da
proteína C reactiva, trombocitose e leucocitose, anemia normocítica e normocrómica e
elevação de albumina sérica. A hematúria microscópica está presente em quase todos
151
os casos e pode ser encontrada proteinúria em mais de 90% dos doentes com
envolvimento renal.
Os anticorpos ANCA são encontrados em mais de dois terços dos doentes com MPA. A
maior parte dos anticorpos ANCA detectados na MPA são p-ANCA (anti-MPO), embora
também possam ser encontrados c-ANCA (anti-PR3). A especificidade de ANCA anti-
MPO para MPA não é tão elevada como a especificidade de anti-PR3 na GPA dado que
o anticorpo anti-MPO também pode ser encontrado na Granulomatose eosinofílica com
Poliangeíte, em cerca de 5% de doentes com GPA e noutras doenças inflamatórias.
Epidemiologia
A incidência anual de EGPA é entre 0-4/1.000.000 de habitantes e a sua prevalência
entre 7-22/1.000.000 habitantes. A idade média à data do diagnóstico é de cerca de 45-
50 anos, com igual incidência nos dois sexos.
Manifestações Clínicas
Foram descritas três fases da doença: o pródromo, que pode durar mais de 30 anos e
consiste em asma e outras manifestações alérgicas inespecíficas (rinite alérgica e
polipose nasal); a segunda fase da doença, caracterizada pela instalação de eosinofilia
periférica e tecidular, com síndrome de Löffler, pneumonia eosinofílica crónica ou
gastroenterite eosinofílica; e doença infiltrativa eosinofílica, que pode remitir e recorrer
ao longo dos anos antes do aparecimento da vasculite sistémica, que define a terceira
fase da doença. Estas três fases não têm de seguir uma ordem cronológica específica;
a vasculite sistémica surge em média 4 a 9 anos após a instalação da asma.
152
Quanto às manifestações pulmonares, a asma é a característica central desta vasculite
e precede as manifestações sistémicas em quase todos os casos. Ao contrário da asma
comum, aparece relativamente tarde, por volta dos 35 anos. A gravidade e frequência
das crises asmáticas geralmente aumentam até à instalação da vasculite. Embora
possa ocorrer remissão da asma quando surge a vasculite, é mais frequente ocorrer
agravamento nas semanas que a precedem, tornando-se o doente dependente de
corticóides e a necessitar de internamento. O radiograma torácico apresenta geralmente
alterações, surgindo em 38-77% infiltrados transitórios.
Figura 6: Envolvimento cutâneo da Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte. A: Granuloma necrotizante extra-
vascular ao nível do cotovelo (David M et al. Cutaneous manifestations of Churg-Strauss Syndrome: A clinicopathologic
correlation. Journal of the American academy of Dermatology, 1997, 37; 2(1): 199-203); B: Púrpura hemorrágica palpável
nos membros inferiores (Kawakami T et al. Initial Cutaneous Manifestation Consistent With Mononeuropathy Multiplex in
Churg-Strauss Syndrome. Arch Dermatol 2005; 141 (7): 873-878); C: Pápulas e placas eritematosas urticariformes na
região lateral do pescoço (Bosco L et al. Cutaneous Manifestations of Churg-Strauss Syndrome: report of two cases and
review of the literature. Clin Rheumatol, 2011; 30: 573-580).
153
morte. A vasculite e os granulomas podem estar presentes ao longo de todo o tracto
gastrointestinal, mas ocorrem mais frequentemente no intestino delgado e/ou cólon.
O olho também pode estar envolvido – têm sido descritos casos de uveíte, vasculite
retiniana, episclerite e/ou nódulos conjuntivais.
Diagnóstico
Os anticorpos ANCA são encontrados em quase um terço dos doentes. A eosinofilia é
uma constante e frequentemente <1500/m3 (97% dos doentes). A ausência de
eosinofilia pode ser explicada por administração prévia de corticóides para a asma. O
doseamento sérico de IgE está aumentado em 75% dos doentes e um aumento da IgG4
também pode ser encontrado.
154
Tratamento de Vasculites ANCA
Enquanto a terapêutica pode ser ajustada à gravidade de doença na MPA e EGPA, os
doentes com GPA devem receber todos um regime de indução baseado na combinação
de corticóides e um imunossupressor.
Foi demonstrado que doentes sem factores de mau prognóstico (FFS=0) à data do
diagnóstico podiam ser tratados com sucesso apenas com prednisolona, utilizando
imunossupressores como tratamento de segunda-linha, em caso de actividade de
doença persistente ou recorrência sob corticóides. A administração de pulsos de
metilprednisolona (geralmente 7.5-15 mg/kg por via endovenosa por dia durante 1 a 3
dias) é amplamente usada para iniciar a terapêutica, devido à sua rápida acção e relativa
segurança. Os corticóides orais são posteriormente administrados na dose de 1
mg/kg/dia de prednisolona ou equivalente. Depois de 3 a 4 semanas desta dose, deve
ser realizada a redução de dose e, na ausência de recorrência de doença, a terapêutica
com corticóides pode ser suspensa após 9 a 18 meses. No entanto, a duração ideal da
terapêutica com corticóides não está ainda estabelecida.
Nos últimos anos, a ciclofosfamida (CYC) foi a primeira escolha para a indução de
remissão em fases graves da doença, tendo o aparecimento do Rituximab, um anticorpo
quimérico anti-CD20, mostrado que pode haver alternativas, pelo menos em doentes
com GPA ou MPA graves, especialmente naqueles com doença recorrente e/ou
refractária e/ou contra-indicação para CYC.
155
Doentes com GPA localizada podem ser tratados inicialmente com corticóides e
metotrexato, atingindo respostas semelhantes à CYC. Quando o metotrexato não
consegue controlar a doença em doentes com GPA sistémica ou doentes com EGPA
ou MPA com factores de mau prognóstico, a CYC ou o Rituximab (RTX) devem ser
administrados como primeira linha, em combinação com corticóides, para induzir
remissão. Ambos os fármacos mostraram ser eficazes em induzir remissão, embora o
RTX possa não estar disponível e seja mais dispendioso.
A CYC pode ser administrada por via oral e continuamente, ou usando bólus
endovenosos. Quando comparadas as duas formas de administração, são igualmente
eficazes a controlar a doença, embora a terapêutica por pulsos esteja associada a
menor dose cumulativa e, portanto, pode expor o doente a um maior risco de recidiva,
ao mesmo tempo que diminui a toxicidade. A dose inicial de CYC, bem como o número
total e frequência dos pulsos quando a via endovenosa é escolhida, deve ser ajustada
de acordo com a condição do doente, especialmente a idade, a função renal e a eventual
existência de alterações hematológicas. A CYC oral é administrada 2 mg/kg/dia,
geralmente com um máximo de 200 mg/dia. A CYC endovenosa em dose elevada pode
ser mais tóxica em doentes com lesão renal e/ou nos idosos, mas com ajustes de dose
adequados, é uma terapêutica muito eficaz.
Assim que for atingida a remissão com CYC, pode ser alterada a terapêutica para um
agente imunossupressor menos tóxico para manutenção, geralmente após seis a nove
pulsos ou 3 a 4 meses de CYC oral. Os principais agentes de manutenção são a
azatioprina e o metotrexato, nenhum deles superior ao outro. A dose de azatioprina é
de 2 mg/kg/dia e a dose de metotrexato é de 0,3 mg/Kg, uma vez por semana, com o
máximo de 25 mg/semana, por via oral ou subcutânea. Um outro estudo também sugeriu
que a leflunomida 20 mg/dia pode ser usada para manutenção; foi ainda mostrado que
o micofenolato de mofetil é menos eficaz que a azatioprina na manutenção de remissão
e, portanto, deve ser usado apenas em doentes que não toleram os fármacos habituais
para a manutenção do tratamento. A duração óptima do tratamento de manutenção
permanece desconhecida.
Estudos com Rituximab mostraram que este fármaco não é inferior à CYC para indução
de remissão na GPA e MPA, parecendo também ter um papel importante na EGPA
refractária. O RTX foi administrado em combinação com corticóides e na dose de 375
mg/m2 por semana num total de quatro administrações; uma alternativa pode ser, no
entanto, a dose de 1 g cada 2 semanas, num total de duas administrações.
3. Outros tratamentos
A Imunoglobulina endovenosa tem sido usada na GPA, MPA e EGPA, especialmente
em casos refractários a vários imunossupressores e elevadas doses de corticóides e/ou
em caso de uma infecção grave concomitante, com bons resultados, embora apenas
temporários.
156
Em doentes com GPA e MPA com glomerulonefrite crescêntica e insuficiência renal
grave (creatinina >500 umol/L), a plasmaferese parece melhorar a função renal e
permite suspender a diálise durante um ano. Porém, este benefício não é mantido
posteriormente. A plasmaferese, num esquema de 7 sessões em 14 dias, é também
usada em doentes com hemorragia alveolar, com base na sua utilização na Síndrome
de Goodpasture. No entanto, nos ensaios realizados, todos os doentes receberam, em
simultâneo, doses elevadas de corticóides e imunossupressores, pelo que os dados
sobre a plasmaferese são ainda contraditórios.
Remissões completas ou parciais foram obtidas com o Infliximab em doentes com GPA
refractária; no entanto, após a suspensão desta terapêutica, a doença recorre
frequentemente. O Etanercept e outros anti-TNF têm sido testados, em concomitância
com a terapêutica convencional, incluindo CYC, com o objectivo de reduzir a taxa de
recorrência de doença. Os dados disponíveis revelam que, até à data, não conferem
nenhuma vantagem na prevenção de recorrência de doença, para além de, durante o
estudo, se terem identificado seis neoplasias de órgão sólido nos doentes sob
etanercept.
Prognóstico
Além dos parâmetros habituais, como taxas de recorrência e mortalidade, o dano e a
qualidade de vida devem também ser tidas em conta. O dano inclui sequelas
relacionadas com a doença, como a neuropatia periférica ou insuficiência renal, efeitos
adversos tardios de terapêutica, como neoplasia vesical induzida por CYC e infertilidade
relacionada a CYC, e outros, como aterosclerose precoce.
GPA e MPA
Entre todas as vasculites, a taxa de recidiva é maior na GPA, afectando até 50-60% dos
doentes aos 5 anos. Todas as formas de GPA podem recorrer, independentemente do
tempo de evolução, muitas vezes após vários anos ou décadas de remissão. Pode
também haver recidiva na MPA, até 35% aos 5 anos. A recidiva não apresenta
necessariamente as mesmas manifestações do quadro inicial e pode haver
envolvimento de outros órgãos. De qualquer modo, as recidivas tendem a ser menos
graves que o quadro de apresentação inicial, sobretudo porque o diagnóstico tende a
ser mais precoce.
157
A recidiva ocorre mais frequentemente após a suspensão da terapêutica de manutenção
(em cerca de dois terços dos casos), mas pode ainda ocorrer durante o tratamento.
EGPA
POLIARTERITE NODOSA
A Poliarterite Nodosa (PAN) foi inicialmente descrita por Küssmaul e Maier em 1866.
Esta vasculite necrotizante sistémica envolve predominantemente artérias de médio
calibre e pode afectar a maioria dos órgãos.
Epidemiologia
A PAN é uma doença rara que afecta todos os grupos étnicos. Estima-se que a
incidência anual da PAN na população geral seja de 3-4,5/1.000.000 habitantes, embora
os dados internacionais variem consoante a definição de PAN utilizada. Afecta doentes
de todas as idades, incluindo crianças e idosos, mas predomina no grupo etário dos 40
aos 60 anos. Os homens são mais afectados, com um ratio masculino- feminino de 1,6-
2:1.
158
Etiologia e Patogénese
A etiologia permanece por esclarecer na maioria dos doentes, embora nalguns casos
tenham sido identificadas infecções, sobretudo virais, responsáveis pela doença. A
relação com a infecção por HBV tem sido amplamente demonstrada e o aparecimento
da vacina para HBV, bem como a maior segurança nas transfusões de sangue, explica
a diminuição significativa de novos casos de PAN desde 1989. Quase todos os casos
de PAN associada a HBV estão associados a antigenémia HBV e replicação viral,
sustentando a hipótese de que as lesões vasculíticas podem resultar da deposição de
complexos antigénio-anticorpo solúveis em excesso, possivelmente envolvendo o
antigénio HBs e/ou antigénio HBe. De acordo com esta hipótese, os complexos imunes
activam a cascata do complemento, cujos produtos activados, por sua vez atraem e
activam neutrófilos. Estão descritos casos de PAN despoletada pela vacinação para a
hepatite B; nestas situações, admite-se que a vacinação seja o trigger para desencadear
vasculite em indivíduos com predisposição genética. Estão ainda publicados casos de
PAN associada a infecção por HCV, HIV e Parvovírus B19.
Para além das causas infecciosas, a PAN tem sido descrita em associação com
neoplasias, sobretudo com a tricoleucemia. Deste modo, assume-se que os
mecanismos imunopatogénicos que levam à lesão vascular na PAN são provavelmente
heterogéneos, envolvendo variáveis genéticas, epigenéticas e ambientais.
Manifestações Clínicas
Os doentes apresentam com frequência sintomas constitucionais, como mau estado
geral, perda ponderal e febre. Metade dos doentes refere mialgias, que podem ser
intensas, difusas, espontâneas ou ocorrer apenas após pressão localizada. As enzimas
musculares geralmente estão normais ou ligeiramente elevadas. Por outro
159
lado, a amiotrofia pode ser marcada, o que reflecte a perda ponderal importante, por
vezes superior a 20 kg, com alguns doentes a permanecerem confinados ao leito pela
intensidade da dor e da fadiga muscular. A biópsia de músculo pode contribuir
definitivamente para o diagnóstico.
O envolvimento do SNC, como referido, é raro e traduz-se por AVC isquémico ou, mais
raramente, hemorrágico, convulsão ou confusão; é geralmente uma manifestação tardia
da doença e um sinal de mau prognóstico (Fig. 8-A).
Figura 8: A – Acidente Vascular Cerebral hemorrágico em doente com Poliarterite Nodosa (Hernández-Rodriguéz J et al.
Diagnosis and Classification of Polyarteritis Nodosa. Journal of autoimmunity, 2014; 48-49: 84-89.); B: Angiografia Renal
revelando múltiplos aneurismas (EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-
160
7279-1924-3.); C: Lesões ulceradas no membro inferior (Costa IMC and Nogueira LSC. Cutaneous polyarteritis nodosa
– a case report. An Bras Dermatol 2006; 81 (3)).
O envolvimento da artéria renal pode ser responsável por hipertensão arterial de ligeira
a grave/maligna e/ou nefropatia isquémica com insuficiência renal, que tem sido
identificada como factor de mau prognóstico. A angiografia, quando realizada, pode
mostrar enfarte do parênquima renal e/ou múltiplas estenoses e microaneurismas de
ramos das artérias celíaca, mesentérica e/ou artérias renais, sugestivas deste
diagnóstico (Fig.8-B). Os microaneurismas podem ocasionalmente romper,
espontaneamente ou após biópsia renal; por esta razão, este procedimento está contra-
indicado na PAN. Será pertinente referir que a manifestação principal das vasculites
ANCA, a glomerulonefrite, nunca é encontrada na PAN – se for este o achado da
biópsia, o diagnóstico de PAN deve ser repensado.
Figura 9: Arterite coronária por Poliarterite Nodosa, associada a enfarte agudo do miocárdio, com fibrilhação ventricular
e paragem cardio-respiratória. Imagens de coronariografia com estenose grave da porção proximal da artéria
descendente anterior e do ramo posterior esquerdo. (Brooks M and Ravi I. Coronary arteritis. NEJM 2012; 367: 658.)
A hipertensão arterial está presente em média em 40% dos doentes com PAN e é
geralmente ligeira; no entanto, deve ser tido em conta que pode ser desencadeada ou
afectada pela corticoterapia. A dissecção da aorta é uma complicação rara, resultante
de vasculite difusa nos vasa vasorum da aorta. Também tem sido descrita a dissecção
de grandes artérias como a carótida, a hepática, a renal ou as artérias esplénicas. A
oclusão de artérias periféricas pode provocar necrose distal dos dedos; nestes casos, a
angiografia revela estenose e/ou microaneurismas.
161
frequente, após infecções e doença coronária. A hemorragia gastrointestinal e
perfuração do intestino delgado são as complicações mais graves. Quando presente, a
vasculite isquémica afecta principalmente o intestino delgado e, mais raramente, o cólon
ou o estômago.
O olho pode ser afectado na PAN, muitas vezes com gravidade, como a coroidite uni ou
bilateral, irite, iridociclite, descolamento da retina e/ou vasculite retiniana.
Diagnóstico
Na avaliação analítica de um doente com PAN, é frequente encontrar elevação de
parâmetros inflamatórios – aumento da VS, PCR, leucocitose, anemia normocítica e
normocrómica. Deve ser pesquisado sistematicamente o antigénio HBs e verificar
positividade para ANCA; se este último for detectado, deve ser repensado o diagnóstico
de PAN.
Tratamento
Na Hepatite B crónica, a corticoterapia e os agentes imunossupressores têm efeitos
deletérios e aumentam a replicação viral, apesar de terem apresentado benefícios nos
sintomas de vasculite. Assim, a duração da corticoterapia deve ser curta, de modo a
controlar as manifestações mais graves da PAN, comuns nas primeiras semanas de
doença; deve ser suspensa após 2 a 4 semanas, para aumentar a clearance
imunológica de hepatócitos infectados por VHB e favorecer a seroconversão de
antigénio HBe a anticorpo anti-HBe. A segunda parte do tratamento consiste na
plasmaferese, para eliminar os complexos imunes circulantes e é geralmente prescrita
até que a seroconversão esteja completa. Devem ainda ser administrados antivirais,
para controlar a replicação viral, como terceira parte do tratamento, a iniciar nas
primeiras semanas (por exemplo, lamivudina, tenofovir e/ou entecavir).
162
O tratamento da PAN sem associação a infecção viral deve ser semelhante ao
tratamento das vasculites ANCA, consoante a presença/ausência de factores de mau
prognóstico, segundo o Five Factor Score (FFS) – doentes com FFS=0 podem ser
tratados apenas com corticóides; doentes com FFS≥1 devem receber uma combinação
de corticóides e CYC.
MANIFESTAÇÕES GRANULOMATOSE
POLIARTERITE POLIANGEÍTE GRANULOMATOSE
EOSINOFÍLICA COM
DA DOENÇA NODOSA MICROSCÓPICA COM POLIANGEÍTE
POLIANGEÍTE
CALIBRE DE VASOS
Médios Pequenos Pequenos Pequenos
ENVOLVIDOS
Rinite frequente,
M ANIFESTAÇÕES Poucos doentes, sinusite destrutiva,
Rinite alérgica,
TRACTO inespecífico, não nariz em sela,
Não polipose dos seios
RESPIRATÓRIO destrutivo e não deformação do
(não destrutiva)
SUPERIOR granulomatoso septo nasal, otite
média
ASMA Não Não Sim (~100%) Não
Asma em todos. Nódulos
Infiltrados pulmonares
Não
Frequente (60- frequentes (~50%), frequentes (60-
ENVOLVIMENTO (raramente,
80%), hemorragia transitórios, 80%), hemorragia
PULMONAR derrame
alveolar derrame pleural alveolar, estenose
pleural)
com eosinófilos, brônquica e/ou
raramente nódulos subglótica
NEUROPATIA
PERIFÉRICA Muito frequente Muito Frequente
Frequente (35%) Frequente (25%)
(MONONEURITE (70%) (65-75%)
MULTIPLEX)
Envolvimento
reno-vascular
Glomerulonefrite
(HTA, lesões Não frequente, Frequente,
muito frequente
ENVOLVIMENTO renais glomerulonefrite glomerulonefrite
(necrotizante
RENAL isquémicas) 30- (necrotizante extra- (necrotizante extra-
extra-capilar),
55% mas sem capilar) 20% capilar) 70-80%
80%
doença
glomerular
Sim,
EOSINOFILIA Não (ou minor) Não (ou minor) frequentemente Não (ou minor)
>3000/mm3
MICROANEURISMAS
NA ANGIOGRAFIA Sim (65% dos
Raro Não Raro
RENAL E/OU doentes)
CELÍACA
GRANULOMAS NA Apenas alguns Sim, com Sim (frequente,
Raro
HISTOLOGIA casos eosinófilos mas nem sempre)
Sim (60-80%), Sim (30-40%) Sim (90% com
ANCA Não sobretudo anti- sobretudo anti- doença sistémica),
MPO MPO sobretudo anti-PR3
TAXA DE RECIDIVA
<25% >50% >30% >60%
AOS 5 ANOS
Tabela 2: Principais diferenças entre PAN a vasculites de pequenos vasos; HTA: Hipertensão arterial
163
Prognóstico
Na sua forma sistémica, a PAN é uma doença aguda que pode ser grave e causar a
morte se o tratamento não for instituído no tempo certo. Desde a introdução de
corticoterapia e a sua posterior combinação com imunossupressores, a terapêutica
antiviral e, se necessário, plasmaferese, o prognóstico da PAN tem melhorado e as
taxas de sobrevida têm aumentado para mais de 76-89% para a PAN e 64-70% para a
PAN associada a VHB.
Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3.
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treatment, Nat Rev Rheumatol. (2010) 6, 653-664
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vessel vasculitis, Ann Rheum Dis 2009; 68:310-317
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Cardiovascular Academy, 2016: 2 (2): 93-95.
• Comfere N et al. Cutaneous Manifestations of Wegener’s granulomatosis: a clinicopathologic study
of 17 patients and correlation to antineutrophil cytoplasmic antibody status. J Cutan Pathol 2007:
34: 739-747
• Jennette JC, Falk RJ, Andrassy K, et al. Nomenclature of systemic vasculitides. Proposal of an
international consensus conference. Arthritis Rheum. 1994 Feb. 37(2):187-92.
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• Carvalho JF et al. Systemic Polyarteritis nodosa following hepatitis B vaccination. European Journal
of Internal Medicine, 2008; 19: 575-578.
165
8.2 DOENÇA DE BEHÇET
Definição
A Doença de Behçet (DB) é uma vasculite que pode afectar vasos de diferente calibre.
Manifesta-se mais frequentemente por uma síndrome composta por úlceras orais e
genitais, e, embora menos frequentes, lesões cutâneas e uveítes.
Epidemiologia
A DB tem maior prevalência nos países da bacia do Mediterrâneo, Médio Oriente,
Sudeste Asiático e Japão, distribuição associada às antigas rotas da seda; é rara no
norte da Europa, norte da Ásia, em África, na Austrália e na América. Apesar de poder
surgir em qualquer grupo etário, o início antes da puberdade ou após os 70 anos é raro,
sendo mais frequente o aparecimento dos sintomas por volta dos 30 anos, sobretudo
em indivíduos do sexo masculino.
Etiologia e Fisiopatogénese
A DB é uma vasculite que afecta artérias e veias de diferentes calibres. As lesões podem
ocorrer por atingimento directo da parede do vaso, como ocorre nas úlceras orais e
genitais, nas lesões de eritema nodoso ou de miosite localizadas, e nas uveítes. A
doença macrovascular manifesta-se por aneurismas arteriais ou oclusão venosa major.
As lesões vasculíticas não apresentam nenhum predomínio celular em particular e
raramente se observa deposição de imunocomplexos.
166
sustenta a resposta imunológica também não está ainda clarificado, mas a hipótese
mais provável é que um trigger infeccioso (Virus Herpes Simplex, Streptococcus spp,
Staphylococcus spp, Escherichia coli) associado a uma alteração do sistema imunitário
(mutação genética que afecte moléculas de adesão, citocinas pro- inflamatórias ou
alterações da via de sinalização intracelular) despoletem uma reacção inflamatória auto-
sustentada ao longo do tempo.
Manifestações Clínicas
As principais manifestações clínicas de DB são mucocutâneas, oftálmicas, vasculares,
músculo-esqueléticas, neurológicas e gastrintestinais. O diagnóstico é clinico e a
doença caracteriza-se por remissões e exacerbações sucessivas. A intensidade dos
flares diminui com a passagem dos anos.
3) Manifestações Mucocutâneas
As úlceras orais podem estar presentes em até 98% dos doentes, consoante as séries,
e são frequentemente a primeira manifestação da doença. Têm o aspecto de uma afta
normal, mas são muito dolorosas, sendo mais frequentes e em maior quantidade.
Surgem muitas vezes como áreas eritemato-papulares, circulares, que evoluem para
úlceras ovais ou redondas em 48 horas. Têm tipicamente menos de 10 mm de diâmetro
e são mais frequentes na mucosa jugal e língua. Cicatrizam em cerca de 15 dias sem
deixar cicatriz. O tabaco diminui a sua frequência e a cessação tabágica está associada
a um aumento da sua exacerbação.
167
Figura 1: Úlceras orais e vaginais. (A, B e C: Fitzpatrick’s Color Atlas and Synopsis of Clinical Dermatology, 6th Edition,
The McGraw Hill Companies)
Figura 2: A: Eritema Nodoso na Doença de Behçet (Photo courtesy of Professor J. Wollensak via the Online Journal of
Ophthalmology); B: Tromboflebite superficial eritematosa, com nódulos subcutâneos dolorosos dispostos de forma linear;
C: Teste de patergia positivo (B e C: Alpsoy E. Behçet’s Disease: A comprehensive review with a focus on epidemiology,
etiology and clinical features, and management of mucocutaneous lesions. Journal of Dermatology 2016; 43: 620-632).
4) Patergia
A patergia é um fenómeno inespecífico de hiperreactividade em resposta a um trauma
minor. Apesar de ter baixa sensibilidade (~50%), o teste de patergia tem elevada
especificidade para DB (95%). É realizado mediante a picada de uma agulha no
antebraço do doente; a presença de uma pápula ou pústula ao fim de 24 a 48 horas
confirma o diagnóstico – Figura 2-C.
168
5) Envolvimento Ocular
O envolvimento ocular na DB é uma causa de morbilidade grave e cegueira na Bacia do
Mediterrâneo, Médio Oriente e Sudeste Asiático. Está presente em 50% dos doentes, é
mais frequente nos 2 primeiros anos de doença e bilateral em 70-80% dos doentes. A
manifestação mais frequente é a pan-uveíte, por vezes acompanhada por vasculite da
retina – Figura 3. Em cerca de 20% dos doentes pode ocorrer hipópion. Episódios
frequentes de inflamação provocam lesões estruturais caracterizadas por sinequias
posteriores, cataratas, atrofia óptica e degeneração macular. A perda total de visão
ocorre em 20% das uveítes, mesmo após tratamento.
Figura 3: A – Oclusão da veia da retina com complicações do segmento anterior: isquémia da retina, com iridite rubeosa
secundária; B – oclusão inflamatória da veia da retina, associada a vitrite e vasculite da retina; C – oclusão aguda do
ramo venoso retiniano; D – obliteração vascular total e atrofia óptica secundária a oclusão vascular recorrente. (Verity
DH et al. Behçet’s Disease: from Hippocrates to the third Millennium. Br J Ophtalmol 2003; 87: 1175- 1183).
7) Envolvimento Vascular
A DB afecta veias e artérias de grande calibre. O envolvimento de grandes vasos é mais
frequente nos homens, estando presente em 40-50% dos doentes. Estas lesões são, na
sua maioria, tromboses venosas superficiais ou profundas dos membros inferiores (MI)
(60-80% dos casos). A trombose é muitas vezes crónica e recorrente, condicionando
eritema, dermatite, hiperpigmentação e, consequentemente, úlceras
169
peri-maleolares, tendo os doentes sintomas de insuficiência venosa. Podem ocorrer
outro tipo de tromboses venosas, ao nível da veia cava superior, veia cava inferior, e
mesmo veias hepáticas, provocando síndrome de Budd-Chiari, esta última associada a
mau prognóstico.
Figura 4: Angiografia de tórax revelando múltiplos aneurismas das artérias pulmonares (setas), com enfarte pulmonar no
lobo inferior esquerdo (Agha A et al. Can Behçet’s disease related pulmonary arterial aneurysms be completely resolved?
Open Rheumatol J 2011;5:88-90); B: Angio-Tc Abdominal em corte axial, revelando aneurisma aórtico infra- renal (cabeça
da seta) (Park JH et al. Aortic and Arterial Aneurysms in Behçet Disease: Management with Stent-Grafts
– Initial Experience. Radiology 2001; 220:745-750); C: Angiografia cerebral digital de subtracção em perfil antero-
posterior revelando pequeno aneurisma na periferia da artéria cerebral média (Nakasu S et al. Cerebral aneurysms
associated with Behçet’s disease: a case report. Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry 2001;70:682-684.)
O envolvimento arterial está presente em 1,5 – 7,5% dos casos, sendo as lesões do tipo
aneurismáticas ou oclusivas – Figura 4. A aorta abdominal é o local mais afectado,
seguido das artérias ilíacas, femorais, popliteias, carótidas e subclávias. Os aneurismas
arteriais pulmonares constituem o tipo de envolvimento arterial mais grave da DB,
ocorrendo em jovens do sexo masculino com episódios prévios de TVP ou trombose da
veia cava; manifestam-se por hemoptises, dispneia e toracalgia pleurítica. A prevalência
destas manifestações é variável, mas pode chegar aos 18% dos doentes. As lesões
surgem como hipotransparências não cavitadas para-hilares no radiograma torácico; a
angio-Tc Pulmonar revela um ou vários aneurismas nas artérias pulmonares.
8) Manifestações Músculo-esqueléticas
A artrite e as artralgias estão presentes em cerca de 50% dos doentes ao longo da
história natural da doença. A artrite pode preceder as outras queixas em meses ou anos
e normalmente manifesta-se como oligoartrite, envolvendo joelhos, tornozelos, mãos e
punhos, não sendo necessariamente simétrica. Normalmente ocorre sinovite com início
agudo, que resolve em dias a semanas, sendo autolimitada.
9) Envolvimento Gastrintestinal
O envolvimento gastrintestinal é um achado frequente no Extremo Oriente, com uma
prevalência entre 3 a 25%. Caracteriza-se por ulceração mucosa semelhante à da
doença inflamatória intestinal: cerca de ¾ destas lesões encontram-se no íleon terminal
e cego e as restantes no esófago, estômago e duodeno – Tabela 2. O envolvimento
rectal é raro. Os doentes queixam-se normalmente de vómitos, dor abdominal e diarreia.
Durante os períodos de exacerbação é possível palpar uma massa dolorosa na região
abdominal; em situações mais graves, pode ocorrer perfuração íleo-cecal.
170
DOENÇA DE BEHÇET DOENÇA DE CROHN
ACHADOS Distribuição focal da doença Doença segmentar
ENDOSCÓPICOS Úlceras grandes (>1cm) Envolvimento descontinuado de
Lesões redondas ou ovais perfuradas várias porções do tracto gastrintestinal
Úlceras profundas Lesões difusas longitudinais
Úlceras com margens ligeiras Aspecto calçada
<6 úlceras
BIÓPSIA Vasculite Granulomas
LOCALIZAÇÃO Doença peri-anal rara Doença peri-anal frequente
MANIFESTAÇÕES Lesões genitais Sistema musculoesquelético,
EXTRA-INTESTINAIS Lesões papulo-pustulosas dermatológico, ocular, renal,
Envolvimento neurológico hepatobiliar e pancreático, pulmonar
Tabela 2: Diferenças entre colite a Behçet e doença de Crohn (Adaptado de Chin AB and Kumar AS. Behcet Colitis. Clin
Colon Rectal Surg 2015; 28:99-102).
171
Os exames de imagem poderão identificar as lesões de órgão-alvo já descritas, devendo
ser dirigidos ao tipo de manifestação.
Diagnóstico
O diagnóstico da DB é clínico. De acordo com os International Criteria for Behcet's
Disease, estabelecidos em 2006, são definidos 6 critérios de diagnóstico: úlceras orais
(1 ponto), úlceras genitais (2 pontos), manifestações cutâneas (1 ponto), manifestações
oculares (2 pontos), manifestações vasculares (1 ponto) e teste de Patergia positivo (1
ponto) – se o doente somar ≥3 pontos, o diagnóstico de DB pode ser estabelecido.
Tratamento
A abordagem terapêutica depende do tipo de doente, da gravidade da doença e dos
órgãos afectados. A European League Against Rheumatism (EULAR) actualizou em
2018 as recomendações para o tratamento da DB.
Nas lesões gastrintestinais, deve inicialmente ser excluída outra causa possível. Quanto
ao tratamento, os derivados da 5-ASA (sulfassalazina, messalazina), a azatioprina e os
172
corticoides poderão ser usados durante as exacerbações. Em doentes refractários, pode
ser usada a talidomida ou um anti-TNF α.
Prognóstico
O prognóstico depende do atingimento de órgão-alvo e da respectiva gravidade. Os
doentes portadores do alelo HLA-B51 apresentam normalmente mais manifestações
sistémicas. Os doentes com neuro-Behçet apresentam mais recidivas da doença. A
presença de sinais piramidais e lesões inflamatórias na RMN-CE no momento de
apresentação da doença, sugerem pior prognóstico.
173
Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3
• Hatemi G et al. EULAR recommendations for the management of Behçet disease. Ann Rheum Dis 2008;
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• Hatemi G et al. 2018 update of the EULAR recommendations for the management of Behçet’s
syndrome. BMJ 2018;77(6):808-18.
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• Sakane T, Takeno M, Suzuki N, Inaba G. Behçet's disease. N Engl J Med. 1999 Oct 21. 341(17):1284-
91.
• Zeiden M et al. Behçet’s disease physiopathology: a contemporary review. Autoimmun Highlights 2016
Dec;7(1):4
• Alpsoy E. Behçet’s Disease: A comprehensive review with a focus on epidemiology, etiology and clinical
features, and management of mucocutaneous lesions. Journal of Dermatology 2016; 43: 620-632
• Verity DH et al. Behçet’s Disease: from Hippocrates to the third Millennium. Br J Ophtalmol 2003; 87:
1175-1183
• Chin AB and Kumar AS. Behcet Colitis. Clin Colon Rectal Surg 2015; 28:99-102
174
8.3 ARTERITE DE CÉLULAS GIGANTES
Definição
A Arterite de Células Gigantes (ACG) é uma vasculopatia inflamatória que afecta artérias
de médio e grande calibre, sendo a vasculite sistémica mais comum nos adultos.
Epidemiologia
A ACG é a vasculite mais comum na Europa e América do Norte, sobretudo em
indivíduos acima dos 70 anos. A incidência aumenta com a idade e atinge um pico na
oitava década de vida. É mais comum nos doentes do sexo feminino - duas a três vezes
mais do que no sexo masculino.
Etiologia e Fisiopatogénese
A etiologia da ACG não é totalmente conhecida, embora a evidência científica sustente
a hipótese de interacção entre factores genéticos e ambientais no desenvolvimento da
doença.
Uma componente genética tem sido particularmente reportada em doentes com biópsia
compatível com ACG. Vários genes dentro do complexo de histocompatibilidade têm
efeitos independentes na susceptibilidade a ACG: a associação a HLA-DRB1*04,
polimorfismos microssatélites MICA TNF e genes HLA-B. Além disso, uma variante
funcional do gene do factor de crescimento endotelial vascular foi associado a
complicações isquémicas graves em doentes com ACG.
175
Na adventícia os macrófagos produzem citocinas pro-inflamatórias como IL-1 e IL-6,
enquanto na média e na íntima contribuem para a lesão arterial ao produzir
metaloproteinases e óxido nítrico. Este mecanismo destrutivo da parede arterial está
associado a um mecanismo de reparação que inclui a secreção de factores de
crescimento e de angiogénese, pela infiltração de células mononucleadas e células
gigantes multinucleadas. Estas alterações ultimamente levam à degradação da lâmina
interna elástica e à hiperplasia luminal oclusiva.
Figura 1: Mecanismo patogénico sugerido para a Arterite de Células Gigantes (ACG). As células dendríticas activadas
recrutam e estimulam células T que, por sua vez, libertam interferão gama (IFN ɣ), potente activador dos macrófagos.
Estes macrófagos activados, por sua vez, sintetizam factor de crescimento derivado das plaquetas (PDGF), o que leva a
uma hiperplasia da íntima; produzem também citocinas pró-inflamatórias (IL-1, IL-6), metaloproteinases da matriz
extracelular (MMP) e radicais livres de oxigénio que vão provocar dano na parede do vaso. In Salvarani C et al. Clinical
Features of Polymyalgia Rheumatica and Giant Cell Arteritis. Nat. Rev. Rheumatol. 8, 509–521 (2012).
Manifestações Clínicas
As características clínicas da ACG são essencialmente devidas ao envolvimento das
artérias cranianas.
176
de ser altamente específica para ACG, não é patognomónica. Ocasionalmente, a
claudicação intermitente pode afectar a língua ou os músculos envolvidos na deglutição,
levando a necrose da língua ou disfagia, respectivamente.
Figura 2: A – D: Necrose do couro cabeludo em diferentes fases de evolução (From Lindsey R. Baden.Scalp Necrosis
Associated with Giant-Cell Arteritis, 2016, N Engl J Med 374;6). E: Angio-RMN que revela o arco aórtico e respectivos
ramos; as setas indicam estenose das artérias axilares e sub-clávias; as flechas revelam oclusão de longos segmentos
das artérias braquiais (Image courtesy of Dr. F. Chan, Department of Radiology, Stanford University. From Weyand C
and Goronzy JJ. Giant-Cell Arteritis and Polymyalgia Rheumatica. NEJM 2014; 371: 50-7.)
177
A amaurose fugaz tem sido reportada em 2 a 30% dos doentes com ACG. Geralmente
é unilateral e costuma preceder a perda visual. A diplopia pode ser outra manifestação
por isquémia dos nervos oculomotores ou dos músculos extraoculares.
Figura 3: Distribuição típica da dor nos doentes com polimialgia reumática. (In Salvarani C et al. Clinical Features of
Polymyalgia Rheumatica and Giant Cell Arteritis. Nat. Rev. Rheumatol. 8, 509–521 (2012)).
Diagnóstico
Os critérios para a classificação de ACG foram desenvolvidos pelo Colégio Americano
de Reumatologia (American College of Rheumatology, ACR) em 1990, para diferenciar
a ACG de outras vasculites. Não são, portanto, úteis para diagnosticar ACG em casos
em que é necessário realizar o diagnóstico diferencial com outras patologias.
178
CRITÉRIOS CLASSIFICAÇÃO ACR
1. Idade ≥50 anos;
2. Cefaleia de novo
Tratamento
A corticoterapia é altamente eficaz na supressão dos componentes sistémico e vascular
da ACG. Deve ser iniciada rapidamente, assim que efetuado o diagnóstico. Em quase
todos os doentes induz um alívio sintomático tão rápido, que a resposta à corticoterapia
tem sido considerada como factor diagnóstico. Os sintomas da doença relacionados
com inflamação sistémica e PMR habitualmente respondem em 48 – 96 horas. Já as
manifestações provocadas pela diminuição do fluxo sanguíneo, tais como claudicação
da mandíbula, das extremidades ou complicações visuais, podem ter uma
179
resposta mais tardia ou não responder de todo, pois a oclusão do fluxo sanguíneo pode
ser irreversível. Ainda assim, os corticóides podem diminuir o edema tecidular e por isso
melhorar o fluxo sanguíneo, com recuperação de alguma função. Quase todos os
pacientes respondem a doses de 40 – 60 mg/dia (habitualmente 1 mg/Kg/dia) de
prednisolona (ou equivalente). Doses mais altas são por vezes iniciadas em pacientes
com perda de visão. Após resolução de todos os sintomas reversíveis (habitualmente
cerca de um mês após início da terapêutica) e quando houver evidência de diminuição
da inflamação sistémica (pela monitorização da descida da PCR e/ou VS em pelo menos
50%), deve-se iniciar a descida lenta e gradual da dose de prednisolona.
Por vezes, há recorrência dos sintomas e elevação das proteínas de fase aguda quando
se está a reduzir a dose de corticóides. Habitualmente estas exacerbações da doença
requerem apenas pequenos aumentos na dose. Estas exacerbações habitualmente
manifestam-se com sintomas de PMR ou sintomas constitucionais e não tanto como
fenómenos de vasculite. Uma vez iniciada uma corticoterapia eficaz, o risco de perda de
visão é baixo. Quando temos isoladamente sintomas de PMR, as doses de
corticoterapia necessárias são mais baixas, habitualmente 10-20 mg/dia de
prednisolona.
A ACG não é uma doença auto-limitada, podendo manter a sua actividade latente
mesmo após 2 anos de corticoterapia. Alguns pacientes requerem mesmo corticoterapia
de baixa dose de longa duração. O diagnóstico de aneurisma/dissecção da aorta, por
vezes uma década após o diagnóstico inicial, demonstra bem o carácter crónico desta
doença, podendo justificar terapêutica de longa duração para controlar a inflamação.
Quase todos os fármacos imunossupressores (metotrexato, aziotioprina e mesmo anti-
TNF) foram considerados como possíveis opções terapêuticas com o intuito de poupar
corticóides, mas até agora com pouca evidência de que possam substituir a sua
actividade anti-inflamatória. Estudos recentes com o anticorpo anti-IL6 Tocilizumab
mostraram que este fármaco, quando adicionado à terapêutica de base com corticóides,
pode ter benefício na indução e manutenção de remissão, ajudando ainda na redução
de dose de corticóides. Têm ainda sido publicados estudos promissores com abatacept
e ustekinumab, embora ainda seja precoce a recomendação formal de uso nesta
patologia.
Prognóstico
As recorrências na ACG são comuns, mesmo sob terapêutica com corticóides. Os flares
de doença são associados a aumento dos parâmetros de fase aguda e sintomas
característicos da doença. No entanto, não há associação entre neoplasia prévia e ACG,
nem aumento de mortalidade por neoplasia, e doentes com ACG não têm risco
aumentado de neoplasia após diagnóstico.
ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA: pensar em ACG em doente com cefaleia de novo,
claudicação da mandíbula ou hiperestesia do couro cabeludo. Não esquecer a
amaurose fugaz e as alterações da visão pelo seu potencial de dano permanente.
Pode começar por pedir-se VS.
180
TAKE HOME MESSAGES
A ACG é uma vasculite envolvendo sobretudo as artérias de médio e grande
calibre, especialmente os ramos da aorta proximal.
As características clínicas são sobretudo devido ao envolvimento das artérias
cranianas; a mais frequente é a cefaleia.
A perda de visão permanente é a complicação mais temida.
A biópsia da artéria temporal é o gold standard para o diagnóstico; pode iniciar-se
terapêutica mesmo antes da biópsia.
O tratamento começa com corticóides (40-60 mg/dia).
Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3
• Giant Cell Arteritis, S.S.L. Chew, N.M. Kerr, H.V. Danesh-Meyer, Journal of Clinical Neuroscience
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50-7
181
9. DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL
Definição
A Doença Inflamatória Intestinal (DII) é um grupo de doenças inflamatórias idiopáticas
do intestino. Distinguem-se a Doença de Crohn (DC) e a Colite Ulcerosa (CU) que têm
algumas características em comum.
Epidemiologia
Em 2012 uma meta-análise (Molodecky et al) com dados da Europa, América do Norte
e Ásia revelou um aumento da incidência da DII (Tabela 1). Apesar de haver poucos
dados dos países em vias de desenvolvimento, estima-se que a incidência e prevalência
da DII estejam a aumentar em todas as partes do mundo, o que a torna numa doença
emergente.
INCIDÊNCIA MÁXIMA ANUAL PREVALÊNCIA MÁXIMA ANUAL
(POR 100.000 PESSOAS/ANO) (POR 100.000 PESSOAS/ANO)
CU DC CU DC
Europa 24.3 12.7 505 322
Sudeste Asiático 6.3 5.0 114 29
América do Norte 19.2 20.2 249 319
Austrália 11.2 17.4 145 155
Tabela 1: Prevalência e Incidência da Doença Inflamatória a nível mundial. CU – Colite Ulcerosa, DC – Doença de Crohn.
From Molodecky NA et al. Increasing incidence and prevalence of the inflammatory bowel disease with time, based on
systematic review. Gastroenterology 2012;142:46-54.e42quiz e30.
182
O pico de incidência da DC é bimodal: o primeiro pico entre os 15 – 30 anos, o segundo
entre os 60 - 70 anos, embora se verifique uma diminuição da incidência ao longo da
idade. A incidência da CU é elevada, também com um padrão bimodal, apresentando
um pico entre os 15-25 anos e outro entre os 55-65 anos, mas a distribuição é
semelhante entre a 3ª e a 7ª década de vida. Quanto ao género, na DC há um ligeiro
predomínio da doença no sexo feminino, embora a prevalência na idade pediátrica seja
superior no sexo masculino. Na CU, a distribuição é semelhante em ambos os sexos.
Etiologia e Fisiopatogénese
A patogénese da DII e das suas diferentes apresentações fenotípicas, DC e UC, não
está totalmente esclarecida. No entanto, sabe-se que a inflamação resulta da interacção
de quatro factores: genéticos, sujeitos a alterações epigenéticas; ambientais, como
alteração dos hábitos alimentares e estilos de vida, com repercussão na flora intestinal;
o próprio microbioma intestinal; e a desregulação da imunidade intestinal. Alguns
estudos genéticos sustentam a hipótese de haver formas familiares e esporádicas de
DII, cuja hereditariedade pode ser monogénica ou poligénica, e que envolve diferentes
mecanismos biológicos que afectam a imunidade inata, a imunidade adaptativa, o stress
do retículo endoplasmático e a autofagia, bem como mecanismos metabólicos que
regulam a homeostasia celular e a própria inflamação. Uma forma esquemática de
explicar as alterações da imunidade intestinal está explicada na Figura 1.
Figura 1: Sistema Imunitário Intestinal. A – Num indivíduo saudável as células de Goblet segregam uma camada de muco
que limita a exposição epitelial às bactérias. A secreção de péptidos anti-microbianos e imunoglobulina A promovem
protecção adicional. Este microbioma inato é detectado pelas células epiteliais, células dendríticas e macrófagos e o
reconhecimento é mediado por toll-like receptors. As células dendríticas vão apresentar estes antigénios aos linfócitos T
CD4+ näives em órgãos linfóides secundários, que por sua vez, se vão diferenciar em linfócitos CD4+ com diferentes
perfis na produção de citocinas. B – Numa pessoa saudável (à esquerda) a lâmina própria contém diferentes tipos de
células imunitárias e citocinas, que incluem mediadores inflamatórios e anti-
183
inflamatórios. A homeostasia é assegurada pelo equilíbrio entre linfócitos T reguladores (Treg) e linfócitos T efectores
(Th1, Th2 e Th17). Nas pessoas com doença inflamatória intestinal (DII) (à direita) vários eventos contribuem para a
rotura da membrana mucosa, desregulação das junções epiteliais, aumento da permeabilidade intestinal e aumento da
aderência bacteriana às células epiteliais. Na DII as células inatas produzem anti-TNF alfa, interleucina-1- beta,
interleucina-12, interleucina-6 e quimocinas. Há uma expansão da lâmina própria, com aumento das células T CD4+, que
segregam mais interleucinas e quimocinas, que por sua vez, provocam o recrutamento de mais leucócitos e dando assim
origem a um ciclo de inflamação. Estas citocinas pró-inflamatórias são actualmente o alvo das novas terapêuticas para
a DII (a vermelho).
Manifestações Clínicas
As duas formas de DII distinguem-se pela extensão do tracto gastrointestinal afectada:
a DC afecta áreas proximais ao cólon e região perianal, provoca fístulas, granulomas e
atinge toda a espessura da parede intestinal. Na DC os granulomas podem estar
presentes em até 50% dos doentes e as fístulas em até 25%. A colite ulcerosa atinge
tipicamente o cólon, com lesão difusa de atingimento superficial, associada a
hemorragia e diarreia frequente, tenesmo e dor abdominal.
Semiologia
A DII é uma doença crónica, mas de carácter intermitente. Os sintomas podem variar de
ligeiros a graves, durante as recidivas, mas podem desaparecer ou regredir durante os
períodos de remissão. De uma forma geral, os sintomas dependem também do
segmento do tracto GI afectado.
Os sintomas gerais incluem a febre, anorexia não selectiva, perda ponderal, cansaço,
hipersudorese nocturna, atraso de crescimento nas crianças e amenorreia primária.
Complicações intestinais
O envolvimento gastrintestinal proximal ocorre sobretudo em crianças e em adultos de
grupos étnicos particulares (afro-americanos, etíopes); no primeiro grupo a endoscopia
digestiva alta é feita por rotina no estudo inicial da doença, pelo que esta diferença
184
pode apenas assentar na abordagem diagnóstica realizada nas diferentes faixas etárias.
A perfuração intestinal está associada à DC, embora possa aparecer nas duas doenças
em casos de megacólon. Os abcessos intra-abdominais estão também relacionados
com a DC.
O megacólon tóxico é uma complicação rara de colite, grave, que obriga a terapêutica
médica agressiva e, se não houver melhoria em 24 horas, intervenção cirúrgica urgente;
é mais frequente na CU (Fig.2).
Figura 2: Megacólon tóxico. A – imagem em radiograma abdominal (by Sinead Culleton); B – imagem intra-operatória; C
– peça operatória revelando dilatação focal maciça do cólon com numerosos pseudopolipos e mucosa hemorrágica. B e
C from: Ulcerative colitis. PathologyOutlines.com website. http://www.pathologyoutlines.com/topic/colonuc.html.
Accessed April 11th, 2017.
185
Complicações extra-intestinais
As complicações extra-intestinais devem ser distinguidas das manifestações extra-
intestinais e devem ser relacionadas com a doença ou com os fármacos usados para
tratar a DII – exemplo: artropatia fármaco-induzida (corticóides, biológicos),
complicações oculares (glaucoma ou catarata induzida por corticóides), complicações
hepato-biliares (litíase biliar, esteatose hepática); complicações renais (nefrite tubulo-
intersticial fármaco-induzida); anemia (deficiência em ferro ou vitamina B12, citopénia
induzida por tiopurinas); complicações ósseas (osteoporose, fracturas);
tromboembolismo venoso; alterações do humor e ansiedade. Afectam cerca de 25% dos
doentes com DII e algumas podem anteceder o seu diagnóstico.
Figura 3: Fenótipo da Doença de Crohn. A – Classificação de Montreal (classificação por idade: A1 <16 anos, A2 17-40
anos, A3>40 anos); B – Principais manifestações extra-intestinais e doenças auto-imunes associadas. From Baumgart
D. Crohn’s Disease. Lancet 2012: 380 (9853): 1590-1605.
Diagnóstico
O diagnóstico da DII no adulto é estabelecido com base numa anamnese e exame
objectivo rigorosos, bem como no resultado de exames complementares de diagnóstico
(Figs. 4 e 5).
186
Exames laboratoriais
A avaliação laboratorial das fezes deve incluir a pesquisa de Clostridium dificille,
pesquisa de sangue oculto, doseamento de lactoferrina e da alfa-1-antitripsina (valor
preditivo negativo para inflamação intestinal) e da calprotectina (avalia actividade DII).
Imagiologia e Endoscopia
O radiograma abdominal pode contribuir para perceber as situações de colite e a sua
extensão. Permite também detectar situações de obstrução e perfuração, bem como
excluir megacólon tóxico. O radiograma abdominal com enema baritado não está
recomendado nas situações grave, mas pode ser útil para identificar fístulas e avaliar
grosseiramente a anatomia do cólon numa situação pré-operatória. O radiograma
torácico pode contribuir para excluir tuberculose e pesquisar áreas de ar livre sob o
diafragma nos casos de perfuração.
7
INR: international normalized ration; VIH: virus da imunodeficiência humana; VHB: vírus da hepatite B; VHC: vírus da
hepatite C; VZV: vírus Varicella Zoster; p-ANCA: perinuclear antineutrophil cytoplasmic anibody; ASCA: anti-
Saccharomyces cerevisiae; TPMT: tiopurina metil transferase; IGRA: interferon gamma release assay; CMV:
citomegalovirus.
187
tiveram estudo prévio negativo, permitindo a avaliação de todo o intestino delgado. A
enteroscopia de duplo lúmen permite a realização de biópsias e tratamento de
estenoses na DC. Outros exames endoscópicos incluem a cromoendoscopia, sobretudo
para a vigilância de neoplasias, mas a relação custo-benefício está ainda a ser
estudada.
Figura 4: Doença de Crohn. A - Imagem de Tc revelando inflamação do íleo em doente com Doença de Crohn; B –
Imagem de Colonoscopia com úlcera de grandes dimensões e inflamação do cólon descendente, na Doença de Crohn;
C – Peça operatória extraída de doente com Doença de Crohn com atingimento íleo-cólico. A e C from: Wilkins T et al.
Diagnosis and Management of Crohn’s Disease. Am Fam Physician. 2011 Dec 15;84(12):1365-1375. B from:
http://emedicine.medscape.com/article/172940-overview acessed on 11/4/2017.
Figura 5: Colite Ulcerosa. A – Enema baritado com duplo contraste revelando colite total
(http://emedicine.medscape.com/article/183084-overview acessed on 11/4/2017); B – Colonoscopia com ileoscopia
revelando extensa inflamação e ulceração da mucosa (©2000-2006 gastrointestinalatlas.com); C – peça operatória com
lesão difusa e contínua do recto ao cólon (http://emedicine.medscape.com/article/172940-overview em 11/4/2017)
Anatomia Patológica
As biópsias obtidas nos exames endoscópicos devem ser avaliadas com enfâse nalguns
aspectos particulares: a distorção da arquitectura das criptas; o aumento do espaço sub-
criptal e a plasmocitose basal associados a colite crónica, atípicos numa colite infecciosa
aguda; os granulomas não caseosos são sugestivos de DC – mas granulomas caseosos
grandes ou necrosados devem fazer suspeitar de tuberculose, sobretudo em zonas
endémicas; a identificação das áreas alteradas em zonas globalmente preservadas
permite estadiar toda a extensão da doença; pesquisa de CMV nos doentes sob
imunossupressão; pesquisa de displasia ou massas atípicas; identificação de colite
linfocítica ou colagenosa em doentes com cólon aparentemente
8
CPRM: colangiopancreatografia por ressonância magnética; Tc: tomografia computorizada; RMN: ressonância
magnética nuclear.
188
normal – este diagnóstico pode coexistir no delgado na DC e deve ser pesquisado em
doentes com diarreia (Fig.6). As principais diferenças clínicas e histológicas entre as
duas DII estão apresentadas na Tabela 2.
Figura 6: A – Colite Ulcerosa crónica grave e activa, revelando ulceração da mucosa com aparência viliforme da mucosa
adjacente em regeneração e distorção da arquitectura estrutural. A lâmina própria também revela agregados linfóides
basais. (From Patil D et al. Inflammatory Disorders of the Large Intestine – Chapter 17. Odze and Goldblum Surgical
Pathology of the GI Tract. Clinical Gate 2015). B - Doença de Crohn, em que se observa granuloma sem destruição das
criptas (in https://librepathology.org/wiki/Granuloma em 12/4/2017). C – Doença de Crohn, com infiltrado inflamatório a
invadir parede de vaso sanguíneo.Imagens com coloração em Hematoxicilina-Eosina. (1996 Johns Hopkins School of
Medicine.)
Diagnóstico
O diagnóstico de DC e CU é estabelecido com base nos dados da história clínica, exame
objectivo, resultados analíticos, serológicos, radiológicos, endoscópicos e histológicos.
As principais diferenças entre elas estão apresentadas na Tabela 2.
189
Diagnóstico Diferencial
O diagnóstico diferencial deve ter em conta outras situações infecciosas e inflamatórias,
sintetizadas na Tabela 3.
Tratamento
A abordagem ao doente com DII requer uma abordagem multidisciplinar e um
esclarecimento ao doente quanto a efeitos da medicação a longo prazo, bem como a
necessidade do cumprimento da terapêutica. O tratamento deve ser baseado no tipo de
DII, a sua localização e gravidade, as comorbilidade e complicações, a resposta obtida
no tratamento dos sintomas, a tolerância à medicação, o acesso do doente a opções de
métodos de diagnóstico e tratamento e a história prévia de recidivas. O objectivo do
tratamento deverá ser a optimização e manutenção da qualidade de vida do doente,
tratar a doença activa (eliminar sintomas, minimizar efeitos secundários, reduzir a
inflamação intestinal e promover a cicatrização da mucosa), manter a remissão sem
recorrer a corticoterapia, evitar complicações, hospitalização ou cirurgia e manter um
bom estado nutricional. Os índices de actividade de doença usados no passado têm-se
revelado ineficazes para prever a remissão endoscópica, pelo que a PCR e calprotectina
fecal têm sido usadas para detectar DII activa.
A dieta deve ser adaptada e nos períodos de doença activa deve ser pobre em fibras. A
cessação tabágica deve ser encorajada (embora esteja associada a agravamento da
doença na CU).
190
secundários da utilização prolongada. A via de administração pode ser endovenosa
(metilprednisolona, hidrocortisona), oral (prednisona, prednisolona, budesonido,
dexametasona) ou rectal (enemas, espumas ou supositórios). Devem ser administrados
em conjunto com suplementação de cálcio e vitamina D (embora os estudos sejam
controversos), devendo ser monitorizada a tensão arterial e a glicémia. O budesonido
(rectal) pode ser uma opção em doentes com atingimento distal que não toleram
corticóides.
Os agentes anti-TNF alfa podem constituir a primeira linha de tratamento nos doentes
com doença agressiva ou CD perianal. O infliximab e o adalimumab estão aprovados na
Europa e pela DGS9 para o tratamento da DII moderada a grave sem resposta a outros
fármacos. O infliximab é utilizado como terapêutica de resgate na CU grave refractária
à corticoterapia. A dose e os intervalos de administração destes fármacos podem ser
ajustados em função da resposta à terapêutica. Estes agentes estão associados a bom
controlo da doença, com diminuição dos períodos de internamento e do número de
recidivas. Porém, aumentam o risco de infecções oportunistas ou reactivação de
infecções latentes; o risco de neoplasias e linfomas é baixo, mas deverá ser
considerado. O certolizumab está aprovado para utilização nos Estados Unidos da
América, mas ainda não tem aprovação em Portugal. O agente anti-alfa4- integrina
natalizumab tem sido utilizado e já foi aprovado pela FDA para a DC moderada a grave,
mas ainda não é utilizado na Europa.
9
DGS: Direcção Geral de Saúde, FDA: Food and Drug Administration.
191
submetido a ressecção ileal. A analgesia deve ser optimizada, mas o uso de opióides
deve ser evitado, dada a associação a aumento da mortalidade nos doentes com DII. A
suplementação com vitamina B12, vitamina D ou ferro poderá ser necessária.
CU DISTAL CU EXTENSA DC
Sulfassalazina ou outro
LIGEIRA 5-ASA oral ou rectal 5-ASA tópico ou oral 5-ASA apenas para
atingimento cólico
Corticóide oral Corticóide oral
5-ASA oral ou tópico AZA ou 6-MP
MODERADA 5-ASA rectal ou oral
AZA ou 6-MP MTX
Anti-TNF Anti-TNF
5-ASA rectal e oral Corticóide ev Corticóide ev ou oral
GRAVE Corticóide oral ou ev CSA ev MTX sc ou IM
Corticóide rectal Infliximab ev IFX ou ADA
AZA ou 6-MP ou AZA ou 6-MP ou anti- AZA ou 6-MP ou anti-
CORTICO- preferencialmente TNF ou TNF ou
-RESISTENTE OU anti-TNF ou preferencialmente preferencialmente
DEPENDENTE combinação AZA/6- combinação AZA/6- combinação AZA/6-MP
MP + anti-TNF MP + anti-TNF + anti-TNF
5-ASA oral ou rectal 5-ASA oral
QUIESCENTE AZA ou 6-MP ou MTX
AZA ou 6-MP oral AZA ou 6-MP oral
Antibióticos orais
AZA ou 6-MP
PERIANAL
Infliximab ev
Adalimumab sc
Tabela 4: Terapêutica da Doença Inflamatória Intestinal de acordo com a evolução da doença. 5-ASA: ácido 5-
aminosalicilico, AZA: azatioprina, 6-MP: 6-mercaptopurina; TNF: tumor necrosis factor; MTX: metotrexato; ev:
endovenoso; sc: sub-cutâneo.
Prognóstico
A mortalidade nos doentes com DII é 1,4 - 5 vezes superior à da população geral, sendo
mais acentuada na DC. A principal causa de mortalidade é a própria doença em si,
podendo coexistir outras causas de morbilidade importante. A DII não está associada a
um aumento do risco cardiovascular. No entanto, como já descrito anteriormente, estes
doentes têm um risco acrescido de neoplasia, pelo que devem ser submetidos a
colonoscopia em cada 1-2 anos.
A qualidade de vida dos doentes é afectada pela doença em si, pelas complicações
intestinais e extra-intestinais e pelos próprios efeitos secundários da terapêutica,
sobretudo a corticoterapia. Há um aumento do risco de DII nos doentes com asma e
DPOC10, o que também agrava a morbilidade nestes doentes. O impacto psicológico
afecta sobretudo os doentes mais jovens e está associado a sintomas de depressão e
ansiedade. As recidivas da doença são frequentes e variam na CU e na DC consoante
a extensão das lesões, a evolução ao longo dos anos e a adesão à terapêutica. De uma
forma geral, e pela gravidade e frequência das complicações, considera-se que os
doentes com DC têm pior qualidade de vida que os doentes com CU.
10
DPOC Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica.
192
ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- pensar em DII se doentes jovens com diarreia mucosa ou sanguinolenta de longa
duração e contexto familiar sugestivo;
- em doentes com DII diagnosticada com recidiva da doença, pensar em efeitos
secundários da doença; pesquisa de infecção a CMV em doentes imunossuprimidos
- pedir sempre colaboração de colegas de Gastrenterologia.
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• Falvez JD et al. Disease Activity Assessment in IBD: clinical indices and biomarkers fail to predict
endoscopic remission. Inflamm Bowel Dis. 2015 Apr;21(4):824-31.
194
PARTE III – ATINGIMENTO DE
ÓRGÃO-ALVO NA DOENÇA AUTO-
IMUNE
195
1. ALTERAÇÕES NEUROLÓGICAS NAS DOENÇAS
AUTO-IMUNES
Introdução
As doenças auto-imunes (DAI) têm um espectro semiológico amplo, que envolve o
sistema nervoso, central (SNC) ou periférico (SNP), com manifestações clínicas
desafiantes, quer pelo diagnóstico, quer pelo tratamento. Estas manifestações podem
ser primárias ou secundárias, estando habitualmente associados a diferentes
mecanismos imunomediados. O SNC e o SNP apresentam particularidades a este nível,
esquematizadas na Figura 1, com o exemplo de resposta imunitária a agentes
infecciosos, embora os mecanismos sejam idênticos nas DAI.
Fig.1: Imunidade Inata no Sistema Nervoso Periférico e Central. A: Quando há infecção periférica, as células inatas do
sistema imunitário estimulam linfócitos T. As células dendríticas internalizam antigénios proteicos, processam-nos em
péptidos e apresentam-nos à superfície a moléculas do complexo major de histocompatibilidade tipo II; migram então
para os nódulos linfáticos e apresentam os antigénios a células CD4+ naïves. As células dendríticas dirigem a
subsequente resposta inflamatória, descodificando sinais distintos associados aos agentes patogénicos e transmitindo
esta informação às células T, por forma a que estas produzam citocinas reguladoras como a IL-12 (para as Th1), IL-4
(para as Th2) ou IL-6/TGF-β (para as Th17). Para além disso, o ambiente próprio do gânglio linfático promove informação
sobre o local da infecção (ex: pele, intestino, pulmão). Com esta informação, as células T migram para os tecidos
infectados. Mediante reactivação, as células Th1, Th2 e Th17 expressam citocinas específicas e recrutam as células
inatas residentes nesses tecidos, que vão actuar, por exemplo, em conjunto com o complemento, para eliminar a
infecção. B: As células residentes do sistema nervoso central, microglia e astrócitos, exercem múltiplas funções, incluindo
a protecção e adaptação das respostas do SNC às infecções ou a outro tipo de estímulos. As citocinas e quimiocinas
expressas por estas células residentes também promovem o recrutamento de células linfóides e mielóides
196
circulantes da periferia, para ajudar na eliminação do agente patogénico. (From Ransohoff R and Brown M. Innate
immunity in the central nervous system. J Clin Invest. 2012;122(4):1164-1171.)
Esclerose Múltipla
A EM é uma doença auto-imune caracterizada por inflamação crónica, desmielinização
e gliose, afectando o SNC e, muito raramente, o SNP. Na EM há destruição da mielina
dos axónios do SNC, com subsequente destruição progressiva.
A EM pode ser classificada de várias formas, que não estão directamente relacionadas
com mecanismos biológicos comuns. A mais consensual, foi estabelecida com base em
características clínicas e evolução da doença (Fig. 2). Assim, distinguem-se 4 sub- tipos
de EM:
197
Fig. 2: Tipos e evolução da Esclerose Múltipla. À esquerda: os 4 tipos principais de Esclerose Múltipla (Adapted form
Lublin FD et al. Defining the clinical course of multiple sclerosis: results of na International survey. Neurology 1996;
46:907-911); à direita: evolução clínica com tradução radiológica em Ressonância Magnética Nuclear (setas verticais),
que sugere períodos de exacerbação da doença sem tradução clínica. (From Fox RJ and Cohen JA. Multiple Sclerosis:
the importance of early recognition and treatment. Clev Clin J of Med 2001;68: 157-171).
Fig.3: Processo inflamatório na Esclerose Múltipla. Os linfócitos B e T e as células apresentadoras de antigénio (APC),
incluindo macrófagos, entram no sistema nervoso central (CNS), onde segregam citocinas que vão destruir os
oligodendrócitos. Dado que estas células produzem mielina, quando são destruídas, não podem reparar os axónios
desmielinizados, o que vai alterar a condução eléctrica. Os linfócitos atravessam a barreira hemato-encefálica através
de um receptor de superfície, a α4-integrina, acumulando-se com outras células inflamatórias na substância branca. A
198
este nível, as células T, os macrófagos e as células da microglia libertam osteopontina (OPN), IL-23, IFN-γ e factor de
necrose tumoral (TNF), que vão danificar a mielina. Concomitantemente, os linfócitos B (plasmócitos) produzem
anticorpos específicos contra a mielina, que interagem com o complexo terminal da cascata do complemento, produzindo
complexos de ataque de membrana, que vão atacar os oligodendrócitos. APL: altered peptide ligands. (From Nature
Reviews Immunology 3, 483-492 (June 2003)).
Fig.4: As imagens de RMN correlacionam-se com o grau de degeneração na Esclerose Múltipla. Os pontos negros nas
sequências de T1 representam destruição tecidular grave, incluindo perda axonal e neuronal. As sequências de
imagens em T1, realizadas com 2 meses de intervalo representam um processo inflamatório activo. (From Barkhof, F.
et al. Nat. Rev. Neurol. 5, 256–266 (2009)).
199
O diagnóstico de EM é estabelecido com base em dados clínicos e imagiológicos,
nomeadamente da RMN. As lesões típicas surgem nas regiões sub-corticais e peri-
ventriculares, bem como no tronco cerebral, cerebelo e medula espinhal (Fig. 4). Os
critérios de diagnóstico de McDonald foram estabelecidos em 2010 e estão
sistematizados na Tabela 1.
Encefalites imunomediadas
Ao longo dos anos, foram sendo descritas situações de encefalite rapidamente
progressiva, síndrome cerebelar, ou encefalopatia crónica semelhante a processo
degenerativo. Actualmente, estas situações integram diferentes espectros de uma
mesma doença: a encefalite auto-imune. Esta doença está associada à presença de
anticorpos contra as proteínas da superfície neuronal, com alterações do LCR e RMN
compatíveis com quadro inflamatório, verificando-se após imunossupressão. Ao
contrário de outras DAI sistémicas com atingimento do SNC, na EAI os anticorpos
também são produzidos no próprio SNC (Tabela 2). Há actualmente 16 tipos de EAI com
anticorpos dirigidos a receptores de neurónios inibitórios ou excitatórios ou proteínas
envolvidas na integração do sinal somato-dendrítico, modulação de receptores,
reuptake de vesículas sinápticas, ou sinaptogénese. O trigger imunológico é
frequentemente um tumor ou infecção viral, sobretudo nas situações associadas a
encefalite a anticorpos anti-NMDA.
200
PRINCIPAIS
SÍNDROME ALTERAÇÕES RMN FREQUÊNCIA TIPO DE
ANTICORPO ALTERAÇÕES
PRINCIPAL (FLAIR/T2) DE CANCRO CANCRO
CLÍNICAS
Psiquiátricas
Normal ou
(adultos); Encefalite a Geral 40%;
Receptor alterações
convulsões, receptores 58% ♀ 18-45 Teratoma
NMDA transitórias sem foco
discinésia NMDA anos
específico
(crianças)
Timoma,
Hiperintensidade de
Receptor Perda de Encefalite Pulmão
sinal restrita aos 65%
AMPA memória Límbica (Pequenas
lobos temporais Células)
Perda de Encefalite límbica Hiperintensidade de Pulmão
Receptor
memória, com convulsões sinal restrita aos 50% (Pequenas
GABAb
convulsões precoces lobos temporais Células)
Perda de Hiperintensidade de
LGI1 memória, Encefalite límbica sinal restrita aos 5-10% Timoma
convulsões lobos temporais
Síndroma de
Alterações do Normal ou Geral 20%;
Morvan,
CASPR2 sono, hiperintensidade nos S. Morvan Timoma
Encefalite
neuromiotonia Límbica lobos temporais (20-50%)
Encefalite com Hiperintensidade de
Receptor convulsões sinal em múltiplas
Convulsões 25% Timoma
GABAa refractárias, áreas corticais e
status epilepticus sub-corticais
Normal ou
Confusão,
DPPX Encefalite alterações em áreas <10% Linfoma
diarreia inespecíficas
Letargia,
sintomas
Receptor psiquiátricos, Hiperintensidade de
Encefalite dos
2 movimentos sinal nos gânglios da 0% ?
gânglios da base
Dopamina involuntários, base
alterações da
marcha
Normal ou
Perda de hiperintensidade de Linfoma de
mGluR5 Encefalite Raros
memória sinal em várias Hodgkin
regiões corticais
Neurexina Confusão,
Encefalite Normal 0% ?
3α convulsões
Perturbação do
sono REM e
Alterações do
IgLON5 NREM, disfunção Normal 0% ?
sono
do tronco
cerebral
Instabilidade Ataxia Normal ou atrofia Linfoma de
DNER >90%
da marcha cerebelosa cerebelosa Hodgkin
Pulmão
VGCC tipo Instabilidade Ataxia Normal ou atrofia
>90% (Pequenas
P/Q da marcha cerebelosa cerebelosa
Células)
Instabilidade Ataxia Normal ou atrofia Linfoma de
mGluR1 Raros
da marcha cerebelosa cerebelosa Hodgkin
Timoma,
Rigidez Normal ou
Receptor PERM, Síndrome pulmão,
muscular, alterações de áreas <5%
da glicina Stiff-Person Linfoma de
espasmos inespecíficas
Hodgkin
Mama,
Síndrome Stiff- Normal ou
Rigidez, Pulmão
Anfifisina Person, alterações de áreas >90%
espasmos (pequenas
encefalomielite inespecíficas
células)
Tabela 2: Principais características clínicas associadas a anticorpos contra as proteínas da superfície celular neuronal e
receptores sinápticos. NMDA, N-methyl-D-aspartate; AMPA, _-amino-3-hydroxy-5-methyl-4-isoxazolepropionic acid;
GABAb, gamma-aminobutyric acid type B; LGI1, leucine-rich glioma inactivated 1; CASPR2, contactin-associated protein-
like 2; GABAa, gamma-aminobutyric acid type A; DPPX, dipeptidyl-peptidase-like protein-6; mGluR, metabotropic
glutamate receptor; DNER, delta/notch-like epidermal growth factor-related receptor; VGCC, voltage-
201
gated calcium channel; Gly, glycine; REM, rapid-eye-movement sleep; NREM, non-rapid-eye-movement sleep; PERM,
progressive encephalomyelitis with rigidity and myoclonus; MRI FLAIR, magnetic resonance imaging fluid-attenuated
inversion recovery.
Figura 5: Triggers para a encefalite anti-receptores NMDA e modelo proposto para a activação de células. O esquema
apresenta 2 possíveis causas etiológicas para a doença: tumor (normalmente teratoma do ovário) ou infecção (encefalite
a Herpes simplex). No teratoma ovárico, o tecido nervoso presente no tumor contém neurónios com receptores NMDA,
que são libertados e atingem os nódulos linfáticos. Na encefalite a Herpes simplex, a inflamação induzida pelo vírus, a
necrose tecidular e a degeneração neuronal podem libertar antigénios, que são transportados até aos nódulos linfáticos;
a este nível, o antigénio é apresentado a células B memória e os plasmócitos produzem anticorpos. (From Dalmau J et
al. Autoantibodies to Synaptic Receptors and Neuronal Cell Surface Proteins in Autoimmune Diseases of the Central
Nervous System. Physiol Rev 97: 839–887, 2017)
202
Surgem então convulsões, diminuição do discurso, prostração, discinésia da face e
membros, coreio-atetose, postura distónica, rigidez e disfunção autonómica.
Fig. 6: Evolução Clínica da Encefalite a anticorpos anti-NMDA. (From Dalmau J et al. Autoantibodies to Synaptic
Receptors and Neuronal Cell Surface Proteins in Autoimmune Diseases of the Central Nervous System. Physiol Rev 97:
839–887, 2017)
Do ponto de vista laboratorial, pode haver aumento de creatinina quinase (CK) por
rabdomiólise; o líquido cefalorraquidiano (LCR) revela IgG contra a sub-unidade GluN1
do receptor NMDA, bem como outras alterações inflamatórias como pleiocitose ou
aumento da proteinorráquia. O electroencefalograma (EEG) revela predomínio de ondas
delta, embora as características específicas da EARNMDA possam não estar sempre
presente. A RMN-CE é normal em 60% dos doentes; os restantes 40% apresentam
alterações ligeiras ou transitórias sub-corticais, cerebelosas ou mesencefálicas.
203
cingulado. A etiologia está relacionada com neoplasia de pequenas células do pulmão,
encefalite auto-imune e infecções virais.
Figura 7: Síndrome de Stiff-Person. A – Electroencefalograma revelando actividade motora de baixa frequência, que
ocorre simultaneamente nos músculos agonistas e antagonistas, mesmo durante o período de relaxamento. (From Khade
SS et al. Forty-year-old lady with tightness in lower limbs. Annals of Indian Academy of Neurology 2012;15(1): 15-18.) B:
Rigidez muscular abdominal e dos membros superiores em doente com neoplasia da mama. (From Rosin L, et al. Stiff-
man Syndrome in a woman with breast cancer. Neurology January 1998 vol. 50 no. 1 94-98)
204
VASCULITE DE ÓRGÃO ÚNICO NO SISTEMA NERVOSO CENTRAL
Figura 8: Angeíte Primária do Sistema Nervoso Central. A: Plano axial de RMN que revela área de enfarte na substância
branca subcortical direita (seta), juntamente com enfartes lacunares no globo pálido (cabeça de seta). B: Plano axial em
RMN com enfartes na substância branca subcortical esquerda (distribuição da artéria cerebral posterior) (seta branca) e
hipocampo posterior à esquerda (seta preta). C: Angiograma cerebral de subtracção digital lateral direito, revela estenose
próxima do segmento A2 da artéria cerebral média e estenose grave distal aos segmentos arteriais peri-calosos (seta).
A artéria cerebral média é pouco visível. D: Angiograma de subtracção digital antero- posterior da carótida comum direita,
revelando estenose significativa do segmento M2 (setas) com subsequente atenuação dos segmentos distais. E e F:
injecção da artéria vertebral esquerda antero-posterior (E) e artéria carótida comum esquerda (F) correlacionam-se com
imagem da RMN em B. (From Pomper M et al. CNS Vasculitis in Autoimmune Disease: MR imaging findings and
correlation with angiography. American Journal of Neuroradiology January 1999, 20 (1) 75-85.)
205
Doenças Auto-Imunes e Sistema Nervoso Periférico
A definição de neuropatia periférica engloba o envolvimento de qualquer estrutura do
SNP: corpo do neurónio, mielina, axónio e mesmo células da glia (Fig.9). Apesar da
existência da barreira hemato-neural, tanto a imunidade humoral como a celular pode
ser dirigida contra os axónios e a mielina periféricos. A vigilância imunitária é realizada
por linfócitos B e T que atravessam a barreira hemato-neural; as células apresentadoras
de antigénios, como os macrófagos, são frequentes no SNP. As Células de Schwann
podem também actuar como células apresentadoras de antigénio.
Fig.9: Patofisiologia da neuropatia periférica, de acordo com o tipo de doença e estrutura neuronal afectada. (From
Callaghan B, et al. The Importance of Rare Subtypes in Diagnosis and Treatment of Peripheral Neuropathy – a review.
JAMA Neurol. 2015;72(12):1510-1518)
A classificação da neuropatia imune tem sido ampliada, por forma a abranger síndromes
específicas que partilham características clínicas, electrofisiológicas, serológicas e
prognósticas únicas. Distinguem-se 3 grupos principais de neuropatias periféricas
imunomediadas associadas às doenças auto-imunes: neuropatia sensorial,
mononeuropatia múltipla e poliradiculoneuropatia desmielinizante inflamatória crónica
(Tabela 3, Fig. 10). Durante muitos anos, o protótipo de neuropatia desmielinizante
periférica imunomediada era a Síndrome de Guillain-Barré. Actualmente, sabe-se que
este quadro clínico é apresentado em situações muito variadas, com etiologias e
processos fisiopatológicos muito diferentes, pelo que o quadro clínico não é
exclusivamente auto-imune e não será desenvolvido neste manual.
206
observados estão associados ao tipo de neurónio afectado: se houver dano funcional
em grandes neurónios, vai ocorrer ataxia da marcha, desequilíbrio, arreflexia perda de
sensibilidade vibratória e postural; se forem lesados neurónios de pequena ou média
dimensão, pode surgir hiperestesia, dor e alodinia. Os sintomas autonómicos ou motores
ligeiros também são frequentemente detectados, particularmente se associados a
situações paraneoplásicas ou imunomediadas (Síndrome de Sjögren, Hepatite Auto-
imune e Doença Celíaca). O tratamento baseia-se em corticoterapia e imunoglobulina
endovenosa, mas têm vindo a ser desenvolvidas outras abordagens terapêuticas, como
ciclofosfamida, micofenolato de mofetil ou ciclosporina.
Fig. 10: A: Representação esquemática do Sistema Nervoso Periférico. B: Tipos de Neuropatia Periféricas mais
frequentemente associados às Doenças Auto-Imunes (“Ganglionapathy” equivale a Neuropatia Sensorial) (From
Clinical and Developmental Immunology 2012(2):236148 · July 2012)
NEUROPATIA
NEUROPATIA MONONEURITE DESMIELINIZANTE
CARACTERÍSTICAS
SENSORIAL MULTIPLEX INFLAMATÓRIA
CRÓNICA
DÉFICES Multifocais, Multifocais, Simétricos
SENSORIAIS assimétricos assimétricos
Multifocais,
DÉFICES MOTORES Ausentes
assimétricos
Simétricos
ROT Hipo/arreflexia global Hipo/arreflexia focal Hipo/arreflexia global
PROTEÍNAS LCR /N N
Desmielinização de
Lesão corpo celular, nervos e
Isquémia do nervo,
NEUROPATOLOGIA infiltrados
perda de axónios
terminações,
inflamatórios (CD8+) infiltrados
inflamatórios
Sensorial e motora,
Apenas sensorial, Sensorial, motora,
NEUROFISIOLOGIA multifocal multifocal, axonal
difusa,
desmielinizante
Síndroma de Sjögren
PRINCIPAIS DAI Lúpus Eritematoso
Hepatite Auto-Imune Vasculites
ASSOCIADAS Doença Celíaca Sistémico
Tabela 3: Neuropatias periféricas imunomediadas associadas a doenças auto-imunes. ROT: reflexos osteo-tendinosos;
LCR: líquido cefaloraquidiano; N: normal; DAI: doença auto-imune.
207
A Mononeurite Múltipla (MM), ou Mononeurite Multiplex, é um subtipo pouco frequente
de neuropatia periférica e implica o dano de pelo menos dois ramos nervosos periféricos
(Fig.11). O quadro clínico caracteriza-se por uma tríade de dor, assimetria e défices
multifocais, relacionados com lesão de axónios longos de neurónios motores ou
sensitivos. Estes défices podem conduzir a deficiência motora ou sensitiva, estando o
primeiro caso associado a pior prognóstico, dada a relação com lesão isquémica. A
evolução é tipicamente aguda ou sub-aguda, com défices recidivantes ou progressivos.
A Mononeurite Múltipla está associada a vasculites primárias, por lesão directa dos vasa
vasorum, embora possa ocorrer noutras DAI. As vasculites que estão mais associadas
à MM são a Poliangeíte Microscópica, a Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte, a
Granulomatose com Poliangeíte e a Poliarterite Nodosa. O tratamento destes casos
assenta na imunossupressão, sendo que nos casos refractários pode ser considerado
o rituximab, a imunoglobulina endovenosa e a plasmaferese. Há ainda casos de MM
associados a vasculites secundárias a outras DAI, como o LES, a AR ou a ES.
Fig. 11: Alterações clínicas de Mononeurite Múltipa provocada por vasculite sistémica. A: atrofia dos músculos
interósseos dorsais por lesão do nervo cubital; B: mão pendente por lesão do nervo radial; C: eritema purpúrico no dorso
do pé esquerdo; D: atrofia hipotenar e eritema livedóide. (From Martinez A. Et al. Autoimmune Neuropathies associated
to Rheumatic Diseases, Autoimmunity Reviews (2017))
208
polirradiculopatias paraneoplásicas ou infecciosas. A terapêutica passa por
corticoterapia, imunoglobulina endovenosa e plasmaferese. Será importante referir
ainda que a PDIC é a neuropatia mais frequentemente associada aos fármacos anti-
TNF alfa, podendo os sintomas começar desde a primeira semana até vários anos após
o início da terapêutica. Nestas situações, deve suspender-se o fármaco e tratar como
nos restantes casos, sendo o prognóstico habitualmente favorável.
209
Figura 12: Alterações neurofisiológicas na Miastenia Gravis (MG), Síndrome de Lambert Eaton (LEMS) e Neuromiotonia.
Nos doentes com MG, a diminuição de acetilcolina resulta em potenciais evocados de baixa amplitude, que, com
estimulação repetitiva, vão descendo abaixo do potencial necessário para desencadear um potencial de acção na célula
muscular. Na LEMS, o potencial de acção da célula muscular inicialmente é baixo, mas vai aumentando com a
estimulação repetitiva (acumulação de cálcio na fenda pré-sináptica, que leva à libertação da acetilcolina). A
neuromiotonia adquirida está associada a um potencial de acção inicial alargado e repetida estimulação neuronal, o que
pode provocar aumento da libertação de acetilcolina e prolongamento do potencial evocado. (From Crisp S, et al.
Autoimmune synaptopathies. Nature Reviews, 2016; 17:103-117).
Miastenia gravis
A MG é uma DAI em que os anticorpos se ligam aos receptores da acetilcolina ou
moléculas relacionadas na membrana pós-sináptica da junção neuro-muscular,
provocando fraqueza muscular, segmentar ou generalizada, mais frequentemente
proximal, quase sempre com envolvimento dos músculos peri-orbitários, provocando
diplopia e ptose. O padrão costuma ser simétrico, excepto no envolvimento ocular, e a
fraqueza muscular aumenta com o exercício, sem rigidez matinal acompanhante.
210
Fig.13: Junção Neuromuscular e patogénese da Miastenia Gravis. A transmissão neuromuscular envolve a libertação de
acetilcolina da membrana pré-sináptica, que se liga aos receptores de acetilcolina na membrana pós-sináptica. Os
receptores interagem com outras proteínas de membrana, que envolvem a Dok7 e a rapsina. A mutação nestas proteínas
é importante na MG congénita. Anticorpos contra a quinase específica do músculo (MuSK) e contra o receptor da
lipoproteína relacionado com o péptido 4 (LRP4), induzem a fadiga miasténica. A acetilcolina é degradada por
acetilcolinesterase local e a inibição da acetilcolinesterase leva a uma melhoria sintomática nos doentes com MG. (From
N Engl J Med 2016;375:2570-81.)
Como referido, foram identificadas variantes da MG, com base nos tipos de anticorpos
circulantes, na lesão muscular, na avaliação do timo e no próprio fenótipo da doença,
que determinam o acompanhamento e abordagem terapêutica a adoptar (tabela 4). Nas
situações seronegativas, os testes neurofisiológicos e a resposta à terapêutica podem
fundamentar o diagnóstico; ainda assim, os testes devem ser repetidos 6 a 12 meses
depois, dada a possibilidade de falsos negativos. A hipótese de timoma deve ser
excluída por exames de imagem e imunologia direccionada.
211
A ptose e a diplopia são com frequência os sinais iniciais, mas apenas 15% dos doentes
têm doença limitada aos músculos peri-orbitários. Nestes casos, ao fim de 2 anos, a
doença geralmente persiste como fraqueza ocular focal e não progride mais. Metade
dos doentes tem anticorpos detectáveis, sendo nestes casos maior o risco de
subsequente generalização da doença (Fig.14-A). Com frequência os doentes com MG
apresentam outras patologias co-existentes, como o timoma (10%) e outras DAI, como
a tiroidite auto-imune, o Lúpus Eritematoso Sistémico e a Artrite Reumatóide (Fig.14-B).
Fig.14: A – Sub-grupos de miastenia gravis, em termos de proporção relativa. B – Patologias co-existentes nos doentes
com miastenia gravis. MuSK: quinase especifica do músculo; LRP4: receptor da lipoproteína relacionada com o péptido
4. (From N Engl J Med 2016;375:2570-81.9)
Síndrome de Lambert-Eaton
A Síndrome de Lamber-Eaton (SLbE) é uma doença rara que afecta a membrana pré-
sináptica da junção neuromuscular. Provoca uma diminuição na libertação da
212
acetilcolina, o que leva a um quadro clínico de fadiga muscular proximal, diminuição dos
reflexos tendinosos e disautonomia. As principais diferenças entre a SLbE e a MG estão
sumariadas na Tabela 5.
O início dos sintomas é lento e insidioso. Surge fadiga muscular, sobretudo ao nível dos
músculos proximais dos membros inferiores, que agrava com o aumento da
temperatura. Os sintomas oculares são raros. Pode surgir xerostomia e um sabor
metálico desagradável. A disfunção disautonómica inclui impotência no homem e
hipotensão ortostática.
213
multifactorial, como aterosclerose precoce e estado pró-coagulante associado à
presença de anticorpos associados à SAAF (anticorpo anti-cardiolipina, anticorpo anti-
β2-glicoproteína1, anticoagulante lúpico). Os doentes com LES e eventos cerebrais
isquémicos, permanentes ou transitórios, sobretudo se recorrentes, devem ser
avaliados para a possibilidade de SAAF concomitante ou fonte valvular de êmbolos,
como a endocardite de Libman-Sacks. As manifestações não trombóticas do SNC são
habitualmente inflamatórias, provocadas por acção directa dos auto-anticorpos ou
deposição complexos imunes; incluem cefaleia, psicose, convulsões, disfunção
cognitiva, encefalopatia aguda ou sub-aguda, mielite, perturbações do movimento
(incluindo coreia e outras doenças extra-piramidais), ataxia, neuropatia de pares
cranianos e alterações psiquiátricas (Tabela 6).
Fig.15: Mecanismos fisiopatológicos subjacentes ao neurolúpus. A: Os eventos neurológicos focais e difusos podem
resultar de mecanismos auto-imunes ou inflamatórios directamente relacionados com o LES ou secundários a
complicações da doença, como infecção. B: A lesão vascular envolve vasos de pequeno e grande calibre, sendo mediada
por anticorpos anti-fosfolípido, imunocomplexos, leucoaglutinação, podendo resultar em eventos neuropsiquiátricos
focais (por exemplo, acidente vascular cerebral) ou difusos (como disfunção cognitiva). A lesão inflamatória vai provocar
aumento da porosidade da barreira hemato-encefálica, formação de imunocomplexos e produção de interferão alfa e
outros mediadores inflamatórios, o que vai aumentar as manifestações neuropsiquiátricas difusas. aPL, antiphospholipid
antibodies; BBB, blood–brain barrier; MMP, matrix metalloproteinase; NPSLE, neuropsychiatric systemic lúpus
erythematosus; pDC, plasmacytoid dendritic cell. (From Hanly J. Diagnosis and management of neuropsychiatric SLE.
Nat. Rev. Rheumatol. advance online publication 11 February 2014)
O atingimento do SNP pelo LES é menos frequente, mas pode afectar até 10% dos
doentes, sobretudo por processos de vasculite. As alterações mais frequentemente
descritas são a neuropatia do trigémeo, que pode anteceder o diagnóstico de LES em
anos; a polineuropatia sensitiva ou sensitivo-motora simétrica distal (a mais frequente)
sub-aguda ou crónica; e a polirradiculoneuropatia desmielinizante inflamatória crónica.
214
A medicação pode também provocar efeitos secundários: por exemplo, a miopatia está
associada à corticoterapia e à hidroxicloroquina.
O SNP está afectado em até 30% dos doentes com SSj e o seu atingimento está
habitualmente dividido em sete tipos: ataxia sensorial, neuropatia sensorial (sem ataxia),
neuropatia do trigémeo, neuropatia autonómica (associada a anticorpos contra o
receptor muscarínico tipo 3), envolvimento de pares cranianos múltiplos,
mononeuropatia múltipla e radiculoneuropatia.
215
pior prognóstico. Podem ser ainda detectados processos de miosite, sendo a biópsia
muscular positiva em 40% dos casos.
A neuropatia periférica é uma das manifestações mais frequentes de DII, quer imuno-
mediada, quer secundária a terapêutica com metronidazol, manifestando-se por
parestesias, pelo envolvimento de pequenas fibras (autonómicas ou sensoriais), e
aumento do limiar para sensibilidade térmo-álgica. A MG está também associada à DII,
ocorrendo com mais frequência na colite ulcerosa do que na doença de Crohn.
Tiroidite de Hashimoto
A encefalite de Hashimoto é uma manifestação rara da tiroidite auto-imune, embora
também possa estar associada à doença de Graves, tem um quadro de instalação sub-
agudo, intercalando períodos de recidiva e remissão. Clinicamente, manifesta-se por
flutuações do estado de consciência, alterações neurológicas focais ou difusas, cefaleia
e alterações cognitivas. O LCR revela alterações inflamatórias, há elevação dos títulos
de anticorpos anti-tiroideus e alterações do electroencefalograma. Apresenta boa
resposta à corticoterapia.
Vasculites
As vasculites, como descrito no capítulo II.8, são síndromes ou doenças provocadas
pela inflamação e necrose da parede vascular, podendo atingir vasos de pequeno,
médio e grande calibre. Classificam-se em primárias ou secundárias, consoante a sua
216
associação a outras doenças, como a Artrite Reumatóide ou o Lúpus Eritematoso
Sistémico. As alterações imunomediadas e a isquémia da parede vascular são as
principais causas dos sintomas provocados no Sistema Nervoso Central (SNC) e
Sistema Nervoso Periférico (SNP). A sobreposição de um complexo espectro de
manifestações clínicas pode dificultar o reconhecimento do atingimento neurológico
nestas situações, o que atrasa o diagnóstico e, consequentemente, o tratamento.
Arterite Temporal
Doença de Takayasu
A disfunção neurológica pode ser a primeira manifestação da doença, embora seja mais
frequente o aparecimento no curso da doença. O envolvimento da carótida interna está
associado a neuropatia óptica isquémica, parésias isoladas dos pares cranianos ou
AVC. O envolvimento do SNP é raro, com défice sensitivo-motor sub- agudo com
distribuição do plexo cervico-braquial.
Poliarterite Nodosa
Granulomatose Eosinofílica
Os eventos neurológicos a nível do SNC são raros, podendo incluir paralisia do VII ou
X par craniano, AVC isquémico ou hemorrágico, convulsões e coma. O envolvimento
217
do SNP atinge até 60% dos doentes, sendo mais frequentes a mononeurite múltipla ou
neuropatia axonal sensitiva simétrica ligeira. Esta neuropatia ocorre por isquémia dos
vasa vasorum que circundam o nervo, que leva à perda de axónios sensitivos e motores.
Os estudos electrofisiológicos são fundamentais para o diagnóstico, podendo ser
necessária biópsia de nervo. O tratamento assenta na imunossupressão.
Poliangeíte Granulomatosa
Doença de Behçet
O neuro-Behçet, envolvimento do SNC pela doença de Behçet, atinge cerca de 30% dos
doentes, podendo manifestar-se de forma aguda ou crónica. Na forma aguda pode
ocorrer meningoencefalite aguda com lesões focais, que se traduzem por áreas de alta
intensidade em T2 ou FLAIR na RMN-CE; a forma crónica caracteriza-se por quadro
demencial lentamente progressivo, ataxia e disartria. Esta última forma de apresentação
é resistente à corticoterapia, ciclofosfamida e azatioprina, havendo estudos que
sugerem resposta favorável a doses baixas de metotrexato, pulsos de metilprednisolona
endovenosos e antagonistas do TNF alfa. O envolvimento do SNP é raro, embora possa
surgir polineuropatia simétrica distal e mononeurite múltipla.
Conclusão
O atingimento do sistema nervoso por doenças auto-imunes é complexo, sendo
importante distinguir as doenças que primariamente afectam o SNC ou o SNP das que
o afectam indirectamente, por processos trombóticos ou inflamatórios. Dentre os
processos de envolvimento secundário, está ainda a toxicidade medicamentosa e as
infecções inerentes à condição de imunossupressão da maior parte destes doentes.
Embora haja um espectro clínico semelhante entre várias doenças, é o seu rápido
reconhecimento e implementação de terapêutica que podem prevenir danos
neurológicos permanentes, que vão afectar a qualidade e mesmo a sobrevida dos
doentes.
218
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- alterações neurológicas de novo em doentes com DAI conhecida: ponderar Tc-
CE/RMN-CE, PL (o LCR apresenta aumento das bandas oligoclonais ou meningite
linfocítica); excluída infecção ou neoplasia, pode ser necessária implementação
precoce de terapêutica imunossupressora.
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220
2. OLHO E DOENÇAS AUTO-IMUNES
Introdução
As doenças auto-imunes sistémicas podem, por definição, envolver vários órgãos,
podendo o olho ser um deles. As queixas podem ser variadas, desde xeroftalmia, a
prurido, olho vermelho, sensação de corpo estranho ou fotofobia, sendo fundamental a
correcta avaliação de cada doente para que se chegue ao diagnóstico certo e se
implemente terapêutica adequada. Neste capítulo, abordaremos apenas algumas das
DAI com envolvimento ocular.
Artrite Reumatóide
Cerca de 25% dos doentes com Artrite Reumatóide (AR) podem ter manifestações
oculares – queratoconjuntivite sicca, esclerite, episclerite, queratite, ulceração da córnea
periférica e entidades menos comuns, como coroidite, vasculite retiniana, nódulos na
episclera, descolamento de retina e edema macular.
221
É importante diagnosticar e distinguir correctamente esclerite e episclerite pelas
potenciais complicações oculares e sistémicas associadas à esclerite. Doentes com
episclerite associada à AR têm doença sistémica mais greve e maior taxa de mortalidade
do que os doentes sem esclerite. O tratamento inicial da esclerite e da episclerite deve
passar pelo alívio da dor e controlo na progressão da doença. A terapêutica inicial inclui
indometacina oral ou outros anti-inflamatórios não esteróides. Doentes que não
respondam a estes fármacos podem iniciar corticóides tópicos ou medicação
imunossupressora sistémica.
A doença da córnea na AR pode ser uma complicação isolada, mas está frequentemente
associada a queratoconjuntivide sicca ou a uma forma de esclerite anterior. O espectro
da doença pode incluir queratite, queratite esclerosante e queratite ulcerativa periférica
ou para-central. A queratite aguda tem sido identificada em 30 a 70% dos doentes com
esclerite ou episclerite associada a AR – é marcada por infiltrado celular inflamatório,
que pode resultar em cicatriz da córnea, ulceração ou destruição.
Síndrome de Sjögren
A principal manifestação ocular de Síndrome de Sjögren é a queratoconjuntivite sicca.
Os sinais e sintomas são semelhantes aos da queratoconjuntivite seca associada à AR.
Além das opções terapêuticas já descritas, podem ser usados comprimidos de 5 mg de
pilocarpina (Salagen®), até quatro vezes por dia, para melhorar os sintomas de
xeroftalmia e xerostomia, embora este fármaco seja dispendioso e esteja associado a
cefaleia forte.
222
Espondilartropatias
Entre as espondilartropatias seronegativas, a uveíte na espondilite anquilosante é a
manifestação ocular mais comum. Ocorre em cerca de 25% dos doentes com espondilite
anquilosante, em até 37% dos doentes com artrite reactiva, em cerca de 20% de doentes
com artrite psoriática e em até 9% dos doentes com artrite enteropática. Os sintomas
oculares podem ser uni ou bilaterais e a dor é causada por espasmo ciliar, em resposta
a inflamação da câmara anterior. As complicações incluem glaucoma, catarata ou
cegueira.
A doença da retina ocorre primeiramente em doentes com LES activo e pode incluir
exsudados algodonosos, hemorragias retinianas, vasculite retiniana e retinopatia
proliferativa. A doença da retina tem elevada morbilidade e deve ser tratada de forma
agressiva.
Em doentes com LES sob Hidroxicloroquina deve ser feita vigilância oftalmológica anual
– ver capítulo II.4.
223
DOENÇA MANIFESTAÇÕES OCULARES
Queratoconjuntivite sicca, esclerite, episclerite, queratite
Artrite Reumatóide ulcerativa, coroidite, vasculite retiniana, nódulos na episclera,
descolamento da retina, edema macular
Artrite Juvenil Uveíte
O índice de suspeição deve ser elevado, não só para a referenciação a Oftalmologia, mas
também para saber quando pesquisar uma doença auto-imune sistémica.
Muitas vezes a terapêutica das manifestações oculares passa por terapêutica tópica e
sistémica.
Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3
• Ocular manifestations of autoimmune disease, Patel SJ, Lundy DC, 2002, American Family
Physician, 66(6): 991-998
224
3. RIM E DOENÇAS AUTO-IMUNES
Introdução
As Doenças Auto-Imunes (DAI) constituem um grupo heterogéneo de patologias, mas
partilham entre si alterações da imunorregulação, como a produção de auto- anticorpos,
levando a manifestações comuns, como a lesão renal. As alterações da função renal
podem surgir associadas a diferentes DAI, das quais abordaremos de forma genérica a
Síndrome de Sjögren (SSj), a Esclerose Sistémica (ES), as Miosites Inflamatórias
(Polimiosite (PM) e Dermatomiosite (DM)), o Lúpus Eritematoso Sistémico (LES), a
Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido (SAAF), a Artrite Reumatóide (AR) e as
Vasculites. Cada uma destas patologias pode apresentar diferentes alterações na
biópsia renal – figura 1 e tabela 1.
Figura 1: Vias imunológicas de lesão glomerular. CKD – chronic kidney disease; GBM – glomerular basement membrane;
PR3 – proteinase 3; LAMP-2 – lysosome-associated membrane protein 2; MPO – myeloperoxidase; PLA2R
– secretory phospholipase A2 receptor; α3(IV)NC1 – non-collagenous 1 (NC1) domain of the α3 chain of type IV collagen;
aHUS – atypical haemolytic uraemic syndrome. From The immune system and kidney disease: basic concepts and
clinical implications. Kurts et al, Nature Reviews Immunology 13, 738-753 (2013).
225
O pródromo pode variar de dias a meses, sem manifestações específicas de órgão. É
importante ressalvar que em doentes com outras patologias, como a diabetes mellitus
ou a hipertensão arterial, sobretudo se forem idosos, a etiologia auto-imune pode ser
facilmente relegada, pelo que a abordagem de uma lesão renal de novo deve incluir uma
elevada suspeição clínica e diagnóstico diferencial exaustivo. Analiticamente, destaca-
se sedimento urinário alterado (hematúria, proteinúria, cilindros granulosos, celulares ou
com hemoglobina), disfunção renal e imunologia positiva. A biópsia renal permite
estabelecer o diagnóstico, o prognóstico e orientar a abordagem terapêutica.
GN PROLIFERATIVA FOCAL AR
GN CRESCÊNTICA COM GE FOCAL SEGMENTAR PM
NEFROPATIA C3 SAAF
Tabela 1: Alterações histológicas na biópsia renal, de acordo com as doenças auto-imunes relacionadas. GN –
glomerulonefrite, IgA – Imunoglobulina A, GE – glomeruloesclerose, IgM – Imunoglobulina M. SSj – Síndrome de Sjögren,
AR – Artrite Reumatóide, PM – Polimiosite, DM – Dermatomiosite, LES – Lúpus Eritematoso Sistémico, SAAF
– Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido, ES – Esclerose Sistémica. Adaptado de Kronbichler A. and Mayer G., BMC
Medicine 2013; 11:95.
Síndrome de Sjögren
A Síndrome de Sjögren Primária (capítulo II.2), enquanto síndrome sistémica, pode
apresentar manifestações extra-glandulares, atingindo os pulmões, vasos sanguíneos,
pele, tracto gastrintestinal, sistema nervoso central e periférico, aparelho músculo-
esquelético e rim. A Síndrome de Sjögren secundária está associada a outras doenças
auto-imunes que também provocam lesão renal, como o LES, ES ou AR. O atingimento
renal da SSj varia de 4,2% a 67% dos doentes, variando os dados com os coortes e
respectivos critérios de inclusão utilizados.
226
A nefrite tubulointersticial (NTI), com subsequente tubulopatia, é o achado mais
frequente nas biópsias renais realizadas a doentes com SSj (Fig.2). A acidose tubular
renal distal (tipo 1) (ATR) é a manifestação clínica mais frequente, com gravidade
variável, de ligeira a potencialmente fatal. A ATR proximal (tipo 2) e as lesões
glomerulares são raras.
Figura 2: Apresentação histológica da nefrite tubulointerstiticial da Síndrome de Sjögren. Coloração Masson Tricrómio.
A) Células mononucleares no interstício, com atrofia tubular e fibrose intersticial. B: Infiltrado de linfócitos e plasmócitos
(seta). From Renal Involvement in Primary Sjögren Syndrome. François H et Mariette X. Nature Reviews Nephrology 12,
82-93 (2016).
A CRE surge em doentes normotensos em cerca de 10% dos casos: nestas situações
está particularmente associada a corticoterapia prolongada ou anemia hemolítica
microangiopática, havendo maior risco de mortalidade e necessidade de iniciar técnica
227
de substituição renal mais precocemente. Nos doentes hipertensos (tensão arterial >
150/100 mm Hg), cerca de 90% das situações de atingimento renal, a CRE é
acompanhada de sintomas de hipertensão maligna, insuficiência ventricular esquerda,
encefalopatia hipertensiva e arritmia.
Figura 3: Fisiopatologia da crise renal esclerodérmica. From Scleroderma Renal Crisis and Renal Involvement in
Systemic Sclerosis. Woodworth T et al. Nature Reviews Nephrology 12, 678-691 (2016).
Figura 4: Lesão histológica na crise renal esclerodérmica. From Scleroderma Renal Crisis and Renal Involvement in
Systemic Sclerosis. Woodworth T et al. Nature Reviews Nephrology 12, 678-691 (2016).
228
50% dos doentes, sobretudo para controlo da sobrecarga hídrica, embora nalguns casos
possa ser posteriormente interrompida. Nas situações graves, o transplante renal pode
ser necessário, com uma taxa de sobrevida de 56,7% a 5 anos. Nestes doentes
transplantados, a ciclosporina A deverá ser evitada, dado estar relaciona a lesão renal
aguda em doentes com ES.
Dermatomiosite e Polimiosite
As miopatias inflamatórias (capítulo II.7), dermatomiosite e polimiosite, apresentam
manifestações clínicas semelhantes, como a fadiga muscular das cadeias proximais,
miosite, presença de anticorpos, elevação das enzimas musculares, alterações
electromiográficas e manifestações extra musculares. O atingimento renal é raro e
ocorre por diferentes mecanismos.
A nefrite lúpica está definida pela American College of Rheumatology (ACR) como
proteinúria persistente > 0,5 g/24 horas ou >3+ na fita reagente, e/ou presença de
cilindros com eritrócitos, hemoglobinúricos, granulares, tubulares ou mistos.
229
activa da doença – por consumo, na formação dos imunocomplexos (Fig. 5). Os
anticorpos anti-C1q têm sido detectados nos doentes com nefrite lúpica activa e
apresentam uma forte correlação com os níveis de proteinúria, podendo vir a ser um
biomarcador de actividade de doença renal.
Figura 5: Fisiopatologia da nefrite lúpica – formação de imunocomplexos com activação do complemento e indução de
mediadores inflamatórios, o que resulta em quimiotaxia e activação de células inflamatórias no rim; por sua vez, libertam-
se mais sinais e mediadores pró-inflamatórios, provocando lesão celular e estrutural dos elementos no parênquima renal.
From Lúpus nephritis: lessons from murine models. Nat. Rev. Rheumatol. 6, 13–20 (2010).
230
Figura 6: A: Nefrite lúpica classe III: em MO, glomérulos com hipercelularidade, necrose capilar e tecido cicatricial
aderente à cápsula de Bowman juntamente com área mesangial sem alterações; B: Nefrite lúpica classe III: IF, depósitos
imunes granulares na membrana basal; C: Nefrite lúpica classe IV: MO, glomérulos com hipercelularidade endocapilar
com perda de capilares; D: Nefrite lúpica classe IV: IF, depósitos granulares alongados ao longo da membrana basal,
subendoteliais. MO: microscopia óptica; IF: imunofluorescência. From Journal of Autoimmunity 74, June 2016.
231
Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolípido
O Síndrome do Anticorpo Anti-fosfolipído (SAAF) (capítulo II.6) define-se por trombose
vascular ou morbilidade obstétrica associada a anticorpos (anticorpo anti-cardiolipina,
anticoagulante lúpico (ACL), anticorpo anti-beta2-glicoproteína1) positivos por um
período superior a 12 semanas. Pode classificar-se como primário ou secundário,
consoante esteja ou não associado a outra doença auto-imune.
Figura 7: Diferentes formas de apresentação clínica da lesão renal no Síndrome Anticorpo Anti-fosfolípido. aPL,
antiphospholipid antibody; APS, antiphospholipid syndrome; APSN, APS-associated nephropathy; CAPS, catastrophic
APS. From Sciascia, S. et al. Nat. Rev. Nephrol. 10, 279–289 (2014)
Artrite Reumatóide
A artrite reumatóide (AR), (capítulo II.1) enquanto doença sistémica, para além da
membrana sinovial, atinge também outros órgãos, como o rim. As lesões renais
associadas à AR são variadas e incluem glomerulonefrite mesangial, amiloidose,
nefropatia membranosa, glomerulonefrite proliferativa focal, nefropatia de lesão
232
mínima e nefrite intersticial aguda (tabela 1). O desenvolvimento de nefropatia
membranosa raramente é concomitante com as manifestações de AR, excepto se
iatrogénica, ou seja, secundária à terapêutica com DMARDs (penicilamina, bucilamina
ou sais derivados do ouro) ou anti-TNF alfa (etanercept e adalimumab). A amiloidose
secundária, decorrente da elevação das proteínas de amilóide sérico A circulantes,
enquanto marcadores inflamatórios sistémicos, tem uma prevalência de 5,8% e está
associada a pior prognóstico. A glomerulonefrite mesangial está provavelmente
associada à própria AR, uma vez que está directamente relacionada com elevados
níveis de factor reumatóide.
Vasculites
O atingimento renal é frequente nas vasculites associadas ao anticorpo anti- citoplasma
do neutrófilo (ANCA) (capítulo II.8), atingindo entre 25% e 75% dos doentes com
manifestações sistémicas. Destes, cerca de 35% evoluem para insuficiência renal
crónica terminal, com necessidade de técnica de substituição renal. Nas restantes
vasculites auto-imunes, a prevalência do atingimento renal é difícil de estimar e as
lesões são bastante heterogéneas. O atingimento renal provocado por vasculites
fármaco-induzidas, associadas a infecções, neoplasias ou embolização de colesterol ou
mixoma auricular não são do âmbito deste manual, pelo que não serão abordadas.
O tratamento deve ser dirigido ao tipo de vasculite, à extensão da lesão renal e adaptado
às condições do doente. Habitualmente são usados agentes imunossupressores, como
os corticóides ou a ciclofosfamida, ou agentes biotecnológicos, como o rituximab, mas
a abordagem terapêutica pode também passar por plasmaferese, hemodiálise e mesmo
transplante renal. Será ainda relevante realçar que nestes doentes há um aumento da
morbilidade cardiovascular, pelo que é necessário um controlo apertado da tensão
arterial e outros factores de risco cardiovascular.
233
Conclusão
O atingimento renal pelas doenças auto-imunes é heterogéneo, podendo variar de
ligeiro a catastrófico; desde tratável apenas com fármacos que controlam a tensão
arterial, a justificar transplante renal. O conhecimento do mecanismo fisiopatológico
subjacente a cada uma das patologias abordadas permite manter uma vigilância
adequada nos doentes com patologia auto-imune, intervindo atempadamente e evitando
a progressão da lesão renal. Nalgumas situações, a doença renal pode ser a primeira
manifestação de doença, pelo que é importante manter um nível de suspeição clínica
elevada e realizar um diagnóstico diferencial rigoroso, recorrendo aos meios
complementares de diagnóstico necessários.
ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
Bibliografia
• Bernardino V, et al. IgA Vasculitis (formerly Henoch-Schönlein purpura) in an adult with systemic
lúpus erythematosus. BMJ Case Reports, 2015. doi:10.1136/bcr-2015-210121
• Bertsias JK, et al. Joint European League Against Rheumatism and European Renal Association-
European Dialysis and Transplant Association (EULAR/ERA-EDTA) recommendations for the
management of adult and paediatric lúpus nephritis. Ann Rheum Dis 2012; 0: 1-12.
• Booth AD, Pusey CD and Jayne DR. Renal vasculitis – an update in 2004. Nephrol Dial Transplant,
2004; 19: 1964-1968.
• François H et Mariette X. Renal Involvement in Primary Sjögren Syndrome. Nature Reviews
Nephrology 12, 82-93 (2016).
• Groot K. Renal disease in small-vessel vasculitis. Cleveland Journal of Medicine 79;3:S22-S26.
• Hahn BH, et al. American College of Rheumatology Guidelines for Screening, Treatment, and
Management of Lúpus Nephritis. Arthritis Care and Research, 2012; 64, 6: 797-808.
• Krohnbichler A and Mayer G. Renal involvement in autoimmune connective tissue diseases. BMC
Medicine, 2013; 11:95.
234
• Rowaiye OO, Kusztal M and Klinger M. The kidneys and ANCA-associated vasculitis: from
pathogenesis to diagnosis. Clin Kidney J, 2015; 8: 343-350.
• Sciascia S, et al. Renal involvement in antiphospholipid syndrome. Nature Reviews Nephrology
2014; 10: 279-289.
• Woodworth et al. Scleroderma renal crisis and renal involvement in systemic sclerosis. Nat. Rev.
235
4. PELE E DOENÇAS AUTO-IMUNES
Introdução
As lesões cutâneas podem apresentar-se como primeira manifestação de doenças auto-
imunes (DAI) sistémicas. O espectro de lesões é variado, sendo o seu reconhecimento
e diagnóstico complexos. O diagnóstico pode ser estabelecido muitas vezes apenas
com elementos clínicos, pelo que a familiaridade com a sua forma de apresentação e
colaboração com colegas de Dermatologia é fundamental. As formas de expressão
cutânea das DAI é extensa, pelo que apenas abordaremos aspectos essenciais de
algumas doenças: Lúpus Eritematoso, Esclerodermia, Vasculites e Artrite Reumatóide.
Lúpus Eritematoso
O Lúpus Eritematoso (LE) é uma doença sistémica (capítulo II.4), com envolvimento
cutâneo em cerca de 80% dos doentes, sendo por vezes esta a primeira manifestação
da doença. A relevância da sua expressão dermatológica está bem patente nos critérios
de diagnóstico para o LE estabelecidos pela Systemic Lúpus International Collaborating
Clinics (SLICC), em que 4 dos 11 critérios não imunológicos são muco- cutâneos: LE
agudo ou sub-agudo, LE crónico, úlceras orais ou alopécia não cicatricial.
Figura 1: Natureza e profundidade do infiltrado inflamatório nas lesões específicas de Lúpus. ACLE: Acute Cutaneous
Lúpus Erythematosus, SCLE: Subacute Cutaneous Lúpus Erythematosus, DLE: Discoid Lúpus Erythematosus, TLE:
Tumid Lúpus Erythematosus, LEP: Lúpus Erythematosus Profundus. From Bolognia, Jorizzo and Rapini: Dermatology,
Elsevier, 2003.
236
Figura 2: Esquema de distribuição e características das lesões cutâneas no Lúpus.
237
LESÕES HISTOPATOLOGICAMENTE INESPECÍFICAS DO LÚPUS ERITEMATOSO (LE)
Vasculite
• Vasculite leucocitoclástica
• Vasculite urticariforme
• Periarterite nodosa-like
Vasculopatia
• Doença de Degos-like
• Atrophie blanche
Telangiectasias peri-ungueais
Livedo reticularis
Tromboflebite
Fenómeno de Raynaud
Eritromelalgia
Alopécia (não cicatricial)
• Lúpus hair
• Eflúvio telógénico
Alopécia areata
Esclerodactilia
Nódulos reumatóides
Calcinose cutânea
Lesões bolhosas inespecíficas
• Epidermólise bolhosa adquirida
• Dermatite herpetiforme-like
• Pênfigo eritematoso
• Penfigóide bolhoso
• Porfíria Cutânea Tarda
Urticária
Mucinose
Anetodermia / cútis laxa
Acantose nigricans
Eritema multiforme
Úlceras de Pernas
Líquen Plano
Tabela 2: Classificação do Lúpus Eritematoso associado a lesões cutâneas (II). Adaptado de An Bras Dermatol.
2005;80(2):119-31.
238
actividade imunológica no contexto de LES, correlacionando-se com a actividade da
doença sistémica.
Figura 3: Lesões de Lúpus Eritematoso Cutâneo Agudo em áreas foto-expostas: face (A) e V do pescoço (B).
Figura 4: Lesões de Lúpus Eritematoso Cutâneo Agudo: mãos (A, B) e eritema malar, poupando tipicamente as regiões
peri-orbitárias e sulcos nasogenianos (C).
239
população negra e latina, com uma prevalência mais elevada em mulheres. O LECS
pode surgir em contexto iatrogénico, secundário a fármacos, como a hidroclorotiazida,
anti-inflamatórios não esteróides, estatinas, diltiazem, terbinafina ou griseofulvina; estas
lesões podem resolver ou persistir após a suspensão do fármaco.
Figura 5: Lúpus Eritematoso Cutâneo Subagudo: A – padrão pápuloescamoso limitado a áreas foto-expostas no tronco;
B – padrão anular-policíclico, com placas anulares com bordo eritematoso e descamativo, área central hipopigmentada,
com lesões confinadas ao dorso e mãos; C – padrão anular-policíclico com alguns meses de evolução.
240
Figura 6: Lúpus Cutâneo Crónico Discóide: A – lesão precoce no rosto; B – lesão descamativa com escama queratinosa
que infiltra os folículos pilosos; C – lesões ao nível do pescoço e mento.
Figura 7: Lúpus Cutâneo Crónico Discóide: A – lesões discóides ao nível do braço, evidenciado bordos papulares e
descamativos, com halo central hipopigmentado; B – lesões sequelares com atrofia e hipopigmentação; C – lesões
sequelares no couro cabeludo, com atrofia (folículos pilosos fibrosados).
Figura 8: Lúpus Cutâneo Crónico Hipertrófico: A – lesões em áreas foto-expostas da face, simétricas; B – lesões
disseminadas, descamativas, com nódulos e placas hiperqueratósicos descamativos.
A paniculite lúpica pode caracterizar-se na fase aguda por uma ou mais lesões
inflamatórias e dolorosas, subcutâneas, em placa ou nodulares; lesões estabelecidas
nas quais não exista mais inflamação. A atrofia do tecido celular subcutâneo é a regra,
241
observando-se lipoatrofia secundária e com desfiguração da normal anatomia (Fig. 9).
A paniculite lúpica pode durar de meses a anos, sendo mais prevalente no sexo
feminino. As localizações mais frequentes são os braços, ombros, mama (mulher), coxa
e região malar. Em cerca de 35-50% dos casos, a doença evolui para LES; cerca de
70% dos doentes apresenta também lesões de LEDC sobre as placas/nódulos de
paniculite lúpica. O diagnóstico diferencial inclui outras paniculites, morfeia, linfoma
cutâneo paniculite-like e infecções.
Figura 10: Lúpus Cutâneo Crónico Túmido: A – lesão no dorso, B – lesão no V do pescoço.
Esclerodermia
O termo Esclerodermia designa doença sistémica com esclerose da pele, tecido celular
subcutâneo, vasos e órgãos como o pulmão, o coração ou o esófago (capítulo
242
II.5) (Fig.11). É uma doença rara, que atinge sobretudo mulheres entre os 30 e os 50
anos.
243
Figura 12: Esclerose Sistémica Difusa: A – esclerose cutânea a nível das mãos e microstomia, com boca pregueada; B
– atrofia cutânea, com pitting scars e reabsorção de parte da falange distal em D3; C – atrofia cutânea, com
telangiectasias palmares, ulceração e pitting scars nas polpas digitais e reabsorção das extremidades distais de D2 e
D3.
Figura 13: Esclerose Sistémica Difusa (II): Microstomia, com boca pregueada e telangiectasias peri-orais; B – extensa
atrofia cutânea, com retracção muscular e anquilose de algumas articulações do carpo e mãos.
244
Figura 14: Esclerose Sistémica Localizada. A – Dismotilidade Esofágica (Andrew Taylor, MD, Professor, Abdominal
Imaging, Department of Radiology, University of Wisconsin Medical School, Madison); B – Telangiectasias faciais; C –
Calcinose ao nível das mãos, com flexão por deformação de D4 e D5 e úlceras digitais nos pontos de calcinose (Ashima
Makol, M.D., and Steven R. Ytterberg, M.D. N Engl J Med 2011; 364:2245); D – Extensa calcinose cútis no doente referido
em C, visível no radiograma das mãos (idem).
A morfeia é uma forma de esclerodermia que atinge apenas a pele, de forma simétrica
ou assimétrica, habitualmente localizada apenas numa área do tegumento cutâneo. Não
se associa ao fenómeno de Raynaud e a esclerodactilia não é uma forma frequente de
apresentação clínica. Ocorre habitualmente em adultos, excepto a forma linear, típica
da idade pediátrica. Apesar de poder apresentar positividade para os anticorpos ANA,
não está relacionada com a esclerose sistémica. Pode apresentar-se de varias formas:
Figura 16: Diferentes tipos de Morfeia: A – Morfeia generalizada, B – Morfeia Linear; C – Morfeia en coup de sabre.
245
A associação entre morfeia e a infecção por Borrelia burgdorferi, descrita classicamente
nos países do norte e centro da Europa, é polémica e a terapêutica de longa duração
com antibioterapia sistémica é controversa. O diagnóstico desta dermatose deve ser
suportado histologicamente e fornecido tratamento imediato, de forma a minimizar as
sequelas. A terapêutica passa pela utilização de corticosteróides tópicos, inibidores da
calcineurina tópicos, corticóides sistémicos, metotrexato, fototerapia, cuidados de penso
nas lesões ulceradas, entre outros.
Dermatomiosite
A dermatomiosite (DM) (capítulo II.7) é uma doença sistémica, rara, que atinge
tipicamente a pele e os músculos, sendo mais frequente em mulheres. Tem uma
incidência tipicamente bimodal: em idade pediátrica, a DM juvenil (10 – 15 anos) e no
adulto (45-57 anos).
Do ponto de vista clínico, caracteriza-se por miopatia proximal e simétrica dos músculos
extensores; o atingimento cutâneo é frequente e pode preceder o envolvimento
muscular em cerca de 50% dos casos. O envolvimento sistémico inclui pneumonite
intersticial / lesão alveolar difusa, envolvimento esofágico, artralgia / artrite não erosiva
e vasculite, entre outros.
Figura 18: A e B – Pápulas de Gottron com diferentes formas de apresentação; C – Eritema peri-ungueal e
telangiectasias.
246
Figura 19: A – Eritema violáceo descamativo, simétrico e localizado; B – Eritema violáceo descamativo, difuso,
fotossensível (atinge a prega cutânea ao nível das articulações interfalângicas, ao contrário do Lúpus Eritematoso); C –
Poiquiloderma no adulto, em xaile (American College of Rheumatology, 2009); D – Poiquiloderma na DM Juvenil.
Vasculites
As manifestações cutâneas são frequentemente observadas em quase todo o tipo de
vasculites (capítulo II.8). Na pele, do ponto de vista fisiopatológico, as vasculites podem
envolver os vasos de pequeno calibre (fundamentalmente localizados na derme) ou
médio calibre (transição derme-tecido celular subcutâneo e tecido celular subcutâneo
propriamente dito). A natureza dos vasos envolvidos ditará a correspondente
apresentação clínica.
247
As vasculites cutâneas apresentam um espectro clínico muito variado, incluindo várias
entidades, algumas estritamente cutâneas, outras fazendo parte de vasculites
sistémicas com expressão cutânea. Dado o objectivo deste manual versar sobre as
doenças sistémicas, não iremos aprofundar as vasculites estritamente cutâneas.
Do ponto de vista clínico, a púrpura palpável é o achado mais típico quando nos
referimos a vasculite cutânea de pequenos vasos: pápulas purpúricas, palpáveis,
habitualmente com início nos membros inferiores (áreas de pressão) que podem
coalescer em placas e inclusivamente necrosar e ulcerar. Nódulos subcutâneos
palpáveis e por vezes paniculite são lesões típicas de vasculite de médios vasos; estas
lesões frequentemente originam necrose cutânea com ulceração. Livedo reticular ou
racemosa é um achado frequente em várias vasculites com envolvimento cutâneo, mas
também em vasculopatias sem vasculite.
Vasculite IgA
248
As lesões cutâneas habitualmente progridem com carácter aditivo no tegumento,
habitualmente em sentido caudal-cefálico.
Figura 20: Vasculite Ig A. A – lesões purpúricas em reabsorção com áreas de coalescência peri-maleolares, com
aparecimento de bolhas e úlceras necrosadas; B – pormenor de lesões purpúricas em diferentes fases de evolução.
Cortesia Unidade de Doenças Auto-Imunes do Hospital Curry Cabral.
Vasculite Crioglobulinémica
249
Poliarterite nodosa (PAN)
As lesões cutâneas são habituais nos doentes com PAN (embora a sua frequência se
reduza acima dos 65 anos). Os nódulos cutâneos ou subcutâneos, dolorosos, são as
lesões cutâneas mais características da PAN, localizando-se sobretudo nos membros
inferiores (Fig.21-B, C). O livedo reticular ou livedo racemosa pode preceder ou
acompanhar o seu aparecimento. Em situações mais graves, os nódulos podem ulcerar
ou coalescer, originando úlceras por vezes extensas e recalcitrantes. Observam-se por
vezes púrpura palpável, fenómeno de Raynaud, isquémia digital, hemorragias
perigungueais, entre outras manifestações.
Figura 22: A – Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte (From DermNet New Zeland); B – Granulomatose Eosinofílica
com Poliangeíte no cotovelo (From http://emedicine.medscape.com/article/1083013-clinical#b4); C – Granulomatose com
Poliangeíte (From http://emedicine.medscape.com/article/1085290-overview#a1)
250
Granulomatose com Poliangeíte (GP)
Doença de Behçet
A doença de Behçet é uma vasculite que afectas artérias e veias de calibre variável
(capítulo II.8.3). O envolvimento muco-cutâneo está presente na grande maioria dos
doentes: as úlceras orais são a primeira manifestação em 25-75% dos casos, têm 1-3
cm de diâmetro, são dolorosas, de profundidade variável e têm uma base fibrinóide
amarelada rodeada de eritema, podendo surgir várias úlceras em simultâneo. As úlceras
orais da doença de Behçet habitualmente remitem espontaneamente, mas apenas ao
fim de algumas semanas. As úlceras genitais estão presentes em 60-80% dos casos,
com menor taxa de recidiva e mais específicas mais esta entidade. Nas mulheres
surgem habitualmente nos grandes lábios; nos homens no escroto. Também estão
descritas úlceras oculares e perineais. O exame histopatológico destas lesões não é
específico para o diagnóstico.
A arterite de Takayasu é uma arterite rara e crónica de origem desconhecida, que afecta
sobretudo a aorta, os seus ramos principais e as artérias pulmonares. As manifestações
surgem em 2,8 – 28% dos doentes, podendo estar relacionadas directamente com a
oclusão de grandes vasos, como fenómeno de Raynaud unilateral, gangrena digital ou
hipocratismo digital unilateral.
251
Normalmente surgem como consequência da isquémia provocada pela oclusão de
artérias cranianas. A apresentação dermatológica clássica assenta em úlceras com
necrose do couro cabeludo e língua.
Artrite Reumatóide
As manifestações extra-articulares da artrite reumatóide surgem nas formas mais
duradouras e agressivas da doença (capítulo II.1). As dermatoses que podem ocorrer
no contexto de artrite reumatóide são muitas e variáveis, compreendo várias entidades.
Alguns exemplos são os nódulos reumatóides, vasculite reumatóide, dermatoses
neutrofílicas, entre outras.
Vasculite Reumatóide
A vasculite reumatóide atinge 1-5% dos doentes com artrite reumatóide, normalmente
com longa evolução da doença. As manifestações cutâneas são variadas e incluem
petéquias digitais, púrpura palpável e úlceras (lesões de Bywater) que podem invadir os
tecidos profundos e provocar gangrena periférica. Está normalmente associada a pior
prognóstico.
Conclusão
As manifestações cutâneas podem anteceder em meses a anos outras manifestações
de doenças auto-imunes sistémicas. Saber reconhecer determinadas lesões pode
significar um diagnóstico precoce e antecipado, permitindo antever e evitar
complicações da evolução natural da doença. O diagnóstico diferencial impõe o despiste
de infecções, neoplasias, reacções a fármacos, dermites de contacto, fotodermatoses,
entre outras. O diagnóstico é muitas vezes clínico e a correlação clínico-patológica é
essencial nos casos complexos. A colaboração e abordagem
252
multidisciplinar facilita o diagnóstico atempado e permite um melhor seguimento do
doente.
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
Manchas ou placas eritematosas em áreas fotossensíveis associadas a artralgias, fenómeno
de Raynaud, úlceras orais ou alterações hematológicas – pensar em Lúpus eritematoso.
Espessamento cutâneo e fenómeno de Raynaud – pensar em Esclerose sistémica.
Pápulas de Gottron, heliotropo, fotossensibilidade – pensar em Dermatomiosite.
Púrpura palpável, nódulos subcutâneos ou úlceras na ausência de doença venosa/arterial
em doentes jovens sem doença conhecida – pensar em vasculites.
Nódulos duros em superfícies de tracção podem anteceder manifestações articulares na
artrite reumatóide.
A colaboração com colegas de Dermatologia é essencial.
Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3
• Habifetal, ClinicalDermatology, 5th Edition, 2009, Expert Consult
• Wolff et al, Fitzpatrick’s Color Atlas of Clinical Dermatology, 5thEdition, 2005, McGraw-Hill
• Guerra Rodrigo et al, DermatologiaFicheiroClínicoe Terapêutico, 2010,
FundaçãoCalousteGulbenkian.
• Bolognia, Dermatology, 2nd edition, 2007, Elsevier
• www.emedicine.com/Dermatology
Nota: as imagens não creditadas nas legendas foram retiradas do livro “Fitzpatrick’s Color Atlas of Clinical
Dermatology”, indicado na referência acima. Parte das referências foram integradas nas legendas, pelo que
não foram repetidas na Bibliografia final.
253
5. ALTERAÇÕES HEMATOLÓGICAS NAS DOENÇAS
AUTO- IMUNES
Introdução
São múltiplas as manifestações das doenças auto-imunes que têm como alvo primário
os tecidos conectivos, tendo muitas vezes atingimento multi-orgânico. Há,
invariavelmente, uma interacção complexa entre factores predisponentes genéticos e
factores desencadeantes ambientais, levando à desregulação das vias de regulação
imune e a inflamação persistente. Neste contexto, há múltiplas reacções celulares e
moleculares que podem envolver os tecidos hematopoiéticos e as células sanguíneas
periféricas, fazendo com que as alterações hematológicas nas doenças auto-imunes
sejam achados frequentes.
Anemia
A anemia, definida como estado decorrente de níveis reduzidos de hematócrito e/ou
hemoglobina (Hb), inclui diversas variantes que podem ter patogénese auto-imune ou
não auto-imune. Atendendo à persistente activação imune das doenças auto-imunes,
não é surpreendente que a variante mais frequentemente observada seja a anemia de
doença crónica, onde as citoquinas têm um papel importante. Muitas vezes há
concomitância de outro tipo de anemia.
NÃO AUTO-IMUNE
Anemia de doença crónica
Anemia ferropénica
Anemia sideroblástica
Hipoplasia eritróide da medula
Toxicidade de fármacos
AUTO-IMUNE
Anemia hemolítica auto-imune
Aplasia pura de células eritróides
Anemia aplástica
Anemia perniciosa
Deseritropoiese auto-imune
Anemia hemolítica induzida por fármacos
Tabela 1: Patogénese da anemia em doenças auto-imunes
254
transferrina normais ou diminuídos, saturação de transferrina diminuída, ferritina normal
ou aumentada, reticulócitos normais ou diminuídos, reservas de ferro do sistema
reticuloendotelial normais ou aumentadas, na presença de medula óssea normal com
normal ratio entre série eritróide e mielóide.
255
sobreposição frequente. Estes dois tipos de anemia são as variantes mais frequentes
na AR; enquanto a anemia perniciosa, a aplasia pura de células eritróides, a anemia
hemolítica ou a anemia sideroblástica são raras. A anemia aplástica tem sido reportada
como efeito secundário de fármacos.
Na Síndrome de Sjögren a anemia foi detectada em 20% dos doentes, sendo que
anemia grave (<9g/dL) em apenas 4%. A anemia de doença crónica constitui o achado
mais comum, enquanto que a anemia hemolítica, a anemia aplástica, a anemia
perniciosa e a aplasia eritróide raramente ocorrem.
Leucopénia
Nas doenças do tecido conjuntivo, a leucopénia, definida como uma contagem de
leucócitos <4000/mm3, pode estar relacionada com mecanismos imuno-mediados ou
não imuno-mediados.
256
DESTRUIÇÃO PERIFÉRICA DE LEUCÓCITOS MEDIADA POR ANTICORPOS
Auto-anticorpos anti-granulócitos, anti-linfócitos e anti-monócitos
SEQUESTRO PERIFÉRICO
Hiperesplenismo
Aumento da marginação
APOPTOSE DESREGULADA
Neutropénia
A neutropénia, definida como contagem de neutrófilos <1500/mm3, ao coexistir com
esplenomegália e Artrite Reumatóide (AR), compõe a Síndrome de Felty (SF), uma
variante rara da AR (<1%) com manifestações extra-articulares peculiares e base
genética (90% dos doentes com SF têm antigénio leucocitário DR4). A neutropénia
parece ser mediada imunologicamente, com o envolvimento de diferentes mecanismos
celulares e humorais, levando a uma interligação complexa de defeitos na produção,
distribuição, destruição e apoptose. A neutropénia na SF é geralmente crónica,
frequentemente grave e associada a morbilidade por infecções recorrentes. De facto, as
infecções bacterianas são a principal causa de aumento de mortalidade nestes doentes.
257
Nos doentes com Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) a neutropénia é uma
manifestação hematológica frequente, com uma prevalência de 20 a 47%, sendo raras
a neutropénia grave ou agranulocitose (contagem absoluta <500/mm3). A neutropénia
no LES é provavelmente imuno-mediada, uma vez que têm sido detectados auto-
anticorpos anti-neutrófilo; no entanto, não se encontrou uma clara correlação com a
neutropénia, cujo desenvolvimento provavelmente requer mecanismos mais complexos.
Linfopénia
Nos doentes com Artrite Reumatóide, a linfopénia (contagem de linfócitos <1500/mm3)
tem sido observada entre 15 a 30%.
Numa grande série de doentes com Síndrome de Sjögren, a linfopénia foi encontrada
em 9% dos doentes. Estes doentes mostraram uma maior frequência de envolvimento
renal e anticorpos anti-La/SS-B.
Linfopénia T CD4+
A linfopénia T CD4+, sobretudo devido a diminuição da subpopulação CD4+/CD45RA+,
tem sido reportada em cerca de 5% dos doentes com Síndrome de Sjögren (SS). A
desregulação da apoptose está provavelmente envolvida na sua patogénese,
258
enquanto que o papel dos anticorpos contra células T CD4+ é incerto. As contagens
absolutas de linfócitos T CD4+ têm sido significativamente inferiores em doentes com
SS com positividade para anti-Ro/SS-A.
A linfopénia T CD4+ também tem sido reportada em doentes com Síndrome Anticorpo
Antifosfolipídico.
Trombocitopénia
Nas doenças de tecido conjuntivo a trombocitopénia, contagem de plaquetas
<100.000/mm3, pode ser imuno-mediada ou não imuno-mediada.
NÃO AUTO-IMUNE
Trombopoiese ineficaz ou alterada
Níveis de trombopoietina circulantes efectivos baixos
Diluição periférica de plaquetas, sequestro ou consumo
AUTO-IMUNE
Auto-imunidade específica humoral e mediada por células
Anticorpos anti-trombopoietina
Anticorpos anti-fosfolipídico
Tabela 4: Patogénese da trombocitopénia em doenças do tecido conjuntivo autoimunes 2
Nos doentes com Artrite Reumatóide a trombocitopénia foi sobretudo reportada como
um efeito induzido por fármacos e pouco frequentemente relatado como sendo
associada à doença. Por outro lado, a trombocitopénia é uma característica
hematológica na instalação da Síndrome de Felty.
259
Nos doentes com Síndrome de Sjögren há uma prevalência de 11% de trombocitopénia.
Os doentes com trombocitopénia apresentaram uma mais elevada prevalência de
envolvimento renal e anticorpos anti-La/SS-B.
Bicitopénia/Pancitopénia
Os doentes com doença auto-imune do tecido conjuntivo podem apresentar anomalias
hematológicas que afectem mais do que uma linhagem celular, como consequência de
mecanismos patogénicos imunes ou não imunes, incluindo auto-imunidade subjacente,
apoptose desregulada, hemofagocitose, toxicidade de fármacos, fibrose medular,
síndromes mielodisplásicos ou necrose da medula óssea.
Síndrome de Evans
A bicitopénia auto-imune, ao acompanhar a ocorrência sequencial ou simultânea de
anemia hemolítica e trombocitopénia, define a Síndrome de Evans, uma condição
hematológica relativamente rara que tem sido descrita como primária ou em associação
com doenças linfoproliferativas e doenças auto-imunes do tecido conjuntivo, como
Lúpus Eritematoso Sistémico, Síndrome Anticorpo Anti-fosfolipídico e Dermatomiosite.
260
ADAMST-13), presença de imunocomplexos ou autoanticorpos, como anticorpos anti-
fosfolipídicos, podem estar envolvidos no desenvolvimento de PTT.
A PTT tem sido descrita nos doentes com Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) com maior
prevalência que na população geral. A apresentação clínica da PTT pode ocorrer antes
da apresentação do LES (73%), simultaneamente (12%) ou subsequentemente (15%).
A PTT tem ainda sido documentada nos doentes com Síndrome Anticorpo
Antifosfolipídico, frequentemente como manifestação inicial da doença.
Hemofagocitose
Nas doenças do tecido conjuntivo, a bicitopénia/pancitopénia pode estar relacionada
com hemofagocitose.
Leucocitose
Na ausência de infecção, de recorrência de doença ou corticoterapia, os doentes com
doenças auto-imunes raramente mostram elevação de contagem leucocitária. Numa
revisão de 180 doentes com esclerose sistémica, foi encontrada leucocitose em 14% e
correlacionada com miopatia activa e/ou envolvimento visceral avançado.
Linfocitose
A linfocitose (contagem de linfócitos >3000/mm3) é uma manifestação rara de Lúpus
Eritematoso Sistémico e Síndrome de Sjögren primário (SSp) (1%).
261
A linfocitose granular é uma condição pouco frequente, ocasionalmente observada na
SSp, tendo sido reportada com uma frequência de 19% na Síndrome de Felty (SF). Este
grupo de doentes com SF apresenta um elevado número de linfócitos granulares
periféricos e na medula óssea, cuja expansão pode ser reactiva ou tornar-se clonal,
dando origem a leucemia de grandes linfócitos granulares. Por este motivo, tem sido
sugerido que a SF e a leucemia de grandes linfócitos granulares possam representar
diferentes aspectos clínicos no mesmo espectro de doença.
Monocitose
A percentagem de monócitos em circulação em doentes com Lúpus Eritematoso
Sistémico é geralmente maior que nos doentes-controlo, mas uma monocitose absoluta
(monócitos >800/mm3) é pouco frequente; na instalação da Artrite Reumatóide, foi
reportada monocitose em doentes com sinovite.
Eosinofilia
A eosinofilia (eosinófilos >500/mm3) é frequentemente associada a infecções por
parasitas, atopia ou reacções alérgicas, e pode ocorrer em doenças auto-imunes,
incluindo a poliangeíte granulomatosa eosinofílica, miopatias eosinofílias ou fasceíte
eosinofília, bem como doenças auto-imunes do tecido conjuntivo.
A eosinofilia é pouco frequente no LES, tendo sido encontrado em 12% de doentes com
sindrome de Sjögren primária – doentes com eosinofilia tinham uma menor prevalência
de vasculite cutânea e biopsia de glândula salivar positiva.
Trombocitose
A trombocitose (contagem de plaquetas >400000/mm3) pode representar a expressão
de doença mieloproliferativa ou um processo reactivo na instalação de infecção,
neoplasia, hemorragia aguda, lesão tecidular por cirurgia, reacções a fármacos ou
doenças inflamatórias crónicas, como as doenças auto-imunes do tecido conjuntivo.
Numa série de 465 doentes com LES, a trombocitose foi reportada com uma prevalência
de 3,65%. Para além de constituir uma expressão de doença activa, o súbito
aparecimento e persistência de trombocitose ou mesmo a aparente reversão de
262
trombocitopénia em doentes com LES foi sugerida como sendo indicativa de auto-
esplenectomia, particularmente na presença de anticorpos anti-fosfolipicos e/ou SAAF.
Nos doentes com esclerose sistémica, a trombocitose foi reportada como um parâmetro
de actividade da doença.
Neoplasias Hematológicas
Em estudos de coortes tem sido evidenciado que as doenças auto-imunes estão
associadas com maior risco a neoplasias hematológicas, provavelmente devido a
estimulação crónica do sistema imune e/ou factores genéticos e ambientais. Além disso,
a terapêutica farmacológica destas patologias pode contribuir para aumentar o risco
oncogénico, ora por mutagénese directa ou por interferência com a vigilância imune e/ou
proliferação de células imunocompetentes.
Uma meta-análise recente dos estudos de coorte disponíveis avaliando a relação entre
o desenvolvimento de linfoma não-Hodgkin (LNH) e as doenças auto-imunes mostrou
que o LNH é mais comum nestes doentes do que na população em geral, com um risco
aumentado para os doentes com Síndrome de Sjögren primário, moderado para Lúpus
Eritematoso Sistémico e baixo para Artrite Reumatóide. Na maior parte dos casos, o
desenvolvimento de doença auto-imune pareceu preceder a instalação do linfoma.
Os doentes com Lúpus Eritematoso Sistémico que desenvolvem LNH geralmente têm
uma doença agressiva; no entanto, a existência de nefropatia ou o uso de terapêutica
imunossupressora não parece conferir aumento do risco. O risco aumentado de doença
linfoproliferativa é observado mesmo precocemente no curso da doença (e, portanto,
provavelmente não relacionado com a terapêutica cumulativa), sugerindo que a
exposição a fármacos não é a principal causa do aparecimento de linfomas.
263
Os doentes com SS têm um risco 28 vezes superior à população em geral de
desenvolver linfoma da zona marginal. Nestes doentes, os sinais clínicos e biológicos
preditores e desenvolvimento de LNH parecem ser a esplenomegália, linfadenopatias,
vasculite cutânea, neuropatia periférica, anemia, linfopénia, bem como parotidomegália,
linfocitopénia T CD4+, crioglobulinémia mista monoclonal, hipocomplementémia e a
negativização de factor reumatóide previamente positivo.
Bibliografia
1. Hematologic manifestations of connective autoimmune diseases, P.Fietta, G.Delsante,
F.Quaini, Clin Exp Rheumatol 2009; 27:140-154
2. Scleroderma and hemolytic anemia in a patient with deficiency of IgA and C4: a hitherto
undescribed association, Jones, E, et al, J Rheumatol 1987; 14: 609-12
3. Thrombocytosis in systemic lúpus erythematosus: a possible clue to autosplenectomy?, G.
Castellino et al, J Rheumatol 2007; 1497-501
4. The risk of lymphoma development in autoimmune diseases: a meta-analysis, E Zintzaras et
al 2005, Arch Intern Med; 165:2337-44
5. Association with chronic inflammation, not its treatment, with increased lymphoma risk in
rheumatoid arthritis, Baecklund et al 2006, Arthritis Rheum; 54:692-701
6. EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3
264
6. DOENÇAS AUTOIMUNES DA TIRÓIDE
Definição
As doenças autoimunes da tiróide (DAIT) são as DAI específicas de órgão mais comuns. A
sua prevalência está estimada em cerca de 5%, sendo mais frequentes em mulheres. As
principais DAIT são a Tiroidite de Hashimoto (TH) e a Doença de Graves (DG), responsáveis
pela maioria dos casos de hipotiroidismo e hipertiroidismo, respectivamente. Destacamos
ainda algumas entidades clínicas menos frequentes, que são consideradas variantes da TH
pelo mecanismo fisiopatológico de base.
Etiologia e Fisiopatologia
A etiologia das DAIT é complexa, admitindo-se que seja causada pela interacção de factores
ambientais e endógenos, em indivíduos geneticamente susceptíveis. Estão descritos
polimorfismos de alelos HLA (HLA-DR3, HLA-DR4 e HLA-DR5) e de CTLA-4 associados à TH.
Foram também descritos polimorfismos no receptor da tirotrofina (TSH-R) que contribuem para
a susceptibilidade para a DG. Os principais factores ambientais associados ao risco de
desenvolver DAIT são o tabagismo, stress, ingestão de iodo, fármacos (como o lítio e
amiodarona), exposição a radiação, infecções virais e bacterianas e microquimerismo fetal.
Do ponto de vista imunopatogénico, parece haver um evento inflamatório iniciador, seguido
de uma resposta auto-reactiva específica do sistema imunitário, com infiltração da tiróide por
linfócitos B e T. De acordo com o padrão de citocinas produzido pelas células T helper pode
haver duas evoluções distintas:
- A polarização Th1 leva a um predomínio de mecanismos de imunidade celular, com
infiltração linfocitária da tiróide exuberante e citotoxicidade mediada por linfócitos T CD8+
citotóxicos e pelo complemento. A apoptose, sobretudo através de mecanismos
dependentes do receptor Fas ou CD95, vai ter também um papel preponderante na
destruição da glândula tiroideia. Este mecanismo está na génese da Tiroidite de Hashimoto
e suas variantes.
- A polarização Th2 traduz-se numa dominância dos mecanismos de imunidade humoral,
com produção de anticorpos estimuladores dos receptores da TSH (TRAbs) e escassa
infiltração linfocitária, como no caso da Doença de Graves.
Os principais autoanticorpos associados às DAIT são os anticorpos anti-tiroperoxidase (anti-
TPO), anti-tiroglobulina (anti-Tg) e anti-TSH-R (TRAb).
Os anticorpos anti-TPO têm a capacidade de fixar o complemento, pelo que podem ter uma
acção citotóxica que contribui para perpetuar a inflamação. Os anti-Tg são menos frequentes
e têm um papel menos bem definido. Conjuntamente, os anticorpos anti-TPO e anti-Tg estão
presentes na maioria dos doentes com DAIT, apresentando elevado valor preditivo negativo.
Os TRAb estão presentes em mais de 90% dos casos dos DG e têm um efeito estimulador na
produção de hormona tiroideia (TRAb-e). Numa pequena fração de doentes com TH, podem
ser detectados anticorpos anti-TSH-R com efeito bloqueador (TRAb-b).
Os anticorpos antitiroideus podem ser identificados em indivíduos saudáveis, sem evidência
clínica ou laboratorial de disfunção tiroideia. Cerca de 25% das mulheres com mais de 60 anos
têm anticorpos anti-tiroideus. Os indivíduos portadores destes anticorpos apresentam maior
risco de desenvolver uma DAIT, especialmente tiroidite pós-parto e disfunção tiroideia
265
secundária ao uso de fármacos.
Apresentações Clínicas
Tiroidite de Hashimoto
A TH, tiroidite crónica autoimune ou tiroidite linfocítica crónica, é a principal causa de
hipotiroidismo nas regiões em que a alimentação fornece um aporte suficiente de iodo. Tem
uma prevalência de 1:1000, que aumenta com a idade, podendo afectar até 40% das mulheres
idosas. A média de idade de apresentação é aos 35 anos, sendo muito mais frequente em
mulheres (ratio 10:1). Pode apresentar-se como tiroidite autoimune gotosa ou tiroidite
autoimune atrófica. Além das manifestações clínicas e laboratoriais de hipotiroidismo, verifica-
se a presença de anti-TPO em >90% e de anti-Tg em 50% dos casos.
A TH tem sido associada ao aumento do risco de linfoma da tiróide, pelo que se devem realizar
ecografias tiroideias regulares para detecção precoce de nódulos suspeitos.
O tratamento consiste na administração de hormona tiroideia de substituição (levotiroxina)
266
com o objetivo de melhorar sintomas, normalizar a secreção de TSH e reduzir o tamanho da
glândula nas formas gotosas. Recomenda-se o tratamento apenas quando o valor da TSH é
superior a 10 mUI/L ou nas mulheres grávidas ou a planear engravidar.
Tiroidite Subaguda
A TSA (ou Tiroidite de Quervain) é a principal causa de dor localizada à tiróide. É uma tiroidite
inflamatória auto-limitada com um curso clínico semelhante ao da TI e da TPP. Admite-se que
267
tenha uma etiologia infecciosa viral, especialmente por Enterovirus (Coxsackie e Echovirus),
estando também associada aos vírus do sarampo, parotidite, adenovírus e Ebstein-Barr. A
incidência estimada é de 3 casos por cada 100000/ano, sendo descrita em adultos entre os
40 e os 50 anos de idade, sobretudo mulheres (razão de 4:1). Distingue-se das outras formas
de tiroidite por apresentar um período prodrómico de sintomas sistémicos como febre, astenia
e mialgias em 96% dos casos. Ao exame objectivo, a tiróide pode estar aumentada e dolorosa
à palpação. Além da variação das hormonas tiroideias ao longo do curso da doença, salienta-
se a elevação de parâmetros inflamatórios séricos.
Os anti-inflamatórios não esteróides são utilizados como terapêutica de primeira linha. Os
corticosteróides são usados nas situações em que os sintomas não são controlados ao fim de
2-3 dias; inicia-se prednisolona numa dose de 40 mg/dia, que deve ser reduzida gradualmente
ao longo de 6-8 semanas. Nos casos mais raros de tirotoxicose sintomática, pode ser
necessário o uso de beta-bloqueantes. Deve evitar-se o uso de fármacos anti-tiroideus, uma
vez que a produção hormonal não está aumentada.
Doença de Graves
A DG representa 80% dos casos de hipertiroidismo. É mais frequente em mulheres (ratio 10:1)
e tem um pico de incidência entre os 40 e os 60 anos. Os TRAb presentes em circulação
activam o receptor da TSH, estimulando a hipertrofia e hiperplasia folicular e aumentando a
produção de hormonas tiroideias (FT3 > FT4). Além das manifestações clínicas secundárias
ao excesso de hormonas em circulação (hipertiroidismo), podem surgir outras manifestações
características, tais como gota difusa, oftalmopatia e dermopatia.
A Oftalmopatia de Graves (OG) afecta 20-30% doentes e pode surgir antes ou depois dos
sintomas de hipertiroidismo. É causada por uma reação-cruzada entre os TRAb e o TSH-R
presente nos fibroblastos orbitários, que induz a produção de glicosaminoglicanos. Os sinais
característicos de OG são a proptose e o edema periorbitário; os principais sintomas incluem
irritação ocular, lacrimejo, dor retro-orbitária, visão turva e diplopia. A maioria dos doentes
apresenta um envolvimento ocular ligeiro e insidioso, mas em 5-10% dos casos pode haver
acometimento grave da visão.
Há várias estratégias de abordagem terapêutica da DG: 1) tratamento médico, incluindo
controlo de sintomas de hipertiroidismo (ex. beta-bloqueantes) e bloqueio da síntese de
hormona tiroideia (ex. propiltiouracilo, metimazol); 2) tratamento com iodo radioativo; 3)
tiroidectomia total.
268
Os doentes com DAIT com evolução atípica ou que se apresentem com sintomas inespecíficos
de novo devem ser investigados para exclusão de outras doenças autoimunes concomitantes.
BIBLIOGRAFIA:
1. Anaya JM, Shoenfeld Y, et al. (2013). “Thyroid disease and autoimmune diseases” in “Autoimmunity: From Bench
to Bedside”. Bogota: El Rosario University Press; 537-555
2. Melo M. Tiroidites. Acta Med Port 2006; 19: 387-394.
3. Won Sang Yoo, Hyun Kyung Chung: Recent Advances in Autoimmune Thyroid Diseases. Endocrinol Metab 2016;
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7. Fallahi P, Ferrari SM, et al: The association of other autoimmune diseases in patients with autoimmune thyroiditis:
review of the literature and report of a large series of patients. Autoimmun Rev. 2016; Dec; 15(12): 1125-1128.
269
PARTE IV – ASPECTOS
PARTICULARES DAS DOENÇAS
AUTO-IMUNES
270
1. TERAPÊUTICA
1. CORTICÓIDES
Os corticóides endógenos têm actividade glucocorticóide (regulação do metabolismo
dos hidratos de carbono) e actividade mineralocorticóide (regulação do equilíbrio
eletrolítico). Os corticosteróides são, assim, classificados de acordo com as suas
potências relativas na retenção de sódio, efeitos no metabolismo dos hidratos de
carbono (HC) e efeito anti-inflamatório. As potências anti-inflamatórias acompanham os
efeitos no metabolismo dos HC, mas não os efeitos na retenção de sódio / efeito
mineralocorticóide; por esta razão os corticóides sintéticos são designados de
glucocorticóides quando são utilizados pelo seu efeito anti-inflamatório.
ACTIVIDADE
DOSE ACTIVIDADE DURAÇÃO
ANTI-
GLUCOCORTICÓIDE EQUIVALENTE MINERALOCORTICÓIDE DE ACÇÃO
INFLAMATÓRIA
(MG) RELATIVA (H)
RELATIVA
HIDROCORTISONA 20 1 1 8 a 12
ACETATO DE
25 0,8 0,8 8 a 12
CORTISONA
PREDNISONA 5 4 0,8 12 a 36
PREDNISOLONA 5 4 0,8 12 a 36
METILPREDNISOLONA 4 5 0,5 12 a 36
TRIAMCINOLONA 4 5 0 12 a 36
Não usado para
FLUDROCORTISONA efeito anti- 10 125 12 a 36
inflamatório
DEXAMETASONA 0,75 30 0 36 a 72
DEFLAZACORTE 6 - - -
Tabela 1: Glucocorticóides, potência relativa e duração da acção.
271
Os glucocorticóides têm diferentes potências e duração de acção, pelo que a sua
aplicabilidade deve ser ajustada a cada situação clínica – tabela 1. A prednisona e
prednisolona são glucocorticóides potentes e mineralocorticóides fracos. O deflazacorte
tem mostrado menos efeitos adversos, principalmente no metabolismo ósseo e da
glucose, embora seja menos potente em termos de efeito anti-inflamatório e
imunossupressor – estudos com maior número de doentes e durabilidade seriam
desejáveis para esclarecer estes aspetos.
Indicações
Os glucocorticóides sistémicos podem ser administrados por via oral, endovenosa (EV),
intra-muscular (IM) e intra-articular (IA). A via oral é a mais utilizada nas doenças auto-
imunes, ajustando-se a dose à gravidade das manifestações. A via EV é menos
frequente, geralmente na forma de “pulsos” de corticóide nas manifestações mais
graves (vide abaixo). A via IA, também designada de “infiltração”, é habitualmente
seleccionada para o controlo de artrite ou entesite localizada, sendo efectuada em toma
única, que pode ou não ser repetida posteriormente, geralmente com um intervalo de
alguns meses.
Nas doenças auto-imunes os corticóides sistémicos são habitualmente de toma diária,
de manhã, em toma única/ não fraccionada. Pode fazer-se administração destes
fármacos à noite ou em toma fraccionada – de manhã e à noite – mas estas formas de
administração estão associadas a maior supressão do eixo hipotálamo-hipófise-
suprarrenal. Nalgumas situações, é possível fazer tomas em dias alternados,
provocando menor supressão do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal.
Os limites que definem a corticoterapia de baixa, média e alta dose não estão bem
estabelecidos, contudo um comité da EULAR propôs em 2002 a seguinte classificação:
272
• BAIXA DOSE: ≤ 7,5 mg/dia de prednisona (ou equivalente)
- habitualmente usada como dose de manutenção. Frequente na artrite
reumatóide.
- menor incidência de efeitos adversos.
Efeitos adversos
273
EFEITOS ADVERSOS DA CORTICOTERAPIA SISTÉMICA
Risco de infecção aumentado.
Aparência Cushingóide (obesidade central, fácies arredondado, buffalo hump)
Geralmente com doses moderadas a altas.
Estrias purpúricas, equimoses, pele fina, acne, hirsutismo, alopécia feminina, hipersudorese e
sudorese nocturna.
Hiperglicémia, Intolerância à glicose, Diabetes Mellitus.
Hipertensão arterial
Hiperlipidémia.Geralmente com doses moderadas a altas.
Risco aumentado de aterosclerose.
Miopatia com fraqueza muscular (não acompanhada de aumento das enzimas musculares;
ENMG normal). Surge geralmente com doses moderadas a altas. Reversível.
Osteopenia e osteoporose. Risco aumentado de osteonecrose.
Risco aumentado de úlcera péptica. Principalmente se houver uso concomitante de AINEs.
Cataratas; ↑ pressão intra-ocular.
Alterações do humor, insónia, psicose. Geralmente com doses moderadas a altas.
Diminuição da líbido, irregularidades menstruais e amenorreia.
Pseudotumor cerebri. Raro
Pancreatite.Raro
Tabela 2: Principais efeitos secundários da corticoterapia sistémica de longa duração.
• qualquer doente que tenha feito 20 mg/dia de prednisona (ou equivalente) por ≥
3 semanas. Doses <20mg/dia de prednisona podem levar mais do que 3
semanas a induzir supressão, mas estes tempos não estão bem estabelecidos,
para mais que a dose é variável de doente para doente. Por esta razão, deve
274
considerar-se igualmente a existência de risco de supressão do eixo em
qualquer dose com duração > 3 semanas.
• nas doenças ligeiras, com apirexia (ex: faringite, cistite), não costuma ser
necessária a administração profiláctica de corticóide suplementar.
270
Desmame de Corticóides
O esquema de redução e suspensão da corticoterapia depende da dose e duração do
tratamento, da doença subjacente, das co-morbilidades do doente e da utilização
concomitante de outros agentes terapêuticos poupadores de corticóides, como os
DMARDs. Deve ser tido em consideração, por um lado, o risco de exacerbação da
doença de base e, por outro, o risco de desenvolvimento de sintomas de insuficiência
suprarrenal ou de privação da corticoterapia. Mais uma vez, não há directrizes bem
definidas para os esquemas de redução da corticoterapia, mas foram estabelecidas
algumas recomendações por consenso:
• doses altas ou muito altas (≥ 60mg/dia de prednisona) devem ser mantidas pelo
mínimo de tempo possível (4 a 10 semanas) e reduzidas para doses moderada
(≤ 30 mg/dia de prednisona). Nesta faixa as reduções podem ser feitas na base
de 10 a 20% a cada 1 a 2 semanas.
Gravidez e Amamentação
Fármacos de Categoria C: Recomenda-se o udo da dose mais baixa possível,
tentando evitar corticóides no primeiro trimestre durante a formação do palato.
Os corticóides são excretados pelo leite materno, mas parece ser possível a
continuação de tratamento se justificado pelo potencial de saúde para a mãe.
2. HIDROXICLOROQUINA
A Hidroxicloroquina (HCQ) é um anti-malárico que se comporta como uma base fraca
e interfere com funções celulares ácido-dependentes. O aumento que provoca no pH
271
tem efeitos imunomodulatórios: estabiliza as membranas lisossomais, atenua o
processamento e apresentação de antigénios, inibe a citoxicidade mediada por células,
tem efeito inibitório nas citocinas pró-inflamatórias (IL-1, IL-6, INF-γ) e estimula as anti-
inflamatórias, estimula a apoptose e promove a eliminação de linfócitos autoreativos,
tem efeito fotoprotetor, inibe a adesão e agregação plaquetária, e reduz o perfil lipídico
e a glicémia, por inibição da degradação da insulina.
Trata-se de um fármaco com boa absorção por via oral e boa biodisponibilidade. A HCQ
atravessa e penetra essencialmente os rins, medula óssea, baço, pulmões, glândulas
supra-renais e fígado. As concentrações mais elevadas são ao nível da retina e da pele,
nos melanócitos. Tem uma semivida de 40 dias e é eliminada pela urina inalterada.
Indicações
Está indicada na artrite reumatóide, LES ligeiro, Lúpus discóide, síndrome do anticorpo
anti-fosfolípido e síndrome de Sjögren.
Efeitos adversos
As manifestações adversas mais frequentes são as gastrointestinais, cutâneas e do
sistema nervoso central (SNC).
As alterações gastrointestinais constituem a reacção adversa mais frequente, sobretudo
náuseas, vómitos e diarreia. Estes efeitos gastrointestinais são, em parte, relacionados
com a acção muscular que leva à dor abdominal. Os anti-maláricos não causam úlceras
ou complicações graves. As queixas podem ser minoradas muitas vezes com a toma ao
deitar ou, em alternativa, com a diminuição da dose para meio comprimido por dia, ou
em dias alternados e com posterior aumento para a dose máxima dentro de uma ou
duas semanas, conforme a tolerância. A hepatotoxicidade provocada anti-maláricos é
rara.
Podem ocorrer alterações cutâneas em cerca de 10% dos doentes, com diferentes
apresentações, sendo mais frequente o quadro de lesões maculo-papulares
pruriginosas em contexto alérgico. A reintrodução de anti-maláricos pode ser ponderada
mediante um regime de dessensibilização oral lento. Os doentes sob hidroxicloroquina
a longo prazo podem desenvolver hipopigmentação, frequentemente na face anterior da
perna. Pode ainda surgir hiper ou hipopigmentação do cabelo e da mucosa oral.
O envolvimento do SNC é raro e, geralmente, não se acompanha de gravidade. A
cefaleia constitui o efeito adverso mais frequente, seguida de tonturas. Estes efeitos
desaparecem espontaneamente ao longo de semanas, embora uma redução da dose
inicial possa ser necessária. Outras queixas incluem acufenos, insónia e agitação;
272
psicose e convulsões são muito raras. Há casos descritos de neuropatia tóxica, miopatia
e arritmias fármaco-induzidos, mas estariam associados à antiga formulação de
cloroquina, mais raros com a hidroxicloroquina.
A toxicidade oftalmológica grave é nos doentes submetidos a monitorização periódica.
Ainda assim, este é o efeito adverso mais temido, uma vez que pode provocar perda de
visão. A toxicidade ocular mais frequente dos anti-maláricos ocorre por lesão da córnea
(sempre reversível) e retinopatia. A deposição de fármaco ou dos seus metabolitos na
córnea está associada a doses diárias elevadas, e, portanto, é rara com a dose de
hidroxicloroquina 400 mg/dia. Estes depósitos não afectam a acuidade visual, mas
podem criar halos transitórios, ou fotossensibilidade, e são reversíveis depois de
descontinuar o fármaco.
A retinopatia é a complicação oftalmológica mais importante da terapêutica anti-
malárica. O mecanismo exacto pelo qual a HCQ pode levar à retinopatia não está
totalmente esclarecido, mas tem sido colocada a hipótese de que os anti-maláricos se
ligam à melanina no epitélio pigmentado da retina, efeito que pode danificar os
fotorreceptores subjacentes e pode levar à perda permanente de visão.
As anomalias mais precoces da retina não têm sintomatologia associada e podem
apenas ser detectadas na avaliação oftalmológica. Alterações “pré-maculopatia”
consistem em edema macular, aumento de pigmentação, aumento da granularidade e
perda do reflexo da fóvea. É desejável que as alterações sejam detectadas nesta fase
com recurso a exames complementares como Tomografia da Coerência Óptica (OCT)
e electroretinografia multifocal. Utilizando estes métodos de rastreio, apura-se que cerca
de 7% dos doentes sob hidroxicloroquina apresentem alterações da retina aos 5 anos
de uso do fármaco. É raro surgir sintomatologia associada, mas a detecção destas
alterações pode implicar alteração da dose ou descontinuação do fármaco.
A doença macular avançada, a verdadeira retinopatia, é caracterizada por uma área
central de despigmentação heterogénea da mácula, rodeada por um anel central de
pigmentação – uma lesão em “olho de boi”. Os sintomas nesta fase geralmente não são
reversíveis e podem incluir fotofobia, alteração da visão ao longe, visão nocturna
reduzida e defeitos de campo. A retinopatia grave, incluindo a lesão do epitélio
pigmentado da retina, parece poder progredir pelo menos durante três anos após o
fármaco ser descontinuado.
Outras manifestações de toxicidades raras nos anti-maláricos incluem agranulocitose e
anemia aplástica com a cloroquina, mas não há relatos destes efeitos com
hidroxicloroquina em doses <7mg/kg/dia.
273
realizadas com frequência anual ou apenas aos cinco anos de terapêutica, dependendo
da presença de factores de risco major para a retinopatia tóxica – dose de HCQ superior
a 5 mg/kg do peso corporal real, mais de cinco anos de terapêutica com HCQ, doença
renal, uso concomitante de tamoxifeno e/ou presença de doença macular.
A dosagem de HCQ deve ser baseado no peso corporal real, com uma dose máxima de
≤5 mg/kg. Após cinco anos, todos os doentes devem ser avaliados pela oftalmologia
anualmente. As alterações da retina com HCQ podem ser rapidamente reversíveis em
doentes com alterações muito precoces, mas escotomas bilaterais ou maculopatia em
“olho de boi” são lesões com prognóstico clínico reservado. Nestas situações o fármaco
deve ser descontinuado.
Gravidez e Amamentação
Fármaco de Categoria C, sem contra-indicação na gravidez ou lactação, inclusive com
indicação para não interromper nos doentes com LES afim de evitar o flare de doença.
3. SULFASSALAZINA
A Sulfassalazina (SSZ) inibe o efeito pró-inflamatório da cascata do ácido araquidónico;
a quimiotaxia, migração, produção de enzimas proteolíticas e desgranulação dos
neutrófilos; aumenta a libertação de adenosina, inibindo a proliferação de células T,
ativação de células NK e B; reduz a síntese de imunoglobulinas e a produção de factor
reumatóide. O perfil de citocinas é também alterado no sentido anti-inflamatório.
A SSZ quando metabolizada no intestino dá origem a dois metabolitos activos:
sulfapiridina e 5-ASA. Até 30% da SSZ é absorvida pelo intestino delgado e a maioria
passa pela circulação entero-hepática, sendo excretada pela bílis. A sua
biodisponibilidade é de 10%. A sulfapiridina é absorvida em cerca de 90% no cólon
enquanto que 90% do 5-ASA se mantém no cólon. A primeira é mais ativa nas
conectivites inflamatórias e o segundo na doença inflamatória intestinal. A SSZ e a
sulfapiridina distribuem-se amplamente pelo organismo e têm uma ligação às proteínas
plasmáticas de 99% e 50-70%, respectivamente. A semi-vida da SSZ é 6- 17h e da
sulfapiridina de 8-21h. A sulfapiridina é extensamente metabolizada pelo fígado por N-
acetilação, o que pode ser influenciado por factores genéticos. Nos acetiladores lentos
tem uma taxa de depuração muito menor e os seus níveis séricos são mais elevados. É
excretada na urina e o 5-ASA nas fezes.
Indicações
Este fármaco pode ser usado na Artrite Reumatóide, Artrite Psoriática (artrite extra-
axial), Espondilite Anquilosante (artrite extra-axial), Artrite reactiva crónica, Artrite
Enteropática, Artrite inflamatória juvenil.
274
Posologia e Modo de Administração
Estão disponíveis comprimidos de 500 mg. O tratamento deve ser iniciado com
500mg/dia, sendo escalada a dose semanalmente até 3g/dia. Se ocorrer intolerância,
deve reduzir-se progressivamente a dose até atingir um ponto de tolerância.
Efeitos Adversos
Os principais efeitos adversos são do foro gastrointestinal, com aparecimento de
náuseas, desconforto abdominal, toxicidade hepática e diarreia, havendo ainda
descrição de efeitos no SNC (tonturas, cefaleias), mucocutâneos (eritema generalizado,
eritema multiforme, síndrome de Steven-Johnson, fotossensibilidade) e pulmonares
(pneumonia eosinofílica).
Gravidez e Amamentação
Fármaco de Categoria B-C para gravidez. Atravessa a placenta, mas não foram
documentadas alterações fetais. É sugerida prudência durante a lactação.
4. METOTREXATO
O Metotrexato (MTX) é um análogo do ácido fólico. Uma vez dentro da célula, sofre
poliglutamação (MTX-PG), o que irá activar as suas propriedades anti-inflamatórias e
anti-proliferativas. Através de mecanismos de inibição enzimática, o MTX leva a um
aumento da adenosina intra e extracelular, redução da síntese de pirimidinas e inibição
de reacções de transmetilação. A adenosina é um potente anti-inflamatório que regula
funções das células inflamatórias endoteliais e modula a acção das citocinas dos
monócitos e macrófagos (↑ anti-inflamatórios - IL-1, IL-10 e ↓ pró- inflamatórios – TNFα,
IL-6, IL-8, MIP-1α, LTB4 e NO). Há também uma inibição da síntese de colagenases,
redução da activação macrofágica e translocação de resposta Th1 para Th2.
Em doses baixas (<15mg/semana) a absorção oral é igual à subcutânea. A sua
absorção é rápida e sofre recirculação hepática. A sua biodisponibilidade é de ~70%. A
sua ligação às proteínas plasmáticas é de 50-60% e a semivida é de 6h. Acumula
facilmente nos fluidos no terceiro espaço.
A maior parte do MTX é excretado na urina durante as primeiras 12h após a
administração, exceptuando a sua forma MTX-PG.
Indicações
Pode ser usado no tratamento de Artrite Reumatóide e condições associadas (ex.
Síndrome de Felty), Artrite Idiopática Juvenil, Artrite Psoriática, Lúpus Eritematoso
Sistémico (pele e articulações), Vasculites ligeiras – como poupador ou adjuvante da
275
corticoterapia (Granulomatose com Poliangeíte, Arterite de Takayasu, Policondrite
Recidivante, Arterite de Células Gigantes, Polimialgia Reumática), Miosites.
Efeitos adversos
Os efeitos adversos são do foro gastrointestinal (dispepsia, náuseas, anorexia,
toxicidade hepática), hematológicos (mielossupressão), pulmonares (pneumonite
intersticial aguda, fibrose intersticial, edema pulmonar não-cardiogénico, pleurite,
nódulos pulmonares) e mucocutâneos (úlceras no tracto digestivo).
Gravidez e Amamentação
Fármaco de Categoria X. Está contra-indicado na gravidez e lactação. Deve ser
descontinuado 3 meses antes da concepção.
5. LEFLUNOMIDA
A Leflunomida é um pro-fármaco, que é rápida e completamente convertido no seu
metabolito activo. Inibe reversivelmente a dihidroorotato desidrogenase, o que resulta
na inibição da síntese de pirimidinas e interfere com a transdução de sinal intercelular.
Esta alteração reduz a população de linfócitos activos e auto-reactivos, inibe a
quimiotaxia neutrofílica e o recrutamento de células inflamatórias às articulações e
bloqueia a activação do NF-kB.
A absorção é rápida e completa no tracto GI. Tem uma ligação às proteínas plasmáticas
>99%. O volume de distribuição é baixo e sofre recirculação entero- hepática. Tem uma
semivida de 2 semanas e cerca de 90% da leflunomida é excretada ao fim de 28 dias,
de igual forma pelo tracto GI e pela urina. A administração de colestiramina reduz a sua
semi-vida para 1-2 dias.
Indicações
Pode ser usada na Artrite Reumatóide, LES ligeiro, Artrite Psoriática (artrite extra- axial),
Espondilite Anquilosante (artrite extra-axial), Granulomatose com Poliangeíte
(manutenção de remissão após pulso de ciclofosfamida), Artrite Idiopática Juvenil.
276
Posologia e Modo de Administração
É usada como dose de carga de 100mg/dia durante 3 dias, seguida de dose de
manutenção de 20mg/dia. Se toxicidade/intolerância a dose deverá ser reduzida para
10mg/dia.
Efeitos adversos
Os efeitos adversos são do foro gastrointestinal (diarreia, dispepsia, dor abdominal e
náuseas, toxicidade hepática), cardiovascular (hipertensão, hipercolesterolémia),
mucocutâneos (rash, síndrome de Steven-Johnson, necrólise epidérmica tóxica),
pulmonar (pneumonite intersticial, fibrose pulmonar), hematológicos (mielossupressão).
A administração de colestiramina 8g 8/8h durante 11 dias ajuda a reduzir os efeitos
adversos.
Gravidez e Amamentação
Fármaco de Categoria X: Contra-indicado na gravidez e amamentação.
Deve ser realizado um teste de gravidez antes de iniciar a medicação e, no caso de
desejo de concepção, deverão ser medidos os valores séricos do metabolito activo em
duas ocasiões separadas por 14 dias (<0.02ng/mL); a doente deverá aguardar 3 ciclos
menstruais completos. A administração de colestiramina 8g 8/8h durante 11 dias ajuda
a reduzir o período de desmame.
6. AZATIOPRINA
A Azatioprina (AZA) é um pro-fármaco que é convertido em 6-mercaptopurina (6-MP),
análogo das purinas, inibindo a proliferação e população linfocitária circulante, o que vai
inibir a produção de anticorpos e monócitos, suprimindo a actividade das células NK;
inibe deste modo a imunidade celular e humoral.
Trata-se de um fármaco com boa absorção oral e rapidamente convertido em 6-
mercaptopurina. Tem uma biodisponibilidade média de 47%. O volume de distribuição
de 4-8 L/Kg. A semivida da AZA é <15min e da 6-MP é 1-3 h.
Apenas 1% da 6-MP é excretada inalterada na urina. A maioria é convertida em
metabolitos inactivos por duas enzimas, xantina oxidase e tiopurina metiltransferase, ou
por outras enzimas em nucleótidos citotóxicos de tiopurina. Todos são excretados por
via urinária.
Indicações
A AZA é maioritariamente utilizada nas doenças auto-imunes do tecido conjuntivo,
sendo pouco eficaz na doença articular inflamatória. Tem indicação na nefrite lúpica (em
associação a corticoterapia – 2ª linha – e como manutenção após pulso de
277
ciclofosfamida), podendo ainda ser direccionada a outras manifestações de LES (como
poupador de corticóide). O tratamento com AZA é também utilizado na doença de
Behçet, na doença ocular inflamatória, nas miosites inflamatórias, nas vasculites (como
poupador de corticóide ou manutenção pós-pulso de ciclofosfamida), na esclerose
sistémica ou nas síndromes de sobreposição.
Efeitos Adversos
Hematológicos (mielossupressão), GI (toxicidade hepática, colestase grave, doença
hepática veno-oclusiva, hiperplasia nodular regenerativa, pancreatite), malignidade
(risco aumentado), infecção.
No início do tratamento, deve ser feito o doseamento da enzima tiopurina
metiltransferase (TPMT), para aferir a dose máxima de AZA que se pode realizar para
cada doente.
Gravidez e Amamentação
Fármaco de categoria D. Pode ser usado na gravidez e lactação.
7. CICLOFOSFAMIDA
A Ciclofosfamida (CYC) é um agente alquilante que provoca ligações cruzadas no DNA
e nas suas proteínas, levando à apoptose celular. Como consequência, há uma
diminuição na população linfocitária circulante e na sua proliferação, com subsequente
diminuição na produção de anticorpos e na supressão da reacção de hipersensibilidade
tardia a novos anticorpos.
A administração oral e parentérica do fármaco leva a concentrações plasmáticas
semelhantes. A ligação às proteínas plasmáticas é de 20% e tem uma boa distribuição
tecidular. A CYC é rápida e extensamente metabolizada pelo fígado em metabolitos
activos e inactivos, alguns pelo citocromo P-450. A semi-vida é de 5-9h e a actividade
alquilante é indetectável na maioria dos doentes 24h após uma dose de 12 ml/kg.
Cerca de 30-60% do fármaco é eliminado pela urina como metabolitos inactivos. Apesar
da semi-vida ser aumentada na doença hepática, não existe aumento da sua toxicidade.
Por outro lado, na doença renal é necessário ajuste conforme a taxa de filtração
glomerular. A CYC é eliminada pela diálise e deve ser administrada após cada sessão.
278
Indicações
A CYC está indicada nas manifestações graves de LES (nefrite lúpica, neurolúpus),
vasculite necrotizante sistémica, doença de Goodpasture, esclerose sistémica, artrite
reumatóide (vasculite grave), artrite idiopática juvenil grave.
Efeitos Adversos
Hematológicos (mielossupressão), susceptibilidade a infecções, urológicos (cistite
hemorrágica – minorada pela administração prévia de mesna, neoplasia da bexiga),
susceptibilidade a neoplasias, insuficiência ovárica grave, azoospermia, pulmonares
(pneumonite, fibrose), cardiotoxicidade.
A toxicidade da CYC pode ser reduzida diminuindo as doses, alternando com
corticoterapia, efectuando profilaxia para as infecções e administrando mesna, como
referido.
Gravidez e Amamentação
Categoria D. Contra-indicado na gravidez e amamentação.
8. BIOLÓGICOS
Nos últimos anos, com a contínua investigação desenvolvida na área da
imunossupressão, foi possível um melhor esclarecimento sobre as bases
fisiopatológicas e imunológicas de várias doenças auto-imunes, o que, combinado com
um grande investimento no desenvolvimento biofarmacológico, permitiu a introdução de
terapêuticas biológicas. Estes agentes farmacológicos actuam em componentes
específicos da resposta imune que se encontram desregulados e que se admite estarem
na génese do desencadeamento e manutenção do processo da doença. Na artrite
reumatóide (AR), por exemplo, há evidência da existência de expressão aumentada de
citocinas pro-inflamatórias, como o factor de necrose tumoral α (TNFα), interleucina-1
(IL-1) e interleucina-6 (IL-6), entre outras. Os agentes que têm como alvos estes
mediadores, em particular o TNFα, demonstraram já elevada eficácia no tratamento de
doentes com AR e outras doenças inflamatórias sistémicas. A capacidade dos inibidores
do TNFα em melhorar não só os sinais e sintomas da doença, mas também preservar a
capacidade funcional, a qualidade de vida e em inibir a progressão da doença, veio
alterar as expectativas de doentes e médicos relativamente ao tratamento destas
doenças. O seu sucesso tem levado à
279
investigação de fármacos dirigidos a outras citocinas relevantes para a patogénese de
várias doenças auto-imunes.
Redução resposta
BELIMUMAB Lúpus Eritematoso Sistémico
células B
BARICITINIB
Inibidor da Jak Artrite Reumatóide.
TOFACITINIB
280
• Inibidores da co-estimulação das células T.
• Depleção e/ou diminuição da resposta das células B
• Inibidor da jak.
281
devem alertar para a possibilidade de uma reação adversa ao fármaco ou do
aparecimento/reactivação de outra patologia decorrente da depressão do sistema
imunitário - deve proceder-se igualmente à suspensão do tratamento até exclusão
destas hipóteses. A monitorização da função renal, hepática e hemograma são aspectos
fundamentais; o aparecimento de citopénias, pode revelar um efeito de mielotoxicidade,
devendo o tratamento ser suspenso caso a contagem de plaquetas seja <50.000/mcL
ou de leucócitos <1000/mcL.
Outros efeitos adversos e aspectos de segurança devem ser monitorizados através da
avaliação periódica do doente – exame clínico, laboratorial ou outros exames
complementares de diagnóstico. Os exames a solicitar e a sua respectiva periodicidade
vão depender de cada tipo de doente, do fármaco utilizado e da fase do tratamento.
Bibliografia
• Alheira FV, Brasil M. The role of glucocorticoids in mood symptoms modulation: a review.
Rev. Psiquiatr. RS. 2005;27(2):177-186.
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-
1924-3
282
2. VACINAÇÃO NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES
Introdução
Nos últimos anos, tem-se verificado um avanço progressivo no tratamento de doenças
auto-imunes. Corticóides, azatioprina e metotrexato em baixa dose são
abundantemente usados como terapêutica neste grupo de doenças. Actualmente,
doentes com patologia refractária a estes regimes convencionais podem ainda ser
tratados com fármacos novos, biotecnológicos, incluindo anti-TNF, anticorpo
monoclonal anti-CD20 (Rituximab) entre outros. Deve ser tido em conta que a
manipulação do sistema imune inerente a este tipo de terapêuticas pode aumentar o
risco de infecção para estes doentes – tem sido estimado que há um risco de infecção
cerca de duas vezes superior ao da população geral. O risco de infecção é também
dependente do grau de imunossupressão associado a DMARD’s (Disease Modifying
Antirheumatic Drugs).
1) Como parte da avaliação geral do doente numa primeira consulta, deve ser realizada
uma avaliação prévia do estado vacinal. Se tiver havido alguma falha prévia num
esquema vacinal, deve ser considerada a vacinação e devem ser inquiridos os doentes
quanto a reacções adversas que possam implicar contra- indicação para uma vacina no
futuro.
HEPATITE A
HEPATITE B
PAPILLOMAVÍRUS
INFLUENZA
NEISSERIA MENINGITIDIS
STREPTOCOCCUS PNEUMONIAE
TÉTANO
Tabela 1: Vacinas a indagar ao doente numa primeira consulta.
283
2) As vacinas em doentes com patologia auto-imune devem idealmente ser
administradas durante a doença estável. Os estudos onde foi avaliada a resposta
vacinal que incluíram doentes com actividade moderada ou grave, apesar de não
mostrarem efeitos adversos mais frequentes ou agravamento da doença, foram
realizados com pequeno número de doentes e, portanto, não permitiram concluir quanto
à eficácia da vacinação nestes casos. Assim, com base nos riscos teóricos de flare de
doença após a vacinação, esta deve ser realizada durante a doença estável.
3) Vacinas vivas atenuadas – sarampo, papeira, rubéola, febre tifóide, varicela zoster
e febre amarela - devem ser evitadas sempre que possível em doentes
imunodeprimidos com doenças auto-imunes. Estas vacinas são preparadas a partir de
microorganismos vivos ou vírus cultivados em condições adversas levando à perda da
sua virulência mas mantendo a sua capacidade de induzir imunidade protectora e
duradoura.
Embora não haja, por enquanto, estudos com números suficientes, há evidência
crescente de que vacinas vivas atenuadas de vírus, como a vacina viva atenuada de
influenza, vírus varicela-zoster, sarampo-rubéola-papeira e febre amarela, podem de
facto ser seguras em doentes imunodeprimidos em situações específicas. Por enquanto,
no entanto, estas vacinas devem ser usadas com precaução em doentes sob terapêutica
imunossupressora, devendo ser realizada uma avaliação individual de risco/benefício,
incluindo actividade da doença, terapêutica, o potencial de replicação da vacina e o risco
de infecção.
284
claramente eficazes em doentes imunodeprimidos, pelo que não é recomendada a
avaliação de anticorpos na prática clínica.
Doentes imunocomprometidos têm maior risco de contrair uma doença durante uma
viagem, particularmente em destinos com infecções endémicas passíveis de ser
prevenidas por vacinação. Assim, o planeamento atempado da viagem e observação
prévia por um especialista está recomendado. Vacinas inactivadas podem ser
administradas com segurança a doentes imunodeprimidos – estas incluem as
vacinas para hepatite A e B, encefalite japonesa, raiva, assim como as formas
inactivadas das vacinas para febre tifóide e poliomielite. A vacinação específica e
estratégias de quimioprofilaxia, incluindo a vacinação com vacinas vivas atenuadas
deve ser avaliada caso a caso.
Vacina Pneumocócica
A vacinação com a vacina pneumocócica polissacárida 23-valente e com a vacina
conjugada 13-valente é recomendada em doentes com imunossupressão iatrogénica,
incluindo corticóides sistémicos e DMARDs sintéticos e biológicos.
Os doentes devem ser vacinados de acordo com o seguinte calendário (Figura 1):
- em doentes sem qualquer vacina pneumocócica prévia: deve ser dada uma dose
única de vacina 13-valente (VPC13), seguida de uma dose de vacina 23- valente
(VPP23) pelo menos 8 semanas depois; os doentes devem ser revacinados
285
com VPP23 pelo menos 5 anos após a primeira dose (esta segunda dose pode ser
administrada antes ou depois dos 65 anos);
≥ 8 semanas ≥ 5 anos
VPC13 VPP23 VPP23
≥ 1 ano ≥ 8 semanas
VPP23 VPC13 VPP23
≥ 5 anos
Vacina da Gripe
É recomendada a vacinação anual de todos os doentes, independentemente da
terapêutica actual.
Embora não se saiba a incidência exacta da gripe em doentes com patologia auto-
imune, o risco de morte de infecções pulmonares está aumentado. A vacinação mostrou
diminuir o número de internamento e a mortalidade devido a infecção por influenza em
doentes com doenças auto-imunes. Os efeitos adversos da vacinação são comparáveis
aos dos controlos saudáveis.
Hepatite B
Todos os doentes com patologia auto-imune com serologia negativa para o vírus
da Hepatite B (negativos para antigénio HBs, anticorpo anti HBc e anticorpo anti-HBs)
devem ser vacinados. Em caso de positividade isolada para anticorpo anti-HBc e carga
viral negativa, a vacinação deve ser considerada.
286
Hepatite A
A vacinação é recomendada para doentes com patologia auto-imune a viajar para
países endémicos, preferencialmente com 2 doses separadas por 6 meses.
Nalguns doentes com doença hepática ou com maior risco de hepatotoxicidade, devido
a ocorrência de surtos ocasionais de Hepatite A relacionados com contaminação de
alimentos importados com o vírus, a vacinação deve ser considerada mesmo se não
relacionada com viagem.
Papillomavirus (HPV)
Deve ser considerada a vacina para HPV com o esquema de 3 doses (0, 2 e 6 meses)
em jovens adultos com patologia auto-imune que não tenham sido previamente
vacinados.
Tétano
Doentes com patologia auto-imune devem seguir as recomendações do Plano Nacional
de Vacinação – vacinação com a vacina tétano e difteria a cada 10 anos.
287
Zoster
Em doentes com patologia autoimune e com mais de 60 anos, é recomendada a
avaliação individual de risco/benefício para esta vacina.
A infecção por Herpes Zoster tem uma incidência de 34/1000 pessoas/ano e afecta 1
em cada 3 adultos. Após a infecção natural como varicela, o vírus reside latente. A
reactivação pode ocorrer, sobretudo em relação com alterações na imunidade celular.
A vacina reduz o risco de zoster em 51% e previne nevralgia pós-herpética em
67%. Em geral, com o aumento da idade à data da vacinação, a eficácia diminui, mas a
vacina mantém eficácia contra o zoster propriamente dito.
Varicella Zoster VVA Doentes com DAI ≥60 anosf Dose única
Sarampo-Papeira-
VVA Doentes seleccionados Dose única
Rubéolab
a. Idealmente ≥4 semanas antes de qualquer terapêutica imunossupressora ou ≥6 meses após rituximab, é indicada
baixa actividade da doença; b. Doentes com patologia auto-imune devem cumprir as recomendações do Plano
288
Nacional de Vacinação; c. A administração de vacinas vivas atenuadas deve ser avaliada caso a caso com avaliação de
risco/benefício que inclui actividade da doença, terapêutica, o potencial de replicação da vacina e o risco de infecção; d.
É recomendada consulta prévia com especialista em Medicina do Viajante; e. Podem ser usados esquemas rápidos
(0,1,2,12 meses) ou super rápidos (0,7,21,360 dias) de vacinação para VHB para indivíduos que vão viajar rapidamente
e que enfrentam exposição iminente ou que vão para áreas de desastre. Uma vacina combinada VHA+VHB pode também
ser usada no mesmo esquema de 3 doses (0,7 e 21-30 dias) com um booster aos 12 meses. Todavia, estes esquemas
de vacinação não foram testados em doentes com patologia autoimune; f. Doentes sob prednisolona <20 mg/dia,
corticóides há menos de 2 semanas, corticóides tópicos ou intra-articulares, metotrexato de baixa dose (definido como
<0.4mg/kg/semana), azatioprina (<0.3 mg/kg/dia) ou 6-mercaptopurina (<1.5 mg/kg/dia).
Bibliografia
1. EULAR recommendations for vaccination in adult patients with autoimmune inflammatory
rheumatic diseases, S van Assen et al, Ann Rheum Dis 2011; 70:414-422.
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diseases from the Portuguese society of rheumatology, I. Cordeiro et al, Acta Reumatol Port Online
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4. Vaccionation of adult patients with systemic lúpus erythematosus in Portugal, Maria Francisca
Moraes-Fontes et al, International Journal of Rheumatology 2016.
289
3. URGÊNCIAS/EMERGÊNCIAS E DOENÇAS AUTO-IMUNES
Introdução
As situações de urgência/emergência relativas às doenças auto-imunes (DAI) são
frequentes e podem ser de vários tipos - exacerbação de DAI pré-existente, quer por
agudização de sintomas crónicos previamente controlados, quer pelo aparecimento de
semiologia nova; infecções provocadas pela terapêutica imunossupressora;
agravamento de uma doença prévia pela DAI ou tratamento associado; reacções
secundárias a fármacos administrados em DAI sistémica.
290
Cada doença auto-imune pode também estar associada a várias situações urgentes
ou emergentes específicas, separadas ou em simultâneo – Tabela 2.
DOENÇA AUTO-IMUNE CONDIÇÃO CLÍNICA URGENTE/EMERGENTE
Sub-luxação Atlanto-axial
Scleromalacia perforans
Vasculite
ARTRITE REUMATÓIDE
Exacerbação aguda de sinovite
Infecções
Artrite crico-aritnóide
Iridociclite
ESPONDILARTROPATIA
Valvulopatia
SERONEGATIVA
Fracturas osteoporóticas
Convulsão, psicose, encefalopatia, meningite asséptica
Mielite transversa
Pericardite, tamponamento cardíaco, miocardite, endocardite
Pneumonite, ARDS
Glomerulonefrite aguda
LÚPUS ERITEMATOSO
Vasculite
SISTÉMICO
Crise hipertensiva
Pancreatite Aguda
Poliserosite
Infecção/sépsis
Lúpus neonatal
SAAF catastrófico
Acidente Vascular Cerebral, mononeurite multiplex
Enfarte Agudo do Miocárdio
SÍNDROME ANTICORPO
Tromboembolismo e enfarte pulmonar
ANTI-FOSFOLÍPIDO
Trombose retiniana
Trombocitopénia
Isquémia placentária e aborto/morte fetal
Acidose Tubular Renal Distal
SÍNDROME DE SJÖGREN
Paralisia hipocaliémica
Vasculite cerebral
Síndrome Pulmão-Rim
Hemorragia alveolar, com insuficiência respiratória
Compromisso da via aérea
Nefrite/Glomerulonefrite com IR rapidamente progressiva
VASCULITE
Vasculite mesentérica
Neurite óptica
Uveíte
Crise hipertensiva
Necrose
Crise Renal Esclerodérmica
Fibrose miocárdio – arritmia
ESCLEROSE SISTÉMICA
Vasculite e isquémia digital
Insuficiência cardíaca direita
Fadiga muscular respiratória – insuficiência respiratória
MIOSITES INFLAMATÓRIAS Fibrose pulmonar (se síndrome anti-sintetase)
Rabdomiólise – insuficiência renal
Inflamação da cartilagem (ouvido, nariz, traqueia/laringe –
POLICONDRITE
obstrução da via aérea)
RECIDIVANTE
Regurgitação/Aneurisma da Aorta
Artrite Séptica
ARTRITE OUTRA ETIOLOGIA Artrite Reactiva
Tabela 2: Principais situações clínicas urgentes/emergentes consoante a doença auto-imune. IR: Insuficiência renal.
291
Os fármacos habitualmente usados no tratamento das DAI estão também associados a
condições clínicas que podem assumir um carácter urgente – Tabela 3.
Cerca de 10-25% dos doentes com DAI necessitam de hospitalização e, entre estes, 1/3
requerem internamento em Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), sobretudo por
falência respiratória. Consoante as séries, a mortalidade destes doentes em UCI pode
chegar aos 55%, sendo critérios de mau prognóstico um score de APACHE11 elevado,
disfunção multi-orgânica, idade elevada e citopénias; a gravidade da doença e co-
morbilidades existentes são factor de risco independente para um aumento da
mortalidade em UCI. As DAI que motivam mais admissões em UCI, segundo um estudo
de Quintero et al, são o LES, a AR e as vasculites sistémicas.
ESCLEROSE SISTÉMICA
A esclerose sistémica envolve disfunção de vários órgãos, por fibrose e esclerose dos
vasos periféricos e viscerais, por sobreprodução de colagénio no tecido conjuntivo,
alterações macrovasculares e por alterações na imunidade humoral e celular.
A crise renal esclerodérmica (CRE) (capítulo II.5) é mais frequente nos doentes com
Esclerose Sistémica Cutânea Difusa, sobretudo durante os primeiros 4 a 5 anos de
doença. A tensão arterial costuma estar elevada, embora possa ocorrer em doentes
normotensos, e os factores de risco incluem doença cutânea difusa rapidamente
11
APACHE: Acute Physiologic Assessment and Chronic Health Evaluation
292
progressiva, anemia de novo inexplicável, eventos cardíacos de novo (derrame
pericárdico, insuficiência cardíaca congestiva), elevadas doses de corticosteróides ou
tratamento prévio com ciclosporina e a presença de anticorpo anti-RNA polimerase III.
Esta síndrome é caracterizada por hipertensão arterial elevada, insuficiência renal
rapidamente progressiva, aumento da actividade da renina plasmática, anemia
hemolítica microangiopática e trombocitopénia. Pode também ocorrer derrame
pericárdico, insuficiência cardíaca congestiva, dispneia, cefaleia, convulsões, alterações
na fundoscopia e sedimento urinário.
293
hepático e esplénico. Outras alterações incluem trombocitopénia, morbilidade
obstétrica, enfarte testicular e prostático.
O SAAF Catastrófico surge como falência multi-orgânica num doente com SAAF,
embora possa ser esta a primeira manifestação da doença; é considerada uma
emergência auto-imune. Trata-se de um episódio clínico isolado e não de uma variante
da doença. Os factores precipitantes mais frequentes são cirurgia, infecções,
contraceptivos orais e anticoagulação ineficaz. A coagulação intravascular disseminada
é frequente e a morte ocorre em mais de 60% dos doentes. A plasmaferese pode ser
utilizada nos doentes que não respondam a outra terapêutica.
VASCULITES SISTÉMICAS
A maioria das vasculites são sistémicas e podem envolver vários órgãos. As vasculites
primárias podem atingir vasos de diferentes calibres – algumas das principais situações
urgentes estão enunciadas na Tabela 4, de acordo com o tipo de vasculite. As vasculites
secundárias podem estar associadas a uma DAI, como artrite reumatóide ou lúpus
eritematoso sistémico, ou podem ser secundárias a outras doenças, como sarcoidose,
neoplasias ou infecções bacterianas graves.
TIPO DE VASCULITE, POR CALIBRE DE VASO CONDIÇÃO CLÍNICA URGENTE
GRANDES VASOS
Arterite de Células Gigantes Perda de visão súbita
Insuficiência Vértebro-Basilar
Aortite
Arterite de Takayasu Angor, Enfarte Agudo Miocárdio
MÉDIOS VASOS
Poliarterite Nodosa Colite isquémica, enfarte mesentérico
Pancreatite
Glomerulonefrite aguda, nefropatia
isquémica
Hipertensão maligna
Enfarte Agudo do Miocárdio
PEQUENOS VASOS
Poliangeíte Microscópica Insuficiência Renal rapidamente progressiva
Hemorragia pulmonar
Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte Hemorragia Pulmonar por granuloma
necrotizante
Insuficiência Renal rapidamente progressiva
Granulomatose com Poliangeíte Miocardite
Insuficiência Renal rapidamente progressiva
Insuficiência respiratória (obstrução da via
aérea, hemorragia alveolar)
Síndrome Goodpasture (Ac.anti-MBG) Hemorragia alveolar
Insuficiência Renal rapidamente progressiva
Vasculite Ig A Vasculite Mesentérica
Síndrome nefrítico/nefrótico
Crioglobulinémia Púrpura, ulceração cutânea
Neuropatia periférica
Insuficiência renal
Tabela 4: Situações clínicas urgentes associadas a vasculites sistémicas, consoante o calibre do vaso afectado.
294
Em geral, as exacerbações de vasculites sistémicas requerem escalada do tratamento
imunossupressor, ou seja, corticosteróides, azatioprina, ciclofosfamida, ciclosporina,
imunoglobulina, micofenolato de mofetil ou rituximab, consoante o atingimento orgânico
e o diagnóstico específico. As situações potencialmente fatais são geralmente geridas
com pulsos de metilprednisolona. Caso se trate de uma situação inicial, a confirmação
do diagnóstico não deve atrasar a instituição da terapêutica.
A causa mais frequente de SPR nos adultos são as vasculites ANCA+, seguida pelas
situações mediadas por anticorpos anti-MBG. No entanto, podem surgir outras situações
que, embora menos frequentes, fazem parte do diagnóstico diferencial do SPR – Tabela
5.
295
CAUSAS DE SÍNDROME PULMÃO-RIM DE ORIGEM NÃO AUTO-IMUNE
Doença Cardiovascular – insuficiência cardíaca congestiva, doença valvular, tumores auriculares
Lesão renal com edema pulmonar
Alterações da hemostase – trombocitopénia, urémia, coagulação intravascular disseminada, fármacos
(anticoagulantes, antitrombóticos, antiplaquetários ou trombolíticos)
Barotrauma
Infecções – leptospirose, S. aureus, Legionella pneumophila, Hantavirus, malária
Eventos embólicos
Hipertensão maligna com insuficiência renal e cardíaca
Neoplasia – tumor primário do pulmão ou metástases
Toxinas – intoxicação a paraquat, solventes, cannabis, cocaína
Hemosiderose idiopática
Linfangioliomatose
Hemangiomatose capilar pulmonar
Tabela 5: Causas não auto-imunes de Síndrome Pulmão-Rim.
Figura 1: Algoritmo proposto para o diagnóstico e tratamento da Síndrome Pulmão-Rim. From Gutiérrez-Gonzaléz LA.
Rheumatologic Emergencies. Clin Rheumatol 2015. DOI 10.1007/s10067-015-2994-y.
296
LÚPUS ERITEMATOSO SISTÉMICO
O flare lúpico pode ser provocado por stress, exposição solar, abstinência/redução de
corticosteróides, gravidez, infecção, entre outras causas. A infecção deve ser excluída
em doentes lúpicos febris, antes de a febre ser atribuída ao LES. Uma contagem de
leucócitos baixa e proteína C reactiva normal favorece a actividade lúpica.
297
indicado. A resposta aos imunossupressores é fraca se apenas for utilizada
corticoterapia; a ciclofosfamida pode ser usada como fármaco co-adjuvante e há casos
descritos de boa resposta ao rituximab. As recidivas são frequentes.
O tratamento da SAM inclui terapêutica de suporte, que pode incluir passagem por
Unidade de Cuidados Intensivos, para terapêutica e monitorização, com controlo
hidroelectrolítico, transfusões de plasma fresco congelado, antibioterapia (se infecção);
do ponto de vista farmacológico, está recomendada a utilização de ciclosporina
associada a corticoterapia; em estudo estão novas abordagens terapêuticas com
fármacos anti-IL1 (canakinumab), anti-CD25 (daclizumab) e anti-IL6 (tocilizumab).
ARTRITE AGUDA
A artrite aguda pode representar uma situação de novo ou uma exacerbação de uma
artrite pré-existente. As causas de artrite de novo podem classificar-se em monoartrite
(artrite séptica, gota, trauma) ou oligo/poliartrite (artrite reactiva, artrite viral, febre
reumática, infecção a VIH, infecção gonocócica disseminada). Nas situações de artrite
séptica, deve ser feita artrocentese imediata, com análise bioquímica e microbiológica
do líquido sinovial, não esquecendo a pesquisa de cristais (microscopia polarizada). Na
Tabela 8 estão sumarizados alguns aspectos importantes a ter em consideração na
análise do líquido sinovial.
298
AVALIAÇÃO DO LÍQUIDO SINOVIAL
→ A amostra deve ser anticoagulada com heparina ou EDTA líquido.
→ A viscosidade, agregados de mucina, proteína, glicose, pesquisa de ANA e Factor
Reumatóide não fornecem informação fidedigna, pelo que não deve ser solicitados.
→ A contagem leucocitária, cultura, coloração de Gram, Ziehl Neelsen e identificação de
cristais deve ser realizada em todas as amostras.
→ A hiperviscosidade do líquido sinovial interfere com a contagem celular, pelo que deve
ser privilegiada a contagem manual.
→ A microscopia com luz polarizada é preferencial para a identificação de cristais.
Tabela 8: Aspectos particulares da avaliação do líquido sinovial.
• Artrite Séptica
Normalmente, apenas uma articulação é afectada, mas em 10-30% dos casos pode
haver envolvimento poli-articular; tipicamente são atingidas as grandes articulações,
como joelho e anca – Tabela 9. O Staphylococcus aureus é o agente mais frequente,
seguido pelo Streptococcus spp., os agentes Gram negativos e os anaeróbios; as
infecções gonocócicas devem ser suspeitadas em doentes sexualmente activos. A
tríade clássica de disseminação gonocócica inclui tenossinovite aguda, dermatite e
artrite. A tenossinovite é mais frequente no dorso das mãos e punhos, enquanto a artrite
afecta mais o joelho, tornozelo, punho e cotovelo. As lesões cutâneas são
maculopapulares, mas podem ser também pustulosas, vesiculares ou bolhosas. As
lesões génito-urinárias localizadas são pouco frequentes na infecção gonocócica
disseminada.
A aspiração de líquido sinovial é obrigatória nos doentes com artrite séptica e deve ser
colocado dreno se houver pus intra-articular. A análise citológica apresenta
299
tipicamente contagem leucocitária >50.000/mm3, com predomínio de neutrófilos, e os
níveis de glicose são baixos.
A artrotomia cirúrgica pode ser necessária nos casos de atingimento da anca ou ombros,
se co-existir osteomielite e se a infecção não estiver controlada ao fim de 5-7 dias de
drenagem articular. A antibioterapia deve ser endovenosa durante 14 dias (28 dias se
infecção a Staphylococcus ou agentes Gram negativo), seguida de antibioterapia oral
durante 2 a 6 semanas. Os fármacos usados para a doença gonocócica disseminada
são o ceftriaxone endovenoso, seguido de cefuroxime axetil ou amoxicilina/ácido
clavulânico; para as infecções a S. aureus, a ciprofloxacina ou levofloxacina; para os
agentes Gram negativos, os aminoglicosídeos.
300
LOMBALGIA
SITUAÇÃO CLÍNICA AGUDA CRÓNICA
ESPONDILARTROPATIAS Síndrome Reiter Espondilite Anquilosante
SERONEGATIVAS Artrite Reactiva Artrite Psoriática
Artrite Enteropática
Espondilartropatia indiferenciada
NEOPLASIAS Mieloma Múltiplo
Metastização lombar
INFECÇÕES Abcessos epidurais Mal de Pott
METABÓLICAS Fractura osteoporótica Doença de Paget
MECÂNICAS Prolapso disco intervertebral Estenose canal lombar
Espondilose
Espondilolistese
DOR IRRADIADA Doença inflamatória pélvica Tumor pancreático
Cistite
Prostatite
Pancreatite
OUTRAS Rotura de aneurisma da aorta Psicossomática
abdominal Simulação
Dissecção da aorta
Tabela 10: Diagnóstico diferencial de lombalgia.
Considerações finais
O diagnóstico de algumas DAI assenta em exames imunológicos e biópsias, que podem
demorar mais de 10 dias até serem conclusivos – mais no caso dos anticorpos anti-
fosfolípido, que deverão ser repetidos ao fim de 12 semanas, para excluir a possibilidade
de falsos positivos. Em situações urgentes, são os testes laboratoriais de rápido
processamento que ajudam na decisão terapêutica até confirmação do diagnóstico –
por exemplo, as proteínas de fase aguda, como a proteína C reactiva e velocidade de
sedimentação, os doseamentos de C3 e C4 (que avaliam a via alterna e clássica
simultaneamente), o factor reumatóide, o VDRL, o teste de Coombs, a pro- calcitonina
e o fibrinogénio. A confirmação do diagnóstico de uma DAI não deve atrasar a instituição
de terapêutica adequada.
ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA:
- Abordar o doente como um todo, de acordo com o algoritmo em situações graves: airway, breathing,
circulation, disability, exposure;
- Identificar lesões de órgão-alvo: enquadrável em DAI conhecida? Efeito de medicação? Infecção
intercorrente?
- A história clínica é fundamental: saber história pessoal ou familiar de doenças auto-imunes, uso de
anticonceptivos orais, eventos trombóticos passados, episódios de púrpura, úlceras ou abortos.
- No exame objectivo, não esquecer de avaliar a pele e pesquisar sinais como livedo reticular,
fenómeno de Raynaud, lesões peri-ungueais, pápulas de Gottron, eritema malar, fotossensibilidade ou
hemorragias em estilhaço.
- Alguns testes laboratoriais podem ajudar a orientar o diagnóstico: velocidade de sedimentação,
proteína C reactiva, fibrinogénio, pro-calcitonina, VDRL, C3, C4, Factor Reumatóide, Teste de Coombs.
- A suspeita de infecções não deve atrasar o início da terapêutica com imunossupressores ou
corticosteróides – ter em conta que o doente está hospitalizado, monitorizado e gravemente doente.
301
TAKE HOME MESSAGES
- As DAI são doenças sistémicas com amplo espectro de apresentação e
gravidade.
- As situações de urgência/emergência podem corresponder a flare de doença ou
a manifestação inicial.
- A maior parte dos doentes está sob tratamento imunossupressor, que tem efeitos
adversos e secundários importantes, dos quais se destacam as infecções.
- As DAI podem apresentar complicações graves, com necessidade de UCI.
Bibliografia
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• Gutiérrez-Gonzaléz LA. Rheumatologic Emergencies. Clin Rheumatol 2015. DOI
10.1007/s10067-015-2994-y.
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refractory case without lúpus activity. Reumatol Clin 2013; 9: 373-5.
• Quintero OL, et al, Autoimmune diseases in the intensive care unit. An update, Autoimmun Rev
(2012), doi:10.1016/ j.autrev.2012.06.002
• Slobodin G et al. The emergency room in systemic rheumatic disease. Emerg Med J 2006; 23:
667-671.
• Núñez MAR et al. Motivos de consulta de pacientes con enfermedades autoinmunes sistémicas
en el servicio de urgencias de un hospital terciario. Rev Med Chile 2015; 143:1546-1551.
302
4. GRAVIDEZ NAS DOENÇAS AUTO-IMUNES
Introdução
As doenças auto-imunes (DAI) são mais prevalentes em mulheres, sobretudo em idade
reprodutiva. Com a evolução do conhecimento sobre a patogénese das DAI, bem como
o aparecimento de novos fármacos imunossupressores, a abordagem à mulher grávida
ou em amamentação com patologia auto-imune obriga a uma abordagem baseada na
relação benefício/risco da mãe e do feto/criança. Deste modo, o planeamento familiar
nestas doentes assume uma importância fundamental, beneficiando de um
acompanhamento multidisciplinar, que inclua o ginecologista- obstetra, o especialista
em DAI e o médico dos cuidados de saúde primários. Assim sendo, é importante ter
algumas noções sobre as alterações fisiológicas que ocorrem durante a gravidez, qual
o comportamento das diversas patologias durante a gravidez e potenciais complicações,
bem como a familiaridade com os fármacos habitualmente administrados nestas
patologias.
12
Linfócito T helper tipo 2
303
A nível gastrointestinal, o útero grávido, bem como o efeito relaxante muscular da
progesterona, podem levar a sintomas de refluxo gastroesofágico e obstipação. Por
outro lado, diminui a produção de ácido clorídrico no estômago, diminuindo a incidência
de úlceras e melhorando as pré-existentes.
Fig. 1: A – Alterações na fisiologia pulmonar durante a gravidez; B – Alterações na taxa de filtração glomerular durante a
gravidez. From Lapinsky SE, Kruczynski K, Slutsky AS: Critical care in the pregnant patient, Am J Respir Crit Care Med
152:427–490, 1995
Durante a gravidez, a placenta produz uma série de hormonas, que podem alterar
algumas funções basais. Em primeiro lugar, existe a produção de uma hormona
relacionada com a TSH13, que leva ao aumento da glândula tiroideia e produção de
hormonas tiroideias. Isto não se reflecte num aumento real de hormonas tiroideias livres,
uma vez que existe um aumento da produção de globulina pelo fígado, embora alguns
sintomas da gravidez, como taquicardia, aumento da sudação e instabilidade emocional
possam ser atribuídos a esta alteração. A placenta produz também CRH, que aumenta
a produção de ACTH e, por conseguinte, de cortisol, levando a edema e insulino-
resistência. Existe também a produção de MSH, que resulta em aumento da
pigmentação em fases tardias da gravidez. Durante este período, existe ainda um
aumento do volume da hipófise e aumento da produção de prolactina, importante na
iniciação e manutenção da lactação.
13 TSH:
thyroid secreting hormone; CRH: corticotropin-releasing hormone; ACTH: adrenocorticotropic
hormone; MSH: melanocyte-stimulating hormone.
304
Do ponto de vista dermatológico, a hiperpigmentação, resultante do aumento da
produção de estrogénio, progesterona e MSH, ocorre sobretudo nas regiões fontais,
malar, pregas e linha branca; por vezes confunde-se com o eritema malar do LES. Pode
também haver eritema palmar e aranhas vasculares.
Até há alguns anos, a gravidez em mulheres com LES era desaconselhada. Esta
abordagem já não se aplica actualmente, mas há que ter em atenção que existe um
maior risco de complicações, que vai depender das circunstâncias particulares da
doente. Em cerca de 13-60% das doentes, ocorre exacerbação do LES. São mais
frequentes nas doentes com doença activa antes da concepção, nas que tiveram
múltiplas exacerbações prévias ou nas que têm nefrite lúpica. As complicações mais
frequentes manifestam-se a nível cutâneo, hematológico, articular e renal. O tratamento
destas exacerbações pode incluir a hidroxicloroquina, corticoterapia (de preferência em
baixa dosagem), azatioprina e anti-inflamatórios não esteróides, sem riscos acrescidos
para a mãe e para o feto.
14
HELLP: síndrome que ocorre durante a gravidez, como complicação da pré-eclâmpsia, que inclui Hemólise, elevação
das enzimas hepáticas (Elevated Liver enzymes) e trombocitopénia (Low Platelet count).
305
Figura 2: Alterações laboratoriais na pré-eclâmpsia e na nefrite lúpica.
A perda fetal pode ocorrer por aborto espontâneo, nado-morto ou morte neo-natal. Está
relacionada com nefrite lúpica activa (sobretudo se TFG < 60 mL/min ou proteinúria > 1
g / 24h), doença activa (título de anticorpo anti-dsDNa elevado e consumo das fracções
C3 e C4 do complemento), síndrome do anticorpo anti- fosfolípido, trombocitopénia no
1.º trimestre e HTA não controlada no 1.º trimestre.
O parto pré-termo é uma complicação que surge associada às doentes com nefrite
lúpica, LES em actividade, HTA, pré-eclâmpsia e SAAF.
Outras complicações incluem baixo peso à nascença (<2500g), bebé leve para a idade
gestacional (LIG) (percentil <10) e restrição de crescimento intra-uterino (RCIU)
(percentil <5). Estão também associadas à nefrite lúpica, LES em actividade, HTA,
hipoalbuminémia, SAAF e presença de anticorpo anti-Smith.
Figura 3: Lúpus Neonatal (A – Ovalle M. The Many Faces of Lúpus: an approach to the assessment of a lúpus patient.
Clinical Medicine and Diagnostics 2013; 3 (2): 11 -17. ; B – Peres MF et al. Neonatal lúpus erythematosus: a report of
four cases. An. Bras. Dermatol. 2011, 86 (2).; C – Baselga E, et al. Immunologic, Reactive and Purpuric Disorders).
306
imunoglobulina endovenosa é controversa, mas a hidroxicloroquina pode ser protectora.
À excepção do bloqueio cardíaco, as restantes alterações resolvem ao fim de 3-6
meses.
Dermatomiosite / Polimiosite
307
Abordagem da mulher em idade reprodutiva e doença auto-imune
Nas doentes com DAI deve ser providenciado aconselhamento a todas as mulheres,
sendo adequado o método contraceptivo à patologia de base, sob uma abordagem
multidisciplinar. A gravidez deve ser desaconselhada nos casos de hipertensão
pulmonar, doença renal crónica em estadios 4/5 (sobretudo se proteinúria >1 g /24
horas; nestas situações há risco de pré-eclâmpsia, morte fetal, progressão da doença
renal e necessidade de técnica de substituição renal), DAI activa e SAAF com
complicações recorrentes. Considerar também outras complicações como contra-
indicação: cardiomiopatia, doença valvular, doença intersticial pulmonar ou
manifestações neurológicas graves.
Nas doentes com DAI que expressem o desejo de engravidar deve ser adiada a
concepção até a doença estar controlada durante pelo menos 6 meses. Se a gravidez
já estiver estabelecida, devem ser suspensos os fármacos com risco teratogénico,
estabelecida uma vigilância apertada, providenciado controlo das exacerbações e
monitorização das complicações.
CATEGORIA DA FDA
A Estudos bem controlados em grávidas não demonstraram risco para o feto.
Estudos em animais não demonstraram risco (e não há estudos em humanos) ou estudos em
B animais mostraram risco e não há estudos em grávidas no 1º trimestre (sem evidência de risco
nos 2º e 3º trimestres).
Estudos em animais sugerem riscos e não há estudos em grávidas, mas o benefício é aceitável
C
face aos riscos.
Existe evidência de risco para o feto em estudos em humanos, mas o benefício é aceitável face
D
aos riscos.
Estudos em humanos ou animais demonstraram claro risco para o feto, e os riscos ultrapassam
X
claramente qualquer potencial benefício.
308
FÁRMACO CATEGORIA
AINE C/D (3º trimestre)
Corticosteróides B (prednisolona) / C (outros)
Hidroxicloroquina C
Azatioprina D
Sulfassalazina B
Ciclosporina C
Tacrolimus C
IGIV C
Tabela 2: Fármacos e categoria de teratogenicidade segundo categorias da Food and Drug Administration.
A azatioprina não está associada a risco para o feto, mas pode associar-se a LIG e parto
pré-termo. A sulfassalazina é também um fármaco seguro mas, dado que inibe a
absorção de ácido fólico, deve ser feita suplementação pelo menos 3 meses antes da
concepção.
FÁRMACO CATEGORIA
Metotrexato X
Micofenolato de mofetil D
Leflunomida X
Ciclofosfamida D
Varfarina X
Tabela 3: Fármacos e categoria de teratogenicidade segundo categorias da Food and Drug Administration
309
e defeitos da crista neural. Deve ser descontinuado 12 semanas antes da concepção e
deve ser feita suplementação com ácido fólico em alta dose.
A leflunomida deve ser descontinuada pelo menos 2 anos antes da concepção; caso
contrário, deve ser realizado o protocolo de eliminação através da colestiramina (8g, 3id,
durante 11 dias, até níveis indetectáveis) pelo menos 6 meses antes da concepção. Se
ocorrer uma gravidez não planeada, deve ser realizado o protocolo de colestiramina sob
monitorização.
FÁRMACO CATEGORIA
ANTI-TNF:
Infliximab
Adalimumab
B
Certolizumab
Golimumab
Etanercept
RITUXIMAB C
ABATACEPT C
TOCILIZUMAB C
BELIMUMAB C
Tabela 4: Fármacos e categoria de teratogenicidade segundo categorias da Food and Drug Administration
Relativamente aos fármacos anti-TNF alfa, têm surgido cada vez mais estudos e a
experiência com a sua utilização mostra um perfil de segurança adequado, não se
preconizando a interrupção da gravidez nos dois primeiros trimestres. Os resultados
disponíveis, mostram inclusive que não houve efeitos adversos no desenvolvimento
físico e neurocognitivo ou alterações da imunocompetência em crianças até 1 ano de
idade. A terapêutica deve ser interrompida idealmente no 3.º trimestre: etanercept às
32 semanas, infliximab às 21 semanas e adalimumab às 28 semanas. Quando
administrados após o tempo de suspensão recomendado, podem aumentar o risco de
infecção pós-natal. O perfil de segurança do certolizumab necessita de maior validação
em estudos mais alargados. Nestes bebés devem ser adiadas as vacinas vivas (BCG e
Rotavírus) até aos 6 meses de idade. Quando possível, o doseamento dos níveis de
fármaco em circulação pode contribuir para a decisão sobre o momento adequado de
vacinação.
Quanto aos outros fármacos biológicos, sobretudo os que surgiram nos últimos 5 anos,
ainda não há dados suficientes, mas sabe-se que há um risco de supressão grave dos
linfócitos B com o Rituximab. Em cada caso, deve ser avaliado o risco- benefício.
310
Os novos anticoagulantes orais ainda não foram testados em doentes grávidas, não
estando ainda sequer aprovados nos doentes com SAAF.
Amamentação
Durante o período de amamentação, as restrições medicamentosas são semelhantes
às do período da gravidez. Assim sendo, os fármacos compatíveis são: AINEs,
corticóides (tomar imediatamente após ou >4h após a toma), hidroxicloroquina,
sulfassalazina, azatioprina, ciclosporina, tacrolimus, IgIV e biológicos (consoante a
categoria). Os fármacos contra-indicados na amamentação são: metotrexato,
micofenolato de mofetil, leflunomida e ciclofosfamida. Particularizando fármacos
utilizados na ES, a nifedipina pode ser utilizada durante a gravidez e amamentação, em
doses inferiores a 60 mg/dia; quanto aos vasodilatadores pulmonares (sildenafil,
bosentano e prostaciclinas), ainda não há estudos suficientes.
Conclusão
As DAI são frequentes em mulheres em idade fértil, pelo que é importante abordar as
questões relacionadas com a concepção desde o início do seguimento. O planeamento
familiar deve ser alvo de abordagem multidisciplinar e a anticoncepção deve ser
ajustada à doente e à sua patologia. Há situações em que a gravidez deve ser
fortemente desaconselhada, como a hipertensão pulmonar.
ASPECTOS PRÁTICOS
SERVIÇO DE URGÊNCIA: grávidas com DAI = 2 DOENTES – avaliar progressão ou
complicações da doença de base na mãe; avaliar possibilidade de complicações no
feto; abordagem multidisciplinar.
311
Bibliografia
• Desai R et al. Risk of serious infections associated with use of immunosuppressive agents in
pregnant women with autoimmune inflammatory conditions: cohort study. BMJ 2017; 356:j895.
• Flint J et al. BSR and BHPR guideline on prescribing drugs in pregnancy and breastfeeding – Part
II: analgesics and other drugs used in rheumatology practice. Rheumatology 2016; 55: 1698- 1702.
• Kavanaugh A et al. Proceedings From the American College of Rheumatology Reproductive Health
Summit: The Management of Fertility, Pregnancy, and Lactation in Women With Autoimmune and
Systemic Inflammatory Diseases. Arthritis Care & Research 2015; 67 (3): 313- 325
• Soh MC et al. High-risk pregnancy and the rheumatologist. Rheumatology 2014; 269
• Saavedra Salinas MÁ, et al. Guías de práctica clínica para la atención del embarazo en mujeres
con enfermedades reumáticas autoinmunes del Colegio Mexicano de Reumatología. Parte 1.
Reumatol Clin. 2015.
• Saavedra Salinas MÁ, et al. Guías de práctica clínica para la atención del embarazo en mujeres
con enfermedades reumáticas autoinmunes del Colegio Mexicano de Reumatología. Parte 2.
Reumatol Clin. 2015.
• Skorpen CG et al. The EULAR points to consider for use of antirheumatic drugs before pregnancy,
and during pregnancy and lactation. Ann Rheum Dis 2016; 0; 1-16.
312
5. OSTEOPOROSE
Introdução
A osteoporose é caracterizada por diminuição da massa óssea e deterioração da
microarquitectura do tecido ósseo, com consequente aumento da fragilidade óssea e
susceptibilidade a fracturas. Embora o diagnóstico da osteoporose assente na avaliação
quantitativa da densidade mineral óssea, que é um determinante major da força óssea,
o significado clínico da osteoporose assenta nas fracturas que daí advêm. Locais
frequentes para fracturas osteoporóticas incluem a coluna, anca, antebraço e úmero
proximal, representando uma causa major de morbilidade na população. As fracturas da
anca podem causar dor aguda e perda de função e conduzem quase sempre a
hospitalização. A recuperação é lenta e a reabilitação muitas vezes incompleta, sendo
que muitos doentes ficam permanentemente institucionalizados.
Osteopénia (baixa
- 2,5 < T < -1
massa óssea)
T ≤ - 2,5 Osteoporose
Nas mulheres pré-menopáusicas com factores de risco major para facturas, deve ser
utilizado o índice < -2 para definição de osteoporose (índice >, expressão em desvios-
313
padrão da DMO do indivíduo em estudo por comparação com a DMO de um grupo com
a mesma idade e sexo).
Tabagismo activo
314
Avaliação de Risco de Fractura
A avaliação clínica na osteoporose pretende determinar a existência de baixa massa
óssea, mas também identificar os indivíduos com elevado risco de fractura. O uso da
massa óssea apenas é insuficiente para determinar em que doentes intervir e, por isso,
têm sido desenvolvidas ferramentas de cálculo de risco como o FRAX®.
O risco de fractura é calculado a partir da idade, IMC e factores de risco, como fractura
de fragilidade prévia, história de fractura da anca de um dos progenitores, tabagismo
activo, outras causas de osteoporose secundária e consumo de álcool. A densidade
óssea do fémur pode ser introduzida opcionalmente para aumentar a predição de risco
de fractura (Figura 1).
Assim, pode admitir-se que se deve avaliar o risco de fractura usando FRAX® e realizar
a avaliação de densidade óssea nos seguintes doentes:
315
Figura 1: Imagem da página https://www.sheffield.ac.uk/FRAX/ onde se pode aceder à ferramenta FRAX® ajustada para
a realidade portuguesa.
Figura 2: Avaliação de risco de fractura em países com fácil acesso a DEXA. A DEXA é realizada em mulheres com
factores de risco. Avaliação com DEXA e/ou tratamento não é recomendado onde a probabilidade do FRAX é inferior ao
limiar de avaliação (área verde). A avaliação da densidade óssea é recomendada nos restantes casos e o tratamento é
recomendado quando a probabilidade de fractura excede o limiar de intervenção (linha a tracejado).
316
Abordagem terapêutica geral
Além das medidas farmacológicas, podem ser instituídas alterações do estilo de vida,
hábitos alimentares e actividade física, com vista a modificação de factores de risco para
a osteoporose. Com estas medidas pretende-se manter a massa óssea e prevenir as
fracturas de fragilidade - Tabela 3.
1. Em toda a população
1.1 Alimentação
- assegurar aporte alimentar adequado de cálcio e vitamina D
Cálcio: ingestão diária ≥ 900 mg (limite superior adequado 2500 mg)
Vitamina D: valores mínimos adequados para < 60 anos: 5 ug/dia, ≥60 anos: 10 ug/dia (limite
superior 50 ug/dia)
- manter consumo proteico adequado às necessidades
- evitar consumo excessivo de cafeína, álcool, tabaco e sódio
1.2 Actividade física
- fomentar a prática de exercício/desportos com impacto em crianças e adolescentes;
exercício com carga/impacto em adultos ao longo da vida
2. Mulheres pós-menopáusicas e idosos
- assegurar aporte alimentar adequado de cálcio e vitamina D
- exercícios com carga/impacto
3. Idosos com risco de queda – Prevenção de fractura
- programas de exercício adaptados individualmente: marcha, fortalecimento muscular, treino
de postura e equilíbrio
- utilização de protectores das ancas
Tabela 3: Medidas não farmacológicas para prevenção de osteoporose
Tratamento
O tratamento farmacológico pretende reduzir o risco de fracturas.
317
Bifosfonatos
O ibandronato diário (na dose de 2,5 mg) reduz o risco de fracturas vertebrais em 50-
60%, enquanto que um efeito nas fracturas não vertebrais foi apenas mostrado numa
análise post hoc de mulheres com um T Score basal inferior a -3.
318
levando a um aumento na massa óssea e a uma melhoria na arquitectura do esqueleto.
Ranelato de Estrôncio
A dose diária recomendada é 2 gramas por via oral. A absorção é reduzida por alimentos
como leite e derivados e, assim, o fármaco deve ser administrado entre refeições;
idealmente, deverá ser tomado ao deitar, pelo menos 2 horas após o jantar. Não é
necessário nenhum ajuste de dose em relação com a idade ou com doença renal ligeira
e moderada (clearance de creatinina 30-70 mL/min). Em doentes com clearance inferior
a 30 mL/min o ranelato de estrôncio não é recomendado.
319
suspenso em doentes em situações de elevado risco para trombose venosa como, por
exemplo, imobilização prolongada sem medidas de prevenção. De referir ainda que
foram reportados casos de reacção alérgica ao fármaco com eosinofilia e sintomas
sistémicos; se ocorrerem lesões cutâneas 2 meses após início do tratamento e se se
verificar esta reacção, deve ser suspenso o fármaco.
Denosumab
320
de salmão. Para uso clínico, pode ser administrado por injecção ou aplicação nasal,
sendo que esta última formulação fornece uma actividade biológica de 25 a 50% quando
comparada com a formulação injectável (200 IU de calcitonina nasal será equivalente a
50 UI da formulação injectável).
Derivados da Vitamina D
321
Vigilância e monitorização de eficácia de tratamento
A avaliação da densidade de massa óssea pode ser feita periodicamente dependendo
do valor inicial da massa óssea, da idade do doente e se foi instituída terapêutica:
• Em doentes com mais de 65 anos, com primeira DEXA sem alterações, não é
necessário repetir o exame;
• Em mulheres peri-menopausa com primeira DEXA normal, deve repetir-se o
exame pós os 65 anos;
• Em doentes com osteoporose que estejam sob terapêutica dirigida a nova DEXA
não deve ser repetida antes de 18 a 24 meses de terapêutica, podendo ser
realizada após 2 anos. Poderão ser excepções a esta regra doentes sob
corticóides em elevada dose, sob agonistas GnRH e após ooforectomia;
• Se a primeira DEXA mostrou osteopenia, a repetição do exame deverá ser
avaliada caso a caso, dependente da idade do doente e do índice T, embora
deva ser realizada apenas após 3 a 5 anos.
Não está esclarecido se existe uma dose mínima de corticóide que seja segura para o
osso – alguns autores determinaram uma dose de 5 mg de prednisolona (ou
equivalente) como limite inferior para dose deletéria para o osso. No entanto, um estudo
retrospectivo posterior documentou um aumento do risco relativo de fractura vertebral
para doses inferiores a 2,5 mg por dia de prednisolona e do risco relativo de fractura do
colo do fémur para doses superiores a 2,5 mg por dia.
322
Nos doentes sob corticóides é fundamental corrigir os factores de risco modificáveis
para osteoporose, adquirir hábitos dietéticos saudáveis, realizar exercício físico regular
e cumprir terapêutica com cálcio e vitamina D, no sentido de prevenir o aparecimento
de osteoporose.
Bibliografia
• EULAR Textbook on Rheumatic Diseases, Second Edition, 2015. ISBN: 978-0-7279-1924-3
• European guidance for the diagnosis and management of osteoporosis in postmenopausal
women, J.A.Kanis et al, 2013, Osteoporos Int; 24:23-57
• Recomendações para o diagnostic e terapêutica da osteoporose, V. Tavares, H. Canhão, et al.,
2007, Act Reum Port, 32:49-59
• Osteoporose induzida por corticoids, José Pedro Patrício et al, ArquiMed, 2006
• Glucocorticóide-induced osteoporosis: treatment update and review, Lisa-Ann Fraser and
Jonathan D. Adachi, 2009, Ther Adv Musculoskel Dis, 1(2): 71-85
323
ANEXO I – LISTA DE ANTICORPOS
ANTICORPOS AR LES SAAF SSJ ES DMTC DM PM SAS MNAI MCI DII CBP HAI CEP GPA
Anti-CCP X
Factor
X X X X X
Reumatóide
ANA X X X X X X X X X X
Anti-dsDNA X X X X
Anti-Sm X
Anti-
X
nucleossoma
Anti-histona X
Anti-P
X
ribossómico
Anti-cardiolipina X X X
Anti-β2-
X X X
glicoproteína
Anticoagulante
X X X
lúpico
Anti-U1-RNP X X X
Anti-SSA/Ro X X X X X X X
Anti-SSB/La X X X
Anti-Ro52 X X X X X X
Anti-riboRNP X X X
Anti-Centrómero X X
Anti-Scl 70 X
Anti-Ku X X X X X
Anti-RNA
X X
polimerase III
Anti-PM/Scl X X X
Anti-Th/To X X
Anti-U3-RNP X
Anti-fibrilharina X
Anti-NOR-90 X X X
Anti-Jo1 X X X
Anti-Mi2 X
Anti-SRP X
Anti-cN1A/anti-
X
NT5C1A
Anti-TIF1γ X
Anti-HMGCR X
Anti-MDA5 X
Anti-tRNA
X
sintetase
Anti-Músculo
X X
Liso (ASMA)
Anti-mitocôndria
X
(AMA)
Anti-f-actina X
Anti-LKM1 X
Anti-citosol X
Anti-gp210 X
Anti-sp100 X
Crioglobulinas X
ANCA-C X X
ANCA-P X X X
ASCA X
324
325