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Edward Tylor e a !

"#$%#&'()#'$ evolução
religiosa da humanidade

FREDERICO DELGADO ROSA

resumo Contrariamente a  certas ideias fei- cem apenas uns quantos parágrafos do primei-
tas  sobre a Antropologia vitoriana, o presente ar- ro ou do segundo capítulo, os preferidos das
tigo procura demonstrar que Edward Tylor não compilações e justamente aqueles que mais in-
procurou acentuar as diferenças entre nós e os sel- duzem em erro quando separados do resto (Cf.
vagens, mas, pelo contrário, demonstrar a comu- Erickson & Murphy, 2008; McGee & Warms,
nhão profunda entre as religiões de uns e outros. 2008). Porquê perder tempo com dois pesa-
A humanidade dita civilizada não vivia num está- dos volumes de 1871, num total de cerca de
dio de ciência, mas num mundo impregnado de mil páginas de teoria obsoleta e de etnogra-
animismo, de caóticas contradições entre as cren- fia pré-moderna em segunda mão? Para tentar
ças adaptadas pela erudição teológica, as meras responder a essa pergunta é necessário antes
sobrevivências sem sentido e os ressurgimentos de de mais devolver a Tylor o seu próprio pensa-
fenómenos espiritistas que se julgavam há muito mento, passando por cima de algumas ideias
desaparecidos. Mais do que um exemplo de evo- feitas. O presente artigo pretende contribuir
lucionismo dogmático, sua obra Primitive Culture para isso, na convicção de que uma surpresa
é uma tentativa de responder à questão das repeti- espera aqueles que se derem ao trabalho de
ções de conteúdo e das limitações flagrantes ou bá- ler Primitive Culture na íntegra (Cf. Stringer,
sicas do pensamento humano, em todos os tempos 1999, p. 542). Para não ficarmos encerrados
e lugares, em matéria de imaginação de entidades em leituras de antiquário que muitas vezes só
sobrenaturais. Questão demasiado ambiciosa ou interessam aos especialistas, trata-se igualmen-
demasiado ingénua, foi abandonada pela Antropo- te de explorar novas mensagens nos livros anti-
logia do século XX e continua sem outra resposta. gos, como vem advogando a canadiana Regna
palavras-chave Animismo. Edward Tylor. Darnell (2001), em alternativa ao historicismo
Evolucionismo. Religião. exacerbado de George W. Stocking Jr.
Uma das ideias correntes acerca dos antro-
Em qualquer manual ou coletânea de textos pólogos evolucionistas vitorianos consiste em
do passado da Antropologia, Edward B. Tylor dizer que eles estabeleciam de forma rígida as
(1832-1917) é presença obrigatória. Aconte- etapas de evolução social ou cultural da hu-
ce que sua obra-prima, Primitive Culture, tem manidade e que, para caraterizar cada etapa,
sido objeto de leituras parcelares e apressadas selecionavam determinados povos da atuali-
ou simplesmente de falta de leitura. Regra ge- dade, dos mais “primitivos” aos mais “civili-
ral, os estudantes universitários do século XXI, zados”. Criou-se então o termo pejorativo de
para não falar dos próprios docentes, conhe- evolucionismo unilinear, para se referir a essa

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doutrina segundo a qual havia uma linha de verdadeiramente queria dizer é que havia uma
progresso ao longo da qual se distribuíam as civilização selvagem – ou seja, a cultura primi-
várias culturas. É verdade que alguns autores tiva do título da obra – e uma civilização civi-
foram evolucionistas unilineares, mas nem lizada (passe o pleonasmo), conservando esse
todos o foram e, sobretudo, “o mais sábio e último adjetivo um duplo sentido, pois tinha
mais equilibrado”, aquele que exerceu maior uma conotação suplementar de sofisticação
influência no seu tempo, Edward Tylor, segu- cultural associada basicamente à escrita. De
ramente não foi um evolucionista unilinear uma forma ou de outra, a ideia geral de que o
(Kroeber, [1950] 1993, p. 220). Ele era mui- progresso tinha marcado a história da huma-
to cauteloso quanto a estabelecer uma escala nidade era tudo quanto bastava a Tylor para
de evolução e apenas sugeria essa ideia grosso cumprir seu verdadeiro objetivo de compara-
modo, como um pressuposto genérico de que ção entre o mundo dito selvagem e o mundo
a humanidade começara sua caminhada numa dito civilizado. E que objetivo era esse? Será
condição da qual estavam mais próximos, em que a dicotomia foi criada para acentuar as
termos relativos, os povos sem escrita ainda diferenças entre nós e os outros? Nós, os civi-
existentes. Tylor considerava no entanto uma lizados, e os outros, os selvagens? Não. O que
ilusão acreditar que o progresso das socieda- aconteceu foi exatamente o contrário.
des era coerente nos vários critérios, tecnoló- O grande objetivo da Antropologia de
gico, político, religioso etc. Não esqueçamos Tylor era demonstrar que o homem europeu,
que no século XIX, sobretudo nos anos 1860, e mais genericamente o homem dito civili-
e mesmo antes, foram precisas muitas discus- zado, estava profundamente impregnado de
sões, nomeadamente em Inglaterra, para de- selvajaria. Em analogia com Charles Darwin,
monstrar que não se tratava de descendentes que já havia demonstrado à burguesia e aristo-
de Adão e de Noé, decaídos e esquecidos de cracia vitorianas que dentro delas tinham um
um estado religioso e moral mais elevado, cuja primata, Edward Tylor queria pôr em evidên-
origem remontava a uma criação e revelação cia a costela culturalmente selvagem dos seus
divinas, como pretendia a ortodoxia bíblica. pares. A própria expressão tinha uma compo-
Constituiu-se então o conceito geral de sel- nente provocatória, não apenas em relação ao
vagens contemporâneos, para exprimir a ideia homem civilizado moderno, mas também em
– que Tylor sempre apresentava como uma hi- relação aos domínios sacrossantos da Antigui-
pótese – de que os povos sem escrita, ou tecno- dade Clássica, cujos peritos não queriam nem
lógica e politicamente frustres, representavam ouvir falar em comparações dos ilustres Gre-
em termos globais um nível cultural mais pró- gos e Romanos com os aborígenes australianos
ximo de uma condição primitiva. ou outros. O mesmo acontecia, aliás, com os
É muito difícil, no presente artigo, evitar especialistas da Índia e de outras áreas de ci-
o emprego um tanto cansativo dos termos sel- vilização urbana antiquérrima. Uma frase de
vagem e civilizado, mas o importante mesmo Andrew Lang, discípulo de Tylor, resume bem
é salientar que a ideia de selvajaria tinha so- o espírito iconoclasta da Antropologia vitoria-
bretudo um valor relativo. Tylor não preten- na: “O homem nunca pode ter a certeza de ter
dia dizer que os chamados selvagens eram fiéis expulsado o selvagem dos seus templos e do
representantes das origens e menos ainda que seu coração” (Lang, 1887, vol. I, p. 338). En-
eles não tinham cultura ou civilização, pala- contramos uma imagem similar no célebre The
vras sinónimas na sua obra. Assim, o que ele Golden bough de James Frazer (1890), quando

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este afirmava que caminhamos hoje sobre uma quer no descendente, mas conservando-se em
fina crosta por baixo da qual se revolve uma todos os casos uma essência comum de origem
matéria selvagem sempre pronta a entrar em pré-histórica.
erupção. Toda essa plêiade estava bem ciente Primitive Culture é um monumento à se-
de que, empiricamente falando, a ciência não melhança profunda e essencial das concepções
existia como estádio evolutivo. A realidade dos religiosas da humanidade inteira, e cada capí-
homens era contraditória e, em certo sentido, tulo da obra uma lição de comparatismo uni-
caótica. É portanto uma ideia preconcebida versal. Tratava-se de uma tipologia dinâmica,
acreditar que a Antropologia evolucionista bri- criando uma vasta série de categorias religiosas
tânica acentuava as fronteiras entre o mundo de muito longa duração. Estamos perante um
selvagem e o mundo civilizado. dos princípios fundamentais da Antropologia
E foi nesse contexto um tanto radical que a de Tylor, isto é, a ideia de desenvolvimento dos
caraterização da religião dos selvagens contem- diferentes artigos de fé primitivos. Não havia
porâneos ganhou protagonismo, por razões uma substituição de umas crenças por outras,
óbvias. Tylor constatava que todos os tipos de de acordo com uma sequência estabelecida
crenças das sociedades civilizadas, do presente de etapas de evolução religiosa, mas sim uma
ou do passado, tinham os seus equivalentes, de permanência de ideias pré-históricas, sujeitas a
uma forma ou de outra, em populações cujo progressivas e variadíssimas adaptações, de or-
grau de cultura era julgado mais arcaico, mais dem moral, filosófica, estética, etc. Tylor tinha
primitivo. Era como se as grandes nações não noção de que esses percursos respondiam às
tivessem inventado nada ou quase nada em idiossincrasias culturais dos diferentes povos,
matéria de artigos de fé, mas apenas herdado só que não era esse o objeto da sua pesquisa.
e adaptado uma série de crenças e rituais dos Primitive Culture é antes uma enciclopédia das
seus antepassados mais longínquos. Por exem- categorias religiosas da humanidade, sempre
plo, a metempsicose, ou seja, a transmigração identificáveis em todos os níveis de civilização
ou reencarnação das almas, era uma crença e, neste sentido, pode-se extrair da obra a ideia
que se encontrava tanto em povos selvagens da de um património ideológico de origem pré-
África Ocidental, da Austrália ou das Améri- -histórica.
cas, como em populações civilizadas, hindu- Convém precisar que os vários tipos de
ístas e budistas, dos meios urbanos da Ásia crenças não tinham uma distribuição neces-
meriodinal. Tylor não hesitava em reconhecer sária, nem no tempo, nem no espaço. Ainda
os fundamentos pré-históricos desse artigo de que a recorrência de algumas crenças fosse
fé, mas considerava naturalmente que Hindu- especialmente acentuada, havia outras que
ísmo e Budismo tinham introduzido nele cer- estavam longe de ser universais. Por exemplo,
tas “subtilezas metafísicas” segundo o espírito a categoria específica de demónios noturnos
ético de contextos refinados ([1871] 1903, vol. que copulavam com homens ou mulheres era
I, p. 9-12). O mesmo resultado se repetia com identificada por Tylor nas Antilhas, na Nova
praticamente todas as concepções das grandes Zelândia, nas ilhas Samoa, na Lapónia e na Ín-
religiões politeístas da Antiguidade Clássica e dia, mas não em toda a parte. Curiosamente, a
Oriental e até, em certo sentido, das religiões leitura de Santo Agostinho permitia constatar
monoteístas, como veremos mais adiante. O que na Europa do séc. IV e V d.C. existiam
autor conseguia na verdade encontrar para- noções desse género entre as camadas popu-
lelos para tudo, quer no sentido ascendente, lares. Teólogos mais tardios, da Baixa Idade

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Média, foram responsáveis, segundo Tylor, por análoga (Tylor [1871] 1903, vol. I, p. 425-
incorporar tal crença no próprio seio da Igreja, 426; o itálico é nosso).
culminando no célebre manual dos inquisido-
res, Malleus Maleficarum. Era a oficialização O termo animismo, formado a partir do
imprevista dos famigerados íncubos e súcubos, latim anima, expressava a ideia de que todas as
cujos parceiros sexuais presumidos eram perse- categorias religiosas, todas as crenças em seres
guidos pelo Santo Ofício. (Tylor [1871] 1903, espirituais, com suas muitíssimas variedades,
vol. II, p. 189-191). seriam derivações psicológicas de uma catego-
Mas então, se havia essa variabilidade, com ria verdadeiramente omnipresente: a noção de
diferentes ideias em diferentes populações, alma. Dito por outras palavras, Tylor estava
como era possível agrupar todas elas, cana- persuadido que, entre todos, esse artigo de fé
lizando-as no tempo para um mesmo fundo tinha constituído na pré-história uma espécie
pré-histórico universal? Donde vinha a possi- de protótipo a partir do qual tinham sido for-
bilidade de criar o conceito de religião primiti- jadas, também logo na pré-história, todas as
va aonde toda a humanidade tinha ido beber? outras crenças. Já sabemos que as categorias se-
Essa possibilidade devia ter a ver forçosamente cundárias não eram forçosamente universais,
com a existência de certas caraterísticas es- pois sua presença variava consoante os povos,
senciais que lhes eram comuns. Em Primiti- mas tinham apesar de tudo uma essência co-
ve Culture, Tylor identificou-as, ou acreditou mum, uma essência animista, em relação com
identificá-las. O cimento, aquilo que lhe per- a noção de alma. Estava encontrada a ideia ele-
mitiu falar em cultura primitiva, e mais espe- mentar, a categoria aglutinadora do patrimó-
cificamente em religião primitiva, foi aquilo a nio ideológico selvagem. Tylor caraterizou-a
que ele chamou de animismo: da seguinte forma, a partir de uma compara-
ção etnográfica vastíssima:
Proponho aqui, através do termo animismo,
investigar a enraizada doutrina dos seres es- É uma imagem humana, imaterial, uma espécie
pirituais, que dá corpo à própria essência da de vapor, uma nuvem, uma sombra. É a causa
filosofia espiritualista, em oposição à materia- da vida e do pensamento no indivíduo que ela
lista. (...) O animismo carateriza tribos situa- anima. É dona da consciência e da vontade do
das muito na base da escala da humanidade, seu possuidor corporal, presente ou passado.
e daí ascende, profundamente modificado na Pode deixar o corpo longe de si e viajar rapi-
sua transmissão, mas conservando do princípio damente. É geralmente impalpável e invisível,
ao fim uma continuidade ininterrupta, até ao mas também suscetível de manifestar alguma
seio da cultura moderna mais elevada. (...) E propriedade física. Aparece aos homens durante
embora à primeira vista possa parecer uma ma- o sono, como um fantasma separado do corpo
gra definição mínima de religião, revelar-se-á mas conservando a sua aparência. Após a morte
suficiente na prática, pois onde estão as raízes, do corpo, ela continua a existir e a aparecer e
encontram-se os ramos. (...) Ao empregarmos tem a faculdade de entrar, dominar e agir no
o termo animismo para designar a doutrina corpo de outros homens, animais e mesmo em
dos espíritos em geral, estamos a afirmar que as objetos inanimados. Sem dúvida, estas carate-
ideias relativas às almas, aos demónios, às di- rísticas exatas da alma não são todas elas univer-
vindades e às outras classes de seres espirituais, sais, mas são suficientemente generalizadas para
são todas elas concepções com uma natureza apreendermos a ideia-tipo, com divergências

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mais ou menos acentuadas de povo para povo. espírito a partir da noção de alma separada do
É que estas ideias, que encontramos em toda a corpo. Em síntese, Deus não criara o homem
parte, não são produtos meramente arbitrários à sua imagem, mas sim o contrário (Cf. Sto-
e convencionais do espírito humano. Longe cking Jr., 1987, p. 195).
disso. São teorias que derivam forçosamente do Importa frisar que Tylor não via o concei-
testemunho indubitável dos sentidos, tal como to de alma e as derivações do mesmo como
o interpreta uma filosofia primitiva realmente etapas da evolução religiosa da humanidade,
consequente e racional. (Tylor, [1871] 1903, nem nunca utilizou a etnografia contempo-
vol. I, p. 429). rânea nesse sentido. As crenças elementares
não eram substituídas pelas derivações mais
É bem sabido que, segundo Tylor, a hu- complexas seguindo uma ordem sequencial.
manidade primitiva teria meditado sobre as Pelo contrário, todas as ramificações do ani-
causas de certos fenómenos biológicos, tais mismo eram basicamente simultâneas e de-
como o sono, o sonho, a doença, a morte, e tectáveis entre as populações primitivas ainda
chegado à conclusão muito natural de que existentes. Tratava-se pois de uma acumula-
cada indivíduo possuía uma alma separável do ção original das diferentes categorias, forjadas
corpo, cujas deslocações explicavam aqueles globalmente numa mesma condição pré-his-
fenómenos. Quando a alma deixava o corpo tórica, desde a noção de alma até diferentes
definitivamente, este morria. Mas se Tylor foi tipos de divindades, inclusive deuses supremos
muito criticado no século XX por falar em “fi- selvagens comparáveis aos das religiões mo-
lósofos selvagens”, na realidade ele não utili- noteístas, passando por algumas dezenas de
zava esse termo para caraterizar a inteligência categorias respeitantes à natureza, às funções e
ou a curiosidade intelectual acima da média de aos atributos de seres animados ou espirituais,
figuras singulares do passado pré-histórico da do totem ao vampiro, do fétiche ao espírito do
humanidade. Tratava-se antes de mecanismos vulcão, do anjo da guarda ao deus do mar. O
psicológicos elementares e universais, de mera índice geral de Primitive Culture representa, só
associação de ideias. O “filósofo selvagem” era por si, uma empresa classificatória. O quadro
a humanidade inteira, porque a psicologia hu- era completado com uma referência à magia.
mana pendia naturalmente para o animismo. Não se tratava, note-se bem, de um fenóme-
Tylor introduzia o conceito de religião natural no animista – ou religioso – pois não impli-
para exprimir esse caráter inevitável e univer- cava em si mesma seres espirituais. Derivava
sal ([1871] 1876, vol. II, p. 142). Com efeito, todavia de um processo elementar, para não
as demais categorias religiosas eram derivações dizer inelutável, de associação de ideias, fazen-
psicológicas do mesmo género. Havia em par- do parte integrante do património ideológico
ticular duas concepções básicas fundamentais pré-histórico, ao mesmo título que as manifes-
que resultavam diretamente da ideia de alma tações animistas.
e que permitiam compreender o surgimento Infelizmente, essa especificidade do evo-
de todas as categorias, incluindo os diferentes lucionismo tyloriano tem escapado a muitos
tipos de deuses. Por um lado, era a animação leitores da sua obra. A verdade é que não se
ou personificação da natureza, ou seja, a atri- deve equiparar Tylor a um John Lubbock, por
buição de uma alma a animais, plantas, mon- exemplo, que propunha no seu Origin of Civi-
tanhas e outros objetos exteriores. Por outro lization, de 1870, uma sequência propriamen-
lado, era a formação espontânea da noção de te unilinear de etapas religiosas sucedendo-se

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umas às outras. Eis alguns exemplos da falta dor, do teólogo e do filósofo, desenvolver e re-
de compreensão do alcance revolucionário do novar, ou degradar e abolir, os poderosos deuses
conceito de animismo na historiografia do sé- desses panteões ([1871] 1903, vol. II, p. 248).
culo XX. “(...) depois dos começos da religião
selvagem, absolutamente rudes ou simples, a Por reação ao degeneracionismo bíblico,
humanidade percorria uma série de fases que Tylor se recusava sem dúvida a colocar um
tinham uma validade universal e que condu- deus único na origem da religião, mas essa re-
ziam à religião monoteísta. Porque mais per- cusa era extensível a qualquer outra formação
feita, esta era colocada no fim, numa evolução animista. Na pré-história teria havido grande
natural” (Bianchi, 1965, p. 62). Após uma variedade de religiões, embora assentes em
breve exposição da sequência proposta por princípios comuns. Ele ia mais além e afirmava
Lubbock, Ugo Bianchi consegue transformar inclusive que os gérmens do monoteísmo e do
as ideias de Tylor numa teoria dos três estádios: próprio dualismo ético eram detectáveis entre
“Para Tylor, a sequência seguinte era válida: o alguns povos primitivos contemporâneos, o
animismo (dando por vezes lugar a fenóme- que não significava de forma alguma que toda
nos secundários, tal como o ‘fetichismo’), em a humanidade estivesse predestinada a acredi-
seguida o politeísmo e, por fim, o monoteís- tar num ser supremo. Mais tarde veio a acen-
mo. Só o ponto de partida variava consoante tuar a sua suspeição de que as ideias selvagens
os autores, uma vez que era o mais obscuro” dessa ordem eram, em muitos casos, devidas
(Op. cit., p. 96). Na verdade, cada qual pode a influências cristãs, sobretudo nas suas com-
encontrar em Primitive Culture a sequência de ponentes morais. O artigo “On the Limits of
evolução que quiser, atribuindo aos capítulos Savage Religion”, publicado em 1892, traduz
enciclopédicos um aspecto de etapas que só essa inflexão, mas o título escolhido constitui
existem na imaginação ou no preconceito do só por si uma prova de que o campo de ex-
leitor, e não no texto original. Por exemplo, tensão da religião primitiva era praticamente
Marcel d’Hertfelt, autor de um manual de his- ilimitado. Por um lado, o monoteísmo em
tória da Antropologia para estudantes univer- estado puro era uma ficção. Historicamente,
sitários, descobre em Tylor a seguinte ordem as religiões do Livro, e desde logo o Cristia-
evolutiva: crença na encarnação de espíritos, nismo, regorgitavam de concepções animistas
concepção de deuses da natureza, concepção para além da ideia de deus único, inclusive de
de deuses da atividade humana, e concepção outros seres espirituais com atributos divinos
de um deus único. (1992, p. 58). Ora, em ou maravilhosos. Por outro lado, Tylor con-
Primitive Culture as divindades do politeísmo tinuou identificando, mesmo nas edições ul-
antropomórfico integravam uma categoria teriores de sua obra, exemplos selvagens que
animista detectada em populações selvagens: entravam no capítulo da categoria religiosa do
deus supremo:
Os grandes deuses do politeísmo, numerosos e
elaboradamente definidos na teologia do mun- Se considerarmos que o critério do monoteísmo
do cultivado, não têm aí, contudo, seu primeiro consiste simplesmente na ideia de uma divinda-
aparecimento. Nas religiões dos povos mais ru- de suprema criadora do universo e chefe da hie-
des, seus tipos principais já estavam delineados, rarquia espiritual, então sua aplicação à teologia
e a partir daí (...) se tornou tarefa do poeta e do selvagem e bárbara conduzirá a consequências
sacerdote, do fazedor de lendas e do historia- surpreendentes. Povos da América do Norte e

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do Sul, da África, da Polinésia, são usualmente tindo pela simples razão de que um dia existiu.
e legitimamente considerados politeístas, mas (...) Podemos afirmar, de uma vez por todas,
segundo aquela definição o seu reconhecimen- que os usos desprovidos de sentido devem ser
to de um criador supremo (...) habilita-os ao sobrevivências, que eles tiveram uma intenção
mesmo tempo ao título de monoteístas ([1871] prática ou pelo menos um caráter de cerimónia
1903, vol. II, p. 332). no momento e no lugar onde surgiram, mas
que acabaram se tornando observâncias absur-
Associando a Antropologia à filosofia ma- das, porque foram transportados para um novo
terialista ou monista subjacente à ciência – por estado social onde sua significação desapareceu
oposição justamente à filosofia espiritualista (Tylor, 1871, I, p. 64-85).
ou animista – Tylor encarava a religião como
um processo de criação de imagens fantasiosas Como ilustração, o hábito europeu de sau-
sobre a realidade, seguindo embora uma lógica dar quando alguém espirrava era supostamente
natural e universal, porque simplesmente hu- uma sobrevivência da época muito longínqua
mana. Não era de estranhar que os antepas- em que essa repentina saída de ar era associa-
sados pré-históricos tivessem inventado tudo da à movimentação de entidades espirituais.
o que havia para inventar nessa matéria. Nem Tal era a crença viva de numerosas populações
podia ser de outra forma. E assim, a evolução selvagens, o que permitia reintegrar a sobrevi-
religiosa da humanidade era um processo si- vência no seu contexto psicológico original. O
multâneo de permanência e de transformação conjunto das tradições camponesas da Europa
do legado primitivo. Contudo, Tylor propu- contemporânea, aquilo a que se chamava de
nha, além do desenvolvimento, um segundo folclore, fornecia exemplos abundantes de so-
princípio interpretativo no estudo das relações brevivências. Com efeito, os camponeses eram
entre o homem selvagem e o homem civiliza- supostamente os descendentes das camadas
do. A par da adaptação progressiva das con- mais estagnadas da população, tendo conser-
cepções animistas, justificando de certa forma vado uma herança pré-histórica considerável.
a sua duração na História, as populações ditas O peso da tradição coletiva determinava a
civilizadas também conservavam traços selva- manutenção de usos cuja razão de ser tinha-se
gens que não tinham verdadeiro sentido no obliterado ao longo dos séculos. Por exemplo,
novo ambiente. Tratava-se de ideias e usos cuja continuava-se repetindo lendas fabulosas – os
manutenção era apenas devida ao conservado- chamados contos populares, que chegavam às
rismo irrefletido, ao peso atávico da tradição. crianças da cidade nas versões recolhidas pe-
Eram as sobrevivências, as sobrevivências na los irmãos Grimm e outros – sem que a exis-
civilização, ou survivals. Em Primitive Culture, tência real de suas personagens sobrenaturais
Tylor dedicava dois capítulos a essa questão, constituísse forçosamente um artigo de fé nos
tratada numa perspetiva teórica aprofundada. meios rurais do século XIX. Dito isto, o aspec-
Sob o seu impulso, a teoria das sobrevivências to incoerente, ou mesmo absurdo, dessas re-
se tornou um dos aspectos mais distintivos da presentações permitia supor que se tratava de
escola antropológica inglesa. Nas suas pala- sobrevivências de uma era em que esses seres
vras, uma sobrevivência era: imaginários não eram apenas personagens de
contos de fadas, mas verdadeiros agentes es-
(...) a persistência de uma ideia cujo sentido se pirituais que povoavam o universo. Por outro
perdeu há muito tempo, mas que continua exis- lado, havia crenças que permaneciam bem vi-

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vas, com lobisomens e afins no horizonte psi- nem sempre ele precisava se a permanência
cológico dos camponeses, mas a contiguidade histórica de uma crença ou de um rito de ori-
do folclore em relação aos centros urbanos gem selvagem num meio civilizacional mais
assegurava globalmente o seu estatuto de so- sofisticado era uma questão de sobrevivência
brevivência na civilização. De um modo geral, ou de desenvolvimento.
os fundamentos psicológicos que tinham es- Se a segunda hipótese sobressaía como uma
tado na origem de muitas tradições rurais da tendência maior ao longo da obra, era por vezes
Europa já não eram considerados tão atuantes de forma implícita. Tomemos como exemplo a
como entre os selvagens de além-mar. ideia de dream-soul, segundo a qual as almas
Mas esse é apenas um lado da questão, desencarnadas visitavam os vivos durante o
aplicado ao mero conservadorismo de tradi- sono. Tylor chegava ao ponto de dizer que ela
ções, outrora graves, que tinham adquirido era para os Gregos antigos exatamente o mes-
ao longo dos séculos um aspecto simples, mo que era para o selvagem contemporâneo, o
geralmente de merry-making ou distração que poderia indicar uma falta de adaptação ao
coletiva nos campos. James Frazer, seguidor espírito da época clássica e, por conseguinte,
de Tylor, iria explorar enormemente esse fi- uma forma de sobrevivência. Contudo, o ve-
lão no seu célebre The Golden bough (1890). redito nem sempre é fácil. É possível admitir
Mas que dizer de outro tipo de incongruên- que, segundo seu pensamento, muitas noções
cias bem ativas, como era o caso dos métodos primitivas persistiam quase inalteradas num
divinatórios e mediúnicos muito em voga novo estado social sem que no entanto fossem
nos salões vitorianos? Vivendo numa era de verdadeiras sobrevivências. Para empregar este
apogeu do espiritismo, Tylor considerava-o conceito com toda a legitimidade, seria então
uma flagrante contradição civilizacional e, preciso que de alguma forma se rompessem
por conseguinte, seria à primeira vista um os laços de coerência ou articulação entre o
excelente candidato ao título de sobrevivên- contexto social e a crença – ou que simples-
cia. Na verdade, podia tratar-se de um revi- mente houvesse uma perda de fé. A partir do
val mais do que um survival, o que reforça momento em que os Gregos no seu conjunto
um aspecto bem ousado da teoria tyloriana, acreditavam firmemente na dream-soul, talvez
ou seja, a perceção de que a humanidade fosse abusivo ver aí uma simples sobrevivência.
continuava, em todos os tempos, pendendo O conceito de sobrevivência parcial, ainda que
para o animismo, ou não fosse a sua religião nem sempre explicitado, revela-se útil nesses
natural, ancorada no próprio funcionamen- casos.
to da mente humana: “The thing that has Trata-se porém de uma das questões mais
been will be” ([1871] 1903, vol. I, p. 159). delicadas e ao mesmo tempo aliciantes da
Tylor repetia com frequência que as noções obra de Tylor. De um modo geral, quando
de desenvolvimento e de sobrevivência da- um elemento de origem pré-histórica estava
vam conta da maior parte das manifestações perfeitamente integrado no processo de evo-
religiosas reunidas em Primitive Culture, mas lução religiosa e civilizacional de cada socie-
havia de fato outros instrumentos concetuais dade, de acordo com uma nova sensibilidade
que podiam ser tomados em linha de con- intelectual, ética, artística etc., o conceito
ta ocasionalmente, tais como sobrevivência de sobrevivência se revelava inapropriado.
parcial, degenerescência, desaparecimento e Infelizmente, as nuanças teóricas entre as
ressurgência ou revival. De qualquer forma, noções de desenvolvimento e de sobrevivên-

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cia escaparam com frequência aos leitores de um sistema de filosofia religiosa que une
de Tylor, seja do século XIX, seja do século numa cadeia ininterrupta o selvagem adora-
XX. Assim se explica, entre outros, que um dor de fetiches ao cristão civilizado ([1871]
historiador tão reputado como John Burrow 1876, vol. I, p. 584).
tenha dito, no seu estudo de 1966, Evolution
and Society, que Tylor “declarava guerra às Notemos que as sobrevivências na civili-
sobrevivências” quando retraçava as origens zação podiam também sofrer manuseamentos
selvagens de certos elementos fundamentais de todos os tipos, mas ao contrário das cate-
do Cristianismo, como o batismo ou a con- gorias religiosas que se tinham desenvolvido
sagração (conversão do pão e do vinho no no sentido exato do termo, não estavam liga-
corpo e sangue de Cristo durante a eucaris- das de forma orgânica e harmoniosa às novas
tia) (1966, p. 256-257). Ora, Tylor não teria condições sociais e psicológicas. Sob uma rou-
utilizado o conceito de sobrevivência nesses pagem refinada podia se esconder uma perfei-
casos, mas sim o de desenvolvimento, alu- ta incongruidade cultural. Um bom exemplo
sivo a dezanove séculos de erudita teologia eram as relíquias do Catolicismo, que Tylor
trabalhando tais mistérios – um trabalho de considerava absurdos no respetivo tempo. O
desenvolvimento iniciado aliás (melhor di- barroco da talha dourada não fazia mais do
zendo, continuado) por ninguém menos que que camuflar a selvajaria dessa veneração com
Jesus Cristo. É curioso pensar que a própria bastos paralelos na etnografia exótica. Não é
posição de Tylor em matéria religiosa espe- de estranhar que a parafernália católica, com
lhava porventura essa delicada fronteira en- seu desfile secular de exorcismos e milagres,
tre a rejeição e a conciliação (Cf. Stocking íncubos e súcubos, ossadas macabras e quei-
Jr., 1987, p. 188-197). Ele tampouco dizia ma de bruxas, fosse bem rica de exemplos des-
que a definição cristã de alma imortal era sa ordem, muito apreciados por Tylor, ainda
uma simples sobrevivência do animismo sel- que os célebres revivals das seitas protestantes
vagem, despojada de sentido e de razão de norte-americanas também pudessem fornecer
ser, mas não hesitava em ligá-las pelo con- dados excelentes.
ceito de desenvolvimento. A noção de alma, O fato é que Tylor considerava indispen-
a mais importante categoria religiosa da hu- sável em ambos os casos, tanto nos de sobre-
manidade, conservava sua essência ao longo vivência, como nos de desenvolvimento, a
de uma ascensão marcada por toda uma série caraterização antropológica da configuração
de modificações e adaptações: primitiva de cada categoria religiosa. As ver-
sões mais sofisticadas podiam bem conservar
(...) apesar de tão profundas mudanças, é bem um significado ativo e ser objeto de uma crença
claro que a concepção da alma humana, no atualizada, mas também deviam ser remergu-
que toca de mais perto à sua natureza, não se lhadas no ambiente pré-histórico. A antro-
modificou desde a filosofia do pensador sel- pologia da religião evolucionista, interessada
vagem até à do moderno professor de teolo- em culturas a todos os níveis de civilização,
gia. A alma, desde a origem, continuou sendo seria doravante baseada na compreensão dos
definida como uma entidade animadora, se- contornos psicológicos mais espontâneos e
parável do corpo e sobrevivente, e concebi- arcaicos do animismo selvagem, e nomeada-
da como o veículo da existência individual. mente do significado perfeitamente concreto
A teoria da alma é uma das partes essenciais e explícito do património religioso da cultura

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primitiva em geral. Em termos retrospetivos ta, a uma pergunta sobre a civilização no seu
da História da Antropologia, uma das carac- conjunto – em particular sobre a religião da
terísticas mais criticadas ou criticáveis desse humanidade – sem com isso negar as culturas
ponto de vista era a falta de atenção que Tylor ou civilizações no plural. No fundo, o enigma
dava às diferenças de sentido no interior da de Primitive Culture tem a sua chave no título
mesma categoria religiosa (ou daquilo que e nas palavras de abertura. O título resume o
ele considerava ser uma mesma categoria re- interesse do autor pela Cultura Primitiva da
ligiosa). As crenças eram repartidas em tipos humanidade, com maiúscula e no singular,
por simples analogia do seu conteúdo literal e mas as palavras de abertura indubitavelmente
interpretadas como consequência natural de definem a cultura na sua aceção plural, legan-
uma lógica errada, mas compreensível. Des- do à Antropologia a mais citada definição do
de o tempo de Evans-Pritchard, é um lugar seu objeto de estudo: “Cultura ou civilização,
comum afirmar que essa interpretação exces- tomada no seu sentido etnográfico alargado,
sivamente racionalista dos dados etnográficos é aquele todo complexo que inclui o conheci-
descurava as dimensões simbólicas, emocio- mento, a crença, a arte, a moral, a lei, o cos-
nais e sociais dos fenómenos religiosos. Em tume e quaisquer outras capacidades e hábitos
lugar de tratar as religiões como sistemas, adquiridos pelo homem enquanto membro
Tylor pulverizava suas componentes respeti- da sociedade” ([1871] 1903, vol. I, p. 1). Em
vas através dos dispersos capítulos da obra. À certo sentido, podemos dizer que Tylor não
primeira vista, estamos perante uma drástica chegou a descontextualizar, simplesmente
redução dos significados em cada contexto, porque sua abordagem não era relativa aos
como se o autor deixasse de fora tudo o que contextos em si mesmos, pelo menos não de
mais viria a interessar à Antropologia do sé- forma prioritária. A verdade é que a pergunta
culo XX. No dizer de Alfred Kroeber, “o seu que ele formulou há 140 anos continua sem
famoso método comparativo falhou, vemo-lo outra resposta, pois se Claude Lévi-Strauss re-
hoje, porque violava o contexto” (Kroeber, velou as similitudes do pensamento humano
[1950] 1993, p. 220). ao nível das formas, ninguém mais, em Antro-
Convém todavia precisar que Tylor não pologia, ousou demonstrá-las ao nível do con-
estava procurando explicar – como não es- teúdo. Significará isso que elas simplesmente
tava procurando negar – as particularidades não existem? Porque é que a humanidade tem
culturais e históricas desses fenómenos em repetições e limitações óbvias na sua imagi-
seus respetivos lugares. Ele estava bem cons- nação do sobrenatural? Eis o desafio que nos
ciente de que as diversas concepções religio- lança Primitive Culture.
sas, tendo embora fundamentos psicológicos Com Edward Tylor, a religião dos primiti-
comuns, haviam sido forjadas em sociedade, vos passou a ser um instrumento, bastante ou-
o que explicava aliás as variações flagrantes de sado no seu tempo, de explicação dos dogmas
cada tipo de crença, incluindo as característi- e da parafernália mitológica e ritual das re-
cas exatas da alma em diferentes contextos et- ligiões civilizadas, incluindo o Cristianismo.
nográficos. Para além disso, as próprias ideias Foi um tempo em que a literatura etnográ-
de desenvolvimento e de sobrevivência eram fica se tornou acima de tudo matéria-prima
inseparáveis de histórias concretas de trans- para pôr a nu os fundamentos selvagens de
formação ou de conservadorismo social. Tylor crenças supostamente superiores, como a
se limitou a dar uma resposta, a sua respos- Imaculada Conceição ou a própria ideia de

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homem-Deus, que esteve na base do sucesso beings. This is either an all-too-ambitious or an all-
estrondoso do The Golden bough, já na vira- -to-naïve issue, which was abandoned by 20th cen-
gem para o século XX. Em paralelo, o ressur- tury anthropology and still awaits an answer.
gimento urbano de fenómenos divinatórios, keywords Animism. Edward Tylor. Evolutio-
espiritistas e afins também ficava largamente nism. Religion.
coberto por essa Antropologia – e Tylor teria
muito a dizer sobre o mundo de hoje, com
suas versões New Age da metempsicose, com Referências bibliográficas
suas revistas especializadas em anjos da guar-
da e tantos outros fenômenos “animistas” BIANCHI, Ugo. Storia dell’etnologia. Roma: Edizioni
Abete, 1965.
mais ou menos exteriores ou refratários às es-
BURROW, John W. Evolution and Society. A Study in
truturas eclesiásticas do Cristianismo. Essa é Victorian Social Theory. Cambridge: Cambridge Uni-
uma das razões, entre outras, pelas quais Pri- versity Press, 1966.
mitive Culture pode ser objeto de uma leitura DARNELL, Regna. Invisible Genealogies. A History of
apaixonante. É que Tylor teve uma visão sui Americanist Anthropology. Lincoln, London: Univer-
generis da evolução religiosa da humanidade. sity of Nebraska Press, 2001.
D’HERTEFELT, Marcel. Anthropologie culturelle. Évo-
E por muito que o autor afirmasse seu caráter
lution - Histoire - Structure – Fonction. Liège: Presses
natural, ou ordinário, ao leitor não pode se- Universitaires de Liège, 1992.
não ficar a impressão de que ela foi realmente ERICKSON, Paul; MURPHY, Liam. Readings for a his-
extraordinária. tory of anthropological theory. Toronto: University of
Toronto Press, 2008.
FRAZER, James George. The Golden Bough. A Study in
Comparative Religion. London: MacMillan and Co.,
Edward Tylor and the *!"#$%#&'($#+,- .'-
1890.
gious Evolution of Humanity
KROEBER, Alfred L. A História e a atual orientação da
Antropologia Cultural. In: ______. A Natureza da
abstract Contrarily to certain current ide- Cultura. Lisboa: Edições 70, [1950] 1993.
as on Victorian anthropology, this article tries to LANG, Andrew. Myth, Ritual and Religion. London:
demonstrate that Edward Tylor did not intend to Longman’s, Green and Co., 1887. 2 v.
LUBBOCK, John, The Origin of civilization and the pri-
stress the differences between us and the savages;
mitive condition of man, London: Longmans, Green,
on the contrary, he demonstrated that there was
|1870|, 1882.
deep communion between the religion of both. McGEE, R. Jon; WARMS, Richard L. Anthropological
The so-called civilized humanity was not living in Theory. An Introductory History. Boston: McGraw
a status of science, but in a world entrenched in Hill, 2008.
animism, chaotic contradictions between the belie- STRINGER, Martin D. Rethinking Animism: Thou-
ghts from the Infancy of Our Discipline. In: Journal
fs adapted by theological erudition, mere senseless
of the Royal Anthropological Institute, vol. 5, n. 4, p.
survivals, and the revival of spiritualist phenomena
541-555, 1999.
considered to have vanished long ago. More than STOCKING Jr., George W. Victorian Anthropology.
an example of dogmatic evolutionism, Tylor’s work New York: The Free Press, 1987.
Primitive Culture is an attempt at answering the TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: Researches
question of recurring contents and flagrant or basic into the Development of Mythology, Philosophy, Reli-
gion, Art, and Custom. London: John Murray, 1871.
limitations in human thought, in every time and
______. La Civilisation primitive. Paris: C. Reinwald et.
place, concerning the imagination of supernatural
Cie., [1871] 1876. 2 v.

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______. Primitive Culture. Researches into the Develop- ______. On the Limits of Savage Religion. Journal of the
ment of Mythology, Philosphy, Religion, Language, Art, Anthropological Institute of Great Britain and Ireland,
and Custom. London: John Murray, [1871] 1903. London, vol. XXI, p. 283-299, 1892.

autor Frederico Delgado Rosa


Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / Universidade Nova de Lisboa
Doutor em Etnologia / Universidade de Paris X (Nanterre)

Recebida em 30/08/2010
Aceita para publicação em 30/08/2010

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