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CATECISMO

DE

PERSEVERANÇA.
1.

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EDITOR

FRANCISCO PEREIRA D'AZEVEDO.

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CATECISMO
I º. Sç BwViiDl
P A~R; ' = · L, · U
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DE
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NCA
ou
EXPOSIÇÃO DISTO RICA, DOGMATICA, MORAL, LITURGJCA, APOLOGET~CA, PBILOSOPBICA E SOCIAL

• 1
DA RELIGIÃO,
DESDE A ORIGEM DO MUNDO ATÉ NOSSOS DIAS
f~fo g:>a~te J. gauiue,
VIQARIO GERAL DA DIOCESE DE NEVllR8' CATALLEIRO DA OBDEH DB Ili• 81l.'VEl!llTRB'
MElllBRO DA ACADllHl.t. DA RELIGIÃO CATBOLIC& DE BOM&, IBTC.

1'\'o..l\.'U.úl\o l\l\ ô.• e,~". ~õ.o l\.e, ~a.'\'\s


1: DEDIC.4.DO AO EXM.• E REVM. º
SENHOR D. JERONYMO JOSÉ DA COSTA BEBELLO, BISPO
DO POllTO, PAR DO REINO E DO CONSELHO DE SUA l!JAGESTADE FIDE.LISSUIA,
Gii:\ CRUZ DA ORUE~J RELIGIOSA E JIJJLITAR DE s. MAURICIO E
S. LAZARO llA SAllDE~H.4., ETC. ETC,

POR SEU
Mui reverente e humilde subdito
KENR~QUJE QA, SU~VA EllA.l.U~Q~~.,
Jesus Christus heri hodié, ips'
et in saecula. llebr. XIII, 8·
Jesus Christ.o era hontem, e é
hoje : o rn esmo tambem será por'
todos os seculos.
Deus Charítas sst.t.Joan..IV."8.
TOMO 1. Deus é a carídade.

PORTO:
NA TYP. DE MANOEL JOSÉ PEREIHA,
Rua de s~nta Thereza, 4 o 6.

t86~.

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Ea:m.e e lfevm.) Snr.

Verter em lingoagem o Catecismo de Perseverança do erudito Gau-


me, é fazer um verdadeiro serviço ã causa da Religião; pôr esta obra
sob a protecção de V. Exc.ª é lucrar mais uma grande recommendação
para seu Autbor, e um poderoso subsidio para quem é inhabil traductor
d'ella.
Demais, um presbytero ordenado por V. Exc. a, e mimoso da sua
paternal bondade, não teme ser taxado d'ousadia quando põe a versão
d'este C:itecismo ao abrigo do seu Pastor. E' esta uma dedicação since-
ra, um testemunho de gratidão e amor que, por taes titulos, deve me-
recer o beneplacito de V. Exc. ª
Taes são os poderosos motivos que me animam a pedir a pennis-
são d'escrever o respeitalvel Nome de V. Exc.ª no rosto d'esta obra. Elle
exprime, por uma parte, a auctoridade e a protecção; por outra, a gra-
tidão e respeito com que se confessa ser

De V. Exc.ª

Mui reverente e humilde subdi.o

Henrique da Silva Bar·bo.1t1.

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O Author do Catecismo de Perseverança teve a honra de
offerecer ao Santo Padre um exemplar d' esta obra e de seus ou-
tros escriptos. Estando em Roma, foi adrnittido frequentes vezes
á audiencia particular do Soberano Pontifice, do qual recebeu
os mais lisongeiros obsequias e parabens. Poucos dias depois
da ultima audiencia, Sua Santidade se dignou enviar-lhe o se-
guinte Breve com a cruz da ordem de S. Silvestre.
GREGORIUS PP. XVI. GREGORIO XVI, PAPA
DILECTO FILIO PRESBYTERO A NOSSO CARO FILHO,

J. GAUUE. J. GAUHE.

Canonico caihedralis E cclesire Ni- Conego da Igreja Cathedral de


vernensis. l\ievers.

Dilecte Fili, salutem et apostoli- Caro Filho, saude e benção apos-


cam benediotionem. tolica.
Laudis, atque honoris prcemia, Sempre tivemos por costume con-
et Pontificice Nostrce beneficentice ferir gostosos e de boa vontade elo-
munera, iis potissimum ecclesiasti- gios, recompensas honrosas e tes-
cis viris libenter conferre solernus temunhos de Nossa benevolencia
'J.Ui ingenio et virtute spectati, at- Pontificia, sobre tudo aos ecclesias-

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que huic Petri Cathedrre firmiter ticos que, distinctos em talento e
adhrerentes, de Catholica religione virtudes, professam uma inabalavel
optime mereri summopere glorian- dedicação a esta Cadeira de Pedro,
tur. Itaque quum notum perspectum e fazem timbre de bém merecer .
sit Nobis, te. egregiis animi dotibus da Religião Catholica. E' por isso
ornatum et ad omnem virtutem ins- que, sabendo como sois ornado das
titutum, pietatis laude, ac vitre inte- mais bellas qualidades de espirito
gritate, morunque gravitate cuique e do coração, e recommendavel por
probatum, omni cura, studio, con- piedade, integridade da vida e gra-
tentione in rei catholicre bonum pro- vidade de costumes a todos noto-
curandriin incumbere, tuisque editis ria, nem cuidado, nem trabalho,
operibus non levem operam illi ju- nem esforço poupaes a pró da Re~
vandre prrestitisse, ac singulari Nos, Ugião Catholica, á qual as obras
et bane Apostolicam sedem, olJse- que haYeis publicado não tem sido
quio et veneratione prosequi : idcir- mediocre serviço ; e que a Nós e
co aliquam Nostrre in te voluntatis a esta Apostolica Sé consagraes sin-
significationem exhibendam censui- guiar dedicação e veneração: por
mus. Peculiari ergo te honore affi- todos estes motivos, hoU\'emos por
cere voJentes, leque a quibusvis ex- bem dar-vos uma prova da Nossa
communi'cationis, suspensionis et in- benevolencia a vosso respeito. Que-
terdicti, aliisque ecclesiasticis cen- rendo pois fazer-vos uma honra par-
suris, sententiis et prenis quovis ticular, depois de vos absolver,
morto et quacumque de causa la- para este fim sómente, e declaran-
tis, si quas forte incurristi, hujus do-vos absolYido de toda a excom-
tantum rei gratia absolventes et munhão, suspensão, interdicto, e
absolutnm fore censentes,Auctoritate outras censuras ecclesiasticas, sen-
Nostra ApostoUca bisce Litteris te tenças e penas latas' de qualquer
Equitem Ordinis Auratre Militire, a maneira e por qualquer causa que
Nobis nuper .instaurati et majori seja, se por ventura em alguma
splendore aucti, dicimus et renun- houvesseis incorrido, em virtude
tiamus, et Equitnm aliorum militire de Nossa Authoridade Apostolica
ejusmodi cretui ac numero inferi- Nós vos creamos e nomeamos pe-
mus. Quare ut ejusdem Ordinis Cru- las presentes Letras Cavalleiro da
cem gestare possis, utque utaris, Ordem da Milícia Dourada.. ultima-

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fruaris omnibus et singulis privile- mente restaurada por Nós e elevada
giis, prrerogativis, indultis, quibus a um novo esplendor ; Nós vos as-
alii Equites commemoratre Militire sociamos a esta Ordem, e vos col-
utuntur, fruuntur, vel uti, frui pos- locamos nas fileiras e em o numero
snnt ac poterunt, citra tamen facul- dos CaYalleiros que a compoem.
tates sublatas a concilio Tridentino Pelo que vos concedemos e permit-
huj us Apostolicre Sedis Auctoritate timos trazer a Cruz da Ordem, usar
confirmato, tibi concedimus et in- e fruir de todos e quaesquer privi-
dn lgemus: non obstantibu~ Consti- legios, prerogativas, e favores de
tutionibus et Sanctionibus Apostoli- que usam e gozam os outros Caval-
cis creterisque contrariis quibuscum- leiros da mesma Ordem, ou de que
que. Volumus autem ut dictun in- podem e poderão vir a usar e des-
signe, nempe Auream octangulam fructar, salvas as faculdades sup-
alba superficie imaginem S. Sylves- primidas pelo Concilio de Trento,
tri PP. in medio rererenterri, ad approvado pela authoridade d'esta
pectus trenia serica rubro nigroque Sé Apostolica : não obstante as cons-
distincta colore, extremis oris ru- tituições e decretos apostolicos e
bra, appensam ex comrr.uni Equi- outra3 disposições contrarias quaes-
tum more in parte vestis sinistra, quer que sejam. Ora, Nós quere-
juxta formam in Nostris similibus mos que useis a insignia da Or-
Apostolicis Litteris, die XXXI octo- dem, isto é, a Cruz d'ouro octan:
bris, anno MDCCCXLI, de eodem guiar, tendo no centro, sobre cam-
Ordine editis prrescriptam, gestare po esmaltado de prata, a imagem
omnino debeas, alioquin ab hujus do Soberano Pontífice S. Silvestre,
indulti juribus excidas. Ut autem suspensa do peito por fita verme-
magis magisque Nostram in te be- lha e preta bordada de vermelho,
nevolentiam perspic~re possis, Cru- sobre a parte esquerda do habito,
cem ipsam tibi tradi mandamus. segundo 10 uso ordinario dos Caval-
Jeiros, e a fórma prescripta por
Nossas Letras Apostolicas, em data
de 31 d'Out ubro do anno de 184.f,
a respeito da mesma Ordem ; aliás
perdcrieis os privilegios d'este in-
dulto. A fim pois que conheçais

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mais e mais a nossa benevolen-
cia para comvosco, mandamos que a
mesma Cruz vos seja enviaua da
Nossa parte.
Datum Romre, apud Sanctnm Pe · Dada em R·oma, em S. Pedro,
trum, sub Annulo Pisc.atoris, die sub o annel do Pescador, a 29 de
XXIX martii MDCCCXLII, Pon lifi- Março do anno de 1842, e decimo
catus nostri anno duodocimo. segundo do nosso Pontificado.

A. Card. Lambru.çchini. A. Car. Lambruschini.

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APPROVAÇÕES.
APPROVAÇÃO DE SuA ExcELLENCIA o ARCEBISPO DE BonnEos.

Fernando Francisco Augusto Donnet, pela misericordia divina e graça


da Santa Sd apostolica Arcebispo de Bordeos, Primaz d'Aqui-
taine:

Tendo visto e examinado por nós mesmo o livro que tem por titu-
lo : Catecismo de Perseverança, ou Exposição historica, dogmatica, mo-
ral e liturgica da Religião, desde o principio do mundo até os nossos dias.
pelo Padre J. Gaume, Conegu de Nevers :
Temos approvado e approvamos esta obra para a nossa diocese. Util a
todas as idades bem como aos fieis de todas as classes, a leitura deste
li-vro o será sempre aos mancebos e ás pessoas encarregadas da sua
educação.
O . Catecismo de Perseverança só de per si resume muitas obras
sobre a religião e. lhes dispensa a leitura; a sua dcutrina é bebida nas
melhores fontes; é claro o estilo, ameno, vivo e penetrante: o plano é
vasto e abrange ao mesmo tempo a historia do Christianismo e das or-
dens religiosas, a exposição dos dogmas, a explicação da moral, dos sa-
cramentos e das cerembnias da Igreja; o methodo que o aut!wr empre-
ga é o mesmo que seguem com tam feliz result:id0 os Padres gregos e
latinos, e que Fenelon e outros grandes bispos aconselllavam e queriam
que se fizesse reviver entre nós.
Dada em Bordeos, em nosso palacio archiep!scopal, sob o sêllo de
nossas armas, ruurir.ada por nós e referendada pelo secretario geral do
nosso Arcebispado a 26 de Dezembro de t839.
t FERNANDO,
Arcebispo de Bordeos.
Por ordem de sua Ex.ª o Arcebispo
H. de Langalerie,
Conego hon. secretario geral.

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ÁPPROVAÇÃO DE SUA Ex. a o BISPO DE GAP, ARCEBISPO ELEITO n'AucH.
Nicoláo Augusto da Cruz d' Agolette, Bispo de Gap, Arcebispo
eleito d'Auch:
Lemos e examinamos a otra intitulada: Catecismo de Perseverança,
do Padre Gaume. Conego de Nevers, e reconhecemos que este estimavel
author tractou d'uma maneira erudita e agradavel a historia da creação,
da qnéda do homem, da redempção, do estabelecimento, propagação e
conservação do christianismo; em summa, que esta obra, ornada de tam
modesto ,titulo, todavia contém solidas instrucções sobre o dogma, a mo-
ral e a liturgia da Igreja catholica, e constitue só de per si uma biblio-
tbeca religiosa que desejaramos andasse nas mãos de todos os fieis e dos
padres da nossa diocesse.
Paris, 25 de Janeiro de t 8~0.
t N. =A., BISPO DE GAP.
Eleito para o Arcebispado d'Auch.

APPROVAÇÃO DE suA Ex.ª o BISPO DE BELLEY.


Alexandre-Raimundo-Devie, Búpo de Belley.
Pelas informações que nos deram da obra intitulada : Catecismo
de Perseverança, oo exposição historie.a, dogmatica, moral e Jiturgica
da Religião, etc., pelo Padre Gaume, Conego de Nevers, e havendo-a
lido. apressamo-nos a aconselh:ir aos ecclesiasticos e aJs fieis da nossa
diocesse que usem della; porque ahi acharão uma exposição da doutri-
na e historia da religião interessantissima. Sobre tudo os ecclesiasticos
podem tirar d'el!a um sem nnmero de argumentos, comparações e tre-
chos historicos para explicação do Catecismo ordinario, e ainda mais par-
ticularmente se o houverem de fazer na cadeira em Jogar d'uma instruc-
ção seguida, ou nas congregações e reuniões que, teem lagar em grande
nnmero de parochias para fortificar a mocidade na fé e prática da
religião.
Belley, 7 de Fevereiro de 184.0.
t A. = R., BISPO DE BELLEY.

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APPROVAÇÃO DE SUA Ex.ª O BISPO DE SAINT-FLOUR.

Nós Frederico-Gabriel-Maria-Francisco de Marguerye, pela graça de


Deus e auctoridade da Santa Sé Apostolica, Bispo de Saint-Flour :

Tendo visto e mandado examinar a obra do Padre Gaume, Conego


de Nevers, que tem por titulo: Catecism:> de Perseverança, apressamo-
nos a recommendar a leitura d'elle aos eccle,siasticus e aos fieis da nos-
sa diocese. ·Nós mesmos lêmos os primeiros cinco volumes com summo
interesse; damos o parabem ao Padre Gaume por ter concebido o pen-
samento d'uma obra que, com o modesto titulJ de Catecismo, encerra
uma admiravel Historia da Religião, com a exposição das suas provas,
mysterios, moral e immensos beneficias que os homens e as sociedades
lhe devem neste mundo, em tanto que não chegam as recompensas da
eterna justiça. Não se póde lêr esta serie de lições tara instructivas o
tocantes sobre a creação do mundo e do homem, a nossa rehabilitação
em J. C., os caracteres e ditosa influencia da moral evangelica na felici-
dade e gloria das nações e dos individuos, a historia dos combates e
dos triumpbos da Igreja, a belleza das festas catholicas, que sendo tam
poeticas e sociaes ao mesmo tempo produzem a paz e segurança no co-
ração do christão curvado ao pezo do trabalho e do soffrimento, e lhe
dão a provar o ceo no deserto da terra ; não se podem lêr estas pagi-
nas digo, sem admirar, sem amar e praticar logo uma Religião tam pro·
diga de consolações para o coração, tam rica d'esperanças para a vida
futura. Dest'arte vêmos nós com jubilo como se ''ai dirnlgando pela nos-
sa diocese o Catecismo de Perseverança, e mettemos empenhos ao nos-
so cl~ro para que recommendem a leitura delle ás famil!as christãs,
pois estamos certos que esta leitura lhes produzirá fructos de salvação
e de paz. '
Dada em Ricm-és-Montagnes, andando em visita pastoral, a 30 _de
Maio de tSU.
t FREDERICO,

Bispo de Saint·Flour .

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APPROVAÇÃO DE snA Ex.ª o ARCEBISPO DE REIMS.

Thomaz-Maria-José Gousset, Arcebispo de Reims, etc.

Examin'.lmos a obra que tem por titulo: Catecismo de Perseveran-


ça, ou expo5ição historica, dogmatica, moral o liturgica da Religião,
pelo Padre J. Gaume, Conego de Nevers; nada achamos nella eon~ ·
trario á doutrina da Igreja~ e nos pareceu tam ntil aos fieis, como aos
ecclesiasticos encarregados d'explicar aos povos os dogmas da Religião,
a moral do E\'angelho e as ceremonias do culto catllolico. Por isso dese-
jamos nós vêr esta obrd disseminada por todas as parochias da nossa
diocese.
Reims, 4 de Novembro de t 84.i.

APPROVAÇÃO DE su A Ex. a o BISPO DE So1SSON E LAON.

Julio-Francisco de Simony , pela misericordia divina, e graça da Santa


Sé apostolica, Bispo de Soissons e Laon, Decano e primeiro Suffra-
ganeo da província de Reims.

O Catecismo de Perseveranç,a, pelo Padre Gaume, é uma obra já


conhecida e aprcciad<l. 03 s.uffragios que tem obtido de muitos de nos-
sos reverendíssimos Collegas, os elogios que della nos teem feito aquel-
les de nossos cooperadores a quem incumbimos de a examiaar, e em--
fim o conhecimerito que por nós mesmo pudemos tomar della, levam-nos
a auctori~al-a e até recommendal-a em a nossa diocese como utilissima
pelo cabedal de doutrina, o methodo e o interesse que o author soube
dar-lhe pela amenidade dos pormenores e do e8tilo.
Dada em Soissons, a 15 d' Abril de f 842.
t JULIO·FRANCISC0 1

Bispo de Soi&sons e Laon.

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APt>ROVAçAo. DE 8UA Ex.ª o B1sPo n'AGEN.

João-Aimé De Levezon De Vesins, pela misericordia divina e graça


da Santa Sé apostolica, Bispo de Agen:

Havendo examinado a obra que tem por titulo: Catecismo de Per-


severança, ou exposição, etc., do Padre J. Gaume, Conego de Nevcrs,
folgamos de vêr que a doutrina contida neste livro é conforme á doutri-
na catholica; que o methodo do author é claro e proprio a gravar na
memoria dos fieis a historia e as verdades da nossa Santa Heligião.
Portanto, approvamos o livro para a nossa diocese, e recommenda-
mos a leitura delle.
Dada em Agen, sub o nosso signal e sêllo das nossas armas, refe-
rendada pelo secretario geral do nosso Bispado.
Por mandado.
f JOÃO,

Bispo d' Agen.

Deyche

Conego secret. ger.


Agen 8 de Novembro de t8~2. ·

APM\()VAÇÃO DE SUA Ex. a o BISPO DA NoVA ÜRLEANS.

Muito folgamos ajuntar a nossa recommendação á de tantos illustres


prelados da Europa que tem honrado com a sua approvaçào o Catecismo
de Perseverança, do Padre Gaume, Conego de Nevers. O cont:ecimento
que delle nos permittiram tcmar pessoalmente as nossas curtas horas
;d!ocio, e sobretudo a informação que nos tem dado muitos ecclesjasticos
da m>ssa diocese que della se servem com muitissimo proveito, oos fa-

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zero desejar ardentemente vêl-a nas mã0s não só do clero, mas de to·
das as familias christãs da nossa diocese. O Catecismo de Perseverança
basta só de per si para esclarecer amplamente os simplices fieis de nos-
sas provincias, e para fornecer aos padres encarregados das funcções
pastoraes assumptos de instrucção solida tanto na moral como no dogma
da Religião, e até na liturgia da Igreja.

t ÁN'f.

Bispo da Nova Or·leans.

Nova Orleans, 20 de Fevereiro de t8~3.

ÁPPROVAÇÃO DE SUA Ex.ª O BISPO DE NEVERS.

Nós Domingas-Agostinho-Duf~f.re,pela graça de Deus e auctoridade da


Santa Sé apostolica, Bispo de Nevers :

Crêmo-nos dispensados de fazer o elogio do Catecismo de Perseve·


rança do Padre Gaume, nosso Vigario geral. Esta obra, cujas edições
tam rapidamente se multiplicam, tem cabimento entre os melhores tra-
ctados da Religião, e quer-nos parecer não haja outro tam completo.
Destinado por certo a produzir optimos fructos entre todos os fieis,
é todaYia á mocidade d'ambos os sexos que mais o recommendamos : o
bem que tem trazido ao coração desta nossa cidade episcopal, que é
já de si um Catecismo de Perseverança, afiança-nos que proveito fará
elle por outras partes.
Fazemos ardentes votos por que esta obra, ã qual damos toda a
nossa approvação, se diffünda cada vez mais em a nossa diocese, e ve-
nha a ser o livro de todas as familias. Exhortamos a nossos muito ama-
dos cooperadores que lhe propaguem a leitura, e por elle se guiem nas

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instrucções que tanto importa dar aos meninos depois da primeira com-
munhão, afim d'assegurar a sua perseverança.
Dada em Nevers, sub ·o nosso signal e sello de nossas armas, refe-
rendada pelo secretario do nosso bispado, a t 5 de Fevereiro de t 8,5.

Do&nNGOS AGOSTINHO,

füspo de Nevers,
Por mandado
Delacroix

Conego secretario.

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PROLOGO.

Aonde estamos ? temos ainda alguma esperança, ou a sociedade abys-


ma-se e não nos resta mais que abaixar a cabeça?
E' o que os homens, habituados a reflectir sobre os grandes interes-
ses da humanidade h0je acciosos perguntam quando se avistam. Pedem-se
novas da sociedade como d'om exercito em campo, ameaçando perecer a
cada momento, ou como ele um enfermo que cheio de dôres a cada ins-
tante morre. Todavia estas questões já nos não abalam, tam critico é o
nosso estado! tam precario, que uma situação de tam extrema gravidade
não basta para merecer uma attenção seria !?
Mas não é aqui togar de analysar nem apreciar os symptomas de
vida ou de morte que apresenta hoje o corpo social.
Importa-nos sómente certificar um facto, ou antes um principio ad_
mittido por todDs os espíritos serios e elevados, a saber: Que o mundo
não triumphará da crise actual, em tanto que a religião não reassumir
o seu, imperio. E se lhes perguntarmos de que modo poderá vir a ser a
religião a norma das crenças e dos costumes, todos unanimemente res-
pondem: A religião não dominará os espiritos e os corações, senão apo-
derando-se das gerações vindouras.
Se a verdade da sua resposta nãG fosse evidente, se fosse mister pro-
vai-a, bastaria reparar no zelo incrivel que os artifices da iniquidade e os
apostolos da mentira manifestam á porfia para perderem a mocidade.
.
Portanto, este é o grande problema da nossa epocha : fazer sincera .

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li PROLOGO.

e conscienciosamente christã a geração vindoura : a isto se ·reduz toda a


questão ; mas questão de vida ou de morte.
Com efftito. por uma parte, é á mocidade que pertence o porvir;
por outra, fóra do Christianismo não ha nem póde haver verdadeiras
crenças, costumes puros, paz familiar, felicidade social. Isto é um facto:
e aquelle que tem olhos para vêr, veja: ninguem é obrjgado a provar a
existencia do Sol.
Mas, para firmar no Christianismo d'um modo inabalavel as gerações
nascentes, apesar da inconstancia do coração do mancebo, apesar das
tempestades que o agitam desde o berço, apesar dos escandalos de pa-
lavra e d'obra que não cansam de lhe prégar, por todos os meios que
podem, precisamente o contrario do que se deve crêr, amar e practicar;
qne são, pergunto eu, as fugitiva lições da primeira infancia? Ensinos
superficiaes que a leviandade e a fraqueza da idade não perrnittem compre-
hender e reter, e que, não calando no amago d'alma, não podem produzir
impressões profundas, capazes de determinar as suas acções durante o
resto da vida.
Interrogai os padres veneraveis que, cada anno, recebem á Sagrada
Mesa da Communhão tam grande numero de jovens christãos: perguntai-
lhes quantos são os qne perseveram?
Responder-vos-hão cheios de dôr e amargura, mostrando-vos apenas
aqui e além um ou outro, tristes destroços escapados como por milagre
do vasto naufragio em que perecem todos. Responder-vos-hão, que, mor-
mente desde alguns annos a esta parte, o seu ministerio parece reduzido
ao mortificante mister d'engordar as victimas destinadas para os becatom'."
bes da corrupção e da impiedade.
Mão era assim outro te'mp~, quando a infancia achava no seio da fa-
milia os meios de perseverar. Mas depois qµe a religião abandonou o lar
domestico, é forçoso,-sub pena de lançar palavras ao vento, e vêr as gera-
ções futura,s perecer como as anteriores--supprir o que os pais não fazem
com extraordinarios cuidados, instrucções mais amiudadas, mais solidas
e continuadas até álem d'esta idade critica, em que as paixões fogosas
accommettem, abalam e arremessam para longe de seus deveres, o espí-
rito e o coração inexperiente da adolescencia.

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PROLOGO. III

Examinai agora a questão, virai-a e revirai-a por todos os lados, e


dizei se conheceis outro meio mais efficaz para conseguir este fim nas
parochias, que as Catecheses de Perseverança depois da. primeira com-
munhão 't
O que sabemos, é qae os soberanos Pontífices não cessam de recom-
mendar este meio de salvação t:im imperiosamente reclamado pelas cir-
cumstancias. (t ). O que sabemos ainda, é que os piedosos bispos que
governam as nossas igrejas seguem a opinião do pastor dos pastores: por
toda a parte se dão pressa em estabelecer nas suas dioceses esta preciosa
instituição.
Não dizemos que não sejam ateis as outras associações parochiaes:
ellas tem prodazido e produzem aind~ abundantes fructos. Todavia pare-
cem-nos menos accommodadas ás necessidades actmies.
Estabelecidas principalmente com o fim de nutrir a piedade, já sup-
poem em seus membros um solido conhecimento das verdades da fé, por
isso que lhes não dão o leite dos parvulos, mas o alimento dos fortes. Pelo
qae pertence á instrucção que ahi falta, suppriam-na em· melhores tempos
os pais de familia.
Hoje vão muito mudadas as cousas; a mocidade desconhece a reli-
gião. Querer edificai-a em a piedade sem começar pelo fundamento solido
da instrucção, é edificar sobre a area; é confiar nos sentimentos gene.
rosos d'um coração de quinze annos, para supportar a virtude no meio
das duvidas e dos escandalos do resto da vida ; é evidentemente expôr-se
a numerosos e crueis enganos .
O Catecismo de Perseverança tendo por fim, como o seu nome o
inculca, fazer perseverar no estudo da religião e practica dos seus deve-
res, consideramol-o, e n'isto vamos d'accordo com os nossos mestres da
fé, como o melhor meio de fazer hoje solidamente christãs as gerações
vindouras.
A Providencia, que jámais deixa de collocar o remedio ao lado do

(1) Vejam-se os rescriptos de Pio VIII, em data de 10 de Maio de 1830; de


Gregorio XVI, em da.ta de 13 de Setembro de 1831, e de .Pio IX, no Catecismo de
Perseverança c:le Nevers, em data de 11 de Dezembro de 1846.

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IV PROLOGO.

mal, fez·· apparecer entre nós esta obra imminentemente proveitosa, no


momento preciso em que os pais de familias·, esquecidos da sua nobre
missão, iam despedir do lar domestico aquelles costumes que o tomavam
uma pequena igreja: era pelo meado do seculo decimo setimo.
O protestantismo, que invadia uma parte das classes elevadas; estava
a ponto de se unir á corrupção dos costumes e crear esta indifferentia
deploravel que é .o flagello da noss1 epocha. E' então que o reverendo
M. Olier, sendo nomeado abbade de S. Sulpicio de Paris, tomou posse
d'esta parochia em 1642.
Era tal a ignorancia e immoralidade que reinavam n'este bairro, que
lhe chamavam o despejo de Paris : isto diz tudo; mas o zeloso pastor
não desanimou; comprehendeu que ainda havia um meio de moralisar
esta terra d'iniquidades : a educação da mocidade foi toda a sua solici-
tude. Santo Padre, o mundo te abençôe em tanto que o ceo laurea os teus
meritos !
Catecheses preparatorias para a primeira communhão, e especialmente
Catecheses de Perseverança, foi o plano em que não afrouxou para chegar
ao desejo fim : e entretanto que o novo apostolo plantava e regava, Deus
deu o crescimento; em pouco tempo, por meio das catecheses, esta paro-
chia de S. Sulpicio, a mais encandalosa da Capital, fez-se a mais piedosa
e edificante~ (t)
Os mesmos resultados colheram os successores de M. Olier, perse-
verando com o mesmo zêlo nas Catecheses de Perseverança. Assim correu
o tempo até a revolução francesa. N'esta epocha desastrosa cessaram ellas
como todos os mais exercicios pubJicos de religião. Todavia, volveram
mais serenos dias, e logo se restabeleceram em t804.
Nunca este grande meio de salvai;ão fôra mais necessario: a conti-
n~ão das Catecheses de S. Sulpicio foi o signal para o restabelecimento
de muitas na Capital e nas províncias. A experiencia desde então até hQje
tem ·mostraID quanto é grande a sua utilidade e com quanta razão muitos

(1) Veja-se a historia das catecheses de S. Sulpicio, em 12. 0 - Sobre a disci-


plina das Catecheses de Perseverança., consulte-se o Methodo de 8; Sulpicio, e~
12.•

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PROLOGO. V

prelados distinctos e reverendos padres ·tem dado e continuam a dar um


poderoso impulso a esta preciosa instituição.
Ha quinze annos que nós -mesmo fomos chamados a dirigir uma d'es-
tas Catecbeses, e dando graças a Deus pelos abundantes fructos que temos
colhido, para contribuir quanto nol-o permittem as nossas forças, a pro-
p39ar e facilitar esta exeellente instituição, agora publicamos pela sexta
vez:t o curso completo de nossas instrucções.
Offerecemol-o primeiro que tudo a todos os nossos irmãos no sacer-
docio. A exposição completa do cbristianismo na historia, no dogma, na
moral, no wlto, na letra e no espirito, com tudo o que póde esclarecer
a razão1 mover o coração, fallar á imaginação ; em summa, a religião tal
como nos parece deve apresentar-se, boje sobre-tudo, para a fazer admit-
tir; amar e praticar: eis o que lhes offerecemos com o titulo de Catecismo
de Perseverança.
A vós lambem se dirige esta obra, familias cbristãs, senhores e se-
nhoras, que não postergaes a educação á instrucção, a virtude á sciencia
os interesses da eternidade aos do tempo. N'ella encontrareis com que
ibrmar homens verdadeiramente proveitosos á sociedade, fazendo-os chris-
tãos pied-0sos, capazes de dar contas de si, da sua esperança e da sua
fé. ;
A vós tambem este livro, mancebos, amigos nossos, unica esperança
do porvir. Como nós, tristes filhos d'um seculo de duvida e anciedade,
procuraes penosamente esta verdade, este bem do coração para o qual
nascestes. Ah t e apresentaram-se-vos sophistas a offerecer-vos por ali-
mento abstracções inintelligiveis, systemas futeis e perigosas utopias. Mas
-º que · elles não puderam, nem poderão jamais dar-vos, este livro vol.-o
offerece.
:: · A.o; lêr-lh~ o titulo não vos faça tedio nem desgosto porque não é
~ntioo :. não vos pareça qtie é um tratado sêcco e árido, ·entrecortado
de··pergontas e·respostas. Com o. titulo de Cmeeismo, isto é ensin.o vocal,
encobre..se como com um manto · m-0desto a mais interessante historia
que jámais vos encantou em horas d'ocio, a mais bella phiiosophia qoe
iámais estudastes, e, ousamos dizêl-o, a mais sublime epopea que jámais
com seus versos vos inflammou o coração.

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VI PROLOGO.

Este mesmo titulo, por muito vulgar que vos pareça, não deixa 4e
ser poetico. Elle recorda-vos o começo das duas grandes epochas da
humanidade : a era dos Patriarchas e a era dos primeiros christãos, a
tenda mobil de Sennaar e as catacumbas de Roma: se no mundo ha me-
morias poeticas estas o são mais que todas; saudosas epocbas em que
a verdade não tinha outro interprete que a voz respeitavel do ancião ..
ou a voz mais respeitavel ainda do Pontifice consagrado pelos estigmas
do martyrio.
Ainda ba outras pessoas a quem ouzamos dedicar esta obra.
Nas idades mais avançadas da vida, muitos homens ha que não
tem ouvido fallar do christianismo senão vagamente. Sobre tam impor-
tante objecto apenas teem idêas confusas, noções incompletas. Outros
mais desgraçados ainda não conhecem a Filha do Ceo senão por calum-
nias e prejuizos, funesta herança do passado seculo, e da primeira edu-
cação que tiveram. Todavia sentem n'alma a imperiosa necessidade de
crér e amar.
Semelhantes aos romanos do segundo seculo, ·(1) na prosperidade
oontentam-se com levantar os olhos para .o Capitolio ; a adversidade po-
rém vem assentar-se-lhes no liminar da porta; então, alevantados os olhos
para o ceo, são christãos um momento. Infelizmente, como o seu chris-
tianismo não repousa nas bases firmes d'uma convicção profunda, que só
póde ser o fructo ·d'uma instrucção solida, os seus bellos sentimentos
desvanecem-se com os seus receios e sofirimentos.
De todos estes homens, que formam o nosso seculo, qual é pois
a grande necessidade, senão uma vasta e completa exposição da fé"
Intentamos dar-lh'a. Aqui, nem ha polemicas, nem expressões amargas;
mas tam sómente a historia do christianismo.
A vós pois esta obra, homens quem quer que sejaes, que erraes sem
estrellas nem bussola no mar tormentoso da vida, sem saber d'onde vin-
des, o que sois, e para onde ides; vós todos, cujo coração, theatro per-
manente de lactas inexplicaveis, é a cada instante victima de crueis
desenganos, ah ! e talvez d'inconsolaveis dôres.

(1) Tertull. Apol. C. XVII.

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PROLOGO. VII

Philosopho inspirado, este livro será para vós uma revelação do inti-
mo ao intimo: terno consolador, derramará em vossas feridas um bal-
samo salotifero : piloto experiente, difigir-rns-ha, qual baixel no oceano,
a essas praias onde já não ba suspiros nem lagrirnas.
Silencio por um instante ! podereis acaso recusar-vos a ouvir-nos 1
nós vamos fallar de Deus e de vós.
Ei&-aqui o plano que havemos seguido.

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Interrogado S. Agostinho por um Diacono de Carthago: qual era a
melhor maneira d'ensínar a religião ? respondeu escrevendo o seu admi-
ravel lractado: De catechizandic rudibus. (1)
« A. ''erdadeira maneira d'ensinar a religião, disse o grande bispo
d'Hippona, é remontar-nos a estas .palavras: No principio creou Deus o
ceo e a terra, e desenvolver toda a historia do Christianismo até os nossos
dias. Não digo que seja preciso reproduzir d'uma extremidade a outra
tudo o que está escripto no antigo e novo testamento: seria isso taro im-
possível como desnecessario. Fazei um resumo : insisti no que vos parece
mais essencial, passai de leve por tudo o mais. D'est'arte, nem sobrecar".'
regareis a memoria do discípulo ; nem, com um estudo prolixo, esfriareis
o ardor que deveis inspirar-lhe.
« Ora, para levar atado todo o fio da historia, cumpre·nos advertir
que o antigo testamento é a figura do novo: que toda a religião mosa\ca,
os Patriarchas, suas vidas~ suas allianças, seus sacrificios são outras tantas
figuras do que vêmas hoje; que todo o povo judaico e o seu governo
não é mais que um grande propheta de J. C. e da Igreja. » (2)
(1) Maneira de ensinar a religião aos ignorantes. ·
(2) Narratio plena est cum quisque primo catechizatur ab eo quod scdptum
est, ln principio fecit Deus crelum et terram, usque ad prresentia tempora Ecclesire·
Non tamen debemus totum Pentateuchum totosque J udicum et Regnorum et Esdrro
libros ... narrando evolvere et explicare: · quod nec tem pus capit, nec uila necessitas

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X INTRODUCÇÂO.

Tal cumpria ser, segundo S. Agostinho, o ensino da letra da religião.


Qaa'nto ao espirito, o sancto doutor, interprete fiel do divino Mestre, o
faz consistir no amor de Deus e do proximo. Reparemos no que elle diz:
« Começareis pela creação das cousas no estado de perfeição, e con-
tinuareis a narração até os tempos actuaes da Igreja. Mostrar que tudo o
que precede a incarnação do Verbo tende a manisfestar o amor de Deus
no cumprimento d'este mysterio deve ser todo o vosso intento, o vosso
unico fim. O mesmo Christo immolado por nós, que nos está ensinando?
senão o amor infinito que Deus nos testemunhou dando-nos o seu proprio
Filho?
« Mas se, por uma parte o fim principal do Verbo na incarnação é
testemunhar ao homem quanto elle é amado de Deus, e se este conheci-
mento não tem outro fim mais que accender no coração do homem o amor
d'um Deus que o amou primeiro, e o amor do proximo, de que este
mesmo Deus veio dar o preceito e o exemplo ; se, por outra parte, toda
a Escriptura anterior a J. C. tem por fim annunciar a sua vinda, e se
toda a que lhe é posterior não tracta senão do Cbristo e da charidade,
não fica evidentemente provado que não só a lei e os propbetas~ mas ainda
todo o Novo Testamento se reduzem a estes doas grandes preceitos : o
amor de Deus e o, amor do protimo ?
« Portanto, motivareis tudo o que relatardes, explicareis a causa e
o fun de todos os successos pelo amor; de modo que esta idêa principio
esteja sempre presente ao espirito e ao coração. Sendo pois o amor de
Deus e do proximo o fim a que se dirige tudo o que haveis que dizer,
fazei por tal arte a narr~ção que toda se encaminhe a conduzir o auditorio
á fé, da fé ã esperança, da esperança á charidade. t) J) (

postulat; sed cuncta summatim, generatimque complecti, etc etc. Cap. III~ N.• 5
et aeqq.
Quapropter in veteri Testamento est occultatio novi, in novo Testamento ést
manifestatio veteris. - ld. n. 8.
Denique universa ipsa. gene totumque regnum prophetia Cbristi, Cbristianique
regni. =Contra Faust. lib. 22 et pasaim.
(1) Hac ergo dilectione tibi tanquam fine proposito quo referas omnia q.ure di-
cis, quidquid narras ita narra, ut ille cui loqueris aadiendo credat, credendo speret,
sperando amet -Aug. de Catechiz. ruà.

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INTRODUCÇÃO. XI

Tal é o plano que resolvemos pôr em practica, e crêmos ser elle o


melhor que poderia mos adoptar. Que perde a mocidade do decimo nono
seculo em lhe darmos por catechista a S. Agostinho? D'est'arte a exposi-
ção da Religião desde o principio do mundo até os nossos dias, a Religião
anterior, contemporanea e posterior á pregação de Nosso Senhor Jesu
Christo, é objecto d'esta obra.
O curso das nossas lições dura quatro annos.

1.

PRIMEIRO ANNO.

t. DEUS - ENSINO VOCAL E ESCRIPTO -OBRA DOS SEIS DIAS-No pri-


meiro anno daremos algumas noções indispensaveis dos dous modos por-
que a Religião foi ensinada, bem como da Escriptura e Tradição, que
são as duas grandes fontes de todas as verd~des religiosas : depois, remon-
tando-nos ao principio anterior a todos os principios, adoramos na sua
essencia inefi'avel o Deus da Eternidade, creador do tempo e de todas as
creaturas que hão-de viver no tempo. A existencia e as perfeições d'este
Ser por .excellencia é o primeiro objecto da nossa attenção. Falia mos do
seu poder, sabedoria, bondade, liberdade, immutabilidade e providencia
Depois de o contemplarmos em si mesmo, considera-lo-hemos nas ,
suas obras. Com os astros da manhã, (l) assistimos ao magnifico
espectaculo da creação do universo. Cada dia d'esta grande· semana for-
ma uma syllaba do nome de Deus, que vêm os alfim gravado em caracte-
1

res de ·fogo na fronte de cada uma de snas creaturas. Tudo nos revela
a unidade, o poder, a sab0doria, a bondade, a providencia paternal
d'este grande Ser que vela com igual cuidado os. globos immensos com-

(1) Ubi eras quando ponebam fundamenta terrm, cum me Jaudarent eimul as-
tr& matutina, et jubilarent omnes filii Dei? Job. XXXVIII.

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XII INTRODUCÇÃO.

panheiros dos seculos em seu magestoso curso, e a tenra hervinha, cuja


vida assomando com a aurora fenece com o dia. Aqui rompemos nós em
espontaneos hymnos de reconhecimento e admiração~ e o universo é o
primeiro livro onde o menino christão aprende a amar a seu Deus.
N'esta parte não sómente seguimos o conselho e o exemplo de S.
Agostinho e dos mais illustres padres da Igreja, mas tambem o formal
convite do Espírito Sancto. Interrogai os animaes, nos diz élle, que el-
les vos ensinarão ; as aves do ceo, e vos farão conhecer o seu creador.
Fallai á terra, que ella vos responderá, e os peixes do mar vos narra-
rão suas maravilhas. (1)
E' sabido que nossos mestres no ensino da Religião, S. Basilio, S.
Gregorio, S. Ambrozio, S. Agostinho, S. Chrisostomo, tinham como um
dever sagrado o e:\plicar ao povo a obra dos seis dias. (2) Mas por ven-
tura não conhecemos bem a razão d' este seu procedimento: ouçamos o
que diz o eloquente Patriarcha de Constantinopla.
«Perguntareis, diz S. Chrisostomo, como ensinava Deu3 aos ho-
mens a conhecêl-o antes que houvessem livros? Como? Do mesmo mo:.
do que temos feito para vos dar a conhecer este Ser soberano. Fize-
mos-vos divagar em espírito pelo theatro do universo, mostramos-vos o
ceo, a terra, o mar, os campos, os pomares, as riquezas e as varieda-
des da natureza; remontamo-nos aos elementos das producções diver-
sas; e ao aspecto de tantas maravilhas ostentadas aos nossos olhos, ex-
clamamos com uma voz unanime e transportados de admiração : Quan-
to são grandes as vossas obras, ó Senhor! como são profundos os vos-
sos desígnios !» (3)
D'est'arte começavam os Padres da Igreja o ensino da. Religião do
mesmo modo que Deus o havia feito. Explicavam antes que tudo o
grànde livro no qual o Creador quiz que os filhos dos homens lêssem
primeiro a sua existencia e suas adoraveis perfeições.

(1) Interroga jumenta, et docebunt te; vo1atilia creli, et indicabunt tibi. Lo-
quere terrae, et narrabunt pisces maris. Quis ignorat quod omnia haec manus Do-
mini fecerit ? Job. XII.
(2) Vide os ~eus hexaemeron e seus sermõ~ sobre o Genesis.
(3) Serm. 1 iu Gen.

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INTRODUCÇÃO. X.III

«Perguntareis ainda, continúa S. Cbrisostomo, por que motivo,


sendo tam util o livro das Escripturas, Deus o não dr,u ao mundo desde
o principio? E' porque Deus queria instruir os homens pelas cousas,
isto é, pelas creaturas, e não pelos livros .... Se Deus começasse a nos
instruir pelos livros e caracteres intelligi\·eis para os sabios, que seria
dos ignorantes? O rico bem podia havêl-os ás mãos; o pobre, não.
Para os entender, era mister conhecer a lingua em que estavam escri-
ptos: logo inuteis e perdidos eram para o Scytha, o Barllaro, o Indio,
o Egypcio; para todo o homem emfim, a quem essa liugua fosse es-
tranha.
«Não succede o mesmo com o grande espectaculo do ceo: todos
os povos do mundo lhe sabem a linguagem. Este livro está aberto in-
distinctamente para o sabio como para o simples ; para o pobre como pa-
ra o rico. Tambem o Propheta não diz que os ceos testemunham, mas
que os ceos narram a gloria de Deus: Pregadores eloquentes, que tem
por auditorio · a todo o genero humano, por livro o magnifico especta-
culo que patenteam. (t) »
· Seguindo pois' com fidelidade o exemplo de nossos mestres, come-
çamos o . ensino da Religião pela obra dos seis dias; cuja explicação
'se torna mais que nunca necessaria n'este seculo em que já os homens
não comprehendem senão aquillo que lhes falta aos sentidos. Por este
modo fazemos palpaveis as grandes verdades bem cqmo os grandes de-
veres do Christianismo: as difierentes partes do mundo phisico, das quaes
o materialismo do seculo passado se esforçara por expulsar a Deus; e
das quaes ainda o nosso seculo o tem banido pelo indifferentismo; o
universo todo emfim, não será já para o homem um templo deserto:
Deus apparece n'eJle animando tudo, conservando tudo, vivificando
tudo.
E será passivei que a sua augusta presença não faUe ao coração?
que o homem, rodeado de maravilhas, cuja harmonia conhece, cujo fim e
cuja razão o interessam, não ·venha por fim a fazer-se mais piedoso
e mais christão ?

(1) Homil : XI, ad popul. Antioch.

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--- - -
XIV INTRODUCÇÃO.

Como quer que seja, subordinar a natureza á Religião não é


por ventura ir d'accordo com as intenções do Creador, e imitar o exem-
plo que tantas vezes nos dá no Evangelho o divino Preceptor do gene·
ro humano'!
N'esta admiravel narração mostramos as creaturas inferiores gravi-
tando sempre para as superiores, as que precedem pedindo as que se
seguem, e todas juntamente reclamando o Homem:- o homem que, tor·
nando-se o centro d'estes diversos raios, fica sendo o seu complemento;
o homem, pedra angular d'este magestoso templo ; o homem, modea-
dor, orgão e pontífice pelo qual todos os seres descendo de Deus de-
vem incessantemente remontar~se a Deus, é por isso mesmo a obra ultima
e a obra prima.
«Reconhecei, diz ainda aqui o eloquente Patriarcha de ConstantinO..
pla, a infinita bondade do soberano Dominador da natureza e a sua ma-
gnificencia a respeito do homem. ·Elle começou por preparar um ex-
plendido banquete, servido com tanta pompa como profusão e varie-
dade ; construiu um palacio digno do rei d'este novo imperio, abaste-
cendo-o de tudo o que ha de mais brilhante em bellezas diversas; de-
pois ereou o bom em para o metter de posse de tantos bens, e dar-lhe
o senhorio da natureza. E' assim que, havendo o imperador de fa-
zer sua entrada em uma cidade, todos os seus domesticas e comitiva
tomam a dianteira, e vão apparelhar tudo, afim que á chegada de seu
senhor esteja tudo disposto para o receber.» (t)
Após isto será difficil fazer comprehender ao homem esta palavra
salutar : ó Homem, reconhece a tua dignidade, e não te aviltes por um
comportamento indigno da tua grandeza ? (2)
Fallamos pois da creação do homem, de sua grandeza, poder e
soberania primitiva . Seguimol-o ao Paraiso terrestre: gozamos com elle
d'esta deliciosa habitação. Alli ouvimos nós ao Creador intimando-lhe
este facil preceito : Não comerás do fructo da arvore da sciencia do

• ..J

(1) Homil. VII, in Gen : Serm. 2. en Homil. VII, in id. =


(2) S. Leo. Serm. de Nativit.

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JNTRODUCÇÂO. XV

bem e do mal. (1) Tal a homenagem que o Senhor exige de seu nobre
vassallo. E' ella excessiva? Da fidelidade de nossos primeiros pais está
pendente, em toda a extensão da palavra, a felicidade sua e de seus
descendentes.
Aqui fallamos desta felicidade que houvera de ser a nossa herança,
isto, é, do estado do homem antes da sua quéda.
t. º Esr ADO PRil\IITIVO - Creado pois em um estado de graça e
de justira sobrenatural, conhecia o homem claramente a Deus, a si mes-
mo, e a natureza toda; isto no que toca a intelligencia. Nascida para
conhecer, como os olhos para vêr, estava pois satisfeita a intelligencia
do primeiro homem. Logo a este respeito, era feliz.
Por lado do coração, amava elle a Deus com um amor vivo,
terno, puro e tranquillo, e em Deus e por Deus amava-se a si e a to-
das as creaturas. Nascido para amar, 'como o fogo para arder, estava
tambem satisfeito o coração do homem. Logo, a este segundo respeito
era feliz.
Isento de enfermidades e -doenças, jámais devia experimentar
a morte ; por consequencia era feliz no que respeita ao corpo. Em
summa, unido ao Ser que é de si mesmo a origem da felicidade e
immortalidade, o homem participava da felicidade e immortalidade na "
plenitude da sua natureza.
D'aqui no estado primitivo, resultava para Deus, sem resistencia,
o exercicio do seu imperio sohre o homem. e sobre todas as creaturas
por meio do homem : omnia in omnibus. D'a1ui, para o homem, a ver-
dade, a charidade, a immortalidade; d'aqui, entre Deus e o homem uma
união intima ; d'aqui emfim para Deus a gloria, para o homem a paz,
para a creação toda a harmonia e a ordem. (2)

(1) Gen. III, 3.


(2) Cum Adam peccaverit, manife11tum est quod Deum per es'sentiam non vi-
debat. Cognoscebat tamen Deum quadam altiori cognitione quam nos nunc cognos-
cimus, et sic quodammodo ejus cognitio media erat inter cognitionem praesentis
status et cognitionem patriae, qua Deus per essentiam videtur, Deus fecit hominem
rectum. - Eccle. VII. - Haec autem feeit rectitudo hominis divinitus instituti,
ut inferiora superioribus subderentur, et superiora ah inferioribus non impediren-
3

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XVI INTl\OOUCÇÁO.

E' então que -retumbava por todo o universo aquelle delicioso cantico
que os Anjos,. quarenta seculos depois deveriam outra vez ensinar-nos,
quando o Desejado das nações viesse a reparar a sua obra: Gloria seja
a Deus nas alturas, e na terra pàz aos homens de boa vontade. (1)
2. 0 QUEDA E REDEMPÇÃO --- Tal era o homem, tal o estado do
mundo, nos dias da innocencia. Pouco tempo se nos vai a estudar esta
pagina da noss·a historia; pagina sim, que é de mais para escrever a
felicidade do hometn sobre a teITa, eis que chegamos á terrível catas-
trophe, cuja recordação é ao mesmo tempo tam profunda, tam universal
que a ileparamos no primeiro capítulo das tbeologias de todos os povos.
O homem cahiu 11
A esta queda fatal, escapa-se-nos dos labios um dilatado gemido, ai
e
de nós 1 ai de nós t mil vezes desgraçados de nós t é o que podemos
dizer meio suffocados de dôr. Todavia, eis qne lá se ouve um brado no
devolver dos seculos ·: Ditosa transgressão t e breve o Omnipotente nos
fornece a justificação de tam estranho grito.
Com effeito, longe d'exterminar para logo a raça humana como bem
o merooêra, longe de tratar ao homem como fizera aos Aujos, concede-
lhe Deus a prova do t'OOlpo para se rehabilitar. Ainda mais, prodigaliza-
lbe superabundantes meios de rec0perar os bens que perdêra por sua
culpa, e lucrar muito maiores ainda. A quem deve o homem um favor
tam mal merecido ? Eis ahi começa o Brande mysterio da miseri-
cordia.
Do mesmo modo que a Trindade Santíssima se cónsultára para crear
o homem, assim para o salvar se aconselllam entre si as tres Divinas
Pessoas. O Verbo eterno otferece-se ao Pai e se faz a.victima do bomem
tur. Unde homo primus non impediebatur per res exteriores a clara et firma con-
templatione intelligibilium effectuum quos irradiatione primae veritatis percipie-
bat sive naturali cognitione, sive gratuita. Unde dicit Aug. in 1I Gen. a.d litt.
33, quod forta.'Ssis Deus 'p timis hominibas antes loquebatur, sicut ~um a.ngelis lo-
quitur; ipsa ineommn.tabili veritate illustraMI me:ates eorum, etsi non tanta pál'ti-
cipa.tione divinae · eseenti·ae quantum capiu'lit &ngen. D. Th. q. 94, art. 1.
O Anjo da escóla desereve depois mui largamente se pretogatiivas do homem
innoeente : o que dizemos aqui e n'outr~ pMtes 11ão ,é tnais que o resumo.
(1) Luc; II. 14.

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INTRODUCÇÃO. XVII

culpado : sua medeaçã_~ é acceite. Para logo teve seu effeito o sacrificio :
a graça concede-se com novos priviJegios. Ata-se de novo o laço que an-
tes do peccado unia o homem a Deus. Esta reunião ou antes esta se-
gunda união, da qual Jesu-Christo é o Medeador, chama-se Religião. (t)
Por aqui se vê que a Religião em· todas as suas partes não é mais
que uma grande graça diversificada de tnil maneiras; os seus dogmas,
preceitos, sacramentos, as ceremonias todas do seu culto tam variadas
e tam beJlas, são como outros tantos canaes por onde correm as aguas
do manancial perenne da graça para o nosso espírito, o nosso coração,
os nossos sentidos. Nem é sem razão que assim expomos a religião (les-
de o seu comêço, encarando-a por iesta face tam justa e capaz de mover
o coração. E' que muitas vezes, a ignorancia, e mais as inclinações más
do homem, querem-lhe persuadir que a religião é um jugo, uma dadiva
penosa e funesta feita ao homem : muitos, n'esta deploravel persuasão,
não se sujeitam senão por força e por mêdo ás salutares préscripções da
fé ; outros, por máior desgraça, as abandonam escancaradamente ou se
ficam para com ellas n'mna criminosa indifferença.
Por aqui se vê tambem que a Religião de Jesu-Cbristo, ou o Chris-
tianismo, é tam antigo como a que~a do homem. (2) D'est'arte se faz
(1) E' esta a explicação de S. Agostinho nas suas Retractações.
(2) Segundo graves theologosi, o Christianismo remonta-se ainda. mais alto.
Ensinam elles que o homem não fôra creado n'um estado sobre-natural senão por
causa do meri,to do Verbo, cuja incarnação devêra effeituar-se inda na suppo ição
que o homem nao houvesse peccado. Bento XIV auctorisa formalmente esta opi-
nião; eis as suas palavras; "Merito Sixtus papa. IV animadvertit in nomrnllos theo-
logos qui censura afficiebant opinionem in bis versiculis contentam : Peceatores non
abhorres sine quibus nunquam fores digna, tanto filio; teste Diago. lib. 1 Annal. e.
33, ubi sensum dicti PontHicis exponit bis verbis: Cum duplex sit opinio catholi-
corum doctorum circa causas proocisas incarnationis ; altera quod si Adam non
peccasset. Dei Filias carnem non sumpsisset, a:ltera, quod etiam si humana n~tura
in Adam non fuisset lapsa, adhuc divinum Verbum factum fuisset homo, et utraque
opinio pietati, fidei, auctoritatibus et rationibus subsistat, atque prio1·i opinioni
versus innitantur : dicimus quidquid contra ipsos attentatum fuerit, temerarium,
proosumptuosum et prena dignum fuisse.• De Canonizat. et Beatif. Sanct. lib. 2.
e. 28, n. 10. - Todos sabem que Bento XIV é um dos papas mais sabios que tem
subido á cadeira de S. Pedro, e que elle mesmo approvou o seu tratado da canoni-
sação dos santos, composto quando era ainda arcebispo de Bolonha.

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xvm INTRODUCÇÃO.

paJpavel esta verdade que tanto releva apregoar nos nossos dias, que o
Christianismo é a religião de todos os seculm~; que nunca houve, nem
haverá no futuro outra; porque no estado da natureza decahida, não ha
religião possivel sem Medeador, e não ha outro Medeador. senão Jesu-
Christo, porque não ha outro Homem-Deus senão elle. (t)
E' por isso que nos occupamos aqui a escrever algumas paginas
sobre a ~ertesa da Revelação, a verdade e necessidade da Religião, e
a obrigação iwposta a todos os homens ricos ou pobres, em corpo de
nação ou como particulares, de guardarem esta grande lei ; e a louca,
criminosa, desgraçada indifferença que conduz acceleradamente o mun-
do moderno a esta inevitavel ·alternativa : ou de se abysmar nas san-
guinolentas saturnaes da anarchia, ou cahir debaixo do jugo do mais es-
pantoso despotismo que jamais opprimiu o genero humano.
Restabelecer e aperfeiçoar a união primith a do homem com Deus,
tal é pois a missão do l\fedeador. Para o conseguir, deve elle apagar
o peccado do mundo, o peccado que bastou a desconcertar o plano
divino. A fim de satisfazer a eterna justiça, será expiador; para repa-
rar em toda a natureza do homem os funestos estragos do peccado,
será doutor, modélo, medico. O genero humano triumphará plenamente
em soa pessoa do peccado e suas consequencias, como na pessoa do
primeiro Adam tinha desgraçadamente triumphado o peccado do homem
no espirito, no coração e no corpo.
Ora, como é evidente que a nossa união com o primeiro Adam nos
torna desgraçados e culpados; (2) assim a nossa união com o segundo
Adam evidentemente nos salva. O fim. da nossa vida n'este mundo, o nos-
so trabalho todo reduz-se pois a unirmo-nos com Jesu-Christo por uma
união completa e permanente ; começada na terra, consummar-se-ha ella

(l) Nec enim aliud nomen est sub crelo datum hominibus, in quo oporteat nos
salvos fieri. Âct. IV, 12. Unus enim Deus, unas et mediator Dei et hominum
homó Christus Jesus./. Tim. II, 5.
(2) Sicut revera homines, nisi ex semine Adre propagati nascerentur, non nas-
cerentur injusti; cum ea propagatione, per .ipsum dum concipiuntur, propriam in-
justitiam contrahunt: ita, nh!i in Christo renascerentur, nunquam justifica.rentur.
Concil. Trident . sesa. V. cap. 8.

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,.. -· - ·· - .
INTRODUCÇÃO XIX

no ceo, onde sómente, como nos tempos primitivos, Deus será ~udo em
todas as coisas.
Tal é, em poucas palavras, o plano divino da redempção humana.
Este admiravel designio, não o patenteou Deus todo a um tempo ;
quiz pouco a pouco desenvolver as consequencias e preparar-lhe a exe-
cução. Cumpria álem d'isso que o homem aprendesse por uma longa
experiencia, a necessidade que tinha d'um Redemptor. Todavia, a sabedo-
ria e a bondade divina assaz lhe dizem, segundo os tempos e as circums-
tancias, para o consolar em sua desventura, alimentar sua confiaHça, e
fazer sobrenaturaes as suas obras, sem comtudo lhe tirar o merito da fé,
nem deslumbrai-o pelo excessivõ fulgor .da sua luz. Proporciona-se Deus
ás necessidades e ás forças do homem ; faz resplandecer o sol da reve-
lação como o sol que illumina o mundo phisico, insensivel e gradualmen-
te. O esvaido crepusculo d'alva prepara-nos os olhos para os raios
mais vivos da aurora ; estes dispoem-nos para supportar os fulgurosos ar-
dores do meio dia. O mesmo se observa no mundo dos espJritos ; e não
sejamos nós que intentemos apartar-nos em nossas explicações d'esta or-"
dem provdencial, cujo author é Deus. ,
Portanto, começando da origem dos tempos, seguimos pelo de-
curso dos seculos a manifestação progressiva do grande mysterio da
nossa Redempção. Como elle se funda todo em Jesu-Christo por vir ou
em Jesu-Christo vindo, assim tambem é Jesu-Chrjsto a quem buscamos,·
seguimos, e mostramos -por toda a parte, desde a primeira até á ul-
tima de nossas lições. Os factos historicos não são senão a intimà-Únião
entre as promessas~ as figuras e as prophecias. O que sobresabe, avul-
ta, e vredomina em cada uma de nossas instrucções é a augusta ima-
gem do Messias.
D'esta sorte cumprimos nós o voto de S. Agostinhoj o qual pre-
tende que em todo o Antig<!> Testamento não se veja mais que Jesu-
Christo. (t) Cordeiro immolado desde o principio, Herdeiro de todo o
mundo antigo, e Pai do seculo futuro ; Pedra angular que une o novo

tl) Omnis Scriptura Chiistum narrat et charitatem docet ... Tota Lex gravi-
da erat Christo. Aug. Contr. Faust.

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XX INTRODUCÇÃO.

e antigo povo ; Centro de todas as cousas na ordem intellectual, mo-


ral e politica; o Christo era hontem, é hoje, e será em todos os secu-
los. E' d'elle que todas as escripturas fallam; logo não será d'elle que
deve fallar toda esta obra ·? Por isso~ como já deixamos dito, Jesu-Christo
regenerando o mundo, eis o centro, o alpba e o oméga, o principio,
o meio, e fim do nosso Catecismo.
Depois de ter mostrado qual é a natureza, os meios e o fim do
Christianismo; e conhecido que, nos conselhos eternos da divina sabe-
doria, não devia vir immediatamente o Redemptor, indagamos o que
devia Deus ao homem pela sua bondade, a fim de o consolar em uma
espectativa de quatro mil annos.
Ora, concebe-se bem que Deus devia t. º prometter ao homem um
Redemptor; 2. 0 dar-lhe os signaes por onde, quando chegasse, o reco-
nhecessem e se unissem a elle; 3. 0 preparar o mundo para a sua re-
cepção e estabelecimento de seu reino.
Eis o que Dens efiectivamente fez d'um modo ao mesmo tempo
digno da sua bondade e sabedoria infinita. Mostraremos poi5 que desde
a queda do homem até á vinda do Messias, todos os conselhos G.e ·
Deus apontam a este fim supremo ; e d'aqui a explicação successiva
das promessas, figuras, prophecias e todas as mais preparações para
o Libertador.
3. º O l\1Ess1As PROMETrmo. - Para que o homem não cabisse em
desesperação, e esperasse com paciencia por espaço de quarenta se-
culos, devia Deus, como já dissemos, prometter-lbe desde logo o Re-
demptor.
Apenas o Rei da Creação cahe do seu tbrono, a primeira pro-
messa faz brilhar a seus olhos humedecidos de lagrimas um raio d'es-
perança: Da mulher nascerá um filho, que esmagará a cabeça da ser-
pente. (t)
Adam comprependeu esta mysteriosa palavra, e a transmittiu fiel-
mente a 'seus fiJbos~·· ·

(1) Gen. III. 15.

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INTBODUC~ÃO. l,Xl

· Esta primeira promessa foi por doos mil annos a uaica esperança
do genero humano ; e supposto que mui generica bastou a alimentar
por então a coragem dos justos, e tornar meritorias as suas obras. A
segunda promessa determina a primeira. Feita como. foi a Abraham, fi-
xa-nos exclusivamente na posteridade do Santo Patriarcha. A' proporção
q3e os seculos se adiantam e o homem se torna apto para mais claros
conhecimentos, as promessas soccedem,.se cada vez mais formaes e de-
terminadas. E' maravilhosa esta longa serie de divinas promessas que,
desenvolvendo-se mutuam~nte, assim nos conduzem como pela mão da
generalidade das nações a um povo particular, d' este .povo a uma de
suas tribus, d'esta tribu a uma só familia. Chegado aqui, Deus pa-
rou; acabam-se :ls soas promessas, mas nem por isso as nossas incer-
tezas.
Verdade é que o homem tem já a wrteza d'um Redemptor, e que
este Redemptor sahirá da familia de David; mas n:'esta familia de David
que havia de existir sem confundir-se oom nenhuma outra até á
ruína de Jerusalem e da nação judaica, isto é, pelo espaço de mais
de mil annos, havia muitos ramos. Logo se não viessem esclarecer-nos
novas luzes, impossivel nos seria reconhecer entre tantos outros este
filho de David que ha-de salv~r o mundo ; e eis o genero humano
exposto ou a repellir o seu Redemptor quando venha a estender-lhe •
mão para o levantar da sua queda, ou a seguir o primeiro impostor
da casa de David que se attribuir o nome de Messias : a difficuldade
é gravissima, mas soceguemos que Deus a previu; elle nos dará o
signal por onde reconheçamos este filho de David ao qual o mundo de-
verá a sua salvação.
4.º O MESSIAS ASSIGNALADo.-Aqui, bem como nas promessas,
mostramos qµe Deus se ~ccom.moda á fraqueza do homem, dando-lhe
a ~onhecer a ver.d.ade gradualmente e por uma g,raduação insensivel.
Assim lhe desenvolve a intelligencia como os membros do corpo.
A principio os signaes do Libertador são debuxados em figuras.
Desde Adam até Jonas, espaço de mil annos, apparece uma longa se-
rie de personagens que representam todas o Messias em algumas cir-
cumstancias de seu nascimento, morte, resurreição e triumpho. · Deus

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XXII INTRODUCÇÃO.

proporciona-nos mil successos, ordena grande variedade de ceremonias


e sacrificios, que são aqui e além outros tantos rasgos disseminados no
grande quadro· da sua Providencia: e de cuja reunião resulta o assi-
gnalado esboço do Desejado das nações. Os sacrificios é a mais signifi-
cativa de todas as figuras. O sangue das victimas, a immolação perpetua
do cordeiro no Templo de Jerusalem, quotidianamente recordava ao
povo judaico a fntura Victima, cujo sacrificio deveria substituir a todos
os outros que nada valiam de si, senão pelo merito que este verdadeiro
sacrificio d'antemão lhes prestava ; e este mysterio permanente todo o
povo o entendia. (f)
Comtudo duas razões temos para não explicar no Catecismo senão
um certo .numero d'estas figuras : a primeira é que nos cumpria não
ultrapagsar os limites d'um Catecismo ; a segunda, que devíamos prefe-
rir sómente aquellas que os authores sagrados e os Padres da Igreja
nos offerecem como mais notorias e proveitosas na explicação de muitos
factos bistoricos. Todavia as que apresentamos e desenvolvemos fazem
o perfeito e exclusivo retrato do Messias, isto é de Nosso Senhor Jesu-
Cbristo : é impossível desconhecêl-o na representação e protótypo de
todos estes quadros.
Pelo que, ou se hade sustentar que todas estas admiraveis con-
formidades são um resultado do acaso, e negar ao mesmo tempo o
testemunho dos Padres da Igreja e ainda o dos escriptores sagrados do
Novo Testamento, ou aliás admittir que n' estas figuras quiz Deus realmen-
te representar o Messias, e dar ao mundo um esbôço do seu retrato. (2)
Todavia, devemos confessar que estes differentes signaes não bas-
tam: o esbôço não é bem o retrato que precisamos. Lançados aqui e
(1) Quorum quidem sacrificiorum significationem explicite minores autem
(os menos esclarecidos) cognoscebant: (os menos esclarecidos é o sentido que o mes-
mo S. Tbomaz dá a esta palavra, art. 4,) sub velamine illorum sacrificiorum cre-
dentes ea divinitus esse disposita, de Cbristo venturo quodammodo habebant ve 4

latam cognitionem. D. Th. 2, q. 2. art. 7.


(2) Vide entre outros S. Agostinho, de Catech. rud. e contra Faust, lib.
XXII; contra Felic. Manich~ Euseb. Demonst. Evang. lib. IV; Catecb. Cone.
Trid. p. 63 ; Bossuet, Sebre os caracteres das duas allianças ; e o prefacio geral
da Biblia de Vence.

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INTRODUCÇÃO. XXIII

alli envolvidos em sombras mais ou menos espêssas, apenas produzem


um crepusculo estes luminosos raios, que não o conhecimento exacto
do Libertador futuro. Quiz Deus pois, que este retrato não ficasse só
em esboço, como bem lhe chamamos, mas que se aperfeiçoasse e che-
gasse a um tal gráo de semelhança, de tal sorte caracteristica e cir-
cumstanciada. que fosse impossivel ao homem enganar-se e desco-
nbeçer o seu Redemptor, salvo o caso que quizesse cegar-se vohm-
tariamente.
Ora, para dissipar todas as sombras, determinar todas as figuras,
fixar todos os signaes, que fez Deus ?
Suscita os Prophetas. Associando a intelligencia d' elles á sua intel-
ligencia infinita, communica-lhes os segredos do faturo: eis um rasgo
da eterna sabedoria. Elle lhes põe diante dos olhos o Desejado das na-
ções, ordena-lhes que o retratem com tal fidelidade que seja bem diffi-
cil não distingnir, entre todos os outros, este filho de David que ha-de
salvar o mundo. Que são pois as prophecias? o retrato completo do
Redemptor promettido desde a origem dos tempos e representado em
mil diversas figuras.
«Na verdade, diz um dos mais celebres Orientalistas, examinando
com attenção o texto sagrado, vê-se claramente que todas as prophecias
não são, deixai-me assim dizer, senão um grande circulo, cujos raios
tendem todos para um centro commum. o qual 'não é nem póde ser oa-
tro senão Nosso Senhor Jesu-Christo, o Redemptor do genero humano
culpado desde o peccado d'Adam. Tal o objecto e o fim unico de todas
as propbecias que concorrem para o retratar por tal arte, que não po-
demos desconhecêl-o. Ellas formam no todo um perfeitissimo quadro.
Os mais antigos prophetas traçam o primeiro contorno, ao passo que se
substituem vai cada um acabando os relêvos que seus antecessores dei-
xavam imperfeitos. Quanto mais se avisinham do successo, mais se ani-
mam suas côres; terminado o quadro, desapparecem os artistas. O ulti-
mo, quando se retira, tem o cuidado de indicar o personagem que ha-de
levantar o véo e o encerra no futuro : Eis que \'OS envio, diz elle (t)

(1) Malachi. III, 33.

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XXIV INTRODUCf.ÃO .

em nome do Eterno, Elias o Propheta [João Baptista], antes que venha


o dia grande e terrivel do Senhor. (t) '
Em nosso Catecismo, expômos ~ste retrato do Christo, tal como o
traçaram os Prophetas : com elle nas· mãos, procuramos entre os filhos
de David que vieram antes da ruina do segundo Templo, no qual, como
disseram os mesmos Propbetas, devia entrar o Messias ; procuramos digo,
qual d'eJles é o retratado, a qual convém â pintura exclusiva e absoluta-
mente. Nem longo, nem difficil é o inquerito : qual o navegante que, ao
avistar a desejada praia, repete ·com enthusiasmo : Terra f Terra r breve
Jhe cahimos aos pés, o com os mais vivos transportes d'admiração, res-
peito e amor, pronunciamos o adoravel nome do Menino de Bethlém.
Explwando as prophecias, cuidamos muito em assignalar um facto
essencial e talvez pouco notado ·até aqui, (2) a saber que os Prophetas
nunca deixam d'authorízar os seus oraculos, concernentes ao Messias, an-
nunciando acontecimentos proximos, ou cajo cumprimento se são remotos,
serã tam visível, como o sol do meio dia. Citaremos um exemplo.
Quem poderá dnvid~r dos Oraculos d'Isaias ãcerca do Redemptor,
quando comparar a realidade do acontecimento com· a predicção d'este
grande Propheta ácerca da cidade de Tyro ?
No tempo em que fallava Isaias, Tyro era uma das mais populosas
e fortes cidades da Asia; e talvez a mais opulenta de todo o mundo.
Apesar d'isso o Propbeta prediz, em termos explicitas, que esta rainha
dos mares virá a ser om dia uma miseravel povoação, habitada por aJguns
pobres pescadores, que lavarão suas rêdes n'aquellas praias, onde outr'ora
abordavam as soberbas nãos de todas as naçoens. Tal é hoje a famosa Tyro.
Até o impio Volney, <em pé sobre estas i'Uinas, exclamou, lendo
Isaías : « cumpriu-se o oraculo rr » Mas ó homem ferido de cegueira l se
este oraeulo se cumpriu, os outros, de que elle é uma prova, não se cum-
priram tambem?

(1) M. .Drach, Pri~eira carta aos Israeljta.s, p. 41.


(2) Bem o notou Pascal,"que diz assim: As palavras dos prophetas são entre-
meadas de prophecias particulares, e das do Messias, a fim que estas ultimas não
ficassem sem provas, nem aquel'outras sem fructos. u Pensamentos, eh. XV, n. 0 13.

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INTl:\ODUCÇÃo. xxv

Fazemos notar ainda mais quanto é invencivel a prova da Divindade


da Religião tirada das prophecias. Por quanto, só Deus conhece o futuro,
o qual, dependendo do livre concurso das vontades e paixões humanas,
escapa a todos os calculos. Por consequencia, só Deus póde dar ao homem
este conhecimento. Este dom, que nos faz participar das luzes da intel-
ligencia infinita, é um dos maiores mil_agres que possam operar- e. Mas
Deus não póde fazer milagres para authorizar a mentira : logo, Jesu-
Cbristo, que se fez annunciar tantos seculos antes da sua vinda, por tão
grande numero de Proplii'tas desconhecidos uns dos outros, oomo o Re-
t.lemptor do mundo, o Enviado do Céo, o Messias promettido desde a
origem dos tempos, não é um impostor : logo, a sua Religião não é um~
fabula. Negar isto, é extinguir em si mesmo a ultima luz da razão; é col-
locar-se na classe dos brutos. Insistimos ultimamente na explicação das
prophecias em um ponto importante, que é o admiravel meio de que
Deus se serviu para authorizar, e pôr fora do alcance da duvida, ·a anti-
guidade e integridade dos livros divinos. Um exemplar de cada prop,ltecia
se depositava no Templo de J.erusalem, debaixo da custodia dos Sacer·
dotes. Numerosas cópias andavam nas mãos do povo que as lia habitual..
mente em suas casas, e nas Syoagogas. Poderia alterar-se uma obra, que
se achava diffundida por tantos milhares de pessoas desconhecidas umas
das outras?
Ainda mais : por um rasgo da Providencia que nunca poderemos
assaz admirar, o povo Judaico deixa de ser o unico depositario das Escri-
pturas quasi doas seculos antes da vinda do Messias. A rogo d'um rei
idolatra, seus Anciãos, isto é, seus Doutores, em numero de setenta e
dous, fazem uma tratlucção authentica dos livros Santos. Depo itada na
inai famo a bibli theca do mundo, ficou a coberto de qualquer fal ifi..
cação que dep i intentas e fazer-lhe este mesmo povo. Quando chegar
o momento, impossível será á Sinagoaa negar ou alterar o testemunho
de :Moysés e dos prophetas · áeeroa do l\tessias : . esta tradooção nós a
possuimos.
Depois da vinda do Redemptor, estes mesmos livrffi andam· nas
mãos das duas sociedades essencialmoote .oppostas uma á outra .. e~
mo poderão conloiar·se? Cousa admiravel t E' precisamente ..-do povo

http://www.obrascatolicas.com -----~- -
XXVI INTRODUCÇÃO.

judaico que Deus se serve para le,ar á evidencia a antiguidade e in-


tegridade das prophecias, é a este povo, o mais interessado em as al-
terar e destruir, que elle confia o guardai-as.
Debalde o convencem ellas, á face do Universo, do maior dos cri-
mes, e da mais inconcebível loucura; nem por isso é o judeu menos
aferrado aos livros sagrados : elle os conserva religiosamente, assim os
ama como o avarento o seu thesouro ; e, que lhe vá n'isso a vida, af-
firma e dá testemunho d' elles a todos e contra todos. Que digo., Não
sómente fez Deus de povo judaico o guarda incorruptível das Escriptu-
ras, como tambem o seu incansavel propagador ; motivo porque este
povo não se arreiga em parte alguma do globo: estand0 presente em
toda a parte, em nenhuma pára, caminha sempre levando comsigo, em
seu gyro vagabundo. e fazendo lêr a todos os povos, estes livros que
elle mesmo não entende.
Ainda não pára aqui : ha desoito seculos que um prodigio, nnico
na historia, conserva este povo, ou antes este cadaver de povo, sem
, chefe, sem pontífice, sem patria, sem altar nem sacrificio, por toda a
parte repellido e desprezado, unico resto do mundo antigo, sobrevindo a
todas as ruínas e a todas as revoluções, sem se fundir nem confun..
dir, destinado visível e expressamente a ser a eterna testemunha do
Messias.
Ora, dizemos que estas promessas, estas figuras, estas prophe-
cias admiraveis, os Judeos as comprehendiam sufficientemente para
expirar com a confiança no Redemptor futuro, e reconhecêl-o na sua vinda.
Em primeiro lugar, elles criam todos na vinda do Messias. Esta
crença era o primeiro artigo do seu Symbolo, o fundamento de toda
a sua religião; sabiam muito bem que o Messias descenderia d'Abraham
por Isaac, por Jacob, por Judas, e por David. Este divino Messias, an-
dando entre elles, perguntou-lhes um dia: «O Messias de quem é filho?»
-«de David,, responderam elles sem hesitação. (t) Se elles sabiam que
o Messias seria homem, tambem sabi~m que seria Deus. Endereçando~se
a Nosso. Senhor, interpellou-o n'estes termos o Summo Pontifice: «Ad-
juro-te em nome de Deus, que nos digas se tu és o Christo, filho do.
(1) Math. 22. 41.

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l~TRODUCÇÃO. XX VII

Deus vivo ?» Por onde claramente se mostra, que os Judeos não separa-
vam a idêa de filho de Deus da idêa de Christo. Outra vez, admira-
dos que Jesus lhes fallasse da sua morte, exclamam : «Pois o Christo
não deve vi \'er eternamente? t)
1) (

Quanto ás figuras, sobretudo os sacrificios, «OS mais illustrados, diz


São Thomaz já acima citado. tinham d'ellas um conhecimento explicito;
os demais possuiam a necessaria intelligencia para descobrir, ao menos
confusamente, os differentes traços do Redemptor.»
Se lhes fallardes das prophecias, dir-vos-hão, com muita confiança,
que segundo os propbetas, o Christo deve nascer em Bethlem de Juda~
que hade libertar a casa de Israel; que será Rei. E de facto, como se
hade suppôr que esta ·gente não entendia um livro que raceberam ex-
pressamente para annunciar-lhes o Re,parador do mundo, e que desde a
primeira até á ultima pagina não falia senão d'elle? (2)
Se pois as promessas, figuras e prop!iecias foram feitas para
os Judeos, muito mais para nós os Christãos. Ellas nos revelam o pla-
no admiravel da nossa Redempção, começada desde a origem dos tem-
pos, e desenvolvida sem interrupção por uma longa serie de seculos;
estabelecem a nossa fé sobre bases insubversi veis, mostrando-nos que a
Religião Christã estende as suas raízes até os primeiÍ'os dias do mun-
do ; que é herdeira de todas as cousas; e que é impossível que uma Re-
Jigião, da qual o fundador, os mystérios, os combates e os triumphos
tem sido annunciados. figurados e predictos tantos .seculos antes, não
seja infallivelmente a obra de Deus. Demais as prophecias que já se ve-
rificaram, assegurando-nos do cumprimento de todas aquellas que dizem

(1) João. 12. 34. A Sinagoga considerava o Messias esperado como uma das
tres pessoas divinas de Jehova, hypostáticamente unido á natureza humana, forma-
do milagrosamente no seio puro e immaculado d'uma Virgem, da Virgem annuncia-
da seis centos annos antes pelo Propheta !saias. Ta.as são as palavras de M. Dra-
cb, antigo rabino convertido, bibliotecario da propaganda, na sua obra impressa
em Roma, no anno de 1840, por ordem do N. S. P. Gregorio. XVI, do divorcio em
ii Synagoga, pag. 15. Vejam-se tambem as provas da divindade do Messia8, tiradas
das tradições antigas, pag. 385 e seguintes, pelo mesmo author.
(2) Act : X, 14,

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:X.XVIII INTRODUCÇÃO.

respeito aos seculos futuros, estabelecem a certeza da nossa fé sobre duas


bases das quaes uma se refere ao passado, outra - ao porvir : assim o
notou Santo Agostinho. ('I)
4. O MEss1As PREPARADO - Deus acaba d'empregar quinhentos
annos em dar-nos, pelo orgão dos Prophetas, a descripção completa
do Messias, o lugar do seu nascimento, o tempo da sua vinda; n'uma
palavra, todos os pormenores de suas acções - Que mais é preciso? E'
o que pas~amos a vêr.
Quando um grande rei, ternamente amado de seu povo, impa-
cientemente esperado, tem de fazer sua entrada em a capital do seu
reino, todos se afadigam em lhe aplanar os c::lminhos, abrir todas as
portas, preparar emfim todos os espiritos para o receber. Da mesma
1

sorte, o Verbo eterno, o Rei immortal dos Seculos, o Desejado das Na-
ções, estando prestes a fazer sua entrada no mundo, seu Eterno Pai,
aplana-lhe todos os caminhos, abre-lhe todas as portas, prepara-lhe
os animos para o receber, e faz convergir todos os snccessos ao estabe-
Jecimento do seu reino eterno. Admiravel preparação, grande e mages-
tosa, que começa a fazer-se sentir desde a vocação d'Abraham; mas
que se torna evidente quinhentos anoos antes da chegada do grande
Rei 1
Aqui desenvolvemos o plano divino mostrando, com a authori-
dade dos Prophetas, que todos os successos politicos anteriores ao
Messias, e mórmente os quatros grandes imperios que, segundo Da-
niel, deviam preceder a sua vinda, concorrem, cada um por seu mo.:.
do, a preparar o reino d'este Desejado das Nações, por quem e para
quem tudo foi feito.
Ora, se considerarmos que estas quatro grandes monarchias não
se levantaram senão pelo decurso dos seculos ; que foram preparadas
por uma aHuvião rle successos, guerras, victorias e allianças, de que o
Oriente e o Occidente foram theatro desde a mais alta antiguidade; e
que estas monarcbias se desenvol.veram absorvendo todos os ·outros im-
perios ; claramente vêmos que ellas conduziram o mundo inteiro aos

(1) De Catech rnd. n. ultim.

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lNTRODUCÇÂO. XXIX

pés de Jesu-Christo, como os grandes rios conduzem ao Oceano, não só


as aguas de suas fontes, mas tambem as de todos os ribeiros seus
tributarias.
D' esta sorte, a historia :'agrada e profana estam d'accordo em dar-nos a
prova palpavel d' estas palavras sublimes: que Jesu-Christo é o herdeiro
de todas as cousas; que todos os 3eculos se referem a elle, (t) e que
não sómente a nação judaica, mas todas as nações do globo, estavam,
para assiai dizer, gravidas d'elle. (2)
Com a aulhoridade dos Propbetas mostramos, que o primeiro dos
quatro grandes imperios predictos por Daniel, que é o de Babilonia ou
dos Assírios, tinha por fim providencial forçar os Judeos a conservar
intacto o deposito sagrado da promessa do Libertador, sua expectativa, e
seu culto.
Que o segundo, i~to é o dos Persas, tinha por fim attender ao
nascimento do Messias na Judea, e operar o cumprimento das prophe-
cias, segundo as quaes elle devia ser reconhecido como filho de David,
e entrar no segundo templo.
Que o terceiro, que é o dos Gregos, tinha por fim preparar os
espiritos para o reino do Messias, e facilitar-lhe o estabelecimento; já
vulgarisando, do Oriente ao Occidente, a lingüa em que o Evangelho
devia ser annunciado; já disseminando os Judeos por todas as partes
do mundo; já fazendo conhecer universa-lmeDte ()5 livros Santos pela
traducção d'Alexandria, que ao mesmo tempo os apre·goa e os põ" a
coberto das alteraç.ões judaicas.
Mostramos emfim, que o quarto imperio, que Tem a ser o dos
Romanos, tinha por fim aplanar todos os caminhos para a pregação do
Evangelho, superando todos os obstaculos que ainda separavam os di-
versos povos e nivelando o solio e o pavimento de longas e espaçosas

(1) Hebr. : 1, 2. .
(2) Tota. lex gravida erat Christo. - O mesmo diz S. Jeronimo por estas pa-
lavras: aToda a economia do mundo visivel ou invisível, antes e· depois da crea-
ção, referia-se ao advento de Jesu-Christo á terra. A cruz de Jesu-Christo é o api-
ce para onde tudo converge, o summario de toda a hi~toria do mundo,,, Comment.
sobre as Epistolas de S. Paulo.

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- . - - ----- -
xxx INTRODUCÇÃO.

estradas d'uma a ootra extremidade do mundo ; cumprir a celebre pro-


pbecia de Jacob moribundo, e dar a ultima demão á preparação Evan-
gelica, fazendo nascer o Messias em Bethlem.
Admiravel philosopbia da Religião ! que resume em tres palavras
a historia Universal de quarenta seculos : Tudo para o Christo, o Chris-
to para o homem, o homem para Deus.
Oh ! certamente, admiravel phi1osophia ! cuja sublimidade maravilha
o sabio, e cuja simplicidade desce ao Pivel das mais curtas intelligencias:
nos tem mostrado, que nem uma de tam sublimes verdades é difficil de
comprehender aos meninos. (t)
Assim Deus, o homem, o mundo, Jesu-Christo promettido, assi-
gnalado, preparado ; tal é o objecto <las nossas lições durante o primeiro
anno.

II.

SEGUNDO ANNO.

f. VroA no MESSIAS.= Preencheram-se os tempos. Eis-nos que


sabimos do reino das sombras e das preparações, para entrar em o
da luz e da realidade. Qual é pois o nosso primeiro dever, senão
apresentar o Evangelho, segundo o parecer do Santo Bispo d'Hippo-
na, como o cumprimento e commentario divino do velho Testamento ?
(t)

(1) Sinite parvulos venire ad me: Mar: 10. E' assim que Jesu-Christo cha-
ma a si os pequeninos, e nos diz que a verdade é um bem que deve pertencer a
todos. Certo que seria, e de que serviria a verdade, se houvera de ser a herança
exclusiva d'alguns homens privilegiados pela fortuna ou pelo genio ? A verdade
que não pertence ao genero humano é uma nullidade e~ si mesma. Nota do Tra-
ductor.
(1) Quapropter in Veteri Testamento est occultatio Novi, in Novo Testa-
mento est manifestatio Veteris. De Catech. rud.

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INTRODUCÇÃO. XXXl

Por isso, apressamo-nos a ensinar com os padres da Igreja que a


Religião, coeva do mundo, conhecida dos Patriarchas, desenvolvida em
Moysés e os Prophetas, foi ultimada em o Evangelho ; accrescentando
com S. Ambrosio e S. Thomaz, que a Igreja é um estado intermedia-
ria entre a Synagoga e o Céo : o Judeo só tinha sombras sem realida-
de ; o Christão possue a verdade occulta debaixo de véos, o Santo a vê
face a face e sem intermedio. (t) O Antigo Testamento manifesta-se em
o novo, e estP ~ed manifesto na Eternidade.
Assim é que mostramos aos jovens Christãos que a sna religião,
como Deus que é o seu author, abraça todas as relações da duração;
que ella era hontem, que é hoje, e que tambern será pelos seculos dos
seculos. Comtudo, sendo sempre a mesma, não foi ella sempre desen-
volvida do mesmo modo, mas teve um continuado progresso: desde
Adam até o Messias foram-se successivamente desenvolvendo as promes-
sas, fignras e prophecias, (2) rem como o sol, que se levanta lenta-
mente sobre o horisonte, não derrama senão pouco a pouco os seus
abrazados raios; e a lande que, com os annos, se torna um magestoso
carvalho ; ou ainda o homem, que passa por suas differentes idades,
sem deixar de ser sempre o mesmo homem.
Por tanto, após de termos esboçado o estado geral dos animos, e
a situação particular da Judea á chegada do Messias, passamos a mos-
trar o filho da augusta Virgem de Judá, occupado desde seu nascimento,
não a fundar uma religião nova, mas a completar a antiga no dogma,
na moral e no culto; substituindo seus elementos enfermos por sacra-
mentos cheios de graça e efficacia ; abol!ndo todos os ritos que apro-

(1) Ilia. nobis cxpectanda sunt, in quibus perfectio, in quibus veritas est.
Hic umbra., hic imag<t, illic veritas. Umbra in lege, imago in Evangelio, veritas
in coelestihus. Ambr. de Offic. lib: 1, e. 48.- Status novae Legis medius est in-
ter statum veteris Legis .... et inter statum gloriae.- Lex vetus est via ad Le-
gem novam, sicut Lex nova ad coo]estem Ecclesiam, seu ad crelestem biera1·cbiam.
D. Th. passim.
(2) Et eá qure ad mysteria Christi pertinent, tanto distinctius cognoverunt,
quanto Cbristo propinquiores foerunt. D . Th. 2, q. 2, art. 7.

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XXXII INTRODUCÇÃO.

priavam ao Pº"º Judaico ; proclamando por si mesmo o fim da sua


missão por estas palavras luminosas. Eu não vim para destruir a lei
ou os prophetas, mas para a cumprir e verificar ('t) : d'est'arte unindo
a sua obra á obra antiga, ou antes ensinando-nos que o Antigo e Novo
Testamento não fazem mais que um todo, do qual elle mesmo é o
centro; um só edificio, de que elle é a pedra fundamental. (~).
Forçados a resumir a narração de suas maravilhosas obras, Jimi-
tamo-nc5 a contar circumstanciadamente aquellas em que elle se mos-
tra, com mais brilhante esplendor, como expiador, doutor, modêlo, me-
dico de todas as enfermidades ; que vale o mesmo que Redemptor e
Salvador do genero humano, em toda a extensão d'estas grandes pala-
vras. Depois passamos de leve por tudo o mais. Tendo assistido ao seu
nascimento, á sua vida, á sua prégação como Homem Deus, conside-
ramo-lo na sua morte, morrendo como Deus, e provando, mais im·enci-
velmente que na vida, a sua divindade. Conduzimos os meninos Chris-
tãos ao theatro das suas dôres, para os cornmover 'e instruir. Quem não
folgará de vêr os lugares onde elle nasceo? o Cal vario foi o nosso ber-
ço: ahi conduzimos o mesmo incredulo para o convencer. Do Calvario
descemos com o Salvador ao Sepulchro; d'ahi seguimos ao Limbo este
morto livre entre os mortos, prégando o Evangelho ás almas bemaventu-
radas, e fazendo brilhar, n'essas sombrias regiões~ a Aurora de seu li-
vramento.
Os tre3 dias assignados peios Prophetas preenchem -se ; o filho do
Eterno snrge do Tumulo, vencedor do peccado e da morte, sua conse-
quencia. Vemos confundidos seus inimigos, reduzidos a necessidade de
comprar a pêso d'ouro o falso depoimento de testemunhas adormecidas.
Depo!s ajuntamos as provas principaes da resurre;ção do Messias, pe-
nhor da nossa, e base de todo o Christianismo. Narramos as suas di-
versas apparições, e as provas a que, por sua condescendencia se di-
gna submetter-se para convencer os Apostolos. Concluímos aqui um ra-
ciocinio, do qual quarenta seculos de promessas, figuras, prophecias e

(1) Matth. v. 17.


(2) Ephes. II, 20.

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INTRODUCÇÃO. xxxm
preparações litteralmente cumpridas em Nosso Senhor Jesu-Cbristo, são
as magnificas premissas, e do qual a divindade do Salvador é a neces-
saria consequencia.
Demais, pelo exame dos factos exteriores, mostramos que r_fosso
Senhor é veracissimamente o Messias promettido ao genero humano, e
esperado por todos os povos.
O primeiro facto é que desde o dia do seu nascimento, a expecta-
tiva do Messias reparador do homem, universalmente. vulgar.isada como
confessam os mesmos incrédulos, tambem acabou em todas as nações,
excepto tam sómente na Judaica. Mas admiravel cousa l esta mesma ex-
cepção redunda toda em nosso favor. Estava formalmente predicto que
(IS Judeos não reconheceriam o Messias quando elle apparecesse (l), de
sorte que se por tal o houvessem reconhecido, Nosso Senhor Jesu-
Christo não seria o Messias. Assim é que tudo conspira para dar uma
inabalarel certeza á sua divindade.
O segundo facto é, que Nosso Senhor cumpriu realmente, em toda
a sua extensão, a missão do Messias prom.etlido, Desejado das nações.
Por quanto, que de\·ia fazer o :Messias? uma cousa sómente, mas que
abrange tudo : apagar o peccado do mundo, (2) ou segundo a palavra de
Deus á primeira mulher: esmagar a cabeça da serpente. (3)
Ora, mostramos que Nosso Senhor apagou o peccado. Em relação
a Deus ; clle prestou uma homenagem infinita a sua magestade, e uma
satisfação infinita a sua justiça.
O presepio e a cruz são d'isto evidentes provas. Em relação ao ho-
mem ; foi elle obediente até á morte, e morte de cruz, afim d'apagar uma
desobediencia infinita. Em relação a Deus e ao homem, foi homem e Deus
a fim de reunir da maneira mais intima aquelles mesmos a quem o pec-
cado tinha separado.
Elle reparou todas as consequencias do peccado; a ignorancia, a concu-
piscencia, a morte : na sua pessoa, o homem conheceu a Deus p01·feita-

(1) Dan. IX, 26.


(2) João I. 29.
(3) Gen. III, 15.

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XX XIV INTRODlJ CÇÃO.

mente, foi tambem libertado da concupiscencia e da morte, e reina boje


triumphante em os Céos. E depois mostramos esmagada a cabeça da Ser-
pente, isto é, o imperio do demonio abalado até os fundamentos pela
Doutrina e milagres de Nosso Senhor; em quanto seus Apostolos, her-
deiros de seu poder e prégadores de sua Doutrina, não vão em seu
nome fazer cahir em ruinas os templos e os ido los, d'uma a outra extre-
midade do mundo. Todas estas verdades, consignadas em a vida de Nosso
Senhor, são factos historicos. Ora~ os factos de Jesu-Christo, disse o phi-
losopho de Genebra, estam mais bem provados que os de Socrates, dos
quaes ninguem du\'ida.
2. O MEs s1As Novo AnAl\1.-Assim que, na pessoa do Homem-Deus,
foi, e conlinúa a ser o genero humano perfeitamente rehabilitado; mas
é preciso que cada um de nós tenha parte n'esta rehabilitação, d'outra
sorte de nada nos servirá o Christo. ( l) Aqui vem collocar-se per si mesma
a explicação de uma verdade fundamental, sem a qual não se compre-
hende o Christianismo. (2) Ouçamos o mais sublime interprete dos pen-
samentos divinos, o perscrutador mais profundo da obra da Redempção
humana.
S. Paulo niío vê em todo o mundo mais que dous homens: o pri-
meiro Adam, e o segundo Adam que é Nosso Senhor. (3)
O primeiro representa o genero humano decahido; o segundo repre-
senta o genero humano regenerado. A união de toda a descendencia hu-
mana com o tronco primitivo é quem a faz culpJCla e miseravel; a união
com o segundo tronco é qnem a torna ju~ta e feliz. A uniã(I da familia
humana com o primeiro Adam é completa, (4) ainda que moral: razão
porque o homem ficou depravado em todas as partes da sua entidade.

(1) Galat. V, 2.
(2) a Toda a sciéncia da Religião, diz S. Agostinho, toda a fé christà consiste
propriamente em o conhecimento do primeiro e do seguodo Adam; o que herdamos
d'aquelle, o que recebemos gratuitameute d'e te· a natu reza cabida em Adam, a
natureza reparad a em J. C. ; eis ahi toda a Reli iao. » Do peccado ori g . p . 265.
(3) Rom. V. I. Cor. XV. Ephes. IV - Veja-se tambem o concilio de Trento
já citado.
(4) Omnes erant unus Adam. Aug.

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IN'fRODUCÇÃO. xxxv

Que é preciso pois para sermos regenerados ? é preciso, diz o grande


Apostolo, que tenhamos em nós mesmos a imagem do homem celeste,
as3im como temos a do homem terrestre ; é preciso que ,·enhamos a ser
filhos do novo Adam pela communicaç~o do seu espirito e natureza di-
vina, assim como nascemos filhos do primeiro Adam pela participação da
Carne do peccado. (i) D'aqui nasce, para cada um de nós, a indispensavel
necessidade d'unirmos ao novo Adam todo o nosso ser. (2)
3. UNIÃO DO HOMEM CO~I o NOVO ADAM-A índispensavel união, de
que acabamos de fallar, cumpre-se na vida presente pela Fé, pela Espe-
rança, e pela Charidade.
Estas tres virtudes, diz o incomparavel S. Thornaz, são tres elem~ntos
que, accrescentados á natureza do homem pela graça do Redemptor, o
elevam como por tres degráos á uni:ío deifica; fazendo-o, segundo a ex-
pressão de S. Pedro, participante da natureza di\'ina.
A Fé elera a intelligencia, enriquece-a de certas verdades sobrenatu-
raes que a luz divina lhe faz cunhecer.
A Esperança eleva a vontade, dirige-a para a posse do bem sobre-
natural que nos é promettido. A Charidade eleva o amor e o faz tender
á união com o bem sobrenatural, tornado por este modo o seu objecto
supremo. (3)

(1) II Petr I, 4. I Cor. XV. 49. Hrbr. Ir, 14; Id. III, 14.
(2.) 8icut fuit vetus Adam effusus per totum hominem ot totum occupavit ; ita
modo totum obtineat Cbristus qui totum creavit, totum redemit, totum et glorifica-
bit. Bern. Serm. IV, de Aveut. n. 2 e 3
(3) Per virtutem perficitur homo ad actus quibus in beatitndinem ordinatur.
Est autem duplex hominis beatitudo, sive felicitas. Una quidem proporcionata hu-
mn.nre naturre, ad quam scilicet homo pervcnire potest per principia suae naturae.
Alia autem est beatituuo naturam horninis excedem'I, ad quam humo sola. divina vir·
teute pervei:i.i·e pote3t, secundum quamdam dh·iuitatis participationem, secundam
quod dicitur II Petr. 1, qnod per CJhristum factí sumus consortes divinae naturae.
Et quia hujusmod i beatitudo proportionem humana.e naturae excedit, principia
naturalia homini , ex quibu procedit ad bene agendum, secuudum uam propor-
tionem, non sufficiuot ad ordiua11dum hominem in beatitudinem praedictam; unde
oportet quod superaddantur hornioi divinitus aliqua principia, per quae ita ordinetur
ad beatitudinem supernaturalern, sicut per principia naturalia ordinatur ad fidem

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lXXVl INTRODUCÇÃO.

Crêr, esperar e amar, taes são tambem os actos fundamentaes da


cooperação que exige de nós o novo Adam para nos unirmos a elle.
D'onde, com effeito, dimana toda a economia de nossa santificação na
terra e de nossa glorificação no Céo. A fé começa a nossa união com Deus,
a esperança a cor.tinúa, a charidade a conclue. (t) Por consequencia, d' esta
noção, ao mesmo tempo tam profunda e luminosa, result:i a ordem e o
encadeamento, que seguimos n'esta obra, das differentes partes da doutrina
christã, ou do Catecismo propriamente dito.
A fé tem por objecto a Deus como a verdade mesma, e o que nos
elle revela, que é o syrnbolo.
A esperança tem por objecto a Deus como a bondade mesma, e o que
nos promette, que é a graça e a gloria ; os meios d'obter a graça é a
oração, e os sacramentos.
A cbaridade tem por objecto a Deus como soberano bem ; e o que
nos ordéna, seja por si mesmo, seja por sua incorruptível esposa, que é
o Decalogo, e os mandamentos da Igreja.
Seguem-se as causas que rompem esta união divina; as paixões, e
o peccado ; depois os preservativos d'este unico mal que são as virtudes
contrarias ás inclinações depravadas do coração humano.
E' especialmente n'esta parte que necessitavamos um plano perfeita-

connaturalem; non tamen absque adjutorio divin<_>: et hujusmodi principia virtutes


dicuntur theologicae : tum quia habent Deum pro objecto, in quantum p~r eas rectc
ordinamur in Deum; tum quia a solo Deo nobis infundantur; tum quia sola divina
revelatione in sacra Scriptura hujusmodi virtutes traduntur ....
Uode oportuit quod aliqnid homini supernaturaliter adderetur ad ordinandum
ipsum ad finem supernaturalem. Et primo quidem quantum ad intellectum adduntur
homini quaedam prin<>ipia supernaturalia, quae divino lumine capiuntur; et haee
sunt credibilia, de quibus est ftdes. Secundo vero est voluotas, quae ordinatur in
illum finem et quantum ad motum intentionis in ipsum tendeutem, sicut in quod
est possibile consequi, quod pertinet ad spem ; et quantum ad unionem quamdam
spiritualem, per quam quodammodo transformatur in illum finem, quod fit per cha-
ritatem. P. 2, q. 52, art. 1 e 3.
(1) Domus Dei credendo fundatur, sperando erigitur, diligeodo perficitur. S·
Ag. Serm. 37, t. 1.

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INTRODUCÇÃO XXXVII

mente methodico. Entre todas as partes da doutrina Christã existem rela-


ções intimas, cujo conhecimento aclara e facilita o seu ensino.
Se ha a desgraça de as desconhecer ou a imprndencia de as despre-
zar, as materfas e os capitulos da catechesis atropellam-se sam ordem
racional: cada parte fórma de certo modo um todo separado; o objecto
que precede já não reclama o que se segue; as verdades fundamentaes
já não são sufficientemenle luminosas; algumas vezes tornam-se até secun-
darias : o ensino perde o seu vigor e clareza, perdendo o encadeamento
logico. O menino por esta causa já não sabe aonde vai ; a sua memoria
fatigada facilmente esquece doutrinas que lhe não offerecem mais união
ou harmonia que um punhado de agulhas arremessadas sobre uma mesa.
A primeira \·antagem do plano que seguimo~ é e\·itar este inconve-
niente; a segunda, collocar no logar honorHico que ihes compete as tres
virtudes fundamentaes do Christianismo, a fé, a esperança e a charidade;
que são as trcs origens da salvação, bases primeiras de todo o edificio
da Religião : a terceira, é tornar o ensino por este modo tam simples como
fecundo; porque abraça sem esforço todas as partes da doutrina christã,
as quaes entram naturalmente na sua collocação logica, como as differentes
peças de um brilhante mosaico em uma copia de Raphael, ou de Miguel
Angelo : a quarta, é tornar solido este mesmo ensino, BellíJrmino, entre
outros, seguio este plano no Catecismo de Roma, solemnemente appro-
vado por muitos soberanos Pontífices. (1) O sabio cardeal obrando assim
mostrou-se discípulo de S. Agostinho, que pretende igualmente que todo
o ensino da Heligião se reduza á fé, esperança e charidade: «Triplice con-
dição, como diz o grande Doutor, que nos associa á republica divina. (2)

(1) Entre outros, Clemente VIII, 15 de Julho de 1595; Bento XIII, 17 d'Agosto
1728.
(2) Quidquid narras it11 narra ut ille cui Ioqueris audiendo credat, credendo
speret, sperando amet .•. divinam coelestemque rempublicam, cui nos cives adsciscit
fides, spes, charitas. - Quando omnis terra canüt canticum novum, domus Dei est.
Cantando aedificatur, credendo fundatur, sperando erigitur, diligendo perficitur, modo
ergo aedificatur: sed in fine seculi dedicatur. De Catechis. rud. Epist., class. III, t.
II, p. 622; Serm. XXVII, t. V, p. 206, cap. 1.
Bellarmino apoia o seu plano sobre o ultimo texto de S. Agostinho; mas modi-

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XXXVIh lN'fRODUCÇÃO.

D'est'arte, folgamos de o repetir: para o plano geral, S. Agostinho;


para o plano secundaria, S. Agostinho e Bellarmino ; estes os dous mestres,
cujas pizaclas seguimos. Passemos aos desenrnlviinentos.
4. UNIÃO no HO~IEM cm1 o NOVO AnAM PELA FÉ. - Esta admiravel
economia do Christianismo, estas indispe11saveis condições da nossa salva-
ção, foram objecto particular das conversações do Salrndor com os seus
Apostolos, durante os quarenta dias que decorrem entre a sua Resur-
reição e Ascensão. E' então que elle lhes dá a intel!igencia das Escriptu-
ras, e os instrue em os profundos segredos do reino de Deus. (1) Por

fiea um pouco o pensamento do S. Doutor a quem havemos seguido em toda a sua


simplicidade sublime. D'este modo Bellarmino trata os Sacramentos debaixo de seu
titulo particular; fazendo uma parte separada o que nào faz 8. Agostinho. Nós o
collocamos como meios de obter a graça debaixo do titulo da Esperança, onde o mesmo
Bellarmino colloca outro meio d'obter a graça, a oração. Aqui citamos no texto ori-
ginal as palavras do illustre principe da Igreja: Le parti principali piu necessarie
di questa dottrina sono quattro; cioe il Credo; il Pate1· nosler, i dieci comandamenti,
et i sette sacramenti.
Perché sono quattro ne piú ne meno ?
Perche tre sono le virtú principali, fede speranza e carità, II Credo e necessario
per la fede, perchê c'insegna quello che abbiamo da credere. ll Paler nosler e neces-
sario per la speranza, perche é insegna quello cbe abbiamo da sperare. Li dieci co-
mandamenti sono necessarj per la carità, perche c'im:e~nano qnello che abbiamo da
fare per piacere a Dio. I sacramenti i-;ono nccessari, perche sono gli stromenti con i
quali si recevono e couscrrnno le virtú, le quali abbiamo detto esser necessaric per
salvarsL Santo Agostinho, Serm. 20, de verb. Apost. (vetus edit), ci dà lasimi litu-
dine d'clla casa: perche, :"iccome per fare una casa é necessario mettere primo il fon-
damento, e poi alzare le mura, e alia fine coprila con il tetto, e per fare queste coso
ci bisognano alcuni istrumenti ; cosi per fare nell' anima l'edificio d'ella salute, ci
bisognano il fondamento d'ella fede, Ie mura d'ella speranza, il tetto d'ella carità, e
gli Ü;trumenti che sono i santissimi sacramenti. Dottrina crist. e. I, p. 7, 8, 9.-
D'aqui se vê que o sabio cardeal altera o pensamento de S. Agostinho, fazendo quatro
partes do que elle nào faz .senão tres. Quanto ao mais é evidente que esta modifi-
raçào em nada prejudica a divisão fundamental.
(1) Act. 1, 3. - Este mesmo é o sentir de S. Leão:« Non ergo ii dies qui inte1·
cesurrectionem Domini ascensionemque fluxerunt otioso transiere decursu, sed
magna in bis confirmata sacramenta, magna sunt revela ta mysteria. • Serm. 1 de
A.acena.

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l~Tl\ODUCÇÃO. XX.XIX

isso, collocamos n'esta épocha a explicação circumstanciada de toda a sua


doutrina.
O Salvador nrro se contentou com dizer em geral: aquelle que não
Crfr será cvndemnado; entrando em os pormenores, ensinou a seus Apos-
tolas todas as verdades que deviam prégar ao mundo e que o homem
de\'ia crêr para se unir com o seu Red~mptor, a fim de participar do
beneficio da Redempção. Os Apostolos fizeram d'ellas um resumo.
E' então que, havendo mostrado a necessidade da fé, explicamos o
Symbolo catholico. N'elle estam contidas todas as verdades fundamentaes
da Religião e da philosophia humana.
DEUs, um em substancia, trino em pessoas: o Pai, a obra da creação
e o governo do mundo; o Filho e a obra da redempção; o Espírito Santo
e a obra da santificação; por consequencia a Igreja com a sua magnifica
jerarchia e sua constituição immortal.
O HOME~I, mysterioso composto de duas substancias ; o homem, creado
innocente e bom, depravado por sua culpa, submettido a uma prova de
rehabilitação, cercado de todos os meios de reconquistar, com novas van-
tagens, a sua perfeição primitiva ; e obrigado a dar contas, no fim d'esta
sua prova, do uso qne tiver feito d'ella : felicidade, on miseria sem vicis-
situde e sem fim, inevitavel alternativa, e unica depois do juizo divino.
O MUNDO, creado por Deus, regido pelas leis d'uma providencia uni-
versal, e destinado a passar pelo fogo no dia marcado por aquelle que o
tirou do nada.
Eis-ahi em poucas palavras o que o Symbolo catholico nos revela
sobre tudo o que póde ser objecto de nossos conhecimentos : Deus, o
homem e o mundo. Para comprchender toda a sublime simplicid.ade d'este
Symbfllo, não tendes mais que comparai-o com os Symbolos das mil seitas
que teem alternadamente apparecido na terra.
Notai sobretudo uma cousa em que se não tem assás advertido; como
cada mn d'estes artigos reduz a pó uma, ou muitas das theorias absurdas,
ruminadas pelos philosophos pagãos ácerca de Deus, do homem e do
mundo; e de~enterradas, com tam pouca vergonha, pelos impios modernos.
Ca~a palavra é um raio de luz que dissipa uma parte das trevas em que
a razão do homem ficou envolta depois da quéda original, e a reunião

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INTl\ODUCÇÃU.

de todos estes ráios diversos produz o sol da verdade, ante a qual desap-
parecem touas as trevas, como as sombras da noite diante do astro do
dia;
Examinem o Symbolo catholico com imparcialidade, e digam-nos de~
pois se é possível achar ahi cousa mais completa, veneravel, utii, e conso-
ladora 'l
Povos modernos 1 que tam ufanos andaes com os vossos conhecimen-
tos, reparai bem que é ao Symbolo catholico que deveis a vossa superio-
ridade intellectu:il sobre as nações pagãs d'ontr'ora e d'hoje; a elle é que
deveis o estardes liues dos erros grosseiros, e superstições infames que
aviltavam o Senado e o Areopago. E' elle que, ao dogma desesperado do
cego destino e da inexorJvel fatalidade, substitniu a consoladora crença
d'uma providencia universal, que rege o mundo e vela o homem, como
o homem mesmo a pupilla de seus olhos. Digam-nos agora que os dogmas
christãos são inuteis ou contrarias á razão l
Este Symbolo sendo como é a verdade, a intelligencia que o aceita.
recebe por tanto alguma cousa de Deus. ('1) Os pensamentos divinos do
novo Adam substituem-se ã triste herança do primeiro, aos nossos huma·
nos; falsos, incompletos pensamentos. E' assim que se opera a nossa união
ou antes a nossa transformação intellectual em o Redemptor. N'este pri-
meiro ponto de vista, cada crente póde dizer : Já não sou eu, filho do
velho Adan, que vivo, é Jesu-Christo que vive em mim.
5.º UNIÃO no HOl\IEM col\I o 1\'0Yo ADAM PELA EsPEilANÇA. - Aca-
bamos de vêr quanto são magnificas as operações da fé na intelligencia.
Antecipando o futuro, a me;1sageira da eternidade annuncia ao peregri-
no do tempo a substancia das realidades futuras ; (2) ella lhe patentêa

(1) Lex tua verite.s. Psalm. 142. Non minus est verbum Dei quam corpus
Christi. Ag. in Gen.
(2) Est autem fides speranãarum substantia rerum, argumentum n on
appareutium. Ad. Heb. XI, I. S. Tbomaz explica assim estas palavras: Ues
sperandae sunt sicut arbor in semine virtute latens, ac per fidem quodammodo
jalil existunt in nobis. - Vide tambem Cor. a La.pid. in Epist. ad Hebrae.,
e. XI; 1.

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INTRODUCÇÃO. XLI

novos Céos e nova t.erra : mostra-lhe em Deus, já não tanto o author da


natureza, mas seu Pai, seu Redemptor e seu fim; revela-lbe sua origem
e seu dtstino; mostra-lhe o caminho; e, com sua Omnipotente força,
o sustenta e defende até o fim da viagem. A intelligencia, elevada pela
fé a um novo ser, nada mais tem a desejar que a visão clara d'estas mes-
mas verdades de que já está de posse. (1)
Todavia, pela fé, a nossa união com o novo Adam ainda não está
completa: é á esperança que toca o aperfeiçoai-a. Com effeito, o homem
não é só intelligencia, tambem é vontade, por consequencia, sob pena
de sêrem, não uma benção, mas um cruel tormento, estas realidades
futuras, estes bens do mundo sobrenatural, não podem ser já méro
objecto d'uma contemplação tal como a que um rico thesouro liberal-
mente offercce ás mãos do avarento; ou o alimento, ao ávido olhar do
homem esfaimado. Cumpre que ellas sejam accessiveis á vontade. Ora,
a esperança é quem lhe communica este dominio.
Elevando-a acima dos btins transitorios da vida, Deus e os novos
Céos, e a non terra da eternidade, e os meios de ós adquirir; em uma
palavra, a substancia de todos os bens futuros, tomam na vontade hu-
mana o primeiro lugar de suas tendencias, de suas emprezas, dos seus
affectos todos. (2)
E' uma rainha cheia d'immortalidade, que ennobrece todos os de-
sejos do homem, que o sustenta em suas incessantes luctas, consola em
suas dôres, inflamma sua alma. E' o flammante carro de Elias, que nos
transporta aos ares, que nos eleva ao alto e nos tem suspensos entre o
Céo, e a terra, o tempo e a eternidade : taes são as propriedades e ef-
feitos da esperança. Elia nos deifica a vontade, dando-nos um objecto
(1) Participes enim Christo effecti sumus, si tamen initium su bstantiae
ejus retineamus. Id. e. III, 14. - Initium substuntiae vocat fidem, per qua:rn pri-
mo caepimus quasi subsistere in substantia spirituali et divina, factique sumus
divinae consortes naturae. Cor. a Lapid. in Heb. e. III, 14.
(2) Merito apostolus fidem sperandarum rerum substantiam esse definit, quod
videlicet non credita nemo sperare plusquam super inane pingere possit. Dicit
ergo fides: parata sunt magna et inexcogitabilia bona a Deo fidelibus suis. Dicit
spes : mihi illa servantur. Nam tertia quidem charitas; curro, mihi ait, ad illa.
S. Bernard, Serm. 1. in ps. 90.

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XLll l!\TRODUCÇÃO.

divino e tendencias divinas. N'este segunJo ponto de vista, o Christão


póde dizer ainda: já não sou eu, o filho do velho Adam, que, vivo, é
Jesu-Christo que vive em mim.
Ora, entre os meios de alcançar os bens sobre-naturaes que a es-
perança offerece á ambição do homem esclarecido pela fé, ha um que
encerra todos os demais, é a graça, tam perfeitamente definida por S.
Thomaz o começo da gloria. (1)
Com effeito, vimos no principio das nossas liçõe5 que o homem fôra
creado em um estado sobre-natural, isto é, que foi destinado a uma felici-
dade que as condições da sua sirr.ples naturez~ não exigiam. Vimos tambem
que o peccado o fizera clecahir de tam alto destino, mas que Jesu-Christo
o restabel;~ceu no seu estado primitivo; isto é, que lhe tornou o direito de
vêr a Deus no Céo face a face, e lhe obteve os meios de o merecer.
Este o motivo porque a Religião que o de"e conduzir a esta felicidade
sobre-natural é uma graça, uma benção gratuita, uma magnifica esmola.
Por onde se vê claramente, que o homem por suas forças naturaes não
póde chegar a esta união triplice com o norn Adam de que temos fal-
lado: para isto, é preciso a graça. Sim, o bomem o podiil antes da sua
revolta, pois que era tambem sobre-natural o estado em que havia sido
creado; mas com muita mais razão, a graça lhe é necessaria depois
que a quéda original lhe attenuou e quebrou as forças. (2) Por tanto
a graça é o grande objecto da esperança.

(1) Gratia nihil aliud est quam quaedam inchoatio gloriae in nobis. S. Th. p.
2, q. IV, art. III ad 2.
(2) Diceudum qnod homo post peccatum ad plura indiget gratia, quam ant~
peccatum, sed non magis; quia homo etiam ante peceatnm, iu<ligebat gratia ad vi-
tam reternam consequendam, qn:e est pri11cipalis necessitas grat.ire. 8ed homo post
peccatum super hoc indiget grat.ia, etiam ad peccati r~rnissionem, et infümitatis
sustentationem. D. Th. Summ. p . 1, q. 95, art. 4, ad I.- Quia et divina gratia
Dei sit et largitio quodammodo ipsius diviuitatis. Cassian. de lncarn. Chr. l. u, C-
6 - Sic igitur per hoc, quod dicitur ho1J10 gratiam Dei haliere, significatur quid-
dam superna.turale in homine a Deo proveniens. D. Th. Summ. p. 1. q. 110
a.rt. 1.

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l~TRODUCÇÃO. XLlll

Ora, a graça, este soccorro poderoso. universal, concedido em at·


tenção ao merito do novo Adam ; a graça, pela qual Deus se abate e se
faz presente ao homem; pela qual o bomem, fortificado e esclarecido,
se eleva ao seu estado sobrenatural e produz actos sobrenaturaes; ob·
lém-se por dous grandes meios : a oração e os sacramentos.
Poder rnysterioso, que approxima a creatura ao Creador, a oração é
uma condição indispensavel á união sobre-natnral do homem com Deus.
D'aqui vem entre todos os povos a perpetuidade não interrompida da
oração desde a origem do mundo. D'aqui o preceito pelo qual o novo
Adam formula a necessida1le cl'este acto fundamental da Religião: Cum-
pre orar sempre, e não desistir járnais; preceito ao mesmo tempo po·
sitirn e negatirn, que obriga por consequencia semper, et pro semper,
segundo a expressão da theologia catholica; verdade tam palpavel como
est'ontra ; para viver, é preciso respirar sempre, e não desistir já·
mais.
E' claro que tomamos aqui a Oração na sua accepção mais gene·
rica. (1) E' por isso que dizemos que ella é a alma e a vida do Chris-
tianismo. Assim que, para os primeiros Chrjstãos, Oração e Christianis·
mo eram synonimos.
Para elles, um Christão é um homem que óra. (2) Admiravel cou-
sa ! esta idêa tam justa insinuou-se naturalmente nas tribus selvagens
do Novo Mundo. Na sua 1ingua o Chri8tianismo não se chama a Religião,
mas a Oração: abraçar a Oração, ser da Oração, quer dizer fazer-se ou
ser Christão.
A esta noção segue-se a da Oração propriamente dita. S. Agosti-
nho, com o seu coração tam amante, seu genio tam e!evado e seu taro
penetrante espirita, une-se a Tertulliano e a S. Cypriano para explicar
em o nosso Catecismo a mais bella das orações, a Oração dominical.
O segundo meio d'obler a graça são os sacramentos. A fim de
supprir ás neces~idades das duas naturezas do homem; para lhe unir
ao Redemptor assim a alma como os sentidos; a fim de o manter em a

(1) Orar sempre, diz S. Agostinho, é procurar sempre agrada.r a Deus.


(2) Ecce enim orat. Act. IX, 11.

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XLIV INTRODUCÇÃO.

humildade, condição permanente de sua rehabilitação, pondo-lhe diante


dos olhos a omnipotencia d'aqoelle que, assim na ordem da graça como
na ordem da natureza, para op~rar as maiores cousas os mais pequenos
meios lhe bastam ; a fim digo, de supprir a todas as necessidades da
nossa vida sobrer1atural ; Deus, na sua profunda sabedoria, estabeleceu
os Sacramentos. Sigaaes sensíveis, captivam elles ao homem exterior,
tornando-lhe palpaveis, pelos elementos que lhes servem de materia, os
effeitos maravilhosos que ovéram no homem interior; signaes sagrados,
revelam na ordem sobrenatural o imperio soberano d'aquelle, que reina
como Senhor absoluto na ordem natural; signaes permanentes e varia-
dos, fazem na alimentação e perpettfidade da vida da alma, o que as
creaturas e as leis phisicas realisam inces:5antemente na nutrição e per-
petuidade da vida do corpo. Maravilhosa harmonia l que não só re\'ela
a magnificencia do dedo divino, como tambem as relações intimas, esta-
belecidas entre a natureza e a graça, por aquelle que é o autbor d'uma
e d'outra.
Com effeito, sete cousas são necessarias ao homem para viver a
vida natural, para a conservar e empregar utilmente : é preciso nascer,
crescer, alimentar-se, curar-se, reparar suas forças, ter magistrados, in·
vestidos da authoridade necessaria, para manter J ordem e procurar o
bem publico ; em fim é preciso perpetuar-se. Todas estas c0usas suo
igualmente necessarias á vida espiritual, e nos dão a razão da natureza
e numero dos sete Sacramentos. O Baptismo faz-nos nascer em o novo
Adam.
A Confirmação nos faz crescer.
A Eucharistia alimenta-nos.
A Penitencia cura-nos.
A Extrema unção renova todas as forças da alma para o ultimo
combate.
A ordem dá magistrados á sociedade christã.
O Matrimonio perpetua esta sociedade, perpetuando seus fieis.
A esta primeira harmonia ajunta-se outra não menos bella. Assim
como . no firmamento todos os astros gravitam para o sol, tambem os
Sacramentos gravitam para o mais augusto de todos que é a Eucbaris-

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INTRODUCÇÃO. XLV

tia. A Eucharistia, diz S. Thomaz, é o fim dos outros Sacramentos ; os


quaes todos se referem a eJla, e todos tem n'ella sua perfeição. (t) O
Baptismo nos torna capazes de a receber ; a Confirmação nos faz dignos,
ou nos põe em estado de a restabelecer, se o peccado a corrompeu; a
Extrema unção a mantem. contra os ataques mais violentos do demonio
no artigo da morte, e a consolida para a eternidade; finalmente o Ma-
trimonio e a Ordem perpetuam-na, perpetuando a Igreja.
Visto que, por uma parte, a Eucharistia é o fim de todos os Sa-
cramentos, o l\fysterio por excellencia da fé, do amor, da unidade, ou,
como diz S. Thomaz a consummação da vida espiritual; visto que, por
outra parte, a Eucharistia é Nosso Senhor Jesu-Christo perpetdamente
incarnado no meio do mundo ; duas grandes consequencias fluem d'aqui,
eminentemente proprias a collocar o augusto Sacramento na classe ho-
norifica que lhe compete. A primeira é que, no Evangelho, como na lei
antiga, Jesu-Christo é sempre o alpha e o oméga da Religião ; tudo se

(1) Eucharistia est quasi consummatio spiritualis vitre, et omnium sacramen-


torum finis. Per sanctificationes enim omnium sacramentorum fit prreparatio ~d
suscipiendam vel consecrandam Eucharistiam P. 3, q. 73, art. 3.
Sac:·amentu~ Eucharistiae est potissimum inter alia sacramenta ... nam in
Sacramento Eucharistiae continetur ipse Christus substantialiter. ln aliis autem
sacrameutis continetur quaedam virtus instrumentalis participata a Christo ...•
Semper autem quod est per essentiam potius est quam quod est per participatio-
nem. Insuper omnia alia sacramenta ordinari videntur ad hoc f?acramentum sicut
ad finem. Mauifestum est euim quod sacramentnm ordinis, ordinatur ad Eucharis.-
tiae consecrationem : sacramentum vero baptismi ordinatur ad Eucharistiae ·recep-
tionem: in quo etiam perficitur aliquis per confirmationem, ut non vereatur se sub-
strahere a tali sacramento : per penitentiam etiam et extremam unctionem prae-
paratnr homo ad digne sumendnm corpus Christi: matrimonium etiam saltem sua
significatione attingit hoc sacramentum, iu quantum significat conjunctionem
Christi et Ecclcsiae, cujus unitas per sacramentum Ecclesiae signatur. Ta~dem
boc apparet ex ritu sacramentorum; nam fere omnia sacramenta in Eucha.ristia
consummantur, ut Dyonis, dicit, e. 3 Cml.est. hierarch. ,· est sacramentum sacra-
mentorum, quia sacramentis omnibus consumma.tam perfectionem confert. D. Th.
loc. 8tip. ci'.t.

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XLVl INTRODUCÇÃO.

refere a elle e ã nossa união com elle; desde o instante da quéda ori..
ginal do homem, não houve jámais salvação para elle senão em a sua
união com Jesu-Christo, debaixo dos tres pontos de vista possíveis, que
são a fé a esperança e a charid2de; o que tudo se reduz á Commanhão.
·o Judeo podia e devia crêr em Jesu-Christo wnturo, podia e devia es-
perar n'elle, podia e devia alílar, emfim podia e devia communicqr com
elle, participando das victimas que o representavam. ('1) Esta Communhão
figurativa, como todo o cul~o ant:go, não era mais que a sombra de uma
Communhão real, reservada á lei da graça. D'aqui n .m esta bella expres-
1

são de S. Arubrozio: o Judeo não tinha senão sombras sem realidade,


o Christão possue a -verdade incoberta em véos, o Santo goza a verdade
sem véos. (')

(1) Encontra-se em todos os povos a communhão com a grande idéa da expiação


unida á immolação e ma.nducaçi'io das victhnas. • Não se duvida entre nós, diz Pe-
lisson, que todas as fal sas religiões não deri\'assem da verdadeira; que os sacrificios
do paganismo não fossem imitação dos antigos, ordenados ao~ primeiros homens
como em Abel e Cain achamos o exemplo; os quaes sacrifícios não eram mais que a
figura. e a sombra do granda sacrificio, cm que o mesmo Deus devia immolar-be por
nós. Por toda a terra se comia dll. carne das victirnas; em todas as nações, o sacri-
ficio que terminava pela manducação era considerado corno um banquete solemne
do homem com Deus: d'aqui vem que se encontram tam frequentemente nos antigos
poetas pagãos o banquete de Jupiter. as viandas de Neptuno, para significar as
victimas que se comiam depois d'immoladas a estas falsHs divindades; e !'e havia
entre os Judeos holocaustos, i3to é, s::.crificios em que a victima era inteiramente
queimada em honra de Deus, eram estes acompanhados da offerenda de um bóio, a
fim que n'estes mesmos sacrifícios l10uvesse que comer para o homem.-Tractado da
Eucharistia, p. 182. ·
D'onde veio ao genero humano a estranha idéa de que o homem communicasse
com a divindade, por meio rlas sub tancias que lhe eram immoladas ? Que relação
podia. haver entre a immolação, a manducação d'um nnimal, e a santificação on re-
missão dos peccados? O sangue vil das victimas, que xpiravam sub o sagrado cu·
tello, possuis. acaso a. virtude de purificar a conscicncia? Járnais houve no mundo
tal loucura. Mas o mundo tinha fé no qüe se representava por estes rncrificios. Tudo
o que elle sabia é que elles figuravam um mysterio diYino de justiça e de graça; e
do fundo d'este mysterio, que o futuro devia descobrir, quarenta seculos ouviram
surgir a voz da esperança.
Vide Eadarecimentos sobre os sacrificios, por M. de Maistre.

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INTRODUCÇÃO. XLVII

A segunda consequencia é, que a Eucharistia opéra no mundo espi-


ritual como o sol no physico. Assim como tudo gravita para este formoso
astro, que derrama em toda a parte, com a sua luz e calor, a vida e a
fecandidade; assim tambem tudo gravita para o augusto Sacramento da
Eucharistia. E' por ella que toda a creação, que flue incessantemente do

D'est'arte, uma communhão da graça, uma participação de Deus, ao mesmo


tempo espiritual e corporal, invisivel na sua essencia e visivelmente manifesta, tal
era o centro para o qual convergiam, no que tinham de commum, as liturgias de
todos os povos: tal era universalmente o foco vital do culto. Dogma gerador, &e.
por M. Gerbert.
(2) Para não ultrapassar os limites da fé catholica sobre a necessidade da Com·
munhão relativamente á salvação, bom é recordar aqui a doutrina de S. Thomaz.
Esto Anjo da Theo]ogia exprime-se n'estes termos: Conclusio: Quqnquam nos quoad
realem perceptionem, aicut baptismus, Eucliaristiae sacramentum a!l salutem neces-
sarium sit, est tamen ex parte rei, quae est unitas corpo ris mystici, necessarium ad
salutem. ln hoc sacramento duo est necessarium considerar€': scilicet ipsum sacra.
mentum et rem sacramenti. Dictum est autem quod res hujus sacramenti est unitas
corporis mystici sine qua non poteste esse salus : nulli enim patet aditus salutis
extra Ecclesiam, sicut nec in diluvio absque arca Noe, qnae significat Ecclesiam.
Dictum est autem quod res alicujus sacramenti baberi potest ante perceptionem
sacramenti, ex ipso voto sacramenti percipiendi. Undc ante perceptionem hujus sa-
cramenti potest homo habere salutem ex voto principiendi boc Sacramentum: sicut
et ante baptismum ex voto baptismi. Est tamen differentia quantum ad duo: primo
quidem quia. baptismus est principium spiritalis vitae et janua sacmmentorum ;
Eucharistia vero est quasi consumrnatio spiritalis vitae et omnium sacramentorum
ftnis. Per sanctificatines enim omnium sacramentorum fit praeparatio ad suscipiendam
vel consecrandam Eucharistiam, et ideo perceptio baptismi est necessaria ad incho-
andam spiritalem vitam; perceptio autem Eucharistiae est necessaria ad consum-
mandam ipsam; non ad hoc quod simpliciter babeatur, se<l sufficit eam habere in
voto sicut et finis habetur in desiderio et intentione. Alia diff~rentia est, quia per
baptismum ordinatur homo ad Eucharistiam, et ideo ex boe ipso quod pueri bapti·
zantur, ordinantur per EccJesiam ad Eucharistiam. Et sicut ex fide Ecclesiae cre·
dunt, sic ex intentione Ecclesiae desiderant Eucharistiam, et per consequens recipiunt
rem ipsius; sed ad baptismum non ordinantur per aliud praecedens sacramentum, et
ideo ante susceptionem baptismi non habent pueri aliquo modo baptismum in voto,
sed soli aduJti. Unde re:m sac1·amenti non possunt percipere, sine perceptione sacra-
menti. Et ideo hoc sacramentum non hoc modo est de necessita te salutis sicut baptis-
mus.-D. Th. 3. p. q. 73, art. 3.

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XLVIII INTRODUCÇÃO.

seio do Creador, a elle incessantemente devolve. Abri os olhos e vereis o


cumprimento d'esta mysteriosa lei.
Todas as creaturas tendem a aperfeiçoar-se, ou, por outras palavras,
a passar d'uma vida menos perfeita a outra mais perfeita ; mas é preciso
para isso que percam a sua vida propria. Assim os corpos inorganicos,
o ar e agua, por exemplo, tornando-se nutrição dos corpos organicos,
perdem a sua vida propria, para tomar a d'aquelle que a si os assimila;
o vegetal, pela sua parte, é absorvido pelo animal que lhe communica a
sua vida; o vegetal, o animal, todos os reinos são absorvidos pelo homem,
que, assimilando-os a si, communica-lhes a sua vida. Deus emfim attrahe
o homem, assimila-o a si, e lhe communica a sua vida divina e immortal.
E então o homem póde, e deve dizer: já não sou eu que vivo, é Deus
que vive em mim. Quem não adoraria aqui, transportado d'arnor e admi-
ração, o tocante mysterio em que se cumpre esta ultima transformação
que restitue o mundo á unidade!
Fallando dos sacramentos, não nos esquece a explicação das admi-
raveis ceremo nias e tocantes orações, que acompanham a administração
dos mesmos sacramentos. Não sabemos se é possive l deparar cousa mais
veneranda, instructiva e eminentemente philosophica; e, ousamos dizêl-o,
mais geralmente ignor ad~ que a liturgia.
Quanto.; ritos e costumes, cuja significação eleva o pen~nmento aos
primeiros dias da Igreja, .e á contemplação dos mais divinos mysterios,
são para nós uma letra morta, uma especie de jeroglypho inintelligiveJ,
de que o fiel por ignorancia não sabe dar a razão, e de que o impio por
maior ignorancia, ainda, não teme de zombar f
Além da vantagem d'esclarecer a· piedade do Christo, a explicação
que damos das nossas augustas ceremonias tem ainda a utilidade de con·
firmar a tradição perpetua da Igreja ácerca de cada um dos sacramen·
tos : tradição de facto, mais notoria, a juízo nosso, e mais facil de reter-se
que a tradição do testemunho oral.
6. UNIÃO no HoME;\J coM o Novo AnAl\I PELA CHARIDADE. Unido ao
novo Adam pela fé, que diviniza soa intelligencia; pela esperan';a que
diviniza sua vontade ; pela Communhão que, segundo a expressão dos
Padres, diviniza todo o seu ser ; que tem o homem ainda a desejar ou

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INTRODUCÇÃO. XLIX

fazer? Sem contradicção, este Deus que elle recebe de passagem e oc-
culto em véos; estes novos Ceos ; esta nova terra da eternidade, todos
estes bens sobrenaturaes, que a fé lhe mostra ao longe, e que a espe-
rança lhe promette; attrahem o homem, com uma força invencível, a se
unir a elles de uma maneira completa e permanente; a se identificar com
elles, para vir a ser rico em todas as suas riquezas; ditoso em todas as
suas felicidades ; perfeito em todas as suas perfeições ; e tudo isto com
uma permanencia eterna, onde o receio da separação não possa jámais
destruir a sua completa bemaventurança. Crêr não lhe ijasta, esperar não
lhe basta ainda, nem tam pouco possuir imperfeita e transitoriamente :
elle quer gozar completamente, goz;ir eternamente ; porque o gozo é a
união, a união é o amor, e o amor é a mais nobre, a mais imperiosa, a
primeira e ultima necessidade do homem, o primeiro e ultimo preceito
do novo Adam, o fim da Lei e dos Prophetas, o termo da fé e da espe-
rança, o vinculo supremo da perfeição na terra, a essencia da bemaven-
turança no Cco. D'aqui, a bella expressão de S. Bernardo : « Com razão
o Apastolo definia a fé : a substancia das cousas esperadas. Com effeito,
é tam impossivel esperar o que se não crê, como pintar em o vacuo. A
fé diz pois : Deus tem preparados bens ineffaveis aos seus fieis. A espe-
rança diz: elles me estam reservados. A charidade diz: eu corro a apo-
derar-me d'elles.» (J)
D'aqui se vê que a fé e a esperança não são mais que meios d'al-
cançar a charidade ; logo é evidente que o homem não póde nem deve
parar n'estas duas virtudes: o novo Adam chama-o a uma união mais
perfeita. Quanto á Communhão, ella é tambem um meio mas não um
fim ; é um alimento destinado a reparar as forças do homem que de-
ve trabalhar.
O homem n'este mundo é um jornaleiro que ainda não acabou
o dia. Quando está cançado na lucta do bem, no trabalho da virtude,
vem refazer as forças pela Communhão; depois, ao levantar-se da di-
vina Mesa abrasado em ardor, torna para o trabalho, e este trabalho é

(1) Citado acima . O mesmo Santo accrescenta: «Conformitas cum Verbo


io cba.1·itate maritat animam Verbo.• Serm. 83 io Cantic.

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L INTRODUCÇÃO.

o amor em acção: porque o amor não consiste só na contemplação das


perfeições de Deus, mas tambem no cumprimento da sua vontade. Ama-
mos a Deus, diz S. João, se guardamos os seus 1llandamentos e os seus
Mandamentos não são di/ficeis. (t) Por esta razão, na ordem das nossas
liçoens, a charidade vai depois da fé e da esperança : o Decalogo depois
dos Sacramentos e do symbolo.
Ora, se o Symbolo é o tutor da nossa debil razão, e o principio
gerador dos nossos pensamentos, o Decalogo é o protector de nossos co-
raç,ões, e o principio gerador de nossos affectos. ,
Mostraremos pois que é uma benção, um infinito beneficio, cada
um de seus Mandamentos. E na v~rdade, o amor humano, pervertido
pela primitiva quéda, está inclin.ado a se prostituir com tudo aquillo que
está abaixo d' elle.
- Não sómente o paganismo antigo e moderno, mas ainda mesmo
no seio do Christianismo, o homem que deixa de ser Christão dá-
nos uma vergonhosa prova d'isto que dizemos. Quando o nosso po-
bre coração, semelhante aos s:icerdotes dos idolos, que nas palpitantes
entranhas das victimas, procuravam os segredos do ceo; depois de es-
quadrinhar em todas as creaturas, e buscar em todas as voluptuosida-
des a felicidade que deseja; se vê forçado a exclamar: Vaidade r men-
tira! affiicção ! Então conhece elle de que desengano cruel, de que
horrivel tormento o quiz livrar o divino Reparador, attrahindo-o e cha-
mando-o para aquelles objectos, que sós eram dignos da sua affeição.
E' por isso que todos os preceitos se reduzem a dois: o amor de
Deus, e o amor do proximo · por amor de Deus. Pelo que, ainda mes-
mo no proxi mo, Deus é a quem devemos amar.
O amor de Deus é a grande necessidade do homem, a primeira
lei do seu ser, thesouro precioso roubado pela cobra ladra, (2) mas
reconquistado pelo novo Adam, e restituido á especie humana para ser
a sua felicidade e a sua gloria no tempo e na eternidade. Ora, o

(1) Hac est enim charita!! Dei ut mandata ejus custodiamus: et mandata ejus
gravia non sunt. 1.ª João. V, 3.
(2) Expre!são dos livros Zends.

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INTRODUCÇÃO LI

amor dá-se-nos por meio do Decalogo. Este sagrado Codigo é a lei or-
ganica da caridade ; regular a sua manifestação, nutrir e proteger o amor
de Deus contra tudo que o poderia diminuir ou extinguir, tal é a sua
intenção e o seu fim.
D'aqui vem a5 duas especies de preceitos do Decalogo: os pre-
ceitos atfirrnativos e os preceitos negativos. Pelos primeiros ensina-nos
o novo Adam o que devemos amar e de que modo, isto é, que deve-
mos amar a Deus e ao homem por amor de Deus. O primeiro Adam
tomou-se desgraçado a si e .á sua posteridade por violar esta lei primor-
dial; o segundo Adam faz a nossa felicidade encaminhando-nos de novo
a esta dôce lei do amor.
E' assim que ao regular os nossos affectos, Jesu-Christo se mos·
tra verdadeiramente assim o Salvador do nosso coração, como o foi do
nosso espirita, ensinando-nos o que devia mos crêr.
Em uma palavra, o Decalogo livra o coração humano do jugo ver-
gonhoso da concupiscencia, como o symbolo livra o entendimento dD ju-
go do erro.
Pelos preceitos negativos, o novo Adam protege o nosso coração
contra todo o amor inimigo, estraDbo e usurpador. Tudo o que póde
ser objecto d'um amor legitimo, a vida do corpo· e da alma, a paz das
fami1ias, a santidade do laço conjugal, as nossas propriedades e até a
nossa reputação é protegida por esta egide muito mais sagrada que to-
das as leis humanas.
Eis-ahi uma verdade infelizmente muito ignorada; cada um dos
mandamentos de Deus é por isso mesmo uma benção, uma garantia
de felicidade na terra. (t) Tal é, tornamos a dizer, o ponto de vista
soberanamente justo pelo qual encaramos o Codigo divino. Que coisa
mais importante? Ah t não é por ventura pelo habito de o considerar
como um pesado jugo que tantos infelizes o calcam aos pés? Homens
illudidos f O Decalogo não opprime a vossa liberdade, antes a aperfei-

(1) Tollite jugum meum super vos... jugum enim meum suave est, et .onus
meum leve ... et invenietis requiem animabus vestris. Matth. XI.

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i.11 INTRODUCÇÃO.

çôa ; não põe obstaculos no vosso caminho, antes o dirige ; não vos em-
barga os passos, antes os assegura e illumina. (1)
Um viajante caminha para uma magnifica cidade, aonde, em com-
panhia <le sua bem amada familia, espera alcançar brilhante fortuna. En-
tre elle e a desejada cidade ha um abysmo insondavel. Espêssas trevas
obscurecem o caminho. Elle mesmo vai sem Juz nem guia. Sobre este
abysmo está lançada uma prancha, estreita, vacillante; cumpre necessa- .
riamente atravessar por ella. O infeliz é demais a mais sugeito a trope-
çar o que bem o provam as muitas quédas que tem dado. Ora dizei-me:
se um caridoso guia viesse levai-o pela mão ; se levantasse dous fortes
parapeitos de cada lado d'esta ponte fatal; se accendesse abi brilhantes
luzeiros, de tal sorte que fosse impossível ao viajante cahir no sorve-
douro ; a menos que não saltasse voluntariamente por cima dos ante-
paros; chamaríeis por ventura estorvos a estas defensas do perigo? to-
maríeis por injuria estes fachos accêsos? alcunharíeis todas estas percau-
ções de tropêços e máos serviços prestados ao viajante? mereceria o
epitheto de tyranno este caridoso guia que lhe deu a mão, que o livrou
das ~iuédas, que lhe assegurou o bom exito da viagem?
E' facil applicar o exemplo: este \'iajante, sujeito a tropeçar, é o
homem na terra. Esta.ditosa cidade, aonde espera fortuna, gloria e uma
familia querida, é o Ceo. Este negro abysmo, é o inferno. A estreita
prancha, fragil e vacillante, é a vida. O caridoso guia é Deus. Os pa-
rapeitos levantados de cada lado da fatal ponte, e os fachos que a illu-
minam, são os mandamentos da sua lei.
Agora diga o homem cégo que o Decalogo é um obstaculo para a
liberdade ; quanto a nós, ó meu Deus 1 diremos sempre que elle é o
guia e o sustentaculo da liberdade, e por consequencia um dos maiores
beneficias que recebemos do Ceo ; e para não cahirmos no insondavel
sorvedouro teremos todo o cuidado de não ultrapassar estas salutares
defensas.
Assim como o nosso espirito crendo no Symbolo se une ao novo
Adam, da mesma sorte, recebendo o Decalogo, o nosso coração se

(1) Lucerna pedibus meis verbum tuum. Psalm. CXVIII.

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INTRODUCÇÃO. Lili

une a elle. Com effeito, o Decalogo é a charidade. Vêde como oco-


ração humilde e docil á lei do amor toma desde logo inclinações divinas r
O norn Adam torna-se o principe, o guia, a vida de suas affeições; assim
que, ainda por este mctivo, o homem regenerado póde dizer: já não
sou eu, filho do velho Adam, que Yivo, é Jesu-Christo que vive em mim.
D'ora'vante, n'elle, como no Homem Deus, permanecem dous amores, o
amor de Deus, e o amor do proximo; e estes dous amores não são
mais que um ; e elle se acha por este modo restituído á unidade primi-
tiva da innocenc,ia; e n'elle tudo é santo, nobre, puro, edificante. Não
bastariam muitos volumes para explicar tudo o que o Decalogo contém
de riquezas, de gloria, de bens, para os povos e os individuos - o De-
calogo f tam pouco conhecido. tam indignameiite violado nos desgraça-
dos tempos em que vivemos. Ah l olhai, e vêde como se avilta ahi o
amor humano f Nações modernas, reparai bem quanto já tendes cami-
nhado para o Paganismo. Insensatos l calcando aos pés o Decalogo, a
b2se sagrada de vossa antiga gloria, attentai bem que brincais com o
raio.
7. Frn DA NOSSA u~1Ao COM o Novo AnA~1. Tendo, quanto em
no3sas forç,as cabe, exposto a natureza, a necessidade, as condições
da nossa união com o Redemptor, procuraremos saber qual é o· fim a
que se propôz o verbo Divino quando nos quiz unir a si tam estreita-
mente. O que elle mesmo nos responde é, que nos quiz fazer viver na
terra e no Ceo. (t)
Aqui propomos á imitação universal a vida do novo Adam. Este.
grande Medico, descido do Ceo, para curar um grande doente que jazia
enfermo na terra, não se contentou com lhe derramar nas feridas um
balsamo salutar, nem tam pouco com o restabelecer no caminho, e di-
zer-lhe : Caminha l Assim como a Aguia real que ensina seus filhos a
tomar o vôo, voando primeiro diante d'elles, a Aguia divina tomou o
seu vôo para o Ceo em presença do homem, como ensinando-lhe que
o seguisse. Pela sua maternal bondade, dignou-se percorrer todos os

(1) Ego veui ut vitam liabeant et abundantius babeant. João. 1, 10. - Ut


ubi sum ego et vos sitis. Id. XVII.

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LIV INTRODUCÇÃO.

diversos caminhos, provar todas as situações, experimentar todos os es·


tados que o homem póde ter no mundo, afim de os santificar a todos,
como santificou os elementos, pela sua presença, e ensinar ao homem a
santifical-os tambem por si mesmo.
O novo Adam é pois o nosso modêlo indisp&nsavel : assim como
temos em nós a imagem do homem terrestre, assim tambem devemos
ter a do homem celeste. Sem duvida: isto é da maior necessidade ;
o Ceo estará fechado para todo aquelle que não fôr a copia fiel do Re-
demptor. (t)
Além d'isso é o modêlo de todas as idades, de todos os estados e
condições : o Christo é o homem. E' por esta face que o patentea-
mos.
Modêlo de nossa vida intima; é pelos seus que devemos formar
nossos juízos, affeições, desejos e pensamentos : tudo se reduz a saber
o que pensou, o que amou o novo Adam: n'esta infallivel pedra é o to·
car e apreciar os ·pensamentos, as affeições todas do homem . ..Q.h ! n'esta
só expressão que de philosophia se contém.
Modêlo de nossa vida eterna ; a sua vida resume-se em tres pala-
vras: elle fez bem todas cousas. (2)
Modêlo dos inferiores; sua vida resume-se em tres palavras: elle foi
submisso. (3)
Modêlo dos superiores; sua vida resume-se em tres palavras : elle
passou fazendo bem. (4)
l\Iodêlo de todos aquelles que soffrem, inferi ores ou superiores ; sua
·vida resume-se em tres palavras ; assim seja, meu Pai, pois que assim
vos aprouve. (5)
Esta parte essencial da Religião não a vemos explicada em nenhum
catecismo, sobretudo, como nos parece que ella deve ser explicada. Em

(1) Rom : VIII, 29 -


(2) Marc. VII, 37.
(3) Luc. II, 51.
(4f Aet. X, 38.
(5) Math. XI, 26.

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INTRODUCÇÃO. LV

geral não se mostra o Salvador como modêlo dos homens senão durante
a sua vida mortal : todavia isto não é exacto.
Temendo que as gerações futuras esquecessem seus exemplos ou
cressem erradamente que· só a certos seculos, ou a certos lugares di-
ziam respeito; o novo Adam estabeleceu-se e perpetuou-se na Eucharis-
tia. Habitador das cidades e das aldeas, nativo e coevo de todos os cli-
mas e de todos os seculos, elle ensina desde o Tabernaculo, e ensina-
rá perpetuamente, a todas as gerações que surgem no mundo, as lições
que deu na Judea; offerece os mesmos exemplos que offerece ha desoL
to seculos, repete as mesmas palavras que echoaram nas margens do
Jordão : Olhai e fazei segundo o modêlo que vos é dado. (t)
O' homens t quem quer que sejaes, meditae bem n'esta verdade.
Ella vos illuminará para entenderdes as admiraveis lições que sabem
do Tabernaculo. D'esta cadeira de verdade, o grande Mestre, vindo do
Ceo, vai publicando, com mysterioso silencio, as grandes maximas da
perfeição christã. Attentai bem; '5e é verdade que por sua Incarnação o
novo Adam tem o titulo de Mestre, e qualidade de Doutor de justiça ;
se desempenhou este encargo e estas funcções tam dignamente durante
sua vida mortal, não é menos certo que ainda tem aberta esta academia
de todas as virtudes no Sacramento da Eucharistia.
Se o não podemos contemplar vivendo entre os homens no exer-
cício de charidade ardente, humildade profundissima, extrema pobreza,
liberalidade infinita, paciencia infatigavel, sem se accender em nós o de-
sejo de o seguir e imitar; com quanta mais razão nos devem enamorar
os mesmos affectos, quando o consideramos já todo glorioso e impassi.
vel, ainda comtudo assiduo na prática d'estas divinas virtudes, de que
nos está dando illustres exemplos em seus Santos Tabernaculos. (2)
Safltidade no tempo, bemaventurança na eternidade, tal é o fim da
nossa união com o novo Adam: união deliciosa e sublime que, transfor-
mando o homem em Deus, restitue ao genero humano a sua perfeição
primitiva; mas união que, durante a nossa prova terrestre, póde comtu-
(1) Exod. XXV, 40.
(2) Diversões sobre a vida occulta de J, C. na Eucharistia; pelo Padre Lal-
lemant, p, 6 e 7

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LVI INTRODUCÇÃJ.

do romper-se ainda. Aqui tratamos de inspirar um .soberano horror ao


peccado; a este mal terrivel, unico que póde aniquilar em cada um de
nós o beneficio da Redempção; separar-nos eternamente do novo Adam ;
fazer-nos sahir d' esta vida mais culpados do que e!ltraramos; collocar-nos
para sempre entre o demonio e seus anjos. Esforçamo-nos por lhe mostrar as
cousas, os progressos, as occasiões, os effeitos, os castigos e os remedias.
8. PERPETUIDADE DA NOSSA UNIÃO COl\I o NOVO ADAM. Os quarenta
dias que nosso Senhor devia permanecer sobre a terra estavam quasi
decorridos. O divino Mestre tinha instruido fundamentalmente seus Apos-
tolas á cerca dos segredos do reino de Deus; já lhes tinha dado a intel-
ligencia das divinas Escripturas. A admiravel economia da Redempção hu-
~ana, o fim por que o Verbo de Deus viera ao mundo; e quizera nas-
cer, viver, morrer e resuscitar; a necessidade da união de todos os
homens c0m elle pela Fé, Esperança e Charidade; o fim d'esta união
que é, no tempo, a imitação de sua vida, e na eternidade, participação
de sua gloria ; a natureza do peccado, causa unica que póde romper es-
ta união, santa e tornar o Christo inutil para nós ; tudo sabiam os Apos-
tolos, e estavam em estüdo de instruir o mundo em todas esta3 cousas.
Qu~ restava pois ainda ao novo Adam? Duas cousas essenciaes:
assegurar a conservação, e entender nos meios da propagação de sua
Obra divina ; a fim que todos os homens que viessem ao mundo podes-
sem colher os fructos d'ella. Todavia não é já pessoalmente que elle ha-
de instruir o mundo ; a sua missão na terra está cumprida, elle vai as-
sentar-se á dextra de seu Pai. Que fará pois, para perpetuar a sua Re-
dempção e tornar este beneficio accessivel a todos os povos até á con-
summação do tempo? Deixa-nos um substituto: estabelece um Vigario.
Confia-lhe a plenitude de poder que recebêra de seu Pae; depoem n'elle
o cuidado de perpetuar e dilatar a grande Obra que elle mesmo co-
meçara. Jámais houve tam alta dignidade conferida a um homem; já-
mais tam formidavel responsabilidade pezou em humanos hombros.
Quem será o eleito Vice-Rei do Filho do Eterno? O' admiravel abysmo
de sabedoria, e misericordia l Aquelle mesmo que poucos dias antes ha-
via negado tres vezes seu Mestre diante d'uma serva do Pontífice dos
Judeos r O mais fraco para a mais importante empreza l Uma fragil can-

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INTnODUCÇÃO. LVII

na para sustentar o Universo! Um grande peccador para ser o Doutor


da fé e Pai dos Christãos 1 Em uma palavra, este Vigario do novo Adam
é o Apostolo S. Pedro.
Nada ao mesmo tempo mais sublime e patheticó que as circums-
tancias da sua ordenação. Quando um rei pretende confiar um cargo im-
portante a um de seus subditos, exige d'elle garantias, e cauções: o
mesmo fez Jesu-Christo. Este divino Pastor que acabava de derramar
seu sangue para salvar suas ovelllas, estava a ponto de as deixar. Antes
de Jhe confiar seu precioso rebanho, exige de S. Pedro uma caução; .de-
manda-lhe garantias. Mas que caução póde elle obter d'um pobre pesca-
dor sem letras, sem mais fortuna que a sua barca e as suas rêdes ? A
maior comtudo e a mais segura que um homem possa offerecer, ó amor;
mas o amor levado ao heroísmo, o amor prompto a immolar-se em ser-
viço de seu amo, e em desempenho de seu cargo.
Tal é o sentido d'estas admiráveis palavras tres vezes repetidas:
Simão filho de João, tu amas-me? amas-me mais que os outros ? O)
Só depois de ter obtido a firme promessa d'este amor a toda a prova,
é que o divino Pastor lhe diz : Apascenta as minhas ovelhas, apascenta
os meus cordeiros. (2) Tudo que ha de paternal dedicação em poder,
de filial doçura na obediencia, de indestructivel por consequencia nos
laços sociaes, encerra-se n'esta consagração modêlo do primeiro de todos
os superiores: consagração unica nos annaes do mundo, que contém
só de per si mais philosophia social que todos os livros juntos.
Após de ter estabelecido o chefe supremo da sua Igreja, o novo
Adam associa-lhe cooperadores; approximando-se de seus Apostolos, diz-
lhes com toda a magestade que demandava a grandeza d'esta acção: To_
do o poder rne foi dado no Ceo e na terra : ide pois, ensinai todas as ·
nações, baptizando-as em nome do Padre e do Filho e do Espírito San-
to. (3)
Juízes da Fé com S. Pedro, os Apostolas e seu Chefe compoem a

(1) João. XXI, 14.


(2! Ibid. 15 e 16.
(3) Math. XXVIII, 18 19.

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LVIII INTRODUCÇÃO.

Igreja, a quem é dado o direito d'ensinar. Jesu-Chrísto chama-lhe seu


corpo, isto é, o orgão visivel do seu espirita, e como que a bocca por
onde falia; promette-lhe estar com ella até a consummação dos seculos,
por uma união tal como a que a alma tem com o corpo immortal que,
pela successiva·substituição de seus membros, nunca jámais deverá ex-
tinguir-se.
D'ora'vante, pelo orgão da Igreja, ensinará o novo Adam a sua
Doutrina, e a desenvolverá por todo o Universo até o fim dos secnlos.
E' por ella que todos os homens deverão renascer n'elle; e impossive1
serâ ter a Deus por Pai quem não tiver a Igreja por mãi.
Apenas sahimos da sublime ordenação de S. Pedro, já um novo es-
pectaculo se nos apresenta: o Salvador sobe ao Ceo. Modêlo do homem
na vida do tempo, assim o continúa a ser na eternidade. Primogenito
d'entre os mortos, chefe do genero humano, em nome de todos os ho-
mens, seus irmãos, eil-o que solemt'Almente toma posse do Ceo; do Ceo,
sua nobre conquista, eterna patria do homem, morada afortunada de to-
dos que se aproveitam da sua Redempção.
Lá o contemplamos diante do tbrono de seu Pai, advogado, e pon-
tifice divino, interpellando sempre por nós, sempre velando nossas pre-
cisões, oppondo sempre á Justiça vingadora o merito infinito de seus
trabalhos e de suas chagas; tendo n'uma mão o governo e a direcção
da Igreja, que navega por entre escolhos para as eternas praias celes-
tiaes ; com a outra coroando d'imm9rtaes diadêmas as frontes de seus
filhos chegados ao termo da viagem.
Depois voltamos á terra. Entramos com os Apostolas no Cenaeulo,
aguardando o Divino Espírito que deve animar a Igreja. Começamos aqui
o nosso terceiro anno.
III.

TERCEIRO ANNO.

t. o CHRISTIANISMO ES'l'l\BELECIDO. Assim como antes da vinda do


Messias, todo o desígnio de Deus se encaminha a realisar a obra da

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INTRODUCÇÃO. LIX

Redempção; assim tambem depois do Messias, todo o designio de Deus


attende a mantêl-a e dilatai-a. D'est'arte, a Redempção de todas as cou-
sas por Jesu-Chrisfo é o eixo, sobre que rolam todos os successos do
mundo ; esta a causa final de todos os designios de Deus : fim sublime
a que tudo concorre, sabendo-o ou não sabendo, querendo ou não que-
rendo, assim os imperios e os reis e os povos todos.
Havemos mostrado o cumprimento d' esta grande lei, durante os
quarenta seculos que precederam a vinda do Libertador; se aqui paras-
semos, não teríamos acabado a nossa tarefa. A Religião não seria conhe-
cida no seu todo magnifico; e o nosso ensino, incompleto, não seria
tal como o requer o grande mestre que nos serve de guia. (i ) A expo-
sição da Religião, desde o Pentecostes até os nossos dias, é pois taro ne-
cessaria como a sua historia anterior; e até mesmo mais interessante,
ou seja por menos conhecida, ou porque nos toca mais de perto.
Se é admiravel assistir ao nascimento e desenvolvimento successivo
d'esta Arvore divina, cujas raizes se mergulham na profundeza dos se-
culos ; quanto não é mais 'admiravel ainda vêr-lhe desabrochar e esten- ·
der os ramos protectores por toda a extensão do Universo; protegendo
com sua sombra salutar, e nutrindo com seus vivificantes fructos, todas
as gerações qne vão a caminho da eternidade; vêr esta Arvore sempre
acossada pelas tempestades, immobil sempre em seu tronco robusto ;
atacada pelo verme sempre roedor da heresia, do escandalo e da impie-
dade ; e ella c0nservando o seu vigor, a sua verdura, a sua inexgotavel
fecundidade sempre 1 Milagre perenne, ante o qual o homem esclareci-
do cabe de joelhos, e exclama em tran porte d'admiração: obra de IJeus,
maravilha inexplicavel á razão humanal (2)
Tal é o quadro que desdobramos diante de nossos jovens Christãos
durante o terceiro anno de Catecism0.

(1) Narratio plena est cum quisque primo catechizatur ab eo quod scriptum
est, in principio creavit Deus coelum et terram, usque ad praesentia tempora Ec-
clesiae. De Chatech. rw:l. n. 1
(2) A Domino factum est istud, et est mirabile in oculis nostris.· Psalm.
CXVII.

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LX I~TRODUCÇÁO.

Antes de subir ao Ceo, creára o divino Verbo o corpo da Igreja,


seguindo, para formar o homem regenerado, a mesma ordem que tive-
ra para crear innocente o homem decahido. Consagrados os Apostolos,
unidos com elles os discipulos, estabelecidas em jerarchias as diversas
ordens de seus ministros, promulgadas leis e regulamentos, eis ahi pa-
ra assim dizer edificado o corpo da Igreja. Esperemos um pouco, e o
Espírito descerá do Ceo para inspirar a vida n'este corpo immortal. O
dia para sempre memorando do Pentecostes brilha em o mundo ; desce
ao Cenaculo, · e repousa sobre cada um dos discip ulos o Espírito Santo.
Une-se a alma ao corpo: está animada a Igreja.
Com os Apostolos sahi mos do Cenaculo, seguimol-os em suas evan-
gelicas diversões; fallamos das perseguições que move, dos incríveis es-
forços que faz o inferno, para suffocar a obra da Redempção. Traçamos
em poucas linhas a historia dos mais illustres martyres. Para fazer que
nossos jovens Christãos travem conhecimento e amizade com os seus pais
na Fé, descrevemos circnmstanciadamente os costumes dos primeiros
fieis, seguimos-lhes as pegadas por Jerusalem, por Antiochia, Corintho
e Roma: não nos esquece descer ás Catacumbas.
Sustentando na mão o facho da sciencia e da historia, percorremos
as .ruas, as praças, os oratorios d'esta cidade subterranea. Todos os
monumentos que lá encontramos dão-nos testemunho das evangelicas vir-
tudes; dos soffrimentos, da viva fé e resignação de nossos gloriosos
avoengos. Lá os vêmos n'esta tenebrosa morada levantando para o Ceo
as mãos innocentes; recitando, extensos os braços, fervorosas orações;
celebrando- seus fraternaes agapes, e offerecendo os santos rnysterios,
já para se dispo rcm ao martyrio, já para obterem a salvação dos perse-
guidores soberbos, que rolavam com estrepito seus aureos carros por so-
bre suas cabeças. Estes Jogares, para sempre venerandos, estam reple-
tos de tam vivas recordações, que por muito que os visitem, por mais que
se demorem n'elles, ainda tudo será pcuco para os Cbristãos do nosso
seculo.
N;isto imitamos a mesma Igreja, que, nos dias de frieza e in-
differença, toma de novo o caminho esquecido das catacumbas, como
para remontar á sua origem; e, abrindo por toda a parte aquellas anti-

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INTRODUCÇÁO. LXl

gas sepulturas, assim reanima a piedade e a fé vacillante de seus filhos


com as tradições e monumentos de seu illustre berço. (1)
Imagens fieis do Salvador, muitas vezes se viram forçados nossos
pais a sepultarem-se no seio da terra pelo espaço de tres seculos, como
elie mesmo o estivera no tumulo pelo espaço de tres dias ; um seculo
por dia 1 E' d'este tumulo, onde esteve cheia de vida, que a casta Espo-
sa do Homem-Deus surgiu victoriosa para subir ao throno dos Cezares,
como seu divino Esposo surgira do seu, vencedor da morte e do inferno,
para reinar eternamente no mundo. Provada a divindade do Christianis-
mo tam visivelmente como a existencia do sol, pelo só facto do seu esta-
belecimento em despeito de todas as humanas forças, passamos depois a
mostrar seus admiraveis effeitos na terra. Para isto, comparamos o ho-
mem na epo cha do Paganismo com o homem tornado Christão.
Entrando nos pormenores das diversas posições em que se póde
achar o homem, e as diversas faces por que o podemos encarar, vêmos a
influencia universal do Cbristianismo sobre o homem intellectual, moral,
e pliysico. OChristianismo o rehabilita esclarecendo-o, santificando-o,.e al-
liviando-o ; da mesma sorte a sociedade, restabelecendo a verdeira noção
do poder, e do devêr; assim tambem a familia, restituindo-a á sua per-
feição primitiva, pela abrogação do divorcio e da polygamia. Restabelece
o pai fazendo d'elle já não um despota, mas o tenente veneravel e queri-
do do Pai que está nos Ceos; a mãi, declarando-a companheira e não
escrava do homem ; o fillto, apresentando-o como um deposito sagrado,
e abolindo o barbaro direito de o expôr, de o matar, ou de o vender;
o escravo, proclamando-o irmão do seu senhor e seu igual perante Deus;
o pobre, o prisioneiro, declarando-os irmãos do Christo; o estranho, o
companheiro do seu hospede ; emfim, o que deveria escrevêr-se em le-
tras d'ouro, mostramos o Christianismo protegendo por toda a parte o
fraco; substituindo, ao direito brutal do mais forte, a dôce lei da cha-
ridade. (2)

(1) M. Raoul Rocbette, Pintura das Catacumbas, q. 93.


(2) Esta grande pintura apenas a esboçamos no Catecismo ; está porém aca-
bada em a nossa Historia da Familia, 2 vol. em 8. 0

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LXll INTRODUCÇÃO.

Comparando d'est'arte o mundo pagão ao novo mundo cbristão,


mostramos a nova face que tomaram todas as coisas sub a influencia do
Evangelho. Cada um em particular aprende assim o que deve ao Chris-
tianismo, e vê-se forçado a abençoar e amar esta Religião bemfazeja e
a Deus que é seu Author.
Graças ao sacerdocio, á Igreja, o mundo tornou-se christão.
Depois que tantos melhoramentos se fizeram nos costumes, nas leis,
nas instituições; n'uma palavra, depois que os povos, filhos do velho
Adam, se tornaram participantes da vida do novo Adam, parece que
o mundo, saciado por tanta felicidade, e grato a beneficias tantos, de-
veria repousar no seio d'uma profunda paz, e que o Christianismo, sem
custo nem difficuldade, gozaria do seu laborioso triumpho. Assim pare-
ce, mas não succede assim.
As consequencias do peccado, relativamente ao homem, são enfra-
quecidas, mas não extinctas : a obra da Redempção não será consumma-
da senão no Ceo. Entretanto haverá lucta : inte llectual, cumpre que haja
heresias: Iucta moral, cumpre que haja escandalos: lacta physica, cumpre
que haja miserias publicas e particulares. (1) Tudo isto é preciso para
que a nossa vida temporal continue a ser o que Deus quer que ella se-
ja; uma prova, e uma prova meritoria, por consequencia penosa. O ho-
mem é um soldado: cumpre-lhe conservar a sua união com o novo Adam
e crescer em perfeição, com mão armada. (2)
O inferno e o velho homem farão perseverantes esforços para tor-
nar esta lucta perigosa, e frustrar a obra da Redempção, assim respeito
.. dos particulares como dos povos. Umas vezes suscitarão heresias, para
alterar a verdade e burlar a Redempção no homem intellectual ; outras,
suscitarão escandalos, para substituir a concupiscencia á cbaridade, a vida
sensual á sobrenatural, e destruir d'est'arte a Redempção no hom~m
moral ; emfim, os dous crimes, do escandalo e da heresia, e ainda ou-

(1) Oportet et haereses esse. 1. Cor. XI, 19. necesse est ut veniant scanda-
la. Matt. XVIII, 7 - Per multas tribulationes oportet nos intrare in regnum Dei.
Act. XIV, 21.
(2) Militia est vita hominis super terram, Job. VII, 1.

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INTRODUCÇÃO. LXIII

tras coisas particulares, farão grassar por entre os povos epidemias,


guerras, calamidades, destruições, roubos, injustiças, que tenderão todas
a destruir a obra da Redempção em o homem physico, fazendo reviver a
lei brutal do mais forte, e abysmando o mundo no estado de miseria e
abjecção do paganismo antigo.
D'est'arte, destruir a obra da Redempção no homem intellectual,
moral, e physico, será o fim constante do demonio e do mau principio
que permanece em nós.
O novo Adam colloca uma sentinella em cada um d'estes pontos
que se prestam ao ataque. Aqui desenvolvemos o seu admiravel nyste-
ma de defesa e de_conservação. Feliz aquelle que o comprehende ! por-
que a historia não lhe será jámais um segredo; verá claramente o plano,
o fim, a importancia de cada successo; quanto ma.is a estudar md lwr
conhecerá que Jesu-Christo é o Rei immortal dos seculos, o alpha e o
omega, o centro a que tudo tende. Por este principio luminoso esclare"!"
cerá a sua razão, formará o seu juízo, seu coração será inflammado,
uma religiosa admiração virá a ser o sentimento habitual de sua alma, e
achará a razão de tudo com uma superioridade e precisão tal como nun-
ca jámais a poderão obter os philosophos sem fé.
Todos os nossos esforços, n'esta parte ào Catecismo, tendem a ~e­
vantar uma parte do véo que vela tantas maravilhas.
2. o CHEUSTIANISl\IO CONSERVADO.- SACERDOCIO, SANTOS, ÜRDENS RE-
, LIGIOSAS.- Defensor nato, Conservador universal e permanente da obra
da Redempção, o sacerdote ou o Padre terá os mesmos caracteres, e
preencherá as mesmas funcções qJe Jesu-Christo, de quem é o substi-
tuto. Como o Verbo incarnado, será:
t.º Expiador; a fim d'applicar a todas as gerações os meritos do
sacrificio da Cruz, pervetuando-o no altar ; victima viva immolar-se-ha a
si mesmo pelos peccados do povo. Por esta expiação não interrom-
pida, conservará elle para o mundo o primeiro fructo da Redempção,
a união do Ceo com a terra; deprecará contínuas graças, e impedi!'á os
crimes dos homens que não reedifiquem jámais o muro da sepa-
ração levantado pela revolta do primeiro Adam, e derribado pelo sacri-
ficio do segundo.
6

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LXIV INTRODUCÇÃO.

Tal será o caracter permanente do Padre, tal a funcção que predo-


minará em todas as outras; tal o primeiro dever que lhe impõe o Sal-
vador : Fazei isto em memoria de mim. (t) Na ordem historica como
na ordem de dignidade, a missão de ofierecer o sacrificio ou de ser Ex-
piador, precede a de Pregador da verdade e de Juiz das consciencias : o
que o homem preciza primeiro que tudo é de expiação. Por isso o Apos-
tolo S. Paulo, commentando as palavras do divino Mestre, diz expressa-
mente : Todo o Pontifice escolhido d' en.tre os homens, é estabelecido a
bem dos homens nas cousas de Deus, a fim de offerecer dons e sacrifi-
cios pelos peccados. (2) Depois seguem-se os seus outros deveres.
2. 0 Doutor_; a fim de impedir, pelo ensino perpetuo da verdade
christã, a ruína da Redempção na iotelligencia: Vós sois a luz do mun-
do; ide; ensinai todas as nações. (3)
3. º ModtJlo ; a fim d' impedir, pelo brilhante exemplo da virtude, _
isto é, pe1o amor prático dos bens sobrenaturaes, que a concupiscencia,
ou o amor desordenado das cousas sensíveis, não destrua a obra da
Redempção na vontade do homem : Vós sois o sal da terra. Assim res-
plandeçam as vossas obras diaiite dos homens, que elle.'J glorifiquem ~
vosso Pai que está nos Ceas. (4)
4. 0 Enfermeiro de todas as miserias humanas; a fim de, por uma
caridade infatigavel e universal, impedir que o homem pbisico não des-
trua em si a obra da Redempção, cahindo na depravação pagã e nas
miserias que eram sua consequencia : Purificai os leprosos, curai os
doentes, fazei bem a todos. (5)
Padre 1 tal é .tua missão. Ha ahi alguma mais nobre na terra? Es-
tes difierentes caracteres de expiador, intercessor, doutor, modêlo, en-
fermeiro, resplandecem sempre n'elle com mais ou menos fulgor, se-
gundo o exigem os tempos e os lugares~ ou por outras palavras, se-

(1) Luc. XXII, 19.


(2) Heb 5. 1,
(3) Math. XVIII, 19, XXVIII, 18.
(4) Math. V, 13, 16.
(5) Math. X, 8.

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INTRODUCÇÃO. LXV

gundo as necessidades da obra divina. O Padre por tanto é o Conserva-


dor do Christianismo. E' possivel dé!r d'elle uma idêa mais exacta e
elevada? Trazer-lhe á memoria, de uma maneira mais efficaz, a obriga-
ção de todas as virtudes ? e inspirar melhor aos povos o respeito e amor
com que devem tratal-o ?
Ora, como o máa principio, que combate contra o Christianismo,
está por toda a parte aonde ha homens, armado sempre, sempre procu-
rando minar e corromper a Obra divina, o Padre tambem está por toda
a parte, velando noite e dia como o pastor o seu rebanho, ou como
a sentinella nos muros d'uma cidade sitiada. Isto é nos tempos ordi-
narios.
:Mas algumas vezes crescem maiores os perigos. Os lobos crueis ro-
deiam mais numerosos e encarniçados o aprisco, os inimigos aper-
tam com redobrada força, e até chegam a entrar o recinto. O pastor
só não basta a defender o deposito sagrado. Então ouve-se o grito d'a-
larme, e os pastores particulares acodem ao pastor dos pastores ; então,
se tanto é preciso, reunem-se de toda a parte, e empregam o grande
meio d' expulsar os inimigos da fortaleza, os lobos do curral, ou fat-
iando sem figuras, de suspender as heresias e escandalos : este meio é
o dos Concilios.
Contamos a historia d'estas augustas assemb1êas segundo as encon-
tramos na successão dos seculos. A exposição historica de suas causas,
decisões e effeitos, não sómente mostra o cumprimento litteral d'esta
promessa divina : Eu .estarei comvosco todos os .dias, até á conwmma-
ção dos seculos ('I) ; mas tambem a absurdidade da accusação que se
faz contra a Igreja, de crear novos dogmas.
Testemunhas da fé antiga, contentam-se os pastores com dar teste-
munho da crença perpetua de suas particulares Igrejas : seu unico re-
ceio é que se não ajunte, que se não tire, em uma palavra, que se não
façam innovações na doutrina. Vêde o qne se passa em Nicea: pois o
mesmo exemplo se reproduz em todos os Concilias.

(1) Matb. XXVIII, 20.

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LXVI I~TRODUCÇÃO.

Ario ataca a divindade do Salvador. O Bispo d'Alexandria dá o gri·


to d'alarme ; convocam-se os Bispos dos quatros angulos do mundo :
chegam a Nicea; por ventura dizem elles: descobrimos ultimamente, ou
julgamos pela primeira vez que o Filho de Deus é consubstancial a seu
Pai? Não ; mas sim dizem : Nós damos te ....temunho da fé constante de
nossas Igrejas, e depômos que ellas sempre crêram e ainda crêem na
divindade do Verbo. A doutrina d'Ario oppõe- e á doutrina antiga; é uma
innovação: depositarias da fé antiga, condemnamos a innovação, e o in-
novador. Não é pois uma nova fé que estabelecem, mas a antiga crença
que professam. Da mesma sorte, quando os ~ispos reunidos, de toda a
parte da Cbri tandade, na cidade de Trento, condemnaram os erros de
Lutbero e Calvino, fundaram seus decretos, não só nas E cripturas San-
tas, mas tambem nas decisões dos precedentes Concilias, no sentir cons-
tante dos Padres, e nas práticas estabelecidas em todo o tempo da Igre-
ja. E' isto um acto de despotismo ou aatboridade absoluta, exercida
pelos Bispos? Tam longe está d'isso, que é pelo contrario um acto de
docilidade e submissão a uma aulhoridade majg antiga que elles. Rece- ·
beram a lei antes que a impozessem aos outros; e, se algum d'entre
elles pretendesse sacudir este jugo, incorreria logo em anáthema e seria
deposto. O simples fiel que se submctte â sua decisão não cede pois á
aothoridade pessoal dos pastores, mas á de todo o corpo da Igreja, de
que é membro ; e a mesma Igreja obedece á autboridade de Jesu-Chris-
to, cumprindo a ordem, que lhe deu, de lhe ser testemunha em Je-
rusalém, na Samaria, nos confins da terra, até ã consummação dos se-
culos. (t)
Santos. Chegam porém os dias em que a má doutrina, tomando
nova energia, faz mais viva a lucta e mais geraes as desordens e os
perigos; é então que, do seio sempre fecundo da Igreja, suscita Deus
novos defensores da obra da Redempção ; são esses homens poderosos
em obras e palavras, extraordinarios Santos, que apparecem de quando
em quando nos dias de conjuração e de prova. Sua missão é tam visi-

(1) Veja-se Bergier, Dic<ion. thelog., art. Igreja.

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INTRODUCÇÃO. LXVII

vel como o vêl-os sempre dotados no grão mais imminente d'aquellas


mesmas qualidades, que a necessidade e as circumstancias reclamam.
Já vimos que o inferno só póde accommetter o Christianismo por al-
gum d' estes lados: o homem intellectual, pelo erro; o homem moral,
pelo escandalo; o homem physico, pelo retrocesso á escravidão; e abjec-
ção pagã. Pois por isso mesmo (admiravel cousa f) ha, nem mais nem
menos, tres especies de Santos.
1.º Os santos apologistas. Para a defesa e propagação da verdade,
isto é, para impedir que o erro não destrua a obra da Redempção no
homem intellectual, apparecem estes enviados da Providencia nos lo-
gares e momentos precisos em que a verdade correria mais imminente
risco.
Não quizemos pois que nossos jovens christãos ignorassem esta ver-
dade fundamental, que demonstra á evidencia a acção contínua e pater-
nal da Providencia sobre a Igreja. Tambem fazemos oQtro reparo não
menos interessante; e é, que os apologistas não são precisamente os
Tertullianos, os Atenag-0ras, os Clementes d'Alexandria, se não os ho-
mens do povo, os ignorantes, os velhos, as .mulheres, as virgens, os
meninos, em uma palavra, os martyres: são estes as mais illustres tes-
temunhas do Christianismo, e os apologistas mais eloquentes ·qae asse-
guraram o seu triumpho; e como não crêr, disse Pascal, em testemo..
nhas que se deixavam decepar 'I Pois é este testemunho, esta apologia
do sangue e do martyrio, que a Religião encontra toda a vez que lhe é
necessaria.
2.º Os santos contemplativos: nascidos para defender . a Religião
em o homem moral, olham com aversão as honras, as riquezas, os pra-
zeres, as paixões todas ; e attrahem o coração humano ao amor dos bens
sobrenaturaes pelo desprêso solemne da8 cousas sensíveis.
Por certo : se todos os males do mundo· nascem do amor desor-
denado ás creaturas, quanto não serão uteis á paz 'da sociedade e feli-
cidade dos povos, aqueJles homens que, com seus exemplos, mais effi-
cazmente contribuem a moderar e extinguir este criminoso amor, do
que todos os philosophos com seus livros e os legh;ladores com suas leis?
A historia nol-os offerece semnrA. no momento em que o amor humano,

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LXVIII INTRODUCÇÃO.

aviltado pela relaxação e licença, quereria elevar outra vez a concupis-


cencia ao throno, de que fôra derribada.
Maravilhosa cousa t Ao lado do vicio patentea-se sempre uma ,·ir-
tude contraria ; qual victima innocente destinada .a neutralizar-lhe a foi:-
ça e servir~lbe de expiação. E' uma das mais bellas disposições do mun-
do moral, e uma. prova evidente d'aquelle oraculo: tudo dispoz o Se-
nhor com numero, peso e m1Jdida; profunda sentença, da qual o mundo
espiritual nos offerece uma prova mais brilhante que o material. E' sa-
bido que a creação phisica se transtornaria em um momento, se por
um só instante se ·abrogasse a lei de proporção, que é a sua mesma
vida : pois assim succederia tambem á sociedade, se por um momento
se levantasse a mão que sustenta as forças contrarias em seu perfeito
equilibrio.
· 3. 0 Os santos hospitaleiros. São estes suscitados para servirem aos
enfermos que gemem sobre a terra; isto é, para defesa da vida e bem
estar do corpo, impedindo por conseguinte que o homem não venha a
recahir no estado d'abjecção, escravidão e miseria de que o Redemptor
o havia tirado. A existencia d'elles é um prolongado sacrificio, uma in·
teira consagração ao allivío de todas as dôres. Eis como se conservam
no homeµi physico os fructos da Redempção. A historia nos mostra
tambem estes santos apparecendo na terra, como anjos consoladores,
no critieo momento em que pestes, e calamidades, ameaçam o bem-estar
e segurança dos pobres e desvalidos.
Todos estes santos tiveram sua particular missão : isto não obsta
que não tenham elles tambem os demais caracteres que convém áquelles
que Jesu-Cbristo elegeu para a conservação do seu imperio ; mas com-
tudo distinguirool-os por seu caracter privativo, e lh'o reconhecemos em
suas obras. A' proporção que os vamos descobrindo, pelos seculos em
que viveram, offerecemos suas vidas ao exemplo e admiração da nossa
mocidade : e por ventura poderiamo~ traçar-lhe mais seguro itinerario
da terra ao Ceo !
Ordens religiosas. Se é admir.avel esta primeira parte do plano di--
vino na conservação Jo Christianismo, temos outra que o não é menos.
Na vida da Igreja encontram-se epochas terriveis, nas quaes se pode

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INTRODUCÇÃO. LXIX

ria dizer qoe as portas do inferno iam prevalecer contra ella. Desen-
cadeiam-se os ventos com desconhecida violencia. Furiosas tempes-
tades desfecham contra a barca de Pedro, ameaçam engulir com ella
a obra da Redempção, e submergir o mundo todo na abjecção do
paganismo. A heresia, o escandalo, a injustà oppressão, accommettem
juntas por todos os lados o homem regenerado. Ser.á grande a lac-
ta, geral, encarniçada : nunca jãmais se vio o mundo em tam gran-
de perigo.
Mas eis que Deus, que vê o conflicto, tira do thesouro do seu
amor novos auxiliares da Redempção; são os institutos religiosos; reu-
nidos em torno do mesmo estandarte, manobrando com a mesma alma
e o mesmo espirito, no dia preciso em que sua presença era mais ne-
cessaria, durando tanto tempo, quanto o exigia o bom exilo da lucta, e
o cumprimento da missão para que nasceram. Jã notamos que são
tres os pontos do ataque infernal contra o Christian ismo ; o homem intel-
lectual, o homem moral, e o homem physico : admiremos agora, como
já antes a outros respeitos admiramos, que tambem são sómente tres as
especies de ordens religiosas.
i. º As ordens apologeticas ou sabias : as quaes attendem à conser-
vação, defesa e ensino da verdade ; para impedir que o erro não des-
trua a obra da Redempção no homem intellectoal.
2. 0 As ordens contemplativas : que tem por fim a defesa da Re-
dempção no homem moral ; ou por outras palavras, que pretendem
levantar o amor humano para os bens sobrenaturaes, inspirando-lhe
o desprêzo das cousas sensiveis; contrabalançar o escandalo, e obstar ã
concupiscencia que não reasuma o seu imperio. Victimas paras, sem-
pre immoladas e vivas s~mpre, anjos da oração, velando noute dia en-
tre o vestibulo e o altar, mais fazem ellas para a tranquillidade do
mundo e a pureza dos costumes, que os reis· com sua politica, os
magistrados com suas leis à os philosophos com suas maximas.
Um pobre convento evjta mais desordens que todos os carceres e ca-
labouços.
3. 0 As ordens hospitdleiras : consagram-se estas ao allivio de todas
as miserias humanas ; encontram-se velando junto ao berço do recem-

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LXX INTRODUCÇÃO.

nascido, ou sobre a ~enxerga do moribundo velho ; na choupana do


indigente, como na masmorra do encarcerado; esperando ao viajante
no cimo dos Alpes, como acompanhando o mineiro nos subterraneos
de Potosi : em uma palavra, vêmol-os acudindo a todos os pontos
por onde o inferno quer atacar a obra da Redempção no homem physi-
co. Quanto és bella, ó Religião santa, em todos os teus meios de con-
servação ! Torre de David, mil escudos protegem tuas muralhas r Sa-
cerdocio, casa de Deus, exercito d'Israel, sempre velando sobre os
muros de Jerusalém, orando na montanha ou combatendo no descampa-
do, bemdito sejas 1 Vós outros, s2ntos e eleitos de Deus, astros bene-
ficos que surgis no horisonte d'esta criminosa terra, para dissipar as
sinistras ·nuvens do erro e do vicio, bemditos sejaes r E vós tambem,
sej aes bem ditas, ordens religiosas, corpora~es respeitaveis, auxiliares
poderosos da Redempção.
Maravilha e pasmo do mundo, basta conhecêl-as para chorar amar~
gamente a deploravel cegueira d'aquelles que as quizeram supprimiL
Rogar e pedir a Deus, offerecer-se a seu serviço, dar ao mundo um
exemplo d'abnegação, de desapêgo de seus bens e prática de todas as
virtudes; arrotear desertos, cultivar e embellecer terras tidas por iaha-
bitaveis, crear recursos para mil familias, ensinar gratuitamente a moci-
dade, propagar a instrucção, prestar toda a especie d'auxilios pelos cam-
pos, emprehender e acabar immensos trabalhos scientificos que exce-
deriam as forças d'um homem só, offerecer um retiro ao arrependimento,
um refugio ao infortunio, um asylo á innocencia, exercer a hospitalidade
affavel e terna, acompanhar os viajantes, assistir aos pobres enfermos,
consolar os affiictos, satisfazer ás necessidades espirituaes e temporaes
d'um povo abandonado : eis aqui as vossas obras. Insensatos, ou crimi-
nosos detractores das ordens religiosas, dizei : por ventura é tudo isto
uma vida inutil e ociosa, uma cousa abominavel e infame? (t)
Dizemos pois das ordens religiosas o que dissemos dos santos ; tem
ellas todos os caracteres do Redemptor_, mas distinguem-se por seu ca-

(1) M. de Haller, historia da revolução religiosa ou da Reforma protestante


na Suissa occidental, p. 244.

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INTRODUCÇÃO. LXXI

racter predominante. Esta parte do Catecismo, em que tratamos da sua


historia, é inquestionavelmente das mais interessantes, e a que demostra,
com maior evidencia, a acção conservadora da Providencia; tendo além
d'isso, ao · menos para o nosso seculo, o agradavel incentivo da novi-
dade.
O sacerdocio, os santos, as ordens religiosas, são os tres meios es-
tabelecidos pelo novo Adam para a munutenção do Cbristianismo; es-
tes tres meios resumem-se em um só, que é, a Igreja ; porque é na
Igreja, e pela Igreja, que nascem os santos; é na Igreja, e pela Igreja,
que se formam as ordens religiosas.
Conservar a obra da Redempção até é consummação dos seculos,
contra os continuados e perseverantes ataques do inferno e do velho ho-
mem, tal é a primeira cousa que cumpria o Salvador fizesse: propagai-a
é a segunda. ·
3. o CHRISTIANISMO PROPAGADO. - Todos os homens são filhos de
Deus. Para todos, sem distincção de paiz ou de condição, Jesu-Christo
derramou o seu sangue no Calvaria. (1) Deus quer que todos alcan-
cem a verdade, e participem das bençãos de que o Medeador é a
origem. (2) Se pois a maior prova d'amor, que Deus podia dar aos
povos Christãos, é conservar-lhes a Religião; a maior prova de miseri-
cordia, que póde dar ás nações jacentes ainda nas sombras da morte, é
fazer brilhar para ellas a luz salutar do Evangelho.
D'aqui as missões, sua necessidade, sua existencia perpetua no
mundo, desde a vinda do Espirita Saato e a sabida do Cenaculo. Es-
crevemos a historia das principaes missões nos difforentes seculôs,
desde o estabelecimento da Igreja até os nossos dias : é immenso este
campo. Nada nos parece tam proprio a elevar o espirito, e a commo-
vêr o animo, como este magnifico quadro das conquistas evangelicas.
Tudo n'elle attrahe os meninos; tudo lhes falia á imaginação, amiga
de cousas grandes e maravilhosas, e faz-lhes palpitar o coração com
um terno e vivo interesse. D'uma parte, os povos desconhecidos a quem

(1) 2. Cor. V. 15.


(2) Gen. XXII, 18.

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LXXII INRTODUCÇÃO.

os Missionarios vão levar a boa nova; as espêssas trevas, a prostração


em que os encontram, os primeiros progressos do Evangelho, a mudan-
ça d'estes homens barbaras em fervorosos Christãos; d~outra parte, as
industrias, a dedicação heroica, à paciencia infatigavel dos Missionarios,
os innumeraveis perigos a que se arriscam, as privações incriveis que
supportam, tudo n'esta narração conspira para nos reanimar o fervor,
e fazer-nos bemdizer a bondade infinita d'aquelle Deus que, tirando-
nos, em a pessoa de nossos pais, da noute do Paganismo, collocou
nosso berço no meio das luzes admiraveis do seu Evangelho.
Accrescente-se a isto, que as epochas, e os successos das differen-
tes missões, dão-nos uma nova demonstração da Providencia infallive1
que vela sobre a Igreja. Quando o sagrado facho se extingue no
meio d'um povo criminoso, vêmol-o no mesmQ instante transplan-
tar-se para outro povo. Não sabemos haja na historia um facto mais
constante e instructivo.
.. Ora todas estas maravilhas dos antigos tempos renovam-se em
os selvagens que, pela acção efficaz do Evangelho, se fazem homens
e Christãos. Os barbaros que se civilisam, os martyres que derra•
roam seu sangue pela fé, estes milagres todos, que fulguram na his-
toria dos primeiros seculos do Christianismo, e que a impiedade mo-
derna ousava pôr em duvida, por ventura não são elles proprios a
confundir sua criminosa negação e reanimar a fé, quando os vêmos
cumprirem-se diante de nossos olhos, e isto unicamente pelos Mis-
sionarios catholicos ? E' por isso que, segundo o conselho de S. Agos-
tinho, enterlaçamos em brBbant-es elos a longa cadêa dos seculos Chris-
tãos ; e conduzimos assim a historia da Religião, desde a origem do
mundo até os nossos dias : a narração termina pela missão da Coréa.

IV.
QUARTO ANNO.

Ü CHRISTIANISMO TORNADO SENSIVEL. - Lº CULTO l!:XTERNO. - Não


basta ter apresentado a Religião ao espirito e ao cora~ão do homem.

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INTRODUCÇÃO. LXXIII

Para que se apodere de todo o seu ser, preciso é mostrai-a ainda


aos sentidos : por isso Deus a escreveu em signaes sensiveis. O que
o mundo visivel é para o invisível, o culto externo é para os dogmas
e preceitos do Christianismo : é este culto qual um espelho, onde vêmos
os objectos, com os proprios olhos; e, para assim dizer, palpamos com
as mãos as verdades rla ordem sobrenatural, como vêmos e palpamos as
verdades naturaes no mundo pbysico.
Pelo culto externo tornam-se sensíveis o ensino da fé e as regras
da moral : a quéda do homem, a sua Redempção,_ suas esperanças
immortaes, seus deveres, sua dignidade. Que mais diremos ? O culto
externo é para a Religião o que a palavra é para o pensamento: como
sua expressão fiel, ora é suave, ora alegre, já terrível, já lugubre, se-
gundo a natureza das verdades que exprime : n'uma palavra, o cul-
to externo catholico é o Christianismo que falia aos sentidos ; e por
isso o titnlo das nossas lições n'este quarto anno é: O Christianismo
tornado sensível.
2. º Do.MINGO. - Depois de nos termos remontado aos dias antigos,
e indagado as verdadeiras origens do culto Catholico, sua necessidade,
tendencia e completa harmonia com nossas precisões; descriptos mi-
nuciosamente os augustos logares onde se faziam nossas santas ce-
rcmonias, ·e provado que não ha parte alguma em nossas Igrejas
que não seja fertil de saudosas recordações, passamos a explicar o
officio d'este dia solemne com tanta razão chamado o dia do Senhor.
A benção, o officio, o sacrificio augusto do altar, tudo revistamos.
Por este modo mostramos quanto é digno da verdadeira Religião o
culto catholico; queremos dizer, quanto é razoavel, nobre, santo, pro-
prio a captivar os sentidos, elevando-os á contemplação das cousas divi-
nas : mais que tudo insistimos em provar quanto elle é instructivo e
verdadeiro.
Supponbamos que nm navegante digno de credito, voltando d'nma
viagem que fizera a desconhecidos archipe1agos, vem amitinciar ã ci·
vilisada Europa a existencia d'um povo que, ha seculos, conserva
invariaveis a lingua, a fé, os costumes, as leis, os usos, os ritos,
e até mesmo a fórma dos edificios e dos vestidos ; que todas estas

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LXIIV INTRODUCÇÃO

cousas, admiraveis por sua grandeza, sabedoria e espirito, tem suas


raizes em tradições mais antigas, que pela maior parte, sobem á ori-
gem dos tempos, e ligam-se aos mais colossaes successos de que façam
menção os annaes do genero humano ; de tal sorte· que basta conhe-
cer este povo, entrar em. seus templos, assistir a suas ceremonias re-
ligiosas, penetrar·lhes o sentido e a causa, para logo ser transportado
á distancia de desoito seculos, e entender todos os mysterios do home_m
e o espectaculo vivo da mais remota antiguidade.
O ardor inexplicavel que hoje se manifesta em revolver as rui-
nas do passado- é uma garantia do que vamos suppondo : ao ouvil-o,
o Havre, os portos de Brest, Marselha, de tollo o nosso litoral,
veriam uma multidão de nossos amadores d'antigualhas correr apres.-
surados e fazer-se ao largo para visitar este povo monumental. Quem
sabe ? Até os ·mesmos governos póde ser enviassem tambem a este
povo expedições scientificas para recolher mais verdadeiras tradi-
ções, lêr inscripções mais interessantes, e explorar mais venerandas rui-
nas que as de Thebas ou de Memphis.
Pois bem; este povo existe : é o povo Christão, é a Igreja Ca-
tholica. Jovens amadores da antiguidade, assaz de tempo ba que
est.ais pasmados diante do limiar de nossas Catbedraes, entrai no sanctua-
rio ; lá descobrireis o pensamento mysterioso e efficaz, cuja maravilhosa
expressão vos enlêa e arrebata ; ahi redrobará a vossa admiração, por-
que tereis o espirito do monumento, do qual apenas conheceis a letra
morta. Sêde Christãos no sentido prático d'esta palavra; e, de simples
expectadores que ereis, vireis, a ser poetas da arte ; porque,· não vos
esqueça isto, nas artes, está morto desde esta vida aquelle que não cr~
na outra. (t)
Quando ao Domingo virdes o Padre no Altar, fazendo com ma-
thematica precisão os mesmos movimentos, repetindo escrupulosa-
mente as mesmas palavras. longe vã, e bem longe de wssos espi-
ritos a critica ignorante ; longe de vossos labios, o sorrir impio do

(1) Expressão do celebre Lourenço de Medieis que foi ao mesmo tempo


esclarecido appreciador das artes e protector m'l~nico dos artistas.

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INTRODUCÇÃO. LXXV

desprêzo: recolhei vossos pensamentos ; penetrai o mysterio ; dizei no


coração : Eis diante de meus olhos a antiguidade da Fé ; eis a im-
movel perpetuidade do Christianismo. Ao passo que tudo muda, que
tudo cabe em torno d'ella, esta Religião só permanece sempre a
mesma. O que este Padre faz, da mesma sorte o fazem, n'este mo-
mento, em todos os pontos do globo, milhares de Padres ; o que
todos juntamente fazem, já da mesma sorte se fazia ha cem annos,
ba mil annos, ha mil e oitocentos annos. As basilieas de Constanti-
nopla e de Nicea, as Catacumbas <le Roma testemunham o mes-
mo espectaculo. N'este Padre estou vendo Chrysostomo eni Antiocbia,
Agostinho em Hippona, Dionysio em Lutécia, Ambrosio em Milão,
Clemente em Roma. Elle estende os braços para orar ? é o Chris-
tão dos antigos evos; põe as mãos sobre a sagrada offerenda 'l é
Aarão tomando posse da victima ; desdobra elle os corporaes, onde
pousa a sagrada hostia 'l é o 1€nçol do Calvario, onde se invoiveu a gran-
de Victima do genero humano. ,
Desenrola-se a meus olhos a antiguidade toda, desoito seculos de-
volveram já, e ouve-se a voz do Filho do Eterno que diz : Jámais será
tirado um jota da minha lei ; vejo diante dos olhos o cumprimento· do
seu oraculo imm'.ortal : · o Ceo e a terra passarão, mas _não passará
a minha palavra. (t) Não sómente as ceremonias do augusto sacrificio
fazem brilhar aos nossos olhos a veneravél antiguidade da Igreja, senão
que os usos mais vulgares de nossas santas assemblêas nol-a recordam
em sua língua cheia de candura e charidade.
Citaremos um exemplo : Todas as recordações do Domingo primiti-
vo se tem conservado entre nós. Em nossas missas solemnes eneontra-
se o pão partido entre os fieis, as leituras dos livros santos, as ·esmolas
feitas aos pobres e captivos; o que S. Justino confessava a Marco Au-
relio é o que ainda fazemos dezeseis seculos depois.
«Em memoria do pão, que então se distribuia aos fieis, e das
offertas voluntarias dos Christãos, para soccorro dos pobres e resgate
dos captivos. ha tambem entre nós sacerdotes e fieis consagrados a es-

(1) Math. V, 18. Marc. XIII, 31.

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LXXVI INTRODUCÇÃO.

te objecto. Aquelles pedem para os enfermos e necessitados, estes pa-


ra os encarcerados e prisioneiros. Uma joven, com sua bolsa de velu-
do encarnado, enderessa-se ás almas piedosas para obte'r d'ellas o que
possa custar-lhe um ramalhete de flôres para o altar da Virgem. Um ve-
lho com sua bandoleira preta mosqueada de lagrimas de prata, é um
membro da confraria da boa morte, que vai pedindo esmola para o en-
terro dos pobres.
«Em memoria das Actàs dos Apostolos e dos Livros dos Prophe-
tas que os leitores liam outr'ora aos fieis reunidos, entre nós o Subdia-
cono e o Diacono fazem o mesmo officio : o parocho na cadeira lê e ex-
pli<~a o Evangelho do dia; e, segundo a recommendação do Apostolo,
pede em voz alta pelos Pontífices e Reis, pelos ricos e pobres, doentes
e enfermos, viajantes e desterrados.
«A Religião dispoz as cousas de sorte, que não -ha dôr sem con-
solação, miseria sem allivio, necessidade sem soccorro; e cada Domin.--
go nos dá um espectaculo das boas obras que se praticavam nos tem-
pos primitivos. •
tSe espirit os soberbos desdenham da missa solemne, é porque
não sabem quanto ella nos recorda antigas usanças e santos costumes.
Admiravel oousa 1 Não ha em toda a christandade villa nem povoado, qne
não· offereça, de oito em oito dias, aos sabios e eruditos, reminiscencias
da antiguidade, recordações dos Cesares e do Circo, das Catacumbas e
dos martyres.» (i)
Assim se explica e justifica esta memoravel expressão da alma
mais· amante e talvez melhor inspirada do decimo sexto seculo: «Eu
daria a cabeça, dizia Santa Thereza de Jesus, pela mais pequena cere-
mollia· da Igrej a.
J)

Dms!o no TEMPO. - Depois de termos explicado o Domingo. e as


tam tocantes e .instrucfüas, como pouco conhecidas ceremonias do officio
divino e do augusto sacrificio da Missa; e feito reparo na profúnda sa-
bedoria da Igreja em fazer uso constante da lingua latina, pois que a
uma doutrina immortal pr~ciso é um idioma invariavel; passamos aos

(1) Descripção poetica das Feitas chmtãa~ pdo visconde Walsh.

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INTRODUCÇÃO. LXXVIr

dias da semana, aos mezes e anrio ecclesiastico. Damos primeiro- a di..


finiçã() christã do tempo; o qual, depois da quéda original, não é mais
que' a espera concedida pela justiça divina ao homem culpado, para se
rehabilitar. N'esta simples definição que fecundas idêas e sentimentos
salutares se não encerram 1 A' definição do tempo segue-se a divis~o
do anno adaptada pela Igreja, divisão eminentementé philosophica, a
qu<!l corresponde admiravelmente ás tres partes do Catecismo, como es-
tas correspondem aos tres estados da Religião, antes, no tempo e depois
da pregação de Jesu-Christo.
A primeira parte do anno, que comprebende Q tempo do Advento
até a natividade do Messias, recorda-nos os quatro mil annos de depra~a­
ções, os suspiros e as esperanças do mundo antigo, taes çomQ as temos
explicado na primeira parte de nossas lições.
A segunda, que decorr~ desde o Natal até a .l\scensão, encerra
toda a vida mortal do l\edemptor e corresponde ao nosso segundo
anno.
A terceira emfim_. que começa no · domingo do ·Espírito Santo e
acaba no dia de todos os Santos, traz-nos á memoria a vida da Igreja
desenvolvida em nosso terceiro anno. (t) D'est' arte, a vida da Igreja, a suc-
cessão das festas, as differentes divisões do anno, que nos recordam to-
da a vida do genero humano e toda a historia do CbrisüaQismo, termi-
nam-se pela festa do Ceo._ Com effeito, tudo a elle conduz : o Ceo é a
ultima palavra de todas as cousas.
4. FESTA. - Aprendendo com os · nossos Mestres na sciencia sa-
grada, fazemos considerar as festas christãs como o aprendizado do
Ceo ; como uma fraca imagem sim, mas frequentemente reproduzida,
da festa eterna. Bemdita sejas, ó Religião santa, que CQIQ maternal
amor vais semeando flôres, e cortando, drespaço a esp&ço, com a

(1) 'Aqui não ha lacuna. Outro tempo o Advento duravá seis semanas e co-
meçava em dia de S. Martinho, logo depois da oitava do todos os Santos. A Igreja
de Milão, fiél a seus antigos usos, conserva ainda as seis semanas do Advento pri-
mitivo. O mesmo euecede no Oriente, entre os Gregos unidos. Annaes da Prop. da
Fé, Q. 0 47, p. 537.

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LXXVlll INTRODUCÇÃO.

sombra de frescas arvores, o arido e espinhoso caminho, que o homem


exilado percorre tam dolorosamente, antes de chegar á sua patria ! .
Este nome de festas, ou dias santos, é já uma lição d'alta philo-
sophia. Este nome, que contrasta tam vivamente com as lagrimas, os
trabalhos e os males da vida terrestre, repete ao homem toda a sua his-
toria passada, presente e futura ; elle o conduz ao temor de Deus, ani-
ma-o, consola-o, recordando-lhe não só o seu destino primitivo, como
tambem, a sua Redempção, e os jubilos sem sombras nem fim que lá o
esperam no Ceo.
As festas conseguem ainda mais : preparam o homem para a vi-
da futura, desapegando-o pouco a pouco da vida sensual, ao mesmo
tempo que· lhe servem d'allivio e. descanço de seus penosos tra-
balhos. Oh! Quanto amor e Eabedoria da parte da Igreja, ou an-
tes, do Pai celeste que a inspira, na instituição das festas! Quanta
crueldade e sem razão da parte d'aquelles que as querem abolir, ou
que as aviltam por seu procedimento, ou as fazem violar por seus exem-
plos t · Que mal não fazem á humanidade t Tristes filhos d'Eva, po-
bres artistas, e lavradores, mercenarios, vós todos que ganhaes o pão
com o suor do rosto, os dias santos foram principalmente estabelecidos
para vós. Não só ao interesse de vossa alma, como tambem ao bem do
vosso corpo, attendeu a Igreja, vossa Mãi carinhosa, na instituição de
suas solemnidades. A' sociedade não vai menos em as observar fiel-
mente. Esta verdade, que a cessação do trabalho em certos dias toca
· no fundamento dos estados, e que a violação dos dias de repouso pre-
judica o· bem-estar e os' mesmos interesses materiaes dos povos; esta
verdade, desconhecida hoje mais que nunca, nada poupamos para a
tornar palpavel. Cumpre repetil-o sempre : a Religião, que parece não
ter outro fim mais que a bemaventurança da outra vida, faz tambem a fe-
licidade d'esta.
Supposto que o nosso fim principal seja dar a conhecer as fes-
tas christãs pelo la40 historico, dogmatico, moral e liturgico, de ne-
nhum modo queremos passar em silencio a sua admiravel harmonia
com as estações, e ainda mais com as necessidades do espirito e <lo
coração. Cada uma de nossas solemnidades celebra-se na estação mais

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INTRODUCÇÃO. LXXIX

propria para desenvolver os sentimentos que por ella se querem ins-


pirar. E' por isso que a creação physica concorre para o fim da Reli·
gião, e ambas se encaminham ao bem do homem, para quem foram
feitas ; a fim de que pelo homem se refiram a Deus, que é o prin-
cipio e o fim de todas as cousas. Um exemplo tomado ao acaso basta
para provar, á evidencia, esta verdade tam pouco conhecida. Suppo-
/
nhamos que em vez de se celebrar no Inverno, a Festa do Natal
se faz nos bellos dias do Estio. Não se vê Jogo que isto hade esfriar
a piedade condoída do recemnascido de Bethlem ? Como excitar no co-
ração, em meio de calores ardentes, os sentimentos tam vivos, que
nos inspira este menino, que quiz visitar-nos na condição do pobre,
nascendo logo ti;anzido de frio? Collocai agora o Natal no vigesimo
quinto dia de Dezembro, e experimentareis, como sem o querer,
uma terna compaixão pelo menino Deus, que nasce tam pobrinho,
no meio d'uma longa noite de inverno, n'uma gruta humida, coada
por toda a parte do relento, e do sôpro gelado do aquilão. Não vos
admireis : na primeira hypothese, ba dissonancia entre a festa e a
estação ; na segunda, existe a harmonia : restabelecida a ordem, de-
sapparecem os obstaculos, e o coração sente sem custo, o que deve-
sentir. (i)
Penetrando ainda mais n'estas mysteriosas consonancias, mostra
mos, pelo decurso do anno, que não ha verdade que a Igreja nos
não prégue, nem virtude que não proponha á nossa imitação, nem
corda que não vibre em nossa alma, com esta admiravel harmonia das
festas ; de sorte que podemos dizer das solemnidades o que somos
forçados a dizer de cada verdade christã : se não existisse era preciso
inventai-a.
E' d'este modo que ensinamos a letra da Religião.
5. EsPIRITO DA RELIGIÃO. - Quanto ao espirito, seguimos ainda
o parecer do grande Mestre que no serve de guia. Todas as nossas

(1) Esta. harmonia mais sensivel se torna em o nosso hemispherio de Roma:


e assim devia ser, porque a Igreja Romana é mãi, e senhora, e modêlo das demais
Igrejas.
7

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1.xxx lNTRODUCÇÃO.

Ii~ões, toda esta magnifica exposição do Christianismo, não tem outro fim
mais que fazer palpavel esta grande e unica verdade : DEus É AMANTE
nos HOMENS, ('1) sempre amante, não tendo desde o principio do mun-
do senão um só desígnio, o de fazer o homem feliz, reparando o mal
que elle fez a si mesmo, e fazendo concorrer á realisação d'este mise-
ricordioso pensamento o Ceo e a terra, os povos e os reinos, o mundo
antigo e o mundo moderno.
Como pois será possivel ter um coração capaz d'amar, um es-
pirita capaz de ligar duas idêas, em uma palavra, como será possí-
vel ser homem, e livrar-se d'esta conseqqencia: logo é um dever tam
suave, corno sagrado, amar a este Deus tam infinitamente bom; e, por
amor d'elle, ao proximo, imagem sua e nosso irmão?
D'este modo, amar a Deus so~re todas as cousas, e, por amor de
Deus, amar ao proximo como a si mesmo : eis o resumo, a conclusão, o
fim moral de cada uma de nossas lições ; este o grande sentimento que
predomina no Catecismo. E que outra consequencia poderíamos nós tirar
que não fosse esta ?
De facto, não é a Redempção do mundo o centro commum a que
tudo tende ? Não expõe cada uma de nossas instrucções, algum meio
estabelecido por Deus para a preparar, realisar, manter, e dilatar? Ora,
não é a Redempção o grande mysterio da charidade de Deus para com.o
homem ? (2) Como pois terminar cada uma de nossas lições por outro
modo que não seja por um acto de gratidão e amor?
Se nos censurassem esta repetição constante, buscaríamos a nossa
justificação no proceder do Discipulo amado. Attenuado dos annos, o
Apostolo predilecto fazia-se conduzir á Igreja ; todas as suas· instrucções
consistiam n'estas poucas palavras, que repetia continuamente : Meus fi-
lhinhos, amai-vos uns aos outros. Seus discipulos, admirados de lhe ouvir
sempre a mesma cousa; perguntaram-lhe a razão ? deu-lhes esta resposta
bem digna d'aquelle, que tinha tido o privilegio ineffavel de reclinar a
cabeça no seio do divino Mestre: é porque se o fizerdes, isso basta.

(1) A9ost. de Catech. rud.


(2) 1 Tim. III, 16.

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INTRODUCÇÃO. LXXXI

Felizes seremos nós se, á força de repetir a nossos jovens ChristãQs


este principio fundamental, podermos inspirar a alguns .d'elles o serem
constantemente fieis ao preceito da charidade, que é o Wlico fim do Cate-
cismo, resumo da Lei, dos Prophetas e do Evangelho ; pal~vra ulfü~ta de
todas as cousas, termo final das obras de Deus e da vida do home~ ~o
tempo a na Eternidade.
6. A RELIGIÃO NA ETERNIDADE. - Depois de ter percorrido os ses-
senta seculos que nos separam do nascimento do homem, depois de ter
remontado-nos á fonte d' este rio magestoso da Religião, que desc.~ndo das
alturas do Ceo, derrama pela terra a frescura, a fecundidade e a yi..
da; depois de a vêrmo.; atravessando todas as idades futuras ; fazemos
esta pergunta: para onde conduz ao genero humano esta Religião
divina? Que pretende a Igreja romana, unica depositaria d' esta Reli-
gião d'amor, civilisando as nações, instruindo os reis e os subditos,
educando~s na virtude, alliviando todas as suas necessidades? Quer
reparar pouco a pouco, a respeito de tod~s as gerações que ~ntr~m,.. po
mundo, as funestas consef!uencias do peccado original, e de todos os
outros particulares. Quer dar ~o nosso espírito uma parte das ~uzes de
que elle gozava, no estado da innocencia; ao nosso coração, a sua
santidade ; á nossa alma, o seu imperio sobre os sentidos, uma p~rt,e
do seu poder e da sua integridade primeira; quer emfinÍ prepar.ar o
genero humano para uma rehabilitação completa. Sim, esta rehabjlita-
ção tam eflicazmente mantida, e da qual fazemos a pintura 1:1-os oi-
to volumes do Catecismo, é apenas começada na terrra; a sua per-
feição está reservada para a Eternidade, á qual a Religião nos con-
duz. Apoiados na auctoridade da fé e ensino dos Padres, procuran;ws
balbuciar algumas palavras sobre esta bemaventurada Eternidade, u~­
timo beneficio da ReligHio, ineffavel recompensa de nossos curtos sof-
frimentos e ligeiros trabalhos, diadema brill1~nte da obra 4.a ~edem­
pção, deliciosa explicação de todos os enigmas da vida, repouso eterno
na ordem, pelo peccado perturbada, pela graça restabelecida, e coroa-
da na gloria. Com effeito, é no Ceo que todas as cousas serão per-
feitas.
Porque, para Deus, o· Ceo é o cumprimento de todo$ os seus
*

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LXXXll INTRODUCÇÃO.

designios ; é o gozo pleno e perfeito das suas obras, a completa mani-


festação da sua gloria, o reinar delicioso d'um Pai querido sobre filhos
doceis; é a expansão immensa e eterna do seu amor para com seus san-
tos, a expansão egualmente eterna de seus santos para com elle ; em
uma pala\Ta, para Deus, o Ceo é ser tudo em todas as cousas, é o per-
feito cumprimento d' este voto expresso pelo filho do Eterno, qual"ldo ins-
truia o genero humano: Pai, venha a nós o vosso reino ; seja feita a
vossa vontade assim na terra como no Ceo. (t)
Para as Creaturas, o Ceo é o cumprimento d'este desejo expresso
em seu nome pelo grande Apostolo: Todas as creaturas gemem, soffrem
as ddres do parto, aguardando o livramento da corrupção e a participa·
ção da gloria dos predestinados. (2)
Para o homem, o Ceo é o cumprimento de todos os seus de-
sejos legítimos do mrpo e da alma, analogos ao seu estado futuro ;
é a satisfação d'este desejo expresso em nome de todo o genero
humano pelo Propheta Rei: Eu serei saciado quando chegar a v~r a
vossa gloria. (3) Oh f Que é o Ceo para o hoínem '! é como a luz pa-
ra o cégo, que a entrevê, e morre pela vêr em todo o seu esplendor • ;
é como a saude para o doente, que padece crueis dôres ; é como a paz
para o desafortunado, que exposto toda a v,ida a continuas embos-
cadas, vela noite e dia com mão armada e sobresaltado sempre ; é
como um rei desthronado, quando reasume o seu throno ; é como o
viajante devorado pela sêde, quando chega a uma fonte fresca e lim-
pida; é como um desterrado, quando regressa á patria, ao seio da
bem amada familia. E assim como é para o homem, devorado de in-
saciaveis e continuos desejos, vexado de dôres e trabalhos, condem-
nado ás lagrimas, ás enfermidades e á morte, exposto a supplicios eter-
nos; assim como é para elle o gozo pleno, seguro e perfeito de todos
os bens, o repouso e a immortalidade da bemaventurança e da gloria ;
tudo isto e muito mais ainda é o Ceo para o genero humano. Possa

(1) Math. VI, 10.


(2) Rom. VIII, 19. Veja-se no t. VIII, a explicação d'estas palavras.
(3) Psal, 15.

,
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INTRODUCÇÃO. LXXXIII

tam imperfeita pintura, como a que fazemos, d'esta rehabilitacão com-


pleta da nossa natureza e de todas as cousas, excitar na alma dos
jovens Christãos o desejo efficaz de participarem d'ella um dia, e fa-
zer repetir a todos com o grande Apostolo: Todas as penas, os sacri-
ficios que a Religião nos impõe na terra, não merecem comparar-se
com a gloria e felicidade que nos espera nos Ceos ! (t)

V.
RAZÕES E VANTAGENS D'ESTE ENSINO. - A exposição da Religião em
a letra, e espirito, a historia, o dogma, a moral, o culto, a natureza, e
finalmente em seus meios e fins, no tempo e na Eternidade, desde o
principio do mundo até os nossos dias ; tal é, como já dissemos, o ob-
jecto d'este Catecismo.
Podemos fallar de sua superioridade sem amor proprio ou vai-
dade da nossa parte. A sua idéa fundamental, já o dissemos e agora
o repetimos, é de S. Agostinho. A forma em si mesma pertence, na
maior parte, aos Padres da Igreja, e aos authores celebres que have-
mos consultado. Longe de nós attribuir-nos o que não é nosso ; glo-
riamo-nos antes, em tam sagrado objecto, de nada ter dito de nós
mesmos.
Portanto, t. º se o considerarmos em si, o plano do Catecismo é o
mais completo de todos que tem apparecido até hoje.
A maior parte dos Catecismos, ainda os mais copiosos, não di-
zem nem palavra á cerca do antigo Testamento e historia da Igreja.
Alguns sim, faliam dos tempos anteriores ao Messias, mas deixam
em silencio o que respeita a obra dos seis dias ; e da mesma sorte,
pelo que respeita a Religião, depois da Ascenção do Redemptor. Mui-
tos omittem as festas da Igreja ; e nenhum emfim coordena, em re-
lação ao Christianismo, os successos todos do mundo, quer anterio-
res, quer posteriores a Jesu-Christo. Nenhum dá razão das cousas
pelo pensamento christão. Sobre tudo, não ha um só, ao que nos

(1) J?om. VIII, 18.

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LXXXIV l~TRODUCÇÃO.

parece, que se empenhe em mostrar a Religião em su3s relações


coin as necessidades do homem : tarefa essencial, que concluimos a pon·
to de desafiar a imaginação mais activa a que descubra no homem in·
teltectual, -moral, e physico, uma só miseria verdadeira, que a Religião
não·.suavise ; um só voto razoavel; a que não attenda, um unioo senti-
mento legitimo, que não satisfaça. D'aqui resulta uma notoria verdade,
que só o Catholicismo encerra todos os meios necessarios para re-
generar o homem cabido. Fóra d'elle, tudo é incompleto, vago, in-
coherente, inefficaz, illusorio. E te en ino da Reljgião, segundo o pa-
recer de S. Ago tinho, é de todos o melhor e até ousamos dizer, o
unico capaz de dar a conhecer o Christiani mo no seu magnifico
todo.
2. 0 Esta expo ição completa da Reliaião dispensa-nos do saccorro
laborioso e muitas vezes inutil do raciocinio. (i)
Como a melhor maneira de provar o movimento é caminhar,
as im tambem o melhor Syllogismo em favor do Christian ismo é mos·
tral-o tal como elle é. Qual foi o homem de iso que jámai se lem-
brou de provar a solidez das Pyramides? E:tas ma sas enormes
sustentam-se immoveis ha milhares de seculos ; eis a prova da sua
solidez. A im tambem não izemo , que vamos provar que o Chris-
tianismo é divino, social, bemfazente: que seu dogma é sublime,
sua moral amavel e pura, seu culto magnifico e tocante ; mas sim
dizemos : Olhai f Quando do alto da montanha solitaria, em noute
bella, tranquilla e serena, virdes a rainha dos a tros de pontar mages-
tosa no hori onte, para tomar po se do seu imperio rico e scintillante
de myriades d estrellas, acaso buscaes syllogismos para crêr na magni-
ficencia dos Ceos? Não exclamaes e pontaneamente e transportados d'ad-

(1) Nao crêmos nos farão a injustiça de suppôr que condemnamos o


raciocinio e o methodo de discussão no ensino da Religião; mas parece-nos que
o methodo da exposição, que S. Agostinho aconselha, é preferivel e consegue mui-
to melhor o fim da nossa obra. - Do mesmo parecer é Tertulliano, S. Cypriano e
S. Francisco de Salles · como se póde vêr no seu Espir. secc. XVI, 3. 11 parte,
e. 1, p. 169.

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INTRODUCÇÃO. LXXXV

miraçiio: os Ceos narram a gloria de Deus, e o firmamento annuncia a


obra de suas mãos ? (f)
Da me ma sorte, quando o e pirita abraça o immenso horisonte
dos seculos, e se offerece á vista da ua inlelligencia o edificio ma-
gnifico do Christianismo, despontando na orig m do mondo, desenvol-
vendo pouco a pouco nas proporções giaantesca , atravessando immu-
davel sessenta eculos de tempestades, sobreviven o á ruina de todas as
instituições humanas, triumphando com igual facilidade das paixões dos
povos, das perseguições dos reis e da raiva do inferno, como não ex-
clamar : O dêdo de Deus é o que obra aqui. (2)
Quando se veem as diversas partes d'este grande todo tam per-
feitamente ligadas, que todas e _cada uma em particular são necessarjaS
á harmonia geral : quando se vê esta Religião sempre nova, a pezar de
sua muita idade; sempre na vanguarda da razãJ e de seu progresso, a
pezar de sua miraculo a immutabilidade; quando e repara n'este facto
immen . . o, antigo sempre e sempre moderno, que dá razão de tudo e
sem o qual não se dá razãJ de nada ; em uma palavra, quando se vê
o Christianismo no seu Todo mage toso, como não exclamar: Obra pri-
ma do Omnipoternte ! ~laravillia superior á razão humana! (3) De-
pois d'isto, para que é precisa a arte mesquinha do Syllogismo para
provar a divindade do Christianismo ? Seria para la timar um homem
que, ao vêr o Ceo, não confessasse a existencia de Deu ; pois muito
mais digno de lastima será aquelle que, ao vêr o Christianismo na ma..
gnificencia . de sua historia e de seus beneficias, não cahir de joelhos e
o não auorar, cheio de assombro, admiração e amor.
Accrescentemos a i to o que diz um Padre <la greja, que a Re~
ligião é uma grande Princeza, filba do Ceo, toda rutilante d'immor-
taes resplendor s; e que n7'o lbe fica bem descer a campo para se me-
dir do perto com o erro, producto ig obil do inferno e da fraqueza
humana ; basta-lhe mostrar-se com o seu brilho e magestade, porque

(1) Psal. XVIII. 1.


(2) Exod. VIII, 19.
(3) Psal. CXVII.

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LXXXVI INTRODUCÇÃO.

a victoria é a sua presença. Accrescentemos ainda o que diz outro :


«Reparai bem, que discutir sobre a verdade d'uma Religião, que ve-
mos confirmada pelo ensanguentado depoimento de tam grande nume-
ro de testemunhas, é uma cousa muito perigosa. Sim, é muito peri-
goso, depois dos oraculos dos Prophetas, o testemunho dos Apostolos,
os tormentos dos martyres, vir discutir a fé dos seculos, como se hou-
vera nascido hontem.•(t)
Quanto ao mais, a exposição completa da Religião contém em
. si todos os mais concludentes raciocinios e argumentações a pró do
Christianismo; pois que estabelece, d'um modo peremptorio, a ver-
dilde das tres proposições que resumem toda a demonstração religiosa:
f. ª ha uma Religião verdadeira, aliás ba seis mil annos que todos os
homens são tôlos; 2. ª esta Religião ou está no Christianismo, ou em
nenhuma outra parte; 3. ª o Christianismo ou está na Igreja Catholica
ou não está em parte nenhuma.
Se este largo methodo nos dispensa de todas as provas particu-
lares, tambem por elle se tornam vãs e ridículas todas as mais objec-
ções; e ta inextimavel vantagem pertence exclusivamente á exposição
compléta do Cbristianismo. Ponde sobre uma mesa, à vista d'um igno-
rante, todas as rodas que compõem a fabrica d'um relogio; elle vos
poderá fazer sobre cada peça questões e difficuldades interminaveis. Pa-
recer-lhe-ha vêr a cada instante faltas de precisão e harmonia, talvez
que chegue a negar a possibilidade do movimento. Em todo o caso, es-
tando as peças divididas, jámais poderá comprehender as relações que
ba entre ellas. Acaso procurareis convencêl-o pelo raciocínio? Eis-vos
reduzido a cada passo a perder-vos em explicações e demonstrações, cu-
jo resultado será talvez unicamente fatigar-vos sem proveito, embaraçar
cad;i vez mais as idéas do vosso adversario, e, por este modo, éonfir·
mal-o em suas falsas opiniões.

(1) Noverimus quia non sine magno discrimine de Religionis veritate


disputamus, quam tantorum sanguine confümatam videmus. Magni periculi
res, si post prophetarum oracula, post apostolorum te timonia, post martyram
vulnera, veterem fidem quasi novellam discutere praesumas. Serm. dos SS.
Martyres.

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INTRODUCÇÃO. LXXXVIl

' Agora venha o relojoeiro, e, sem dar sàtisfações, tome cada


uma d'estas differentes peças, ageite-as cada uma em seu logar, e
mostre por fim a fabrica a trabalhar perfeitamente, aonde irão ter as
objecções? Que será feito das duvidas?
Pois assim tambem, quando o Christianism.o vos fôr mostradô tal
como eUe é, em suas magnificas harmonias, aonde irão parar os qu~s ·e
os porquas da incredulidade ?
3. 0 Este ensino é o melhor remedia para as grandes doenças da
nossa epocha: a indifferença, a ignorancia, o racionalismo ªf!li-ckris-
tão. .
A indifferença é filha da duvida, e a duvida é filha do falso raei~
cinio. Este racionalismo destructivo teve por pai o monge de Wittem•
berg ; os seus mais ardentes missionarios foram Voltaire e a sua escho.:.
la ; a victima, foi o nosso seculo ; os effeitos são todos os males que sof-
fremos, sem contar aquelles que nos aguardam.
Atacado por todos os lados, ficando em todos senhor do campo,
o Christianismo recebe, desde alguns annos, a homenagem intellectual
d'assaz grande numero de vencidos. Só o coração permanece indi:ffe-
rente : só elle recusa submetter-se, porque teme o seu nobre conquis-
tador; e, teme-o porque o não conhece. Esta a razão porque o mostrá-
mos tal como elle é, o amigo dos corações, o rei do amor. E' da sua
parte que dizemos aos corações rebeldes : muitos peccados vos serão
perdoados se amardes muito; e aos corações doentes, desalentados por
crueis enganos - ah, quã numerosos são estes! a quem o Senhor diz:
passai-vos para mim, vós todos que gemeis em a dôr e o trabalho, e
eu vos alliviarei; ''ivei na minha lei, e achareis a alegria e o descanso
para vossas almas.
Quanto á ignorancia, não parece crivei, á primeira vista, que o
nosso seculo, queremos fallar da parte illustrada, que manifesta o desejo
de crêr; esperar e amar, não parece crivel, dizemos, que o nosso seculo
seja muito mais estranho ao conhecimento dos dogmas christãos que
o seculo precedente; todavia, por pouco que o examinemos de perfü,
facilmente .conheceremos que isto é infelizmente o que succede. O
seculo decimo oitavo, tornado impio e libertino desde que se fez

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LXXXVIII INTRODUCÇÃO

adultero, tinha comtudo recebido, desde o berço, e durante sua


infancia, uma educação religiQsa. Ora_. o contrario succede no seculo
decimo nono; ninguem lhe fallou em religião nos dias da sua infan-
cia. A Repub1ica, que o embalou, não lhe repetia ao ouvido senãG
os. nomes de ,__ Grecia e Roma. Nos lyceus e nos acampamentos do im-
perj~ só lhe ensinaram a adorar a gloria.
Depois d'isto, é verdade que chamaram a Religião para os col-
gios ·da ·Restauração ; mas exilada no fundo do seu sanctuario, so-
-bre · um altar ,abandonado, que mais podia ella fazer senão orar ;
e, como Rachel, derramar rios de lagrimas sobre a sorte de seus
iilh-0s, que tantas vezes o vicio e a impiedade disputavam á sua ternu-
ra materna1, e devoravam diante de seU3 olhos? O .nosso seculo pciis
ignora a Religião, com quanto comprehenda. a sua necessidade; e se
sinta arrastar p;ira ella. Esta tendencia nasce principalmente .do ins-
tincto de conservação que, nos corações dos povos, ·como no dos in-
divíduos, á proporção que o pt)rigo ; augmenta, assim elle se esperta.
Mas esta nobre tendencia do seculo poderá ainda fazêl-o desgarrar,
senão ~cuidarmos em lhe mostrar aos olhos, em todo o seu esplendor e
.pureza, o iacbo da verdadeira doutrina. Ora, para cura'r estas duas
_gr.andes enfermidades, a indifferença e ignorancia, ha por ventura outro
meio melhor que uma clara e completa exposição da fé?
Outra calamidade que devemos, como a indifferença, aos racio-
,cinios impertinentes do passado seculo, e a outras causas que seria
enfadonho enumerar, é a tendencia anti-christã que domina outra par.te
.da sociedade. D'aqui vem, com a audaciosa e tantas vezes repetida
n~gação da divindade do Filho de Deus, a opinião tam desgraçaG.amen-
te vlilgarisada, que a Religião é no mundo uma cousa accessoria, e
..Jesu. .Christo uma -especie de monarcha desthronado, que já não mere-
ce .que o consultem ou lhe obedeçam. O nosso seculo, que só não
duvida de nenhuma novena, engole estas grosseiras mentiras como se
foram oraculos, fazendo por ellas norma de suas ac~ões. D'aqui vem
os multiplicados castigos e sanguinolentas revoluções de que a terra é
victima. Ora_, do nosso ensino : Resulta t. º que a divindade de Nos-
so Senhor é o primeiro axioma de todo o espirito razoavel, e a pedra

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INTBODUCÇÃO. LXXXIX

angular de toda a philosophia. 2. 0 Que longe do ser uma cousa· ac.-


cessoria no mundo, o cbristianismo é pelo contrario a alma de tudo,
o eixo sobre que rola todo o governo do Universo. Como o sol attrahe
a si todos os astros e os leva na sua immensa orbita ; assim a Religião,
verdadeiro sol da creação, arrasta, com o seu movimento, os imperios,
os reis, os povos, e esta infinita variedade de cousas remotas ou proxi--
mas que contribuem á formação ou dissolução das monarchias, como
são as artes, as sciencias, a litteratura, a paz, a guerra, as derrotas e as
'ictorias; em urna palavra, os homens e as suas paixões, e suas virtu-
des, e sua vida toda : de tal sorte que o Cbristianismo é a ultima de to•
das as cousas.
3.º Que longe de ser um monarcha desthronado, que já não me-
rece attenções, nem respeitos, nem obediencia, Jesu-Cbristo é o Rei
immortal dos seculos; é elle que levanta os imperios e os derriba; que
os glorifica e conserva, se são doceis ás suas leis ; ou os quebr.a como
vasos de barro, se lhe . ousam dizer corno os Judeos : Não queremos que
reines sobre nós. (1)
Com effeito, o leitor d'este Catecismo, verá ·que o mundo divide-se
em duas grandes epochas. Primeiramente, os tempos anteriores ao
Messias, e o longo período de quarenta seculos, inclusive a grande se-
mana da creação, se resumem em quatro palavras : tudo para Je&u'!'
Chnsto, isto é, para o estabelecimento do seu imperio, Jesu-Ckristo
para o homem., o homem para Deus. Passam diante de seus olhos to.;.
dos os successos particulares, ou estranhos ao povo Judaico, correndo
para Jesu-Christo como os grandes rios correm para o mar. Depois, os
tempos posteriores ao Messias ; e quatro palavras resumem igualmente
os desoito seculos decorridos desde o nascimento do meni!lo de .Bethtem:
tudo para Jesu-Christo, isto é, para a -conservação, e propagação do
seu imperio; Jesu-Christo para o homem, o homem para Deus ; (2) de
sorte que toda, a creação, descendó ·de Deus, a menos que não esteja
depravada, para -elle volve incessantemente por intermedio de Jesu-

(1) Luc. XIX, 14.


(2) Qui propter nos homilies et ·propter nó8ttiml ,salutem, etc.

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-- ---- ........ -
xc INTRODUCÇÃO.

Cbristo. Talvez vos pareça qae esta parte da creação que se de·
prava, quero dizer, que se revolta contra Jesu-Christo, subtrahe-se ao
seu imperio, e deixa de contribuir para a sua gloria ? estaes enganados.
Creador de todas as cousas, Deos diz a cada rei, a cada povo, quando
o tira do nada, como ao menino recemnascido : Tu és creado e pos-
to no mundo para conhecer, amar e servir a Jesu-Christo meu Filho,
Rei dos reis, Senhor dos senhores, a quem eu dei todas as nações em
herança : Eis-abi a tua lei. Quanto a ti, se a observares, terás felicidade
e glorià; se a violares, vergonha e miseria: mas, como quer que faças,
quer observes ou não esta lei immudavel, nem por isso contribuirás
menos para a gloria de meu Filho, nem deixarás por isso de estar su-
jeito ao seu poder e debaixo da sua mão.
Agora pois, com a historia nas mãos, mostraremos como isto se
cumpre com rigorosa precisão. Desde o povo Judaico até ao · imperio
Francez, vêmos, em um ponto dado, as nações felizes em tanto que re-
conhecem a Je.su-Christo por seu Rei, e desgraçadas desde o momento
que se revoltam contra elle.
Terminamos este quadro magnifico pela historia contemporanea
d'um homem poderoso, que fez ha pouco tremer o mundo com o ter-
ror do seu nome. Chamado por Deus para inspirar um sôpro de vida
no agonizante povo francez, reune este homem em sua mão de ferro os
elementos dispersos da antiga monarchia, reedifica o Sanctuario, trium-
pha, engrandece-se tanto quanto se mostra servidor do grande Amo
que o chamou. Mas apenas tropeça na Pedra; emp_alidece a sua estrella,
foge-lhe o poder, murcham-se-lhe os louros por mil desa~tres. Espoliado
de tudo, tornando-se menos que um homem, eil-o vai expiar, no ·meio
do oceano, o crime da sua rebellião contra o Cordeiro dominador ; e
do alto do rochedo solitario aonde expira, chama aos reis e aos povos
dizendo-lhes : Sirva-vos de lição o meu exemplo, que ninguem é -forte
- senão Deus; sêde, instrumentos dqceis do Senhor e do seu Christo, ou
sereis como eu quebrados em pedaços.
E' assim que se mostra em todos os seculos o poder . real de
Jesu-Christo, é assim que os imperios e seus monarchas, ou queiram
ou não queiram, são tributarios da sua corôa. Se são doceis ás suas

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INTRODUCÇÃO. XCI

leis, se o servem com fidelidade, conserva-os e glorifica-os ; e sua


felicidade fortalece o seu imperio, patenteando aos outros a recompensa
de o amar ; se pelo contrario ousam revoltar-se contra elle, derriba-os,
e o ruido das ruinas, o espectaculo dos males que os opprimem .forta-
lece igualmente o seu imperio, ensinando aos outros a necessidade de
tremer diante d'elle. Tal é a philosophia que transluz radiosa do ensino
completo da Religião. Admiravel philosophia t Por isso que é verdadeira;
por isso que é toda christã. Philosophia propriissima para curar o nos-
so seculo. Porque hoje mais que nunca ella póde confirmar as suas
lições com exemplos authenticos. Philosophia verdadeiramente divina t
que enche a alma de Religião, mostrando-nos o Soberano Medeador
dos mundos, sentado em seu throno immudavel, tendo nas mãos as re-
deas de todos os imperios, e fazendo servir os reis e os povos, os pro-
jectos e as paixões dos homens, ao cumprimento d' este ultimo desígnio:
a Redempção do genero humano por Jesu-Christo.
Não vos parece que n'este simples conceito está alguma cousa ca-
paz de derribar pela base toda as theorllis, tam pouco · philosophicas,
que innundam a no,ssa epocha, ·e de que somos victimas? Tambem
nos parece que n'elle se contém com que engrandecer infinitamente
o horisonte da intelligencia, e elevar o genio ás mais altas regiões
da verdade. Em fim o nosso seculo vê-se torturado por outro mal
que nasce como o precedente de sua deploravel ignorancia ; é a ma-
nia de reformar a religião, accommodal-a ás opiniões fugitivas do mo-
mento, tomar uma parte e rejeitar outra; em uma palavra, fazer .
um Christianismo para toda a obra. Qual é o remedio u'este mal t Tor-
namos a dizer, que o melhor é sem contradicção a exposição completa
da fé Catholica.
D'este ensino veneravel, como affirma S. Agostinho, mostra-se que
o Christianismo não é obra do homem, mas de Deus : que não sahiu
imperf0ito das mãos de seu author, mas sim completo; que se precisa
desenvolvimentos, não é ao homem, mas tam sómente a Deus que com-
pete dar-lh'os; emfim, que o Christianismo, immudavel como Deus, é,
na sua manifestação, tam antigo como o tempo e tam duradouro eomo
a Eternidade ; porque Jesu-Christo, que é seu fundador e sua vida,

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____...,..____ - - --
xcu INTRODUCÇÃO.

era hontem, ·e é hoje, e tambem ha de ser por todos os seculos. D'aqui


fluem duas consequencias igualmente necessarias : que não houve nem
haverá jámais senão uma só. Religião verdadeira, assim como não ha
mais que um só Medeador entre Deus e os homens ; que a nenhum
homem nem a nenhum seculo pertence modificar a Religião, ou subor. .
dinal-a ao Estado, fazendo-a descer do fastigio supremo que deve occu-
par por direito e privilegio nato; mas antes· que só ella tem o direito
absoluto e eterno de repetir aquelle famoso dito : Eu sou tudo ou não
sou nada, Aut nihil, aut Caesar.
Assim cortamos de um go1pe as multiplicadas raizes de mil seitas,
que se fundam todas na possibilidade d'um culto novo, isto é, na pre-
tendida insufficiencia ou alteração do verdadeiro culto ; ou por outras
palavras, na existencia possivel d'uma Religião que não seja o Christia-
nismo actual; supposição tam perigosa como absurda, renovada em nos-
sos dias por a1gumas pessoas que eram dignas de sustentar melhor cau-
sa. E' por isso que a Religião, apresentada tal como deve ser, basta a
dissipar todos os erros q:ue as paixões, ou a fraqueza do homem, lhe
podem oppôr pelos seculos adi ante ; assim como basta ao so1 mostrar-se
no horisonte claro e rutilante, para dissipar não só as sombras da nou-
te, mas tamb.em as nuvens que os desenfreados ventos agglomeraraw em
sua passagem .
• 4. 0 Apresentando cada facto, cada idéa, na sua relação com o
plano geral da Religião, tem o nosso ensino a vantagem de classificar
todos os conhecimentos particulares, e dar a cada um, com a classe
que lhe compete, o gráo d'importanâa que merece. Hoje, grande nu-
mero d'espirítos, atormentados da duvida, occupam-se da Religião; mas
fazem-no as mais das vezes sem guia, sem bussola, sem plano formado
nem assazmente digerido. D'aqui Yem, que seus muitos e até conscien-
ciosos esforços s.ão estereis; porque são disparatados; d'aqui os grandes
passos, se assinl lhes querem chamar, -mas pouco verdadeiros; d'aqui,
as .pedra~ e materias ,dispersas pelo chão, mas nada de edificios; d'aqui
uma·religiosidade vaga, symbolos ·incompletos, sem força nem efficacia,
sem roDfolUl·hlade d'acç.ão.
Digamel-o de passagem : este reparo, que fazemos sobre o .estudo

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INTRODUCÇÃO. XCIII

da Religião, app1ica-se com a mesma verdade ao estudo dos conheci-


mentos humanos. Andam hoje por toda a parte as especialidades, a
sciencia é que ninguem a vê ; cl'isto se queixam os homens mais
abalizados em litteratura e saber. De que modo se poderá remediar
isto? A Religião, cimento necessario dos espiritos e das idéas, por
isso que é a origem e o centro de toda a verdade, já não predomina
nas investigações scientificas para as esclarecer, dirigir, coordenar e en-
grandecer, ligando-as e uniformizando-as em uma unidade suprema.
Tendes sim os raios de luz, mas o foco luminoso escapa-se-vos.
Sendo as premissas religiosas o principio gerador das sciencias, e
a solução necessarla dos seus ultimas problemas, a sciencia sem a
Religião é por consequencia um livro truncado, ao qual tiraram as pri-
meiras e ultimas paginas.
Tornemos ao estudo da Religião e ponhamos alguns exemplos.
Se tomardes, separadamente, a historia de Judith ou Esther, tereis sem
duvida um episodio dramatico, mas nada mais. Se ao contrario os es-
tudardes na economia geral da Religião, immediatamente adquirem um
alto gráo d'importancia. Vereis que se conformam admiravelmente com
o pl3no sublime da Providencia, que pretende conservar no povo Judai-
co a grande promessa do Libertador. O mesmo se ha de dizer da histo-
ria de Cyro, d' Alexandre, d'Augusto, &c. Se passardes do dominio dos
factos ao das idéas, vereis porque razão, em tal seculo, nasceu e se
divulgou tal ou tal idéa, já por um grande personagem, já por um cor·
po religioso. O mesmo succede com as grandes virtudes ; conhecida a
relação de todas as cousas com o plano geral da Providencia, tomam el..
las a importancia que nos devem merecer ; vêl-as-heis na causa, no re. . ·
sultado, na ligação com a situação actual da Igreja e do mundo, com os
factos, as idéas e os costumes ela epocha. Todos os vossos estudos parti..
culares adquirem um grande interesse ; nada se perde, tudo se coor-
dena, nasce o dia em vossa intelligencia; e uma fé inabalavel, uma justa
apreciação dos homens e das idéas, uma alta philosophia da historia,
e talvez a repentina lucidez do genio, será o ditoso fructo . de vosso
estudo.
5.º Este em;ino tem a preciosa vantagem de pôr a Religião, em

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XCIV INTRODUCÇÃO.

tudo que ella tem de maravilhoso, convincente e amavel, ao alcance


de todas as intelligencias. A Religião funda-se em factos ; não disse
bem, a Religião toda não é mais que uma longa successão de factos,
já simplices ou sublimes, já graciosos ou terriveis, mas sempre bri-
Jhantes como o sol : logo o seu estudo deve ser todo historico : tal
é o nosso.
Se algumas vezes· a necessaria explicação d'um dogma ou pre-
ceito nos occupa a maior parte da lição, temos sempre cuidado de
lhe juntar, como esclarecimento ou confirmação prática, um ou muitos
trechos h istoricos, analogos ao objecto de que se trata. D'este ensino
todo historico, não só tiramos a vantagem ele nos fazermos entender
dos jovens Christãos, mas tambem de lhes formar o coração para a
virtude, fazendo-os travar conhecimento com os seus modêlos e pais na
fé: os Patriarchas, os Prophetas, os Martyres e os principaes Santos de
todos os seculos. Ha por ventura outro meio melhor de lhes nutrir a
imaginação, com imagens mais graciosas e puras;' a memoria, com re-
cordações mais salutares ; e traçar-lhes mais segura estrada ela vida'!
facilitar-lhes emfim a intelligencia dos Livros piedosos e instrucções pas-
toraes, aonde tantas vezes se falla das grandes personagens do Antigo
e Novo testamento a pessoas, que os conhecem menos que os heroes da
antiguidàde profana, ou as divindades da Fab'ula?
D'aqui tambem tiramos outra vantagem, remedio novo para a in-
di.fferença do nosso seculo, que é, mostrar o logar importante que occu-
pam no plano da Redempção (fallamos da mesma felicidade temporal do
universo), o Sacerdocio, tam desdenhado hoje; os Santos, que ousam
alcunhar de loucos; e sobre tudo, as Ordens religiosas, cuja utilidade,
tam incontestavel, é todavia tam frequente e ridiculamente contesta-
da, ha meio seculo, pelos homens do dinheiro ; que não reconhecem
outras leis mais que as da mechanica, nem outro genero de vida que
não seja o do balcão ; pelos demagogos, inimigos jurados de tudo que
se ·parece com ordem; emfim pelos ambiciosos, cuja cubiça pretende
vilmente saciar-se CQm os conventos e bens dos Frades.
6. º Emfim este ensino offerece o mais efficaz de todos os remedios
eontra o egoismo quB nos devora, e os males que d'elle nascem; porque

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lNTBOOUCÇÃO. X.CV

não só dá a conhecer o Christianismo no seu magnifico todo, senão .que


tambem faz com que o amem.
O nosso seculo já não sabe amar, porque ou não ama, ou o não
faz como deve. A violação d'esta lei prímodial é a causa de todos
os transtornos que experimentamos ; a desordem caminha sempre a
passo igual com a violação da lei. O mal:, portanto, seria curado ra-
dicalmente, se este desgraçado seculo quizesse abrir .o coração ao
amor ; porque o amor é Deus, Deus charitas est. ('l) Para al.tenuar
1

este grande mal, o nosso ensino faz apreciar, e para assim dizer,
palpar com as mãos, os beneficios de Deus ou da Religião a res-
peito de cada um de nós, e de cada parte do nosso ser, em ~odas
as situações e idades ; de sorte que fica demonstrado, que atacar o
Christianismo, desprezar ou abandonar esta Religião, permanecer iadif-
ferente ás suas prescripções salutares, não é sómente uma ingratidão,
mas um suicídio.
E' assim que o methodo de S. Agostinho, fazendo-nos conhecer o
verdadeiro espirito da Religião, qne é o amor, desenvolve na alma do
menino não tanto o temor, como o amor de Deus. Já não somos
os escravos do Sinai, mas os filhos do Calvario. Como bem amados
do Verbo incarnado e feito nosso irmão, -yêmos em Deus - não tanto
um Juiz irritado, um Senhor severo, mas um Pai terno e amigo. Cui-
damos pois em apresentar a Religião, como ella é na verdade, um im-
menso beneficio. Nada mais importante do que fazer considerar por
esta face os mandamentos de Deus e da Igreja. Por ventura . não é por
estarem habituados, desde a infancia, a considerai-os como um jugo .pe-
noso,. que tam grande numero de homens os atropellam? Por isso te-
mos tambem muito cuidado em deduzir de cada explicação, esta grande
verdade : Deus é amante dos homens.
Desde Adam até os nossos dias tomamos todos os tempos por tes-
temunhas; perguntando a cada seculo, ou antes aos homens que n'elle
viveram ; Não fostes vós amados de Deus ? E cada seculo responde-nos

(1) João IV, 8.

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XCVI INTRODUCÇÃO.

coin nos offerecer provas numerosas, e especiaes, do amor de Deus


para comnosco. Se por tanto considerardes ,. de um golpe de vista a ex-
posição da Religião, durante os quatro anhos do nosso curso, de todas
as historias particulares deduzireis a mais tocante, completa e variada
historia do amor de Deus para com o homem._ Sobre qualquer ponto
que fiteis os olhos achareis a prova evidente d'esta verdade, capaz de
amollecer um coração de bronze.
0
·
DE US É. UM PAI QUE CREOU o HOMEM PONTIFICE E J\Et DO UNIVERSO;
QUE Ó Cl'TMULOU DE GLORIA E DE FELICIDADE ; E QUE, DEPOIS DE . 'TER SIDO
INDIGNAMENTE ULTRAJADO POR SUA CREATURA · PREiHLECTA, ÁPESAR .DE- TO-
DA A SUA INGRATIDÃO, NÃO CESSOU UM SÓ INSTANTE DE TRABALHAR; DlsDf!
O Pl\INCIPIÓ, DO MUNDO, NA REPARAÇÃO DO MAL, QUE ESTE CRIMINOSo FI-
LHO FEZ A SI MESMO, SEPARANDO-SE DE SEU PAI; NEM JÁMAIS DEI'xOtJ
DE O CONSOLAR, E ANIMAR; REVOLVENDO O CEO E A TERRA PARA LllE
FORNECER OS MEIOS DE RECUPERAR COM VANTAGEM A FELICIDÁDÉ QUE PER•
DERA.
Magnifica historia que, pelo que toca ao cbração, resume Deus,
o homem, o mundo, o tempo e a eternidade em uma só palavra : amor ;
Pelo que toca ao espirito, ella resume todas estas oousas em uma só
palavra : Christo.
Cbristo e amor r Eis-aqui as duas palavras que encerram· todo
o no8so ensino~ tanto no qoe respeita o espirito como a letra. E'
por isso que pomos estas duas palavras divinas como epigrapbe d'esta
obra. Praza a Deus sejam ellas a eterna divisa dos espiritos e dos co-
rações.
Diremos agora uma só palavra quanto á fórma que démos a este
corso de · Religião. Cada parte contém cincoenta e duas li~es ~ perte&
cendo uma a cada Domingo do anno. Assim nos pareceu mais ütil faier
uma narràção ~ontinuada do que interrompêl-a com perguntas· ·e respos-
tas. Por ·este 'modo póde servir o Catecismo para livro de leitura de- to-
das as condições e idades.
'.femos por certo que d'esta obra resultarã á mocidade a grande
vantagem de se instruir facil e agradavelmente ; e os mestres terão n'ella
um grande auxilio para instruir seus discípulos, com solidez e, quasi

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/
,'

INTRODUCÇÃO. XCVll

sem esforço, em toda a sciencia do Christianismo. Para conseguir este


resultado ha muito que trabalhamos, não só constante e infatigavelmen ·
te, mas até luctando com maiores difficuldades, do que talvez pareça.
Oxalá tenhamos conseguido, ao menos em grande parte, o fim a que se
dirigiram o nosso trabalho e fadigas.

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PRIMEI~RA PARTE.

fiQ ª lLJl~q,lÃ(J)~

ENSINO VOCAL DA RELIGIÃO·

o antiso Pastor.-Necessidade do Catecismo de Perlieve-


rauça.- Si8"nif'icação da palavra Catecismo.- Recorda-
t;ões que encerra.-Os· Patrinrchas e os primeiros Chri8·
tãos.- Uotivos do easino vocal da Religião.

Um viajante, que vinha de longes terras, achou-se ao cahir da noute


na entrada d'uma vasta floresta ; nem podia tornar a traz nem parar
alli ; senão que lhe era forçoso atravessai-a pelo meio das trevas.
Quando ia embrenhar-se n'esta medonha escuridade, deparou com um
veiho pastor, a quem pediu o encaminhasse. Ah ! lhe diz este, não
me. é facil ensinar-vos o caminho ; a floresta é cortada por mil trilhos
que se cruzam, que fazem rodeios parecidos uns com outros, e que,
á excepção d'um unico, todos vão dar ao .abysmo. A que abysmo ?
Pergunta o viajante. Ao abysmo que cerca toda a floresta. Mas ain- ·
da isso não é o peior, continúa o pastor; esta floresta é muito pe-
rigosa, porque é infestada de .ladrões e de feras ; anda ahi, ~ntre

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CATECISMO

outras, uma enorme serpente, que f~z horriveis estragos : poucos são
os dias que nãó achamos esqueletos, e restos ensanguentados, de de-
safortu~ados viajantes de qaem faz preza. O cumulo da desgraça , é.
que necessariamente compre ·atravessar esta floresta, para chegar ao
lugar a que vos dirigis. Movido de compaixão, vim eu collocar-me
á entrada d'esta perigosa passagem, a fim d'aYisar e proteger aos
viajantes : de distancia em distancia estão meus filhos, que, partí-
cipando dos mesmos sentimentos, cumprem a mesma missão; eu vos
offereço meus serviços e os seus; se quereis, eu vos irei acompa-
nhar.
O ar de candura do velho, o tom de verdade que respira em
suas palavras, convencem o viajante a aceitar com confiança seus bons
serviços. Toma o pastor uma luz, resguardada por uma forte lan-
terna; com a outra mão trava do braço ao viajante, e eil-os a ca-
minho. Tinham andado algum tempo quando o viajante sente que as
, . /orcas lhe faltam. Firmai-vos em mim, lhe disse o seu fiel conductor.
O viajante reclinou-se sobre elle e continuaram. Começou a luz a
enfraquecer-se e apenas bruxoleava já. Falta o azeite, disse elle ao
pastor, a luz apaga-se, que será de nós? Socegai, lhe tornou o
velho, está perto um de meus filhos, que deitará mais· azeite em nossa
lampada : e não o enganou. A alguma distancia descobrem um fa-
cho accêso que illuminava uma pequena cabana, feita de pedra e cal á
beira do ~aminbo. A' voz do pastor, abre-se a porta, e offerecem ao
viajante fatigado um lugar onde repoúsa ; dão-lhe uma refeição sim-
ples, mas substancial, que lbe repara as forças; e depois de des-
eançar, perto de uma hora, põe-se outra vez a caminho o viajante con-
duzido pelo filho do pastor.
De longe a longe, encontral}l novas cabanas, e· em cada uma ·re-
cebe o ,hospede novos obsequios e novos guias, e assim durante to-
da a noote. O primeiro crepusculo d'a1va clareava já o horisonte,
quando chegaram sem desastre ã extremidade da perigosa floresta.
Foi então que elle conheceu toda a importancia do serviço que lhe
haviam feito o pastor e seus filhos. Apparece-lhe diante dos olhos
um medonho abysmo ; no fundo do qual se ouvia o ruido surdo e

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DE PERSEVERANÇA. 3
longínquo de fervida torrente: Eis ahi, lhe diz o seu guia, o abysmo
<le que meu Pai vos fallou ; não se lhe "ê a fundura ; está sempre co- '
berto de nevoeiros espêssos, que a não deixam descobrir.
A() dizer e s palavras soltou um profundo suspiro, e com as
costas da mão, limpou as lagrimas que lhe correram pelas faces.
Que vos afflige? Jbe diz o viajante. Ah 1 Como não hei-de aflligir-me?
Posrn eu vêr este abysmo sem me lembrar de tantos desgraçados, que
todos os dias se ce penbam n'elle ? Por mais que eu e meu Pai os
avisemos e lhes offereçamos nossos serviços, poucos são aquelles q e
os aceitam. A maior parte, depois de terem andado algumas horas
debaixo de nossa direcçã0, começam a accusar-nos que lhes quere-
mos incutir mêdos pueris ; desprezam nossos conselhos e abandonam-
nos, mas brevemente perdem o tino, e perecem miseravelmente,
ou devorados pela grande serpente, ou assassinados pelos ladrões,
ou engulidos por este abysmo ; porque para o atravessar, apenas ha
1
esta pequena ponte que ahi vêdes, e só nós conhecemos o caminho
que conduz a ella. Passai-a com confiança, diz elle voltando-se para
o viajante e abraçando-o com ternura ; do outro lado já não ha tre-
va~, é lá a vos a patria. O viajante, penetrado de reconhecimento,
agradece ao seu caridoso guia, promette-lhe de nunca mais se es-
quec .r d'elle, e atravessa com passo firme, a pequena P,onte: algumas
horas depois, repousava elle deliciosamente no seio de sua bem amada
familia.
Jovens Cbistãos, esta historia torna-vos palpavel a necessidade das
Catechesis de perseverança, rle que vos vou falJar. Não sois vós tam-
bem viajantes, que vindes de longes terras? Esta floresta é o mundo, e
a vida que tendes d'atravessar ; os ladrões são os inimigos da vossa
saJvação ; aquella enorme serpente, que faz tantos estragos, é o demo-
nio ; o abysmo tenebroso e insondavel, é o Inferno ; todos aqnelles
caminhos, que atravessam a floresta, são as estradas, ah, e f!Uam nu-
merosas ! que conduzem ~ condemnação eterna ; a unica vereda, que
conduz á pequena ponte, é o estreito caminho do Ceo. Quanto a este -
caridoso pastor, que está á entrada da floresta, e offerece o braço e a
luz ao viajante, bem vêdes que representa o divino Pastor, descido do

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r ATECIS,rO

Ceo para soccorrer e esclarerer f ()(/o o homem que vem a este mundo ;
(i) os filhos, que cooperam com o generoso velho em seu caridoso
ministerio, são os rpinistros do Senhc1r, dedicados como elle a guar~
dar e conduzir o homem viajante; esta luz, accêsa Ilj mão do pastor
e de seus filhos, é o facho da fé; que segundo a expressão de S.
Pedro, brilha como uma lampada nas trevas. (2) Não careço de vos
exp1icar o que representam o homem docil aos conselhos do prudente
velho, e os temerarios que recusam seus serviços e sua luz. No de-
curso da viagem, a lampada ameaça apagar-se, o azeite falta ; ora,
esta àllegoria é que mais nos importa explicar-vos.
O facho da Religião foi accêso e entregue em vossas mãos pe-
las instrucções anteriores á primeira communhão; mas, não ieveis
a mal que vol-o diga, brevemente faltará o azeite na vossa Jampa-
da. Que são de facto as lições de vossa primeira infancia? Apenas
vos deram um conhecimento, mui superficial e incompleto, . da scien-
cia que mais vos releva estudar. Não quero dizer que a leviandade
propria da vossa idade, ou ainda mesmo a vossa dissipação, muitas
vezes vos impeceram de comprehender e reter na memoria aquellas
instrucções elementares ; não, não vos quero fallar n'isso, a · vossa
consciencia vol-o dirá. Sim, ella vol-o dirá ; e desde já vos está dizen-
do, que ha na Religião uma immensidade de cousas que não conhe-
ceis bem, ou talvez ign8raes inteiramente; que é a maior das teme-
ridades querer' atraYessar o deserto da vida, e entrar no mundo com
tam pequeno provimento de conhecimentos religiosos; que repareis
como por toda a parte, grande numero de meninos e meninas foram
victimas d'esta imprudencia ; que o conhecimento da Religião é mais
necessario hoje que nunca :
Lº Porque hoje existe maior numero de pessoas que não estu-
dam, nem conhecem, nem amam, nem praticam a Religião: que
vivem como se não houvesse Deus, nem Paraíso, nem Inferno, nem

(1) João. 1, 9.
(2) 2.• Pedr: 1, l<J.

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DE PERSEVERANÇA.

Eternidade; como se niío tivessem alma para salvar, nem deveres para
cumprir ; que atacam as mesmas verdades da Religião, e como furiosos
zombam d'aquelles que a praticam :
2.º Porque em o numero d'esta desgraçada gente alguns ha, a
quem talvez quereis muito. E quem sabe? talvez a Pro,·idencia vos
destine para os esclarecer e converter. Quanto vos não devereis
arrepender se não ob€decerdes a tam nobre vocação r E como po-
derieis preenchei-a se não soubesseis os motivos da vossa fé, a
fim de os esclarecer ? Ora, bem vêdes que esta tarefa, só com os·
conhecimentos que tendes actualmente, seria muito superior ás vossas
forças :
3.º Porque nos .desgraçado·s dias em que o Ceo vos collocou
no mundo, muitas miserias, muitas dôres, e quiçá grandes infortu-
nios vos aguardam no caminho da vida. Para vos consolardes; não
conteis com os homens, a Religião só poderá dem1mar em vos-
sas feridas um balsamo salutar ; só ella vos será fiel, quando to-
dos vos tiverem abandonado ; só ella adoçará o pão, que misturar-
des com as lagrimas; só ella remect!erá, com sua mão maternal, as
tristes palhas de vossa dolorosa enxerga ; só ella emfim sustentará vossa
coragem, até os ultimo$ momentos. Mas se a Religião vos fôr es-
tranha, se lhe não entenderdes a lingua, se lhe não conhecerdes o
coração materno, que haveis que esperar d'ella? Ora, torno a.. di-
zer, vós não a conheceis ainda, e se a não estuJardes, em poucos an·
nos a esquecereis de todo; isto que eu digo é o que a experieneia nos
estâ mostrando : ·
4. º Porque as falsas maximas, que todos os dias vos repetem com
palavras pomposas; o desleixo, a corrupção, a geral indifferença,
os escandalos de toda a especie que topaes a cada passo, tentando-·vos
por todas as fórmas imaginaveis ; a voz seductora de vossas proprias
paixões. os terriveis combates que se hão de travar em vosso debil co-
ração ; em uma palavra, o mundo, o (1emonio, as vossas proprias in-
clinações, tudo se ha de conspirar para vos perder, com uma força e
tactica, hoje mais terrivel do que nunca. ·
No meio de taes tempestades, como resistireis não sendo mais

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6 CATECISMO

que frageis canoas? No meio de taes inimigos, como triumphareis .;des-


armados? No mais · espêsso da noute, o facho divino ameaçará ex-
tinguir-se, a menos que não busqueis meios de lhe sustentar a loJ
com novo alimento. Ora, estes meios oiferecem-se-vos, depende só
de vós •o aproveitai-os ; estes meios estão na Catechesis de Perse-
verança.
Oh ! Como está proprio este nome Catech_e~'is de Perseverança.!
Sim, Catecbesis onde achareis todos os meios de perseverar. •Aqui
recebereis instrucções mais fortes, mais seguidas e accommodadas ás
necessidades do momento, e ao progresso da vossa iotelligencia: ; ins-
trucções salutares, que não só vos hão de deleitar, como tambem de-
senvolver as primeiras instrucções, que já tend.es recebido. E' assim
que, deitando muitas vezes mais azeite na lampada, : não tereis, :,que
recear de ficardes sem luz no meio das trevas, nem ·perder-vos no ·ca~
- minho, que conduz á ponte do abysino. Aqai achareis ministros do di-.
vino Pastor, servindo-vos de guias, cheios d~ prndencia, e charidade ;
seus sabios co_nselhos serão para vossa alma o que foram para o fatigá-
do viajante o braço do velho, a cabana hospitaleira, e o conforto . da -
r

refeição. E' assim que, guiados e protegidos constantemente atraves8a-


reis sem desastre a perigosa floresta. .
Mas a Catechesis de Perseverança não tem só a utilidade d'intruir
a vossa intelligencia, e augmentar o olio da vossa lampada ; sua maior
vantagem é sustentar a vossa fragil virtude. Em todas as cousas,
a união produz a força ; pois na Catechesis de Perseverança ganha-
reis esta força, seja pelos bons exemplos, seja pelas orações d'um
grande numero de meninos, com quem não fareis mais que um só
coração e uma só alma. Pelo contrario, sem esta união, indo cada um
separado e só com&igo, difficilmente poderá atravessar o deserto_da vida.
Eu explico-me.
Quando os viajantes pretendem embrenhar-se nos vastos deser-
tos d' Africa, reunem-se em grandes bandos, vão em caravanas. Se
emprehendessem sós este p9rigoso transito, pereceriam fatigados e fal-
tos de tudo~ ou seriam preza dos Arabes vagabundos, que andam
errantes por aquelles ·aridos desertos, ou das monstruosas serpentes

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DE PERSEVERANÇA. 7
que os infestam: reunidos porém, porico tem que recear; porque
nem lhes faltam provisões, nem guias experientes ; os Arabes e as
serpentes não ousam atacai-os, e se o tentam, logo s~o repellidos
com escarmento. E' preciso que vos lembreis sempre, meus ami-
guinhos, que tendes d'atravessar um deserto, mil vezes mais peri-
goso que os d' Africa. Indo sós, provavelmente perecereis ; reunidos
porém, já quasi não ha perigo. Ora nas Catechesis de Perseverança
tereis esta companhia de jovens viajantes, que fazem a mesma jor-
nada; se qoizerdes, ireis com elles. Mas talvez que· este nome de
Catechesis vos cause desgosto, trazendo-vos á memoria não sei que
idéa pouco lisongeira ; talvez direis : Não terão estas Catechesis
estas perguntas e respostas, rudes, sêccas, aridas ! pois a consumi-
ção de as entender. a difficuldade de as reter, a -repetição sempre,
sempre, de cousas que já sabemos de cór e argumentadas ; emfim,
ainda vir á doutrina, depois da primeira communbão ! Abi nos que-
rem fazer andar para traz. Pois todos esses juízos, por lhe não cha-
mar prejuízos, ainda ha pouco foram respondidos ; e por pouco que
queiraes reflectir, logo se dissiparão as vossas objecções. Ora attendei-
me por mais um instante.
Em outras partes, o nome de Catechests terá a significação de-
sagradavel que lhe attribuis ; mas o nosso caso é muito differente ;
este nome vulgar inculca a mais linda historia, que jámais ouvistes; a
mais variada e completa instrucção, que poderíeis desejar; dirigin-
do-se, uma e outra, ao vosso espírito, á vossa imaginação, ao vosso
coração emfim, por um modo que vos ha de interessar e agradar
muito. Este mesmo nome de Catechesis recorda-vos memorias mui
patheticas.
Catechesis quer dizer ensino vocal. (l) Entende-se particularmente
do ensino elementar da Religião: Ora, a Religião foi ensinada vocal-
mente desde o principio do mundo até Moys~s, e desde o começo da
era Christã até depois das perseguições. Este nome pois recorda:nos,

(1) Cyrill. Ca.tech.- Ducange, Dice. na palavra Catechizare.

;
..

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8 CATECISMO

ao mesmo tempo, a tenda mobil do deserto e as catacumbas de Roma,


os costumes simples e puros dos Patriarchas, e os costumes muito
mais bellos ainda de nossos pais na fé. Esta maneira d'ensino vo-
cal muito mai interessante que a leitura, convinha perfeitamente
aos primeiros tempo do mundo. Os Patriarchas viajavam sempre
com sua familia; e como viviam muito largo annos. bem podiam
instruir seus filhos. Abraham viveu mais de um seculo com Sem;
Isaac tinha setenta e cinco annos quando Abraham morren. A his-
toria não diz que jámais se separassem. O mesmo succede com os ou-
tros Patriarchas.
A historia pois das cousas passadas facilmente se podia conser-
var só pela tradição dos velhos, que naturalmente gostam de con-
tar o que sabem, e muito mais aquelles, com o vagar que tinham.
Demais, os P:itri'archas não se descuidavam de perpetuar os a~onteci­
mentos notaveis, por meio de monumentos taes como altares, pedras
levantadas, e outro emelbantes . Eram este os livro immàrtaes,
que os descendente d'elles explicavam a seus netos: por exemplo,
Abraham levantou altares nos diversos sitio em .que Deu lhe tinha
apparecido. (1) Consagrou Jacob a pedra que lbe servira de traves-
seiro durante o mysterioso sonho da escada, (2) e chamou Galaad ao
montão de pedras, que foi o signal da sua alliança com Labão. (3)
A estes exemplos poderíamos ·accrescentar muitos outros. Os nomes,
que davam a estes monumentos, exprimiam toda a historia do acon-
tecimento, de C}Ue haviam sido tbeatro. E, quando a familia patriar-
chal chegava, com seus numel·osos rebanhos, junto ao poço de Rachel
ou da pedra de Bethel, os filhos perguntavam logo, com curioso
empenho, o que significavam c :~tes nomes e estas pedras. Quando o Pa-
triarcha lhes fazia signal, sentavam-se touos attentos á sombra da
palmeira; e o ancião, com os cabe llos encanecidos, contava uma his-

(1) Gen. XXVIII, 48.


(2) Id.· XXVI, 48.
(3) Id. ·x XVI, 18,- Veja-1:1e Fleury, Costumes dos Israelitas, pt 8. .

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DE~ PERSEVERANÇA. g

toria duas vezes interessante; porque era uma histor~a de familia e


uma historia religiosa.
Por este modo foram transmittidas, de geração em geração, a exis-
tencia de Deus, ·a historia de nossos primeiros pais, e as grandes
verdades religiosas, que o Deus Creador havia revelado ao homem.
A magnificencia · dos Ceos narrava umas, a voz dos Patriar~has con-
tava ·outras. Por e.spaço de mais de doas mil annos, o ensino da Re-
ligião foi exclusivamente vocal: foi o Catecismo primitivo. Este mes..
' mo ensinQ reappareceu no: principio da era christã. O ·divino Re-
demptor do mundo, perceptor de todas· · as nações, ensinou de viva
voz; e nada escreveu. Só passados muitos annos depois da sua glo-
riosa Ascensão, é que os Apostolos fixaram a sua doutrina por meio
da escripta. Mas é preciso notar, que ·nem por isso o ensino deixou
de ser vocal. Os Evangelhos, as Epistolas :dos Apostolos, jámais as
entregavam nas mãos d'aquelles que desejavam iniciar na Religião;
e isto faziam por muito graves motivos. Em primeiro lugar, o en-
sino vocal era muito mais facil, seguro e accommodado ao espirito
pouoo esclarecido dos neopbytos ; em · segundo lugar, porque não
queriam expôr os LhTos Santos a cahir nas mãos .dos profanos. N'isto
obedeciam , ao expresso mandado dó Sa:lvador,· que tinha dito: Tende
cuidado que não lanceis as perola.s aos .porcos. (t) Finalmente, por-
que receavam que os Cateehumenos, ·· vindo a desgostar-se,. não . se
aproveitassem dos conhecimentos, que houvessem adquirido, para fazer
zombaria dos: mysterios do Cbristia'nismo, ou provocassem, oom suas ca-
, · lumnias, as perseguições dos ·Pagãos. · '
·E' ·por :isso que os instruíam· unicamente de viva voz, e ainda
assim oom muita precaução. E' indispensavel conhecer este sagrado
uso :de nossos pais na fé, para oomprehender t. º aquellas palavras
. que 'tantas : vezes · repetem em seus discursos: os iniciados sabem o
que quero tlizer; (2) 2. 6 a razão porque despediam da·.Igreja os Ca-
techumenos: antes de começar a offerenda do santo Sacrifieio ; 3. ~ . a

(1) Math. VII, 6. •


(2 S. Cyrillo de Jerusalém, Catec.h., etc.

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to CATECISMO

razão porque os padres tam poucas vezes faliam de certas verdades


em seus escriptos + 4. º emfim, a razão porque o ensino da Religião,
se chamava. então catecismo.
Bem como os Patriarchas, que davam aos Jogares memoraveis
nomes significativos dos successos que n'elles aconteceram, os primeiros
cbristãos tirihaJl! sua. escriptura monumental. Para supprir os li~rQS,, gra-
vavam nos muros das Catacumbas, nas lampadas, nos auneis, · em ..mil
objectos ·d'uso,. as passagens principaes do antigo Testamento, e.algumas
do Novo; verêmos isto mais .de vagar na terceira parte do Catecismo.
Quando pois, algum Pagão .ou Judeo, pedia para abraçar o Cbristianis-
mo, ninguem se mettia: ··em cabeça dar-lhe para as mãos um livro sa. .
grado, nem tão pouco, instruil-o a fundo nas verdades da fé. Tratavam
só de lhe fazer sentir a insufficiencia da lei de Moysés, ou a vaidade dos
idolos, bem como tambem a absurdidade.da philosophia profana. Ensi-
navam-lhe além d'isso os preceitos moraes do Evangelho, e os dogmas
geraes de nossa Religião,: taes como a unidade de Deus, o juízo univer-
sal, a resurre~ão ultima, e a historia do Antigo e Novo Testamento ;
mas calavam todo o mais. Nem lhes ensinavam o Symbolo, e a oraçã9
dominical, senão dapois de longas provas, e só no momento de .rece-
ber o baptismo. Esta instrucção_ dava-se em assemblêas part.iculares,
chamadas escrUtinws; 'porq11e n'ellas se examinava a fé . e as dis-
posições d'aquelles, que deviam ser baptisados. Alli sómente é que
'Jbes da•am o . Symbolo e oração dominical por escripto, . obrigai).~
do-os a aprendêl-os de cór. Oito dias depois, no escrutinio seguinte,
haviam de recital-as e entregar o escripto que as continha, por .rnêdo ·
que não cahissem nas mãos dos profanos. Chamava-se a isto a tnitrega
do Symbolo. (i) ·
· Emfim~ depois que ·os Catechumenos estavam assaz p.rovados, ,e
pareCiam digrios· de receber· o baptismo, cuja _graça solicitavam com per-
sistencia, então, os levavam à Aguas da salvação, na vespera de Paschôa
ou do Pentecostes, ·noutes solemnes e brilhantes,, consagradas d'ordiná-

(1) Agost. Serm. 213.

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DE PERSEVERANÇA. H
rio ã regeneração dos adultos. Ahi lhes explicava abertamente o Bispo,
antes que os lavasse com a infusão da agua baptismal, a: necessidade
e os effeitos d'este primeiro s~cramento. ·Ao sahir do baptismo con-
duziam-nos, revestidos de uma ·veste branca, aos · fieis reunidos, ·dos
quaes agora iam augmentar o numero. Então subia o Bispo ao ·. pUlpi-
to, e, correndo o véo que .até alli !hés velava os divinos mysterios,
claramente os expunha diante dos Neophytos ; e as instrucções sobre
a instituição, a natureza e e.ffeitos da Eucharistia, os sentimentos de
fé viva, de piedade e amor que d'elles requeria a participação d'estes
augustos mysterios, eram objecto do ensino de todos os pri~eiros
dias da semana. Tal foi a prática ger<1l da Igreja até o quinto secu-
lo. (t)
Tal é igualmente a significação e origem da palavra Catecismo ;
taes as preciosas recordações que nos traz á memoria ; oxalá esta pala-
vra, quando nos ferir o ouvido, desperte igualmente em nossos corações
a lembrança dos primeiros tempos dct mundo ; e nos recorde os
puros e simplices costumes dos Patriarchas, bem como dos primeiros
christãos; seu respeito para com os sagrados mysterios, suas persegui-
ções e virtudes ; porque esta palavra encerra estas duas historias. Pos-
sa ella, sobre tudo, persuadir-nos a imitar os bons exemplos que uns e
outros nos deixaram ! ..

O' meu Deus! que sois todo amor, ·eu vos dou graças por terdes
estabelecido as Catechesis de Perseverança. Dignastes-vos, Senhor, es-
clarecer o meu espirito pelo conhecimento profundo da Religião, a fim
de que o 'meu coração perseverasse na prática das virtudes que ella

(1) Veja·&e sobre a disciplina do segredo, Di.scussão amigavel, t. 1, p.


344.

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CATECISMO

ordena; concedei-nos a graça de corresponder a este grande beneficio,


ao qual muitos serão devedores da sua salvaÇão.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas,_ e ao proximo
como a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d'egte amor,
assistirei ás Catechesis de Perseverança com summo desejo de tirar
proveito d' ellas.

.'

.... '

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li.ª LICÇÃO

Ensino escriplo.
. '
.&n1i50 Te•tamento.- Seu ftm.- Parte• de que consta.- In-
tenção de Deu• com o seu povo e com todas os naçõe11,
f'azendo escre-wer o Anti~o Testamento.- Traducção. -
No-wo Testamento.- Partes de que se compõe.-Tradl-
~ão. -ln11piraçáo, autb.enticidade e integridade do ".&n-
•iso e Novo Teatamento.
,

Vistes de que modo pôde o homem, desde o principio, aprender


a existencia de Deus e as grandes verdades da Religião, já contemplan-
do o espectaculo . da natureza, já escutando a palavra de seus avôs.
Taes foram por espaço de dous mil annos os dous grandes mananciaes
ua instrucção. Pelo tempo adiante, alterando-se a pureza dos costu-
mes, e encurtando-se .a larga vida dos Patriarchas, a simplicidade
da fé necessariamente perigava. Pouco a pouco ganhavam poderio as
paixões ; e estas, depravando o coração, offuscavam a razão, e abriam
caminho ao erro. A mesma descendencia d'A9raham teria provavel-
mente seguido o exemplo das estrangeiras nações, e a idolatria ·che-
garia a dominar em toda a parte, se Deus, que vela sobre o geriero
humano, não tivera obstado a isso. A fim pois de tornar mais sagrado
e inalteravel o ensino da Religião, quiz Deus gravados em pedra os
santos Mandamentos da. sua , lei. Moysés os escreveu ; Arão e o Sacer-
docio foram encarregados de ensinar a Religião, e manter sua pureza
contra todo o erro. Depositaria·dos" livros sagrados, noute e dia, velava
9

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- --- --~--------------~---~
/

CATECISMO

a Synagoga em sua guarda, e decidia todas as questões religiosas que


se excitavam entre o povo.
Vieram depois os Prophetas e mais authores inspirados ; os quaes,
por altas razões da sabedoria infinita, escreviam as suas predicções
e a historia do povo escolhido. Todos estes livros juntos chamilm-se
o Antigo Testamento. A pa1avra testamento quer dizer alliança. O
Antigo Testamento é poi . a alliaoça que Deus fez com o povo an-
tigo. isto é, com o povo hebraico em particular. E' um magnifico con-
tracto, que, d'uma parte, contém a vontade e promessas de Deus;
da ontra·, os encargos d'Israel. O seu fim, como o de todas as obras
de Deus, é procurar a feliciílade do homem na terra e no Ceo 'por
meio de Jesu-Chri.sto. O Antigo Testamento compõe-se de muita~ par-
tes.
t.º As obras de Moysés dividem-se em cinco livros, que por
essa razão se chamam o Pentateuco, e são= O Genesis, que contém
a historia da Creação e os grandes successos occorridos até á sahida
do povo de Deus do Egypto ; o Exodo, que conta a milagrosa jor-
nada d'este povo pelo deserto, e a publicação da lei ; o Levítico, on-
de estão registradas todas as ceremonias da Religião e todos os pre-
ceitos concernentes aos sacerdotes e levitas ; o livro dos Numeros,
chamado assim por começar pelo arrolamento dos fillios d'Israel: n'elle
se contém mui sabias disposições para manter a ordem .e subordina-
ção n'este povo peregrino, e naturalmente inclinado á revolta; emfim,
o Deuteronomio, que quer dizer segunda lei, por isso que contém
o resumo d~s lei anteriormente p_romulgadas. Estas leis acham-se es-
- ·criptas com certas applicações e addições, que redundam em favor d'a- ·
quelles que não eram ainda nascidos, ou não tinham a idade de razão
quando pela primeira vez foram promulgadas.
2. 0 Os li ros historicos, que contém a historia geral do povo de
Deus; ta~s são: o livro de Josué, o dos Juízes, os quatro dos Reis,
os dous chamados Paralipomenos, que são um como supplemento
aos livros dos Reis; o livro d'Esdras, o de Nehemias, e os dous dos
Jlachabeos; ou a historia particular d'alguns santos e personagens illus-
tres, taes como a de Ruth, de Tobias, Judith, Esther e Job.

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DE PERSEVERANÇA.

·' Talvez perguntareis· porque fez Deus escrever a historia dó seu po-
vo? Além da ne'cessidade de conserva11 intactas as verdades da Religião;
quiz por este ·modo :
· i. º Mostrar aos Israelitas a fidelidade com que observava a sua
alliança. Pela sua ·parte, não falta jámais ao que promette; abun-
dantes beneficios, um:r ,'profunda · paz, são o patrimonio do seu povo,
em tanto que observa· as condições do contracto; pelo contrario,
cabem sobre ·elle castigos de todo o genero, quando se torna preva-
ricador·. ·
Quer mostrar a todos os povos que é a sua Providencia quem
governa o mundo; e que, tendo nas mãos as redeas dos imperios, os
faz servir todos ao cumprimento de seu immutavel desígnio, que é a Re-
dempção do homem por Jesu-Christo. Eis-aqui, geralmente fallando, o
'que nos ensinam os livros historicos do Antigo Testamento. Foi para per-
petuar, até. ao fim dos tempos, tam · importantes verdades; que Deus
quiz que fossem escriptas.
3. º O Antigo Testamento compõe-se tambem de livros d'instfnc-
ção e oração ; taes como : os Psalmos de David, em numero · de cento
e dncoenta ; os Proverbios, o Ecclesiastes, o Cantico dos· Canticos
de Salomão, o livro da Sabedoria e o Ecclesiastico. Não bastava ha-
ver estabelecido as condições de sua alliança com o povo d'Israel;
Deus quiz obter o effeito d'esta alliança, que · era formar os costumes
pela virtude ; razão porque' estes livros estam cheios de maximas as
mais sabias, esclarecidos conselhos e. seguras regras de co'mporta-
mento. Se os ligisladores antigos são como méninos ao pé de Moysés,
todos os sabios e philosopbos profanos são nada, se os comparardes
aos sabios inspirados, qtie escreveram• este admiravel codigo de mo-
ral.
4;º Os livros propheticos, que 'são: os dos quatro grandes ·pro-
phetas Isaías, Jeremias, Ezechiel, Daniel ; aos quaes devemos ajun-
tar David com9 primeiro de todos ; (t) e os doze chamados Propbe-

(1) Os J udeos não tem David em conta. de Propheta propriamente dito ; por-
que ~ra rei, vivia no meio do mundo, e sua vida não era à que soem ter os Pro-

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CATECISMO

tas menores, porque escreveram menos que os precedentes, Qu de quem


temos menor numero de obras; estes são: Oseas, Joel, Amos, Abdias,
Jonas, JJJicheas, Nahum, Habacuc, Sophonias, Aggeo, Zacharias, Ma-
lachias. Deus não quiz que o seu povo ignorasse que a alliança, que
tinha contratado com eJ!e, era apenas temporaria ; pelo contrario de-
terminou que tivessem sempre diante dos ·olhos a lembrança d'uma
a1liança mais perfeita, cimentada por um sangue mais puro; alli-
ança de que o Messias, figurado por Moysés, seria vessoalmente o
Medeador e Pontifice. Esta nova alliança devia um dia substituir a an-
tiga.
Ora, Deus permittiu assim. as cousas, i. º para que este povo
não -pozesse sua confiança em sombras .vãs e hostias insufficientes.
2. 0 para que entrasse voluntariamente em a nova alliança, quando
o Redemptor a viesse proclamar. Foi para isto que Deu~ o fez an- ·
nunciar por tantos secu!os, foi para que este povo reconhecesse fa-
cilmente o Redemptor, que lbe mandou pôr. diante dos olhos a sua
divina imagem, primorosamente desenhada por uma longa serie de
Prophetas.
Por isso, todo~ os livros santos, escriptos depois de Moysés, ten-
dem a manter esta alliança, facilitar seu cumprimento, inspirar seu
verdadeiro espírito, e preparar Israel para uma alliança mais per-
feita.
Convém saber ainda, que a par do ensino escripto permittiu .Deu~
que subsistisse, ao menos em parte, o ensino vocal. Nem todas as
verdades religiosas estavam registradas nos livros. Algumas havia qu~
só a tradição se encarregava de transmittir de geração em gera-
ção. Temos a prova d'este facto nas mesmas palavras de Moysés.
Estando para morrer, o santo legislador disse aos filhos d'Israel :.
Lembrai-vos dos tempos antigos ; considerai todas as geraçõe~ .; in-
terrogai vosso pai. que elle vos ensinará ; e vossos avós, que elles

pbetas: mas nem por isso deixam de ter como propheticos os seus livros.- ;Veja-
se a Biblia de Vence, Pref. aobre os PsaJ,mos.

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DE PERSEVERANÇA.

vos instruirão. (f) E não disse : lêde os meus livros ; consultai a


historia dos primeiros tempos do mundo ; a qual eu escrevi para vos
deixar. Sem duvida, que a deviam lêr, e nem para outra, cousa
fõra escripta ; mas sem o soccorro da tradição de seus pais, como
poderiam entender estes livros perfeitamente? Não se contentou Moy-
sés com escrever aquelles prodigios, que Deus havia operado em fa-
vor do seu povo, a exemplo dos Patriarchas; levantou monumen-
tos; estabeleceu, para os perpetuar, ritos commemorativos; e or-
denou aos Judeos que os explicassem a seus filhos; a fim de lhes
gravar na memoria os factos que recordavam. (2) Para que seriam
estas precauções, se é qne tudo estava escripto? D'est'arte, antes
da vinda do Messias, as duas fonfes da verdade religiosa são a tra-
dição e a escriptura. (3) O mesmo succede depois de Jesu-Cbristo,
como logo veêrmos.
O Novo Testameoto é a nova alliança que Deus fez, não com
um ·só povo, mas com todo o genero humano, pelo ministerio do
mesmo Jesu-Christo. Os livros, que tem escriptas as condições d'este

(1) Deut. XXXII, 7.


(2) ld. VI, 20.
(3) Um homem muito versado nas doutrinas e tradições da. Synagoga
falla assim aos J udeos seus irmãos ; «Se vos applicardes ao estudo dos monumen-
tos do nosso povo fiel. .. achareis que nossos antepassados adoravam Jéhova sub-
sistindo em tres pessoas unidas em uma só indivisível essencia; que esperavam
com firme fé que Jesus, isto é o Salvador, o Verbo de Jéhova, a segunda pessoa
da suprema Trindade, viria, na hora marcada pelo Decreto do Altissimo, tomar
um corpo similbante ao nosso, nas castas entranhas da augusta filha de David,
designada d'antemão sempre Virgem, antes e depois da sua gloriosa maternida-
de; ... em uma palavra, que o nascimento miraculoso, a vida, morte, resurreição
e ascensão de nosso Senhor Jesu-Christo ao Ceo, onde está assentndo com suas
duas naturezas á direita de seu Pai, para ser continuamente nosso ad\'ogado,
não são mais que o cumprimento das prophecias, tanto escriptas como tradicionaes,
que tinham envelhecido com a antiga geração de Jacob, sua guarda fiel. u Drach.
Harmonia entre a Igreja e a Synagoga, t. II, p. 484.

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f8 CATECISMO

divino contracto, formam o que se chama Novo Testamento : SãQ elles


em numero de vinte e sete.
J. º. Os livros historicos, onde se narra, assim a vic~a. de Nosso
Senhor e dos Apostolos, como toda a hi~toria da nova alliança: a. rna~
neira porque foi cumprida, e os a.dmiraveis effeitos que deve produ"'.
zir. Estes livrôs são, os quatro Evangelhos de S.. Matheus, , S. Mai:;
cos, S. Lucas, e S. João ; e as Actas dos Apostolas, escriptas por
S. Lucas. Assim como no principio ,do mundo não escreveu Deus a
lei que de_u a Adam, da mesma sorte Nosso Senhor não escreveu a sua
doutrina; se não que a mandou ensinar de viva voz. Esta celesti~l
doutrina transmittiu-se de bôca em bôca por espaço d'annos, até o mo-
mento em que razões graves forçaram os Apostolas a fixal-as pela es-
cripta.
2. 0 Os livros d'instrucção; estes são, as Epistolas ou cartas que
os Apostolos escreviam a seus discipulos ou ás .differentes Igrejas que
fündaram. Temos quatorze de S. Paulo ; que são, uma aos Romanos,
duas aos Corinthios 2 uma aos Gala~as, uma aos Ephesios, uma aos
Philippenses, uma aos Colossenses, duas aos Tliessalonicenses, duas a
Thimotheo, uma a Tito, urna a Philemon, e uma aos Ilebreos ; uma de
S . . Thiago aos Judeos dispersos em todo o universo ; duas de S.
Pedro aos Judeos d'Asia, e tres de S. João; a primeira ao~ Fieis
do seu tempo, a segunda a Electa, e .a terceira a Caio ; uma de S.
Judas a todos os novos Christãos em geral. O fim de todos estes
escriptos é-explicar a nova alliança, fazendo-lhe comprehender o espírito.
Ora, este espirito, bem como. o do Antigo Testamento, é o amor de
Deus e do proximo.
3. 0 • Um livro prophetico, quo é o Apocalypse. de S. João. Como
a antiga alliança era uma preparação para uma alliança mais per-
feitá, annunciada pelos Prophetas da nação Judaica, assim a nova, fun-
dada por Jesu~Christo, deve conduzir-nos a uma união ainda mais es-
treita com Deus no Ceo. O Propheta da nova lei, o Apostolo S. João,
foi o encarregado de nos descrever os ineffaveis gozos e innumeraveis
maravilhas d'esta união ultima. Resumindo o que temos dito, diremos
pois, que o Pentateuco contém a alliança ele Deus com o povo Judaico,

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da mesma sorte que o Evangelho contém a alliança de Deus com o povo


Christão.
Os outros livros historicos do Antigo Testamento dizem-nos a ma-
neira porque se houveram Deus e . o povo Judaico em seas compro-
missos. D'uma parte, vêmos Deus tam fiel nas suas promessas · eomo
nas suas ameaças; da outra, este povo ora inco~lante, ora submi~
so; recebendo infallivelmente ncompensas ou eastigos~ Esta alternativa
de·. ·bens· e de males é a sancção da éJ.lHança, que maravilb0s;imente
concorre para a fazer observar, :sendo a esperan~.a e· o temor . os_ @as
grande.s .motjvos das acções humanas. Os li.vrQS. pr@pheticos- não tpat~JD­
só .d'annunciar a futura alliança, tambem é seu intento manter o- po;~~
fiet ao que promettera. Trazem-lhe continuamente á memoria o qae. de;-
vem temer OU esperar, ~egundo fôr ~ o@ediencia OU a prevaricaç~o. ÜS'.
livros moraes tem por fim fazer observar a alliançà em o espirito•.. Sã<>:
estes, para assim dizer, ()&' artigps. organicos da lei. A par do Antigo
Te~tamen_to temos a tradição, que perpetua as verdades i;>.ão . escrif)ta~.
Toda: a lei antiga nos conduz á nova.
Da mesma sorte, em o Novo Testamento, ~ historia da Igre1~·
tem por fün mostrar. de que maoeira observam Deus e o povo Chris-
tãQ ~; . aug~ijl alliança, que foi. sellada com o sangue do Redemptor.
D'q.m.a par.te, vêmos Deus; ha ·desoito . seculos, dispondG alternada-
mente -.castigos·. e recompensas, segundo a fidelidade, ou infidelidade
das nações cbri~tãs ; da outra, as nações christãs, ora felizes, ora.
desgraçadas, assim como são ou doceis, ou rebelàes ; de sorte que,
no ·alto de cada pagina d'ulJ); povo christão, devem lêr-se estas pa-
lavras: .i\ fidelidade á alliança do C alvario. eleva as p.ações ; abate-~s
e perde-as a infidelidade. Por onde se vê que tpda a histori~ do mun~
do,. as~l)J. no ...~ntig-0 como Novo Testamento, tem- por fim manter as
duas allianças ; ensinar aos povos a ser fieis pelo exemplo dos cas-
tigos ou das recompensas, que são o infallivel salario da obediencia ou
da revolta.
A par do Evangelho ba uma tradição, que perpetua um grande
numero de verdades não escriptas em o Novo Testamento.

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20 CATECISMO

Emfim, como a antiga alliança c~nduzia á nova, esta conduz ao


Ceo.
Da mesma sorte que na antiga alliança houve uma tradição oral,
encarregada de transmittir e explicar. um certo numero de verdades ;
assim ·tambem em o Novo Testamento, os Evangelistas e os Apos-
tolos não escreveram todas as instrucções do Salvador. Elles o dizem
expressamente. (t) Para as conhecer, cumpre consultar a tradição.
(2) Notemos aqui que os Protestantes, que régeitam, . a exemplo dos
Samaritanos, a tradição, para se aterem sómente á palavra es-
cripta, estam em perpetua contradicção comsigo mesmos. Como sa-
bem, por exemplo, que a Biblia vem de Deus ? Como conhecem que
o Baptismo.por infusão é válido? D'est'arte se veem forçados a admit-
tir outras verdades pela só authoridade da tradição ; a qual todavia
regeitam.
As differentes obras que compõem o Antigo e Novo Testamento
chamam-se a Biblia; que quer dizer, livro por excellencia. Livro di-
vino, archivo immortal da humanidade ; o Ceo e a terra passarão,
mas a Biblia não passará jámais. Levada em triumpho a travez dos
seculos, como a Arca da Antiga Alliança por meio das areas do de-
serto, ella continuará a ensinar ás gerações futuras a existencia de
Deus, sua alliança com o homem, seus juízos e gloria, até ao mo-
mento solemne em que, pulsando a Igreja o limiar da Eternidade,
todos os livros cessarão; porque a verdade se mostrará então sem nu-
vens, nem sombras.
D'estas noções simplices, mas essenciaes, passemos agora á ins-
piração, authenticidade e integridade da Biblia. Todos os livro~ da Es-
criptura Santa, no seu todo e em cada uma de suas partes, foram
inspirados ; queremos dizer : i .0 que Deus revelou immediatamente,

(1) João. XX, 30.


(2) II Thess. II, 14; 1 Cor. XI, 2; II Tim. 1. 187 etc. Veja-se Bergier
art. Tradicção.

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· DE PERSEVERANÇA. 2t

aos authores sagrados, não só as prophecias que fizeram, como todas


as verdades que não podiam conhecer pela só luz natural e pelos meios
humanos : 2. 0 que, por um movimento particular da graça, fez com
que os escrevessem; e os dirigiu na escolha das cousas que deviam
pôr por escripto ; 3. 0 que, por uma assistenci a especial do Espirito
Santo, vigiou sobre elles e os perservou de todo o erro, já no dogma,
já emfim na moral. ( t)
Quanto á authenticidade e integridade da Bíblia, diz-se que uma '
obra é authentica, quando pertence realmente ao author de quem
tem o nome; integra, se está como sahio de suas mãos. Nada ha
mais certo que a inspiração, authenticidade e integridade dos livros,
que compõem o antigo e Novo Testamento. Para provar este facto
decisivo, deu traça um Ecclesiastico illustrado. Estava elle certo di~
em presença d'uma companhia numerosa. Um d'estes homens que hoje
abundam, instruído sim e muito, em sciencias profanas, mas grande
ignorante em materias de Religião, deu-lhe na vontade atacar a ins-
piração, authenticidade e integridade da Bíblia. Pois que o vosso ata-
que se dirige a muitos pontos, lhe disse o ecclesiastico, haveis de
permittir-me que divida a defeza : releva muito não confundir as cou-
sas.
Primeiro provarei a inspiração e authenticidade de nossos livros
santos; e não duvido que brevemente estaremos d'accôordo. Agrupa-
ram-se todos em redor dos interlocutores: fez-se um profundo silen-
cio, e o ecclesiast~co, endereçando-se ao seu adversaria, disse-lhe: Mui-
to estimo, -senhor, porque tenho de me haver com um -homem instruí-
do ; os espíritos elevados, os corações rectos, nasceram para conhecer a
verdade; a Religião não teme senão os semi-sabios. Duvidaes por ven-
tura da authenticidade das Obras de Platão, de Virgilio, d'Horacio, de
Cicero, de Cesar? Nunca uma tal duvida vos perturbou o espirito.. Mas
como sabeis que estas obras foram compostas pelos grandes genios, de
quem tem o nome ? Como é que o sei. ? Do mesmo modo que sabemos

(1) Veja-se a Biblia de Vence, t. I; Bergier, art. Inspi-rar;ão.

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CATECISMO

todos os factos. da antiguidade ; porqae todo o mundo concorda :e con-


cordou sempre em lh'os attribuir. Seria eu(} primeiro a considerar como
demente quem pretendesse recusar um testemunho similhante. Optima-
mente! Muito bem! pois um testemunho mil vezes mais forte, mais certo,
attesta e prova que os livros do Antigo e Novo Testamento foram inspi-
rados por Deus, e escriptos pelos homens, de quem tem o nome. Com
effeito, conheceis alguem que haja morrido; ou quizesse morrer para
sustentar a anthenticidade das obras de Virgílio ou de Platão ? Não por
certo, um tal homem não appareceu, nem apparecerá jámais.. Pois ago-
ra~ Senhor, digo que milhares de Judeos e de Christãos moITeram por
sustentar a inspiração e authenticidade de nossos livros santos, milhares
dioutros ainda estariam .promptos a dar o sangue pela mesma causa. Qoe
vos parece ? devem recusar-se testemµnhas qUe se deixam degollar-por
affirtnar os seus depoimentos? ·
Mas não pára aqui; O testemunho que me attesta a inspiração
e authenticidade da Biblia ·é muiio mais antigo que o vosso, muito mais
numeroso : é. a voz de doos grandes povos, o povo Judaico e o povo
Christão; cuja existencia reunida faz para cima de tres mil e quinhentos
annos. Que vos parece? Será insufficiente um testemunho tal, para tor.:·
nar razoavel e legitima a fé christã? Somos nós espriitos fracos, quan-
do, -basead0s em taes provas, crêmos na .inspiração e ,authenticidade de
nossoS' livros sagrados ? Não tinha ainda retlectido n'isso ; e quer-me pa-
recer, meu Padre, que· ides ·converter-me. Assim espem, porque não
podereis defender-vos sem ser inconsequente.
, Passemos :á integridade. da Biblia. N'este ponto, como nos prece-
dentes~ ·espero · não tardareis em concordar comigo. Appello para vós
mesmo.°Como sabeis que as obras de Platão, de Cesar e Virgilio che-
garam até nós, taes como- sahiram das mãos de- seus aufüores ? Ah !
já vos entendo ; ides,.me provar a integridade da Bíblia, como o fizestes
com, a inspiração, e authenticidade ; mostrando que é attestada· por um
testemunho mais irrecusavel, que o da authoridade que me faz crêr na
integridade das obras de Virgílio e de Platão. Adivinhastes. Eis-aqui a
minha confirmação ; a historia faz fé, e sabeis muito bem, que· milhares
de Judeos e Christãos morreram por sustentar este facto; a saber, que

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DE PERSEVERANÇA. 23
os nossos livros santos chegaram até nós taes como eram quando sahi-
ram das mãos de seus authores ; sem augmento, nem diminuição, nem
mudança alguma ; em quanto que ninguem, como sabeis, deu jámais a.
vida por attestar que as obras de Virgilio . e de Platão estão. hoje· taes
quaes foram escriptas por seus authores. Porém s·enhor, eu quero ir
mais adiante, e mostrar-vos que os nossos li\ ros santos não só não fo-
1

ram alterados mas nem o podiam ser de fórma alguma. Vejamos esse
vosso esforço ; estou pr.ompto a vos offerecer a palma. Eu a acceitarei de
vossas mão~ segui-me pois no combate. Aqui redobrou a attenção do
auditorio~ : ·
Fallemos primeiro dos livros do Anti·go Testamento. .
1. º Era impossivel aos Judeos alt.erar os livros antes <lo Scisma
das dez Tribus..____Por quanto, dizei-me, como. poderia hoje em França
alterar-se o Codigo civil? Se algum falsificador o tentasse não seria
logo ·confundido ? Da mesma sorte, r,0100 poderiam os Judeos alterar
um livro, que respeitavam incomparavelmente mais do que nós res·
peitamos o nosso. codigo? livro que andava nas mãos de todas as
f~milias, meditado todos os dias : e cnjÓ original, guardado religiosa·
mente no Tabernaculo, em certas festas, os Sacerdotes liam a todo
o povo reunido? Supponde que houvesse uma tentativa de alteração,
• milhares de vozes reclamariam immediatamente. Todavia não ha ves-
tígio de taes reclamações. Demais, as alterações, a serem passiveis,
sem duvida que se dirigiriam a eliminar -o que fosse homiliante para o
orgulho nacional; ou mortificante para as paixões. Pois naqa lhe tiraram
d' estas cousas.
2. º Era impossível aos Judeos alterar os livros depois do Scisma
das dez _Tribus. Se. as duas Tribos, qae se conservaram fieis aos descen-
dentes de David, tivessem querido alterar os livros da lei, como pode-
riam as outras Tribus, que eram agora seus inimigos mortaes, con-
sentir· em taes .alterações ? E comtuclo o Pentateuco dos Sc1maritanos,
ou das dez Tribus separadas, é absolutamente o mesmo que o dos Ju-
deos.
3. 0 Era impossivel alterar os livros depois da vinda do Messias.
Desde esta epocha. os livros do antigo Testamento são versados dos

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CATECISMO

Jadeos e Christãos, nações essencialmente oppostas. Se pois os Judeos


alterassem o Antigo Testamento, reclamariam logo os Cbristãos, e
não receberiam .taes alterações. O mesmo fariam os Judeos, se os
Christãos lhe bulissem. Entre tanto, o Antigo Testamento, que anda
nas mãos dos Judeos, o mesmo que foi depositado na Bibliotheca real
d'Alexandria, duzentos e cincoenta annos antes de Jesu-Christo, é ab-
solutamente o mesmo dos Christãos. Ora, isto é pelo que toca ao Antigo
Testamento.
Quanto ao Novo, a alteração não é menos impossivel.
t.º Antes do Scisma Grego. Por quanto, convireis comigo que é
impossivel alterar um livro que anda nas mãos de milhares de pes-
soas, espalhadas pela face do globo, sem que logo isso se perceba.
Haveria reclamações, porque os Christãos, n'este ponto, sempre se
mostraram summamente delicados. Sobre isto vou contar-vos um caso
que traz · S. Agostinho. Um Bispo d'Africa, prégando diante do seu
povo, quiz substituir, a uma palavra do Evangelho, um termo que
lhe pareceu mais proprio. Pois não é nada, sublevou-se o povo ; e
chegaram a ponto as cousas, que o Bispo viu-se obrigado a retra-
ctar-se e restituir a antiga palavra, para não ser abandonado de seu re-
banho. (t)
E a prova material que o Novo Testamento jámais soffreu alteração ·
alguma é, que os exemplares, que andam nas mãos dos Ch~istãos do
Oriente, são absolutamente conformes aos de que fazem uso os seus ir-
mãos de Occidente.
2. 0 Era impossivel a alteração depois do Scisma Grego. Se a Igre-
ja Latina houvesse querido alterar o Novo Testamento, a Igreja Grega,
sua mortal inimiga, tam pichosa, tam espreitadora, longe d'adoptar es-
sas alterações sacrílegas, que desabridos gritos não daria ella, para
publicar e reclamar a fraude 1 Ora, não consta que jámais fizesse a me-
nor reclamação ; e o Novo Testamento de que ella se serve é em tudo
o mesmo da Igreja Latina. Senhor Padre, agradeço-vos; dou-me por

(1) Agost. Ep. 71 e 82. Veja·se tambem Tassoni, liv. I, 181.

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DE PERSEVERANÇA.

vencido ; e ufano-me de o ser : declaro-vos que não tinha retlectido em


todas essas razõe3. Ser esclarecido não é ser vencido. Eu vol-o disse,
que os espiritos elevados sempre são doceis ã verdade; felicito-vos
porque sois do numero d' estes. Esta prova, a que poderiamos · jun•
tar muitas mais, assaz nos mostra que a fé do simples fiel, que,
sob a palavra da Igreja, crê na divindade da Bíblia, é perfeitamente fun-
damentada; e que os mais eruditos nada tem razoavel que lhe possam
oppôr. (f)
Concluamos d'aqui ; que todos nós, sabios ou ignorantes, de-
vemos aos livros santos a fé mais inteira, e o mais profundo res-
peito; são todos e em todas as suas partes a verdadeira palavra de
Deus. (2)
Acaba aqui a discussão. Os elogios foram quinhoados pelo ec-
clesiastico que provou a inspiração, authenticidade, e integridade da
Biblia, com tanta força como mt1destia, e pelo seu adversario, que
teve a tam rara wragem de ceder sinceramente á evidencia da verdade.
Ajuntemos a isto, que devemos a mesma fé ã Escriptura e á tradição,
pois que são ambas a mesma palavra de Deus. Toda a Escriptura, diz
S. Paulo, inspirada por Deus, é util para ensinar, convencer, corri-
gir~ edificar em a virtude, tornar o homem de Deus perfeito, e proprio
para toda a boa obra. (3) «Estai firmes, diz elle em outra parte, e guardai
as tradições que tendes aprendido, seja de viv~ voz, seja pela nossa
carta. (4.)

ORAÇÃO. -
O' meu Deus ! que sois todo amor, efl vos dou graças por nos
, terdes dado a vossa Santa Lei, e pela terdes escripto ; para que as pai-

(1) A philologia moderna tem levado á ultima evidencia a perfeita integri-


dade do Novo Testamento. ·
(2) Cone. Tfid. Sess. IV.
(3) II a Timoth. III, 16-17.
(4) II aos Thess. II, 14.

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CATEGISMO la

xões nunca podessem alteral-a. Concedei-me um profundo respeito para


com a vossa Santa palavra.
1 Eu protesto amar a· Deus sobre todas as cousas, e ao proximo
oomo a mim' mesmQ, por amor de Deus; e cm testemunho d'este amor,
escutarei' com summo respeito a leitura do vosso Evangelho.

':! r

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Conhecimento de Deus.- Deus considerado em si mesmo.

sua exist;encia.- Provas.- Trecho• historicos.- Perf'ei~ão


de Deus.- Sua Eternidade, Jndependencia, JmmeD.Mi-
dade, Unidade, lmmutabilidade, Liberdade, .Espirituali-
dade, In1elli~encia.-Providencia.- ·Provas.

Já dissemos que a primeira verdade, que o Cbristianismo nos ensi-


na, é a existencia de Deus. Ceos e terra, ouvi, filhos dos homens, es-
cutai ! Antes de todos os seculos, além de todos os Ceos, acima de
todos os mundos, ha um SER eterno, infinito, immudavel, que é o prin-
cipio de si mesmo, o fim e a felicidade de si mesmo. A creação toda
com seus soes e seus mundos, dos quaes cada um encerra em si
myriades de mundos, é apenas um reflexo da gloria d'este grande
Ser. ~tá elle em toda a parte, todo vê, tudo ouve. Ser dos seres,
quem sou eu, fraco mortal, para fallar de vossas grandezas ? O si-
lencio é o unico hymnd que seja digno de vós : Silentium tibi laus, Deus
in Sion.
E primeiramente, que nome dar-vos ? «.Ser superior a todos . os
seres, dizia outr'ora um d'aquelles que já hoje contemp1am a voss~
ineffavel essencia ; Ser superior a todos os seres, eis o unico nome
que não seja indigno de vós. Que 1ingua poderia nomear-vos, , pois
que todas as ~nguas não alcançam a representar-vos. a idéa_! Sois ineffa.

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28 CATECISMO

vel para todos os homens; porque vós é que dotastes com a palavra a
todos os homens,
C[ Sois incomprehensivel, porque é de vós que 'dimanam todas as
intelligencias. Tudo celebra os voss,os louvores: aquillo que falia vos louva
por suas acclamações; o que é mudo, por seu silencio. Tudo reverencêa
a vossa magestade: a natureza viva e a natureza morta. A vós se dirigem
todos os desejos, todas as dôres; para vós se elevam todas as orações.
Sois a vida de todas as vidas, o centro de todos os movimentos, o fim
de tudo ; porque tudo sois, e· sois unicamente. O' vaidade de humanas
expressões! Todos estes nomes vos convém, e todavia nenhum consegue
designar-vos. Se na immensidade do universo não tendes nome, como
penetrar além de todos os Ceos em vosso sanctuario impenetravel? Ser
superior a todos os seres, este nome é o unico que não s~ja indigno de
vós.» (i) Eis-ahi Deus! Qual foi o homem que duvidou jámais da sua
existencia ? Bem póde o impio dizer em seu depravado coração : Não
ha Deus ! mas affirmal-o com sincera convicção, isso nunca : ainda está .
por apparecer o primeiro atheo de boa fé. E de facto, a menos que se
não tenha perdido a razão, como é possível negar um Ser, cuja existencia
se revela com maior brilho que a presença do sol, quando o astro do
dia despede todos os seus raios, em Ceo sereno e limpo de nuvens? Por
isso nos contentaremos, meus filhos, com produzir tres provas sómente
da existencia de Deus. Lº A necessidade d'um Ser criador. Não ba ef-
feito sem causa. Um pala.cio suppõe o architecto ; urrf painel, o pintôr ;
uma estatua, o esculptor; a terra com suas montanhas gigantescas, seus
campos ferteis, seus lagos e rios ; o mar e sua. immensidade, seu movi-
mento regular~ suas encapelladas ondas, seus monstruosos: habitantes; o
Ceo com seus globos luminosos, immensós, innumeraveis; ·suppõem iam-
.bem urna causa· omnipotente, creadora de tantas 'maravilhas.· · ·;
Quem é esta causa? .Acaso tantas obras maravilhosas são a causa de
si uiesmas? .Mas todas VOS respondem em sua eloquente lingua;: ip.;e fecit
nos, et non ipsi nos. Deus é quem nos croou, não fomos nós.mesmos que
nos fizemos. Não, não se fizeram a si, .porque não são Deus; a terra não

(1) S. Gregorio Nazianzen.

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DE PERSEVERANÇA. 29
ê Deus, o inar não é Deus, o Ceo não é Deus, o universo não é Deus :
n'estas creaturas, não ha as propriedades e caracteres incommunicaveis
do Ser por excellencia, a eternidade, a independencia, a immensidade, a
liberdade, a espiritualidade.
Qual é pois a causa que produzio tantas maravilhas? O acaso? Mas
o acaso é nada, é uma palavra vasia de sentido, de que o homem se serve
para occultar a sua ignorancia, como um mendigo d'um farrapo para
cubrir a sua nudez. Com effeito, dizemos que uma cousa se faz por acaso,
para significar que lhe não conhecemos a causa ; a qual nem por isso
deixa d'existir. O acaso portanto é nada; logo não fez o mundo. Qual é
pois a causa creadora do universo? Os homens? Certamente que se não
póde desculpar á historia o descuido de não registrar o nome do astro-
nomo, que fabricou o sol, e engastou as estrellas no firmamento ; o do
geologo, que edificou os Alpes e os Piriqeos ; o do chimico, que fez o
Oceano. Ah! Todos os homens juntos não poderiam fazer um mosquito,
um grão d'area, quanto mais o unirnrso !
Assim, d'uma parte, nem foi o acaso nem o homem que fizeram as
maravilhas que temos diante de nós; d'outra parte, estas admiraveis
obras não existiram sempre, nem se fizeram a si mesmas; porque não
tem as propriedades do Ente necessario ; que nos resta ? senão que são
obra d'aquelle Ser eterno, infinito, todo poderoso, a quem as linguas de
todos os povos chamam Deus ?
2. 0 O testemunho dos homens. Sim, todos os povos lhe deram este
nome, porque todos o povos creram e crêem na existencia de Deus, prin-
cipio de todos os seres. (1) Poderam enganar-se á cerca das suas perfei-
ções e attributos, mas sempre reconheceram a sua existencia. Tornai o
genero humano desde o seu berço, segui-o a todos os climas successiva-
mente; não vos escape nenhum paiz, nação ou familia; passai dos povos
civilisados ás nações barbaras, penetrai nas tribus degeneradas, que plan-
taram suas tendas no meio das arêas da adusta Africa ; ou nas hordas
selvagens, que divagam pelas vastas florestas do novo mundo; por toda

(1) Vejam-se os seus t"'stemunhos em Jacquelot, Tratado de Existcncia. de


Deus, etc.

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30 CATECISMO
'\

a parte ouvireis o nome de Deus; por toda a parte seguireis o genero


humano, se caminhardes na pista dos altares, que levantou á gloria do
Ser supremo; e vos guiardes pelo cheiro 'dos sacrificios, que ofierece
em sua honra· ou pelo entoar dos hymnos e orações, que eleva para o
seu throno eterno. Dai volta ao mundo, mais facil vos será achar uma
cidade edificada nas nuvens, que descobrir algum povo sem a idéa de Deus.
E' preciso que e teja bem arreigada, bem indelevel no coração
humano, esta grande idéa de Deus; para que o homem, sepultado no lodo
da mais grosseiras voluptuosidades, e tornado d'alguma sorte similhante
ás féras brutas, todavia deixe escapar, a pezar seu, o nome de Deus; e
levante para o Ceo os olhos, para a morada d'este grande Ser. E' o reparo
que fazia Tertulliano aos Pagãos do seu tempo. cc Quereis, lhes dizia elle,
que vos prove a existencia de Deus, pelo só testemunho da alma ? Ora
pois ainda que no fundo tl' este carcere de limo, que a retém; ainda que
agrilhoada por uma multidão de preconceitos; enervada pelas paixões e a
concupiscencia; e craYa de falsas divindades; quando a alma torna em si
como d'uma embriaguez, ou enfermidade, e por um instante recupera a
saude, ella proclama Deus; inYoca-o, pelo nome que unicamente lhe con- .
'ém. Grande Deus! Deus de bondade! são as palavras que todos os homens
soltam dos labíos. · Omnium vox est! ó testemunho da alma naturalmente
christãf O' testimonium animae naturaliter christianael E quando assim
falla, não é para o Capitolio que levanta cs olhos, mas para o Ceo; porque
bem sabe que lá é a morada do Deus vivo, que é de lá e d'elle que ella
mesma veio. » (t)
Assim é, o homem e o mundo proclamam á porfia o Ente creador
de todas as cousas; de tal sorte, que a loucura dos atheos, que ousam
subscre-\"'er de má fé contra este duplice testemunho, não é a menor prova
da exi tencia de Deus.
3. 0 A absurdidade do atheismo. Chamam-se atbeos aquelJes que
negam a existencia de Deus. Quereis saber a que ponto o atbeo é
dete tavel, e digno de lastima? escutai o seu symbolo, e o seu De-
calogo.

(1) Apolog. C. XVIII.

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DE PERSEVEl\ANÇA. 3t

Creio tudo o que é incrivel.


Creio que ba effeitos sem causa, paineis sem pintor, relogios sem
relojoeiro, casas sem architecto.
Creio que o primeiro homem se fez a si mesmo, ou que nasceu á
sombra d'um carvalho como um tortulho.
Creio que não ha bem nem mal, vicio nem virtude; que matar meu
pai ou alimental-o é a mesma cousa.
Creio que todos os homens são tolos ; que ba mais razão na cabe-
ça do meu dêdo mínimo, do que jámais houve em todas as cabeças
humanas.
Creio que sou uma besta ; que entre mim e o meu cão não ba dif-
ferença se não que elle tem rabo e eu não.
Este derradeiro artigo é o unico em que o atheo é mais razoavel.
Talvez cuideis que pômos estas absurdidades gratuitamente no Sym-
bolo dos atheos? pois estaes enganados. Não só são ellas a rigorosa con-
sequencia do seu systema, senão que as encontramos nas suas obras cha-
padas por extenso, e em letras gordas. D'est'arte, quando se nega a exis-
tencia de Deus, é preciso engulir todos estes absurdos e ainda outros
peiores ; como vereis agora pelo Decalogo do atheo.
Todas as tuas paixões adorarás ; e a ellas só servirás. E' o
primeiro e o maior dos mandamentos do Atheismo. Com effeito,
visto que não ha Deus, tambem não ha alma, nem dever, nem bem
nem mal, nem Ceo nem inferno ; tudo acaba na morte. Logo bem
beber, bem comer, beill dormir e digerir; é toda a religião, toda a
philosophia: tolo d'aquelle que se não conduz por estes principios.
Eis-aqui o segundo mandamento, não menos importante que o
primeiro: Todos os homens considerarás como obstaculos, ou instrumen-
tos dos teus fins. Co'Uo instrumentos emprcgal-os-has nos teus interes-
ses ; como obstaculos acabarás com elles sem misericordia. E' preciso
um pilão e um almofariz, a fim de o pizar? piza-os sem dó ; é preciso
roubal-os? saquea-os e não largues a preza ; é rreciso desbonral-os ? ju-
ra falsamente e mente com coragem. Bem vêdes que similhante moral
e a moral dos lobos; estabelece a guerra de todos contra todos; faz do
mundo um vasto açougue, e não dá outra protecção IJU a d? Algoz ;

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32 CATECIS~IO

pois estas são as maximas do atheismo; maximas escriptas, assoalhadas,


praticad:is, ao menos em parte; pois que falizmente o homem é sem-
pre melhor que estes pr:ndpios. Tal é o Symbolo, e o Decalogo do athe-
ismo: por isso tornamos a dizer, jámais existiu homem tam tolo que
sustentasse com intima convicção um similhante systema; e negasse, com
a mão na consciencia, a existencia de Deus. Como quer que seja, será
bom recordar aos nossos espiritos fortes o testemunho do genio mais
possante dos tempos modernos. Napoleão, discutindo um día em Santa
Helena sobre a existencia de Deus com um de seus Generaes, expri-
mia-se n'estes termos: «Perguntais-me o que é Deus? Se o conheço,
que signaes tem ? Pois eu vol-o digo. Respondei-me tambem : Como
julgaes vós que um homem tem genio? Acaso é alguma cousa que te-
nhaes l'isto? O geniu é de si visivel? Como é que crêdes n'el!e? Vêdes
o effeito, e do effeito remontais-vos á causa ; procurais, achais, affirmais,
crêdes na causa~ não é assim? Da mesma sorte, no campo da ba-
talha travado o combate, se de repente o plano d'ataqne produz o
effeito pela pro:nptidão e justeza da.s manobras, todos admiram e gri-
tam: é um homem de genio t Na maior confusão, quando a victoria pa-
recia indecisa, qual o motivo porque vós, primeiro que todos, me pro-
curaveis com os olhos ? Sim, vossos labios chamavam-me, e por to-
da a parte só se ouvia este grito: o Imperador? onde está elle? Quaes
são as suas ordens ?
«Que era este grito? Era o grito <lo instincto e a crença geral
em mim.
«Ora tambem eu tenho um instil'lcto, uma certeza, uma crença,
um grito, que a pezar de mim se escapa ; medito, considero a na-
tureza com os seus phenomenos, e digo: Deus. Depois da reflexão
vem um grito espontaneo ; Deus existe. As minhas victorias vos fa-
zem crêr em mim; pois da mesma sorte o universo me faz crêr em
Deus. Creio pelo que vejo e pelo que sinto. Estes maravilhosos effeitos
da Omnipotencia divina não são acaso realidades, tam positivas e mais
eloquentes que as minhas victorias? Que é a mais bella manobra ao
pé do movimento dos astros? Visto que crêdes no genio, dizei ao me-
nos, eu vol-o peço, dizei d'onde vem ao homem de genio a invenção das

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DE PERSEVERANÇA. 33
idêas, a inspiração, o re1ance d' olhos, que só a elle é proprio? Respon-
dei t D'onde vem isso? Indicai-me a causa! Vós a ignoraes, Gão é as-
sim? pois bem, nem eu nem ninguern a sabe; e comtudo, esta singula-
ridade, que caracteriza alguns individuos, não é um facto tam evidente,
tam positivo como qualquer outro facto? Mas, se ha uma tal ditferença nos
espiritos. ha uma causa apparente ; alguem produz esta difierença : não
sois vós, nem en, e o genio não é mais que uma palavra que nada signifi-
ca a respeito de causa. Que me venha alguem dizer: isso é o efieito dos
orgãos : esta parvoice poderá contentar um carabineiro, mas não a
mim, entendeis? ...
Os effeitos provam a causa, e os effeitos divinos fazem crêr na
causa divina. Sem duvida, existe uma causa divina, uma razão sobera-
na, um ser infinito; esta causa é a causa das causas, esta razão é a ra-
zão creadora das intelligencias. Existe um Ser infinito, ao pé do qual
tu, general B... , não és mais que um atomo; ao pe do qual, eu, Napo-
leão, com todo o meu genio, sou um ''erdaueiro nada, um puro nada,
entendeis-me? Este Deus eu o sinto ... vejo-o... careço d'elle ... creio
n'elle... se vós o não sentis; senão crêdes n'elle, oh, tanto peior para
VÓS.» (t)
A' eloquente demongtração d'este grande homem, jantaremos O·
simples mas peremptorio raciocínio d'uma criança. Ha algnns annos
que um rapaz de provincia veio a Pariz, para acabar os seus estudos;
teve a desgraça, como tantos outros, de cahir em más companbias.
Suas paixões, d'accôrdo com os impios discursos de seus companhei-
ros, fizeram-lhe esquecer as lições de sua piedosa mãi, e desprezar a
Religião. Chegou a ponto de desejar, e emfim dizer, como o insensato
de que falia o propheta : Não existe Deus ; Deus não é mais que um
nome. Diga:nol-o de passagem, é sempre assim que a incredulidade co-
meça; esta pl<rnta não lanç:i raízes senão na immundicia. Passados
annos voltou este joven da Capital para o ~eio da sua familia. Um dia
foi convidado para uma casa hone~ta, onde havia urna numerosa com-

(1) Sent. ele Napoleão á cerca do Cbristo, p. 75 e seg.

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CATECISMO

panhia. Quando todos se entretinham com noticias, e prazeres, e ne-


go cios, cuas meninas de doze a treze ann')S estavam lendo sentadas no
vão d'uma janella. Approximou-se a ellas este tal rapaz e disse-lhes :
que romance estais a lêr, minhas meninas, com tanta attenção? Senhor,
nós não lêmos romances. Não t Então que é o .que lêdes ? Lêmos a
historia do povo de Deus. A historia do povo de Deus! Que! pois crê·
des que ha Deus ?
Espantadas por uma tal pergunta, olharam as meninas uma para
a outra, e o rubor lhes subiu ao rosto. Então a mais velha perguntou-
lbe vivamente: e vós senhor, crêdes que não ba Deus? Outr'ora sim,
quando era como vós; mas depois que estive em Pariz, e estudei a phi-
losophia, as mathematicas, a politica, convenci-me que Deus não é mais
que uma palavra. Pois eu senhor, nunca estive em Pariz, não estudei
as philosophias, nem as mathematicas, nem todas as linrlas cousas que
vós sabeis, não conheço senão o meu Cathecismo; mas, já que sois tam
sabio, e dizeis que não ha Deus, não fareis favor de me dizer d'onde
vem um ovo?
A menina pronunciou estas palavras bem alto para que uma
parte da sociedade a ouvisse. Algumas pessoas approximaram-se logo
para saber de que se tratava, apoz d'esta. foram outras, e por fim
toda a companhia se reuniu em derredor da janeaa, para assistir á
conversação. Sim, senhor, tornou a menina, já que dizeis que não ha
Deus> tende a bondade de me dizer d' onde vem um ovo? Bella pergunta!
Um ovo vem d'uma gallinha. E d'onde vem uma gallinha? A menina
o sabe tam bem como eu, uma gallinha vem d'um ovo. Muito bem,
mas qual dos dous existiu primeiro, o ovo, ou a gallinha? Na ver-
dade que não sei o que quereis vir a dizer com os vossos ovos e
as vossas gallinhas; mas emfim, d'estas duas cousas a que existiu
primeiro foi a gallinha. Logo ha uma gallinba que não veio d'um
ovo? Ah! perdão, eu não reparava; é o ovo que existiu primeiro.
Logo ha um ovo que não veio d'uma gallinha? Respondei, senhor.
Ah f l\fas ... Esperai ... E' porque... Perdão... Reparai que ... O que eu
vejo senhor, é que vós ignorais se o ovo existiu antes da gallinha,
ou se a gallinha antes do ovo. Pois bem, eu digo que foi a gallinha.

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DE PERSEVERANÇA. 35
Seja, logo ha uma gallinha que não veio d'um ovo; agora dizei-me :
quem creou esta primeira gallinha, da qual depois vieram todas as
gallinhas e todos os ovos? Com as vossas gallinhas e os vossos ovos,
parece que me quereis tomar por uma saloia. Perdoai, senhor: eu
só vos peço que me digaes d'onde veio a mãe de todas as gallinhas,
e de todos os ovos. Mas emfim... Pois já que não sabeis, d;Ji-me
licença que vol-o ensine. Aquelle que creou a primeira gallinha,
ou o primeiro ovo, como quizerdes) é o mesmo que creou o mundo; e
este Ser, é o que chamamos Deus. Pois que, senhor, vós não podeis, sem
Deus, explicar a existencia d'um º''º ou d'uma gallinha, e pretenderieis,
sem Deus, explicar a existencia do universo !
O joven ímpio não quiz saber de mais nada; agarrou furtivamente
no chapeu, e escoou-se, corrido como o leão que sahiu sendeiro ; ou
como aquelle que vai buscar lã e vem tosquiado. (t)
Da existencia de Deus passemos a suas adoraveis perfeições.
Deus é um espírito infinito, eterno: incomprehensivel, que está
em toda a parte, que vê tudo, que póde tudo, que creou tudo por
sua Omnipotencia, e tudo governa por sua sabedoria. Quem diz Deus,
diz o Ser por excellencia, o Ser propriamente dito, o Ser infini-
tamente perfeito. D'esta noção incontestavel deduzem-se, por uma
serie de consequencias evidentes, todos os attributos essenciaes da di-
vindade.
Lº A eternidade. Pois que Deus é infinitamente perfeito, resulta
que não ha principio anterior á sua existencia, que elle é de per si
mesmo, e pela necessidade do seu ser. Se Deus não se deu a si mes-

(1) A este caso ainda podemos ajuntar outro. Ha muito pouco tempo, que um
dos nossos pretendidos atheos fazia jornada n'uma diligencia publica. Por todo o
caminho, que foi longo, não cessou elle de aturdiar os viajantes com a sua algaravia
impia. Chegando a uma estaç.ão espreita. pela portinhola e vê as raparigas que sa~
hiam do collegio das irmãs de 8. Vicente de Paula. Endereçando-se à que vinha
mais proxima: ó pequerrucha ! lhe diz com ar de zombaria, se me dizes o qu~ é
Deus dou-te cinco reis. A menina conhecendo que elle a queria metter a bulha,
adianta-se, approxima-se da carruagem e diz-lhe: Deus é um puro espírito, e V. S.
não é mais que uma besta. A isto fez-lhe uma grande mesura e se foi rindo ajun-
tar-se ás suas companheiras. Como ficou o impio é facil imaginar-se.

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36 CATECISMO

mo o ser, nem o recebeu d'um principio externo, logo o Ser é elle


mesmo; logo é eterno, isto é, nem teve principio nem fim. Elle é,
eis o seu nome : Eu sou aquelle que sou, definição sublime, incom-
municavel, que elle dá de si mesmo : Ego Jehovah. Este é o meu
nome na Eternidade. (l) Aqui nos cumpre reflectir que somos as
imagens de Deus, obrigados a reproduzir em nós as perfeições d'este
divino modêlo, a·ssim como está escripto : s~de perfeitos, assim como
vosso Pai celeste é per{eito. (2) Para imitar esta primeira perfeição, res-
pondamos a todas as creaturas finitas, transitorias, quA vierem solicitar
o amor do nosso coração: Eu sou maior que vós, nasci para maiores cou-
sas, sou immortal; e só a Deus devo considerar como meu thesouro no Ceo.
2. 0 A independencfa, pois que Deus é o Ser por excellen.cia, o
Ser infinito, não póde ter nem superior nem igual, porque se. 9 ti-
vesse serja limitatlo, imperfeito, e Jogo não seria Deus. Como imagens
suas, releva que sejamos santamente independentes dos homens, das
creaturas, de nossas paixões; em uma palavra, de tudo aquillo que não
é a vontade de nosso unico Senhor.
3. 0 A immensidade. Pois que Deus é o Ser infinito, segue-se que
não póde ser limitado por nenhuma causa, por nenhum tempo, por
nenhum lugar, em nenhuma de suas perfeições; infinito em todo o
sentido, é por isso immenso bem como eterno. Creados á sua imagem
imitemo~ o nosso modêlo pela immensidade de nossa charidade e de
nossos bons desejos.
i.º A unidade. Po~s que Deus é o Ser infinito, logo é unico; que
póde haver aiém do infinito, senão o nada, ou imagens do infinito? Se-
jamos pois como el1e, imagens suas; seja Deus tudo para nós como é
para si mesmo. Seja tamb em nossa a divisa do Seraphico S. Francisco :
Deus é o rneu tudo.
5. 0 A irmnutabilidade. Pois que Deus é o Ser infinito, nada pó-
de perder, nem adquirir, não póde modificar-se, nem mudar, nem
ter pensamentos novos, ou vontades successivas; logo é immudavel.
O nosso dever, como imagens suas, é sermos immudaveis na verda-
(1) Exodo, III, 14.
(2) Matb. V, 48.

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DE PERSEVERANÇA. 37
de, cbaridade e prática das virtudes : ai d'aquelle cujo coração é incons-
tante!
6. 0 A liberdade. Pois que Deus é infinito, nenhuma causa ex-
terna póde impecer as suas operações. Deus pois creou livremente
o mundo em o tempo_, sem que isso fosse para elle uma acção ou
um designio adventicio; assim o qniz desde toda a eternidade, e o
effeito seguiu-se no tempo : tam livremente como creou, assim lam-
bem governa o mundo. Imagens suas, jámais as vergonhosas cadeias
do peccado não venham r0trnar-nos as mãos ou intorpecer-nos os
pés: como poderemos ser filhos de Deus e curvar a cerviz ao jugo
de Satanaz?
7. 0 A espiritualidade. Pois que Deus é infinito, segue-se que não
tem corpo; porque todo o corpo é limitado, imperfeito, sujeito a mu-
danças e dissoluções. Logo Deus é um puro espírito. Ente simples,
invisivel, bem qne presente em toda a parte, sem mistura e sem fór~
ma, nem póde ser visto pelos nossos olhos, nem palpado pelas mãos,
nem percebido por alguns dos nossos sentidos. Por isso, quando ouvir-
des fallar das. mãos, braços, pés, ouvidos_, e olhos de Deus ; quando ou-
virdes attribuir-lhe sentimentos de cólera ou odio não se ,-.,s metta em
cabeça que estas expressões se tomam ao pé da letra, na accepção ma-
terial ou humana; taes locuções são metaphoricas; a magestade divina
digna-se abater-se por este modo á esphera de nossa fraca intelligencia ;
o mesmo succede todos os dias entre nós. Quando nos encontramos com
homens pouco civilisados, de proposito empregamos a sua mesma lin-
guagem a fim que nos entendam. Por isso quando se falta das mãos. bra-
ços, ouvidos, ou olhos de Deus, quer-se dizer por suas mãos, que elle
faz tudo; pelos braços, que póde tudo; pelos cuvidos, que ouve tudo;
pelos olhos, que vê tudo; pelo odio ou cólera, que não póde soffrer o
peccado, que o pune tanto como merece. Imagens como somos de Deus,
sejamos corno anjos em nossos corpos mortaes, seja sempre dominada
em nós a vida dos sentidos pela vida do espírito; até ao ditoso dia, em
que uma e outra serão absorvidas pela vida de Deus, ao qual nos tere-
mos feito similhantes.
8. 0 A intelligenC'ia. Pois que Deus é infinito, segue".se que sabe e

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38 CATECISMO

conhece tudo, o passado, o presente, e o futuro : ou antes que não ba


para Deus nem passado nem futuro. O mundo é um de seus pensamen-
tos ; elle o comprehende com uma penetração mil e mil vezes superior
áquella com que nós comprehendemos e penetramos os nossos proprios
pensamentos.
Por isso que Deus vê tudo no presente, segue-se que o conhecimento
que tem das acções humanas em nada prejudica a nossa liberdade. Com
effeito, as acções do homem não se fazem por isso que Deus as vê; senão
que Deus as vê porque se fazem. Sustentar o contrario seria absurdo e
blasphemo; absurdo, porque se pretenderia que Deus vê o que não existe;
blaspbemo, porque se aniquilaria a liberdade do homem.
Vê-se isto claramente : Se as acções do homem se fazem porque
Deus as viu, deviam de realisar-se quer quizessemos, quer rião ; d'outra
s011e Deus se teria enganado, e seria rigorosamente logico, por exem-
plo, este raciocinio: ou Deus previu qui:! morrerei dentro d'um mez, ou
não previu; se o previu, por mais que eu faça, por mai~ precauções que
tome, morrerei ; se, pelo contrario, Deus o não previu, por mais que eu
faça, por mais imprudencias que commetta, ou já recuse toda a especie
d'alimentos, "Ou já me precipite do alto d'uma torre, por nenhum modo
hei-de morrer. A absurdidade de tal raciocínio dá a conhecer quanto é
absurda esta proposição : que as acções humanas são necessitadas pela
presciencia divina. Imagens de Deus, vejamos como elle d'um relance
d'olhos o passado, para termos motiYo de no:'.\ humilhar, e dar graças á
sua Providencia ; o presente, para d'el1e tirarmos provei!o; o futuro, para
nos precavermos. E pois que Deus vê tudo, lembremo-nos que elle nos vê.
Deus vê tudo que eu faço ! Estas palavras tem evitado e continuarão
a evitar mais crimes que todos os prégadores e missionarios juntos. A
lembrança de que Deus está em toda a parte inunda, para assim dizer,
a alma de religião, respeito, confiança e amor ; a idéa da presença de
Deus é para o espirita meditativo a eschola de todas as virtudes. Os san-
tos e Patriarchas do Antigo Testamento cuidavam muito em andar sempre
n'esta santa presença. Viva o Senhor em cuja presença estou. (t) Tal era

(1) III Reis. XVII.

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DE PERSEVERANÇA. 39
a sua divisa, o seu brado de guerra, a sua expressão familiar. David t:ião
se contentava com o louvar sete vezes por dia : Eu tinha, diz elle, o
Senhor sempre presente a meus olhos, porque sei que elle está sempre á
minha direita, para impedir que nada me perturbe. (t)
Porque não imitaremos estes grandes homens, mestres e modêlos
nossos 'l Que cousa mais propria que esta lembranç.a da presença de Deus
para nos incitar ao bem, consolar nos trabalhos, firmar e sustentar no
dever? Quem ousaria fazer diante de Deus o que se envergonharia de
praticar diante d'um criado? A todas as perfeições de que acabamos de
fallar, · accrescentaeo poder, a santidade, a bondade, a misericordia, a
verdade, a justiça, e tudo isto no gráo mais elevado ; e tereis o Ente a
quem a Jingua de todos os povos chama Deus. (2)
Quanto é grande! Mas ao mesmo tempo quanto é bomr Porque todas
estas adoraveis perfeições as faz Deus servir a bem do homem e das
creatoras. Não abandonou elle o mundo ao acaso depois de o haver tirado
do nada ; mas como um rei governa os seus Estados, ou um pai sua fa-
milia, assim governa Deus o mundo. Este pensamento natural nos conduz
á sua Providencia.
Comecemos pois por definir claramente esta bella palavra, que tantos
pronunciam sem lhe conhecerem a significação. A Providencia é o gouerno
de Deus em o mundo, ou ~a acção de Deus sobre as creaturas, para as
conservar e conduzir ao seu fim. Suppõe ella o exercício de todas as
perfeições divinas. Maiormente o poder, sabedoria e bondade, estendem-se
a todas as creaturas, assim as maiores como as menores; por outras pa-
lavras, Deus vela igualmente o mooarcha e o escravo, o velho e o menino;
os corpos immensos que rolam pnr sobre nossas cabeças e o insecto que
roja a nossos pés. Conserva igualmente uns e outros, a todos igualmente
dirige ao seu fim.
Ora, ha duas especies de creaturas, materiaes, e espirituaes. Por
onde, a Providencia ou se dirige á ordem physica ou moral.
A Providencia na ordem pbysica é acção pela qual Deus conserva e
(1) Psal. XV, 8.
(2) Veja-se Fenelon, da Exi stencia de Detts j Bergif~r, al't. Deus j S. Thomaz
p.1,q.2.

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40 CATECISMO

dirige ao seu fim todas as creaturas; o Ceo, a terra, o mar, as plantas e


os animaes.
A Providencia na ordem moral é a acção pela qual Deus conserva
e dirige ao seu fim os seres espirituaes, os anjos e os homens.
Comprehende-se facilmente que as leis da Providencia, que regem
as creaturas inanimadas, não são as mesmas que governam as creaturas
racionaes e livres. A'quellas impõe Deus a sua vontade sem lhes dar a
liberdade de se desviarem d· ella : d' est'arte o sol não tem a liberdade de
se levantar ou esconder no horisonte ; senão que todos os dias o faz
necessariamente; da mesma sorte, o mar não tem a liberdade de operar
ou não operar o seu movimento quotidiano ; nem os animaes tem a liber-
dade de mudar os seus usos e maneira de viver. O contrario succede ás
creaturas racionaes; Deus deu-lhes leis que lhes manda observar, pro-
mettendo-lhes recompensas ou castigos; mas não as força; senão que as
podem violar ou cumprir como quizerem. Sendo pois livres, devem hon-
rar a Deus submettendo o espírito e o rioração voluntariamente a suas
soberanas idêas.
D'aqui resulta, que as creaturas ir.animadas attiogem necessariamente
o fim para que foram creadas. Não ha para ellas merito nem demerito,
nem bem nem mal; e por consequencia, nem recompensas nem casti-
gos.
Pelo contrario, as creaturas racionaes ora alcançam, ora se desviam
do seu fim, pelo livre exercicio de sua vontade; assim que, para ellas
ha merito e demerito, bem e mal; por conseçuencia, recompensas e cas-
tigos.
Ora, o ultimo fim, a que a Providencia conduz as creaturas mate-
riaes ou espirituaes, é a gloria de Deus; isto é, a manifestação de suas
perfeições adoraveis. Eis-aqui porque David nos diz: os Ceos narram a
gloria de Deus, e o firmamento publica as maravilhas do seu poder. (t)
O mesmo succede com a terra, o mar, os animaes, e a mais pequena ber-
vinha, que é impossível estudar sem que ella manifeste o poder, a sabe-
doria, a bondade infinita de seu Creador. O fim ultimo do homem é taro-

(1) Psal. XVIII, 1.

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DE PERSEVERANÇA.

bem a gloria de Dens. Foi elle creado como um bello espelho onde se
reflectissem todas as perfeições do celestial artifice. Basta vêl-o para ado-
rar em silenciosa admir~wão o supremo Ente que o fez apparecer na exis-
tencia.
Além d'este fim ultimo que é a gloria do seu author, todos os seres
teem um fim particular; este, nas creaturas inanimadas é o bem do ho-
mem, por isso todas se referem a elle e o servem em seus usos. Quanto
ao homem, este fim particular é a sua salvação, isto é, a sua bemaventu-
rança eterna : se elle glorificar a Deus na terra, Deus promette-lhe em
recompensa glorificai-o na eternidade. Mas quer o homem opere ou não
a sua salvação, nem por isso deixará Deus de conseguir o ultimo fim
para que o creou ; por quanto, se elle recusar ser um monumento da sua
bondade, será um padrão ela sua justiça; e Deus ficará igualmente glo-
rioso; porque de qualquer maneira, se m3nifesta a saa bondade, justiça,
sabedoria e omnipotencia. ('1) Assim como o sol, que não é menos lumi-
noso e beneficente, quando fechamos os olhos para não vêr o resplendor
de seus raios, ou buscamos a sombra para fugir a seu abrazado ardor.
Todavia, Deus que é a bondade mesma, quer com toda a efficacia do seu
amor que o homem livre consiga a bemaventurança eterna, e proporcio-
na-lhe para este fim todos os meios. Tal é a idêa que 'devemos ter da
Providencia; agora mostremos que ella existe.
Existe uma Providencia na ordem physica ; isto é, Deus conserva e
dirige todas as creaturas materiaes ao fim para qne as creou, que é a sua
gloria e o bem do hoi.nem. Esta Providencia não se exerce sómente no
todo do universo, mas estende-se tambem a cada uma das partes que o
compõem, ainda as mais pequenas; a cigarra, a formiga, o oução, a her-
vinha ; vejamos as provas.
t. 0 Quem melhor que o mesmo Creador poderá revelar-nos a exis-
tencia da Providencia? Ora, eis-aqui os seus oraculos; e~cutemos com
(1) Nec ideo credant iniqui. Deum non esse omnipotentem quia multa contra
ejus faciunt voluntatem; quia et cnm faciunt quod non vult, hoc de eis facit quod
ipse vult. Nullo modo igitur Omnipotentis vel mutant vel superant voluntatem:
sive homo juste damnetur, sive miseric01·diter liberetur, voluntas Omoipotentis im-
pletur. Aug. serm. 214.

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42 CATECISMO

attenção e recolhimento: A minha sabedoria altinge o seu fim com cer·


teza, conduz todas as cousas com suavidade. (1)
Em outra parte, o Propheta exclama: Senhor, não ka outro Deus
senc7o rós, que tendes czeidado de tudo que existe. (2) Mas escutemos as
formaes palavras do mesmo Filho de Deus, que nos exhorta, para nos
com·enr,ermos da existencia da Providencia geral, e particular no mundo
physico, ainda a respeito das mais pequenas creaturas: vt!de, nos diz elle,
as aves do Ceo, que nem semeam nem colhem, e o vosso Pai celeste as
alimenta. (3) Seria preciso citar toda a historia Sagrada, se quizessemos
trazer aqui todas as passagens, que mostram como Deus dispõe dos ele-
mentos, dirige, como Senhor, ao bem do homem e á sua gloria, a natu-
reza toda ; o sol que move ou faz parar; os mares, que intumece ou
acalma; o raio, C!_Ue acende ou extingue.
2. º Todo os porns reconheceram a Providencia na ordem physica.
Não é clmidosa a fé, a este respeito, assim dos Jndeos como dos Chris-
tãos; os mesmos Pagão5, com quanto infleis depositarios da revela-
ção, admitlem este sagrado dogma. Apezar dos erros famigerados d'al-
gumas seitas philosophicas, tam pouco credito lhes davam, pelo que
diziam sobre o acaso, a fatalidade, o cégo destino ; que pelo contrario,
levavam ao extremo da superstição a crença, que tinham, do governo
do mundo physico por seres intelligentes, superiores ao homem; por
onde, em sua opinião, cada elemento, cada parte do universo, estava
encarregada a um deus ou agente da divindade. Este o motivo porque
imaginaram deuses por toda a parte, e de todos os generos; deuses
do Ceo, da terra, do mar, do fogo, das fontes, das florestas, das estações,
das colheitas, das vindimas, de tudo e em tudo.
3. 0 Mas, pondo de parte todas estas razões; perguntar se ha uma
Providencia na ordem pbysica, por outras palavras, se ha leis para a
conservação e direcção do universo, e de cada uma das creaturas ma-
teriaes, é suscitar uma questão, cuja solução não poderia offerecer duvi·

(1) Sap. VIII, 1.


(2) Id. XII, 13.
(3) Math. VI.

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DE PERSEVERANÇA.

das a quem tiver olhos para vêr. Com effeito, a successão constante dos
mesmos phenomenos suppõe necessariamente uma causa constante que
os produz: Ora, esta causa constante chama-se lei; porque a lei conhe-
ce-se pela permanencia dos effeitos.
Se vêmos pois, no universo, effeitos que se produzem sem-
pre os mesmos; se, por exemplo, o sol quotidianamente se levanta,
para percorrer o mesmo giro; se constantemente illumina e fecunda
a natureza; d'isto sem duvida concluimos que ha uma causa con-
stante d'este facto, e logo dizemos : ha uma lei em virtude da qual o
sol nasce todos os dias. Da mesma sorte, se percorrermos todas as
partes do universo, a terra e os animaes que o habitam, e o re\!es-
tem ; o mar e o movimento que o agita, e os peixes que o povoam ;
e por toda a parte descobrirmos effeitos constantes e mil vezes repeti-
dos, d'ahi conclnirnos que ha causas constantes, princípios de todos estes
factos, e logo dizemos : ha leis que produzem todos estes phenome-
nos.
Ora, o universo, estudado que seja na infinidade das creaturas que
o compoem, offerece-nos sempre o mesmo espectaculo: logo devemos
concluir que ha Jeis concernentes á conservação e governo geral _do
/ mundo physico e de todas as creaturas em particular.
Resta-nos saber quem estabeleceu estas leis; porque não ha 1eis
sem legislador. O legislador tam poderoso e sabio do universo ou é Deus,
ou o homem, ou o acaso : aqui não ha meio termo. Ora, o acaso não
póde ser, porque o acaso é nada; o homem tambem não, isto sabemos
nós bem: logo é Deus; logo existe uma Providencia divina que governa
o mundo phys.ico.
Será bom fazer sobre isto dous reparos : f. º Assim como Deus
foi livre em estabelecer as leis do mundo physico, assim tambem será
em as derogar, e elle o faz quando lh'o pedimos. Por isso, quando as
calamidades, a peste, a fome, as inundações, a sêcca e outros flagellos
nos ameaçam ou affiigem, pedimos a Deus que os faça desapparecer e
apar:tar de nós ; e em identicas circumstancias. todos os povos usaram .
a oração. 2.º A constante repetição dos mesmos effeitos deve-se tam
pouco .ao acaso, que os impios, apostolos decididos d'esta divindade cé-

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CATECISMO

ga: jámais lb'os attribuem, ainda nas mais pequenas cousas; sirva-nos de
prova a seguinte anedocta.
Os philosophos do seculo passado reuniram-se certo dia todos em
casa d'um d'elles. Depois d'uma ceia adubada d'atheismo, propoz
Diderot que se nomeasse um advogado de Deus ; e com effeito no-
mearam para isto o celebre padre Galiani. Sentou-se elle, e começou
assim: «Um dia, em Napoles, um certo homem botou seis dados n'um
copo, e apostou levar rifa de seis; levou a primeira. Ora este lance era
possivel. Tornou a deitar os dados no copo tres, quatro, cinco vezes,
e sempre rifa de seis : Bacch.o, gritei eu, os dados estam furados, e
com effeito o estavam. Mêns philosophos, quando considero a ordem
sempre renascente da natureza, as suas revoluções sempre constantes
em uma variedade infinita, este lance unico e conservador d'um mundo
tal como o que vêmos, que se reproduz incessantemente a pezar de mil
e mil outros lances de perturbação e destruição, não posso deixar de lhe
dizer : a natureza está furada.» Este chiste original e sublime fez emmu-
decer os adversarias da Providencia.
Não daremos aqui maiores desenvolvimentos ás provas da Provi-
dencia no mundo physico: reservamo-nos para quando tratarmos da obra
dos seis dias. Passemos agora á Providencia na ordem moral.
Ha uma Providencia na ordem moral; por outras palavras, Deus
conserva e dirige as creaturas racionaes, os homens e os anjos, ao 6m
para que os creou, a salvação d'elles e a gloria de Deus. Vamos tratar do
homem em particular.
Notamos primeiro que, assim na ordem moral como na physica,
ha uma Providencia geral e uma Providencia particular. A priméira é
a acção pela qual Deus dirige o genero humano ; isto é, os imperios,
os grandes successos, as grandes revoluções do mundo, á sua gloria, e
salvação do genero humano. O Catecismo de Perseverança, começando
da creação do priµieiro homem até cs nossos dias, será a magnifica his-
toria d'esta Providencia que, antes de Jesu-Christo, encaminha todos
os successos para o cumprimento do grande mysterio da Redempção;
e que, depois da vinda do l\Iessias dirige ainda todos os suceessos á
conservação e propagação da obra reparadora. Estamos por tanto

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dispensados de provar aqui a Providencia geral na ordem mo-


ral.
Quanto ã Providencia particular , se lhe quizessemos dar a pro-
va historica, seria preciso contar a historia de cada povo, familia e indi-
viduo. Veriamas Deus, que é luz das nações, das familias e dos homens
todos quantos vem ao mundo, revelando e conservando as verdades
que devemos trêr, impondo deveres e dando meios de os praticar.
'1êl-o-hiamos foliando todas as linguas, usando de todos os estilos, propor-
cionando a manifestação de suas leis ã fraqueza, idade, instrucção dos
povos, familias e individuas. Vêl-o-hiamos sanccionando suas vontades
pela promessa de recompensas, ou ameaça de futuros castigos : e não
só futuros, senão que desde logo punindo ou recompensando as nações e as
familias, assim como são doceis ou rebeldes. Admiravel estudo l que
forçosamente nos conduz a esta conclusão, prova demonstrativa da Pro-
videncia : a historia de cada povo resume-se em quatro palavras : virtu-
de e recompensa, crime e castigo ; por outra : a fidelidade ás leis di-
vinas, que regem as nações, traz comsigo o bem publico; a infidelidade
porém, produz o mal e a mi.3eria publica. Eis-aqui d'um lado a lei, do
outro a sancç~o ; eis a Providencia ; porque este facto reproduz-se
sempre invariavelmente, em todos os pontos do globo, por mais que
nos remontemos até o escuro dos tempos. Oh! Sim, é a virtude que fe-
licita as nações, é o peccado que as torna desgraçadas. (1)
Immortal inscripção da Providencia, que deveria ser gravada na
frente de todas as constituições dos povos, assim como está escripta em
cada pagina de sua historia.
Se passarmos da ordem social ã vida domestica, verêmos esta mes-
ma lei cumprir-se em relação a cada familia ; e a nossa propria con-
sciencia nos diz que se verifica da mesma sorte em cada um de nós. (2)
As excepções confirmam a regra, e provam a eternidade, onde Deus da-
ra a cada um segundo as suas obras.

(1) Justitia elevat gentem, miseros populos facit peccatum. Prov. XIV, 34.
(2) Quando escrevêmos isto, em Nevers, a 19 de dezembro de 1840, condu-
ziam ao cadafalso uma mulher que envenenou seu marido.
H

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46 CATECISl\IO

A estas observações ajuntaremos outras provas da Providencia :


1.º O mesmo testemunho de Deus. Mil vezes, no Antigo Testa..
mento, exhorta el:e o homem, sua creatura bem amada, a pôr n'elle
toda a sua confiança, a deixar ao seu cuidado todas as solicitudes
da vida ; assegura-lhe que vela sobre elle, como a pupilla de seus
olhos. Empregando as mais graciosas imagens, ora se representa para
com o homem como um pastor com as suas ovelbas ; ora como um
pai que se levanta de madrugada para trabalbar e grangear o pão
de seus filhos; ora como um amigo que deseja que lhe faltemos com
intima familiaridade. Emfim, impõe-nos o dever sagrado de recor·
rer a elle em nossas necessidades temporaes e espirituaes. A mais
completa e tocante prova da Providencia é a oração, que seu dh·ino
Filho se dignou ensinar-nos : Padre nosso que estaes nos Ceos, &e.
Assomam as lagrimas aos olhos quando ouvimos este Deus, feito nos. .
so irmão, pedir-nos com instancia que ponhamos tot.la a nossa con•
fiança em nosso Pai commnm: pedi e recebereis, procurai e achareis,
etc. Pois que 1 Se vós, que sois imperfeitus, sabeis dar a vossos filho'
os bens que vos pedem, quanto niais vos não dará vosso Pai celeste os
bens que lhe pedirdes 1 Em verdade vos digo, tudo o que pedirdes com
fé vos será dado. (l)
2. 0 O testemunho de todos os povos . .A' voz do Ceo junta-se a
da terra, para prodamar o dogma consolador da Providencia, na ordem
moral. Os Judeos, os Christãos, os Pag3os mesmos, são unanimes
n'este poato fundamental. Todos crêram que eram governados por um
Deus que se irrita pelo crime e se ton~a propicio pela virtude. Cuja
justiça póde abrandar-se ou tornar-se favoravel. Esta a causa das ora-
ções, dos sacrificios, e emfün d'uma Religião em todos os povos ; á
vista d'este facto universal, um dos nossos mais celebres theologos
exclama: «0 dogma da Providencia é a crença do genero humano;
o culto dado á Divindade, em todos os tempos e lugares, attesta a con-
fiança que todos os homens teem, em o poder e cuidados do Creador.
Por instincto natural levantamos os o:hos para o Ceo nos trabalhos e

(1) Veja·se todo o capitulo VI de S. Matht:us.

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DE PERSEVEílANÇA. 47

necessidades da vida; os mesmos insens=itos demonstram, por suas blas-


phemias contra a Providencia, que crêem n'ella. E' isto que Tertulliano
chama o testemunho d'uma alma naturalmente Christã. (1)
3. 0 A Providencia na ordem physica é uma demonstração da Pro-
videncia ·na ordem moral. Com effeito, se, como o prova o espectacu-
lo do universo, Deus tem tanto cuidado das creaturas inanimadas, do
passarinho que custa dous obolos um par, da hervinha que nasce pela
manhã e fenece com a noute ; se véla com tanta solicitude em nos-
sos corpos, qne nos não cabe um cabello da cabeça, sem sua permis-
são ; se provê com tanta fidelidade ao nosso alimento e vestido ; se
todos estes cuidados não são indignos d'elle ; como o será occupar-se
d'uma creatura, mais nobre que todas as outras, obra prima de snas
mãos, sua imagem ''iva, para a qual todas as creaturas physicas rece- I
beram a exislencia' Se elle dá o alimento aos filhinhos dos corvos, que
o chamam com Eens gritos, corno recasará a verdade, este nobre ali~
mento d'alma, ao homem que lh'o pede ? Em quanto que estabeleceu
leis para a canse nação das creaturas materiaes, abandonaria ao acaso,
como navio sem leme nem bussola, as creaturas intelligentes, unicas
capazes de lhe render homenagens dignas d'elle? E ao passo que se
mostra tam paternal com o insecto, não terá olbos, nem ouvidos, nem
mãos, nem coração, para o homem' Oh f Não, mil vezes não, repe-
- tem d'uma extremidJde do mundo a outra, assim as gerações vivas,
como as gerações sepultadas no pó dos tumulos. Pensai-o é um cri-
me, blaspbemia dizêl-o !
Pó de ser encontreis homens perversos, que para abalar ''assa fé
em a Providencia, vos dirão : que pretender que Deus véle em to-
do o mundo é impôr-ihe mui penosa tarefa. Respondei-lhe com uma
só pergunta: Por ventura é penoso ao sol esclarecer a natureza 1
Quiçá vos dirão ainda: que é indigno de Deus occupar-se com tam
fracas e imperfeitas creaturas. Respondei-lhe afoutamente: Não sabeis
o que dizeis. A conservação do mundo não é mais que uma creação

(1) Bergier 1 Tratado da verdadeira Rcligiifo. t. II., 244. - Tertullianus, já


citado.

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48 CATECISMO

continuada; se não foi indigno de Deus começar o milagre, onde estâ


a indignidade de o continuar? Pelo contrario, se o milagre da creação
não durou mais que seis dias, o da conservação já dura ha seis mil an-
nos : logo é muito mais glorioso para Deus a conservação do universo
do que a mesma creação. (t)
Talvez ainda vos perguntem: como succede pois que a virtude
é desgraçada ao passo que o vicio é triumphante? Respondereis pri-
meiramente, com todos os povos, que nem tudo acaba n'este mun-
do ; que ha uma vida futura, onde todas as cousas tornarão a entrar
na ordem, porque alli receberá cada um segundo merece; que Deus
pune algumas vezes o' crime n'este mundo, a fim que não duvidemos
da sua Providencia; e que nem sempre o pune, a fim que não du-
\
videmos do juizo futuro. Podereis ainda dizer, pondo de parte a
vida futura, que é falso que a virtude não seja mais feliz ainda mes-
mo n'este mundo do que o vicio; e podereis fazer o inventario dos
males que pezam sobre a humanidade. 1.º Ha males que são com-
muns a todos os homens, taes como a fraqueza na infancia, a de-
crepitude na velhice, a morte. Até aqui a sorte da virtude é ao
menos igual á do vicio. Ha muitas molestias e miserias que são ef-
f eito do peccado ; o maior quinhão logo se vê que pertence ao vicio-
so ; porque o viciosa é imm oderado, imprudente, violento, estra-
gado ; todos estes vicias são para elle outras tantas causas de miseria
e enfermidade, ao passó que as virtudes contrarias são outros tan-
tos mananciaes de bem estar para o justo. 3. 0 Ha uma especie de
penas, a que maiormente devemos attender, para comparar e apreciar
a sorte do justo e do malvado: fallamos das penas que sanccionam
as leis humanas, applicadas pelos magistrados. Para quem são fei-
tas? Para o innocente, ou para o culpado? Bem sabemos que por
vezes succede condemnar-se o innocente ; é desgraça muito do tem-
po, deploravel excepção da ordem : mas no curso ordinario das
cousas, os golpes da Justiça cabem sobre o culpado. 4. º O soffri-
meRto é tanto mais doloroso quanto é menor a resignação. Ora,

(1) E' pe~samento de S. Chrysostomo.

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DE PERSEVERANÇA.

quem tem mais resignação? o malvado ou o homem de virtude ~ Quem


despede mais agudas queixas? Por quem são commettidos os tres mil
suicidios, que a França conta annualmente, ha vinte annos? Assim fei-
tas as contas, o homem de bem soffre menos que o malvado, e basta
isso para ninguem ter o direito d'accusar a Providencia d'uma especie
d'injustiça, quando lhe imputam que ella faz n'este mundo a condição
da virtude peior que a' do vicio.
Finalmente, talvez ignoreis que interesse tem esta casta de gente
em negar a Providencia? vamos revelar-vos este vergonhoso segre-
do ; ou antes são elles que o deixam vêr a seu pezar : Se o dogma
da Providencia é a consolação do justo, tambem é o terror do mal-
vado. Por isso dizem : que Deus não se abaixa a occupar-se do ho-
mem; que pouco lhe importam as nossas acções, que em nada ·per-
turbam a sua felicidade. Nada custa a perceber que este modo de
fallar nasce d'um coração corrompido, que nada mais deseja que
entregar-se ao mal sem .temores nem remorsos ; e isto basta para o
tornar suspeito. Mas tendes vontade de o refutar ? Dizei-lhe : é cousa
para admirar que vos queiraes subtrahir a todos os deveres para com
o Creador, allegando para isso as razões que mais vos obrigam, e cul-
pam. Recusaes adorar a Deus ; e porque? Porque elle é muito gran-
de, muito perfeito, isto é, muito digno que o adorem r Recusais obe-
decer a Deus ; e porque ? Porque é muito poderoso. muito sabio, isto
é, porque tem muito direito á nossa obediencia 1 Recusais amar a Deus ;
e porque? Porque é muito justo, muito santo, muito bom, isto, é,
muito amavel 1 Não nos devemos admirar que, tendo allegado razões
tam peremptorias, estejaes muito socegados á cerca do formidavel jui-
zo que decidirá da vossa sorte por toda a eternidade ? Dizeis tambem :
que Deus é indifferente aos nossos crimes ; porque não perturbam a sua
felicidade. E o escravo, que dispára a frecha homicida contra seu
amo ; o filho desnaturado, que levanta contra seu pai as mãos sacrile-
gas; são por ventura menos cuJpados por isso que não conseguiram o
seu damnado intento ?
Não é o exito que faz o crime, porém a intenção e vontade de o
perpetrar.

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üO CATECIS~IO

Mas para responder, por uma vez, a todas as objecções dos Deístas,
e indifferentistas; basta expôr o seu systema : é a melhor prova da Pro·
videnc1a.
4.º A ab imlidade do Deismo prova a Providencia. Chamamos
deistas áquelles que, admittindo a exi tencia de Deu , negam a Provi-
dencia, seja na ordem phy ica, ou na ordem moral ; e, por consequencia,
são indifferente'"' em materia de Religião. Ei -aqui o seu Symbolo : CreiQ
em Deus que creou tudo, mas não quer saber de nada ; que deixa suas
obras correr fortuna, similbante á mãi desnaturada que, depois de ter
dado á luz um filho, atira com o fracto das suas entranhas ao meio d~
rua.
Creio em um Deus que me di "se quando me creou: Eq doq-te a
existencia para me adorares ou ultrajares, como te parecer; para me
teres amor ou odio, como quizeres. A' verdade, o erro, o bem, o m31,
tudo em ti me é indifferentc; a tua existencia, separada de tudo, não se
pne a cousa alg~ma no meus con elbo . Producção vil das fllinhas mãos,
tu n~o mereces que eu olbe para ti; foge da fui_oba vi ta apague-se em
mim a tua memoria; as tuas idêas, e não as minha , sejam a tua lei, ~
tua regra e o teu Deus.
Se o Symbolo do Dei ta é absurdo, não o é meno o seu Decalogo;
eil-o aqui reduzido á expre são mai simp1e·. Todas a Religiões admitti-
rás e rejeitará ao me mo tempo. Catholico em Roma, Protestante eµi
Genebra, Mahometano em Con tantinopla, Idolatra em Pekin; tudo isso
é indifferente; em materia de Religião, noute e dia, branco e preto, sim
e não, é a mesma cou a. Bem beber, bem comer, dormir, e digerir;
_entregar-se a todas as suas inclinações; esta é a Religião unica e verda-
deira. E' a Religião dos Deístas. Ora, e ta pretendida R ligião, mil veze&
mais injuriosa á divindade que o atbei mo, livela o homem com o bruto,
dá entrada a todos os crimes, não offerece ã sociedade outra prol.ecção
que a da forca ; não deixa e perança ao fraco, consolação ao desgraçado,
coragem ao justo, freio ao malvado; estabelece uma moral digna, quando
muito, dos porcos e lobos. Logo é falsa: porque, diz um certo impio,
a verdade não é jámais nociva; e essa é a melhor prova de que q dou-
trina dos Deistas não é verdadeira.

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DE PERSEVERANÇA. 5t
Finalmente, n'este Catecismo verêmos que ha uma Religião verda-
deira; que não ha mais que uma só, assim como não ba mais que um só
Deus; que ella vem d'este mesmo Deus; que é necessaria ; e que uma
eternidade de bemaventurança será a recompensa d'aquelles que a obser-
vam, e uma eternidade de supplicios, o justo castigo d'aquelles, que tive-
rem desprezado esta Religião santa, lei suprema do Ente, que creou o
homem dotado de razão e liberdade.

ORAÇÃO.
O' meu Deus! Que sois todo amor, eu vos dou graças porque vos
déstes a conhecer ao homem; esclarecei aquelles que todavia vos não
conhecem. Eu vos adoro e amo de todo o coração; eu vos consagro tudo
o que tenho e tudo que sou.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo, por amor de Deus; e, em testemunho d' este amor, direi
muitas vezes comigo mesmo: Deus v~ tudo o que eie faço.

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...·i

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IV.ª LICÇÃO

Conhecimento de Deus. - Deus considerado em suas obras. -


Obra dos seis dias.

Primeiro dia. - Explicação d'e•ta• palavras: No principio


creou Deus o Ceo e a terra. - Esta primeira palavra é a
ba111e da sciencia. - As trevas cobriam. a f'ace do aby11m.o.
- Explicação. - E o espírito de Deus era levado sobre a•
agua11. - Explicação. - Imagem. do Baptism.o. - Creação
da luz.- Rapidez da sua propagação.- Côre•. - 8uas van·
1agens.

Depois de ter contemplado Deus em si mesmo, consideremol-o em


suas obras; ellas narram a sua gloria, e explicam, melhor que todos os
raciocinios, suas infinitas perfeições. Já vimos que Deus é desde toda a
eternidade; não são assim as creaturas. Nada do que hoje vêmos existia
no principio : nós mesmos não existíamos. O Ceo, a terra, o sol, as mon-
tanhas, os rios, o mar, os animaes, os homens, nada absolutamente exis-
tia. Deus resolveu crear todas estas cousas. Mas como fará elle? Onde
irá buscar os elementos para formar este magnifico universo ? Sabemos
que quando o homem quer edificar uma casa, é-lhe preciso pedra, ma-
deira, ferro. A primeira cabana estaria ainda por construir se o homem
precisasse de crear os materiaes para ella. Mas Deus tem outro poder
muito differente: Elle disse, e tudo foi feito; porque aquelle que póde
tudo, opéra, fallando, aquillo que quer.
De toda a eternidade tinha Deus pois concebido o pensamento do
mundo; no tempo marcado exprimiu o seu pensamento, ist9 é, manifes·

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CATECIS~lO

tou-o externamente pelo seu Verbo, ou sua palavra: em summa, disse


e tudo foi feito. A maneira porque o homem, imagem de Deus, produz
suas obras, póde dar-nos uma idêa da creação. Com effeito, quando o
homem: por exemplo, quer edificar uma casa, começa por lhe conceber
a idêa; depois, no tempo fixo diz: faça-:se a casa. Se o effeito não acom-
panha immediatamente a sua palavra, é porque não sendo todo poderoso,
não opéra, fallando, aquillo que quer. Para supprir a sua fraqueza, carece
de coadjutores e meios estranhos, cujo concur o e emprego ~mand;im
tempo. Mas nem por isso as obr~s do homem deixam de ser a expressão
do seu pensamento, assim como o universo é a expressão d'um pensa-
mento de Deus.
Para conhecer quanto foi poderosa e fecunda a palavra que prod -
ziu o universo, meditemos em nós me mos, tr n portando-nos em e irito
ao mowento da crea ão· escutemo a narração com a me ma admi ação
que teriamQ , ss e tj emo pr nte a e~ ta grande obra, e tivessemos
visto, a cada palavra do Creador, sahir do nada esta infinita mu~tidão de
creaturas, tam divinas e tam perfeitas. Vai abrir-se diante de nossos Qlhos
um livro magnifico, o primeiro em que Deus quiz que os filhos dos ho-
mens lêssem a sua exü;tencia, gloria, poder, bondade, e todas as perfei-
ções da SUGl essencia. Es.te marav\lb()So livro, escreveu-o Deus em seis
dias. Que s.ej a uma revolução de vinte e quatro horas, ou um espa~o maior .
p que se entend~ aqui por dia$, é. que3.tão para os ptúlosopho$. (t) O
(1) Para satisfazer a legitima curiosidade d'uma certa classe de nossqs leito-
res, daremos aqui algumas noticias á cerca da Geologia : os autbores mais ad-\an-
tado.s nos servirão de guia, e o Catecismo ficará, como hoje 1:1e diz, em dia com a
~cie{icia. A. geologia é um~ sciencia., que tem po.r objecto o conhecimento do globo
te:rre~tre. Tr!J.ta da sµa estructura i~terior, do.s restos o,rgl\nicos sepultado~ em suaa
camadas, e das leis que presidiram á sua, formac;a.o. A, fi,o;i de ~l\l' á-f iwluçõea ""
géologia o valor que lhes convém, cumpre não esquecer que esta scjencia eitá ainda
no berço · ou quando muito, no estado da infancia ; que os geologos não conhecem
u,ma parte ufiicien e do globo par-& fundar um systema absoluto. Assim que, a1
~·~ pr9fund~s mina.s uNo são, em rel'<J&º ao nosso planeta, mais que- picaduna
d'alfinete na pelle d' um elephante.
Releva notar ainda que a geologia foi por muito tempo o arsenal~ on<fo a impie-
dade forjava suas armas contra a fé; alistaram-na os philosophos, como tod3.1t ~il
..

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DE PERSEVERAJ\'ÇA. 5õ

que importa saber é, que Deus não quiz fazer 9 mundú em um instante,
e de uma só vez; mas successivarnente; a fim de nos mostrar que é livre
em obrar como lhe apraz. Eis-aqui a ordem porque tirou do nada todas
as creaturas.
No principio CREOU DEUS o CEO E A TERRA. No prüzcipio, isto é,
sciencias, nas fi.lPiras da incredulidade, para fazer guerra á Bíblia. CreS(!eu ella, e
crescendo esclareceu-se. Hoje rende homenagem á Biblia; pede-lhe, p~ra suster-se,
o auxilio de sua mão poderosa; assim como menina, se pendura do braço de sua ama,
para firmar seus debeis passos. • E' aprasivel, diz a este respeito o Doutor Wise-
man, vêr uma sciencia clasi;ificada a principio, e talvez com j_nstiçl,l, entre as mais
perniciosas para a fé, tornar-se um de seus apoios; vêl·a agora, apoz de tantos annos
empregados a divagar de theoria em theoria, ou antes de visão eQl visão, tornar ao
ponto em que nascêra, e ao altar onde havia offerecido suas primeiras e simplices
offerendas ; já não é. como no tempo que se ausentou, entregue á sua vontade, um
prodigo joven, sonhando Yenturas; mas sim o adulto, com a dignidade viril e aspecto
sacerdotal, voltando a depositar, nos sagradQs lares, os bem ~dquiridos dons que
lhe adornam o peito. 11 Di:5c. etc. t. I, p. 336.
A' cerca dos dias da creaçào ha entre os gE>ologos duas opiniões. A pri~eira pre-
tende que estes dias são epochas ele duração indeterminada, e julgSi necessaria esta
interpretação para explicar os phenomenos geologicos; a segunqa quer que aio sejam
'°ais que revoluções de vinte e quatro horas, e nega a necessid~de c!'oq.tra expli-
cação.
O primeiro parecer basea-se nas rnzoens 'seguintes, de que vamos ela.- o 11esuQ10:
1" A palavra dia, no hebraico como no latim, na lingua francesa eomo eoa
toqa.s as m~is, frequentemente se toma por qualquer período ou epocba. Ainda mesmo
no Genesis, Moysés a emprega n'este sentido. Com effeito, apoz de ter desc1·ipt.o
8 uccessivamente as obras da creaçào, faz de tudo uma especie de recapitulação,
dizendo: Taes foram as gerações dos setes, no dia que Deus creou o ceo e a terra.
N'esta passagem a palavra dia evidentemente significa não o espaço de vinte e qua-
tro horas, mas os seis dias, ou epocba& na creaçào, e corresponde á palavra tempos
ou epocbas indeterminadas. O mesmo sentido tem em muitas outras passagens da
Escri ptura.
2. 0 Os nossos dias de vinte e quatro horas são regulados pelo movimento da
terra em presença do sol. OrR, pergunta M. Deluc, como é que Moysés, fallando da
primeira epocba, poderia a.ssimilhal·a aos nossos dias de vinte e quatro horas, pois
que estes se medem pelas revoluçõas da terra sobre o seu eixo em presença do sol,
quando este não teve a propriedade de luzir e derramar a luz pela terra senão na
quarta epocba ou quarto dia? Logo Moysés não entendeu fallar do dia de vinte e
quatro horas, mas sim d'um periodo de indeterminada duração.

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CATECISMO

desde o começo de todas as cousas, quando Deus começou a crear o


mundo.
O CEo E A TERRA. Moysés quiz significar primeiro a creação geral
do universo, cujas partes principaes são, a nosso respeito, o Ceo e a
terra. N'estas poucas palavras reuniu tudo para nol-o pôr diante dos olhos.
3. 0 S. Agostinho diz, que os dias do Genesis não podem ser similhantes ao es-
paço de tempo tam facil de conceber, como são os nossos dias de vinte e quatro
horas. De Genes. ad litt. lib .. IV, 16-44. E n'outra parte, exprime·se n'estes termos:
Qui dies cujusmodi sint aut perdifficile nobis, aut etiam impossibile est cogitare,
quanto magis dicere? De Civitate Dei, lib. 1, c, II. Bossuet sustenta nas suas eleva·
ções sobre os mysterios, que os seis dias são seis differentes progressos. III SGm.
V. Elev. M. Frayssinous, nas suas conferencias diz, que é permittido tomar estes
seis dias por outros tantos periodos indeterminados. A estas authoridades ajuntam-se
as d'illustres geologos, taes como Buruet, Whiston, Deluc, Kirwan, Cuvier.
4. 0 Os factos physicos annunciamque entre a creação dos primeiros seres orga-
nicos, que appareceram na superficie do globo, e a do homem, houve numerosas
modificações, ou antes revoluções, que aniquilaram as especies primitivamente crea·
das; ás quaes succederam depois as especies actuaes. No reino vegetal, estas espe-
cies primitivas, que já hoje não tem analogas, são, entre outras, as cavallinhas, os
fetos giga,ntes, etc. No reino animal, os mastodontes, etc., enterrados, como os vege·
taes de que acabamos de fa.llar, nas camadas mais inferiores do globo, ás quaes não
chegou a acção do diluvio. Ora, como está demonstrado que a creação não é o pro-
ducto instantaneo de uma força brusca e cega, mas o effeito successivo de uma von·
tade livre e sabia, a successão d'estas antigas gerações, de que já não achamos
vestígios no globo, não podia operar-se em tam curto espaço de tempo como seriam
os seis dias da creação. Pelo contrario, bem se conhece que estas revoluções, que
viram nascer, crescer e desapparecer estas gigantescas creaturas, deviam abranger
uma longa serie de seculos, e como~ cada uma corresponde tambem uma serie d'es·
pecies totalmente differentes, das que primeiro foram destruidas, e que mais tarde
tambem se perderam, a ci·eação dos seres org:micos não podia ser tambem instan-
tanea, mas successiva.. Veja-se Marcel de Serres, Cosmogonia de Moysé1, p. 18 e
seguintes.
Taes são as auctoridades e razoens principaes que abonam a primeira opinião.
Vejamos as que favorecem a segunda :
1.0 A palavra dia em hebraico algumas vezes sim significa epocha na Escrip·
tura, mas em taes casos o contexto claramente determina em que sentido convém
tomal·a. Ora, no primeiro capitulo da Bíblia, em que esta palavra se repete seis
vezes, nada indica que se deva tomar em outra significação senão a que lhe é mais
natural e commum.

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DE PERSEVERANÇA. 57
Passa depois aos pormenores, narrando o que se fez em cada dia d'esta
grande semana. (t) Quantas duvidas se não esclarecem por estas poucas
palavras: CREOU Drms o CEo E A TERRA! Quantos erros se dissipam! Quantas
verdades salutares se revelam! A não ser esta -luz que faria a nossa razão,
senão procurar sempre e talvez errar sempre.
Trabalhareis durante seis dias, diz Moysés aos Israelitas, e descançareis no
setimo; porque o Senhor fez o ceo e a terra em seis dias, e descançou no setimo.
Exod. XX, 10. Moysés emprega aqui o mesmo termo para explicar os dias da crea-
ção e os dias ordinarios; uma linguagem tam constantemente equivoca não teria
induzido os homens n'um erro inevitavel, quando prevenil-o era tam facil a Moy-
sés?
2.0 Os geologos, partidarios dos periodos indeterminados, pretendem que a
manhã, mane, signifique o começo, a aurora d'um periodo ou de uma creação, e a
ta1·de, vespere, uma revolução, catastrophe ou destruição d'essa creação mesma ; e
por este modo explicam a origem dos fosseis das diversas formações geologicas. Mas
primeiramente, é isto inverter a linguagem, dando-lhe uma interpretação audaciosa.
mente arbitraria. Em segundo logar 1 no primeiro dia fez Deus a luz, no segundo
dia fez o firmamento ; para designar o fim d'estea dias, serve-se Moysés da palavra
vespere, a tarde: se esta palavra significa uma catastNphe, uma ruina, de que
destruição se trata no fim d'estes dous pretendidos periodos? Será acaso a aniqui-
lação da luz, ou dv firmamento? Quem ousaria dizêl-o? Demais, para que teria Deus
destruido no fim de cada dia a obra que havia creado no principio e achado boa? e
se destruiu por este modo, successivamente e no fim de eada periodo, os productos
de cada um dos períodos prncedentes, logo os creou de novo na manhã de cada um
dos periodos seguintes. Moysés conta bem a obra especial de cada dia; mas onde
nos falla elle das restaurações d'uma obra anteriormente destruida? Pelo contrario,
em sua narração tudo concorre a fazer-nos crêr que a obra de cada dia continuava
a subsistir inteira e perfeitamente boa, tal como tinha sabido das mãos d'um Creador
omnipotente e omnisciente.
3. 0 Os partidarios dos dias periodos são forçados a admittir, para serem conse-
quentes, que os terrenos mais antigos, ou de transição, não contém mais que restos
vegetaes e não animaes, pois que estes não foram creados senão no quarto dia; e
comtudo as camadas transitorias mais inferiores, taes como o grupo de carvão,
encerram misturadas as plantas fosseis e a.s reliquias d'animaes marinhos e terres-
tres, e insectos de muitas familias que vivem no ar. O systema por tanto está aqui
em manifesta contradicção com os factos geologicos. A mesmu impossibilidade existe
em conciliar a acção convulsiva d'estas catastrophes que teriam destruído cada
(1) Greg. de Nyssa, lib. in Hex.-Cyril. d'Alexand. contra Juliano. lib. II.
-E Agost. Gen. ad litt. lib. I, c. 3.

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CATECISMO

Esta primeira phrase da Biblia é a base da sciencia moderna. Por


estas luminosas palavraa livra-se de todJs as cosmogonias absurdas, das
quaes a antiguidade Pagã não bavia podido de enredar-se, e que, condem-
nando o espírito humano a andar eternamente ás apalpadellas, o tiveram
retido no lastimoso estado que todos sabem. A sciencia impia do seculo
creação, com a disposição dos terrenos por estratificação regular; resultado evidente
d 'um deposito lento, gradual e tranquillo.
4. 0 Embaraçados por estas di:ffi.culdades, ao parecer insoluveis, os geologos
mais recentes collocam todas estas revoluçõe , de que o. interior do globo offerece
por toda a parte inconte taveis indicios, no período que passou entre o primeiro e
terceiro ver iculo do Gene is; e dizem, que a opinião d'um periodo de tempo de da-
ração indefinida, que teria precedido a organi ação do mundo adamico, é fundada
ao mesmo tempo n!\. interpretação mais natural do primeiro versiculo do Genesis, e
nas conclusões inevitaveis a que nos conduz o estudo dos pheaomenos geologicos.
Eis-aqui alguns dos auctores que são d'e te parecer: M. Desdonits pretende que a
narração de Moysés deve pôr-se de parte nas Jiscussões geologicas sobre a origem
primitiva do nosso planeta e a historia das formações e tratificadas que compõem o
seu involucro. ao, diz este sabio, os factos geologicos não são contidos no Genesis.
Os seis dias da creaçao é manifesto que são dias naturaes ou de duração equivalente;
ora, os factos geologicos, de qualquer maneira que se produzissem, não poderiam
entrêi.r n'este quadro excessivamente estreito; logo nao pertencem á obra dos seis
dias. Mas não são posteriores, porque suppõem uma e até muitas revoluções da terra:
logo são anteriores aos eis dia do Genesis. Moysés não falla d'elles, porque estes
factos são estranhos á historia do homem e á organi ação da terra, tal como Deus
a preparou em ultimo Jogar para elle.» Universit. cath. t. III., p. 457.
• E' claro, diz l\f. .Jehan, que este termo no prinápio indica um espaço de
tempo illimitado entre o primeiro acto que fez sahir do nada os elementos do mundo
material, e o cabos O\J. a. ultima revolução de ·ignada pelo segll'fido versículo, e que
foi a tarde do primeiro dia da narração mosaica. N'e te intervallo, que podia ser
d'immensa extensão, é que se operou a longa serie de succes os que determinaram a
estructura mineral do nosso globo, tal como a reconhecem as investigações da scien-
cia, e que assim pozeram o nos o planeta na mais perfeita harmonia com as necessi-
dades da especie humana, para cuja habit.ação era definitivamente destinado. O his-
toriador eagrado começa por proclamar summariamente que o uai verso todo, o ceo
e a terra., receberam a e.xi tencia n'uma epocha indeterminada; por consequencia,
que não sã.o eternos; depois, sem e demorar a sati fazer uma vã curiosidade, pela
descrip9ào d'um e tado de cousa intermediado, inteiramente estranho ao homem, a
quem pl'etende ensinar verdade moraes e nao scientificas, Moysés chega á historia
pa.rticnlar d'uma ordem de successos, que estão em immediata relação com a origem

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DE PERSEVEllANÇA. 59
passado rec2hiu n'este cabos, por ter rejeitado esta base do edificio. A
sciencia actual sahe das trevas e engrandece-se á proporção que se torna
Biblica.
Vêdes ainda que magestadc e simplicidade n'estas poucas palavras:
No principio CKEOU DEUS o CEO E A TERA 1 Sente-se que é o mes-
mo Deus que nos instrue d'uma maratilba a quo é mui superior.
e destinos da nobre creatura que Deus vae formará s_ua imagem.• Novo tratado dai
sciencias geologicas, p. 313 e seg.
O celebre doutor Wisema.n, outr1ora professor da universidade de Roma, e hoje
bispo em Inglaterra., admitte .a tnestná opinião ê diz que, a theoria das epochas inde-
terminadas, supposto que louvavel no seu objecto, não é por certo satisfüto1·ia nos
seus resultados; depois accrescenta : « E que repugnância ha em suppôr que, desde
a creaçào do informe embrião d'este mundo tam bello, até chegar a ser revestido de
todos os seus ornamentos, e appropriado ás necessidades e habitos do homem, qui-
zesse a Providencia conservar uma gradação, pela qual a vida avançasse progres-
sivamente para a perfeição, tantó no seu poder interior como em seus instrumentos
exteriores? 8e os phenomenos descobertos pela geologia manifestassem a existencia
d'um tal plano, quem ousá.da. dizer que elle não concorda, na mais stricta analogia,
com as intenções de beus na lei pbysica e moral d'este mundo? ou quem affirma.ria
que este plano contradiz o sagrado texto, só porque nos deixa. em completa ignoran-
cia ácérca d'este periodo indefinido em que se colloca a obra do desenvolvimento
grádual? 11 Discurso sobre as relações entre a sciencia e a Relig. revel. t. 1.0
p. 309.
O Cuvier d'Inglaterra, Buckland, sustenta a mesma opinião d'aquelles que pre-
tendem, que os primeiros Padres da IgrPja não eotavam longe d' este parecer; pois
que suppõem igualmente um periodo indefinido entre a creaçào e a primeira combi-
nação regular de todas as cousas. Citam S. Greg. de Naz., oraç. II, t. 1. 0 , p. 51;
S. Basílio, hex. homl. II p. 23; S. Cesario, dialg. V, Orig. Periarch. lib. IV, C.
16, etc.
De tudo o que fica dito resulta, 1.0 que os geologos não estão perfeitamente
d'accôrdo em um dos pontos fundamentaes da sua sciencia; 2.0 que os geologos mais
acreditados da. nossa epocha por nenhum modo estão em opposição com o Geuesis;
3. 0 que qualquer dos dous confirma plenamente a narração mosaica, reconhecendo
que todas as creaturas sepultadas hoje nas entranhas da terra apparecem exacta-
mente na. mesma ordem em que estão collocadas no quadro magnifico da creação,
tratado por Moysés. Ora, como conhecia elle o interior do nosso globo, com uma per-
feição tal que todas as nossas sciencias, apoz dos mais laboriosos esforços, nenhuma
vantagem lhe levam em tudo que elle nos havia dito? Moysés era inspirado: tal a
resposta peremptori& da Religião, da historia e da scieucia.

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60 CATECISMO

Um homem ordinario teria-se esforçado para, com a magnificencia das ex..


pressões, corresponderá grandeza do assumpto, sem conseguir mais que
mostrar a sua propria fraqueza. A Sabedoria eterna, qoebrincou fazen.
do o mundo, como ella mesma diz, tambem o descrevesem se commover.
A terra estava informe e núa ; (t) isto é, sem ornamentos, sem
homens, nem animaes; em uma palavra, carecida de tudo o que póde
embellecer um paiz. (2)
Deus não quiz crear a terra com os seus enfeites magnificas,
suppos to que o podia fazer com igual facilidade, a fim que o homem
não considerasse a terra fecunda e rica de si mesma. Importava-
1he saber que na sua origem não tinha fructos, nem habitantes, nem
belleza; que podia em todos os tempos ser tam esteril e desprovida
como no dia do seu nascimento ; e que as riquezas de que hoje está cu-
mulada lhe são emprestadas e fornecidas por mão invisível.
As trevas cobriam a superficie do abysmo. Por este abysmo en-
(1) Segundo o texto hebraico a terra estava informe e aeriforme, informis, et
aeriformis ; o texto samaritano dá a entender que ella estava n•um estado de diffu-
são; e a versão dos setenta representa-nol-a como invisivel e incomposta, invisibli,s
et incomposita. Estas expressões são ainda a ultima palavra da sciencia actual. ·De
facto, diz M. Marcel de Serres, as premissas mais positivas que nos fornecem a as-
tronomia, a physica, a geologia, levam-nos a admittir que a terra, bem como os ou-
tros corpos planetarios, estiveram primitivamente no estado gazoso ; isto é, que to-
das as substancias solidas, que hoje a compõem, se achavam espargidas por um espa-
ço muito mais amplo do que aquelle que actualmente occupam; este estado primi-
tivo da terra assimilhava-se talvez muito áquelle em que os cometas se nos apresen-
tam. Estes astros parecem estar, com effeito, na primeira epocha da sua formação ;
por isso deixam de ser visiveis quando os seus vapores condensados acabam por
compôr uma especie de nucleo solido; o qual nos escapa na immensidade do univer_
so, em consequencia da sua extrema pequenez. Os cometas adquirem esta solidez
por causa da irradiação do calor que os mantém no estado aeriforme, e que se dis-
sipa pouco a pouco a travez dos espaços celestes. Da mesma sorte perdeu a terra o
seu estado primitivo, e endureceu sua super:ficie por effeito da irradiação que lhe
abaixou singularmente a temperatura. D'esta multidão de vapores que a compunham
em sua origem, não lhe resta mais que a vasta camada aeriforme que a rodeia por
todas as partes e defende do frio glacial dos espaços interplanetarios.• Cosmog. de
Moysés, p. 54 e 55.
(2) Jerem. IV, 23.

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DE VEHS'EVERANÇA.

tende-se as profundas aguas, que envolviam e cobriam a terra por


toda a parte, fazendo com ella um só globo : (tJ e sobre este todo .
estendiam-se espêssas trevas. - Aqui falia-se não só da privação da
1uz, ou da escuridade em que então estava todo o universo; mas tam-
bem d'um nevoeiro mui espêsso, elevado até uma certa altura, que te-
ria occultado a superficie das aguas ainda mesmo quando a luz appa-
recesse; e de facto a occultou, inda depois que a luz foi feita. Esta
circumstancia pareceu merecer a Deus uma attenção particular: onde
estavas tu, dizia elle a Job, quando eu cobria o mar com uma nuvem,
e o envolvia no momento do seu nascimento em um tenebroso nevoeiro,
do me$mO modo que se enfaixa uma criança ? (2)
Ha pou~as pessoas que não tenham observado que os ribeiros,
os lagos, e com maior razão o mar, cobrem-se em certos tempos,
e durante a noute, d'um nevoeiro que ao amanhecer se põe como
uma nuvem d'algodão, ou uma lanugem, e debaixo do qual a super-
ficie das aguas parece tranquilla e adormecida. i\ssim nas trevas ge-
raes e durante a noute que assombrava todo o universo, tinha Deus
tranquillo o immenso abysmo com um espêsso nevoeiro, que parecia
agasalhar seu filho e adormecêl-o sub o frouxel que o vestia ; reservan-
do para outro tempo o agitar o temeroso Oceano, e pôl-o em fugida
com sua palavra ; ficando igualmente senhor ou de o enfrear ou desper-
tar do seu magestoso somno.
E o espirita de Deus era levado sobre as aguas. Estas palavras si-
gnificam a operação, pela qual preparou Deus as aguas e terra para a
fecundidade. Vêde que admiravel e terna comparação 1 As aguas esta-
vam cobertas d'um nevoeiro que lhe servia como de vestido e agasalho :
e o espirita de Deus era levado sobre ellas.
Similhante a um passarinh~ que estende as azas para cobrir seus
filhinhos, ou ainda sobre os ovos para os aquecer, animar e tirar; assim

(1) A submersão primitiva do globo está verificada pela geologia. No primei-


ro pcriodo, dizem os authores da Encyclopedia moderna, o Oceano parece ter estado
estacionario sobre o globo. E' mais uma homenagem prestada pela scicnci::i. á narra-
ção de Moysés.
(2) Job. XXXVIII. 9.
12

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62 CATBCISMO

o espirito vivificador dava á luz, por assim dizer, o mundo futuro, aní-
. mava-o com seu sopro~ e inspirava-lhe o calor e a vida.·
Ahi se encontra uma bella figura para narrar outro nascimento
mu.ito mais miraculoso aos olhos esclarecidos da fé. Nosso Senhor
fallando a Nicodemos, diz assim : Em verdade, em verdade vos digo,
que se o homem não renascer pela agua e pelo espírito, não póde entrar
no reino dos ceos. O que nasce da carne, é carne o que nasce do
espírito é espírito. Não vos admire o que vos digo, que vos é preciso
nascer de novo. (1)
Nosso Senhor compara o Espirito de Deus imprimindo nas aguas
uma virtude occulta para o primeiro naséimento, com o mesmo Es-
pirito que torna fecundas para um segundo nascimento as aguas do Bap-
tismo. Assim nos mostra na creação do homem o modêlo da sua repa-
ração. Adverte-nos que o homem não reteve, <la sua primeira origem,
mais que um nascimento carnal, desde que foi privado do Espirito, cuja
vida e calor o tinham animado ; e que será sempre excluido do ceo, se
não receber outro nascimento, do qual o Espírito de Deus e as aguas
sejam como outr'ora o principio. (2) Não é esta a unica vez que teremos
occasião de notar que Deus, na regeneração do homem, seguiu as mes-
mas leis que na sua creação.
E o Senhor disse : Faça-se a luz, e a luz foi feita: e Deus viu que
a luz era boa ; isto é, conforme em tudo ás regras e designios da sua
divina sabedoria. Elle separou a luz das trevas, e chamou á luz dia e
ás trevàs noute. (3)

(1) João III, 3, 5 e seg.


(2) Vejam-se as orações da agua baptismal.
(3) Gen. I, 8, 4, 5; - e A Escriptura não diz que Deus creou ou fez a luz, mas
sómente que ella seja, e a luz foi. Se por tanto a luz não é um corpo particular e
distincto; mas simplesmente vibrações ou ondulações do ether, excitadas por causas
quaesquer que sejam, o escriptor sagrado não podia designar-lhe a apparição d'uma
maneira mais clara, simples e conforme á verdade. D'est'arte a EscriptUl'a precede
as nossas recentes descobertas: e estas acham apoio e auctoridade em uma narra-
ção, que a falsa philosophia tinha considerado contraria a todos os nossos conheci-
mentos physicos. • Cosmog. de .._1foysés, p. 58.
D'aqui resulta, V que no conflicto das duas hypotheses que dividem ainda os

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DE PERSEVERANÇA. 63

A luz é a primeira obra e o primeiro beneficio do Creador, por


isso deve ella ser o primeiro objecto do nosso reconhecimento. A não
ser a luz, toda a natureza seria como se não existisse; e as belle-

physicos, relativamente á natureza da luz, Moysés vem dirimir a questão em favor


<los modernos. D'alguma sorte roais physico do que Newton, o L egislador dos He.
breos teria tido idêas mais exactas sobre a luz que um sabio que pela importancia
das suas descobertas, é talvez o primeiro entre os mais illustres dos tempos moder-
nos. 2. 0 Que se póde sustentar que, segundo Moysés, e um grande numero de physi-
cos, a luz e o calor não são uma e a mesma cousa; seja que se considerem como
fluidos, ou corpos distinctos; seja pelo contrario, que se assemelhem ás vibrações e
ondulações excitadas nos corpos por uma causa qualquer. Com effeito, a expressão
hebraica orou aor indica igualmente um fluido que sabe por uma especie d'emana-
ção ou fluxo dos corpos, que o podem derramar ou communicar. Esta interpretação,
a mais simples e conforme ao te;xto da Escriptura, parece-nos bem fundada. Ao me-
nos é da experiencia vulgar, que nenhuma combustão ou desenvolvimento considera-
vel de calor deixa de ser ao mesmo tempo acompanhado de producção de luz. Por
isso muitos physicos, vendo a constancia d'estes phenomenos assimularam o calori-
co radioso ao :fluido luminoso. E' tambem da experiencia, que existe um calor e luz
independentes do sol. Não vêmos nós com um ligeiro toque fusilar e sahir lume ain-
da das pedras retiradas nos logares mais tenebrosos, onde a luz do sol nunca jámais
penetrou?
Estes phenomenos phosphoricos não nos estão mostrando a luz em todos os corpos
da natureza, assim nos animaes, como nos mineraes, ainda que sejam arrancados das
entranhas do globo, onde nunca penetrou o menor raio do sol ? Logo é evidente que
esta luz occulta não traz do sol a sua origem. Apparece no momento em que uma
causa d'excitaçào produz as ondulações necessarias á sua manifestação. Ora, esta
causa é reconhecida pela geologia actual como existente, antes da apparição do sol
na temperatura elevada do globo ao sahir do nada. Todas as experiencias nos levam
por tanto a concluir que, no principio daa ousas todos os materiaes que hoje com-
põem a massa solida do globo, nao formavam mais que um vasto banho liquido, onde
referviam por toda a parte as materias mais solidas e duras. Como poderia dar-se
uma tal conflagração, sem produzir uma luz tam viva como brilhante e clara, na
superficie dos corpos tornados candentes pelos effeitios d'um calor tão consideravel ?
Esta luz devia, com effeito, ser das mais resplandecentes, pouco mais ou menos como
aquella que produzimos quando levamos ao estado ígneo os fragmentos de cal em
certas combina~ões gazosas, e das quaes a vista não póde supportar o fulgor e viva-
.cidade.=A sciencia actual tornou a descobrir esta luz independente do sol, e da qual
a impiedade havia zombado. N'isto como em tudo mais, vêmos quanto é certo que
um meio-saber aparta-nos da Religião, bem como a ella nos restitue uma sciencia
solida. Cosmog. de Moysés, p. 109, 114.

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6~ CATECISMO

zas e maravilhas, que a Sabedoria divina disseminau por toda a parte,


seriam inuteis ao homem que as deve admirar. Mas que é a luz? Come-
ça agora a longa serie de mysterios que confundem a nossa razão. Inex-
plicaveis e todavia evidentes, estes mysterios da natureza ensinam-nos
a crêr nos mysterios ainda mais elevados da Religião ; não obstante que
os não comprehendamos. Tudo o que os mais abalizados philosophos dis-
seram da luz não passa de conjecturas.
Pretendem uns que a luz seja uma substancia fluida, da qual es-
tamos cercados, e que se torna visivel logo que é agitada e posta em
movimento pelo sol, ou pnr qualquer outro corpo inflammado. Dizem
outros que a luz não é mais que o mesmo fogo ; o qual pela emanação
de suas partes, infinitamente subtis, nos fere de leve os olhos a uma
certa distancia.
Se a luz é incomprebensivel em a sua natureza, ainda o é mais
nos seus effeitos e propriedades. A rapidez com que se propaga,é
prodigiosa ; percorrem as suas rnoleculas cerca de setenta e oito
mil Jeguas metricas por segundo. Se ella corresse tanto como o som,
gastaria quatorze annos em chegar desde o sol até nós, em quanto
que para isso não precisa mais que d'oito minutos pouco mais ou
menos. (t) N' este curto espaço, um raio do sol percorre muitos mi-
lhões de leguas. Ainda mais : as observações astronomicas mostram-
nos que os raios d' uma estrella fixa, para chegarem até nós, devem
percorrer um espaço que uma ba1a d'artilberia, disparada com a maior
força possivel, não andaria se não em cem milhões e quatrocentas mil
horas.
O desenvolvimento da luz não é menos inconcebivel. O espaço
por onde ella se derrama não tem outros limites que os do universo.
E a immensidade do universo é tam prodigiosa que excede a capaci-
dade do entendimento humano. A prova d'isto é, qoe os objectos mais
distantes, os corpos celestes, por exemplo, podem discernir-se a olho nú
ou com o auxilio de telescopios; e se tivessemas instrumentos opticos
que estendessem a nossa vista tanto quanto a luz se dilata, ainda veria-

(1) Desdouits, Livro <la Natureza, t. III, p. 30!.I.

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DE PERSEVERANÇA. 65

mos continuar a extensão além d'aqaelles mesmos corpos que parecem


collocados na extremidade do universo .
. Mas como é que a luz se propaga por todos os lados com uma
rapidez tam prodigiosa? E' a fim que um numero infinito de obje-
ctos possam ser percebidos ao mesmo tempo por uma infinidade de
pessoas, e o homem goze a cada instante do universo, alé ã distancia
a que se estende a sua vista. Porque são as particulas da luz de uma
subtileza quasi infinita? E' para poder pintar os objectos ainda nos mais
pequeninos olhos, para nos não deslumbrar com seu brilho, nem pre-
judicar-nos com o seu calor. Qual a razão emfim porque os raios da luz
são refractados de tantas maneiras? E' para que possamos melhor dis-
tinguir os objectos que se offerecem á nossa vista.
Logo é verdade quP,, na creação da luz, como em todas as suas
obras, teve Deus por fi_m a utilidade e os prazeres do homem. Que re-
conhecimento vos não devemos, ó Pai da luz, portam sabias e beneficas
disposições 1
Uma admiravel propriedade da luz é colorir todos os objectos,
e fazer-nol-o~ facilmente distinguir. Em vez d'uma campina embelle-
cida de tudo que a primavera e a mão do homem podem prestar-
lbe de mais agradavel, imaginemol-a toda coberta de neve. A luz
do sol que começa a despontar no horisonte, é fortemente reflectida
por esta brancura ·universal. Augmenta-se consideravelmente a cla-
ridade. Tudo está alumiado e vL:;ivel; todavia tudo está confundido ;
é preciso adivinhar os objectos. A uniformidade da brancura, a pezar
de seu brilho, nã0 permiÜe distinguir os rochedos das habitações dos
hoJiens, as arvores da collina onde estam plantadas, as terras cul-
tivadas das incultas. Vêmos tudo, mas nada distinguimos. Tal seria
pois o aspecto da natureza, se Deus nos tivesse dado a luz sem a
propriedade de colorir 03 objectos ; mas por esta propriedade da luz,
que pinta e veste tudo o que nos rodeia, as creaturas tornam-se dis-
tinctas; cada especie tam sua libré particular. Tudo o que nos deve
senir tem um signal que o caracteriza ; não precisamos fazer ,e:;-
forço para reconhecer o que procuramos: a côr o denuncia. A que
perplexidades não estariamas expostos se, para distinguir umas cou-

,.
~ .'
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66 CATECISMO

sas d'outras, carecessemos raciocinar a cada instante? Gastariamos to-


da a vida mais a estudar que a obrar. O designio do Pai celeste não
era occupar seus filhos em ociosas especulações ; claramente se vê
que nos occultou o intimo das cousas para nos induzir effect ivam?nte a
cuidar das necessidades da vida e prática da virtude. Não fez elle a terra
para hospedar philosophos solitarios, cada um a sonhar para a sua banda;
mas creou-a sim para uma sociedade d'irmãos, liga dos por necessidades
e deveres reciprocas.
Para este fim, em vez dos meios demorados e penosos da discus-
são, quiz Deus conceder ao .genero humano e aos mesmos an imaes que
o servem, o meio expedito e commodo de distinguir os objectos pela
côr. Quando o homem desperta do somno, apenas abre os olhos, já
tem feitas todas as suas especulações. O seu trabalho, os utensílios, o
alimento, tudo que lhe interessa apparece claro e patente ; não ha em.
baraço para discernir estas cousas : a côr vem conduzil-o pela mão, e le-
vai-o onde é preciso que elle vá.
A intenção de nos fazer distinguir promptamente os objectos
não é a unica, que deu causa ás côres. N'isso, como em tudo o mais,
occupou-se Deus dos nossos prazeres, como das nossas necessidades.
Que outro desígnio foi o seu, senão o de nos collocar em uma ha-
bitação agradavel, adornando todas as partes do universo com tam
brilhantes e variadas pinturas? Reparai na perfeição d'arte d' este di-
vino pintor. O Ceo e tudo o que se vê ao longe é pintado a traços
rapidos e vigorosos. O brilho e magnifi.cencia do colorido são o caracter
que distingue esta parte do quadro. A suavidade, o apurado e as gra-
ças da miniatura caracterisam os objectos destinados a ser vistos de
mais perto. Assim as folhagens, os passaros, as flôres. Ainda mais; co-
mo temen do que a uniformidade das côres se não tornasse d'alguma
sorte enfadonha, fez que a terra mudasse de roupas e enfeites, segun-
do as estações. E' verdade que durante o inverno, o divino pintor co-
bre o seu quadro com uma extensa cortina branca. Mas o inverno, que
rouba á· terra uma parte de suas bellezas, dá-lhe um pousio necessario
e util para a cultura. Se o inverno obriga o homem a conservar-se em
casa, para que havia a terra de se enfeitar, não tendo seu senhor de

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DE PERSEVERANÇA. 67

a vêr ? Ao ehegar a primavera, levanta-se o véo, e o espectador do uni-


verso contempla este rico painel com um prazer sempre novo.
As côres, que fazem tam bello effeito em a natureza, não embellezam
menos a sociedade. Que formosura não dão ellas _aos nossos vestidos e
moveis ? Mas de todos os bons serviços, que as côres nos fazem, nenhum
nos lisongêa tanto como o de se prestarem a todas as nossas intenções,
e accommodarem-se ás situações diversas em que nos achamos. As côres
mais communs servem-nos em ordinarios usos. as mais vivas e brilhantes
guardam-se para os dias de gala ; animam as nossas festas, e trazem-lhe
com o seu brilho uma certa a1egria que lhes é propria. Se estamos af-
flictos, temos outras côres. Envolvem-nos em lucto; e sentimos uma
especie de consolação, vendo que tudo o que nos rodêa como que se
compadece e entristece .comnosco.
Ha outra propriedade da luz não menos admiravel que as precedentes.
A luz é em grande parte o principio fecundador da natureza. A sciencia
mais adiantada presume provar este facto entrevisto por um Padre da
Igreja: que todas as cr-eaturas materiaes não são senão transform2ções da
luz unida a uma base terrestre. Se assim é, que bella analogia entre esta
luz creada, -que fecunda, illumina e aformosêa o mundo visivel, e a luz
increada, que embelleza o -mundo invisível.
O Verbo de Deus, luz eterna, essencialmente fecunda, é quem fez
tudo, e a 1uz increada communica a todas as partes do mundo material o seu
proprio ser e as modificações 'que o distinguem ; de sorte que se póde dizer
da luz oque se diz do Verbo divino : Elle, elle (JOr toda a parte, elle sempre.
A anologia, entre a-luz creada e a luz increada, não está só nos seus
etieitos, mas tambem nas leis que as regeqt.
E' pelo verbo de Deus que conhecemos toda a verdade na ordem
sobrenatural, é elle que iUumina todo o homem que vem a este mando;
é peJa loz creada que conhecemos todas as cousas na ordem da natureza,
é ella tambem' que illumina os olbos de todo o homem que vem a este
mundo. O homem que adivinha e conhece tudo em a natureza, por meio
da luz, não cqmprehende a luz ; o mesmo succede na ordem sobrenatural.
O homem ouza negar o que seus- sentidos não percebem, o que não é
material ;. e ao mesmo tempo não vê, nem conhece os corpos materiaes

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GS CATECISMO

senão por meio da luz que não é material. (t) Que contradicção ! A luz
increada, que possue em gráo superior todas as propriedades da luz creada,
derrama-se por meio da palavra com uma rapidez prodigiosa; illumina
todas as intelligencias em qualquer paiz ou seculos que as encontre, sem
nada perder da · sua efficacia ~ ensina-nos a distinguir tudo, o verdadeiro
do falso, o bem do mal, o perfeito do imperfeito; ella dá a côr, a belleza,
o caracter a todos os objectos do nosso conhecimento e do nosso amor.
O mesmo succede com a luz creada. Estas poucas palavras sobre as ana-
Jogias das duas luzes, que illuminam as nossas duas naturezas, bastarão
para nos ensinar em que sentido cumpre que estudemos as obras de Deus,
e verifiquemos a profunda palavra .do Apostolo S. Paulo, que o mundo
visível não é mais que a expressão do mundo invisivel.
Depois de ter creado a luz, Deus a separou das trevas, isto quer
. dizer, que Deus estabeleceu uma ordem e successão entre as trevas e a
luz. Desde este momento o dia e a noute substituem-se sem se obstarem.
Diríeis que são dous filhos que partilharam entre si a herança paterna,
de que antes gozavam em commum, sem desavenças, nem usurpações_.
nem litígios, restringindo-se e contentando-se cada um, desde tantos ·se-
culos, com o que é seu, e por justiça lhe pertence.

ORAÇÃO.

O' meu Deus ! que sois todo amor, eu vos dou graças por terdes
e.reado a luz, que me procura tantos gozos e prazeres diversos. Não per-
mittaes pois que eu abuse d'ella para fazer mal. Esclarecei tambem minha
alma com a luz de vossa eterna verdade; da qual a que illumina os meus
olhos corporeos não é mais que a imperfeita imagem.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo co·mo
a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d'este amor, lev<W-
tarei muitas vezes os olhos para o Ceo.
(1) Parece que a luz não é um fluido particular e distincto, mas antes qne,
similhante ao som, é o resultado de vibrações do ether ou do ar atmospherico posto
em movimento pelo sol, etc. Marcel de Se;Tes, p. 111.

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V.ª LIÇÃO.

Obras dos seis dias.

Segundo dia. - Creação do Firmamento. - Soa extensão. -


Sua cõr.- Aguas superiores e tnf'eriores.- Ar.- Soas pro-
priedades. - Pêso. - Invisibilidade.- Utilidade.- Crepus-
colos. - Cheiros. - Som. - Chova. - Respiração.

Deus disse: Faça-se o Firmamento 110 meio das aguas, e separem-


se as aguas das aguas.
E Deus fez o Firmamento, e separou as aguas que estavam debaixo
do Firmamento das que estavam acima do Firmamento, e isto se fez
assim. E Deus deu ao Firmamento o nome de Ceo. (t)
O Firmamento, ou o Ceo, é todo aquelle espaço que se estende desde
a superficie da terra até ás estrellas fixas e para além d'ellas. E' no Ceo
que resplandecem a grandeza e poder de Deus. Para fazer idêa da exten-
são do Ceo cumpre saber : t. º que o sol, que nos parece occupar tam
pouco espaço, tem um diametro igual a mil e duzentas vezes o diametro
da terra ; isto é, trezentas e trinta e seis mil legoas pouco mais ou menos.
O seu volume é um milhão trezentas e trinta mil vezes maior que o do .
nosso globo ; emfim, a sua distanci~ da terra é de trinta e oito milhões·
de legoas, (2) 2. º Que, para chegar da terra ao sol, seriam precisos cento
e vinte e cinco annos a uma bala d'artilberia percorrendo tres legoas por
minuto : e para chegar á estrella fixa mais proxima de nós, ser-lhe-iam
(1) Gen. I, 9, 8.
(2) Desdouits, Livro da Natureza, t. IV, 6.

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70 CATECISMO

precisos mais de seiscentos mil annos. (i) 3. 0 Que as estrellas fixas são
outros tantos soes que Deus semeou no immensura\·el espaço, e que nos
enviam, não uma luz albeia, mas a luz que lhes é propria. Façamo id "a
do poder d'aquelle que, com uma só palavra, fez taro grandes coa a . E ·
este mesmo Deus que, por amor de nós, se fez menino ; e occultando-se
sub as apparencias do pão, se nos dá em a sagrada Eucharistia !
Se as estrellas fixas, na immensa distancia a que estão de nós, po-
dem comtudo vêr-se, isto é uma prova de que são tam grandes como o
sol; a sua diminuição apparente não é mais que o effeito de sua prodigio a
distancia. São pois outro tantos soes que se afastaram para nos não
incommodarem com a sua luz, sem comtudo nos privarem de a gozarmo .
Demais, se aquella brancura que se chama via lactea cão é, como nol-o
diz o telescopia, senão um vasto montão de estrellas, ou de soes ainda
mais distantes, logo a mão de Deus lançou mundos ao longo d'aquella es-
trada com tanta profusão como arêas á befra mar. Todas estas enormes
espberas, que rolam taro diversamente por cima de nossas cabeças, são
machinas terríveis; das quaes o menor embate bastaria a fazer pedaços o
nosso globo. Mas a poderosa mão que as st;ispendeu no e paço é a mesma
que lhes traçou a orbita ; e que, por um calculo infallivel, regulou to-dos
os degraus de seu pêso e rapidez. Nenhum imprevisto obstaculo, orr es-
tranha força, lhes desconcertará o curso.
E no meio d'esta immensidade, que é e--te punhado de terra que ha-
bitamos? que são, em comparação d'estes mundos, as provincias e os rei-
nos? São ãtomos, que brincam nos ares, e que se percebem aos raios do
sol. E que sou eu, no meio de tudo isto? Ah ! como me perco no meu
(1) De (J_ua.Iquer instrum nto que façamos uso, as estrellas, e sobretudo a es-
trellas fixas, parecem-nos sempre tam pequenas como d'antes; isto mostra a prodi-
giosa distancia a que estão de nós. Se um habitante do nosso globo podésse, elevan-
do-se ao ar, chegar á altura de setenta e oit9 milhões de leguas, estas massas de fogo
ainda lhe não pareceriam mais que pontos radio o . Po1· incrivel que isto pareça, é
todavia um facto, que presenceamos todos os anno . A dez de Dezembro e tamos nós
acima de setenta e oito milhões de 1 guas mais proximos ás estrellas que adornam a
parte septentrional do ceo, do que estamos a dez de Junho; e, apezar d'isso, não
percebemos nas estrellas nenhum augmento de grandeza. Desdouits, Livro da Nat·u-
'reza, t. IV, 215.

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DE PERSEVERANÇA.

proprio nada f Todavia, ó abysmo de bondades f é para nós que Deus fez
estas magnificas obras. (1) A excellencia dos seres que Deus creou não
se mede a palmos. O homem recebeu uma intelligencia, uma vontade,
uma alma. A este pequeno ser communicou Deus o conhecimento de suas
obras, ao passo que a recusou ao mesmo sol. E' para o homem que elle
destina o uso e o proveito do rico portico dos ceos. E' elle a unica de todas
as creaturas visiveis que Deus convida a que o louve. Que dignidade, que
grandeza! ter um Pai qoe enche a terra por amor de nós de toda a sorte
de bens, e que se digna empregar o mesmo ceo em nosso serviço !
Que reconhecimento e gratidão não devemos ter para com um Deus que
nos trata com tauta distincção r
Se havemos de julgar sómente em relação aos sentidos podería-
mos crêr que ha por cima de nós uma grande abobada pintada d'azul, e
tomar as estrellas por brilhantes engastados n'ella. Acabamos de vêr que
esta apparente pequenez das estrellas é devida á sua prodigiosa distancia.
Quanto á côr azul do firmamento, procede t. 0 de que a atmosphera, ou
esta massa d'ar que nos rodêa, não é perfeitamente transparente; 2. 0 a
atmosphera está sempre carregada d'uma camada d'aguas subtis que
reflectem conjuntamente com o ar os raios do sol. A côr azulada é pro-
pria da agua, seja espêssa, ou rarefeita, sobretudo quando o seu volume
é consideravel. A atmosphera pois deve ser de côr azul, e este azul é
mais ou menos claro, segundo a quantidade dos raios que o traspassam.
Da combinação d'este ar com as aguas subtis é que Deus formou a côr
d'esta abobada brilhante que regozija por toda a parte a vista do homem,
e é como o engraçado tecto de seu palacio. Uma tal maravilha demanda

(1) cc A unica razão, dizia o celebre Huyghens, que nos ob1iga a crêr que..ha
nos planetas um animal racional, é que a nao se · i o, a nossa terra teria muito
grandes vantagens; e ficaria muito superior em dignidade a todos os mais planetas.•
Acaso não é uma bella razão esta unica razão! cc A opiniao de que o universo foi
feito para o homem, diz o visconde de Bouald, nada tem que espante a alta philoso-
phia, que nos ensina que o universo material é o menor dos dons que o Creador fez
ao homem.11 Quando nos lembramos que o Creador de todos os mundos se deu a si
mesmo ao homem, como não admittir que lhe désse tambem as suas creaturas? Por
ventura val mais a obra que o aut.hor ?

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72 CATECISMO

mais que admiração ; porque prova completamente que nós somos o ob-
.iecto das mais ternas complacencias do Creador.
De feito, Deus poderia sombrear ou escurecer esta abobada celeste ;
mas a côr negra é lugubre e entristeceria toda a natureza. O vermelbo e
o branco não lhe convinham mais. O amarello é reservado para a aurora.
Demais, se a abobada fosse toda d'esta côr, não seria assaz distincta dos
astros que deviam apparecer á nossa vista. O verde sem duvida produzi-
ria o relevo necessario, mas esta é a côr admiravel com que Deus alcati-
fou a nossa habitação 1 E' o tapete que nos estendeu por baixo dos pés.
O azul, não sendo triste, 'nem vivo, tem de mais a vantagem de fazer
sobresahir a côr dos outro~ objectos, e de os avultar á nossa vista. E' por
isso que o divino pintor a preferiu a todas.
Quanto é medonho o aspecto do Ceo quando se nos mostra coberto
de tempestuosas nuvens. 1\Ias como é bello, magestoso, simples, na sua
côr serena 1 As casas dos reis, decoradas pelo pincel de babeis pintores,
nada são quando se comparam com a magestosa simplicidade da abobada
celeste. E quem revestiu o Ceo d'esta côr? quem o adornou tam rica-
mente?
Por uma attenção verdadeiramente paternal, o Ceo não conserva sem-
pre uma tinta uniforme. Pelo contrario, a sua côr modifica-se muitas vezes
cada dia. De manhã. · tenues claridades a pouco e pouco embranquecem o
horisonte, empallidece o azul dos Ceos, a fim de preparar os olhos a
supportar o fulgor da luz do dia; e quando chega a tarde, o sol não nos
priva repentinamente da sua claridade ; reflexos tam tenues como os da
manhã dispõem-nos para as tr&vas da noute. Passar repentinamente d'uma
luz forte para uma obscuridade profunda, seria muito íncommodo e pre-
judicaria os orgãos da vista, talvez a ponto de a destruir. Muitos viajan-
tes, salteados pela noute, perderiam o caminho, e a maior parte dos pas-
saros correriam risco de perecer. Louvores vos sejam dados, ó Pai celes-
te f que prevenistes e remediastes todos estes inconvenientes.
Depois de ter estendido o Ceo como um magnifico pavilhão, quiz
Deus que este Ceo ou este Firmamento ficasse no meio das aguas, de
sorte que ha aguas superiores ao Firmamento, e outras inferiores. Fez
Deus evaporar a maior parte das immensas aguas que envolviam a terra,

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DE PERSEVERANÇA. 73
e as reduziu a atamos tam imperceptíveis que, não compondo já uma
massa, mas adquirindo um movimento mui rapido, elevaram-se tam alto,
que ficou um grande intervallo entre ellas e as que permaneceram co-
brindo a. terra. Como este intervallo fazia parte do Ceo, ou do Firma-
mento, e merecia ser assim chamado, o Firmamento serviu então a sepa-
rar as aguas, ficando no meio das que foram elevadas e das que o não
foram. D'est'arte, temos por cima de nossas cabeças, e além do Firma-
mento uma immensa quantidade de aguas ; oceano formidavel, sustentado
sómente pela mão do Todo Poderoso. (1) Sendo estas aguas inuteis ou
nocivas na terra, são todavia salutares em outra parte. Seriam ellas de
grande proveito quando para nada mais servissem que para recordar-nos
perpetuamente que cederam o seu lugar a homens, que devem ser justos
e innocentes. Demais, recordavam aos ·primeiros habitantes da terra que
eslaYam promptas a reassumir o seu antigo lugar para punir a ingratidão
e a impiedade.
Sem duvida, co!ll estes dous desígnios nos instruiu Deus da sepa-
ração das aguas; das quaes umas estão suspensas sobre as nossas cabeças,
e as outras estão apenas detidas pelos limites que sua mão lhes pres-
creveu. Quando a impenitencia dos homens o levou a arrepender-se de
lhes ter dado a vida, tornou a pôr as cousas em seu primeiro estado.
Rompeu os diques que tinha opposto á faria do mar; e, não contente
com derramar torrentes de chuva, abriu os diques que represavam e sepa-
ravam as aguas superiores; a terra ficou mergulhada e envolvida outra
vez nas aguas como no dia do seu nascimento. Assim foi o diluvio. Todos
os mananciaes do grande abysmo das aguas soltaram-se, diz a· Escriptura,
e abriram-se as cataractas do Ceo. (2) Uma parte d'esta immensa quanti-

(1) Pelo nome de Ceo ou firmamento não entendemos só o ether e os corpos


celestes que por elle estão disseminados; senão tambem a atmosphera que, segundo
l\foysés é destinada a separar as aguas das aguas. Quanto ao mais, nas idêas d'este
grande legislador, não se trata agora d'um mar encurvado em fórma d'abobada em
redor da terra, mas da agua no seu estado gazoso, que o ar separa da agua na sua
fórma liqtúda ou concreta; separação esta que é muito verdadeira. Cosrnog., p. 64.
(2) Gen. VII, 11. Muitos sabios pr~tendem que estas aguas superiores ali-
mentem certos rios, como o Nilo, e o Niger; dos qua.es se nào póde descobrir a origem,

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74 CATECISMO

dade d'aguas que abrangem a terra, ficou abaixo do Firmamento, e produz


os mares, os rios, e os lagos. E' o que se
chama aguas inferiores; falla..
remos d'ellas no terceiro dia.
Digamos agora alguma cousa do espaço que se estende da terra ao
Ceo 1 E' elle cheio até uma grande altura por uma materia liquida, pesada
e elastica que se chama ar. Todo o volume d'ar que rodêa a terra e lhe
serve como de vestido chama-se almosphera.
Cumpre saber que a força, com que uma columna d'ar pesa sobre
cada superficie de uin pé quadrado, é de duas mil libras. D'est'arte, um
homem d'estatura ordinaria tem sem nenhuma duvida um pêso de vinte
e uma mil libras sobre a cabeça. Como é que nos não esmaga ? Esta
lembrança parece capaz de nos perturbar ; mas o receio troca-se em
admiração quando sabemos que o pouco ar que está em nosso corpo e
que se renova incessantemente, basta para equilibrar não só este pêso
que temos sobre nós, mas tambem o do ar que por toda a parte nos
circunda. Neutralizam-se as forças; ou antes não se sentem porque se
contrabalançam. Todavia existem realmente em nós a acção e reacção do
ar. Eis-aqui uma prova evidente : Quando se extrahe o ar que está no
corpo d·um animal, este espalma-se debaixo do pêso do ar externo, e
immediatamente morre. Quando, pelo contrario, se extrahe o ar que cir-
cunda um animal, como se faz na macbina pneumatica, o ar interior
dilata-se extremamente, e o animal incha por tal fórma que logo da mesma
sorte morre.
. Por isso este pouco ar que está em nosso corpo é sufficiente para
suspender e contrabalançar o pêso de mais de vinte e um a mil libras ;
por consequencia opera com uma força igual a este pêso. Eis-aqui a
_primeira maravilha; vejamos a segunda: este mesmo ar que temos nos
pulmões e que supporta o pêso <le vinte e uma mil libras, faz um es-
forço igual para se dilatar, e se o péodsse, acabaria por desunir e rom·
per violentamente todas as partes de que se compõe· o nosso corpo.

e cujas inundações são totalmente inexplicaveis aos physicos de nossos dias.D'est'arte


a velha physica, fundada em a narração de Moysés, explica-nos mui satisfactoriamente
um phenomeno em que a sciencia moderna, apezar de todos os seus progressos, nos
declara q'ue nada razoavel tem a dizer. Veja-se Moysé,s e os geologos, p. 83.

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DE PERSEVERANÇÃ. 75
Esta horrivel tendencia é contrabalançada pelo ar que nos rodêa. A
só igualdade d' estas temerosas forças faz toda ~ nossa segurança;
rompa-se o equilibrio, e instantaneamente pereceremos. Mas não: aquel-
le que creou estas prodigiosas forças, para pôr em acção a natureza to-
da, neutralizou-as com precaução, e moderou a cada instante a fuga
d'uma com a resistencia da outra.
Perguntareis talvez como é que o ar, sendo tam nosso visinho, e
obrando sobre nós com ta.nta força, não se deixa perceber '! Responden_
do a esta pergunta damos mais uma prova d'aquella providencia que
está vigilante e attenta ás nossas precisões. Se o ar fosse visível, a vis-
ta dos objectos não seria distincta. C~da partícula d'ar, sendo d'exten-
são bastante para reflectir a luz, faria com que não vissemas o que nos
rodêa senão como atravez d'aquelles raios do sol que passam por um
quarto escuro, e se reflectem na poeira que por elle anda voando. Fa-
zendo o ar totalmente invisível, não se contentou Deus com mostrar
melhor o exterior das suas abras ; senão que tambem quiz encobrir-nos
o que nos interessava que não víssemos.
Com effeito, sendo o ar visível, os vapores ainda o seriam mais.
O menor fumo bastava para desfigurar o rico painel do universo.
A ·nossa vida se tornaria desagradavel e cheia d' inquietações. Perce_
beriamos por toda a parte o que a perpetua transpiração dos corpos
animaes exhala, o que se evapora das cozinhas, das ruas e de todos os
lugares habitados: a sociedade ser-nos-hia insupportavel. Todavia, co-
mo as exhalações que deixam de .ser nocivas quando se dispersam, po-
deriam, não sendo vistas soffocar-nos e fazer-nos muito damno ; Deus
nos adverte do perigo por meiO dos cheiros máos, e nos livra d'elles pe-
lo soprar dos ventos.
Mas por mui subtis que fizesse as partículas do ar o nosso Pai
celeste, a fim de as tornar invisíveis, lambem lhes deu bastante solidez,
para que podéssem modificar ou refranger os raios de luz quando en-
tram n'elle de travez; a esta circumstancia devemos os crepusculos que
tam proveitosos são ao genero humano.
Quando o sol baixa no horisonte, deveriamos ficar totalmente pri-
vados da luz, e de repente submersos na mais escura noute. Todavia

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76 CATECISMO

não saccede assim. Ainda vêmos o dia durante uma hora e mais, de-
pois que o sol se põe : chama-se a isto o crepusculo da tarde .. Um
crepusculo de duração igual precede a · chegada do sol ao horisonte.
Devemos este augmento tam util do dia ao modo como Deus construiu
o corpo do ar. Estabeleceu elle uma tal proporção entre q ar e a luz,
que quando esta o atravessa a prumo, nada lhe destróe a direcção ;
mas quando um raio de luz entra obliquamente ou de lado em o ar, em
vez de o atravessar directamente, este raio curva-se e desce um pouco.
D'est'arle, quando o sol se approxima ao nosso borisonte, muitos
d'estes raios que passam por cima de nós, e que se não dirigem a nós,
encontrando a massa d'ar que· nos rodeia, curvam-se, dobrám-se pa-
ra a terra ; e chegam a nossos olhos de gcito, que vemos o dia muito
antes que se descubra o astro que o produz; e á tarde, gozamos da
mesma sorte uma parte da sua luz, ainda muito depois que elle desap-
parece. Em fim, tendo sol descido a uma certa profundidade abaixo
do nosso horisonte, já então o ar deixa de qu~brar e abaixar para
nós os raios do sol. E' então que as espêssas trevas avisam o homem a
que ponha termo ao seu trabalho. Se a lua e as estrellas ainda velam,
para ministrar o clarão de sua loz, é elle tam suave que de nenhum mo-
do perturba o seu repouso.
O ar produz ainda outros effeitos mais maravilhosos. E' um men-
sagei_ro que nos traz de toda a parte, e de muito longe, avisos, tam
certos como promptos, de tudo aquillo que nos póde interessar, seja
em bem, seja em mal. E' o portador dos cheiros com que nos adverte,
entre outras muitas cousas, da boa ou má qualidade das comidas; assim
como nos annuncia, por delicadas e lisqngeiras sensações, o que é de
natureza profi.cua para nossos usos. Não é tambem menos fiel em nos
despertar e affiigir a tempo, quando nos importa fugir a um veneno, a
um lugar pantanoso, ou habitação infecta e doentia. Se o ar é para nós
um fiel conselheiro, pela diversidade dos cheiros que nos transmitte, não
desempenha menos as suas funcções pelos differentes sons ~om que nos
toca. Podemos considerar estes sons como outros tantos correios, que
nos envia a cada instante, para nos dizer o que passa, muitas vezes
a distancias consideraveis: está da nossa parte aproveitar-nos do aviso.

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DE f'ERSEVEBANÇA. i7

Ainda mais : tambem nos adverte do que se passa no espiríto


dos outros. Preoccupam-me differentes pensamentos, que só eu co-
nheço, que não são visiveis. Como poderei communical-os a uma ou
muitas pessoas que me fazem a honra de me ouvir? Formo pelos mo-
vimentos da língua e dos labios algumas palavras, cujas determinadas
articulações são signaes de certos pensamentos. Por este meio, quem
· ouve o murmnrio com que meus labios a5itaram o ar, fica sabendo tu-
do o que eu tinha na mente ; preoccupa-se dos mesmos penaamentos ;
e sente no coração os mesmo affectos. Portanto, o ar, para assim dizer,
é o interprete do genero humano, o vinculo dos espiritos. Que maravi-
lha é o nascimento da palavra em o entendimento, a sua encarnação no
exterior, e na mente do auditorio !
Não sómente serve o ar para unir assim os que estam perto pe-
la communicação dos pensamentos, senão que tambem põe em corres-
pondencia aquelles mesmos que estam separados por grandes distancias.
Os babitantes de uma cidade não podem vêr o que se passa fóra dos
muros. Os que sabem que o inimigo ataca uma das portas não podem,
pelo simples soccorro da voz, fazer conhecer promptamente o que lhes
é preciso na extremidade opposta da cidade. Acode o ar em sea au-
xilio. A sentinella, que viu apparecer ao longe o inimigo, dá signal .
tocando um sino. Em um segundo, isto é, durante a sexagesima par-
te d'um minuto, já o ar levou o som do bronze a mil e oitenta pés
ou a duzentos e dezeseis passos geflmetricos em circumferencia da tor-
re. No &eguinte segundo, o som correu outra igual distancia, A nova
do perigo sabe-se em toda a cidade em menos da oitava parte d'um
minuto. N'um instante correm ás armas. repellem o inimigo : ao ar é
que devem a Yictoria.
Por isso o ar é o mensageiro mais prompto e diligente que po-
demos empregar. l\Ias se nos admira pela vigilancia e promptídão,
que diremos da fidelidade com que elle dá o seu recado? Sem a
menor confusão, distribue em derredor a harmonia d'um concerto ;
sem o menor engano dá o exacto metro do compasso, o movimento
das cadencias, as menores expressões ela voz, um tom, uma côma, os
fortes e pianos ; torna todas as fórmas da musica ; apodera-se de to-
1:J

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78 CATECISMO

dos os seus caracteres; fuzila, troveja; desfallece, geme; depois reani--


ma-se, e toma alternadamente um ar brioso e inflammado, um gesto
meigo e gracioso; possue-se tam vivamente de todas as paixões cujos
transportes a musica imita, que enche QS ouvintes dos seus mesmos
affectos. Que abuso faremos d'este precioso mensageiro se jámais o
encarregarmos de transmittir palavras de maledicencia e immodestia !
Ah! possa elle não transmittir jámais senão as expressões da oração e
da charidade !
O ar pela mão do Pai celeste veste todas as fórmas, diversifica
saas funcções para nos servir em nossas orações e necessidades. O
mar contém a agua, que é um dos principios essenciaes da fecundida-
de da terra ; e por consequencia, uma das condições necessarias á nos-
sa existencia. l\las é preciso tirai-a do seu vasto reservatorio e derra-
mai-a por toda a parte : o ar é encarregado d' este cuidado. Similhante
a uma bomba, tira elle a agua e a distribue, segundo a ordem do
Creador, por toda a superficie da terra. Agita-se algumas vezes este
zeloso servo, então lhe damos o nome de vento ; sopra violentamente,
varre, purifica nossas habitações. A não ser elle, as grandes cidades em
breve se tornariam outras tantas latrinas. Além d'isso, aquece-nos e
refresca-nos alternadamente; os seus serviços vem sempre acompanha-
dos d'um perfeito aceio ; pois que o transporte que elle faz de tudo
que póde polluir ou infectar, nunca os olhos o percebem. Mas nós pa-
recemo-nos com estes amos impei·tinentes e desdenhosos que reconhe-
cem o merito de seus domesiicos ; e que só reparam em seus defeitos.
Talvez nunca nos succedesse reparar no serviço assíduo que os ventos
nos fazem milhares de vezes; mas o menor golpe d'ar é bastante para
nos ferir a delicadeza, e pôr pecha no creado.
Emfim o menor beneficio do ar é fazer-nos viver: entra em nos-
sos pulmões, demora-se o tempo necessario para dar força e movi-
mento a nossos orgãos; quando perde a sua elasticidade, sahe; ou-
tro ar o substitue e perpetua a nossa vida. E' a perfeita imagem da
oração, que deve incessantemente aspirar Deus em nós e inspirar-nos
em Deus.

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DE PERSEVERANÇA.

ORAÇÃO.
O' meu Deus! que sois todo amor, eu vos dou graças por terdes
posto todas as creaturas ao meu serviço. O Ceo onde appareceis tam
grande, o ar onde vos mostraes taro admiraveJ, são beneficias de vossa
mão paternal; permitti pois, Senhor, que eu use sempre d'elles para
vossa gloria e minha salvação.
Eu protesto amor a Deus sobre todas cousas, e ao proximo como a
mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d'este amor, obede-
cerei promptamente a todos os meus superiores.

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Vl.3 LICÇÃO. ,

Obra dos seis dias.

Terceil'o dia. - o ma1·. - Seu leito. - Hovimento. - Sal. -


Extensão. - 'Nave1;ações. - A. terra. - Clôr da berva. -
Feeundidade das plantas. - . Sua propa;;-ac;ão. - A raiz.
- A. haste. - A. t'olha. - A. sem.ente, e o t'ructo.

DEUS disse : Ajuntem-se as aguas que estam abai'xo do Ceo em


um só logar ; e appareça o arido : e isto se fez assim.
Deus chamou ao arido terra. E a estas aguas reunidas mar e viu
que tudo isto era bom.
Deus disse tambem : Produza a terra herva verde, que tenha a sua
semente; e arvores fructiferas, que deem fructo, cada uma segundo a
sua especie; e tenham em si mesmas a sua semente, para se reprodu-
zirem na terra: e isto se fez assim. (1)
Prestai uma nova attenção á explicação d'estes mandados. Preparai
lambem vosso espírito para admirardes; e vosso coração para agrade-
cerdes: aqui temos novas maravilhas e novos beneficias. Tendo Deus se-
parado as aguas em duas partes, e deixado na terra a quantidade que
convinha aos seus designios e ao uso que d'ellas queria fazer, mandou
a todas as aguas inferiores, que se reunissem em um só lugar, a fim que
a terra se tornasse visível. (2) A estas aguas assim reunidas deu o no-

(1) Gen. I, 9, 10, 11.


(2) Segundo esta narração, é evidente que a formação do Oceano precedeu a
apparição dos continentes, facto igualmente confirmado pelas observações geologi-
cas. Cosmog. p. 67.

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82 CATECISMO

me de mar. Esta ordem, ajuntem-se as aguas que estam abaixo do


Ceo em um só lugar, que não é aqui mais que uma simples palavra,
foi um trovão e uma terrivel ameaça, como diz o Propheta. (i) Em vez
d'escoarem tranquillamente, fugiram aterradas; e pareceram prestes,
não tanto a abandonar a terra, como a transpôr o universo; tal a rapi-
dez com que se precipitaram e amontoaram umas sobre as outras, para
evacuar o espaço que, ao parecer, tinham usurpado, por isso que Deus
as expulsou.
N'esta obediencia tumultuosa, com que as aguas aterradas parece
levariam o estrago e a desordem aonde quer que desaguassem, uma
mão invisivel as governou com tanta facilidade como uma mãi pensa e
menea seu filho ; a quem, depois de enfaixado, deita em seu berço.
E' por esta simples imagem que o mesmo Deus nos representa o que
fez então. «Quem pôz diques ao mnr, diz elle a Job, para o ter encer-
rado, quando elle transbordava sahindo como do ventre de sua mãi :
Quando eu Jhe punha nuvens por vestidura, e o envolvia em obscurida-
de e tenebrosa nevoa, como em envolvedouro de infancia ? Eu o encer-
rei nos limites, que lhe prescrevi, e lhe puz ferrolhos e portas ; e lhe
disse: Até aqui chegará5 e não passarás mais longe ; e aqui quebrarás
as tuas empolladas ondas . .,, (2) O mar não abandonou senão aquella par-
te da terra que a Deus aprouve descobrir, deixando as ilhas que resol-
vêra povoar. e enchendo sómente os lugares que lhe foram destinados. ·
Assim foi posto em seu leito este filho gigante; desde este momento
alli permanece tranquillo, retido pelos polvilhas d'arêa que o Senhor as-
signou para limite do seu berço.
Todavia as aguas do mar, encerradas em seu vasto reservatorio
podiam corromper-se e exhalar vapores malignos, que tornariam a ter-
ra inhabitavel. A sabedoria creadora previu este inconveniente. O mes-
mo Deus que prohibiu ao mar que não ousasse ultrapassar seu leito,
ordenou-lhe tambem que estivesse em continuo movimento ; e o mar
obedecendo impelle todos os dias, durante seis horas, todas as suas

(1) Psalm. III, 6, 7.


(2) Job. XXXVIJI, 8, 11.

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DE PERSEVERANÇA. 83
aguas, do centro para as extremidades, e todos os dias tambem as re-
trahe, das extremidades para o centro, igualmente durante seis horas.
Ha seis mil annos não faltou a isto uma só vez. Este movimento chama-
se fluxo e refluxo, e é commum a todos os mares. Faz-se mais sensivel
no Oceano, onde é mais necessario; pois tem muito maior quantidade d'agua.
D'est'arte o fim d'este milagroso movimento é impedir que as aguas
do mar se não corrompam e apodreçam por um longo repouso. Mas ainda
nos serve para outros fins ; porque é para nós que o mar existe, e é tam-
bem para nós que se agita perpetuamente. Em primeiro lugar o fluxo,
ou as marés, repellem a agua dos rios, e as fazem remontar e internar,
fazendo seu leito assás prof1.mdo para poderem trazer ás portas das gran-
des cidades as enormes cargas de mercadorias estrangeiras, cujo trans-
porte seria, sem este soccorro, impraticavel aos navios. Esperam e3tes
algum tempo a enchente da maré para chegarem á enseada sem tocar no
fundo, ou entrar sem perigo no leito dos rios. Depois d'este importante
serviço, baixa a maré, e deixando que o rio torne aos seus limites ordi-
narios, facilita aos habitantes de suas margens o gozo das commodidades
que a ordinaria corrente lhes offerece.
Outra vantagem, que este movimento perpetuo do mar procura ao
Christão, é mostrar-lhe uma imagem instructiva de sua vida; a qual não
é senão um fluxo e refluxo; cresce e diminue, tudo n'ella é inconstante;
alegria, formosura, felicidade. Nadamos n'uma agua rapida e caprichosa.
Não nos deixemos arrastar ao abysmo ; mas procuremos chegar felizmente
ao porto, cujas margens são risonhas e flóridas.
O fluxo e refluxo é por tanto o primeiro meio por onde Deus impe-
de que as aguas do mar se não corrompam ; o segundo, é o sal de que
estão impregnadas.
Para se conservar effi.cazmente o mar em sua pureza, com o fluxo e
refluxo vascoleja todos os dias, d'uma extremidade a outra, o sal de que
está cheio. Se não fosse este movimento nunca interrompido, o sal se
precipitaria promptamente no fllndo. Se isto acontecesse, o mar nos in-
fectaria por um fétido insupportavel; e não poderia já nutrir os peixes,
dos quaes admiramos igualmente o numero e a delicadeza; mas a sabe-
doria creatlora previu tudo. e ludo fez por conta. pêso e medida.

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CATECISMO

A salsugem do mar, que já nos interessa tanto pela conservação das


aguas e dos peixes, ainda nos procura outros bens. As partes salinas,
porque são mais pesadas, resistem ao calor e ao ar que evaporam as
aguas; e é isto que limita a quantidade da evaporação . Quanto mais par-
tes salinas resistem á acção do calor e do ar, menos partes d'agua se eva-
poram; o sal, pejando a agua, modera-lhe por tanto a evaporação; e a
salsugem do mar determina a justa quantidade cl'agua dôce que o sol
lhe tira para nossos usos. Se não fosse a resistern..~ia dos saes levantar-se-
bia muito maior volume de vapores, que innundariam a terra em vez de
a fertilizar. Teríamos mais ametade ou terça parte de chuvas, rios, paúes;
e a terra toda seria um charco. Por isso podemos dizer com toda a ver-
dade que, se a agua do mar não fosse salgada, rnorreriamos de fome.
Esta justa proporção acha-se igualmente na extensão do mar, que,
pouco mais ou menos, occupa as duas terças partes do globo. Parece á
prim~ira vista, que seria mais vantajoso que o Creador convertesse em
terra firme este immenso espaço occupado pela agua; isto é, pelo mar,
os lagos e os rios. Raciocinar assim é mostrar ignorancia e falta de ciso.
Se o Oceano fosse a metade do que é, não exhalaria senão a metade dos
vapores que exhala : logo não teriamas mais que a metade dos rios e das
chuvas; e a terra não seria bastanternente regada. O mar pois é o reser-
vatorio geral das aguas, d'onde o calor do sol levanta a sufficiente quan-
tidade de vapores que, convertidos em chuva, de~c.em aos campos, ou for-
mam o manancial dos regatos e rios. Se a extensão do mar fosse menor,
haveria muitos triais desertos e paizes aridos; por i~so que seriam mui-
tas menos as chuvas e os rios.
Aqui temos outra prova d'aquella a dmiravel sabedoria que presidiu
á divisão das aguas e da terra. Se Deus houvesse deixado na terra maior
quantidade d'agua, seria ella um vasto paúl qua não poderíamos habitar.
Se houvesse deixado menor quantidade, seria a terra demasiadamente
sêcca, e não a poderíamos cultivar; as plantas, as arvores, nada se d~ria
n'ella. Importava que a terra fosse bastante dura, para offerecer-nos um
torrão ao mesmo tempo solido para nos sustentar, e bastante molle, para
que houYessemos de a semear; as plantas, enterrar ~uas raizes em suas
entranhas; e a agn;i, quo as nutre, ter livre circul<~ção.

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DE PERSEVERANÇA. 8ts

Demais, quaes seriam as vantagens que poderiamas tirar do com-


mercio, se este grande montão d'agua não existisse? Não era intenção de
Deus que uma parte do globo ficasse totalmente independente e separada
das üutras; pelo contrario, quiz que houvesse relações entre todos os po-
vos; e o mar é que as torna passiveis. Se não fosse a navegação, como
poderiam.os adquirir riquezas e thesouros ; fazer todas ·as partes do mundo
tributarias de nossas precisões e prazeres? Por isso, longe de ser o mar um
meio estabelecido, para ter as nações separadas e encerradas em certos
limites, é, pelo contrario, um meio que Deus empregou para unir todos
os povos, compensal-os d'aquillo que lhes recusou, e facilitar o transporte
das mercadorias, que, sem este auxilio, seria impraticavel.
Talvez ainda não reflectisseis nas vantagens da navegação, talvez
ainda não desseis graças ao Creador. Todavia, é á navegaç.ão que deve- ·
mos, directa ou indirectamente, uma grande parte das cousas neces-
sarias á nossa subsistencia. Os aromas e os medicaaientos, os estofos
e as côres, os fructos preciosos que nos vem de paizes distantes, ou os
não teriamas ou pelo menos custar-nos-hiam muito trabalho e despeza,
se os navios os não trouxessem aos nossos portos. Que seria, se fossemos
obrigados a conduzir por terra todas as cousas de que precisamos ! Fa-
, çamos um calculo para vêr quam mal nos iria. Um navio póde levar um
milhão e duzentas mil libras de pêso. Ora, suppondo que um cavallo
póde com doas mil, seriam precisos, para transportar esta carga, cento e
cincoenta e seis carros tirados a dous cavallos. Em fim, o ultimo benefi-
cio da navegação, e por consequencia o ultimo serviço do mar, sem o qual
não haveria navegação, é a propagaç.ão do Evangelho até ás nações mais
remotas.
Povos e tribos, filhos dos homens, outr'ora jacentes nas sombras da
morte, dai graças a Deus que creou o Oceano; a não ser esta vasta pla-
nicie que transporta, com a rapidez do relampago, os Apostolos da Boa
Nova, ainda estaríeis sepultados nas trevas do erro. Mas é tempo de dei-
xarmos o mar. Eis-aqui a terra que de.manda a nossa attenç.ão.
Depois que todas as aguas se precipitaram no3 vastos receptaculos
que o Todo Poderoso lhes tinha preparado ; o arido, isto é, a terra ap-
pareceu. O designio de Deus, descobrindo a terra, era tornai-a fecunda,

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86 CATECISMO

revestil-a de verdura, cobril-a de plantas e de toda a especie d'arvores,


enchêl-a d'animaes, e dal-a ao homem para sua habitaçJo. Mas por algum
tempo a deixa arida, nua e esteril, tal como ella é de si mesma ; quer
que no futuro ella derive o seu nome de sua aridez natural: para que
aquelles, que um dia seriam tentados a e onsideral-a comG a origem de
todos os bens que a enfeitam e embellezam, se lembrassem da sua pri-
meira indigencia: Appctreça o arido . Deus chamou ao arido terra.
Eis-aqui pois uma nova creatura qne se offerece á vista. Estava a
terra, mãe que nos nutre, mui vergonhosa n'este primeiro momento;
porque estava toda núa, sêcca e esteril. Apressou-se Deus a lbe dar um •
vestido digno da sua magnificencia e bondade. Elle disse: Produza a
terra herva verde; e para logo ficou vestida d'um bellissimo manto (t ).
Traje immortal, que ha seis mil annos está tão fresco, brilhante e agra-
davel como no primeiro ~ia em que a ter~a a estreou. A primeira cousa
que attrahe a attenção, é a escolha que Deus fez da côr verde para o ves-
tido da terra. O verde vegetal está em tal proporção com a vista, que
bem se vê que a mão que coloriu a natureza, é a mesma que formou os
olhos do homem para d'ella ser espectador. Se tivesse pintado de branco
ou vermelho todas as campinas, quem Jhes poderia supporlar o brilho e
a vivacidade? Se as obscurecesse por côres mais sombrias, quem poderia
deleitar-se com uma vista assim triste 'e lugnbre? Uma agradavel ver-
dura é o meio termo entre estas duas extremidades; tem uma tal rela-
ção com a estructura dos olhos qne os recreia sem applicação, e nutre
sem cansaço. E o que é ainda mais notavel é que n'esta só côr dá-se tal
diversidade, que não ha uma só planta cujo verde seja exactamente tão
carregado ou tão claro como o de qualquer outra. Estes agradaveis tons

(1) D'est'arte, pela relação de Moysés, e d'accôrdo com os factos geologicos, a


vida teria começado na terra pelos vcgetaes; e primeiramente pelas plantas herba_
ceas. Pelo menos, este grande escriptor põe constantemente hervam antes de'lignum,
supposto que as arvores dão muito mais na vista que as hervas propriamente ditas.
Logo adm.ittiu, como materia de facto, esta verdade, que não foi demonstrada senão
depois de dezoito scculos d'obscrvaçào que os seres viventes succedcram-se uns aos
outros, na mzão inversa da complicação de seus orgãos. Cosmog. p 69. Edição de
Paris, 1838.

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DE PERSEVERANÇA. 87

e matizes de côr tiram a monotonia, e attestam a riqueza do pincel, e a


habilidade do pintor divino que coloriu a natureza. Tanta sabedoria e
bondade não nos está fallando ao coração? não nos impõe algum dever?
Creando a herva, gracioso enfeite da terra, Deus disse : Produza o
arido herva verde, . que tenha em si a sua semente propria. E' isto mais
maravilhoso que tudo o que temos narrado; porque d' este modo empe-
nha-se Deus em conservar as plantas~ e lhes communica uma especie de
immortalidade. Com effeito a berva não demanda lavoura nem semen-
teira; cresce e perpetua-se independente de nossos cuidados. Quão tris-
tes e aridos seriam nossos lameiros e prados, se houvesse o homem de
lançar á terra a semente das hervas, e regar depois o que tivesse semea-
do e plantado por suas mãos t O nosso Pae celeste dispensou-nos d'este
cuidado: vejamos como elle mesmo o desempenha. Que numero infinito
de plantas não cultiva elle para os prazeres e precisões de seus filhos t
Em um prado de mil passos quadrados achareis milhares de milhares de
hervas ; e em um só pé quadrado, mais de mil especies differentes; e
como todas são odoriferas, reunindo-se estes milhares d'aromas, formam
o rico perfume do campo que o ar, fiel mensageiro do Creador, nos
transmitte gratuitamente . E accresce, admiravel cousa t que entre tantas
plantas e hervas, as mais numerosas são aquellas que nos servem de ali-
mento ou de remedia.
Mas porque razão multiplicou o Creador tão prodigiosamente as pro.
ducções do reino vegetal? Primeiramente para nosso alimento e saude;
depois para a subsistencia dos animaes que nos servem. Os prados são
propriamente as tulhas e celleiros dos animaes.
Não é só o numero das plant~s que faz resplandecer a magnificencia
do nosso Pae celeste; é tambem a sua admiravel fecunaidade. Um só pé
produz milhares e talvez milhões de sementes. Um pé de tabaco, por
exemplo, produz algumas vezes quarenta mil, trezentos e vinte grãos de
semente. Se calcularmos por isto a sua fecundidade no espaço de quatro
annos, vêr-se-ha que d'um só grão podem provir dous quintiliões, seis-
centos e quarenta e dous quatriliões, novecentos e oito triliões, duzentos
e noventa e tres biliões, trezentos e sessenta e cinco milhões, setecentas
e sessenta mil sementes. Um olmo de doze annos tem muitas vezes cin-

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88 CATECISMO

co mil sementes. Que numero prodigioso não resultará d'aqni cm pou-


cos annos f Quando nos lembramos que o mesmo succede proporcional-
mente com as outras plantas, admiramo-nos que a terra não fosse ainda
consumida pelas plantas.
Qual é pois o milagre perenne que reduz as plantas ao seu justo nu-
mero. E' que uma multidão inumeravei d'animaes nutrem-se d'hervas e
plantas; fazem d'ellas annualmente tão grande consumo, que se Deus não
tivesse dotado os vegetaes de tão extraordinaria fecundidade, poderia te-
mer-se que totalmente se destruissem. Aqui apparece esplendidamente
uma d'aquellas bellas harmonias, que são tão frequentes nas obras de
Deus. Se a multiplicação das plantas fosse menos consideravel, grande
numero d'animaes morreriam de fome; por outra parte, se os animaes
se multiplicassem com maior fecundidade, as plantas se consumiriam
logo; e muitas especies d'animaes desappareceriam inteiramente. Mas
bemdito Deus, que estabeleceu estas proporções entre o reino vegetal e
o animal; os habitantes d'um e d'outro multiplicam-se em justa quanti-
dade, e sem qua pereça nenhuma especie.
Ordenando ás plantas que produzam a sua se mente, communicou-
lhes Deos, como já dissemos, uma especie d'immortalidade. Considere-
mos agora um instante como esta immortalidade se verifica ; por outras
palavras, como as plantas se reproduzem. N'isto não faremos mais que
seguir o conselho do mesmo Salvador que, para animar a nossa con-
fiança em Deus, exhorta-nos a que examinemos porque maneira crescem
e se conservam os lirios dos campos.
Em todas as plantas distinguem-se quatro partes: 1. º a raiz, 2. 0 a
a haste, 3. º a folha, 4. º a semente ou o frocto. Um grão cáe na terra e
nada temaes, não perece: Deus vela esta pequena creatura, como faz com
o mundo inteiro. Vamos vendo as operações do divino :;igricultor. Co-
meça elle por cobrir a semente com uma camada de terra, que não é
muito espêssa, para a não suffocar; mas sufficiente, para a defender do
frio que a não gele, do calor que a não queime, do vento que a não
leve, dos passaras que a não comam. Agora examinai o que succede:
chama elle o calor e a humidade para inchar a pevide. A casca estala, e
vêdes sahir d'ella dous pequenos germens; um sobe, outro desce; o

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DE PEHSEVERANÇA. 89
que sobe é a haste, o que desce é a raiz da planta. Quem disse a estes
dous germens que se dividissem e tomassem cada um seu caminho diffe-
rente? Mas vamos seguindo n' elles.
L º A raiz: tem por fim t. 0 fixar a planta para não cahir na terra,
da qual a demasiada humidade a faria aprodrecer, e para que não seja
arrebatada pelos ventos. 2. 0 Procurar e transmittir á haste uma parte de
seu alimento; por isso, a raiz é ôca pelo meio. Por este pequeno canal
sobem, attrahidos do calor, os suecos que eJla exlrahe da terra. Mas que
perigo ha n'esta operação 1 Nem todos os suecos de que a terra está
cheia, convém a qualquer planta; e sabemos que ha milhares d'espe-
cies (t).
Não temaes que a raiz se engane: sabe muito bem escolher os que
lhe servem. Mas quem lhe ensinou a distinguil-os? Qual foi a escola,
qual o mestre com quem frequentou o curso de cbimica ? Eis-aqui outra
élifficuldade. Algumas vezes os suecos convenientes á planta não se acham
se não a alguma distancia. Que ha de fazer a raiz ? Não vos assusteis.
Conduzida pela mão da Providencia, a raiz alonga-se; envia, para a di-
reita e para a esquerda, pequenos filamentos a sondar o terreno, provar
os suecos, e tirar informações das suas qualidades. Mas offerece-se novo
embaraço. A raiz está separada dos suecos convenientes por uma pedra
ou um pequeno fosso : que partido tomará ? Esta ama fiel não se atemo-
risa, rodeia habilmente a pedra, ou salta corajosamente o fosso.
Passando pela raiz, os suecos preparam-se e purificam-se como as
substancias que se distillam no alambique, ou os alimentos que a mãe
tritura, adoça, impregna de saliva digestiva, antes de os metter na bôca
do seu filhinho. Entre a raiz e a haste interpõe-se um fermento que,
misturado com os suecos, communica-lhes as qualidades proprias da
planta; por onde, nos fructos, a diversidade dos gostos.
2. 0 A haste, á proporção que a raiz se mergulha na terra, a haste
eleva-se para o ceo. A haste é repassada d'uma multidão de pequenos
canaes, por onde sobem e descem os suecos nutrientes, transmittidos

(1) Alguns phisicos pretendem que todos os suecos da terra são homogeneos, e
q1ie as plantas os modificam assimilando-os.

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DO CATECISMO

pela raiz. Do mesmo modo, em nosso corpo, ha uma multidão de veias


pelas quaes o sangue circula continuamente, e nos entretem a vida. A
haste, sahindo ela terra, vai fazendo nós; estes servem primeiramente a
fortifical-a; e em segundo lugar, a purificar cada vez mais os suecos for-
necidos pelas raízes. São pequenos alambiques, collocados uns sobre ou-
tros, que rião deixam passar senão o que é mais fino e delicado. Mas
tornando-se mais forte, a baste carece de suecos mais abundantes; qual
a creança que, assim como vae crescendo, maior quantidade precisa de
alimentos. A raiz, que é como a ama da haste, corre portanto o perigo
de desfalJecer, e a haste de morrer á fome. Deus o previu; Pae nutridor
de tmlo o que vive, eil-o que vem em soccorro da sua obra. Este soe.
corro são as folhas.
3. º A folha. Brota da haste uma pequena pellicula, que se desen-
volve insensivelmente: esta é a folha. A parte da folha que facea o sol é
liza e pui da. E para que? Para melhor se aquecer ao sol, e reflectir na
haste um calôr que a conserve, dilate, active a circulação dos suecos, e
os purifiqu e. O lado da folha que olha para a terra é aspero e cheio de
pequenos pêllos perfurados. Para que é esta differença ? E' outra invenção
admiravel do divino Jardineiro. Todos estes pequenos pêllos estão abertos
para sorverem o ar adjacente, bem como todos os vapores que se Jevan·
tam da terra ; e introduzil-os na haste para nutril-a. Tam babeis como a
raiz, estes novos cbimicos só admittem as partes d'ar e vapores que são
convenientes. Mas estes suecos, colhidos pela raiz e as folhas, poderiam,
por muito abundantes, matar a planta; suffocal-a por demasiado alimento.
Como evitou a Providencia este novo perigo. ?
Eis-aqui o modo : todos estes pequenos pêllos, que cobrem a parte
inferior da folha, são outros tantos poros pelos quaes a haste expelle, como
por transpiração, os suecos superabundantes ou excrescentes.
4.. 0 A semente e o fructo. Eis-aqui pois tres partes da planta, a
raiz, a haste, a folha. Todas concorrem ao mesmo fim, que é a formação
da semente ou do fructo. Quando a haste pois tem chegado á altura e
força conveniente, vêmas na parte superior rebentar um pequeno botão,
que encerra tudo que ha mais precioso na planta. Assim é para vêr, que
ternos e multiplicados cuidados teve aqui a Providencia. Primeiramente o

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DE PERSEVERANÇA. !H

agazalha com tres ou quatro envolvedouros bem unhlos e achegados ; a


filll de o proteger do frio, do calor, dos insectos, dos ventos, da chuva.
O primeito d'estes envolvedouros é mais duro e offerece maior resisten-
cia ; o segundo excede em as~etinado e fino a cassa e sêda ; o terceiro,
que está em contacto com a semente, não tem cousa com que se compare
pelo que é delicado e macio. E' feito assim, para não ferir a creaturinha
que em si envolve. A' proporção que se engrossa este precioso germen,
alargam-se os envoltorios ; abrem-se alfim, mas nem de todo nem de re-
pente, que seria isso expôr esta criancinha ao perigo de morrer. Depois
qne está fórte, sim ; todos estes pannos de cassa, estes macios velludos
abrem-se, do mesmo modo que a um menino se tiram as faixas que o
ligaram. Este germen precioso é destinado a dar o nascimento a novas
plantas ; por isso é acompanhado d'uma alegria e magnificencia inexpri-
miveis. Quando nasce o filho d'um rei, recebem-no em dourado berço,
collocam-no em camara ricamente decorada. E' o que faz este Deus todo
amor com o filho ou o fructo da menor hervinha. A suavidade, o asse-
tinado e macio inimitavel das folhas, pintadas das mais bellas, variadas e
finas côres ; eis o que lhe serve de enxoval e de berço. Exhala-se em
redor suavissimo perfume, e no meio d'esta habitação, mais rica e sump-
tuosa que os palacios dos rei~, é que nasce e cresce o filho da planta.
Examinai tudo isto miudamente ; e vêde se podereis deixar de dizer com
o divino Salvador: Asseguro-vos qne Salomão, com toda a sua magnifi-
cencia, não foi jámais tam ricamente vestido, tam regiamente alojado.
Homens de pouca fé t Se vosso Pai celeste cuida tanto d'uma herva, que
não vive mais que um dia, ~ ámanhã se queima, que não fará elle por
amor de vós ? Comó desconfiaes da sua Providencia ?
Quando estas novas sementes estão assaz robustas e feitas, para
poderem ser mãis de novas plantas, a haste, que as sustenta, inclina a
cabeça; parece dizer: está acabada a minha tarefa. A semente cahe no
chão e outra vez começa, para formação d'outras plantas, o admiravel
trabalho que acabamos de descrever. Se a planta precisa propagar-se ao
longe, Deus presta azas á semente; e quando está prestes a partir, manda
aos ventos que as levem ; e transportadas por este;; fieis mensageiros, vão
pousar nos lugares que a Prçviuencia lhes designa. Ahi se levantam novas

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92 CATECISMO

gerações, formam-se colonias ; e como se foram missionarios, ammnciam


a outros homens a omnipoten ia e sabedoria do Creador. Oxalá nu apro-
veitem s de sua eloquente palavra ! Não seria rivel, ao vêr o cuidado, e
para assim dizer, a complacencia com que Deus cura da menor planta,
do pézinbo d'erva, que pizamos no caminbo, da mais humilde flôr, em
summa; não seria crível digo, que ella devesse durar sempre? Todavia
da manhã para a tarde empallidece e murcha; no dia seguinte está res-
sequida do sol· pouco depois cahe aos golpes da encurvada fouce . Que
de emos pois julgar do immenso mar de bellezas que ba em Deus, pois
que as derrama com tanta profusão em uma beninha, que em pouco
dias morre? Emfim, que juizo faremos dos cuidados que prodigaliza a
nossas almas, suas immortaes imagens?

ORAÇÃO.
O' meu Deus ! que sois todo amor, eu vos dou graças por terdes
creado o mar, para nos dar a chuva e o orvalho, e a terra, para nos
servir d'habitação : pela terdes enfeitado com tantas belJezas ; e tratado
com tam grande ternura a mais humilde flôr, a mais tenra bervinha.
Pois que por amor de mim, Senhor, fizestes tudo isto; concedei-me a
graça de tirar proveito de tantos beneficios.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d'este amor, todas
as manhãs elevare·i a Deus meu espir·ito.

..
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VII.ª LICÇÃO.

Obra dos seis dias.

Cont.inuação do 3.0 dia. - Creação e variedade das arvore!I


f"ructiCea·as. - Propriedade dos :fa·uctos. - A.r'1'ores que não
dão .f'ructo. - sua utilidade. - Utilidade e m.aA;nif"iceneia
das Oorestas. - Riquezas encerradas 110 interior da terra.
- Os m.etaes. - O ouro. - o fe1·1·0. - Quarto dia. - Creação
do sol. - sua distancia da terra. - Seu mo'7i.m.ento. - o
na!'lcer do sol. - sua luz.

Não bastava nem á magnificencia elo Creador, nem á sua bondade


para com o homem, que a terra ficasse sómente adornada do seu manto
verde, matizado de flôres odoriferas e salutares ; uma nova palavra veio
acabar d'embellecer a futura morada do rei da creação. Deus disse: Pro-
duza o arido arvores fructif eras que deem fructo cada uma segundo a
sua especie, e tenham sua semente em si mesmas, para se reproduzirem
sobre a terra. E isto se fez assim. ( t)
Antes d'esta palavra, a terra não era mais que um prado ou uma
horta ajardinada. Mas a esta palavra tornou-se para logo um immenso
vergel, plantado de toda a sorte d'arvores, carregadas de fructos de mil
especies; os quaes devem succeder uns aos outros segundo as estações.
O' homens l abri os olhos, os olhos da alma; e vêde ainda a sabedoria
e bondade de vosso Pai celeste.
1. 0 Na creação e variedade das arvores fructiferas. Que manan-
cial de gozos em tam prodigiosa variedade do fructos, qne naturalmente
se revezam , ou se conservam durante todo o anno. Entre a~ anor::i. s frn-
(1) Gcn. I, 12

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CATECISMO

ctiferas, aigumas ha que não dão fructo senão em uma só estação: outras,
em duas estações clifferentes; outras emfim, abrangem as estações e até
os annos. As larangeiras, por exemplo~ produzem ao mesmo tempo flôres
e fructos verdes e maduros. Deus o quiz assim por muitas razões, que
todas redundam em nosso proveito. Primeiramente ensina-nos a soberana
liberdade, com que póde diversificar as leis da natureza ; e em todos os
tempos, e de todas as cousas, fazer egualmente o que lhe apraz. Em
segundo lugar, endereça-se-nos ao coração. Esta arvore, cujos ramos estão
curvados para a terra com o peso d'excellentes fructos, dos quaes o cheiro
e a côr annunciam o gosto, e cuja abundancia maravilha a imaginação,
não :parece que está dizendo, com sua pompa e riqueza : aprendei em
mim qual a bondade e munificencia do Deus que para vós me creou ?
Não é para elle nem para mim mesma que eu sou tam rica. Elle, de nada
carece; eu, não posso fazer uso do que me deu. Bemdizei-o, e descar-
regai-me : dai-lhe gra~as; e, pois que me fez ministra de vossas delicias,
sede-o vós tambem da minha gratidão.
Não vos pârece ouvir, por toda a parte os mesmos convites? A cada
passo uma especie nova, um novo motivo de agradecimento. Vêde pois,
ó homens l como a divina sabedoria se divertiu na formação das crea-
turas ! Aqui, esconde-se o fructo, como a noz; alli, a amendoa estã no
interior, como no pecego, em quanto uma carne delicada brilha exterior-
mente com as mais vivas côres. Todas as creaturas, que nos estão pe-
dindo o nosso reconhecimento, tambem nos lançam em rosto a nossa
ingratidão. Os santos entendiam estas duas linguagens, e vós tambem as
entendereis. Conta-se d'um venerando solitario que, ao vêr as hervas, as
flôres e arbustos, que encontrava no caminho, tocava-os brandamente com
seu bordão, e dizia: calai-vos, calai-vos; eu vos entendo; criminaes a
minha ingratidão; socegai, socegai; já agora bemdigo e amo aquelle que
vos creou por amor de mim.
2. º Em suas relações com os climas e estações. Todas estas ar-
vores que, ri palavra do Creador, appareceram em um só dia e no mes-
mo paiz, para instruir e deleitar Adam, que breve devia, como ellas.
entrar na existencia, são destinadas para dous climas differentes. Os
fructos acidos serão mais ordinarios nos paizes quentes, onde mais se

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1JE PER~EVEHANÇA. 95

requerem: taes, por exemplo, os limões. Os fructos mais dôces e varia-


dos abu~dam onde o calor é mais moderado : as maçãs, as pêras &e.
O mesmo succede com os fructos dos arbustos e plantas : todos estam
em perfeita harmonia com os climas e estações. Porque motivo se nos
vem elles offerecer pelo calor do verão e do outono ? Ah ! é que o nos-
so sangue escandecido pelo sol e o trabalho carece de refrescos. Vêde
se não somos, permitti a expressão, os miminhos de nosso Pai ce-
leste.
Desde o mez de Junho fornece-nos, sem que d'isso cuidemos, fram-
boezas, groselhas e cerejas.
No mez de Julho guarnece as nossas mesas de ameixas, pecegos,
damascos e algumas especies de pêras.
Em Agosto mais parece procligalisar do que dar fructos: os figos,
as cerejas serodiasa e urna multidão d'exceJlentes pêras.
No Setembro provê-nos de uvas, pêras d'inverno e maçãs.
Os mimos do mez d'Outubro são diversas sortes de pêras, ma-
çãs, e deliciosas uvas. Tal é a sabia economia com que este bon-
doso Pai nos distribue seus dons: por uma parte, faz que a sua
grande abundancia nos não custe fadigas; por outra, procura-nos uma
grande variedade de gozos. E não é só para servir ao luxo dos ricos,
mas tambem para satisfazer ás precisões dos pobres, que Deus tam
prodigamen~e multiplicou os fructos; porque muitos menos bastavam.
se se não trat<\sse mais que de conservar e propagar as arvores. E'
pois evidente, que o Creador quiz attender á nutrição dos homens, e
particularmente á dos pobres. Deu-lhes, em fructos, um meio de subsis-
tencia barato, nutriente, salubre, e tam agradavel, que nada tem elles
a invejar as exquisitas, e tantas vezes nocivas iguarfas dos ricos.
3. 0 Em as arvores que não dão fructos. Devemos ainda notar
a respeito das arvores fructiferas uma attenção de nosso Pai celeste.
Estas arvores nunca se elevam a grande altura. O fim da Providencia é
evidente. Que seria, se carecessemos de colher as maçãs ou os pecegos
em arvores tam altas como os pinheiros ou os choupos! A palavra crea-
dora não exprime senão arvores fructiferas, e com effeito, toda a arvore
produz fruclo ; mas só chamamos propriamente at'vores frucLiferas aquel·
*

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96 CATJ.:ClSl\10

]as, cujos frnctos servem ao nosso alimento: as outras tem igualmente


suas vantagens. Em primeiro lugar, seus fructos nutrem um sem nume·
ro de passaros e insectos uteis ao homem ; d' elles tira a medicina
remedias, as artes côres; em segundo lugar, a quantos usos não serve
a madeira f O carvalho, cujo crescimento é muito demorado, e não se
veste de folhas senão quando as outras arvores estam já copadas, forne-
ce a madeira mais dura ; e a arte a sabe empregar para infinitas obras
de carpinteiro, marcineria e esculptura, que parecem arrostar com os
seculos. A madeira menos dura serve em outros usos; e como abunda
mais e cresce mais depressa, assim é de mais geral utilidade. E' á ma-
deira das arvores que devemos os navios, a5 casas, a lenha, os moveis e
utensílios necessarios e commodos. Contém ella a principal matcria ou ali-
mento mais natural do fogo; sem o qual nem poderiamos cosinbar os
alimentos mais communs, nem fabricar as cousas mais necessarias, nem
ainda conservar a saude.
Sem duvida, é o sol a alma da natureza; é elle que communica a
todas as cousas a acção e a vida; mas não somos senhores de converter
em nosso uso uma porção de seus raios para cosinhar as viandas, fun·
dir e obrar os metaes; é a lenha que suppre o sol na maior parte d'es-
tas operações ; e que, por sua maior ou menor quantidade, offerece ao
homem todos os graus de calor e de chamma. Tambem são as arvores
eloquentes prégadores da sabedoria e bondade do Creador. Aquellas, que
estam cheias de resina e de pez, reservam-se para as montanhas. cober-
tas por longo tempo de neves; como os pinheiros e os abetos. O humor
quente e pegajoso que lhes serve de seiva defende-as do rigor do frio.
Conservando sempre a verdura, são um signal da immortalidade ; bem
'como as outras, que se despem no inverno, para se revestirem na prí-
mavera, são a imagem da resurreição.
Ainda não pára aqui. Em tanto que Deus, na maior parte das plan-
tas e arvores, faz anteceder o repouso do inverno ao trabalho das esta-
ções seguintes, mostra-nos conservando a ramada do zimbro, do azevi-
nho, do carvalho e de muitas outras, que elle não está sujeito a nenhu-
ma lei ou necessidade. Todavia não se serve de súa liberdade capricho-
samente ; regula-lhe o uso pela utilidade do homem : é este filho queri-

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DE PEBSEVEHANÇA.

do que sempre tem na mente. A não ser a verdura perpetua de certos


arbustos, qual seria o recurso da lebre, do coelho, do veado, do ~abrito
rnontez, e de tantos outros animaes, de que o homem se serve, sem
que d'elles tenha algum cuidado!
4. º Em as florestas. A primeira cousa que nos deve maravilhar,
é a sua rnagnificencia : que differença entre estes altos troncos, que se
levantam aos ares, como para levar até ás nuvens a gloria de Deus, e
as pequenas plantas, que cultivamos em nossos campos! As florestas
são o jardim do Creador; mas que differença não ha entre estes jardins
e os nossos 1 Estes já os damos por espaçosos, quando tem algumas gei-
ras de terra ; occupam aquelles, paizes inteiros: não tem nu~mero, nem
medida, a producção e estatura dos troncos; e tgrlavía, estes, tam bem
nutridos, apenas distam alguns palmos uns dos outros. Quem empre-
hendeu, e levou á perfeição toda esta obra? Que jardineiro se esmerou
em plantar esta multidão d'anores. Quem tratou de as pot.lar e regar?
Foi Deus. Para si reservou elle as arvores e as florestas ; e, supposto
seja tam!Jem elle quem dá o ser e o crescimento a todas as outras, com-
tudo as florestas são propriamente os seus jardins. Só elle os plantou,
mantem, sustenta com vigorosos liames. e conserva no decurso de mui-
tos seculos, contra os esforços dos ventos e tempestades; só elle tira
dos seus thesouros orvalhos e chuvas bastantes, para lhes dar todos
os annos verdura nova, e entreter n'elles uma frondosa immortalidade.
A sabedoria divina distribuiu as florestas pela terra, com mais ou
menos parcimonia ou abundancia; mas sempre em justa proporção. Pu-
rificam ellas o ar; prestam-nos a frescura de sua sombra; embellezam
a natureza com sua agradavel variedade ; abrigam e alimentam infinitos
animaes, uteis á nossa existencia. E' nos bosques que Deus abriu, á
maior parte d'elles, um seguro asylo: ahi os proveu abundantemente de
tudo, elle só os veste, e nutre, e aposenta. A um deu a força, a outro
a astucia, a este a velocidade, áquelle o furor, com que tira ao homem
da indolencia, tirando-lbe a seguridade. Por toda a parte recouhecemos
a sabedoria d'aquelle que f0z tudo, p~ra as nossas precisões, e até para
os nossos prazeres.
Se as riquezas que cobrem a face ua terra excitam, com justiça, o

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98 CATECISJ\10

nosso reconhecimento e admiração ; que sentimentos devemos experi-


mentar quando soubermos, que as entranhas da terra encerram thesou-
ros não menos numeroso3 e variados? Seriam precisos volumes, para 0s
descrever miudamente. Ahi temos ora o diamante, ora as pedras pre-
ciosas, ora os marmores, ora as pedras de construcção, ora os metaes.
Digamos sómente algumas palavras á cerca d'estes ultimos; pois que
são de mais geral utilidade, devem excitar-nos particular attenção, e pro-
vocar nossas acções de graças.
t. º O ouro. O ouro é o rei dos metaes ; e não é por um capricho
ou mera prevenção que o preferimos a todos os outros. A idêa vanta-
josa, que temos d'elle, funda-se n'uma excellencia real. Senão é d'entre
todos o mais compacto e pezado, tem sem contradição a mais bella côr,
a que mais se approxima á vivacidade do fogo. E' tambem o mais du•
ctil, ·e o que melhor se presta para tudo o que d'elle queremos fazer.
D'uma barra d' este metal, de dous pés de longo e tres pollegadas de lar-
go, pód e-se tirar um fio, que chegue de Paris a Lião. Não oxida, como
os outros metaes, as mãos de quem o obra ; basta deixar a mais leve
porção d a sua substancia, um simples vestigio de sua passagem, para
brilbar como fogo: tudo aquillo em que toca, embelleza. A todas estas
grandes qualidades ajunta-se flntra, que o põe acima de tod(ls os metaes;
é o nã C\ enferrujar-se, nem diminuir de pêso ao passar pelo fogo. Não
admira pois que os homens concordassem em escolher esta materia tam
perfeita, e constante em seu estado, para com elia fazerem o pagamento
e transmutação d'aquillo que quizessem adquirir. A mesma raridade
d'este bello metal faz com que nos contentemos em receber uma peque-
na quantidade d'elle por um grande numero de fazemlas. Que utilida-
de 1 Que facilidade para o commercio ! Acaso nos lembramos de o agra-
decer áquelle, que nos fez presente de taro precioso metal ?
Tal é a principal utilidade do ouro: examinemos as outras. Este
metal é origem de bellos adornos e ricos bordados nas mãos d'uma
multidão d'obreiros; cuja industria não é menos admiravel que a mate-
ria que poem em obra. Os ourives fazem d'elle mil cousas; das quaes
umas, por sua pequenez, proporcionam-se á fortuna dos particulares;
outras, por sua magnificencia, estão melhor á magestade dos templos

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DE PERSEVERANÇA.

ou á opulencia dos reis. Os joalheiros realçam o brilho do ouro com pe-


drarias, que perderiam quasi toda a sua graça, se d'elle não fossem
acompanhadas. Os bordados geralmente o unem com a sêda e a lã: seja
fazendo-o brilhar só sobre estofo sjngelo e liso, seja fazendo-o entrar
com as mais vivas côres em desenhos variados, qu·e ora otferecem a ele-
gancia e brilho das fiôres, ora toda a flexibilidade d'uma folhagem que
brinca com o vento, ora em fim, o fogo e as expressões todas da pin-
tura. Os douradores sabem applical-o aos metaes, e embellezar as ma-
deiras, os tectos das casas, o fastigio dos palacios, e os zimborios dos
templos.
2.º O ferro. D'est'arte o ouro é incontestavelmente o mais perfeito
de todos os metaes. Todos os outros teem igualmente suas propriedades,
que o~ tornam estimaveis. Porém o mais vil dos metaes, -o mais grossei-
ro, o mais cheio de liga, o mais lugubre na côr, o mais sujeito a affeiar-
se pela ferrugem, em uma palavra, o ferro, é realmente o mais util. Tem
elle uma qualidade que basta para o tornar d'alguma sorte preferivel a
todos; porque de todos é o mais tenaz. Molhado quente, em agua fria,
adquire um augmento de dureza, que torna seus serviços seguros e per-
manentes. Por esta dureza, que resiste aos maiores esforços, é elle para
assim dizer o defensor de nossas habitações, e o depositario de tudo o que
nos é caro ; unindo estreitamente a madeira com as pedras, põe nossas
pessoas ao abrigo dos insultos do vento, e das emprezas dos ladrões. As
mesmas pedrarias, e o ouro, não estão em segurança se não são guar-
dados pelo ferro. E' o ferro que fornece á navegação, relojoaria, e a to-
das as artes, os utensílios para cortar, pregar, cavar, talhar, limar, em-
bellezar, produzir, em uma palavra, todas as commodidades da vida.
Em vão teriamos ouro, prata e outros metaes, se nos faltasse o ferro pa-
ra os fabricar: nenhum d'elles serve para cortar e penetrar os outros.
Só o ferro os tracta imperiosamente, e consegue domai-os sem se enfra-
quecer. Por isso foi sob a figura cl'uma fera, armada de dentes de ferro,
que o Deus Creador representou, passados seculos, o imperio romano,
que devia derribar e engulir todos os outros imperios. Da innumeravel
multidão de alimentos, moveis e maquinas, que todos os dias e a cada
instante nos offerece.m seu prestimo, nenhum ha talrez qne não deva ao

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100 CATECISMO

ferro a fórma que tomou para nos servir. Por isto podemos fazer um
juizo exacto do valor do ferro relativamente aos outros metaes. Todos
nos são de grande proveito; mas só o ferro nos é de exacta necessi-
dade.
Lendo a historia da descoberta da Amerioa, talve·z julguemos muito
nescios os selvagens que davam a seus conquistadores uma grande quan-
tidade d'ouro por uma fouce, uma pá, ou qualquer outro instrumento
de ferro. Agora podemos conhacer que bem acertado era o seu juizo;
pois que o ferro lhes ministrava serviços que nunca poderiam tirar do
ouro.
Logo é verdade, ó meu Deus! que não pócle o homem ievantar os
olhos para o Ceo, nem dar um passo na terra, nem cavar debaixo dos
pés, sem que descubra riquezas, que ahi foram, só para elle, deposita-
das. Por toda a parte reconhece como é objecto d'aquella divina e terna
complacencia, que pro'l!eu a todas suas necessidades, e lhe déu cousas
em que pudésse trabaJhar. exercer sua industria, e reconhecer sua bon-
. dade. Será possível que ao vêr tantos cuidados, tantos beneficios, seja
o homem ingrato?
Mas esta complac~ncia, que é tão manifesta nas exce1lentes quali-
dades dos metaes, collocados por amor de nós nas entranhas da terra'
ainda mais evidentemente se conhece na justa proporção que estabeleceu
entre a quantidade d'elles, e a medida de nossas nec~ssidades. Se um ho-
mem houvera sido encarregado de crear os metaes, e fazer pro"isão d'el-
les para o genero humano, não deixaria d'espalhar mais prodigamente o
ouro qne o ferro. Julgaria mostrar-se mais liberal , diminuindo ao mais
despresivel, e augrnentando aos que merecessem mais as nossas admira-
ções. Deus porém fez ao contrario. Como o valor e grande commodi-
dade do ouro provém da sua raridade, a~sim nol-o deu com economia .
.Esta parcimonia, de que os ingratos se queixam, é de si um grande bem.
Pelo contrario, o ferro é geralmente preciso em todas as necessidades
da vida : é para satisfazêl-as sem custo, que por toda a parte deixou Deus
o ferro ao nosso alcance. Não ha ostentação vaidosa em nosso amoroso
Pae. O caracter de sua liberalidade é dar-nos, não o que póde ser van-
gloria para quem dá; mas o que ·é solidamente vantajoso a quem recebe.

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DE PERSEVERANÇA. rnt
Preciosa lição é esta; e novo motivo de gr3tidão ! Passemos ao quarto
dia da semana; eis ahi outras maravilltas.
No quarto dia Deus disse: Façam-se os corpos luminosos no Fir-
mamento do Ceo, a fim que separem o dia da noute, e sirvam de si-
gnal para marcar os tempos e as Pstações, os dias e os an nos. ~
Brilhem no Firmamento do Ceo, e illuminem a terra. E isto se fez
assim.
Fez Deus pois dous grandes luminares; um maior para presidir ao
dia ; e outro menor, para presidir á noute ; e fez lambem as es-
trellas. (t)
E collocou-as etn o Firmamento do Ceo, para allumiarem a terra.
Para presidirem ao dia e á noute, e separarem a luz das tre-
vas.
E da tarde e da manhã se fez o quarto dia. E Deus viu que isto
era bom (2).
A esta quarta palavra apparece um nO\'O espectaculo; attendamos,
contemplemos em silencio e admiração assim as maravilhas que se vão
mostrar a nossos olhos, como a sabedoria profunda do Creador, de quem
ellas são os monumentos sempre antigos e sempre novos.
t.º Creação do sol. A luz já existia; a successão dos dias e das
noutes estava regulada; a terra era fertil, tudo o que devia produzir era
( l) Por estas palavras se vê que Deus desde este momento sujeitou o sol cons-
tantemente a alumiar a terra. As obras do terceiro e quinto dia dào-nus a conhecer
o motivo porque o nosso planeta, que por effeito da irradiação, tinha perdido uma
grande parte da luz primitiva, produzida em o principio dos tempos, tinha precisão
d'um novo recurso. Este recurso, tão necessario aos vegetaes que o embelleciam já,
como aos animaes que ia receber, devia sn constante como as necessidades que o
reclamavam. - Vê-se que Moysés falla dos grandes corpos luminosos celestes uni-
camente pela sua importancia relativa á terra, e ao homem que brevemente a viria
habitar, e não em relação á sua importancia real no systema geral do universo. O
que o prova, é que apenas menciona as estrellas. Nomeia-as em poucas palavras,
como de passagem e d'algum modo para annunciar que foram dispostas em os Ceos
pela mesma potencia que ahi pozera a lua e o sol, corpos luminosos muito mais im _
portantes e necessarios para nós que o exercito innumeravel de corpos celestes, cuja
grandeza excede talvez mui,to a do 11osso ;;ol. Cosrnog. p. 116, 117.
(2) Gen. 1, 14, Hl .

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-102 CATECISMO

formado, viu-se coroada de flôres e carregada de frnctos; cada planta e


cada arvore não tinha sómente a sua perfeição actual, mas tambem tudo
o que era necessario para a perpetuar ou multiplicar. De que servirá
pois o soJ, se tudo o que attribuimos á sua virtude está já feito? Que
vem e1le fazer ao mundo, que é mais antigo, e que passou sem elle até
aqui? Que virá elle produzir? E com que estranha cegueira o consideram
os homens o principio de tudo que o precede? E' visível e demonstrado.
por observação constante, que o mnndo foi creado com uma attenção
particular, para prevenir os erros das nações ; por consequencia com a
supposição da quéda do homem, da qual a idolatria foi das mais funestas
consequencias. Ora a mais antiga e geral é a que teve o sol e a luz por
objecto. Deus, que previu este desvario culpavel, quiz pela mesma his-
toria da creação, que a familia de Adão, e depois a de Noé, não conside-
rassem o sol senão como cousa nova no mundo, menos antigo que o dia,
menos ancião que uma flôr, menos necessario que nenhum dos effeitos
que se lhe attribuem.
Hoje que o perigo da -idolatria passou, e que o da ingratidão in-
nunda tudo (porque a primeira tentação do homem era adorar tudo; e a
ultima, de que estamos ameaçados, é não adorar nada); não temamos
orhar com demasiada attenção para o sol : por quem o Creador se quiz
fazer vi si vel (t).
2. º Sua distancia da terra. Deus collocou o sol no Firmamento;
mas foi para vantagem da terra. Mediu a distancia d'aquelle pelas neces-
sidades d'esta. Pôz entre o calor do sol, e as cousas que fará nascer ou
conservar, uma tal proporção, que lhes é sempre salutar. Em maior dis-
tancia deixaria a terra gelada; em menor, ficaria queimada. Vêde a in-
comprehensivel precisão dos calculos do celeste l\Iathematico f Tratava_
se de allumiar e aquecer um globo de nove mil leguas de circumferen-
cia. Para isto elle não quer mais que um só fogão. Qual será pois o ta-
manho d' este globo de fogo? A que distancia deverá ser collocado? EUe
diz: e eis que um globo de fogo, mil trezentas e trinta mil vezes maior

(1) Analyse do Hexam. ele S. Ambr. liv. IH, Cap. VI; n.º 27; liv. II, Cap I'
n.º 2, 3, 4, etc.

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DE PERSEVERANÇA. 103
que a terra, é lançado ao espaço. Ma os raios de fogo que partem de
um globo de chammas, um milhão de vezes maior que a terra, devem
ter uma actividade inconcebível, em quanto estiverem unidos uns com os
outros, e obrarem juntamente. Era preciso poi dividil-os.• para que, che-
gando á terra, já não tivessem mais que a luz e o calor conveniente .
Ora, os raios d'um corpo luminoso dividem-se á proporção que e alcm-
gam do centro d' onde p~rtem. A que distancia vois deverá ser a terra
collocada para que estes raios, quando ahi chegarem, venham sufficiente-
rnente divididos, a fim de esclarecer sem deslumbrar, aquecer sem quei-
mar? Que vos parece? Se propozessem este problema aos nossos astro-
nomos não estaria ainda por se resolver? Mas Deus, infallivel em todas as
suas operações, disse : e o sol foi collocar-se a trinta e oito milhões de
leguas'da terra. E seis mil annos de experiencia provam a justeza infini-
ta do seu calculo.
4..º Seu movimento. Sendo a terra redonda, se o sol estivesse im-
movel no meio do Ceo, n~o aqueceria nem alumiaria senão metade do
nosso globo. Seria preciso pois que caminhasse continuamente ao redor
da terra; ou que a mesma terra, revolvendo-se, apresentasse a seus
raios todas as partes do seu globo. O divino Ordenador do mundo não
· se esqueceu d'isto. Disse ao sol que se levantasse todos os dias no hori-
sonte, e alumiasse por vinte e quatro horas successivas a todas as partes
da terra. (i) E ha sessenta seculos que o sol, submisso e obediente, nasce
todos os dias e percorre o seu caminho sem se desviar uma 1inl1a da es-
trada que lhe foi traçada. Vêde com que pompa e profusão de luz começa
elle o seu curso. Com que côr embelleza a natureza, e com que magnifi-
cencia elle mesmo se reveste t Qual o joven noivo, que sahe de sua ca-
mara para apparecer no dia mais solemne de sua vida, o sol levanta-se
no horisonte como o esposo que o Ceo e a terra esperam, e de quem elle
faz as delicias. N'este primeiro momento, o seu aspecto é cheio de doçura.
Tudo applaude á sua chegada ; todas as vistas se volvem para elle ; e
para receber as primeiras saudações, torna-se accessivel a todos os olbos.

(1) Bem se vê que não dirimimos aqui a grande questão astronomica do movi-
mento ou repouso do sol; fallamos em relação aos sentido s.

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CATECISMO

Mas elle tem ordem de lerar por toda a parte o calor, a luz e a vida.
Por isso, vêde como vai, com a magestade e graça d'esposo, e os passos
rap idos de gigante. Alvoroça-se, apressa -se, menos cuidadoso d' agradar
que de levar a toda a parte as novas do principe, que o envia ; cuidar.do
muito menos em seus enfeites que em seus deveres. Percorrendo oito mi-
lhões de legoas por hora, dardeja mais fogo á proporção que sobe. Vivi-
fica tudo o que allumia ; mda póde escapar á sua luz nem passar sem o
seu calor; attinge, com suas penetrantes chammas, aquelles mesmos lu-
gares onde não podem chegar seus raios.
Imagem bem natural d'aquelle -que veio esctarecer o universo, e que
tam dignamente desempenhou as duas qualidades d'esposo e enviado.
Sahindo cheio d'ardor do seio de seu Pai. assim percorreu como um gi-
gante a sua carreira; e como o sol volveu ao ponto d'onde partira, depois
de ter como elle passado a fazer o bem.
i.º Seu nascimento. Se o sol fizesse cada dia a mesma derrota, a
maior parte da terra seria inhabitavel; já por causa das trevas continua-
das, já pelo ca'or ardente, já pelo frio excessivo; de mais, esta marcha
uniforme do sol não nos descobriria senão imperfeitamente a sabedoria
de Deus, e a sua attenção em reger o universo; mas não succede assim.
Nenhum dia, fallando exactamente, é igual ao precedente ou ao seguinte.
E' preciso pois necessariamente que todos os dias nasça e se ponha o sol
em differentes pontos. E' por i~so que, segundo a expressão do Prophota,
um dia marca urna nova orde:n ao dia seguinte ; e a nou~e aponta á noute
immediata o instante preciso em que deve começar e acabar; e a natu-
reza, como incerta, aprende a cada momento, d'aquelle que a conduz, já
o que deve fazer, já o ponto até-onde cumpre que o faça.
Que maraviihas. Quem disse ao sol: Nãq comeces ámanhã o dia onde
o co neçaste boje; e não o acabes hoje onde o acabaste hontem? Quem
lhe mediu o espaço entre dous nascimentos, a fim que não ultrapasse esta
medida ? Quem ibe ordenou que voltasse para traz logo que chegasse a
certos limites? E quem lhe vedou quando tocasse no ponto opposto,
que o não transpozesse? E' assim que os Ceos narram, todos os dias, e
a torlos os instantes, a gloria tle seu Author. Sua linguagem nem é bar-
bara nem estranha: a voz dos Ceos é-nos familiar e intelligivel; é forte,

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DE PERSEVERANÇA. f05

sonóra, infatigavel; passa do Ceo á terra, retumba d'um angulo a outro:


o Grego, e o barbara, o Scytha e o Indio, o Christão e o idolatra, enten-
dem-na igualmente; e todos os homens são instruidos por estes prégado~
res eloquentes.
5. 0 Sua luz. Parece que Deus teve intenção de desenhar, n'este
bello astro, os traços mais proprios a nos representar a perfeição da di-
vindade. Assim como Deus, o sol é unico; o que ha mais rico e bello
fica pequeno e desapparece na sua presença; elle vê tudo, opera em tudo,
anima tudo, e é sempre o mesmo. Não é admiravel que, pelo decurso de
tantos seculos, o sol Mda tenha diminuido? qrn~ a sua luz seja sempre
a mesma em fulgor e abundancia ? que a terra seja tam alumiada hoje
como no primeiro dia? Se nos houvessem consultado, antes da creação
do sol, sobre qual seria o meio d'illuminar o mundo; quantos lampiões
não cuidariamos nós que haviam de ser precisos? Qual de nós se lembra~
ria que um só bastava? Que esta só luz, posta a uma certa distancia,
alumiaria tudo d'um só jacto "? Que avançaria do oriente para o occidente ;
sem guia visível, nem apoio, nem carro, nem machina; e que, passados
muitos seculos, estaria tam brilhante e perfeito como no principio? En-
tendamos pois o que devemos, não ao sol, mas a quem o creou e o faz
todos os dias nascer, tanto para os máns como para os bons; e, dignos
filhos de nosso Pai celeste, amemos todos os nossos irmãos sem dis-
tincção.

ORAÇÃO.
O' meu Deus ! que sois todo amor, eu vos don graças por nos ter-
des prodigalizado todas as riquezas da terra e do Ceo : como posso eu
testemunhar a minha admiração e reconhecimento? Por tantos beneficias
só me pedis o coração : eu vol-o dou pois todo, e para sempre.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo como a
mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d'este amor, não deixa-
rei jámais de rezar antes e depois da rnesa.

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Vlll. ª LlCÇÃO.

Obra dos seis dias.

Continuação do 11uarto dia. - A. Lua. - sua belleza. - soa


utilidade. - A.s esi.rellas. - Seu numero. - Dovhnento. -
Utilidade. - Beneficios «la .noute. - A. instrucção. - O re-
pouso. - o somno. - A. co11se1·vação da nossa vida. - Ulti·
ma commissão tio sol e da lua. - A. primavera. -O estio.
- O outomno. - O in,'e1·no.

t. º Belleza da Lua. A mesma palavra que creou o sol e suspen-


deu este immenso globo de fogo no Firmamento, para presidir ao dia,
fez tambem a lua e as myriades d'estrellas, que lhe fazem a côrte. Como
rainha obsequiosa e meiga, encarregou-se a lua de presidir á noute. Isto
é, de moderar as tenebrosas sombras com sua amavel claridade. A noute
é a hora do seu triumpho. Tira da obscuridade os objectos mais proxi·
mos a nós. dando-lhes uma magia de coloridos, que os faz parecer outros.
A mesma Jua é um dos mais bellos objectos da natureza. Alegra os olbos
com a suavidade de seus raios, e dá variedade á scena mudando sempre
de figura. Bem como ao sol, todos os dias o Soberano Senhor lhe ensina
em que lugar dm'e apparecer e desapparecer: declina do occidente para
o oriente o lugar do seu nascimento. Umas vezes veste-se de manto cin-
zento, e quasi sempre bordado d'urn simples fio d' ouro ; outras, traja um
vestido de purpura, e sobe ao horisonte com mais agigantada presença ;
diminue depois levantando-se; então se torna mais prateada e brilhante,
tornando-se mais util ao passo que o dia nos foge ; e, DU se mostre toda
ou só em parte, é sempre bella, aonde chega deixa encantos. E' como
uma dama caprichosa e meiga ; ora sahe d'entre as nuvens, como para

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f08 CATECISMO

surprehender-nos de subito com sua formosura; logo encobre-se com um


veo diafano, para nos jncitar a espreital-a. Agora desliza por entre as fo-
Jhas seus prateados raios; depois enfeita-se com a matizada corôa, que as
nebrinas llle offerecem. O sol entretanto approxima-se ; a lua cede-lhe o
imperio. Desapparece, para apparecer de novo.
Qual é pois, em a natureza, o agente encarregado d'accender esta alam-
pada, e reenviar-nol-a com tanta regularidade?
2.º Sua utilidade. O' homens 1 até quando fechareis os olhos para
não ver? Até quando fechareis o coração para não amar? Raciocinai, e
não vereis no curso Lla lua se não precauções e atlenções para com vos-
sas necessidades. Este corpo, opaco, e obscuro como é, foi collocado, a
respeito da terra, em distancia tam pouco remota, que nos dá mais luz
que todas as estrellas juntas. Notai aqui a sabedoria do Creador, que as-
sim alongou as estrellas, que a noute de que precisamos nada soffre pelo
brilho d' estes innumeraveis soes; mas a lua, tam perto a collocou de nós,
que ficou sendo um rnagn ifico espelho, por onde se nos transmitte, du-
rante o silencio da noute, uma grande parte da luz do sol. E' verdade
que o transporte d'este espelho, collocado successivamente em derredor
da terra, offerece alguma irregularidade, mas são limitados estes desva-
rios, e fazem com que rara mente se apresente o accidenle dos eclypses.
Se fosse por outro modo, teriamos cada anno doze eclypses da lua e ou-
tros tantos do sol. Admirai pois, como esta apparente irregularidade é
um novo beneficio d'uma sabedoria profunda 1 Mas eis-aqui outras maio-
res vantagens: quer o homem fazer jornada antes do amanhecer, ou pro-
longai-a além do pôr do sol? O crescente da lua; mal que o sol se retira,
vem offerecer-se-Jhe, para lhe guiar os passos. Quer elle, mais vigilante
que o astro do dia, começar antes d'elle o :-ieu caminho? Eis-aqui o quarto
minguante, que se antecipa algumas horas ao despontar da aurora. Tam-
bem póde reservar as suas viagens para a lua cheia ; que lhe dá, para
assim dizer, dias de vinte e quatro horas, alumiando-o sem interrupção.
Com este auxilio, evita os ardores do verão, e conclue sem risco, e quando
quer, tudo o que lhe importa não confiar á luz do dia.
Mas não seria mais vantajosa a noute se houvesse sempre luar? Deus
concilia ao mesmo tempo muitas utilidades, e ás diversidades dos serviços

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DE PERSEVERANÇA. 109

ajunta a excellencia de seus dons. A lua não é só destinada a suavizar


a tristeza da noute com uma luz, que prolongue, ou substitua a do sol;
ella é propriamente uma sentinella collocada no palacio do homem, e
encarregada d' occupar successivamente differentes pontos, para em cada
um lhe dar um novo aviso e um novo signal. O sol devia sim regular os
trabalhos campestres, durante a revolução d'nm anno. Mas a lua, fazendo
em redor de nós uma revolução igual de vinte e nove dias, e mudando
regularmente tle figura, nos quatro quartos do seu curso, tem por fim
regular a ordem civil, e os negocios communs da sociedade. Ella é para
todos os povos, um pharol, que toma em cada sete dias uma fórma nova,
offerecendo a todos divisões commodas, durações regulare , curtas e pro-
prias para determinar o principio e o fim das operações miadas.
D'est'arte os Hebreos, os Gregos, os Romanos, e em geral todos os
antigos povos, reuniam-se na lua nova, para cumprir seus deveres de
piedade e reconhecimento. Ar.nunciava-se n'este dia o que os podia inte-
ressar no decurso do novo mez. Ajuntavam-se, no meio do mez, com a
lua nova; os dous ultimos quartos eram mais dous termos igualmente
faceis de reconhecer. Ainda hoje, os Turcos, os Mouros, militos povos
d'America, e outras muitas nações, reduzem toda a ordem do seu Calen-
dario á renovação e differentes phases da lua. Se na Europa civilizada lhe
não damos tanta attenção, não é porque este astro cessasse de nos fazer
os mesmos seniços; senão porque estamos dispensados d'este cuidado
e inspecção pelos calculos commodos, qoe babeis astrono'mos nos pro-
curam ; mas os Calendarios e Reportorios, por que nos governamos, são
redigidos e regulddos pela ob ervação do curso da lua. Regulam-nos d'an·
temão pelos avi os que o vigilante satelite jámais deixará de nós dar,
até que aque!le que o pôz de sentinetla julgar conveniente mudar suas
funcções, mudando lambem o estado do homem, a cujo serviço o tinha
destinado. Feliz estado ! Quando já não teremos necessidade do sol, para
nos alumiar, nem da lua ; mas em que o Cordeiro divino será a nossa
luz e a de toda a Jerusalem Santa ! Estado feliz, sê tu o objecto de todos
os nossos desejos e esforços 1
/Jeus fez lambem as estrellas. Só a Deus pertence faltar com indif-
ferença uo- mais admiravel espectaculo com que adornou o universo. Diz
15

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HO CATECISMO

em uma phrase o que apenas lhe custou uma palavra; mas quem ·póde
medir o poder d'esta palavra?
'1. º Numero das eslrellas. Pelo sereno d'uma bella noute de verão,
saiamos de casa, como Deus fez sahir Abrahão da sua tenda, para consi-
derar o Ceo; depois de o ter feito sahir fóra, disse-lhe: Levanta o~ olhos
para o Ceo, e conta as estrellas se pódes. ('l) E Abrahão levantou os olhos,
e contentou-se com admirar; porque não pôde contar as estrellas, e nenhum
homem o poderá jámais: as estrellas são innumeraveis. Depois da invenção
dos telescopios, teem-se descoberto milhares d'ellas, e quanto mais se
aperfeiçoam os instrumentos astronomicos, mais ainda se descobrem. E'
com muita razão que se suppõe que o numero d'aquellas que nos fogem
da vista, por sua immensa distancia, é muito superior ás nossas suppo-
sições. Temos visto que a grandeza do sol, como a de muitos planetas
que giram em torno d'elle, é muito superior á da terra que habitamos.
E qqem sabe entre as outras estrellas, quantas ha que em nada lhe ce_
dem; e das quaes o volume será maior ainda·? .A sua prodigiosa distancia
as faz parecer pequeninas luzes scintiqando no Firmamento; mas em rea_
lidade são outros tantos sóes, cuja immensa circumferencia não se póde
medir. E' verdade pois, que milhares de sóes e de mundos volvem no
espaço; e o que d'elles vêmos é apenas a menor parte d' este grande exer-
cito, que está acima de nós, collocado em tam boa ordem.
Quereis ainda vêr cousa mais admiravel? Escutai : aquelle que se-
meou milhões de globos luminosos pelas vastas planicies do Firmamen-
to, bem como os lavradores semeam o trigo nos campos, sustenta tod.as
estas prodigiosas massas no meio d'um ar subtil. Não ha sustentaculo
nem columna sobre que repouse esta abobada immensa ; nem os enor-
mes pêsos que d'ella pendem: e tod:;ivia mantem-se sempre a mesma,
ha ·milhares d'annos; e manter.se-ha sempre, a fim de narrar a todas as
gerações a gloria do seu Author.
2. 0 Seu movimento. As estrellas offerecem a um espirita attento
outra maravilha: estam em contíµuo movimento estes corpos immensos.
Volvem todos sobre seu eixo; e a maior parte ainda fazem circulas im-

(1) Geu. XV. 5.

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DE PERSEVEBANÇA. nt
mensos em derredor d'outros globos. Cada uma segue sua derrota,
sem divagar jámais; comtudo correm com inconcebivel rapidez. Uma
força continua as quer apartar do centro, outra força igual as retem na
sua orbita ; e supposto que milhares de corpos se movem assim no es-
paço, jámais se encontram ou embaracam. As estrellas, que vêmos se-
meadas confusamente no Firmamento, estam ahi dispostas na melhor or-
dem e na perfeita harmonia. Ha milhares d'annos que estes sóes nas-
cem e se põem regularmente. Estes milhões de soldados do celestial
exercito, marchando sempre, volvem constantemente a seus primeiros
acampamentos; os astronomos podem determinar, com exactidão, sua
posição e curso, mil annos antes. O' Deus 1 quanto sois grande 1 Quem
é o homem, que ousa revoltar-se contra vós?
3. 0 Sua utilidade. Qual póde ser a utilidade de tantas maravi-
lhas ? Que tem comnosco ? é combater contra a nossa ingratidão, con-
tra o nosso orgulho e indífferença ; o que tem comnosco, é assegurar o
triumpho d'estes grandes dogmas: a existencia de Deus, seu poder, ma-
gestade, bondade. Para tornar todos os homens inexcusaveis, não é pre-
ciso mais que este eloquente exercito dos Ceos, este livro do Firmamen-
to, escripto em caracteres de fogo. Esta é sua primeira utilidade.
Ainda tem muitas outras. Primeiramente, estes globos prodigio-
sos estão collocados a urna distancia tam justa da habitação do homem;
que d'esta só posiç.ão resulta uma ordem de que elle goza, uma belleza
que encanta seus olho~, e uma regularidade que faz a felir,idade de; seus
dias. São como mil milhares de lustres, suspensos no rico fastígio que
cobre o seu palacio. Por ioda a parte as vê brilhantes sobre o azul
escuro, que lhe serve de fundo, e lhes realça o esplendor. l\fas seus
raios são amorosos; dissipam-se em espaços tam vastos que chegam á
nossa habitação attenuados e frios. Graças ás precauções do Creador,
desfrutamos a vista d'uma multidão de globos incendiados, sem risco,
nem prejuízo, assim no que respeita a frescura da noute, como a tran-
quillidade do soamo.
l\las não é só para embellecer o paJacio do homem com tam ricas
m!>lduras e agradaveis variedzides, que Deus fez rolar todos os dias, em
torno do nós, este dourado fostigio. Tambem nos resultam d'aqui van-
*

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H2 CATECISMO

tagens positivas e d'alguma sorte materiaes. Entre as estrellas, que fa-


cilmente distinguimos, algumas ha que estão sempre elevadas acima de
nossas cabeças, na mesma parte do Ceo, sem jámais se mexerem; tal
é estrella polar : outras descrevem grandes circulos, que se elevam gra-
dualmente sobre o horisonte, e desapparecem nas extremidades da terra,
onde pára a nossa vista.
As primeiras servem para regular as viagens do homem por terra
e ·mar, mostrando-lhe na obscuridade um lado do Ceo, cujo aspecto se
torna invariavel, e que lhe basta para se não desgarrar. Mas como as
nuvens e a espessura do ar podem talvez interceptar ao homem a vista
das estrellas, que lhe foram dadas por guia, collocon Deus uma relação
tal entre esta parte do Ceo e o ferro tocado no íman, que se este fôr sus-
penso em equilibrio, volta incessantemente uma de suas extremidades
para o pólo. D'aqui vem a invenção da bussola, que tem prestado e pres-
ta á. navegação tam grandes serviços. Por este meio conhece o viajante
o lugar onde estão as guias que não póde vêr, e que as nuvens lhe oc-
cultaram: e sua derrota vae sempre regulada por ellas, apesar das desor-
dens do ar.
As outras estrellas variam d'aspecto ; e com quanto guardem sem-
pre entre si a mesma situação, mudam de dia para dia, em relação a nós,
a ordem porque nascem e se põem. Ora estas mesmas mudanças deter-
minam, por sua regularidade, a ordem de nossos trabalhos ; e marcam a
volta e o fim das estações. O signal do calor e do frio seria muito incer-
to e sujeito a desagradaveis accidentes, se por elle houvessemos de regu-
lar as sementeiras e a cultura da terra, ou discernir as proprias monções
da navegação. O homem colhe todas as instrucções necessarias a este
respeito, vendo o sol pôr-se com uma serie de differentes estrellas, e per-
corrêl-as uniformemente todos os armos; cl'este modo conhece o caminho
d'este bello astro. (t) Dá um nome a cada uma d'estas casas d'estrellas
por onde passa no seu caminho; sabe a exacta duração do tempo que se

(1) Os astronomos dividiram todas as estrellas, que se descobrem a olho nú,


em cento e oito constellações ou grupos destrellas ; d'estas, doze formam o Zodiaco,
ou caminho que o sol parece percorrer no seu curso annual.

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DE PERSEVERANÇA. H3
demora n'ellas ; e tambem conhece precisamente o tempo favoravel ás
operações, que precisa fazer na terra ou na agua.
O sol e a lua foram creados para separar o dia e a noute; marcar
os tempos, as estações e os annos. Reguladores do homem e de seus
trabalhos, jámais se adiantaram, ou atrazaram um minuto estes admiraveis
relogios. Sabeis acaso o nome, conheceis a morada do relojoeiro que os
fabricou? Mas de que serve esta successão perpetua de dia e noute, de
luz e trevas. Aqui temos novas provas da sabedoria e bondade de nosso
Pai celeste. Senão duvidamos das vantagens do dia, vejamos quaes são
as da noute.
Lº Seus beneficios, e instrucção. A noute não é mais que a inter-
rupção do movimento da luz para os nossos olhos; a noute pois é nada,
mas o mesmo nada é fecundo nas mãos de Deus. Assim como deriva a
sua gloria àe ter tirado d'elle todos os seres, assim tira quotidianamente
d'elle outro grande favor para o homem, que não consiste em novos se-
res, mas em beneficias e instrucções salutares.
A noute, privando-nos da vista e uso da natureza, recorda-nos do
nada d'onde sahirnos, ou nos torna ao estado de trevas e imperfeição que
precedeu a creação da luz. E' por isto que melhor nos faz estimar o pre-
ço inestima\'el do dia. Mas não é só seu destino realçar com suas som-
bras as bellezas do grande painel do mundo, e fazer-nos, ou mais lmmil-
des pela vista· das trevas que nos são naturaes, ou mais gratos, pelo re-
gresso d'uma luz, que nos não é devida. Por mais uteis que sejam os
conselhos que a noute nos dá, triste cousa seria que para nos instruir
nos empobrecesse. A vida que parece pois tirar-nos, privando-nos todos
os dias, e por muitas horas, do uso da luz e da vista do universo, por
outra parte nol-a restitue abundantemente no repouso que nos procura.
2. 0 O repouso. O homem nasceu para o trabalho: esta a sua voca-
ção e o seu estado. Para supprir a este trabalho, o sangue lhe fornece
incessantemente uma materia infinitamente subtil e agil, que lhe move,
para assim dizer, as molas do cerebro, e os differentes musculos do cor-
po. Mas a dissipação e dispendio perpetuo d'esta materia, que tam proni-
pta executa as suas vontades, alfim o deixariam em desfalecimento e pros-
tração, se não reparasse a perda com alimentos novos. Ora, estes ali-

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· CATECISl\10

mentos não. se poderiam digerir nem distribuir regularmente pelo corpo,


se elle estivesse sempre em acção. Importa que interrompa o trabalho
da cabeça, e dos braços ou dos pés, a fim que o calor e os espiritos,
que se derramavam no exterior, sómente se empreguem em auxiliar as
funcções do estomago, durante a innação das outras partes do corpo. Se
não fôra o repouso, breve desfaleceriamos ; e o repouso, é a noute que
nol-o procura. Quantos trabalhadores. que dispendem as forças duran-
te o dia em trabalhos penosos, e todavia necessarios, bemdizem a noute,
que vem suspender-lh'os, e trazer-lhes o allivio do somno.
3. º O somno. Nós mesmos abençoamos a Deus por não ter confiado
o uso e disposiç~o do necessario repouso á nossa razão caprichosa e va-
cillante. Este bondoso Pai toma por si mesmo o cuidado de embalar seu
fi~ho. Tornou-lhe o somno uma agradavel necessidade, sem lhe confiar
conhecêl-o nem governal-o. O somno é um estado incomprehensivel; o
homem conhece-lhe tam pouco a natureza, que nem lhe é possivel con-
ciliar o somno quando este se recusa, nem recusai-o, quando se apode-
ra .d'elle. Reservou Deus para si a dispensação d'este repouso, de que el-
le sabia que a huma~a razão regularia mal o tempo e a medida. Mas,
se não comprehendemos a natureza do somno, oh corno lhe sentimos o
beneficio ! Suspende elle os cuidados a um sem numero de infelizes,
adonnecendo-lhes o doloroso sentimento da sua miseria. Para ser então
feliz, basta um leito; n'elle o somno cerra as palpebras do indigente; sa_
tisfaz-U1e todas as precisões. O somno torna igual o mendigo e o monar-
cha; aµibos gozam n'elle um bem que se não compra a pêso d' ouro. Mas
a noute escolheu Deus para mensageira d'este universal beneficio.
Vêde com que precaução, com que respeito ella desempenha o in-
teressante encargo t Não se approxima bruscamente, primeiro apaga as
luzes do:di~ a.pouco e pouco, sem de todo nos roubar a vista dos obje-
ctos que nos occupam. Longe de nos surprehender em meio do traba-
1ho ou da viagem, chega-se a passo lento, sem perturbar-nos; e gradual-
mente condensa as suas sombras. Só depois de nos advertir, com graça
e decoro, da necessidade de descançar, é que por fim acaba d'obscurecer
a natureza. Tira ao homem o espectaculo do universo, para lhe tirar o
uso dos sentidos ; depois lança-nos um véo sobre os olhos, e cerra-nos

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DE PERSEVERANÇA.

as palpebras. Véla com terna complacfü1cia para manter a tranquillidade


em quanto o homem repousa. Não sómente apaga todas as luzes fortes,
como tambem suspende o bulicio e todas as impressões vivas; impõe si-
lencio a tudo o que nos rodêa ; o cavallo, o boi, todos os outros domes-
ticos adormece-os ao mesmo tempo. Um só ruido é que não suspende,
é o do relogio que annuncia as horas, pois cumpre que o homem des-
pertando se lembre da hora ultima. Ainda mais: ella ,dispersa os passa-
rns e os sacode para os seus retiros ; a pouco e pouco impõe silencio aos
ventos que perturbam o ar, e por algumas horas na habitação do homem
reina um socego profundo e universal. Por onde se vê que a noute é en-
carregada de procurar o repouso ao rei da natureza e fazer respeitar
seu somno. Em tam amaveis attenções da Providencia, quem não reco-
nhece os ternos cuidados d'uma mãi, que para adormecer a seu filhinho,
affasta o sussurro e extingue as luzes no lugar onde collocou o berço?
4. º A conservação da vida. A não ser a noute, pereceríamos, não
só de fadiga mas de fome. Se o sol estivesse sempre acima do horisonte,
queimaria na terra tudo o que elle faz nascer; mas a noute, succedendo
ao dia, communicn ao ar uma frescura que o põe em estado d'obrar com
maior actividade em todos os corpos, e dar novo vigor não só á terra re-
sequida, mas á verdura e aos animaes attenuados e mortaes. Em sua bem-
fazeja mão, traz de mais o orvalho, que não só alegra a vista quando de
manhã semêa reluzentes perolas, que scintillam como rubins aos primei-
ros raios do sol; mas ainda faz as vezes de chuva, e conserva por muito
tempo a frescura das flôres. das searas, e das plantas. Se não fosse a
noute, os homens que trabalham no campo, estariam expostos continua-
mente ás feras bravas. Durante o dia, a Providencia as retem nas flores- '
tas e antros; mas se o dia fosse continuado, esporeadas da fome, sahiriam
de seus esconderijos, e fariam prêsa nos homens, a quem pela maior par;.
te se avantajam em força e velocidade. Pondo limites ao dia com a che-
gada da noute, deu o Creador segurança aos homens e liberdade ás feras.
O horror que as trevas naturalmente inspiram faz-nos recolher de
noute, e o mêdo natural que a luz incute rnis feras lambem as obriga a
nã~ sahir de dia. Quando o homem se fecha em casa, deixam Plh~
suas covas, como se não tivessem permissão de buscar sua prê~a ~, .. -. __

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H6 CATECISMO

que a mão do Senhor não puzesse o homem em seguro. Então, fechada


a noute e desertos os campos. ouve-se o rugir dos leões e uivar dos lo-
bos, que nos ensinam quem é o Senhor que véla rnbre nós durante o dia.
Apenas apparece o sol apressam-se as feras inimigas do homem a deixar-
Jhe livre o campo. O Pastor invisivel as enxota para os bosques com
seu baculo, e então parece que perdem a ferocidade pelo que ficam
mansas. Dormem ; ou como ge dormissem, as tem encadeadas e tranquil-
las um poder superior : se a imprudencia vos não levar perto de seus an-
tros, nada tereis a recear. Pelo contrario, desde que a luz vem dissjpando
as sombras, sente o homem, alegre e vigoroso, um novo amor ao traba-
lho ; parece-lhe sombria a casa, deleitoso o campo. Feliz se reconheu a
mão paternal que tudo governa e tudo ordena, para seu bem e commo-
d idade.
A ultima utilidade do sol e da lua é marcar as estações. Vêde a fi-
delidade e respeitosa attenção com que o fazem. O sol que durante o in-
verno attenuára o seu ardor, esperta-se na primavera. l\fas não o faz
bruscamente; senão por tal modo, que as plantas vão insensivelmente
brotando e crescendo, sem que o friu as regele, nem o calor antecipa-
do as apresse. Da mesma sorte o estio arrefece gradualmente, de sorte
que os froctos do outomno vão pouco a pouco amadurecendo, sem que
os tome de subito o frio do inverno. Além d' isto, cada estação varia os
nossos prazeres_, e compensa-nos com novos beneficios o que perdemos
da estação anterior; mas ao mesmo tempo impõe-nos particulares de-
veres.
t .º A primavera. A natureza que estava inteiriçada com o inverno,
cobra novo animo; os passarinhos voltam de suas longas viagens, e de
novo ensaiam seus alegres cantos. Estes innumeraveis musicos, trans-
portando-se nas azas dos ventos, vem alternada e gratuitamente dar seus
descantes ás portas de todas as choupanas. Gorge iam sempre; na pri-
mavera é para nós o concerto ; no inverno é para outros. Reverdecem
os prados; pnllulam as primeiras flôres por entre a fina relva; embal-
sama-se o ar com seus perfumes; alegra-se a vista com suas côres. De-
senrolam as arvores a pouco e pouco a magnifica folhagem, e preparam
ao homem contra os raios do sol a protecção da sua sombra. Imagem da

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DE PERSEVERANÇA. H7
mocidade, similbarn;a da resurreição geral, a primavera enche-nos o co-
ração de esperanças, e da mesma sorte nos espairece os passados cuida-
dos. Quanto tempo durarão tão bellos dias, tão frescas e delicadas flôres ?!
O' homem !- quanto tempo durarão teus annos ? Até quando durará a flor
da tua belleza e da tua mocidade ? Consola-te. A primavera não passa se-
não ·para volver ; e tu, da mesma sorte, para renasceres, e não morre-
res mais.
2. 0 O verão. O sol continúa a sua marcha, muda d'aspecto·a natureza,
começa o verão. Mostram-se ã vista e desafiam o paladar muitos e.differen-
tes fructos; douram as searas; sabem de seus ninhos nuvens ~e recem-
nasci~os passaros ; e, publicando noute e dia os louvores do Creador:,
regosijam o homem que, no calor do estio, estã quasi sempre no cam-
po. Quem póde dizer os beneficios que n'esta estação nosso ·Pae nos
prodigalisa? E' n'este tempo que mais abundantes bençãos derr;ama so-
bre as creaturas. A natureza que na primavera nos reanimou com seus
brandos afagos, agora trabalha, sem descanço-, a nos procurar tudo que
póde satisfazer os sentidos, facilitar a vida, e despertar no coração senti-
mentos de gratidão e amor.
Assim como as outras estações, é o estio um prégador de salutares
verdades. Vêde, nos diz elle, o sega dor que se dispõe a segar as s~ras·
Sua fouce derriba o dourado trigo, e deixa após de si desertos os caf:U..
pos. Eis-ahi os campos. Eis-ahi, mortaes, o vosso destino ! A carne. é
como a herva, e toda a sua gloria como a tlôr do campo. Vêde as dili-
gentes abelhas, como se afervoram a recolher o mel t Elias vos ensinam
a enthesourar a tempo a sabedoria e a virtude ; unico thesouro de conso-
lação no inverno da velhice.
3. 0 O outomno. Já recebeu a terra o calor de que havia mister. O
Senhor ordenou ao sol que parasse e tornasse atraz : não de subito, mas
insensivelmente; a fim de concluir com seu ardor temperado a sasão dos
fructos, e maigrmente para dar toda a perfeição ao precioso licor que
alegra o coração do homem. Que actividade nos trabalhos r Enchem-se
os celleiros, circulam com abundancia as mercadorias ; por toda a parte
se abastece o homem ; mas não pensa elle nas precisões sómente do pro-
ximo inverno. Não encelleira tudo, porque o fogo poderia consumir sua

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HS CATECISMO

casa e deixai-o pobre; entrarem por ella os Jadrões e arrebatarem-lhe a


fazenda; elle confia uma parte á guarda da terra, certo que, na volta
da primavera, esta fiel depositaria lh'a restituirá com usura. Mas os ho-
mens, que amontoam ; os passaros, que emigram ; as folhás, que ca-
bem ; o Ceo, que se entristece ; os dias, que diminnem ; tudo nos an-
nuncia:
4. º O Inverno. Todos os dias carece o homem de repouso; · assim
tambem todos os annos a terra ha mister de refazer as forças, esgotadas
em nosso serviço. A não ser o inverno a natureza empobrecida e fatiga-
da, deixaria de ser fecunda ; morreríamos de fome. Tanto são necessa-
rias, no plano da Providenéia, as quatro estações : a primavera prepara ;
sasona o estio ; o outomno prodigalisa-nos as producções que nos alimen-
tam; o inverno repara as forças d' esta nutriente mãe. Quando ella pois
se despiu de tudo em favor do homem, ordena Deus, como Pae attento,
que o sol se alongue e afaste a luz que não deixaria adormecer seu fi-
lho ; ainda faz mais : agasalha a terra com sua cobertura de neve, a fim
de lhe conservar o calor.
Supposto que a neve nos pareça fria, é comtudo um excellente frou~
xel que resguarda a terra dos ~nrege1ados ventos, e mantém o calor ne-
cessario ã conservação das sementes, plantas e arvores. Além d'isso .. é
um excellente adubo ; quando se aquenta ao sol, derrete pouco a pouco;
cala pela terra dentro, e vivifica as raizes e as hastes das plantas. Repa·
ra"i como, na mais aspera estação, se occupa nosso Pae com o bem-estar
de seus filhos; e; sem que o ajudemos com o nosso trabalho, vai em si-
lencio preparando todos os thesouros da natureza ! Filhos do Pae celes-
te, preparemos tambem para nós mesmos os thesouros da graça, redo-
brando n'esta rigorosa estação o ardor da caridade, para agasalhar os
que tem fome. ·

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DE PERSEVERANÇA. HU

ORAÇÃO.
O' meu Deus r que sois todo amor, eu vos dou graças por terdes
creado o dia, e a noute, e as estações; estejam sempre em meus labios
os vossos louvores, e em meu coração o vosso amor.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d'este amor quero~
me conformar em tudo com a vontade de Deus.

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IX.ª LICÇÃO.

Obra dos seis dias.

Quinto dia. - Os peixes. - Sua creação. - Conservação. -


Grandeza d'alc;-uns. - Sua utilidade. - Os passaros. -
Structura de seu corpo. - Sua conservação. - 8e11s ni-
nhos. - Seu instincto.

Deus disse tambem : Produzam as aguas animaes viventes que na-


dem na agua ;· e passaros que voem sobre a terra, e pelo Firmamento
do Ceo. (f).
Deus creou pois os grandes peixes, e todos os animaes que tem
vida e movimento que as aguas produzem; cada um segundo a sua es-
pecie: e creou tambem as aves, segundo a sua especie. E viu que tudo
isto era bom.
Abençoou-os mzendo: Crescei e multiplicai-vos, e enchei as aguas
do mar; e multipliquem-se os passaras sobre a terra.
E da tarde e da manhã se fez o quinto dia (2).
Até aqui temos visto apparecer a cada palavra do Creador um sem
numero de maravilhas. Que produzirá agora o que acabamos d' ouvir?
Que resta fazer ainda 1 O Ceo está cheio de fogo, a terra de verdura, as

(1) AEIBim segundo M:oysés, e a observação das camadas terrestres fossilarias,


os seres que vivem no seio das _aguas, sejam os peixes, sejam os reptis aquaticos,
teriam precedido os reptis e todos os animaes que vivem nas terras sêccas e deseo•
bertas ; do mesmo motlo que elles precederam o homem, que foi a oorôa e o remate
da. creação. Cosmog. de Moysés, pag. 442. ·
(2) Gen. I 29 - 23.

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122 CATECIS!\10

plantas e os fuctos enriquecem-na tam variados e perfeitos, que nos não


cansamos de os admirar. Nascerá por ventura aJguma cousa do mar que
Dens considerará, ao que parece, como um obstaculo aos seus designios;
e ao qual separou da terra com uma especie de cólera? A vossa amea-
çadora voz, Senhor, //te fez tomar a. fugida. ·Sim, é aQ mar que Deus
falia; e para logo se enche d'uma multidão innumeravel de creaturas de
nova especie. Já não são como as hervas ou as plantas presas pela raiz,
mas tem movimento e vida propria. Transportemo-nos ás praias do
Oceano ; precipitemo-nos pelo pensaQiento em seus profundos abysmos.
Lá nos aguardam outras maravilhas que manifestam grandiosas o. poder
e infinita sabedoria do Creador.
t. º A creação dos peixes. ,.As agua do mar estão cheias d'all)~rgoso
sal; como não concluiremos pois que são naturalmente estereis? · Gomo
succede que de repente criam tão innumeravel multidão de seres viven-
tes? Como é possível que no meio das aguas, tão salg~das. e. aiµargas,
que não pode~ps na Jingua supportar uma gota, como·é. po~. ~j.y~l 19ue vi-
vam é gozem os peixes ·de perfeita saude, e prodigioso vigor ? Çomo ..é
que n'esta agua, d' aspecto tri~te e insupportavel, podeµi engordar~ . e ter
uma carne que os golosos prefereQf á das mais exquisit:is av~s 'l .São
cousas estas, . que .parecem impossíveis, e quetodaviê:' n~o ..p9~.emos ·. n~­
gar. A cada instante, assim em a natureza como na Religião, .Deus nos
obriga a crêr e ter por certo o que lhe não apraZ:qu~ poss.amos ~Qmpre­
hender; contenta-se com nos mostrar a realidade das suas' maravilha&,
exigindo o sacrificio da razão, ou antes, da ignorancia, ~o que ioca a na-
tureza do que fez, e a.maneira como ofez. .
Com effeito, como quiz Deus crear os peixes na agua, onde nada
cresce, não podendo vir á terra buscar seu alimento,, sendo álias tam
vorazes, que mutuamente se engolem? O' sabedoria creadora ! Se. aqui
não errastes, andastes brincando com todas as difficuldades. Como ha-de
subsistir todo este povo ? Deus proveu a tudo: de ta]. súrtê o.s multiplicou,
que se reparam e renovam sempre ainda por mais que se desttuam}las
ao menos, os pequenos em breve serão aniquilados pelos grandes, que os
consideram sua prêsa, e continuamente lhes dão caça; .tanto mais, que
nas planicies do Oceano não ha fosso nem trincheira: tudo está aberto,

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DE PERSEVERANÇA. 123

tudo é commum. Mas alli, como em toda a parte vem o Senhor em soc-
corro aos pequeninos e· fracos. Fez os peixes miados mais velozes na cor-
rida que os grandes. Acoutam-se nas paragens, onde o baixio não per-
mitte aos grandes que se approximem: dotou-os de providencia propor-
cionada ás suas fraquezas e perigos. Mas não parece agora, que para
salvar O;, pequenos, condemnou os grandes. a morrer de fome? Não se
deverá temer, que os cetaceos enormes, taes como as baleas, não te-
nham de que se nutram ? pois que o mar largo é pouco povoado, e estes
vastos colossos não podem, sem risco de naufr2gio, approximar-se ás
costas? Todavia são esfaimados, e tem estomago, ou antes sorvedouro,
para engJ.lir tudo. Que é pois o que sustenta a estes monstros? Para
elles está o mar povoado de myriades de animaesinhos, cuja conservação
é outra maravilha. A providencia de Deus abrange a tudo. A balea, este
enorme dragão, que é o rei do mar e que o possue, espera do Creador,
como os mais pequenos peixes, e ainda mais que os pequenissimos, o
sustento que ha de mister. ·
2.º Sua conservação. Todos os animaes .que povoam os ares, os
que andam e se rajam pela terra, .bem como os que habitam em suas
entranhas, todos tem a necessidade commum de respirar o ar: immedia-
tamente morrem se lh'o tiram. :Mergulhados na agua em pouco tempo se
afogam. Todavia as aguas teem habitantes; que vivem em seu seio, e
perecem apenas os tirem d'este elemento que lhes foi assignado. O' ho-
mens ! Não reconhecereis em fim o admiravel poder do Creador, que
esteve bri~cando com todas as difficuldades ? Mas como é que o sangue
dos · peixes (porque elles teem s:mgue), póde circular? Como se não re-
gela ou coalha com o grande frio das aguas? Como podem viver debaixo
de montanhas de gêlo? Os animaes terrestres teem suas plumas e deli-
cada pennugem, ou boas pelles que os defendem do frio; mas 'os peixe3
nada teem que se pareça mm ist9. Como podem logo resistir a urn 'ele-
mento muito mais frio que o ar? Lembrai-vcs de uma cousa que tereis
visto sem fazer reparo. Quando pegaes n'um peixe, não sentis qne tem
uma especie de grude por todo o corpo ? E depois tem uma cobertura
composta de fortes escamas, muito unidas e sobrepostas; da mesma ma-
neira, mas com muito mais artificio, que as ardósias que cobrem nossos

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t2i CATECISl\10

palacios. Ora, isto é apenas a primeira tunica. Antes de chegar ã carne


do peixe encontrareis uma especie de banha oliosa, que o cobre desde
a cabeça até á cauda. A escama evita primeiramente que o peixe se não
fira contra as conchas e os rochedos; em segundo lugar, conserva ao
peixe o calor e a vida. Não lbe podiam dar vestido tam leve e ao mesmo
tempo tam impenetravel como este. D'est'arte. para onde quer que olhe-
mos descobrimos uma sabedoria sempre fecunda em novos designios, e
jámais contradita ou obstada pela desobediencia dos materiaes que em-
prega.
3. 0 Grandeza d' alguns peixes. Imaginai um animal de noventa pés
de longo, e proporcionada grossura, do qual os ossos, similhantes a gran-
des arvores, servem para construir barcos; cuja gordura fornece perto
de cento e vinte toneis d'olio; sobre cujo dorso vinte e quatro musicos
deram um concerto ha poucos annos ; (t) cujos movimentos fazem bor-
bulhar ao longe, e agitarem-se como em tempestade as aguas do Oceano;
cuja cabeça só de per si tem pouco mais ou menos vinte pés de longo ;
(2) e a cauda, de vinte pés de largo, é tam forte, que atira pelos ares
uma chalupa carregada de gente ; a qual, a pezar da sua excessiva di-
mensão, fende as ondas r,om extrema velocidade ; emfim, imaginai um
animal para quem o elephante é menos que um cãosinho: pois este mons-
tro é o rei dos mares, é a balêa. (3) E Deus que a creou, que a governa
(1) Vio-se este facto em Ostende.
· (2): A balêa não se nutre senão de molluscos e peixinhos muito pequenos, os
quaes engole em grande quantidade. A pequena passagem de sua garganta não lhe
permitte engulir animais ainda de pequeno tamanho. Não é exacto o que se attribue
commummente á balêa_do celebre facto da historia de Jonas. As tradueções grega e
latina, ve,rtem o nome do animal, que engulio o Propheta, pelas palavras Kyvos, e
Oete, que entre os antigos indicavam peixes de grande tamanho, e de nenhuma sorte
a balêa em particular. Presume-se naturalmente que fosse um peixe dos esqualos,
por exemplo, o tubarão, que póde eagulir um homem e um cavallo sem o triturar.
Supposto que isto nada tire ao caracter do milagre, é verosimil que o agente fosse
um peixe de guella espaçosa; e este que citamos parece o mais proprio a servir d'ins·
trumento ao poder divino n'uma aventura d'este genero. Desdouits, Liv. da Natur.
t .. n, p. 1rn.
(~) A descripção que acabamos de fazer é a da balêa franceza. O ZorquaJ,
outra especie de balêa, inda excede muito estas dimensões.

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DE l'EHSEVEílANÇA. 125

como o pastor a um cordeiro, este grande Deus dignou-se obedecer aos


filhos dos homens ! Não vos enternece este só pensamento ?
A balêa não tem dentes, mas em seu lugar tem a bôca guarnecida
de muitüs pentes de doze oa quinze pés de comprido, chamados com-
mummente barbas. Estão fixas pela base em o queixo; de modo que se
estendem de cada lado <lo paliJdar, e fazem nma especie de vasta peneira,
atravez da qual a agua, sorvida na immensa goela do animal, se escôa
em parte, sem poder levar comsigo os pequenos animaes que vem juntos
com ella. Estas laminas elasticas, em numero de muitos centenares em
cada peixe, servem com o nome de barbas de balêa, para um sem nu-
. mero de bem conhecidos usos.
4. 0 Sua utilidade para o homem. As balêas e todos os grandes
peixes, cuja vista assusta e afugenta os que nos servem d'alimento, habi-
tam o mar largo, temendo naufragar nas costas por falta d'agua que os
sustente. A mão invisível, que os tirou do nada, sacode-os para aquelles
mares, que os outros abandonam ; nutre-os em os gêlos do norte, para
onde os encaminha, como um recurso, aos habitantes d'aquelles tristes
paizes. Comem·lhe elles a carne : queimam o azeite, que os alumia em
suas longas noutes ; aproveitam-lhe os ossos e a pelle para construir e
fazer grandes barcos, em que sahem á pesca. Sabeis como se pesca a
balêa ? Atiram-lhe de longe um arpão, que se lhe enterra na carne ; o
animal foge, arrastando comsigo uma corda, que vai preza ao arpão, e
cuja extremidade fica nas mãos dos pescadores. A balêa lucta com o ferro,
fatiga-se ; e, com os esforços que faz e o sangue que perde, acaba por
desfalecer. Então seu corpo torna-se preza de seus audaciosos vencedo-
res. (1)
Todas as outras especies de peixes habitam pelas costas do mar. Uns
estão sempre proximos a nós ; outros chegam todos os annos em Cilrdu-
mes; taes são os arenques. (2) Conhece-se o tempo em que passam, e
d'este conhecimento se aproveitam. E' nos mares do Norte, habitados pelas

(1) Veja-se a descripção minuciosa da pesca da balêa cm Plucbe, I. I, 404.


(2) A pesca, que se desembarca só no porto de Dieppe, faz, em menos de trcs
mczes, um produdo de dous a tres milhões de arenques.

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f 26 CATECISMO

balêas, que se criam os arenques, e os outros peixes de arribação. Em


certa estação, fogem elles diante da balêa, e vem acolher-se ás nossas
costas. Conduzem estas nuvens de peixes assim o temor do inimigo como
o engodo dos insectos de que se sustentam em nossas praias, e que são
para elles uma especie de manná, que fielmente colbem no deserto. De-
pois que o esgotam em todo o verão e outono, parece que os restos d'es-
tes exercitos regressam no inverno para o pólo, aonde criam novas gera-
ções, para outra vez nos visitarem no anno seguinte.
Ha outros peixes, como são o salmão, o savel e mil outras especies,
que entram precipitadamente pela embocadura dos rios e se remontam
até ás suas fontes. Para que é isto? E' para communicar as vantagens
do mar aos paizes que d'elle estão remotos. Quem os conduz aos tiomens,
com tanto des\ elo e bondade, se não vós, ó Senhor, sJpposto que, ó ce-
1

gueira ! uma Providencia tam visivel raramente o~ move á gratidão ?


A palavra omnipotente, que povoou os abysmos do oceano, foi se-
guida d'outra, que encheu as vastas planicies do ar d'engraçados habi-
tantes. Os passaros, assim como os peixes, nasceram do mar. Que novo
milagre ! que este elemento produzisse duas especies de seres tam diffe-
rentes? Já descemos ao fundo das aguas, ngora viajemos pelos ares;
verêmos um povo de musicas missionarios, que publicam, com seus can-
tos, a sabedoria e Providencia admiravel do Creador.
Lº Pela structura do corpo. Coberto d'olio e escamas; chato e
flexivel na cauda, guarnecido de muitas barbatanas como de remos e
quilha, o corpo do peixe tem as requisitas condições para cortar facil
e graciosamente o liquido elemento. Não é menos aclmiravel a structura
dos passaros. Basta vêr seu corpo para descobrir uma perfeita proporção
entre elle e o elemento mais subtil que lhe foi dado para habitar. O corpo
do passaro, nem muito, nem por todo igualmente compacto, mas em pBr-
feita harmonia com o seu fim, é mais agudo na frente, para melhor abrir
e cortar o ar. As azas, convexas por fóra e concavas por dentro, são
optimos remos para vogar n'este elemento. Ao mesmo tempo servem de
maromba, que sustenta o equilíbrio do corpo, e de alavancas, que, fa-
zendo impressão no ar que lhes resiste, impeJlem o corpo no sentido con-
trario. A cauda serve para contrabalançar a cabeça e o pescoço ; faz as

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DE PERSEVEBANÇA. 127
vezes de leme, como as azas de remos. Este Jeme não serve só para
manter o equilibrio do Yôo, mas tambem para levantar, abaixar, ou voltar
para onde o passaro quer ; porque a cauda, em se voltando para um lado,
logo se inclina a cabeç.a para a parte opposta.
Os ossos dos passaros, com quanto solidos para sustentar a fabrica
de seus membros, são todavia tam ôcos e delgados, que pouco mais
pesam que a carne. Todas as plumas são construidas e dispostas de geito,
que não só fazem voar o passaro, como tambem o defendem das injurias
do ar. Tem os pés construidos por tal arte, que em soffrendo pressão,
logo se curvam. D'aqui resulta que as garras do passaro ajustam-se mais
ou menos á fórma do objecto sobre que pousa, em razão dos movimentos
mais ou menos rapidos d'esse objecto.
« Por este modo, quando ''êmos ao cahir da noute, em tempo d'in-
verno, empoleirados os corvos nos despidos ramos d'algum carvalho, pa-
rece-nos que, sempre vigilantes e attentos, não se sustentam senão com
inauditas fadigas, no meio dos redemoinhos e das nuvens. Todavia, des-
cuidados do perigo, e chamando a tempestade, todos os ventos ijies trazem
o somno. O mesmo aquilão firma~os no lngar d'onde se nos antolha que
os vai precipitar; e, quaes os velhos marinheiros, cuja mãca, onde se
deitam, prende dos agitados mastros, tanto mais balouçados são das tem-
pestades, mais gostosa e profundamente dormem >>. ( i)
2. 0 Por 8ua conservação. Aque1le que creou multidões de passaras
de toda a especie vela em cada um d'elles com tanto cuidado como em
o universo todo ; nada esqueceu para lhes assegurar a conservação e o
bem-estar. Sirva isto a nos instruir e animar. Se o vosso Pai celeste tanto
cuidado tem com um passaro que apenas custa cinco reis, que será com-
vosco, que lhe custastes todo o seu sangue? Para lbes dar os meios de
fazer longas viagens, nas quaes nem sempre ha hospedarias e provisões,
e pois que lhes será preciso passar sem comer as longas noutés d'inverno,
põz-lhes Deus abaixo do pescoço uma bolsa que se chama o papo. onde
o passaro põe seu alimento de reserva; o licor em que este alimento nada
no papo serve a fazer a primeira digestão. A moéla onde depois entra

(1) Chateanbriand 1 Resumo do Genio do Christinn-t.<mw. - Pa.ssaros.

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f 28 CATECISMO

pouco a pouco a~aba de. o digerir ; e isto qnasi sempre com o auxilio de
pedrinhas esquinadas, que o passaro engole para melhor· triturar a co-
mida.
Está o viajante provido das necessarias provisões ; agora trata-se de
o defender da agua e do frio; para isto cumpre dar-lhe vestidos impe-
netraveis á chuva e ao ar. Vêde pois como junto ao corJ.JO todas as plu-
mas são guarnecidas d'uma pennugem macia e querite : do lado de fóra
guarnece-as por ambas as partes uma ordem de barbas mais longas de
um lado que do outro. Formam ellas uma especie de pente fino e leve,
cnjos estrepes estão chegados, e unidos, e alinhados na extremidade co-
mo se os tivessem aparado á tesoura. Cada um d'estes estrepes é de si
mesmo um tubo, que sustenta outras duas ordens de barbas ou pennu-
gens tão pequenas, que mal se percebem.. e tapam exactamente todos os
jntervallos por Ônde o ar pudésse introduzir-se.
Tão solícitos cuidados, que certamente nos t:iriam esqueci-00, .ainda
não bastaram á Providencia. Como esta economia, tão nceessaria, pode-
ria desconcertar-se com a chuva, o Creador proveu os passaros com um
meio de tÓrnar suas plumas impenetraveis á agua, assim como já o são
ao ar pela sua estructura. Além cl'um pequeno reservatorío cheio d'oleo,
c0llocado na base de cada pluma, teem todos os passaras outro mais
abundante situado na extremidade posterior do corpo. Est'outro reserva-
torio tem pequeninas aberturas; e quando o passara sente as plumas sêc-
cas, estragadas ou entre-abertas, aperta ou sacode este reservatorio com o
bico. Expreme d'elle uma especie d'oleü ou banha, que tem de reserva
em glandulas; e depois, passando pelo bico as pennas, as vai untando,
lustrando, e concertando com esta materia viscosa. Depois d'esta opera-
ção, a agua já não faz mais que escorregar pelo passaro, ~chando as pen-
nas perfeitamente fechadas e empregnadas d'oleo. As aves domesticas,
que vivem menos expostas, tambem s~o menos fornecidas d'est~ licor;
pelo que succede que uma gallinha molhada offerece um espectaculo ir-
risorio. Pelo contrario, os cysnes, os patos, e todos as passaros aq,uati-
cos, tem as plumas embebidas em oleo desde que nascem, e trazem no
reservatorio uma provisão proporcionada á contínua necessidade que teem
d'elle. A mesma carne resente-se d'este gosto; e é facil notar que o cuida-
do d'untar suas plumas é seu ordinario exercício.

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DE PERSEVERANÇA. 129

Como tudo porém se gasta em a natureza ;· e, apesar de tantas pre-


cauções, os vestidos dos passaros lambem se gastam ; este brilhante
exercito de~nanda seu fardamento novo ; quer andar loução e fazer honra
ao poderoso monarcha que o commanda. Por isso quando se approxima
a estação das geadas, estes innumeraveis i'oJdados mettem-lhe seus re-
querimentos ; então este Pae, que os guia e os alimenta, abre-lhes seus
arsenaes, e digna-se ser elle mesmo o fornecedor e o alfaiate. O ou-
tomno é o tempo cl' esta distribuição geral. Todos se despem de suas
plumas, e recebem gratuitamente um fardamento novo. Quando o inver-
no chega, não teem mêdo ao frio. No anno seguinte, quando se faz ve-
lho este novo vestido, já estará outro prompto nos arsenaes do Deus
Creador, e conservador de tudo o que respira.
Mas d'uma a outra distribuição, importa que todos elles trabalhem;
os passaros, assim como o homem, devem comer o pão com o suor do
rosto : é preciso passar a vida entre a musica e o trabalho. Para isso
nada lhes falta ; todos tem os instrumentos e utensílios convenientes á
natureza de suas occupações e modo de vida. Dous outros exemplos bas-
tarão para elucidar este pensamento, e fazer admirar a Providencia.
O pardal, e a maior parte dos passaros miudos, vivem das semen-
tes que acham em nossas casas ou pelos campos; não precisam fazer es-
forços para chegar á comida ou tritural-a. Por isso teem o bico peque-
no, o pescoço e as unhas cortas, e isto lhes basta. Não succede o mes-
mo com a gallinhola, e muitos outros, que precisam esquadrinhar a co-
mida no seio da terra e no lodo, d'onde tiram os mariscos e os vermes
de que ,-ivem; a estas deu o Creador gorgomilos e bico comprido. Com
estes instrumentos cavam, esquadrinham, e nada lhes falta para ganhar
sua vida. O picanço, que tem outro officio, é lambem differentemente
construido. Tem o bico extremamente duro e forte, a lingua aguda, des-
mesuradamente longa, armada de estrepes, e sempre untada de viseo na
extremidade. Tem pernas curtas, duas unhas para diante, duas para
traz; umas e outras são aduncas. Toda esta construcção tem relação com
a sua maneira de caçar e· viver. Este passaro sustenta-se <le bichinhos ou
insectos que .vivem no coração ele certos ramos d'arvores, e mais com-
mummente sob a cortiç.a das que são annosas. E' cousa muito commum

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t :JO CATECISMO

achar debaixo da casca das arvores que se cortam os lHH'élcos crestes vr-r-
mes, que furam a madeira, talvez até grande profundidade. O picanço
carece das unhas aduncas para se agarrar aos ramos da arvore. As per-
nas longas ser-lhe-iam inuteis para alcançar o que pretende ; mas o lJico
agudo e duro é de grande necessidade para tocar e martellar ao longo
dos ramos ; a fim de conhecer pelo som os lugares cariados e ôcos ; to-
pando os quaes pára, e a fortes picadas quebra a casca , depois iotro-
duz o bico no buraco que fez, e dá um guincho, que se repercute pelas
tocas da arvore, e acorrla, e faz correr atordoados, os insectos que ahi
dormem. Então dardeja com a língua pelo buraco; e, com os estrepes
de que está eriçada, e a colla que d'ella espreme, apanha os bichinhos
que encontra, e com elles se regala.
Discorrei do mesmo modo por todas as outras especies, e não acha-
reis um só passaro cujo modo de vida não esteja d'accôrdo com a sua
fórma e os instrumentos de que está provido. E' uma harmonia tanto
mais admiravel, por isso que ao parecer se dirige a objectos pouco im·
portantes, e que prova tanto mais como tudo é obra d'uma sabedoria in-
finita.
3. 0 Por seus ninhos. Esta sabedoria infinita mais sensivel se torna
na industria com que os passaros fazem seus ninhos. Quem poderá vêr,
sem enternecer-se, esta bondade divina, que dá habilidade ao fraco, e
previdencia ao desvalido ? Que mestre lhes ensinou, primeiramente, que
lhes eram precisos ninhos? Quem lhes disse -o modo como era preciso
construil-os, para que os ovos aquecessem e não cahissem. Quem lhes
advertiu que o calor não se concentraria em torno dos ovos, se o ninho
fosse demasiadamente grande; que os filhinhos não caberiam se fosse
demasiadamente estreito? Como conhecem elles a justa proporção do ta-
manho do ninho, com o numero dos filhinhos que devem nascer? Que ·
astronomo lhes regulou o reportorio, para se não enganarem no tempo,
nem deixarem as cousas para tarde ? Que matbematico lhes traçou a fi-
gura de seus ninhos? Que architecto lhes ensinou a escolher um lugar
firme, e edificar em fundamento solido? Que terna mãe lhes aconselhou
a almofadar a cama, com malerias macias e delicadas, taes como a pen-
nugem e o algodão ? E quando faltam estes materiaes, quem lhes inspi-

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DE PERSEVERANÇA.

rou a generosa caridade d'arrancar do peito as plumas necessarias, para


acolchoar um berço commodo e mimoso? Quando chega pois a prima-
wra, e as arvores começam a brotar e desdobrar suas folhas, começam
tambem mil obreiros os seus trabalhos. Eis-aqui pedreiros, carpinteiros,
tecelões, a fazer obra com maravilhosa perfeiç.ão. Conheceis a escóla de
artes e offir,ios onde aprenderam? Estes trazem palheiras para o buraco
d'um pardieiro; aquelles edificam sua casa nas fresta d uma igreja· ou-
tros furtam uma crina a um cavallo, ou um fio de lã que a ovelha deixou
prêsa no tojo. Cada um escolhe os materiaes que lb conv · m. Se que-
reis vêr de perto a admiravel sabedoria que dirige todos tes archite-
ctos, entrai em um viveiro onde estejam reunidos passara de muitas es-
pecies; botai a um canto o que é nece sario para a construcção de seus
ninhos ; cortiças, cavacos e fitas de madeira, folhas êccas, feno, palha,
musgo, cabello, algodão, lã, sêda ; olhai com que discernimento todos os
habitantes se vem provêr a esta feira. Este precisa de um bocado de
musgo; aquelle pede uma pJuma, est'outro quer uma folha; lá estão
dous a picar-se para vêr qual levará um cadexo de lã. Por causas iden-
ticas armam-se ás vezes grandes barulhos; mas de ordinario partem a
duvida ao meio, levando cada um no bico a parte que póde tirar. Cada
especie tem seu gosto e maneira de se alojar e fornecer de moveis. Edi-
ficada a casa, jámajs deixam de a alcatifar por dentro com plumas, ou
almofadai-a com lã, ou ainda mesmo com sêda, para conservar um calor
benefico em torno de si e de seus filhinhos.
E para isto, quaes são os utensilios? Vêde a andorinha; seu ninho
é uma obra d'estructura totalmente differente das outras ; parece eviden-
temente exceder os meios e as forças de que ella póde dispôr. Não é
com pequenos raminhos, nem com feno, que faz sua casa; emprega o ci-
mento e o barro, e d'um modo tão solido, que se não póde demolir sem
bastante esforço. Todavia nem tem vaso para tirar agua, nem taboa para
levar a cal, nem palheta para ter a argamassa, nem trolha para appli-
cal-a. Como ha de supprir tudo isto? Vêde-a passar e repassar por uma
lagoa proxima. levantando as azas, molha o peito na superficie d'agua ;
depois roçando-se pela poeira, faz uma especie d'argamassa que leva, e
obra com o bico. Reduzi, se é possival, o mais habil architecto ao pe-

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132 CATECISMO

queno volume d'uma andorinha, não lhe deixeis braços, nem utensílios,
nem materiaes: deixai-lhe só a sua scieucia e o bico; a andorinha não
tem senão o bico, e não aveza sciencia ; ponde-os a trabalhar um e ou-
tro, e vêde qual se sahirá melhor.
4. 0 Por seu instincto. E' n'esta parte que se não póde deixar d'admi-
rar a poderosa impre são d'uma razão superior. Feito o ninho e postos
os ovos, mudam inteiramente o babitos dos obreiros. Os passaros não
sabem, de certo, nem o que contém os ovos. nem a necessidade de os
incubar para os tirar, nem como tudo isto se executa. Todavia, este ani-
rnalsinho tão .agil, tão inquieto, tão voador, esquece n'este momento o seu
genio natural, para fixar-se sobre os ovos todo o tempo preciso. Sabem
por fim os filhjnhos, e é muito para vêr que novos cuidados tem o pae e
a mãe, em quanto que sua prole precisa de seus carinhos. Então sentem
o que são encargos de familia : é preciso ganhar pão para sete ou oito,
que não para dous sómente. O toutinegro e o rouxinol trabalham então
como os outros. Adeus, musica: já não ha tempo de cantar, se não é
em hora d'ocío; é preciso levantar antes do nascer do sol; distribuir a
comida com muita igualdade, dando sua parte a cada um alternadamente,
e nunca ao mesmo duas vezes successivas. Que digo? A ternura dos
paes e das mães para com seus filhos, chega a ponto de lhes trocar a
natureza~ dar-lhes novas inclinações. Não se trata só de nutrir, cumpre
velar, defender, prevêr, arrostar com o inimigo, e pagar com o corpo
qualquer recontro. Para melhor nos explicarmos tiremos exemplos de
passaras que vêmos todos os dias.
Reparai em uma gallinha mãe de familia; bem vêdes que já não é a
mesma. D'antes era golosa e insaciavel; agora nada quer para si. Se
topa com um grão de trigo, migalha de pão, ou ainda cousa mais abun-
dante e que se poderia repartir, não lhe toca; entra a chamar os pintai-
nhos, com um requebro que elles entendem ; accorrem lestes, que para
elles sós é o achado; a mãe limita-se ao seu jantar. Outr'ora sim, éra tí-
mida, não sabia mai se não fugir; á frente d'uma manada de pintainhos,
é uma heroína que já não conhece perigos, que salta aos olhós do mais
fero mastim: com a coragem, que a sua nova dignidade lhe inspira, ar-
rostaria com um leão.

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DE PERSEVERANÇA. {33

Alguns dias ha que eu vi uma, em attitude não menos interessante.


Tinham-na deitado com ovos de pata. Os pequeninos, ao sahir do choco,
não tinham a fórma de seus outros filhos ; mas ella entendia que era sua
mãe ; e por esta razão estava muito contente com elles. Conduzia-os como
seus, com a melhor boa fé possivel; ajuntava-os debaixo das azas, aque-
cia-os, levava-os por toda a parte, com a auctoridade e os direitos que
lhe dava sua qualidade de mãe. Tinha ella sempre sido respeitada como
, tal, seguida e obedecida por toda a manada. Mas um dia, por sua gran-
de desgraça, e maior deshonra, topou com um regato no caminho ; e eis
que n'um abrir e fechar d'olhos fogem-lhe para a agua os patos. A pobre
mãe estava n'uma agitação extrema; seguia-os com os olhos ao Jongo da
margem, ora os aconselhava, ora reprehendia sua temeridade, pedia que
lhes acudissem, e a 'todos contava a sua affiicção; tornava para a
agua a chamar estes imprudentes; mas os patinhos, regalados de se vê-
rem no seu elemento, continuavam o seu festejo. A gallinha, pela sua
parte, não cessou ue se affiigir em quanto não ajuntou debaixo das azas
a sua cambaia familia, que na primeira occasião havia de a tornar a aban-
donar. Em que escóla tinham elles aprendido que a agua era o seu ele-
mento? Certamente não foi na da gallinha.

ORAÇÃO.
O' meu Deus! que sois todo amor, eu vos dou graças por terdes
creado para nossa utilidade os peixes e os passaros; bemdita seja a vossa
Providencia que rnla com tanto cuidado as creaturas, e que me prodiga-
liza. tantos beneficias. Augmentai a minha confiança e o meu amor para
comvosco.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d'este amor, farei
com muita devoção a minha oração da manhã.

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f (

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X.ª LICÇÃO.

Obra dos seis dias.

Continuacúo do quinto dia. - T1·ata-se ainda do lo tincto


dos pâNsaro . - Suas entigrações. - Cuidados maternaew
da Providencia. - Sexto dia. - .A.niniaes dome•ticoll!I. -
Soa docilidade. - Sobriedade. - Servico . - O in8ectos. -
Seus enCeites. - àrntas. - Astucia. - Orgãos.

1. 0 lnstincto dos passaras. Vimos de que admiravel instincto são


dotados os passaros, já em incubar seus ovos, já emfim em nutrir seus
filhinhos. Este instincto estende-se ainda a prevêr o perigo, e dar signal
do inimigo. Entre mil exemplos daremos um, tanto mais sensivel quanto
familiar.
Vêde uma perúa á frente de seus filhinhos. De vez em quando dá
ella um grito assustado e Jngubre, de que se não sabe a causa nem a in-
tenção. Mas todos os seus filhinhos se escondem immediatamente debai-
xo dos arbustos, da herva, de tudo aquillo que encontram : desappare-
cem todos ; e se não ha onde se esc~ndam, deitam-se por terra, e fin-
gem-se mortos. Teem-se visto n'esta posição, sem se mecherem, quinze
minutos, e muitas vezes mais. Entretanto a mãe está olhando para o ar,
redobrando seus suspiros, e· repetindo o grito sinistro, que fez esconder
todos os filhinhos.
Quem repara na affiicção d'esta mãe, na sua attenção inquieta, pro-
cura descobrir no ar o que lhe póde dar causa; á força d'olhar discerne-
se por entre as nuvens um pontinho negro que mal se percebe. E' uma
ave de rapina, que por sua distancia se nos torna quasi invisível; mas
que não escapa á vigilancia e penetração d'aquella mãe de familia. E'

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13() CATECISMO

esta a causa do susto e alvoroto. Um dia vimos uma p6rúa n'esta agita-
ção, e seus filhos cosidos com a terra por quatro horas a fio, em quanto o
passara pairava, subia e descia por cima d'elles.
Em fim desapparece o corsario, a mãe muda de linguagem, dá outro
grito com que seus filhos como que resuscitam ; e correndo todos para
ella, batem as azas, fazem-lhe festa, e como que lhe dizem muitas cousas.
Ao que parece contam uns aOs outros o perigo em que estiveram, e mal-
dizem o infesto pirata. Co~o tudo isto é admiravel ! Quem deu a conhe-
cer a esta mãe um inimigo que nunca lhe fez mal? Como o descobre a.
tão grande distancia ? Qual é o sen ocuJo de vêr ao longe? Por outra
parte, que lições deu ella á sua familia, para distinguir, como é preciso, o
differente significar de seus gritos, e obrar de accôrdo com esta lin-
guagem?
Estas admiraveis harmonias, entre os orgãos d'esta ave e o uso que
faz d'elles, para se conservar a si e á sua familia; todas estas maravilha:;
d'estructura e instincto, todos os dias as estamos vendo. Mas quem repara
n'ellas, e quem agradece portanto á Providencia? Oh f quanto a maternal
solici~ude d'esta ave justifica plenamente a comparação, de que Nosso Se-
nhor se dignou usar em o Evangelho. Nada nos mostra tão patheticamente
a saa providente bondade !
Jerusalem ! Jerusalem ! Quantas vezes quiz eu ajuntar teus fi-
lhos, como a·gallinha ajunta seus pintainhos debaixo das azas ! e ti' não
o quizeste? .... (1 ).
2. 0 Suas emigrações. A vida dos passaros está cheia d'instrucções,
que nos ensinam ; cada pagina de sua historia mostra-nos a sabedoria,
bondade, omnipotencia do Creador, e convida-nos a repousar n'elle oco-
ração, pela çonfiança e pelo amor. Vejamos est'outro capitulo de sua his-
toria não menos interessante que os precedentes ; oxalá produza em nós as
salutares impressões que nos quer fazer o celeste escriptor d'este gran-
de livro da natureza !
Os mesmos passaras nem sempre habitam os mesmos lagares ; se-
não que mudam de terra com as estnções. Na primavera aportam aos

(1) Math. XXIII, 37.

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DE PERSEVEHANÇA. f 37

nossos climas exercitos de andorinhas ; no verão as codornizes; e todos


estes passaros desapparecem pelo contrario quando chega o outono e se
approxima o frio. O fe tival exercito vae fazer quarteis de inverno em
climas mais quentes ; là encontram arsenae mais bem providos : o seu
grande fornecedor já partiu adiante. E' verdade que de tudo carecem os
Iio sos peregrinos; nem a mesma estrada é sua conhecida. Não importa;
nem a distancia dos lugares, nem a extensão dos mare , nem a obscuri-
dade da noute, nada em fim os assusta, nem embarga. Confiado n aqnel-
le que os chama, contê:tm acertar com o caminho, e n'elle serem forneci-
dos de ração e etapa · e não se enganam. (f)
Quando chega pois o momento de partir, fazem seus preparativos ;
cada especie tem sua maneira de viajar, assim como em um exercito ca-
da corpo tem seu passo e manobras. Algumas levantam campo mais c . do
e partem sós; outras levam uas familias; est'outra vão em pequenas

(1) A partida dos pas aros dá talvez occasião a scenas pathcticas. - Em um


jornal de Paris, (Setembro de 1845) lê-se o s guinte : « Hoj , das ete para oito ho-
1·as da manhã , apinhava- s o povo diante da porta principal da antiga metropole de
Pa.ris, e todavia a voz do bronze, emmudecida e silenciosa, não havia annunciado so-
lemnidade publica; mas, debaixo da. abobada. do velho portico passava-se uma sce-
na importantissima para os· curiosos de ornithologia, bem propria a esclarecer-nos
sobre os costumes dos passaros d'arribaçao.
Milhares d'andorinhas gyravam por cima da Galeria dos Reis, pousavam em
suas columnas restnuradas, d'ahi lançavam-se ao espaço; depois pousavam de novo.
em duvida haviam escolhido este velho edificio como ponto d partida para a emi-
gração. E pautavam-se o espectadores por não saberem o que lhes demorava a
partida; senão quando descobre-se um dos vi ajantes prêso por um pé e susp nso por
uma fita, que se tinha agarrado a uma elas grotescas esta.tua .
Era um terno espec.taculo o vêr todas estas pobres aves, que manifestavam a
sua inquietação, dando gritos e agitaudo as azas. T das volteavam em torno da
prision6ira, .todas davam sua picada no laço, que a prendia ao portico. Por fim, pas-
sadas duas horas de fadigas, e trab&lhos, e crueis agonias, uma ultima picada corta
a desastrada fita. Mil gritos d'alegria acharam ecco nos applausos da reunida mul-
tidão, e a pobre andorinha, ferida sem duvida pelo laço, que tanto tempo a suspen-
dêra e maltratára, soccorrida e animada por suas irmãs, vôa. com ellas para. longes
terras, unindo a sua vozes algumas ar ticulaçõe , que pl'ovavelmente diziam o que
diz Phedro em suas fabulas:
•Quam dulcis sit libertas breviter proloquar.•

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138 CATECISMO

companhias. Breve se põe em marcha todo o corpo do exercito ; as nu-


merosas tropas que o compõem ajustaram entre si de se reunirem em al·
gurna planicie remota, ou sobre o campanario d'uma aldêa solitaria.
Aque!les são os patos bravos, estas são as andorinhas.
Dado o signal de partida, as primeiras formam-se ordinariamente
em columna cerrada, descrevendo um logo 1, ou em duas colnmnas reuni-
das em um ponto na fórma de V. O pato que fórma a ponta do angulo,
fende o ar e facilita a passagem aos que o segu,em. Este passaro condu·
ctor é por muitas vezes revezado : passa á extremidade da cauda para des·
cançar, em tanto que outro o substitue. As segundas, sendo mais leves,
formam uma massa compacta, que talvez obscurece o ar. Muitos ficam
na Europa e escondem-se nos canaveaes e nas lagoas onde ficam n'um
estado de entorpecimento lethargico, até o regresso da primavera. Pes-
soas, de cuja veracidade não podemos duvidar, asseguram-nos effectiva·
mente terem tirado algumas da agua, apparentemente mortas, na epocha
em que todas tinham desapparecido do paiz, e· haverem-nas restituído
á vida aquecendo-as lentamente. A precaução, que tomam antes, de lus-
trar bem suas plumas d'olio, e fazerem-se em um novello, com a cabeça
para dentro e o dorso para fóra, defende-as da humidade. 1 to succede
com as andorinhas que andam nos ribeiros: quanto áquellas que fazem
ninho nas chaminés e nas janellas, essas emigram, no outono, para paL
zes quentes. Vêem-se então juntarem-se em grandes nuvens nas margens
do Mediterraneo, e reunindo-se todas em lugar alto, depois de terem es-
perado alguns dias o momento favoraveJ, partem estas innumeraveis le-
giões, e atravessam o mar com ordem e concerto. Succede algumas vezes aos
navios íJtle andam n'este mar, vêl-as descer em nuvens e pousar-se nos
mastros e enxarcias quando os ventos contrarios se oppõem á sua viagem.
Finalmente asseguram-nos que no mez de outubro começam as nossas an-
dorinhas a apparecer no Senegal, onde passam o inverno e mudam a
penna.
Ao voltar a primavera, todas se apressam a chegar á aldêa, ou á ci-
dade, apossando-se cada uma da chaminé ou da velha janella, d'onde le-
vára tantas saudades, tam ternas recordações da hospitalidade do outro
anno.

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))E PERSEVEHANÇA. !39
Que prodigios, que maravilhas! Qoe o rigor do frio e falta d'alimen·
to advirtam os passaras para mudar seu domicilio, ainda se concebe; mas
que o façam apezar da temperatura e abundancia lhes permittir demorar-
se, é cousa pasmosa ! Que raz3o tem ellas para não deixar de partir no
tempo marcado? Que historiador ou viajante lhes ensinou que em outros
climas acharão o conveniente sustento e agazalho? Que magistrado é o
incumbido de convocar a conselho, para fixar o dia da partida ? Em que
lingua disseram as mães a seus filhinhos, apenas nascidos d'alguns mezes,
que era de miste1· abandonar o paiz natal, e peregrinar por terras estra-
nhas? Qual o motivo porque se agitam no tempo da partida. e parecem
aftlictas de não poderem fazer perna aquellas que se veem prêsas em uma
gaiola? Como se chama aquelle que tange a trombeta,. para nnnunciar
ao povo a resolução tomada, a fim que todos estejam proaiptos ? Pos-
suem as andorinhas algum Calendario por onde saibam a estação, e o dia
em que devem pôr-se a caminho? Tem ella officiaes para manter a dis-
ciplina, que observam tam rigorosa? Porque motivo antes da ordem, nin·
guem se mexe; e ao outro dia da partida não ha vêr d ertor nem sol-
dado ronceiro? Acaso levarão bussola para e dirigirem á costa do mar,
aonde pretendem ir? sem jámais de~concertarem seo vôo, nem que a chu-
va pese, assobie o vento, ou cegue a vista a espessura da noute? Ou
dar-se-ha caso, que estejam sub a influencia d'uma razão infallivel, supe-
rior á do homem, que não ousa aventurar-se a passar o oceano sem pre·
caução de machinas e provisões ? Vó3 que fingis não crêr em Deus, res·
pondei.
Em fim partiram-se: adeus amavel companhia, adeus harmoniosa
musica; só nos ficaram o solitario pardal ou a innocente carriça. Pobre-
sinhos ! Que será d'elles no frio inverno. Quem os aquentara? Quem
lhes dará sustento? Acaso vos esquecestes d'elles, ó Pai de tudo o que
respira! Não, que elles são vos os. Ainda haverá tepidos raios do sol
que os aqueçam, o frondoso abeto, o colmo da houpana que os abrigue;
ífoar-lhes-ha o zimbro coberto de fructo ; a geada lbes amollecerá a va-
ga da roseira brava; e os pobres olítario terão ainda mesa e abrigo.
Assim é, ó maternal Providencia 1 que nada escapa á vossa providente
solicitude.

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HO CATECISMO

E' pois verdade, que Deus é tudo para com os passaros. Aquelles
que emigram não tem por certo cartas, nem bussolas, nem hospedarias
llpparelhadas na estrada, nem guias, nem razão ; e todavia chegam todos
sem lhes faltar nada. Os que ficam são igualmente alojados, aquecidos,
nutridos por sua bondade. Mas se elle tem tanto cuidado com passari-
nhos, dos quaes um par, como já dissemos, custa um obolo, segundo a
linguagem de Nosso Senhor, quanto mais o terá de nós para quem não
só os passaros, mas o mundo inteiro foi creado !
Sem duvida, é para nós que Deus creou os passaras: nutre-nos sua
carne, fazemos mil usos de suas plumas, festeja-nos seu canto. São mu-
sicas que nosso Pai celeste nos enviou para junto de nossas casas, maior-
mente as dos pobres, para embalar nossas dôres e celebrar seus benefi-
cios. Tanto é isto verdade, que os passaros que cantam, não se encontram
senão em os lugares habitados ; e quando o homem dorme, calam-se, e
não reasumem o seu canto senão para o saudar quando desperta; e em·
fim folgam até de lhe sahir ao encontro, para lhe cantar sua cantiga. Vê-
de a innocente calhandra : sim, ella come algum trigo~ faz pouso em nos-
sos campos ; mas paga-nos o sustento e a pousada com seus melodiosos
concertos. Quando o homem atravessa pelo campo, no meio do calor do
dia, surge a cantora ao om-ir-lhe os passos; eleva-se cantando, canta ca-
da vez mais, em quanto lhe dura a cantiga, e o seu senhor a póde ou-
vir; quan~o acaba de passar, desce ella, e descança para tornar a princi-
piar. Descancemos lambem um instante; eis vai principiar um novo dia;
um dia cuja luz alumiará maravilhas maiores ainda, que todas as que te-
mos presenciado até aqui.
No sexto dia Deus disse: Produza a terra animaes viventes, cada
um segundo a sua especie, (1) animaes domesticas, reptis, e bestas da ter-

(1) Segundo o Genesis, como d'accôrdo com as investigações geologicas, os se-


res succederam-se sobre a terra na razão inversa da sua complicação. Tal é a ulti-
ma palavra das nossas sciencias geologicas, tam modernas e todavia já tam adian-
tadas; e, admiravel cousa! Os factos que ellas nos revel am estão d'alguma sorte
consignados no primeiro e mais antigo de todos os linos. Similhante concordancia
annuncia ao mesmo tempo a verdade d'esse livro, onde estão escriptas, e a exactidão
das observações que nol-as tem dado a conhecer. Cosmog. 169.

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DE PEHSEVERANÇA. Hl

ra, segundo a sua especie ·; e isto se fez assim. Deus creou pois as bes-
tas da terra, segundo a sua especie, os animaes domesticas e todos os re-
ptü da terra, cada um segundo a sua especie ; e Deus viu que isto era
bom. (1)
Certamente, ó meu Deus! Ap"taz-vos confundir a minha razão, crean-
do incessantemente novas difficuldades, para diante de mim brincardes
com ellas. Hontem dizieis ao mar que produzisse peixes e passaros, el-
le vos obedece ; ainda não estou em mim de maravilhado, e eis que já
boje vos endereç.ais á terra, e lhe ordenaes que dê á luz novas creatu-
ras. Mas por ventura não está ella já coberta de milhares d'arvores e
plantas? Não está ainda esgotada sua fecundidade ? Onde quereis que
ella accommode estes novos hospedes, se tudo está occupado ?
Cala-te ó _razão humana : respeita e adora ; ó coração, arde em gra-
tidão e amor.
A esta sexta palavra, tres novas especies d'animaes sahiram do na-
da : entre aquelles que já conhecemos, uns nadam na agua, outros no
ar. Eis-aqui um terceiro genero que andam pela terra e se parecem mais
comnosco. Dividem ..se em tres classes: animaes domesticas, reptis e in-
sectos, e bestas ou feras. Aqui se manifesta ainda a providente bonda-
de do Creador.
1. º Pela docilidade dos animaes domesticos. Por animaes domesti-
cas entendemos todas as bestas de carga destinadas a obedecer ao ho-
mem, ajudal-o em seus trabalhos, supprir o que não podem suas forças,
fornecer-lhe vestidos e alimento. Deus a quem todos os futuros successos
da sua obra eram conhecidos desde o principio, tinha d'est'arte prepara-
do ao homem, tornado peccador e condemnado á penitencia, domest.icos
obedientes, qne partilhassem o seu trabalho, e até o dispensas3em do
que n'clle havia mais penoso. Ordenou a possantes animae3, que não
usassem de sua força senão a bem do homem ; que se não lembrassem
de sua agilidade, senão para o servir; que aceitassem seu jugo, sem re-
sistencia; amassem sua casa, mai& que a liberdade propria; e respeitas-

( L) Gcn. I, 24, 25.



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- -·
142 CATECISMO

sem a voz do menino, incumbido por seu pae de os conduzir. A que ha-
vemos d'altribuir as mansas inclinações e perfeita docilidade de todos os
animaes domesticas? Unicamente ao preceito de obedecerem ao homem
como a seu senhor. Se du\'iclaes, tentai domesticar os leões, os tigres,
os ursos e os lobos ; emprehendei reunil-os em um rebanho e confiai-os
a um pastor; procurai fazêl-os lavrar os campos, levar carg~s, pizar o
trigo: eis-ahi o que não podereis conseguir jámais.
2. 0 Por sua sobriedade. Não contente com ter dado ao homem es-
ta multidão de domesticas tam fortes como obedientes, quiz Ocos incum-
bir-se tambem de os manter : além d'isso deu-lbe inclinações de sobrie-
dade, que todas redundam em vantagem nossa. Em tanto qne as feras
bravas são vorazes, e arruinariam breve seu amo, a maior parte dos ani-
maes domesticas comem pouco, e trabalham muito ; um feixe d'herva,
ainda mesmo sêcca, ou um pouco de grão, é quanto lhes basta. Esta a
recompensa de todos seus serviços. Ainda levou Deus mais longe a sua
providencia: quiz que por toda a parte tivessem o alimento. Os campos,
as montanhas .~ão outras tantas mesas sempre postas, que fornecem com
abundancia o sustento dos domesticas do homem.
3. 0 Por seus serviços. Por este pouco que lhe damos, vêde que de
serviços nos prestam 1 Carecemos ir rapidamente d'um lugar a outro'
O cavallo honra·se em levar-nos. Estuda elle a vontade de seu amo; ao
menor signal parte, muda de passo, está sempre prompto para o retar-
dar, apressar, precipitar, desde que conhece o desejo do cavalleiro. Nem
a extensão da viagem e os máos caminhos, os fossos, os mais rapidos
rios, nada o desanima : vence tudo, é um passara que não suspende o
vôo. E' preciso inda mais? trata-se de defender seu amo, ou com elle
atacar o inimigo? O cavallo toma a dianteira aos soldados ; ri-se, e zom-
ba do mêdo. O som da trombeta, e o signal do combate, despertam-lhe
a coragem, não é elle que recua ao luzir da espada. (1)
Vejamos agora o boi que se approxima a passo lento: menos flexível,
menos agradavel em suas fórmas que o cavallo, este novo domestico não
nos é menos util. Careceis semear os campos? Submettei-lhe a cerviz ao ju-

(1) Job XXXIX, 12.

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llE PERSEVERANÇA. H-.3
go, prendei-o á charrua, elle abrirá paciente os profundos regos. Chega-
do o dia da colheita, ainda vos ajudara a transportar para os celleiros as
ricas searas; depois conduzirá ao mercado o superabundante pão; trará
para casa a lenha de que haveis mister no inverno : não tendes mais que
abrir a bôca, o boi está sempre prompto a obedecer.
Tem seu merecimento estes dous servos; mas ba outro d'utilidade
mais universal, e cuja existencia é um novo rasgo d'aquella Providencia
maternal que de si nos dá tam exuberantes provas.
O cavallo e o boi são de subido preço ; mas sua manutenção não
deixa de ser custosa. Só o rico, ou pelo menos o abastado, podem têl-os
e mantêl-os; mas não o pobre. Todavia é o pobre que mais precisa d'au-
xilio ; o pobre, que aguenta com o pêso do calor e do frio, ficará só em
seus arduos trabalhos ? Quem virá em sua ajuda? Na ordem da nature-
za, como na ordem da graça, não se desmente o Deus dos pequenos e
dos pobres. Para seus filhos de predilecção creou elle mui de proposito
um novo servo: é o jumento; a nobre presença do cavallo substitue-se
n'elle por um recolhimento composto e modesto; e a força do boi, por
uma paciencía provada e inexgotavel. Não caminha ligeiro, mas muito
e sem parar. Serve seu amo com perseverança; e, o que é grande pren-
da em um domestico, não faz alarde de seus serviços. Nada de cuidados
com seu sustento ; o primeiro cardo é quanto basta. Não se julga credor
de nada ; não ha vêl-o desgostbso ou mal contente : cala-se com o que lhe
dão. E' o companheiro fiel dos trabalhadores, os quaes de si mesmos são
na verdade os nervos do Estado, e o sustentaculo de nossa vida. Que se-
ria dos vinhateiros, jardineiros, pedreiros, e em geral da gente do
campo, isto é, das duas terças partes dos homens, se carecessem d'ou-
tros homens, ou de cavallos ou bois, para transportar suas fazendas, e
materiaes de que precisam? O jumento é quem vem sempre em seu au-
xilio; elle quem leva os fructos, as couves, as pelles, o carvão, a lenha,
a telha, o lijolo, o saibro, a cal, a palha, e o- estrume. Tudo que ha de
mais abjecto ordinariamente lhe cahe por sorte. Que vantagem para a
multidão de trabalhadores, e por consequencia, para nós, ter um animal
tam manso, vigoroso e infatigavel, que, sem custo e sem orgulho, enche
nossas villas e cidades de toda a sorte de provisões !
*

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CATECISMO

Agora, que diremos do cão, d'este fiel amigo que Deus collocou
junto ao homem, para lhe ser companhia, auxilio e defesa? Os serviços
que nos prestam os cães são tantos e tam variados wmo as suas espe-
cies. O cão de fila guarda-nos a casa de noute; o mastim sabe igualmen-
te guerrear os lobos e disciplinar o rebanho ; o erro de caça reune á for-
ça a astucia e agilidade necessaria, para dar variedade a nossos prazeres ;
o cão d'agua incumbe-se alternadamente de buscar o qàe perdemos e di-
vertir os filhos do seu amo. Se este por acJso empobrece ou cahe en-
fermo, o cão partilha sua miseria e parece chorar com elle. Se chega a
perder a vista, o cão é quem o conduz de porta em porta; e não sei
qual enternece mais, se a enfermidade do amo, se o ar triste e suppli-
cante de seu fiel servidor. Morre o cégo: esquece-o todo o mundo, por-
que é pobre; e os pobres não tem amigos: ninguem lhe irá carpir na
campa ; ninguem, menos seu cão : entre elle e seu amo o amor é na vi-
d~ e na morte. O homem tem no cavallo, no boi, e no burro, meios
commodos de transporte; no cão, guarda segura e fiel amigo; ha cousas
porém que lhe são mais precisas; o sustento e o vestido : estas é nos re-
banhos que as vai encontrar. E' evidente que a vacca, a cabra, a ovelha,
não foram postas ao pé de nós senão para enriquecer-nos. Apenas lhe da-
mos um punhado d'herva, ou a liberdade de a ir pastar ao campo, d'aquel-
la que nos é mais inutil; e ellas todas as tardes vem pagar-nos este s.er~
viço com abundante creme e arroios de leite. Ainda bem não amanhece,
já nos tem ganho o alimento do dia com segundo pagamento ..
Só a vacca fornece o que basta a uma familia inteira, não fallantlo
no pão; ella leva á mesa dos ricos a mais deliciosa diversidade. A cabra
é a vacca do pobre, como o jumento é seu cavallo. Providencia mater-
nal ! estás em tudo. N'isto mesmo que maravilha ! Como é que uma her-
va murcha, que não tem sueco, da qual se não poderia extrahir nada
solido e nutriente, vem a ser um manancial de leite? Eis-ahi uma benção
cujo segredo ignoramos, mas cujos effeitos todos os dias vemos ; estamos
tam acostumados, que talvez nos não lembramos nunca de dar graças a
seu àuthor. Desde hoje, ó meu Deus, nós vol-o promettemos, não ha-de:
ser assim : a gratidão e os louvores virão substituir a indifferen~:a e o es-·
quecimenlo.

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DE PERSEVERANÇA. U5

A ovelha, contentando-se c.om andar vestida só de inverno, despoja-


se do vello para nol-o dar no estio. D'esta sorte, segundo a ingenua ex~
pressão de S. Martinho, cumpre a ovelha o preceito do Evangelho, guar-
dando para si só um vestido e dando outro. Ricos do seculo, comprehen-
deis acaso a lição, que condemna a superfluidade do vosso luxo?
E' pois verdade que os animaes domesticos não foram collocados ao
pé de nós senão para nos auxiliar e dar seus bens. Se alguma cousa di-
minue a estima dos serviços que nos prestam, e dos presentes que nos
fazem, é o serem todos os dias reiterados. Por usuaes não lembram.
Abate-lhe o preço a facilidade de os haver; mas isto mesmo é o que lhes
augmenta o merito. Uma liberalidade qne não cansa, e que todos os dias
se renova, bem merece um reconhecimento sempre novo; e o menos
que podemos fazer, quando nos fazem bem, é reparar que nol-o fazem.
A segunda especie de seres, que a sexta palavra tirou do nada, são
os insectos e os reptis. Se é verdade que a sabedoria e poder de Deus
refulgem nas· grandes obras da natureza, não brilham ellas menos em as
mais pequenas. (1) Umas e outras igualmente maravilham nossa razão,
e solicitam nosso reconhecimento . . Leiamos com attenção esta nova pa-
gina do grande livro do universo. A isto Deus nos convida especialmen-
te: para nós a formiga abre a eschola de sabedoria. (2) Antes d'entrar
n'ella, vejamos de relance os insectos.
!.º Seus enfeites. Se Deus não teve por indigno de si crear os in-
sectos, como será indigno do homem o considerai-os? Sua pequenez pa-
rece, á primeira vista, auctorisar o desprêso em que são tidos; mas na
verdéJde é mais uma razão para admirar a arte e o mecani~mo de sua
structura. E' maravilhoso como se reunem tantos vasos, fibras, veas,
musculos, cabeça, coração, est.omago, e tantos movimentos differentes,
em um pontinho tal vez imperceptível. O preconceito commnm conside-
ra-os ou como effeito do acaso, ou como o refugo da natureza. Mas quem
os examina attentamente, descobre n'elles uma sabedoria que, longe de
os menosprezar, teve particular solicitude em os vestir, armar, e provêr
de todos os instrumentos necessarios ao seu estado.
(1) l\fagnus in magni::i, non pa.rnlS in miuimis. Agost.
(2) V Hde ad formicmn, ô piger, etc. Prov. VI, 6.

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14G CATECISl\10

Sim, o Pai de familia vestiu os insectos com particular complacen-


cia; prodigalisando, em seus trajes, suas azas e aderece~, o azul, o ver-
de, o vermelho, o ouro e a prata; até diamantes, franjas, cocares e pe-
nachos. Basta vêr uma mosca dourada, uma borbGieta, uma simples la-
garta, para admirar esta magnificencia.
2. º Suas armas. A mesma sabedoria, que se recreou em dar aos.
insectos brilhantes enfeites, tambem se dignou armai-os em estado de fa-
zerem guerra, tl'atacar e defender-se. Se não conseguem sempre agarrar
o que espreitam, ou evitar o que lhes é nocivo, todavia estão providos do
que melhor lhes convém, para seu bom exito. Pela maior parte são guar-
necidos de fortes dentes, ou tem uma dobrada serra, ou aguilhão de duas
aspes, ou vigorosas prezas. Cobre e defende seu corpo uma couraça es-
camosa. Os mais delicados vestem exteriormente um pêllo espêsso, onde
amortecem e embotam as inimigas lanças, e ainda mesmo o attrito que
os damni ficaria.
Quasi todos se salvam, ou furtam ao perigo, pela agilidade da fuga ;
estes pelo auxilio das azas; aquelles por meio d'um fio, do qual se de-
penduram, quando parecem cahir abaixo da folhagem onde vivem, esca-
pando assim ao inimigo que os ataca ; outros, saltando com os pés, que
lhes servem .de molas e alavancas, pulam ·de repente a uma grande dis-
tancia. Finalmente, quando não teem força, valem-se da astucia e artima-
nha. A continua guerra que reina entre os animaes é uma das mais im-
portantes harmonias da natureza : fornecendo a muitos seu alimento ordi-
nario, e livrando o homem do demasiado numero d'elles, conserva aintla
assim, de todas as especies, o sufficiente para se perpetuarem.
Quem se não ha de maravilhar, venrlo o Creador dos mundos, tam
occupado com os enfeites e armamentos de guerra d'estes insectos, que
nós desprezamos ?
Qual seria nosso pasmo, se examinassemos miudamente o artificio dos
orgãos que lhes deu, para viverem, e dos instrumentos, com que traba-
lham todos, segundo suas profissões ; porque cada um tem a sua 1
3. 0 Sua astucia. Uns fiam excellentemente, tendo rocas e dêdos pa-
ra torcer o fio ; outros urdem teas e fazem rêdes, para o que estão pro-
vidos de novêllos e lançadeiras ; taes ha que são mateiros e edificam suas

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DE PERSEVERANÇA. U7
casas de madeira, para o que tem suas fouces com que fazem fachina; taes
que são cerieiros, e tem sua officina de raspadouras, tubos e colheres.
Muitos são carpinteiros e marceneiros que além da serra e tenazes que
teem na cabeça, levam na extremidade opposta um berbequim, que alon-
gam e viram e reviram como querem ; fazendo com elle habitações com-
. modas, para se alojarem e manterem suas familias, no amago dos fructos,
debaixo da casca das arvores, e até mesmo no coração da mais dura ma-
deira. A maior parte são excellentes distilladores, teem uma tromba mais
delicada que a do elephante ; a qual serve, a uns, d'alambique, para dis-
tillar um xarope que o homem nunca póde imitar; a outros, de língua,
para provar; e a quasi todos, de canudilbo para sugar. Em fim, tl!ldos
são architectos, e edificam palacios que, na commodidade, elegancia e pri-
mor d'arte, excedem muito os palacios dos reis.
Se são excellentes nas artes, não são menos habeis nas sciencias.
Todos são botanicos, chimicos, astronomos, mathematicos; nunca Jbes
succede enganarem-se na qualidade da flôr ou planta de que se nutrem
nem com a estação, em que devem executar seus trabalhos; nem com as
proporções, que estes devem ter. E todavia onde se formam estas nuvens
d'artistas e de sabios? Sabeis o nome dos professores que formaram os
bichos da sêda '! Poder-me-heis dizer onde se imprimem os compendios
por onde lêem as formigas ? Em que cidade estará aberta a eschola po-
lytechnic a das abelhas? ·
4-.º Seus orgãos. Que diremos agora de seus orgãos? Poucos ha
que tendo excellentes olhos, não os tragam resguardados com duas an-
tenas ou corninhos, que os defendem e protegem quando andam, ~obre­
tudo no escuro. Com estes bastões vão palpando o terreno, e sentem
d'um modo vivo e delicado tudo u que os poderia manchar, afogar ou
damnificar. Se estes bastões se molham em algum licor nocivo, ou do-
bram pela resistencia d'algum corpo duro, logo o animal conhece o peri-
go e toma por outro éaminho. D'estas antenas, umas são compostas de
nósinhos, para lhes dar solidez, como as dos caranguejos ; outras são co-
bertas de plumas ou galões avelluclados, para as resguardar da humidade.
Além d'estes e muitos outros auxílios, que diversificam segundo as
especies, a maior parte dos insectos teem ainda o dom de \'oar. Alguns

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H8 CATECISMO

teem quatro azas ; e ha taes, qae as teem tam mimosa que um toqu
as despedaça ; por isso teem duas fortes conchas, q!le levantam e des-
cem, como se fo sem azas, mas que realmente servem de estojo á verda-
deiras. Podeis vêr estes estojos nas moscas cantbarida , por exemplo, e
nos besouros. Se o que vêmos nos insectos nos causa tanta admiração,
que seria se \'issemos o que está occulto e vedado ao nossos olhos, e á
nossa razão 1 Ao menos o que nos é conhecido ba ta ao coração bem for-
mado, para adorar e amar ao Creador de tantas maravilhas.

ORAÇÃO.
O' meu Deus 1 que sois todo amor, eu vos dou graças por terdes pos-
to ás nossas ordens tantas creaturas, que nos ajudam, guardam e alimen-
tam; fazei, Senhor, que isto nos sirva para cada vez mais vos amarmos.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo, por amor de Deus; e, em testemunho d'este amor, sere·i
fiel ás boas resoluções que a vossa graça me inspirar.

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XP LICÇÃO.

Obra dos seis dias.

Continuação do 11exto dia. - As f'ormicas. - As abelhas. - os


bichos da sêda. - Os reptis e animaes bra,·os. - Ila1·mo-
11ias do DlUndo. - O mundo é UDl lh'ro.

1. º As formigas. Agora que temos visto os insectos em geral e de


relance, demoremo-nos um pouco para examinar de mais perto esté!s
maravilhosas miniaturas: uteis instrucções s~rão a recompensa do nosso
estudo. Entremos, por exemplo, na eschola da formiga ; a sabia instructora
está prompta a receber-nos: tomemos lugar e vejamos. As formigas são,
como as abelhas, um pequeno povo reunido em corpo de republica, com
suas leis e polici3. Habitam uma especie de cidade cortada por muitas
ruas, que vão dar a differentes armazens. Uma parte dos cidadãos, occu-
pam-se em edificar esta cidade subterranea, cimentando as paredes e o
solo com uma especie de colla; são estes os pedreiros da republica. As
outras, que ordinariamente andam por fóra. são os carpinteiros e trolhas;
ajuntam, com incrivel actividade, gravetinhos e palheiras com que fazem
o tecto das ruas. Eis-aqui como construem. Primeiro atravessam vigas
d'um a outro lado; depois cruzam, sobre estas, outros páos ao comprido,
em cima fazem o telhado, sobrepondo juncos, hervas e palhas sêccas. A'
primeira vista, tudo isto parece muito irregular; mas n'esta desordem
apparente ha muita arte e conselho. Reflectindo um pouco logo isto se
descobre.
Debaixo cl' este telhado, que é seu abrigo, e cuja fórma facilita o es-
coamento das aguas, acham-se galerias que, communicando umas com as
outras, são como ruas cl'esta pe quena cidade; as quaes, como já 'disse-

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mo CATECISMO

mos, vão dar a armazens, onde em uns estão guardadas provisõ~s, em


outros, os ovos e vermes que cl'elles nascem. Quanto ás provisões, tudo
lhes presta, accommouam-se com tudo que serve para comer. Vêem-se
caminhar carregadas, com maravilhosa diligencia, esta levando uma casca
de fructa, aquella um mosquito morto. Nem todas teem permissão de sa-
hir e correr fortuna; isto pertence ás que são encarregada3 d'ir á des-
coberta. Quando estas trazem boas informações, abala-se toda a cidade,
põem-se todas ·em campo, para irem dar a~salto a uma pêra bem ma-
dura, a um pão d'assucar, ou a um frasco de compota. Sobem do fundo
do jardim até o terceiro andar, para chegarem a este frasco. E' uma mi-
na, é um Brazil que descubriram; mas para ir e vir regulam a marcha,
todas teem ordem de trilhar sempre a mesma estrada.
Talvez succede serem longos e tortuosos os caminhos; mas a Provi-
dencia deu a estes viajantes um meio de se não perderem n'elles. As for-
migas, como as lagartas, deixam sempre rasto por onde passam : não se
vê facilmente com os olhos, mais depressa se conhece pelo cheiro. Sabe-
se que as formigas te em um olfato penetrante. Se passarmos o dêdo re-
petidas vezes ao longo de um muro por onde as formigas sobem e descem
em cordão, de repente as faremos parar, e vêl-as-hemos hesitar, recnar,
ir e vir, para a direita e esquerda, até que alguma mais atrevida ouse
tentar a passagem e atravessar o caminho.
Passado o verão em trabalho e agitação contínua, ficam·se no inverno
fecliadas e a coberto, gozando em paz o fructo de suas fadigas. E' muito
de sappôr .que n' este tempo comem pouco; e que estão, como outros
insectos, entorpecidas em somno lethargico.
Por isso o ardor com que fazem suas provisões, tende menos a pre-
caver-se para o inverno, que a provêr-se, durante a colheita. do que lhes
é preciso a seus filhinhos. Alimentam-nos ao sabir do ovo, com uma atten-
ção, que occupa a nação toda. O cuidado da mocidade é tido por um ne-
gocio d'estado.
Não é só esta a lição que nos dão as formigas. A slructura de seus
membros, sua industria e infatigavel diligencia, a policia de sua republica,
os ternos cuidados que leem de seus filhos, e muitas outras proprieda-
des, fazem urilhar a nossos olhos a sabedoria d'aqueile grande Ser, que

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DE PERSEVERANÇA.

é seu e nosso Creador. De todas as obras de Deus, nenhuma ha que não


seja hoa e digna d'admiração, por inutil ou nociva que se nos represente
á primeira vista. Não teem as arvores folha, nem os prados herva, nem
as flôres estame, que inutil seja: o oução, por insignificante que pareça,
não está ahi de balde. Aprouve a Deus dar-nos a conhecer o aso d'algu-
mas de suas creaturas, para que não duvidassemos da utilidade das ou-
tras, embora nos seja occulta. Vós podeis, ó desprezadas formigas f en-
sinar-nos esta verdade; e, se aproveitarmos vossas lições, não passaremos
por um formigueiro, sem nos adiantarmos em sabedoria.
Acabamos de visitar uma republica, entremos agora em uma mo-
narchia. Eis-nos, sem o cuidarmos, mettidos em-política. Aqui é a abelha
mestra que dirige a nação. Não é ella só a rainha do povo; é tambem
sua mãe. A esta prerogativa deve a extrema affeição, que lhe consagram
seus subditos. Vêl-a-heis quasi sempre rodeada por um circulo d'abelhas,
que não pensam em mais que em lhe ser uteis. Estas apresentam-lhe o
mel, aquellas lambem-na e escovam-na, para estar aceada e louçã. Quando
caminha, todas se enfileiram e abrem alas, para lhe dar passagem.
O corpo da nação compõe-se d'obreiros. A estes se deve a cons-
trucção dos favos, em que descobrimos tam profunda geometria. Vão ellas
colher o mel nas flôres, e da poeira dos estames fazem a cêra. Com a
tromba ajuntam o mel: mas como isto é admiravel ! Apresentai a quem
quizerdes uma. tromba d'abelha, dir-vos-ha: é uma perna de mosca, para
que serve isto? Todavia, é com este instrumento, que uma abelha ajunta
mais mel em um só dia, que todos os chimicos do mundo ajuntariam
n'um anno.
Em quanto uma parte das abelhas se occupa em colher a cêra e o
mel, e encher seus armazens ; outra parte emprega-se em differentes mis-
teres. Umas fabricam a cêra, e construem suas cellas; outras puem e
aperfeiçoam a obra; est'outras tapam com uma cobertura de cêra as cel-
las que contém o mel, precaução indispensavel para que se não altere ;
aquell'outras em fim, dão de comer ás pequeninas: nenhuma está ociosa;
trabalham todas. (l)
(1) Veja-se S. Basilio, Hexaem. homil. VII. p. 73. - Os autbores modernos
que tratarnm da obra dos seis dias, e escreveram sobre a historia natura], nada mais

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CATECISMO

Nada se dá de comer ás que sabem para os campos ; porque se


suppõe que se não esquecem de o fazer. As que fazem as cellas· teem
um trabalho muito penoso. Passam e repassam com a bôcca, pernas, e
extremidade do corpo, sobre toda a obra; e não descançam em quanto
não fica brunida e perfeita. Como teem precisão de comer amiudadas
vezes, e não podem largar o trabalho, algumas tle suas companheiras
estão alli sempre promptas para as alimentar quando o pedem. Enten-
dem-se por signaes : a trabalhadora que tem fome abaixa a cabeça diante
da despenseira ; e com isto quer dizer que precisa d'alimento. A despen-
seira abre sua garrafa de mel, e derrama algumas gottas d'elle na tromba
de sua irmã. Feita esta refeição torna para seu trabalho, empregando as
mãos e o corpo como dantes. Para que é taGta actividade? Para quem é
este delicioso nectar? Ah! é para mim, e para a minha bôcca, que t::-n-
tas vezes profere palavras de maledicencia e de peccado. Meu Deus! per-
doai a minha ingratidão.
2. 0 Os bichos da stJda. Se as abelhas nos fornecem o que ha de
mais exquisito em nossa mesa, os bichos da sêda dão-nos o que é mais
excellente em nosso vestido. Assim é que, na ordem da natureza como
na da Religião, serve-se Deus dos mais fracos instrumentos para obrar
as maiores cousas. Sim~ a sêda, que por tanto tempo foi uso exclusivo dos
reis; a sêda, que se vende a pêso d'ouro, é-nos fornecida por um pequeno
insecto, que parece que não serve para mais que pisar-se aos pés.
O bicho da sêda converte uma parte do seu alimento em uma es-
pecie de licor viscoso e espêsso, que se guarda em um pequeno sacco
mui longo, escondido no interior do corpo. O animal tem na bôcca uma
especie de fieira, que consiste em uma pequena pelle furada por muitos
buraquinhos. Por dous d'elles, lança o bicho dnas gottas do licor de que
tem cheio o sacco. São como duas rocas que vão fornecendo a materia
fizeram que copiar a S. Basilio e a S. Chrysostomo, ou pelo menos nada teem dito
que mais engenhoso e sensato seja. Bem é notar isto, sobre tudo hoje, que tanto caso
se faz da sciencia actual e tam pouco da sciencia antiga. Entre os litteratos, os
nossos Padres teem ainda sobre os autbores modernos a incontcstavel vantagem da
eloquencia ; e, aos olhos do Christào, a vantagem, ainda muito mais preciosa, da fé
e piedade, que sabe vêr e mostrar a Deus em todas as suas obras.

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DE VERSEVEl\ANÇA. Hi3

de qne se faz o fio. rm só bicho produz quasi dous mil pés de fio de sêda.
D'est'arte, um insecto, a quem apenas nos dignamos honrar com um
emprego d'olhos, torna-se uma benção para provincias inteiras, que cl'este
consideravel commercio tiram avultadas riquezas. E!le só faz viver milhões
de homens. Quando o bicho da sêda conclue sua tarefa, depois de ter
fiado muito tempo para o publico, e sua vida ephemera declina já para
a morte, começa entTio a trabalhar para si. Envolve todo o corpo em fios
de sêda, que passa em redor do corpo; faz sua mortalha e seu tumulo;
aonde se encerra e desapparece. Por ventura morreu? Não; transforma-
se em uma linda borboleta. São dous animaes totalmente differentes:
O primeiro era em tudo terrestre, rojava-se pesadamente; o segun-
do é todo agilidade, nem se prende á terra, nem se digna d'algum modo
pouzar-lhe. O primeiro era d'aspecto repulsivo, este é todo enfeitado de
lindas côres; aquelle limitava-se estupidamente a um alimento grosseiro;
este vôa de flôr em flôr; vive de mel e rocio; e a cada instante varia
seus prazeres: goza livre da natureza toda, e de si mesmo a embelleza.
Graciosa imagem da nossa propria resurreição ! Assim é, ó meu Deus f
que por toda a parte, disseminastes, em a natureza, clarões de luz, que
nos elevam a conceber as cousas celestes, e as verdades mais sublimes.
3. 0 Os reptis e anirnaes bravos. Na primeira parte do sexto dia,
creou Deus tambem os reptis e as feras bravas. Pelo que lhes respeita,
limitar-nos-hemos a a1gumas reflexões geraes. Applicaveis a tudo aquillo
que se antolha á nossa ignorancia desordenado em a natureza, não jus-
tificarão ellas a Providencia, que disso não carece, mas farão brilhar com
noro lustre o poder e sabedoria do Creador.
O mundo é obra d'um poder, e sabedoria. e amor infinito. Tem im-
presso em caracteres de fogo o sinete da sua origem ; e Deus, depois de
cada creação, dizia: isto é bom ; quer dizer, isto corresponde perfeita-
mente á minha idéa e ao fim a que o destinei. O mundo é bom, pois que
elle narra a minha gloria ; é bom, por isso que ensina ao homem inno-
cen te a minha existencia, poder, sabedoria, e amor que lhe tenhÕ; o
mundo é bom, por quanto corrige o homem peccador, e o faz cuidar de
si e do seu proprio bem, obrigando-o a occupat-se de mim.
D'est'arte, a ultima palavra do mundo visivel, bem como a ultima do

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~------
CATECISMO

mundo invisivel, é a gloria de Deus e a salvação do homem. Todas as


creaturas, de que até aqui demos a conhecer a utilidade e o destino, elo-
quentemente nos pro~am esta grande verdade ; as demais, cujo uso nos
é menos conhecido, que até nos parecem nocivas ou pelo menos inuteis,
ainda nos fallarão pela mesma linguagem.
E já que estamos a tratar dos reptis, começaremos pelas serpentes.
Estes animaes, cuja vista nos amedronta e a mordedura produz a
morte, manifestam-nos comtudo o poder e a sabedoria de Deus. l. º tem
as serpentes admiravel astucia e agilidade; algumas são de prodigiosa
força e desmesurada grandeza; 2. 0 livram-nos d'uma multidão d'animaes
e insecto.s que, a não ser ellas, assolariam os campos ; por este modo,
conservam o equilibrio entre as differentes especies da creação; 3. 0 mas
temos outra vantagem de superior quilate: é o ensinarem ao homem cri-
minoso e peccador que existe um Deus tremendo, que creou milhares
d'estes animaes, dos quaes um só bastava a desolar um reino.
O mesmo succede com as feras bravas. O designio de Deus, em po-
voar as florestas, e as montanhas de animaes de toda a especie, e de que
o homem nenhum cuidado tem, é provar-lhe a extensão da sua Provi-
dencia e a particular attenção que lhe merecem estes sêres viventes, oc-
cultos nos rochedos e nos desertos. Sem choupanas, nem terrados, nem
celleiros, nem soccorro algum da parte dos homens são não obstante,
melhor providos de tudo, mais ligeiros na corrida, mais fortes e nutridos,
com nm pêllo mais nedeo, estatura mais regular e esbelta, oo qne aquel-
les de q~em os homens são os provedores.
Estas féras bravas e carniceiras servem pois, como as serpentes, i. º
para nos mostrar a extensão da Providencia ; 2. º para conter o homem
no temor, ensinando-lhe como deve tremer diante 'd'aquelle que creou
taro tremendos animaes, a quem só a sua mão detém e guarda nos deser-
tos; 3. 0 para punir o homem peccador que, como desobedeceu, mereceu
tambem que tudo que lhe era submisso recusasse depois obedecer-lhe.
Quando o homem se perverteu, e foi expulso da unica morada, onde tudo
correspondia á sua innocencia, achou no exílio preparado tudo, para Jhe
fazer cumprir a penitencia que lhe fôra imposta. Eis-aqui uma das bellas
harmonias que se encontram a cada passo entre o mundo _physico e o mun-

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DE PERSEVERANÇA.

do moral: 4. 0 estes ferozes animaes são ainda assim uteis ao homem;


pois que arrebatam para longe da sua habitação e devoram os cadaveres
que, expostos sobre a terra, corromperiam o ar e produziriam epidemias;
( t) 5. º dimim:em outras especies d'animaes que, a não ser a guerra que
lhes fazem, destruiriam, por seu grande numero, as searas e os fructos,
ou seriam nocivos aos animaes domesticas. A mão que os desencadêa
igualmente os enfrêa, no momento preciso, em que teem feito assaz des-
troço nos animaes de que se cevam. D'est'arte impedem que não sejam
damnosos ao homem, sem comtudo os destruirem a ponto de perecerem
suas especies, a quem a Providencia tambem deu sua missão ; 6. 0 em fim,
formando em derredor dos lugares habitados uma terrivel cintura, ensi-
nam ao homem que elle foi creado para viver em sociedade; e que a morte
o espera, se elle chegar a romper os laços sagrados, que o unem a seus
irmãos e constituem sua força.
Se das serpentes e féras bravas passarmos aos insectos, acharemos a
mesma sabedoria e as mesmas harmonias. Qual é (perguntam) a utilida-
de, por exemplo, das lagartas e de tantos outros insectos damninhos?
Não se podia bem passar sem elles? Estas perguntas sãu só proprias de
ignorantes e impios. O homem esclarecido pelas luzes da sciencia e da fé
encolhe os hombros quando os ouve.
Pois tudo isso está bem longe de ser inutil.
Supprimi as lagartas e os vermes, tirareis a vida aos passaras: aquel-
les que comemos, e os que noR regozijam com seu canto, não teem outro
leite durante a infancia. Do fundo do berço chamam ao Senhor, e elle
lhes multiplica um alimento proporcionado á sua extrema de1icadeza; é
para elles que por toda a parte formigam os vermes e as lagartas.
Por uma admiravel coincidencia, não sahem os passarinhos dos ovos
senão quando as lagartas apparecem nos campos : e desapparecem estas,
quando aquelles, sendo já fortes, não carecem d'este alimento, ou podem
contentar-se com outro. Antes do mez d'Abril, não ha vêr lagartas. nem
bicharia : no mez d' Agosto ou Setembro, desapparece igualmente esta raça
(1) Calcula-se, tomando o termo medio, que morrem, cada anno a vigesima
parte dos animaes viventes. Não se tornaria a terra um monturo infecto, se todos
estes cadaveres, grnndes e pequenos, se corrompessem ao ar livre ?

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CATECISMO

damninha. A terra então cobre-se de grão e de viveres de toda a especie,


de que os passaros se sustentam.
Até então tiveram elles provisão segura nas lagartas, ju to era que
tambem estas tivessem a sua pitança : deu-se-lhes que comessem das her-
vas e plantas. Elias teem como nós seu direito á verdura da terra; a sua
carta con titucional não é somenos que a nossa ; pois que é precisamente
a mesma. Quando levarmos a mal que usem de seu direito, podem as
lagartas citar-nos a lei do Genesis, capitulo 1. 0 versos 2 e 30. Com este
Codigo na mão, poderia seu advogado chamar-nos aos tribtmaes, e não
seria em nosso favor que um juiz incorruptível decidiria o pleito.
E ta associação dos insectos com o homem, na permissão de fazer
uso da herva e fructos da terra, por vezes no é incommoda. Queíxamo-
nos, e n'isto somos injustos, pois que eHes teem seu direito ; somos cegos,
pois que não vêmas ou fingimos não vêr sua utilidade ; egoi tas, porque
se os insectos, lagartas, moscas e formi gas, nos colhessem o mel ôu fias-
sem sêda, embora fosse á custa de milhares d'outras creaturas, têi-os-
hiamos em muita conta; mas, por isso que são nocivos a algumas plantas
de que fazemos uso, crêmo-nos auctorizados a exterminai-os.
Além d'isso, devemos lembrar-nos que este mal foi previsto e orde-
nado. O homem não só precisa de viver, como tambem de se instruir.
E' confundida sua ingratidão, quando os insectos vem arrebatar-lhe o que
Deus tinha liberalmente produzido a seus olhos; não o é menos seu or-
gulho, quando o Senhor põe em campo estes vingadores exercitos, e
chama contra o homem a lagarta, o gafanhoto, ou a mosca; em lugar de
mandar vir os leões e os tigres. Para humilhar os homens, que se crêem
fortes, ricos, grandes, independentes, que instrumentos emprega elle?
vermes ou moscas : tambem releva que o homem seja continuamente avi-
sado de que a terra é um exílio, e sua vida uma prova. Tudo o que per-
turba seus gozos, agúa seu terrestre bem-estar, obscurece sua vida, é
um mensageiro celeste que lhe diz : lembra-te que a felicidade não é
d'este mundo. Oh 1 Se o homem comprehendesse esta lição, que a seu
modo lhe dão os insectos, a concupiscencia seria extincta ou contida em
seus justos limites; e a sociedade estaria em paz, porque estaria na ordem
o coração do homem.

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157

D'este modo tudo tem seu fim e utilidade; porque tudo o que Deus
fez é bom a seu tempo. (t) Quando a nossa fraca razão não penetrasse
os motivos de suas obras, temos nós algum direito de lhe tirar ou ajun-
tar alguma cousa? Contaremos um caso que resume tudo o que deixa-
mos dito, e que se póde applicar a todas as pretendidas desordens da
natureza.
No seculo passado, Frederico, rei da Prussia, teve noticia de que os
pardaes comiam cada anno, em seus Estados, pelo menos dous milhões
d'alqueires de trigo. Que estrago f f Que desordem 1f ponha-se cobro a
isto quanto antes. Em consequencia, publicá-se um edital em que o rei
promette tanto em dinheiro por cada cabeça de pardal que lhe trouxerem.
Todos os prussianos se transformam em caçadores : os desgraçados par-
daes desapparecem a olhos \'istos. Fizeram-lhe guerra tam cruel, que em
menos de um anno nada era tam raro como \'êr um pardal' no reino da
Prussiã. Esperava o povo uma colheita magnifica, e o rei philosopho es-
fregava as mãos por ter dado uma pequena lição á Providencia. Mas que
aconteceu? No anno seguinte, nuvens de gafanhotos e lagartas, livres de
seus inimigos, devoraram os prados, e as searas. Foi tal a desolação que
Frederico, humilhado e corrido, viu-se forçado a revogar a sua lei a toda
a pressa ; e prohibir com graves penas, que se não matasse mais um só
pardal em todo o reino. (2)

(1) Ecc]es. III, 11.


(2) O agricultor Americano aprecia melhor do que geralmente se faz na Eu-
l'opa os serviços, que os passaros insectivoros são destinados a prestar-lhes. M. Bax-
ton, na sua Histeria natural da Pensilvania, occupou-se, com muita saga.cidade, em
provar a utilidade dos passaros bravos. Só os córvos e os frangos são realmente no-
civos ás colheitas; quanto a estes ultimos, além de ser facil desinçal-os, devoram
nos campos cultivados tanto as sementes nocivas como o grão confiado á terra. O
gaivão marinho mui goloso d'abelhas, que espreita e agarra quando voltam para o
cortiço, é tam bem considerado, com justo titulo, como inimigo do agricultor.
Quanto aos outros, um exame attento demonstra a utilidade d'especies, que se
julgariam boas sómente para destruir ; é por isso que na Virginia ha uma lei espe-
cial, que prohibe matar os abutres; porque está reconhecido, que contribuem a puri-
ficar o ar, devorando, antes da putrefacção, os cadaveres, em certas esta-;ões mui
numerosos, dos bufalos e outros animaes bravos. Façamos justiça, diz M. Baxton, ao
-18

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Hi8 CATECISMO

i. 0 Harmonias do mundo. E' pois verdade que tudo está disposto


no mundo visivel como no mando invisivel. Tirai-lhe um insecto, ama
hervinha, um atomo, e quebrareis a cadéa dos seres; destruireis o equi·
librio, e perturbareis a harmonia do Universo. Porque este insecto, esta
hervinha, este atomo, bem como a idéa que exprimem, teem relação com
outras idéas ou outros atomos , e, por estes, referem-se ás mais conside·
raveis partes do todo. Se dissessemos que não teem relação a nada, en-
tão onde estaria a razão da sua existencia ?
Por isso, estas pequenas producções da natureza, que os homens
de vista curta julgam ociosàs, não são inutil poeira nas estradas da vasta
machina do mundo, senão pequenas rodas, que se endentam em outras
maiores. Nada existe separadamente. Cada ente tem sua actividade prO-
pria, cuja espbera lhe foi determinada, segando a ordem que deve occu-
par no universo. Um guzano é um pequenino motor, que conspira com
outros, cuja actividade alcança maiores distancias. As espberas dilatam.:.se
d'esta sorte cada vez mais, e esta maravilhosa progressão eleva-se suc-
cessivamente da esphera do guzano á esphera do anjo.
procedimento honesto de tantos passaros, a quem os nossos preconceitos da moci-
dade, fundados em falsas apparencias, teem dado tam má reputação e taro injusta-
mente. Tal passaro, visto de longe, parece que está a devorar os grãos d'nma espiga;
porque na verdade desprega rijas picadas por entre a pragana : pois não é o trigo
que elle procura ; pelo contrario, é o insecto que roe o trigo; uma observação super.
ficial faz suppôr que destroe as colheitas no mesmo momento em que as de.fende de
seus verdadeiros inimigos.
Os passa.roa cantores e palradores passam por inimigos das cerejas e outros
fructos vermelhos, e na verdade os comem, todavia o seu principal alimento sã.o as
lagartas e aranhas. Se o pintarroxo frequenta as vinhas, não são as uvas que pro-
cura.; mas sim os mosquitos e vermes ; deixemos pois viver estee pobres animaes, que
nos nãp levam o fructo do nosso trabalho; elles vem de manhã. e á tarde regozijar
graJ,is nossas habitações, gorgeando por diante de nossas janellas e sobre as latadas
que alcatifam nossas casas.
Maiormente os pa.esarinhos de casta pequena, reclamam a nossa protecção; pela
maior parte são exclusivamente insectivoros ; alguns comem ao mesmo tempo se-
mente de insectos ;. quasi todos contribuem, para os nossos prazeres, com a melodia
do seu canto. O prejuiso que nos causam é bem pequeno, se o compararmos com os
serviços que nos prestam.
Um dos mais uteis passaros, para a destruição dos insectos, é a carriça. Este

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DE PERSEVERANÇA.

To~as as partes do universo operam umas sobre outras reciproca-


mente. Os animaes apoiam-se sobre os vegetaes, os vegetaes sobre os
mineraes, os mineraes sobre a terra; a terra pesa para o sol, o sol para •
a terra e os demais planetas; os planetas para o sol e uns para os ou-
tros; e a balança do universo mantem-se em equilibrio na mão do An-
cião dos dias (f ).
As especies e indivíduos estão em relação com a grandeza e solidez
da terra : a grandeza e solidez da terra, com o lugar que occupa no uni-
verso. O physico ·corresponde ao moral, o moral ao physico. Um e outro
teem por fim a felicidade dos seres intelligentes. D'estas relações que exis-
tem entre todas as partes do mundo, e em virtude das quaes conspiram
to~as para um fim geral, resulta a harmonia do universo.

passarinho, longe de temer a presença do homem, procura sua companhia.. Em alguns


estados d'America do Norte, tem-se reconhecido tanto a vantagem que se póde tirar
d'elles que lhes offerecem á sua disposição, perto de cada habitação rural, uma cain
de pão, atada rnt. extremidade d'uma vara, a fim que estabeleçam alli sua casa, o que
sempre fazem. Quando sabem os pintainhos, desveladamente procuram os paes para a
sua joven prole o alimento dos insectos.
Contou um meu amigo, com muita attenção, o numero de viagens feitas por um
casal de ca.n·iças, alojadas n'uma. d'esta.'3 caixas; e achou que iam e vinham termo
medio 50 vezes por hora ; o minimo era sempre 40 vezes, e o maximo 60 ; uma vez
tinham feito n'uma hora. 74 sabidas; e todo dia gastam n'cste exercicio da caça. O
termo mcdio de 50 dá em doze horas seiscentas lagartas ou outros inscctos, dos quaes,
cada casal de carriças, lina cada dia o pomar e a horta, em quanto tem filhinhos a
nutrir. Este calculo não suppõe senã6 um insecto só levado por cada yez; mns real-
mente levam as mais das vezes dous e tres ; o que dá por cada dia uma. destruição
de 1200 a 1800 insectos.
Nas pr?vincias, onde se cultiva o tabaco, quantas vezes temos visto os negi·os,
homens e mulheres, grandes e pequenos, occupados, ao pino do mi, a catar planta-
ções de vinte e cinco a trint:t hectares de tabaco, para lhe preservar as preciosas
folhas da praga das lagartas ! Uns poucos de casaes de carriças fariam comtudo 0
mesmo serviço. E não vale nada a sua alegre companhia; e demais ~mais a linda
cantiga que nos cantam ? Se depois d'isto tomam a liberdade de picar algumas ce.
l'ejas, ou frambuezas, o lavrador razoavel não tem pezar d'isso; pois é justo que
tenham uma pequena parte das producçõcs que tambem defendem. (J'Jrnal d'Agri-
cultura prát im).
(1) Veja·f:lr Linneo.

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160 CATECISMO
.
Todas as creaturas suppoem, reclamam, e se referem umas ás ou-
tras; entre a suprema e a inftma creatura, entre o anjo e o goza no. ha
• um numero quasi infinito d'intermediarios. Esta succcessão constitue a
cadeia do universo. Cadeia magnifica, que une todos os seres, prende to-
dos os mundos, abraça todas as espheras; um só ente existe fóra d'esta
cadeia, é aquelle que a fez.
Uma espêssa nuvem nos intercepta a vista das mais bellas partes d'este
todo immenso; nossos olhos apenas podem entrevêr alguns mal ligados elos,
interrompidos e sem duvida em ordem differente da natural. Vêmol-a ser·
pear pela superficie do nosso globo, calar em suas entranhas, penetrar nos
abysmos do mar, lançar-se na ,atmosphera, e sumir-se nos espaços ethe-
reos, onde já não a descobrimos senão por alguns sulcos luminosos que
vae deixando aqui e alli. O que brilha a nossos olhos inflamrna-nos o cora-
ção; o que foge á nossa vista humilha-nos a intelligencia; visivel e invi-
sível, serve a instruir-nos e humilhar-nos. E' para isto que Deus a fez.
5. 0 O mundo é um livro. D'est'arte o mundo é a expressão de um
pensamento divino. Deus não exprimiu o seu pensamento senão para se
dar a conhecer, e por consequencia fazer-se amar e servir; pois que a
expressão do seu pensamento revela um poder inficito. O mundo visivel
é portanto o véo transparente d'um mundo iQ.visivel. Cada creatura é,
para assim dizer, uma lettra ou uma palavra d'este grande livro de Deus,
Ora, um livro, com os signaes e caracteres que o compoern, não faz vêr.
o pensamento do author ; senão que apenas o representa por signaes;
de sorte que se o não entenderdes, como se este Jivro fosse escripto em
lingua estranha, não sabereis o que o author quiz dizer: assim tambem,
se nos contentarmos com olhar para o grande livro do universo, como o
fazem os brutos; se pararmos nos signaes e caracteres, sem tratar de. os
comprehender; não correspondemos ás intenções de Deus, e somos por
isso culpados perante elle.
Os pagãos não lêram a Bíblia, e todavia, diz o Apostolo S. Paulo,
são inexcusaveis, e serão ,condemnados, por terem tido a verdade capti-
va; fechando os olhos á luz (1).

(1) Rorn. II.

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DE PERSEVERANÇA.

(( Mas como é que a verdade se manifesta a seus olbos, pergunta


S. Chrysostomo? Que Propheta, Evangelista, ou Doutor~ suppria o lugar
da Biblia? O livro de Deus, o espectaculo do universo, » responde esie
grande doutor (1).
Os Ceos narram a sua existencia e omnipotencia ; a terra, sua bon-
dade, seu amor, sua terrivel cólera; as mais pequenas creaturas, a sua
materual Providencia. As abelhas prégam-nos a obediencia e caridade; a
a ovelha, a mansidão e desapêgo do mundo ; os passaras, a pureza ; to-
das as estações, a morte. e a brevidade da vida; o insecto, que morre
para renascer, transformado em um novo ente, cheio de graça e belleza,
annuncia-nos a nossa propria resurreição. Não ha vfrtode, nem verdade,
nem dever, que não tenha seu capitulo no grande livro do universo, e
este livro é intelligivel a todos.
Feliz aquelle que quer Jêr este livro, onde uma incessante harmonia
deleita o ouvido, e arrebata o coração. Para elle, o mundo torna-se um
templo : em tudo, e por tudo, Deus lhe é presente; a cada instante sen-
te-se instado por esta presença, ora magestosa, ora paternal, ora santa,
ora terrivel, ora consolador a. Para elle, Deus está perto, Deus está ao
longe, Deus está aqui, Deus está além, Deus está acima, abaixo, e de re-
dor. Eis-aqui uma flôr, ahi está Deus; eis uma estrella, ahi está Deus;
no fogo, na agna, no silvo da tempestade, na luz e nas trevas, no atomo
e no sol; Deus está em redor de mim, n'este calor que me anima; e den-
tro de mim, n'este ar que respiro. Elle ouve tudo, assim os canticos dos
sublimes seraphins, como os festivos gorgeios da calhandra; assim o zum-
bir da abelha, como o rugir do leão; assim o mnrmurio tlo regato, como
o bramir das ondas; assim os passos da formiga, como o susurro da fo-
lhagem. Deus vê tudo, o sol visivel ao universo, o "insecto occulto debaixo
da folhinha, ou escondido na cortiça da arvore, o peixe perdido nos abys-
mos do oceano, sem lhe escapar o movimento de seus musculos e a cir-
culação de seu sangue; elle vê os pensamentos do meu espirito, e o ar-
quejar de meu peito; conhece as precisões do passarinho, que dá vozes
a pedir alimento, assim como escuta as minhas supplicas e ouve os meus

(1) Homil. in Gen. ao povo ll'Antiochia.

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CATECISl\IO

votos. Nutre, aquenta, veste, protege tudo o que respira; é meu Pae -
como se esquecerá de mim?!
" Assim o homem dominado pelo pensamento da omni-presença· de
Deus será justo e bom: seu coração será puro, sua mão liberal, sua vida
santa, sua paz constante, seu rosto sereno, sua morte tranquilla, sua eter-
nidade gloriosa. Feliz aquelle que sabe e quer lêr o grande livro do uni-
verso! -

ORAÇÃOº
O' meu Deus 1 que sois todo amor, eu vos dou graças por terdes
creado para mim este magnifico universo; eu vos adoro igualmente no que
posso comprehender e no que me é incomprehensivel; porque em tudo
sois igualmente sabio, poderoso e bom. Dai-me a graça de que preciso,
para lêr com os olhos da fé este grande livro do mundo.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d'este amor, direi
muitas vezes: Deus está em toda a parte.

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XIP LICÇÃO.

Obras dos seis dias.

Conth1ua~ão do sex1o dia. - o homem. - ExplicaCfão .d·estal!I


palavras, façamos o homem. - O homem em seu corpo. -
Em sua alma. - Espiri1ualidade, liberdade, immor1ali·
dade. - o homem, e a sua simllhança com Deus.

DEus disse pois: façamos o homem á nossa imagem e sim.ilhança, e


presida aos peixes do mar, ás aves do Ceo, ás bestas e reptls que vivem
na terra; e domine em toda a terra.
Deus creou pois o homem á sua imagem, elle o creou á imagem de
Deus. (t)
O Senhor Deus f orrnou pois o homem do limo da terra, e assoprou
sobre seu rosto um assopro de vida e o homem tornou-se vivente e ani-
mado. (2)
Está escripto o grande livro do universo, mas de que serve um livro
se não ha leitor? De que serve um painel magnifico senão ba espectador,
nem admirador? Ora, o leitor, o espectador, o admirador não existe ain-
da. Os anjos não carecem d'este livro, nem d'este painel, pois conhecem
o author em si mesmo; lêem seu pensamento em sua divina essencia ;
elles o veem face a face. Para os anim.aes e plantas, privados d'intelligen-
cia, este grande espectaculo é como se não existisse. Para que serve este
livro, tornamos a dizer? Para que é este painel?
E demais d'isso, qual é o fim de todas estas creaturas e de todas es-
tas magnificas harmonias? Os globos dispersos no espaço movem-se ma-

(1) Gcn. I, 26, 27,


(2) I<l. II, 7.

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CA TECIS:\ífl

gestosos; mas onde está a razão de seus movimentos? O sol esclarece a


terra; mas a terra é céga e ·não carece de luz. O calor, a chuva e o or-
valho farão germinar as sementes e cobrirão os campos de searas e fru-
ctos; mas não riquezas perdidas, não ha quem as possa colher nem con-
sumir. A terra sim nutrirá innumeraveis animae ; mas esses não tendem
a nada, por falta d'um senhor, que ponha em exercicio suas boas qu3-
lidades, e concentre. para assim dizer, os seus serviços. O cavallo e o
boi tem força para tirar e levar pesadas cargas ; mas estas forças são inu-
teis. A·ovelha vê-se opprimida com pêso da lã; a vacca e a cabra, incom-
modadas · com a abundancia do leite. A terra encerra em suas entranhas
metaes e pedras, proprias para edificar, e fabricar toda a qualidade d'obras;
mas não tem hospede para hospedar, nem obreiros para obrar seus ma-
teriaes. Sua superficie é um magnifico jardim, mas ningnem o vê ; toda
a natureza é um bello painel, mas não ha quem o admire. Precisa-se pois
d'uma creatnra, sem a qual todas as outras não servem de nada.
Que mais diremos? O mundo existe como um palacio magnifico;
está ornado de tudo quanto póde tornar sua habitação agradavel e· com-
moda. Suspensas na abobada celeste, como outros tantos lustres, scintil-
lam noite e dia milhares e milhares d'estrellas. A terra toda está alcatifa-
da com um rico tapete de verdura; esmaltada de flôres de toda a espe·
cie ; embalsamam o ar os mais odoriferos perfumas ; as arvores estão car-
regadas de fructos; os ribeiros murmuram; os peixes brincam nas aguas;
os passaros, como outros tantos musicos, alegram os campos com seus
concertos ; os animaes esperam com respeituoso silencio o senhor que os
ha de dominar : tudo está prestes.
«E' assim que, diz S. João Chrysostomo, l1avendo o imperador de
fazer sua entrada em uma cidade, todos os seus domesticas o comitiva
tomam a dianteira, e vão apparelhar tudo, a fim que á chegada de seu se-
, nhor tudo esteja disposto para o receber.» (1) Mas qual será o rei que
Deus destina para tam bello reino? Qu ai será o leitor d' este grande livro,
o espectador d'este magnifico painel? Escutai.
Depois de ter outra vez considerado a sua obra, reconhecendo que

(1) Hmnil. XI, arl popnl. Antioch.

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DE PERSEVERANÇA. 165

tndo estava bem, Deus recolhe-se em si mesmo ... delibera ... consulta ... de-
pois, sahindo subitamente de seu mysterioso conselho~ disse: FAÇAMOS!!!
Que nova expressão l Quem é pois o ser extraordinario que \'ai ap-
parecer, pois que é preciso que o Creador se consulte d'antemão e delibe-
re em si me3mo ?
Não é assim que elle fez o Ceo e a terra : uma só palavra os tirou do
nada. Façam-se, e foram feitos. O mandado convinha aos escravos; mas
quando se trata do amo, Deus muda de linguagem. Para tornar o rei do
mundo recommendavel a ~eus subditos, o mesmo Deus começa pelo hon-
rar, tratando-o quasi como d'ignal a igual.
Façamos Ili E que vai Deus fazer? Um seraphim? Não; vai fazer
o espectador do rmgnifico painel que acaba de pintar ; o leitor do grande
livro, que acaba d'escrever; o annel sagrado, que deve unir as duas extremi-
dades da cadêa dos seres; vai fazer o pontífice e rei do universo ! Que-
reis saber como se chama? ·chama-se O HOMEM ll!
Sim. esta obra prima do Todo Poderoso, este ser que toda a natu-
reza reclama com ardor,. e espera com respeito, é o homem, sois vós, so-
mos, nós, sou eu : Façamos o homem á nossa imagem e similhança !f ! (1)

(1) Ainda segundo a chronologia dos setenta, que é a mais larga de nossas
chronologias sagradas, a creação do homem não se remonta á mais de sete mil an-
nos; esta data, como todos os mais ensinos do Genesis, foi atar ada, com cego e fre-
netico furo:tt, pelos philosophos do seculo passado; as chronologias dos Egyp~ios, dos
Chinas, dos Indios, foram citadas, assim como os factos geologicos, para depôr contra
a narração de l\foysés. N'esta. parte, como em todas as mais, a impiedade momenta-
neamente triumphante, tem sido batida e rlerrotada completamente. A sciencia mo-
derna, esclarecendo-se, tem feito justiça á pretendida antiguidade dos sobreditos po-
vos. Quanto aos Egypcios, por exemplo, reduziram-se a seu justo valor os monumen-
tos com que levantaram tanta poeira: ccTodos os esforços do talento e da sciencia
que se fizeram, diz o celebi·e Cuvier, para demonstrar a alta antiguidade dos Zodia-
cos de Denclerah e d'E~meh, ficaram burlados no momento em que, acabando por on-
de natnralmente se devia começar, se o preconceito não houvera cegado os primeiros
, observadores, se deram ao trabalho de copiar e restituir as inscripções gregas escul-
pidas n'estes monumentos .... Hoje sabe-se que os templos egypcios em os quaes se
gravaram Zodiacos forám construidos sob o dominio dos Romanos.» Disc. sobre as
revol. cte., p. 269.
•A chronologia chine.za r~duz-se tambem em tudo á de Moysés, sr se prescindir

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i66 CATF.CISl\IO

Ajoelhemo-nos, e em quanto que toda a creação nos honra, adore-


mos nós mesmos em silencio a Deus, que nos creou tam grandes. Palpi-
te em nosso coração este nobre orgulho ; reconheçamos a nossa dignida-
de; e receêmos aviltar, por actos indignos, a augusta imagem, que a
mão de Deus gravou em nossa fronte, e em nosso coração.
O homem pois é o rei do mundo, a mais bella das creaturas visíveis;
paremos um pouco a consideral-o.
Tudo no homem, mesmo exteriormente, denota a sua superioridade
a respeito de todos os viventes. Quando todos os animaes, inclinados pa-
ra a terra, só na terra pregam os olhos; o homem tem-se direito e ele-
vado; sua attitude é a do commando; sua c_abeça, ornada de fluctuantes
cabellos, offerece uma face augnsta, um rosto aberto, no qual se vê im-
presso o caracter de sua dignidade : anima-lhes as feições um fogo divino ;
seus olhos attentam ao Ceo, d' onde veio, e para onde é feito; bem co-
mo a abrngem a natureza toda creada para elle. Os ouvidos, com
que aprecia a mais delicada modulação; a bôca, morada do sorriso, orgão
da palavra; as mãos, instrumentos preciosos, fonte inexhaurivel d'obras
primas; o peito, espaçoso e graciosamente avultado ; a estatura nobre e
de fabulas, de cuja defeza ninguem quereria encarregar-se. O fundador authentico
(ainda isto é dar-lhe muita honra) do imperio Chinez, segundo Confucio, é Yao,
tomou o Sceptro em 2339 antes de J. C.u Lim·o da natitreza, t. I, p. 24; Tardes de
Montlhe1·y, p. 230 e seguintes ; Champollion, Elem. de Chron: p. 246. - William
John, P.residente de Calcutta, depois ele ter passado vinte e cinco annos, n'aquelles
mesmos lugares, a estudar os monumentos da Inelia, concluiu tambem uma larga
dissertação sobre a chronologia dos Indios por estas palavras : •Podemos concluir
com toda a segurança, que a Chronologia de Moysés é a elos Indios ; estão perfeita-
mente d'accôrdo. • Indagações Asiaticas, t. II. p. 441.
A 01·igem recente das sciencias e das artes confirma os documentos historicos.
A historia faz-nos muitas vezes assistir ao seu·nascimento, e de tal sorte depõe em
favor de sua mocidade, que talvez se possa taxar d'exageração e erro. Se as scien-
cias e as artes tivessem reinado na terra de tempos mais remotos do que por Moysés
se suppõe, ter-nos-iam deixado monumentos de seu imperio e anciedade : ora, t.aes
monumentos não existem. O cyclo da Chronologia Biblica, que parecia tam curto
aos fazedores de systemas, é comtudo assaz largo para os historiadores. N'elle se po-
dem tambem incluir não só a Grecia historica e heroica, mas ainda os grandes im-
perios do Oriente, cujos monumentos pesados e immensos deveriam d'exigir seculos
para se concluirem. N'elle se podem tambem incluir a civilis.'.tção dos Indios e Chi-

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DE PERSEVERANÇA. 167

elegante ; as pernas, esbeltas columnas, perfeitamente proporcionadas ao


edificio que sustentam, o pé, base tanto mais estreita, quanto maravilho-
sa na solidez, e movimento; emfim, sua magestosa ,presença, seu andar
firme e ousado, tudo annuncia a sua nobreza e dignidade.
Admirai agora como a collocação e estructura de cada um de seus
sentidos corresponde maravilhosamente ao seu destino.
Os olhos, como sentinellas, occupam o lugar mais elevado ; d'onde,
descobrindo ao longe os objectos, advertem a tempo a alma do que lhe
cumpre fazer. Um lugar eminente convinha ás orelhas, a fim de recebe-
rem o som que naturalmente sobe. A mesma situação occupa o nariz,
por· isso que ú cheiro sobe tambem; e estã perto da bôca, por quanto nos
ajuda a julgar da bebida e comida. Opaladar, que nos dá a conhecer a qua-
lidade do que tomamos, reside n'aquella ~arte da bôca por onde os ali-
mentos passam. Quanto ao tacto, dilata-se por todo o corpo, a fim de não
podermos receber impressão alguma, nem ser atacados de frio ou calor,
sem o sentirmos.
Notae ainda. q~10 os sentidos estão collocados por ordem de dignida-
nas, bem como as antigas emigrações dos Seitas, e Scandinavos, dos quaes Suhm,
V arrão dos Dinamarquezes, tam judiciosamente determinou as epochas. Vejam-se as
provas desenvolvidas d'estas proposições na Cosmog. de Moysés, pag. 295 - 819.
Emfim a mesma geologia confirma a veracidade de Moysés. Primeiramente
d'uma maneira negativa, queremos dizer, que nenhum dos chronometros naturaes nos
elevam a uma epocha anterior ás da.tas de Moysés. Depois d'uma maneira pOS'itiva;
isto é, que todas as observações physicas p1·ovam a idade recente do homem e dos
nossos continentes. Os principiaes chronometros naturaes são: as turfeiras, a accu-
mulação dos gêlos, a decadencia das montanhas, os nateiros fluviaes, etc.; os quaes
todos dão igual resultado. Veja· se Marcel de 8arres, Cosmog. p. 252 e seguintes;
Tardes de Montlhery, p. 159 e seguintes.
Todos os resultados da sciencia moderna fazem-nos pois repetir estas palavras
de Benjamin Constant : "Os authores do decimo oitavo seculo, que trataram os livros
santos dos Hebreos, com um desprêzo misturado de furor, julgavam a antiguidade
d'uma maneira miseravelmente superficial; e os Judeos, entre as outras nações, são
o povo de que mais ignoraram o genio, o caracter e as instituições religiosas. Para
rir com Voltaire á custn. d'Ezequiel ou do Genesis, é preciso reunir duas qualidades
que tornain esta chocarrice bem miseravel: a mais profunda. ignorancia, e a mais
deploravel frivolidade. " T, IV, eh. 11.

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t68 CATECISMO

de e importancia. Os olhos occupam o primeiro lugar; porque ~ vista é


o mais nobre, e o mais util dos cinco sentidos. Depois seguem-se os ou-
vidos, e assim os demais.
Quanto á sua estructura, que outro artifice os teria tão eng~nhosa­
mente formado, se não fosse aquelle Deus quê é iofinitamente sabia? Fat-
iando só da vista: cercou elle os olbos de tunicas mui tenues, transpa-
rentes pelo lado anterior, a fim que se possa vêr atravez d'ellas; fortes
em seu tecido, para conservar a vista em bom estado. São os olhos lu-
bricas e rapidos; de geito a evitar o que os poderia offender, e dirigir-
se de relance para onde querem. As palpebras, que os cobrem, teem uma
superficie puida e macia, para os não molestar. Seja que o mêdo d'al-
gum accidente nos obrigue a fechai-os ou abril-os, quando nos apraz, el-
las se prestam e fazem um o~tro movimento n'um in~tante e sem custo.
As pestanas são uma especie de palliçada, que serve para expulsar o qua
poderia atacar os olhos, quando estão abertos; e a enlaçar as palpebras,
a fim que repousem socegadamente, quando pe!o som no se tornam· inu-
teis. Ainda tem os olhos a vantagem de estarem resguartlados por emi •
nencias; porque, d'uma parte, para suster o suor que· corre da testa e
da cabeça, tee;n as sobrancelhas, e da outra, para os proteger do lado in·
ferior, leem as mé!çãs do rosto, que avultam na face (t).
Quem dirá de que maravilhas são instrumento os vlhos? Milhares
d'objectos, montanhas, rios, florestas, casas, cidades inteiras, campos de
Jegoas d'extensão, pinta-se tudo ao mesmo tempo sem confundir-se n'um
espelho d'uma linha de diametro ! Ainda é mais admiravel que estes ob-
jectos se pintem ás avéssas na retina, e todavia os vejamos em sua posi-
ção natural f
Poderiamas examinar do mesmo modo a estructura de todos os nos-
sos sentidos, e vêr em cada um d'elJes a profunda sabedoria do artifice
que os formou. Mas se entrassemos no interior do corpo humano, e vís-
semos o nnmero prodigioso de suas peças, sua maravilhosa diversidade,
complexo, harmonia e artificiosa distribuição, ficariamos arrebatados, e

(1) S.Basilio, Hexaem, sexto dia.

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DE PERSEVERANÇA. {69

não sahiriamos do extasi senão para nos lastimar de não podermos assaz
admirar tantas maravilhas.
Os ossos, por sua solidez e reunião, formam o esqueleto, cujas pe-
ças estão unidas por solidas cartilagens; os musculos, como outras tan-
tas môlas, dão-lhes o movimento ; os nervos espalhando-se por todas as
partes, estabelecem entre ellas uma íntima communicação; as arterias e
veias, similhantes a regatos, conduzem a toda a parte a frescura e a vi-
da. O coração, collocado no centro, é destinado a imprimir a principal
força no sangue, e entreter seu movimento ; os pulmões são outra causa
activa, que tem por fim absorver o ar, elemento da vida, e purificai-o
das partes nocivas ; o estomago e as visceras de differente genero são os
receptaculos e laboratorios, onde se preparam as materias primas, que
serv,em para os reparos do edificio; o cerebro, que é como a pousada
da alma, é a este titulo espaçoso e mobilado com profusão e riqueza, di-
gna c!o principe que o habita; os sentidos domesticos, fieis e diligentes,
o advertem de tudo o que lhe convém saber, e igualmente o servem em
suas precisões e prazeres.
A' vista de tantas maravilhas, como não exclamaremos com um ce-
lebre medico da antiguidade : « O' tu que nos formaste ! descrevendo o
corpo humano, creio haver cantado um hymno á tua gloria. Honro-te
mais assoalhando a belleza de tuas obrtls, que fazendo subir ao fastígio
dos templos as ondeantes nuvens do mais precioso incenso. A verdadeira
piedade consiste em me conhecer a mim mesmo, e depois ensinar aos ou-
tros qual é a grandeza da tua bondade, do teu poder e sabedoria. A tua
bondade manifesta-se na igual distribuição de teus dons, pois repartiste
a cada homem os orgãos de que ha\'ia mister. A tua sabedoria patentea-
se na· excellencia de tuas dadivas; o teu poder, na execução de teus de-
. . >> (J·1 'i •
s1gmos. 1
Quanto é pois nobre o nosso corpo aos olhos da razão f quanto é
santo e respeitavel aos olhos da fé! Purificado nas aguas do baptismo,
consagrado tantas vezes pela uncção santa, pela carne e sangue de Jesus
Christo, templo vivo do Espírito Santo, membro do Homem Deus, desti-

( 1) Gal. De usu part. 1. III, e. 10.

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170 CATECISMO
~

nado a uma gloria immortal, vaso de honra e de graça, oh f não o fa.


çaes jámais um vaso de reprovação e ignomínia 1
Depois de ter formado o corpo do homem do limo da terra, inspi-
rou-lhe Deus um sop:o de vida, e o homem ficou vivo e animado ; quer~
se dizer por isto, que Deus uniu a um corpo material uma alma espiri-
tual. A nossa alma é pois um sopro aspirado dos labios e· do coração de
Deus; é este principio espiritual, livre, immortal, que cogita em nós,
que ama, quer, raciocina, e nos distingue essenciatmente dos brutos.
Querer provar que temos uma alma seria fazer insulto. á fé ~ á ra-
zão do genero humano. A detestação e o desprêzo são a unica resposta
que convém ao grosseiro absurdo do materialismo. « A muitas cousas
desculpo, dizia Napoleão, mas causa-me horror o atheu e o materialista.
Como quereis que eu tenha alguma cousa de commum com um homem,
que não crê na existencia da alma ? Que se julga um monturo de lixo, e
quer que eu seja como elle? » (t).
Mas que dizer da excellencia da alma humana? Tenho visto todas
as bellezas da terra, admirado as magnificencias dos Ceos, contemplado
as obras primas da arte; mas vi eu já uma alma? Oh! não. A alma é
uma cousa tão nobre, perfeita, elevada acima dos seres corporeos, que
não chega a imaginar-se a beUeza e a perfeição d'este assopro divino:
tal um cego, que nunca viu a luz do dia, não alcança representar:se o
brilho e variedade das graciosas côres. Em quanto que meu corpo, obra
prima da creação, se envelhece e altera, a minha alma, integra sempre
em sua substancia, permanece a mesma; ne~ se resente dos estragos
da doença, nem das rugas da ancianidade. Em tanto que meu corpo,
pesadamente inclinado á terra, não vive se não do presente, a minha al-
ma.. pendendo para o infinito, abraça todas as relações. do tempo e do
espaço. Vive no passado, remonta-se á origem dos tempos, resuscita,
para praticar com ellas, as gerações sepultadas na cinza dos seculos.
Vive no .presente, sem sabir de si mesma; percorre o universo, n'am
relance de olhos ; transporta-se d'um polo a outro ; vôa do oriente ao oc. .
eidente; visita as nações ; vê seus costumes, usos e leis; penetra os se-

(1) Sentir de Napoleão ácerca do Christifinismo, p. 76.

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JlE PERSEVEHANÇA. 17.f

gredos da natureza; descobre as propriedades dos vegetaes e mineraes;


desce ás entranhas da terra; estuda sna estructura, e extrahe suas rique-
zas; depois como brincando, ele\'a-se aos Ceos; mede a extensão do fir-
mamento, e a grandeza dos astros. Vive no futuro, devassa-lhe os segre-
dos, por meio de raciocinios e conjecturas solidas; e ainda isto é a me-
nor parte da sua gloria. Achando estreita a vastidão do universo, arre-
messa-se para além dos soes e dos mundos; eleva-se até aquelle Ser,
que é a origem dos seres; e, com quanto habite uma luz inar,cessivel, des-
cobre-o pela inteHigencia, e une-se a elle pelo amor. Augusta e sub1ime
união, que, deificando a alma, expulsa para uma distancia immensa as
allianças dos príncipes e dos monarchas? Farei a mesma pergunta aos
sabios e aos prudentes, á terra e aos Ceos; e, para me responder, es.
gotam sua eloquencia; ou recolhem-se em um silencio ainda mais elo-
quente. Endereço-me ao mesmo Deus; e este grande Ser, toIIJando-me
pela mão, eleva-me á corôa d'uma montanha, e .ahi, levantando um Yeu
embebido em sangue, indi"gita·me seu Filho morto sobre uma cruz, e
diz-me: Eis-aqui o valor de tua alma! Anima, tanti vales! Preoccupados
fl"este nobre pensamento, entremos em os pormenores da perfeição da
n'.lssa alma.
i. 0 A nossa alma é espiritual, isto é, não é extensa nem longa, não
tem largura, nem profundidade, nem figura: não póde ser vista pelos
olhos, nem palpada pelas mãos, neÍn sentida propriamente por algum
dos sentidos. Que nossa alma seja espiritual, nada é tão facil de provar-
se. Em verdade, as operaç.ões da alma são : a memoria, o entendimento,
e a vontade. Nada mais espiritual que estas tres operações. Todavia se a
alma não fosse espiritual, tambcm suas operações o não seriam: a me
moria, o pensamento e a vontade seriam pois materiaes. Poder-se-iam
vêr, palpar, dividir, pesar; poder-se-ia dizer, por exemplo, um arratel
ele pensamento, um alqueire de vontade, um quintal de m·emoria; um
pensa:mento vermelho," ou branco. ou azul; uma vontade redonda ou
oval; uma memoria triangular. Ora, toda a gente se riria d'aquelle que
usasse de similhante linguagem. Mas.porque? Porque toda a gente sente
e conhece que se não póde attribuir á memoria, a0 entendimento ou á
vontade, as qualidades ou propriedades ela rnateria ; logo a alma, que é

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CATECISMO

seu principio, tambem não é material : porque as modificações d'um ser,


qualquer que seja, sempre teem a mesma natureza d'este ser, ou antes
não são mais que este ser modificado de tal ou tal maneira. Assim a me-
moria é a nossa alma recordando-se; o entendimento, é a nossa alma
cogitando; a vontade, é a nossa alma querendo.
Logo a alma do homem é espiritual, como Deus que a fez á sua
imagem:
2. º Nossa alma é livre. Isto quer dizer que póde, a seu arbítrio,
fazer o que lhe apraz, obrar ou deixar d'obrar, querer -de tal ou tal ma-
neira. E' n'isto que ella differe de todas as creaturas que nos rodeiam.
O sol, púr exemplo, não. é livre em nascer ou deixar de nascer to-
das as manhãs, percorrer tal ou tal caminho; avançar ou retrogradar a
seu bel-prazer; mas é forçado a andar como anda. Por isso faz sempre
invariavelmente a mesma cousa. Da mesma sorte os animaes não são li-
vres. Este o motim porque teem sempre os mesmos habitas, os mesmos
gostos e operações. Porém se os animae~ fossem livres, teriam em si
mesmos, como nós outros, o principio e norma da suas acções, e as-
sim modificariam, inventariam, reformariam, aperfeiçoariam todos os
dias, e fariam como nós fazemos mil cousas importantes e rasoaveis.
As andorinhas d'hoje, por exemplo, não edificariam seus ninhos como
á mil annos. As andorinhas da China, tambem não edificariam como as
andorinhas francezas. Na mesma França, as andorinhas de Paris não se
lembrariam àe se hosped:ir e viver como as da provincia; quereriam em
tudo ser da moda, e a communicariam ás outras. E' assim que succede
entre nós. Porque não succP.de o mesmo com as andorinhas? E' porque
obedecem a uma vontade superior, immudavel, que as obriga a executar
sempre em toda a parte as suas ordens.
· E' bem differente fousa a respeito de nossa alma: ella obra ou deixa
d'obrar, quer ou deixa de querer; faz uma cousa, e fazendo-a, bem
conhece que. poderia fazer outra. Se é boa, sente satisfação; se é má, tem
remorsos; porque sente que era livre de a não fazer. Não á ninguem que
não experimente este sentimento de pena ou de prazer, que se segue a
uma acção boa ou má. Mas este sentimento não o teriamas se não fos-

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DE PEHSEVERANÇA. 173

semos livres em obrar d'este ou d'aquelle modo; nem tam pouco mere-
ceriamos punição ou recompensa.
Que diríeis d'um homem que se pozesse a castigar o seu relogio por
elle se adiantar ou atrazar? Uírieis que este homem era absurdo e tôlo.
Todavia ninguem diz que. um pae é absurdo e tôlo quando castiga seu
filho por elle fazer mal. Não obstante, deveriamos dizer isto, se não fos-
semos livres; porque~ n'esta hypothese, tudo seria igual. Logo seria in-
justo e absurdo punjr o vicio ou recompensar a virtude ; ou para melhor
dizer, não haveria bem nem mal, vicio nem virtude; seriamos como re-
logios ou como alguma outra maquina.
Assim, Deus seria injusto em premiar uns, e punir outros: mas se
Deus fosse injusto, já não seria Deus, nem seria nada, e o mundo ficaria
um effeito sem causa ; tal é o abysmo em que nos precipitamos, no mo-
mento em que negarmos a liberdade da alma.
3. º A nossa alma é immortal. Isto quer dizer, que a nossa alma não
morrerá nunca; que é até impossível morrer. O corpo morre quando se se-
param as partes que o compõem; quando a cabeça, os pés, os braços, o
coração, vão cada um para seu lado. Mas a nossa alma não consta de par-
tes; porque não tem cabeça, nem pés, nem braços, nem coração; logo estas
partes não se podem separar, nem desunir: logo a alma não póde morrer.
Uma só cousa a poderia aniquilar, que é, a omnipotente vontade d'a-
quelle, que a tirou do nada. Mas longe de querer Deus aniquilar a nossa
alma, pelo contrario, declara, em termos expressos, que ella ha-de viver
sempre, tanto como elle, por toda a eternidade; eis-aqui o que nos diz :
Os máos serão punidos no inferno por toda a eternidade; ao contrario,
os bons serão recompensados no Ceo por toda a eternidade. (t)
A esta palavra de Deus, ajunta-se a de todas as nações da terra, para
proclamar o dogma, ao mesmo tempo consolador e terrível, da immorta-
lidade da alma : «E' o que a natureza nos proclama, diz S. Agostinho, o
que temos impresso, pelo dêdo do Creador, no fundo do coração; o que
todos os homens conhecem, desde a eschola de meninos até ao sabio
throno de Salomão; o que os pastores cantam pelos campos, o que os

(1) Math. XXV, 48.


J9

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f 74 CATEClSl\IO

pastores ensinam no lugar santo, o que o genero humano em todo o uni-


verso apregôa.))
Bem vêdes que negar a immortalidade da alma, é desmentir a Deos,
a razão, e ao genero humano; de mais a mais, é devorar as seguintes ab-
surdidades: t. 0 que Deus quiz zombar de nós em nos dar o invencivel
desejo da immortalidade: 2. 0 que todos os homens e povos da terr:i teern
andado e laborado em erro, alé que por fim appareceram um punhado
de libertinos que sós tiveram razão : 3. º que 2 sorte do assassino será a
mesma da innocente victima ; que Nero, e S. Paulo ; os Santos, que vivem
na prática de todas as virtudes, que teem sido os bemfeitores da huma-
nidade, e os malvados, que leem sido seus algozes, e que se teem man-
chado de toda a casta de crimes, devem todos participar o mesmo desti-
no, e confundir-se no sorvedouro no nada. Dizer isto não será por ven-
tura fomentar todos os crimes ? fazer do mundo um covil de ladrões e
!
de bestas ferozes ? Estas consequencias são horrendas : logo o principio
que as pr'oduz é falso e abominaveí.
Antes de crear o homem, Deus se recolhe e diz : Façamos o homem
á nossa imagem e similhança. Bem como o pintor examina, estuda a
pessoa, cujas feições vai produzir no panno ; assim Deus examina, estuda
em si; depois exprime no homem suas feições divinas. Vejamos que ad-
miravel similhança existe entre o modêlo e a cópia. A imagem de Deus
está gravada em nossa alma ; é por este lado que lhe somos similhan-
tes. (t)
Deus é um por natureza; nossa alma é uma por natureza. Em Deus

(1) Ha quem leve mais longe esta divina similhança. Nosso corpo tambem,
dizem elles, foi creado á imagem de Deus; porque no momento em que formára o
corpo do primeiro homem, Deus, a quem tudo era presente, via seu divino Filho
revestido d'um corpo hmnano; e por este modêlo do adoravel corpo do segundo Adão
é que se formou o corpo do primeiro. E' n'este sentido que o corpo de Adão, e de
todos os homens, foi feito á imagem e similhança. de Deus. Deus não diz: Façamos
a alma do homem á nossa imagem e similbança; mas: Façamos o homem á nossa
imagem e similhança. Ora, o homem não é só alma, mas tambem corpo. Para que o
homem se possa dizer a imagem de Deus, é necessario que tenha em todo o seu ser
a similhança e as feições de Deus. Tal é o raciocínio d'alguns philosophos. Veja-se
a Obra elos seis dias, e Tertullimw. De 1·cswT. wmis. A mesma doutrina de.paramos

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Dll: PERSEVEllANÇA. !7ã

ha tres pessoas distinctas, em nossa alma ha tres faculdades distinctas, me-


moria, entendimento e vontade. Deus é um puro espírito; nos8a alma é
um puro espirito. Deus é eterno; nossa alma é immortal: n~da se parece
mais com a eternidade que a immortalidade. Deus é livre, nossa· alma é
livre. Deus conhece o passado, o presente e o futuro; nossa arma lem-
bra-se do passado, conhece o presente e prevê o futuro. Deus está pre-
sente em toda a parte; nossa alma está presente a todas as partes do
nosso corpo, resumo mysterioso do universo; e da mesma sorte abrange
n'um relance d'olhos o mando inteiro. Deus é j asto, verdadeiro, santo,
misericordioso; tal era antes do peccado a alma de Adão: tal airida hoje,
depois do peccado, a nossa alma, porque tem a ideia e o sentimento da
verdade, justiça, santidade, bondade, misericordia. Deus é infinito, nossa
alma é infinita em sells desejos ; nada á finito que a possa contentar ;
tudo que é limitado a importuna, impede, aborrece. Esta inquietação e
este aborrecimento, que a alma experimenta em tudo. dão testemunho da
sua dignidade; pois que releva ser mui grande para ser desgraçada, e
inconsolavel ~om a privação do unico bem que seja infinito. Deus é o
mais perfeito' de todos os seres; o homem é a mais perfeita de todas as
creataras visiveis. Deus não depende de ninguem; o homem não depende
ser.ão de Deus. Deus é o Senhcr soberano do Ceo e da terra; o homem

em um livro de piedade que deveria ser o Manual de todas as familias Christãas:


Pensamentos sobre as t·erdades da Religião, por M. Harnbert. O Santo , sabio mis-
sionario, que é seu author, falia assim no capitulo CIII: ccO Creador tendo resolvido,
desde toda a eternidade, enviar seu Filho ao mundo, e dar-lhe um corpo capaz da
mais nobres operações, formou o ~osso cül'po á imagem do corpo adoravel do Homem
Deus, que é como nosso irmão primogenito, nosso protótypo e modêlo. Tal é a digni-
dade da nos~a origem, quanto ao corpo : comprehendereis acaso sua nobreza.? Assim
deveis tratai-o com respeito e honra; como pois o aviltaes por acções indignas do
que sois>> ? Diga-se o que se disser d'esta explicação, eis-aqui em que termos nos
ensina S. Thomaz que o nosso corpo foi feito á imagem de Deus : « Quia corpus
hominis solum inter terrenorum animalium corpora non pronum in alveum prostra tum
est; sed tale est ut ad contemplandum coelum sit aptius, magis boc ad imaginem
et similitudinem Dei, quam cretera corpora animalium factum jure videri potest. Quoil
tamen non sic intelligendum quasi in corpore hominis sit imago Dei, sed quia ipsa
figura humani corporis repraeseutat imaginem Dei in arrima, per modum ve5tigii. •
P. 1, q. !33, art. VII.

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!76 CAT&CISMO

é o rei de tudo o que. o rodêa. Tudo se refere a Deus; tudo se refere ao


homem como o hoo1em a Deus. Quão grandes somos, pois que nos creou
Deus pelo modêlo de si mesmo 1

· ORAÇAO.
O' meu Deus f que sois todo amor, eu vos dou graças por me terdes
creado á vossa imagem e similhança; não permittais que eu jámais des-
figure a vossa imagem pelo peccado.
Eu protesto amar a Deus sotre todas as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d' este amor, farei
com muito respeito o sig~al da Cruz.

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Xiita . LICÇÃO.

Ohra dos seis dias.

continuacão do sex1o dia. - o homem rei do univer•o.-1Jsu-


t"ructu"ario do universo. - Pontltice do universo. -Coroa-
-;ão do homem.

O homem foi creado para ser rei. Os seus títulos de realeza constam
das mesmas palavras da creação. Deus disse: Façamos o homem á nossa
imagem e similhança, a fim que presida aos peixes do mar, ás aves do
ceo, ás bestas e reptis qde vivem na terra; e domine em toda a terra.
Jámais houve tam dÍlatado imperio; sceptro, tam legitimamente empu-
nhado.
Antes da sua revolta exercia Adão pacificamente este seu imperio
em toda a natureza. Nem havia que temer das feras, nem estas viam
n'elle cousa que as amedrontasse. Todas familiarmente misturadas, como
os servos na casa de seu amo, eslavam promptas sempre a executar suas
ordens ; seja testemunha a prática entre a serpente e Eva. (1) O peccado,
desconcertando esta bella ordem, alterou o imperio do homem. Todavia
o homem não decahiu tanto de sua primitiva nobreza, que não conser·
vasse ainda honrosos pergaminhos.
E primeiramente, punindo sua infidelidade, condemnando-o a comer
o pão com o suor do rosto, quiz Deus não obstante alliviar e suavisar
seus pesados e duros trabalhos. Deixou-lhe o pleno exercicio do seu poder
sobre os animaes domesticas. O homem falia, e logo seus numerosos
servos se dão pressa a obedecer. A ovelha cede-lhe seu vello; o bicho
da sêda, sua preciosa trama; a abelha fornece-lhe o delicioso mel, o cão

(1) Chrys. XI, homil. in Gen.

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ii8 CATECISMO

faz sentinella á sua porta; o boi lhe cultiva as terras; o cavallo leva suas
cargas, e assim mesmo o transporta, a toda a parte que deseja. Quanto
ás bestas ferozes, tem na sua mão o domal-as e reconquistar sobre ellas
seu antigo imperio; e, de facto, elle as doma, submette, sujeita, amansa,
acostuma a seus usos e prazeres; apanha-as em rêdes, mata-as; dá-lhes
caça por meio de seus animaes domesticas. Se precisa de via nelas para
sua mesa, manda a seu cão; e sem se dar a muito trabalho trazem-lhe
o que deseja. Os mais monstruosos, e ainda os mais ferozes, o elephante
e a baleia, o tigre e o leão, estão sujeitos a suas leis, e d'elle se fazem
tributarias. ·
Não sómente domina em os animaes, como até nas creaturas insen-
siveis; a todas manda e nenhuma o manda a elle ; serve-se de todas, e
nenhuma o sujeita a seu ser-viço. Emprega os outros, para regular seus
trabalhos, e dirigir sua derrota pelas planicies do oceano, ou pelo meio
dos desertos. A' sua voz, descem os carvalhos do alto das mont:tnhas; a
pedra, o ferro, a ardosia, o ouro e a prata, sahem do seio da terra, para
o virem alojar ou embellecer sua mcrada; o canamo e o linho despem-se
para lhe fornecer vestido ; o metal é docil em suas mãos ; o marmore
perde sua dureza ao tocar-lhe com os dêdos ; os rochedos voam pelos
ares e abrem·lhe passagem; os rios mudam o !t~i to. para regar seus prados
e animar suas fabricas.
Se o atacam, toda a natureza vôa em seu auxilio: o páo e a pedra
fazem barreira a seus inimigos. O sal, o enxofre, o fogo, o ferro, reupem-
se para o resguardar d'rnsultos. Se acontece uma força superior preva-
lecer a seus desejos e precauções ; se um exercito de moscas, por exem-
plo, é talvez mais forte que elle, é porque ha um Senhor, do qual cumpre
que se recorde.
Se lhe apraz mudar de clima, passar além mar e conduzir a outros
paizes o que lhe é superfluo, ou trazer d'ell es o que lhe falta, a agua e
os ventos lhe prestam azas, e o transportam ao redor do globo. Seus
navios trazem-lhe producções das quatro partes do mundo. Seus desejos
cumprem-se d'uma a outra extremidade do universo. Elle approxima as ·-
distancias, e corresponde-se com o mundo todü, quando lhe apraz e sem
ainda sahir de casa. Um passaro dá-lhe a pluma, uma planta a casca, um

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DE PERSEVERANÇA. 179

mineral a côr, com que pinta o seu pensamento no papel ; depois esta es-
cripta parte, e sem lhe dar mais cuidados, atravessa por entra milhares
e milhares de homens, transpõe as montanhas, ultrapassa os mares, e vai
manifestar-s~ não só a toda a terra, mas até, depois da morte, á posteri-
dade mais remota.
Parece brincar com o mundo, como a sabedoria omnipotente que o
creou. Ora com o sinzel ou buril na mão, dá vida ao marmore e faz res-
pirar o bronze; agora, com o auxilio do microscopio, que elle mesmo in-
ventára, descobre novos mundos em átomos invisiveis; agora fazendo d'es-
te microscopia um telescopio, remonta-se aos ceos, e vai contemplar a lua
co:n seu brilhante exercito. Tornando-se para casa, prescreve leis aos cor-
pos celestes, marca su::is orbitas, mede a terra, e pêsa o sol.
E' pois verdade qne a natureza inteira está nas mãos do homem, co-
rno um brinco n~s mãos do menino. Assim conserva elle, não obstante
sua quéda, uma grande parte do poder que lhe conferiram estas sublimes
palavras: presida aos peixes, aos animaes, e a toda a terra.
O homem não é um rei constitucioµal. Sua realeza em o mundo não
é um nome vão : mas é real e etlicaz. El:e manda e goza. Manda como
temos visto ; goza como vamos vêr. Collocada em um corpo como em
seu palacio, tem sua alma ás suas ordens cinco fieis ministros, que lbe
trazem altern~damente, e talvez todos juntos, as homenagens ~o uni-
verso. Estes ministros chamam-se a vista, o ouvido, o olphato, o gosto
e o tacto: Por meio d'elles, goza o homem sem excepção de todas as crea_'
· turas. 1
Desde o firmamento, onde estão as mais remotas estrellas, até ã sn-
verficie da terra, tudo que é visível, é do dominio dos olhos: por seu mi-
nisterio, nenhuma belleza escapa ao gozo da alma. Todos os sons, por
tantos modos diversificados, são do domínio do ouvido; por seu ministe-
rio, nenhuma melodia escap!l ao gozo da alma. Todos os cheiros são
do do~ninio do olphato; por seu ministerio, nenhum perfume escapa ao
gozo da alma. Todos os sabores são do domínio do gosto ; por seu mi-
nisterio, nenhuma delicia escapa ao gozo da alma. Todos os corpos que
nos circundam são do dominio do tacto; por seu ministerio, nenhuma im-
pressão escapa ao gozo da alma.

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t~O CATECISMO

E' assim que se reduz ao uso do homem o mundo inteiro, e por este
uso vem a utilidade ; toda a creação material cabe na extensão das sensa-
ções, cujos orgãos estão no corpo do ~ornem, e cujo termo é sua alma.
Talvez julgueis que, para gozar de seu immenso domínio, é o homem obri-
gado a fazer penosos esforços ; pois enganais-vos, este gozo nada lhe cas-
ta, elle o tem constantemente. Nem esta é a menos admiravel maravilha da
sabedoria divina; a qual quiz que todas as tousas, que o homem tem
continuamente em suas mãos, como são os animaes e as plantas, tivessem
uma ligaçãe geral e necessaria com todas as partes do universo. Assim
lhe aprouve que a menor hervinha carecesse da terra, do ar, da agua,,
dos ventos, das chuvas, do sol, do calor do dia, da frescura da noute,
da influencia differente das quatro estações; em summa, de todas as cousas.
Todas as hervas se referem aos animaes. Os animaes de toda a espe-
cie, tanto os que vivem n'agua, como os do ar, e da terra, reunem a si
uma infinidade d'outras cousas, que parecem escapar ao homem, e não
estarem sujeitas a seu -aso immediato. Elias mesmas, após de todas estas
reuniões particulares, vindo offerecer-se ao homem como a seu amo, fa-
zem-lhe communicar admiravelmente todas as partes do universo. Assim
goza d'elle quando lhe apraz e sem trabalho nem esforço.
Um exemplo familiar fará evidente esta verdade, e conhecereis como
o homem ainda o mais indigente, é um rei que desfruta e goza a cada
momento do universo inteiro.
, Vêde aquelle pobre menino, comendo o bocado de pão que acabais
de lhe dar; é um joven rei que, sem o saber, põe a contribuição todas
as creaturas, todas as condições da sociedade, e até o mesmo Deus. Com
effeito, um bocado de pão suppõe :
t.º A farinha. Esta suppõe um padeiro que a amaçou, agua que a
uniu, um forno que a cozeu, lenha que aqueceu este forno, o moinho que
moeu o trigo; o moinho, para se construir, suppõe a pedra, o ferro; para
o fazer moer, agua, vento, animaes, homens que o construiram, e que
, precisaram para isso saber as mathematicas e a rnechanica; outros ho-
mens para o dirigir e conservar. Esta farinha suppõe ainda saccos para
a receber; os saccos, panno para se fazerem; 'b panno, tecedeiras, fio; o
fio, fiandeiras; as fiandeiras, estôpa; a estôpa Jinho ou cánamo.

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DE PERSEVERANÇA. t8t
2. 0 Este bocado de pão suppõe o trigo ; o trigo, o lavrador que o
semêa ; a charrua, os bois, ou os cavallos que lavraram com ella; a terra,
que recebe a semente ; o sol, que a aquece ; a· chuva, que a fettiliza ; a
chuva suppõe as nuvens; as nuvens, os mares e os rios; os rios, as mon-
tanhas onde nascem. as planicies por onde correm, os ventos que trans-
portam as nuvens. Ainda o trigo suppõe as quatro estações: o outono, du-
rante o qual o semeam; o inverno, de que a terra careceu para repousar
e refazer-se; a primavera, que o fez crescer; o verão, que o amadureceu.
3. 0 Este bocado de pão suppõe o segador que cortou o trigo, que
o malhou, que o peneirou ; e tuqo isto suppõe fouces, malhos, e crivos.
As fouc~s suppoem mineiros ')Ue tiram o mineral das entranhas da terra;
forjadores, que o fundem ; cutileiros, que o obram. Os malhos suppõem
o páo; o páo, os mateiros, que o cortam; obreiros, que o põem em
obra. Os crivos suppõem arbustos ; por exemplo o vimeiro, e os homens
que fazem os crivos. Ora, o padeiro que coze o pão, o lavrador que o
semêa, o segador que o corta, o moleiro que o moe, e est'outros obreiros
que preparam todos os instrumentos necessarios á agricultura, carecem
de vestidos, de chapéo, e de çapatos. Estas differentes cousas suppõem
pela sua parte sombreireiros, alfaiates e çapateiros; estofos, lã, rebanhos
e pastores; estes officios ainda suppõem outros, e depois ainda outros,
até chegar ás profissões assim as mais elevadas como as mais humildes
da sociedade. Um imperante, que faça leis para proteger a propriedade;
magi3trados, que as façam executar; agentes da justiça, guardas e prizões.
As leis supvõem sciencia; a sciencia, estudo; o estudo, livros, collegios,
e professores. Ainda isto não é o mais ; este bocado de pão não suppõe
sómente o lavrador protegido contra os inimigos internos, mas tambem
externos. Isto snppõe cidades fortificadas, exercitas, peças d'artilberia, e
toda a multidão d'artes e profissões que a guerra emprega e traz em seu
sequito.
4. º Este bocado de pão suppõe não só o trigo de que é feito,, mas
ainda o grão de que eUe nasceu; este, suppõe outro ; e assim successi-
vamente até o primeiro grão de trigo ; o qual suppõe um Deus infinita-
mente poderoso, que o creou ; infinitamente sabio, que o faz crescer ;
infinitamente bom, que nol-o dá.

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t82 CATECISMO

Assim vêdes que o ceo, a terra, a agua, o fogo, os homens, e o


mesmo Deus, trabal11aram todos para produzir um bocado de pão. O
homem que o come goza por tanto, só por este facto, do universo in-
teiro. N'isto differe dos animaes, em o gozar com a intelligencia, e a toda
a hora do dia e da noute, desde o primeiro instante da sua existencia até
o seu ultimo suspiro. Porque dia e noute, o ceo, a terra, a agua, o fogo,
os homens e o mesmo Deus, trabalham para preparar este bocado de pão,
bem como tudo o mais que é necessario ao nosso alimento e vestido.
Tinheis acaso meditado n'isto? Julgai por aqui quanto o egoista, o homem
que só para si "Vive, é monstruoso no meio do mundo!
âQuanto é grande, exclamava a este respeito um Santo dos primei-
ros seculos, quanto é grande a humana ingratidão! Em quanto me es-
preguiço na ociosidade, todas as creaturas trabalham para mim: o sol e
a lua caminham sempre para espargil' a luz e o calor que fecunda a ter-
ra. Em quanto que me torno culpado em qualquer peccado, abuso do
meu espírito para pensar no mal; do coração, para o desejar; do corpo,
para o commetter; a terra esgota-se para me dar o pão que me nutre ; as
abelhas voam ao longo dos arroios e dos valles, para colner e formar o
mel, tam dôce á minha lingua, que pronuncia tantas palavras injustas e
desbonestas. A ovelha despe seu vello para me fornecer vestidos, que
talvez servem á minha vaidade. As uvas aguardam impacientes o calor do
verão, que as amadureça; a fim de sati:;fazer o paladar e alegrar o cora-
ção, que tantas vezes deshonra aquelle, de quem recebeu o ser. As fon-
tes e os rios volvem noute e dia suas aguas, para regar os prados, e fa-
zer crescer mil bellas flôres debaixo de meus pés, que tantas vezes tri-
lham o caminho da iniquidade. Os passaras esforçam-se por encantar
com soas harmonias os meus ouvidos, tantas vezes attentos aos dis~ursos
da maledicencia e impureza. Todas as creaturas do universo se cançam
em me procurar commodidades e prazeres; e eu qcasi nunca me lembro
de dar graças áqnelle que, por seu ministerio, me prodigaliza tam abun-
dantes beneficias !» ( t)
Acabamos de vêr que todas as creaturas obedecem ao homem como

(1) Vida de S. João o Esmolfor. p. 414.

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DE PERSEVERA~ÇA.

a seu rei; todas se referem a elle como ao seu fim ; elle goza de todas,
e nenhuma goza d'elle; por qualquer lado que olheis, aonde qner que
dirigirdes o pensamento, verei~ que estes milbares de milhares de seres
se dirigem ao homem, como ao CP.ntro os raios d'um circu~o.
Mas por ventura deverão parar no homem as creaturas todas'! E•
elle o sen ultimo fim? Não; se assim fosse, o homem seria Deus. Que
demandam pois do homem as creaturas que a elle se dão, e n'elle se per-
dem? Qne deve o homem fazer de todas. e de si mesm0? Referir tudo áquel-
le grande Deus, que l~o é superior: porque tudo vem de Deos e todo deve
volver para Deus. E' para mim, diz o Senhor, que eu fiz todas as cou_
sas ; logo é para Deus que todas devem dirigir-se, como todos os rios pa-
ra o oceano.
Ora, as creaturas, de per si mesmas, não podem volver para Deus,
isto é, honrai-o a·uma maneira agradavel e digna d'elle; porque não .teem
espirito para o conhecer, nem coração para o amar, nem bôca para o lou-
var, nem liberdade para o adorar; nem a si mesmas se conhecem., nem
as perfeições que em si possuem. O diamante não sabe qual é seu preço,
nem de quem recebeu o fogo; como por tanto bemdirá a Deus? A ov~
lha não conhece quem a veste e a sustenta; como dar-lhe graças? As ar-
vores e os passaros, o sol e a terra, ignoram d'onde lhes vem, a uns as
flôres e os fructos ; a outros, as brilhantes plumas e harmoniosas vozes;
a este o calor e a luz, áquelle o movimento e iucançàvel fecundidade; logo,
como póde Deus esperar que lh'o agradeçam 1
Todavia cumpre que todas as creatnras bemdigam seu Creador, que
o amem e glorifiquem d'OOl a maneira digna d'elle. Mas só o homem o pó-
de fazer; pois elle só é livre; elle só tem um espirito, capaz de o co-
nhecer; um coração,. proprio para o amar; uma bôca, para bemdizer o
Creador de todas as cousas; logo elle só é obrigado a o faz~r, porque só
elle póde gozar e a cada in_stante goza de todas as creaturas, sem que ne-
nhuma pelo contrario gnze d'elle.
Assim pois, a não ser o homem, to~a a natureza é muda; mas por
elle toda entoa ao Creador um psalmo eterno. Pelo espirito do l1omem
conheceo-o; pelo coração, ama-o ; pela bôca, abençoa-o; pela liberdade,
adora-o. Que é pois o homem no meio do universo? E' um pontífice no

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CATECISMO

templo ; sua victima é o mundo ; o cutelo que o immola, é a sua vonta-


de; o fogo que o consome, é o seu amor. Adorador composto d'um cor-
po, que o une a todas as creaturas materiaes ; e d'uma alma, que o asso-
cia aos anjos;- resumo do universo, cujas partes a elle se dirigem e n'elle
acabam; pontifice collocado entre as cousas visiveis e invisiveis; rei do mun-
do corporeo, subdito similhante a Deus. só o homem preenche, em toda a
sua extensão, o fim a que Deus se propôz; na creação do mundo. Elle é_o
encarreg-Jdo, da parte de todas as creaturas, de cumprir solidariamente, em
seu nome, tudo aquillo que ellas devem áquelle que lhes deu o ser. E'
elle sua alma, intelligencia, coração, palavra, medeador, deputado. Quanto
menos podem ser religiosas de per si, tanto maior 'necessidade lhe im-
põem de ser religioso por ellas. (t)
Depois de dar a conhecer a Adão as suas dignidades de rei e pon-
tífice, tomou-o Deus pela mão, e o conduziu ao magnifico palacio que
lhe havia.preparado. Era um delicioso jardim, plantado de toda a espe-
cie d'arvores, e regado por um abundante manancial que, dividindo-se
em quatro braços, formava quatro grandes rios. Dous d'elles são hoje
perdidos, o Gehon e o Phison ; os outros dous ·ainda existem, é. o Tigre
e o Eupbrates.
Seria ·superfluo querer descrever o Paraizo terrestre. Tudo o que
se póde dizer é que era digno do homem pontifice e rei da creação; re-
presentante visível dó Creador dos mundos. Quanto foi soJemne o mo-
mento em que nosso primeiro pae, conduzido pelo mesmo Deus, entrou
em seu palacio ! Quanto foi brilhante aquelle dia que alumiou esta sua
entrada triumphante ! Certo que os Seraphins,'\estemunhas d'este subli-
me e terno espectaculo, cantaram um cantico novo em seus psalterios
d'ouro, e a natureza toda juntou um grito d'a1egria a seus harmoniosos
acordos t Como era bello o homem em si mesmo r Para concebermos
uma idéa, ab r não encaremos o homem tal como hoje se mostra a nos-
sos olhos, aviltado pelo peccado, aspero de rugas, assombrado de tris-
teza, curvado sob o pêso de dôres, desthronado e cabido. O homem de
hoje não é mais que uma ruina ; mas então, tal como uma estatua que

(1) Greg. Naz. Oraç. XXXVIII.

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DE PERSEVERANÇA.

sáe do crisol com o polido brilho de refulgente ouro, o homem nada tinha
em todo seu ser que não estivesse perfeito e acabado. Elle era bello, ad-
miravelmente bello :- porque era a imagem viva de Deus, e esta imagem
viva de Deus, e esta imagem em nenhuma cousa se havia alterado ain-
da (t ). Bem como o sol resplandece ao meio dia em ceo limpo de nu-
vens, assim no homem innocente apparecia a graça e magestade do mes-
mo Deus.
Brevemente a este espectaculo succedeu outro : Adão estava coroa-
do d'bonra e gloria. Que mais restava que investil-o no magnifico im-
perio de que seu Creador o havia feito rei? Eis-ahi pois que o Senhor
Deus fez comparecer todos os animaes perante Adão, a fim que lhes im-
pozesse um nome, como a subditos seus. A todos nomeou Adão, e cada
nome exprimia perfeitamente o caracter e qualidades que possuíam; es-
tes nomes ainda os conservavam no tempo que Moysés escrevia. Se re-
:flectirmos n'isto, verêmos que os nomes que Adão impôz aos animaes,
não só indicam o seu dominio absoluto, como tambem o profundo conhe-
cimento que tinha da natureza.
Desde logo reconheceram os animaes o imperio do homem, e se lhe
sujeitaram sem reluctancia; e isto continuou tanto que Adão pei:maneceu
fiel, e como não seria assim? Adão no estado d'innocencia governava o
mundo com justiça e equidade; isto é, fazia que todas as creaturas ser-
vissem ao fim para que Deus as creára e sujeitár:l a seu imperio. ·Todas
serviam ao homem como a um degrau pelo qual se elevavam a seu Crea-
dor; todas eram como o espelho onde se reflectiam aos olhos do homem
a sabedoria, o poder, a bondade do Creador. Cada serviço que lhe pres-
tavám produzia n'elle um acto de gratidão e amor de Deus; e d'est'art0
toda a creação, descendo de Deus, a elle incessantemente se remontava
pela mediação do homeµi.
Depois da sua quéda tudo mudou. Em vez de elevar o homem a
Deus, como as pinturas que trazem á memoria a pessoa que represen7
tam, já agora as creaturas não servem as mais das vezes senão para des-
lembrar ao homem a idéa do Creador. Não é d'ellas a culpa, mas sim do

(1) Chry:1. homil. XV, ao povo d'Antiochia.

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t86 CATll:ClS~IO

homem de quem somos herdeiros. E~ta o motivo porque, em vez d'exci·


tar em nosso coração o reconhecimento, ao contrario turva-nes e ílissipa·
nos o espectaeulo e o gozo do uni\·erso. Usamos dos beneficios que cho-
Yem sobre as nossas cabeças, e nascem aos nossos pés, como o ani1nal
estupido, que soffrego devora a nutrir.nte lande, ·sem que seus olbos se
' Jevantem para a mão beneficente qne Ih'a faz cahir no chão.
Ainda mais, servimo-nos das creaturas para mais nos aviltarmos.
Tornam-se em nossas mãos, ora instrumentos d'orguli10, ora d'avareza,
ora de corrupção pessoal, ora d'estranha. Temos em oppressão as crea-
turas que só a nós referimos, e cuja natural instituição as encaminha ne-
cessariamente a Deus; ( t) detemol-as no caminho, em lugar de lhes ser-
vir de guias. Cónstrangemol-as a gemer em segredo contra a ordem da
Providencia, que as tolhe de se subtrahirem a nossos depravados usos.
Forçamol-as a pedir a Deus que as liue da parte que em nossa cor-
rupção as obrigamos a tomar.
E' por ísso que, t .,º no fim do mando todas as creaturas convertidas
nas mãos do homem em instrumentos de peccado, virão a ser então ou-
tros tantos instrumentos da vingança divina. Qual vêmos, no dia do livra-
mento, os escravos ha muito subjugados, bramir furiosos, e despedaçar
os ferros que os opprimiam sobre a cabeça condemnada do soberbo ty-
ranno.
E' por isso que, 2. º todas as creaturas aguardam suspirando a resur-
reição geral, em que os santos, d'or'ávante impeccaveis, nãQ as farão servir
jámais senão á gloria de Deus. Então serão ella~ plena e eternamente res-
gatadas da servidão, e terão parte na gloria dos filhos de Deus (2).
E' por isso que, 3. 0 serão no fim do mundo purificadas pelo fogo.
Os peccadores encarcerados no inferno não terão mai poder de polluir as
creaturas, cujo uso lhes será para sempre interdicto. O homem plena-
mente justifiriado e perfeitamente restabelecido, fará entrar na ordem o
universo todo. Então o ceo e a terra, que não foram creados senão para

(1) Rom. VIII, 22.


(2) Rom. VIII, 20. Agost. Cidade de Deus, liv. L\:, e. 16. - Veja-se o resumo
geral do Catecismo no fim do tomo VIII, onde tudo isto está e~plicado segundo os
Padres e Theologos.

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DE PERSEVERANÇA. 187

os justos, lambem só por elles serão habitados. A creação toda preen-


cherá o seu destino, rnlrendo para aquelle Deus que, como nos di:ls da
innocencia, mas d'uma maneira ainda mais perfeita, será tudo em todas
as cousas (l ).

,, ORAÇÃO.
O' meu Deus! que sois toJo amor, eu vos dou graças por me ter-
des cumnlado de tanta glorh e poder; que vos darei sobre tudo .pelo
vosso sangue que derramaste por mim?
Eu protesto amar a De1Js sobre t0das as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d'este amor, cada
dia mortificarei algum de meus sentidos.

(l) 1 Pedro III, 12 e 13.

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.,

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XIV.ª LIGÃO.

Ob1·a dos seis dias.

Continuação llo sex•o dia. - Felicidade do homem innocen-


,e.-Creação da mulher.-Sociedade do homem com Deo!f.
- C1·eaç~l.o dos ~ujos.

Imagem de Deus, rei, usufructuario, pontífice do universo, o ho-


mem, ao sahir das mãos de seu Author, estava cumulado de todos os
dons naturaes com que a liberdade divina póde enriquecer urna creatu-
ra. Estes preciosos do11s eram, nas mãos do homem, outros tantos meios
d'alcançar uma bemaventnrança natural; isto é, uma felicidade propor-
cionada á sua duplice natureza de corpo e espirita. E para isso mesmo
é que Deus lh'os havia concedido ; cumpria sómente que fizesse bom uso
d'elles; queremos dizer, d'accôrdo com a vontade do Creador.
Comprehendemos facilmente que Deus, bom, e sabio creando para
sua gloria uma creatnra racional e livre, composta de corpo e alma, não
lhe podia recusar os naturaes soccorros para as funcções da vida, nem
os meios necessarios para obedecer a suas ordens, nem ainda uma re-
compensa, se elle correspondesse_a seus designios. A natureza do ho-
mem e.reado e a Providencia Lle Deus Creador' assim o exigiam. Mas Deus
não devia ao homem a isenção dJs miserias e accid3ntes da vida, taes .
como as enfermidades e as doenças, a vell1ice e a morte, os combates da'
cubiça, e importunidade das paixões; triste e humilhante condição da na-
tureza, em que Adão pudéra ser creauo sem haver de que se queixar do
seu Creador, nem se poder dizer que o homem não era bom; porque
em todas estas imperfeições não existe o mal, isto é, não ha pecc.ado.
D'est'arte o homem poderia alcançar uma felicidade natural; isto é,
a satisfação de todas as suas faculdades. Seu espírito t~ria co~hecido e
seu coraç.ão amado mediatamente a Deus, por meio das creaturJs em 11ue
20

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-----~---
mo CATECU5MO

resplandecia, como a luz reflexa em um espelho, seu poder, sabedoria e


bondade. Teria gozado de seu Deus todo o tempo por uma Providencia
tam liberal em suas recompensas como sabia em seus caminhos. Tal o es-
tâdo de sim.ples natureza em que Deus houvera podido crear o homem;
porém não o quiz assim. Não sómente sahiu o homem de suas mãos com
todos os privilegias e dons d'uma natureza perfeita, iser1ta de miserias e
fraquezas ; senão que tambem destinado e idoneo para um fim sobnna-
tural. Foi por assim dizer uma nova creação que aperfeiçoou a primei-
ra. (f) Por este novo beneficio elernu·se todo o seu ser. Já não era a
vista mediata e obscura, mas sim a immediata, clara, intuitiva do seu
Deus, que de\'ia fazer a sua felicidade.
Sendo este destino infinitamente mais nobre que o primeiro, exigia
propo:·cionados meios. Deus lh'os concedeu. e Adão recebeu os habitas
sobrenaturaes de todas as virtudes da fé, esperança e caridade; bem co-
mo novas forças, maiores conhecimentos, e mil singulares privilegias, que
o punham em estado d'alcançar o seu alto destino. (2)
Senão decahisse d' esta sublime condição, apoz de ter adorado e ama-
do a Deus por algum tempo, contemplado a seu Creador nas creaturas,
como n'um espelho, e atravez d'um véo, teria ido Adão, sem passar pela
morte, vêl-o face a face, e tal como está no Ceo, com os anjos. (3)
D'est'arte, não sómente sabiu o homem das mãos do Creador, ador-
nado de todos os dons naturaes, e destinado a felicidade natural, mas
enriquecido de todos os dons sobrenaturaes, e destinado a contemplar a
Deus face a face. Em summa; o homem foi creado em estado de graça e
justiça sobrenatural. (4)
N'esta condição puramente gratuita, era perfeitamente feliz o homem
'trmocente. Seu espirita conhecia claramente tudo o que devia conhecer;
(1) Cum igitur gratia non t.ollat naturam sed perficiat, oportet etc. D. Th.
Summ. I, q. 1, art. VIII ad 2- Tal parece ser tambem o sentido profundo do cap.
XVII do Ecclesiastico.
(2) Veja-se a passagem de Bento XIV em a introducção d'esta obra p. XVII.
(3) Th. q. 103, art. III.
(4) Th. p. 1, q. 95, art. I; Agost. liv. de Corrept. et Gratia. e. II; Ambros·
Epist. 41 ad Irenreum, etc.

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DE PERSEVERANÇA. HH
amava seu coraç1o com amor \'ivo, puro e tranquillo tudo o que devia
amar, e só o que devia amar; seu corpo gozava d'uma saude e mocida-
de eterna. E tudo isto era ainda apenas o começo d'uma felicidade maior
no Ceo; isto é, d'um conhecimento e amor mais claro e perfeito.
Tal era o homem ao sahir de vossas mãos, ó meu Deus! tal se co-
nheceu elle; e póde ju Jgar-se quaes foramos transportes de sua grati-
dão, e a vivacidade de seu amor, ao vêr o que tinheis feito para elle, fó·
ra e dentro d'elle, no presente e no porvir.
Tantos beneficio~ não bastavam ainda a satisfazer a inexgotavel bon-
dade de Deus. Quiz redobrar a Yentura do homem, dando-lhe uma com-
panheira que a partilhasse com elle. Isentos de ciume e de paixões, for-
mamlo um só coração, uma só alma, deviam estas duas innocentes crea-
turas, communicando suas idéas, sentimentos e deliciosas impressões de
gratidão, augmentar mutuamente sua felicidade, e ajudar-se no quotidia-
no progresso da perfeição.
Quando pois todos os animaes haviam comparecido perante Adão e
recebido o noine que a cada um impôz, enviou-lhe Deus um mysterioso
soµrno. Este momento escolheu o Senhor para crear ao homem uma es-
posa. O Todo Poderoso Creador tirou sem violencia uma costella do ho-
mem adcrmecido, e preencheu o lugar vasio com nova carne. Assim c0-
mo d'um pouco ele barro tinha formado o corpo d'Adão, formou da cos-
tella d'este um corpo a que uniu uma alma raciona], e assim creou a mu-
lher, dotada das mesmas prerogativas, e elevada á mesma condição sobre-
natural do primeiro homem.
Foi ella o primeiro objecto que Deus apresentou ao pai do genero
humano quando este despertou do somno, instruindo-o da maneira como
os tinha formado, e de como era uma parte d'elle mesmo. Ao Yêl-a, ao
ouvir tal narração, Adão, que nI10 tinha achado um ser similhante a elle
em todos os que acabavam de passar por diante de seus olhos, excla-
mou: ((Eis-aqui o osso do meu osso, e a carne da minha carne; é por is-
so que o homem deixará seu pae e mãe, e se unirá ~ sua esposa; e não
serão ambos mais que uma só carne.>) (f)

( 1) Gen. n. :23.

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192 CATECIS~IO

Deus da sua parte endereçando a palavra a estas duas novas creatu#


ras, destinadas a ser suas primeiras imagens na terra, e paes primeiros
e todos os homens, disse-lhes: « crescei e multiplicai-vos; enchei toda a
extensão da terra.)) (-1)
E' assim que Deus, associando a mulher ao homem, deu ao mundo
visivel uma rainha, e inst~tuio a santa sociedade do matrimonio, que, des-
de o principio, consistiu em a união indissoluvel d'um só homem e d'urna
só mulher, para a conservação do genero humano. D'aqui resulta que o
divorcio é contrario á primitiva instituição do matrimonio. Se Deus o to·
lerou na lei antiga, foi como a seu pezar e por causa da dureza de cora-
ção dos Judeos carnaes. (2) Por isso o Verbo Eterno, restaurador de to-
das as cousas, apressou-se, quando veio ao mundo, a abolir o divorcio,
e restabelecer a união conjugal no seu primeiro estado. Precioso resta-
belecimento, que restituiu á mulher o seu bem-estar e dignidade, e á so-
ciedade a paz e os bons costumes.
Deus disse depois a nossos primeiros paes, e na pessoa d'elles a to-
do o genero humano: «exercei vosso domioio em os peixes do mar, as
aves do Ceo e todos os animaes que enchem as florestas, ou divagam nos
campos. Dou-vos, accrescentou elle, todas as hervas da terra, e todas as
arvores que produzem frncto, para que tireis d'ellas vosso alimento. Tam-

(1) Id. XXII, 28. - A unidade da especie humana é um facto que as scien-
cias modernas revindicaram dos ataques da má fé ou ignorancia <la impiedade En-
cyclopedista. 1.0 As tradições dos differentes povos são unanimes sobre este ponto.
Veja-se Cosnwg. de 1Woysé8; Tardes de J.1fontlhery, etc. etc. 2. 0 Demonstra-se por cal-
culos mui simples que um só par bastou á propagaç.ão do genero humano. Tal'cles
de Montlhery pag. 204. 3. 0 As variedades de côres, e conformação, sendo meramen-
te accessorias, explicam-se perfeitamente pelas differenças dos climas e costumes.
Cosmog. pag. 332 e seguintes. 4. 0 A sciencia mais adiantada, pondo de parte a nar-
ração de Moysés, julga-se com direito a concluir de suas investigações: Que o ho-
mem não foi collocado simultaneamente sobre a terra em muitos pontos particulares,
mas sim em um só, do qual se diffundiu successivamente pelo globo inteiro; que a
Asia parece ter sido esta parte primitiva, este berço do genero humano. De facto,
este paiz, um dos principaes do antigo continente, offerece ao mesmo tempo planuras
e picos os mais elevados que bana superficie da terra. Cosmog. pag. 336 e seguintes:
Livro da Natureza, t. 3. 0 , 105.
(2) Veja-se Do divorcio em a Synagoga, }JOr :\I. Drach.

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DE PERSEVERANÇA. i93
bem êS dou a todos os animaes da terra, e aves do Ceo; a fim que tenham
de que sustentar-se.» (1)
Estas palavras dão ao homem direito a todas as plantas e fructos da
terra; mas elie se faz indigno d'estes dons se d'elles abusa ou se torna
ingrato para com Dem. Tambem asseguram estas palavras seu alimento
aos animaes. E eis que a terra, desde o instante que foram pronunciadas,
não cessa de produzir o que é necessario á subsistencia dos milhares de
viventes, que a povoam. A omnipotente virtude da palavra divina estabe-
leceu para sempre uma admiravel proporção entre o alimento de cada
animal e o seu estomago. Ao trigo deu força para nutrir o homem; ao
feno, para alimentar o cavallo e o elephante. De tal sorte que u~ feixe d'her-
va, do qual jámais poderia tirar-se o necessario sueco, para sustentar a
vida de um menino, basta para conservar a existencia dos maiores e mais
robustos aoimaes da terra.
Tudo o que respira tem os olhos em vós, Senhor! diz o Propheta rei,
e todas as creaturas esperam lhes deis o alimento em seu tempo proprio.
Abris as mãoa, e os encheis dos effeitos da vossa bondade. (2) Os cuida-
dos de vossa providencia estendem-se aos mais pequeninos passaros ; e
nós que somos creados á vossa imagem e similhança, teriamas taro pou-
ca fé que desconfiassemos d'esta providencia?
No meio do paraíso terrestre, aonde Deus estabeleceu nossos primei-
ros paes_, havia, entre as demais, duas arvores notaveis. Era a primeira a
arvore da vida; a· segunda, tam funestamente celebre, a arvore da scien-
cia do bem e do mal.
Chamava-se a primeira assim, porque seus fructos continham uma
virtude vivificadora, propria a conservar e restabelecer as forças do ho-
mem, pois que o homem, destinado a não morrer, por um privilegio
gratuito, nem por isso deixaria de enfraquecer-se, alterar-se, e mesmo
definhar-se, a não ter um preservativo tJl contra a enfermidade e caduci-
dade inseparavel de sua natureza. Diz admiravelmente S. Agostinho que
a arvore da vida era a figura do Verbo incarnado, cuja carne vivificadora

(1) Gen. I, 29 e 30.


(2) P~al. cm.

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CATECTS:\IO

entretem a vida da alma e nos communica a immortalidade. (t) A segun.


da era destinada para pôr á prova a fülelidade de nossos primeiros paes.
Já elles tinham a sciencia do bem; não lhes faltava senão a sciencia
experimental do mal. Esta nfio era necessariél á perfeição, nem felicidade
d'elles. Eis-aqui pois estabelecidos nossos primeiros pacs no paraiso ter-
restre, dotados de todas as vantagens e revestidos de todo o poder, que
conYinha ao rei e rajnha do mundo. O Creador até aqui só ihes tinha
faltado de suas prerogativas e felicidade. Todavia era justo que o homem
se lembrasse da sua condição : se por uma parte era rei da terra, era por
outra vassallo do Ceo; e como, tal devia homenage.m a seu Senhor. Era
seu dever, pela acção de graÇas e amor, referir a Deus toda a creação
que descendia tl'elle. Esta a missão e condição fundamental de sua reale·
za e até de sua existencia.
Por um norn rasgo de bondade, Deus, que pudéra exigir do seu no·
bre subdito numerosas e difficeis homenagens, contentou-se com lhe de-
mandar um só acto exterior de boa vontade. «Todo este vasto universo
pertence-vos, lhes disse elle ; o mar com seus peixes, a terra com seus
anímaes e plantas, o ar com seus passaras, tudo é vosso; este delicioso
jardim aonde es taes fica-vos para vosso uso : comei do frncto de todas as
arvores que eu plantei por minbas mãos; só uma C!uero exceptuar, a ar-
vore da sciencia do bem e do mal. Não lhe tocareis. No dia, que trans-
gredirdes esta prohibição morrereis. j,
Que cousa mais justa em si mesma que um tal mandado! Qne pre-
ceito mais facil de cumprir-se 1 que meio mais proprio p::ira assegurar sua
observancia que os terriveis castigos pelos quae.; Deus o sancciona 1 11lor-
rereis 1 isto é, vo~so corpo morrerá, vossa alma morrerá da morte mai~
terrível; e ficareis mortos ou separados de mim por toda a eternidade.
Não morrereis vós sómente; mas, se prevaricardes, toda a vossa posteri-
dade condemnareis á morte. Ao contrario se permanecerdes fieis, tereis
seguros para sempre os privilegias e felicidade de que actualmente go-
zaes (2).

(1) De Gen. ad Litt.


(2) Agost. cidade de Deus, t. II, 438, 474.

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DE PERSEVERANÇA.

Este preceito resumia d'algum modo todos o~ outros deveres do ho.


mem. (1) Sua fidelidade em o cumprir era o vinculo sagrado que o devia
unir a Deus para sempre. Creado em estado de justiç.a sobrenatural, tL
nha todas as graças necessarias para observal-o. Se se mostrar sempre
obediente e fiel, a longa cadêa dos seres, de que elle é o superior annel,
terá connexão com Deus; e d'esta união re.mltará para elle a paz, para
Deus a gloria, para todo o universo a harmonia e a ordem.
O' pae do genero humano·! ·:amai este facil preceito, amai-o por amor
de Deus, de nós, de vós mesmos ; amai-o pelo que elle é em si, sim, pelo
que é em si; porque este é o titulo fundamental da vossa gloria.
De facto, o derradeiro rasgo da grandeza do homem e da sua supre-
ma elevação sobre todos os animaes é o commercio que elle tem com o
seu Creador pela Religião ; e a observancia d'esle preceito era para nos-
sos primeiros paes uma das fundamentaes condições da sua dignidade.
Submergidos nas mais espêssas trevas, ignoram os animae.s a mão que
os formou; gozam da existencia sem poder remontar-se ao author da vida.
Só o homem se eleva a este divino principio; e, prostrado diante do
throno de Deus, adora dignamente a bondade ineffavel que lhe deu a exis-
ten cia.
Em consequencia das eminentes faculdades àe que o homem está en-
riquecido, digna-se Deus revelar-se-lhe, e conduzil-o como pela mão em
os caminhos do bem. As diITerentes leis que da sabedoria suprema rece-
beu, são os grandes faroes collocados, de distancia em distancia, na estra-
da que condnz do tempo á eterni<.lade. Alumiado por esta luz celeste,
adianta-se o homem no caminho da gloria, já attinge a corôa da vida, já
cinge com ella sua fronte immortal.
Adão, sentindo-se cheio de coragem e penetrado de gratidão, não
considerou provavelmente a defesa d'um só fructo se não como uma leve

(1) Quia ergo contcmptus est Deus jubens, qui creaverat, qni ad suam imagi-
nem fecerat, q ui cteteris animalibus prreposuerat, qui in paradiso constitu erat, qui
rcrum omnium copiam salutisque prmstiterat, qu i prfficeptis nec pluribns, nec gran·
dibns, nec difficilibus ornmwei·at, secl nno brel.'issiino atque levíssimo ad obedientire
salubritatem adminiculavcrat, quo c:un creaturam, cui libera servitus expediret, se
esse Dominum comrnonebat: jnsfa damnatio snbsecnta est. Id. e. 15.

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prova da sua virlude, e, póde ser, julgcm desde logo ter alcançado á sua
posteridade as vantagens que pendiam de tão facil abstioencia. Ah! não
sabia elle porque tentação estava prestes a passar a sua fidelidade.
Deus, cujo poder é infinito, e cuja sabedoria brincou em a creaçã@
c1o universo, tinha tirado do nada muitas especies de creaturas. Umas vi-
siveis e puramente materiaes, como são a terra, a agua, os mineraes e
as plantas; outras, ao mesmo tempo visíveis e invisiYeis, materiaes e es-
pirituaes, taes são os homens; outras em fim invisíveis e puramente es-
pirituaes, que são os Anjos. .
D'est'arte não ha saltos em a natureza, não ha quebra na cadeia ma-
gnifica dos seres. Encadeiam-se seus anneis uns nos outros pelas mais
perfeitas relações, de geito que, chegando ao homem, deslumbra este di-
vino collar, com seus raios de gloria, a no'ssa fraca e debil razão. Porém
esta cadeia não termina no homem ; nem é elle o seu annel mais brilhan-
te ; se se ·vêem abaixo de si myriades de creaturas menos perfeitas, acima
de sua eabeça apparecem milhões d'outras mJis perfeitas do que elle;
entre estas ultimas ha diversos graus tanto mais pérfeitos. quanto mais
se approximam da perfeição infinita. N'cste universo superior ao nnsso,
e cuja extensão comparada com o mando visível é talvez como o sol ao
pé d'um grão d'areia, brilham como astros resplandecentes as jerarchias
celestes.
Alli fulguram por toda a parte os córos angelicos; no centro d'estas
augustas espheras rutila o sol da justiça, o oriente do excelso, do qual
todos os outros derivam a luz e o esplendor. Celestes jerarchias 1 Vós vos
aniquilaes em presenç.a do Eterno, do quai a vossa existencia pende.
Elle só é de si mesmo; elle só o que é, a plenitude do ser, da qual pos-
suis apenas a sombra e o reflexo. Vossas perfeições são ribeirinhos; o
ser infinitamente perfeito é um oceano, no qual o ch1m1bim não ousa fitar
os olhos.
Tal é o mundo angelico, o qual nos toca de tão perto, tem sobre o
nosso tanta influencia, que nada nos interessa tanto como estudar e co-
nhecer a seus habitantes e maravilhas; até o conhecimento da sua histo-
ria é necessario para explicar a nossa. Além cl'isso, antes de nos estabe-
lecermos em uma cidade 011 entrarmos em qualquer sociedade, bom é co-

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DE PERSEVERANÇA. !97
nhecer as pessoas com quem temos de tratar e conviver. Ora nós have-
mos de habit;ff eternamente com os anjos no Ceo, havemos de vir a ser
seus similhantes; comecemos pois, como disse um grande Papa, por tra-
var conhecimento com elles (1 ).
Lº Sua natur~za. Os anjos são creaturas intelligentes, invisíveis,
puramente espirituaes e superiores ao homem. E' de fé que ha bons e
maáo anjos. Quasi qne não ha pagina na Escriptura que não atteste a
sua existencia (2). Os anjos foram creados (3), ao mesmo tempo que o
Ceo e a terra: tal é a doutrina formal da Igreja (4,).
Mas em que dia foram creados os anjos? Pouco importa saber isto.
Santo Agostinho e S. Gregorio ão de parecer que os anjos foram creados
ao mesmo tempo que o Ceo. De re to se . ioysés não se explica mais
miudamente obre a creação dos anjo , a razão é porque, segundo S. Tho-
maz, c'accôrdo com os dous Santos doutores que acabamos de citar, ha-
via motivo para temer que o povo Jndaico, cuja inclinação para a idola-
tria lhe era conhecida, não tirasse d'ahi occasião para cahir em algum
culto supersticioso (ã). Tambem se póde dizer que Deus não quiz que
soubessemas mais do que sabemos ácerca dos anjos, e isto porque o nos-
so estado actual nos tornaria perigoso esse conhecimento. Em fim, póde-
se accrescentar, com a generalidade dos interpretes, que o objecto prin-

(l) In resurrectione erunt sicut Angeli Dei. Math. XXII. - Ineamus amici-
tiam cum Angelis. Leo.
Damos aqui na sua integra os textos dos Concílios e Padres. E' facil conhecer
pelo que sahimos assim do no2so costume.
(2) Angelos pene omnes sacri eloquii paginae testantur. Greg. homil. XXXIV
in Evang.
(3) lllud evidenter divinus serro.o d clar at, n que post sidera productos ange·
los, ncque ante Crelum terramque con titutos. Est enim certa ilia et immutabilis
sententi a, ante Crelum et t rram, nihil omnino conditarum rerum extitisse, quo-
niam in principio creavit Deus relum et t rram ut illud sit ereandi principium1
ante qnod creatis ex rebus omnino nulla fuerat. Epiph. Hrerea, 65.
(4) Veja-se o III. ° Concilio de Latrão.
(5) Ne populo rudi cui lex proponebatur idolatrire daretur occasio, si plures
spirituales snbstantias super omnes corporeas introduceret sermo divinus. Thom.
Opusc111,

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rns CATECIS:\IO

cipal da narração de Moysés, era a ordem da creação do mundo sen-


sivel (t).
Os anjos foram creados em estado d'innocencia e justiça (2); mas
a graça santificante em que tinham sido formados, não os tornava impec-
caveis. A immutabilidade no bem devia ser a recompens3 da sua fideli-
dade, e do bom uso que houvessem feito de seu livre arbitrio, com o au-
_xilio da graça.
Os anjos são superiores ao homem, já porque são puras intelligen-
cias, já porque teem conhecimento~ muito mais vastos e perfeitos que os
nossos; já porque a sua força e poder é muito superior ao que nós te-
mos. Todavia a sciencia dos anjos não abrange tudo em geral. Nosso Se-
nhor, fàHando da sua segunda vinda, disse que os mesmos anjos não sa-
biam ·o dia ncin a hora.
Por i~so ha coúsas cujo segredo reservou Deus para si mesmo. Tal
e, entre outras, o conhecimento perfeito do5 corações, e dos successos fu-
turos, que dependem do livre concurso das vontades. Os authores sagra-
dos faltam sempre d'este conhecimento como d'um caracter incommuni-
cavel da divindade (3). Mas recusando aos anjos o conhecimento certo
dos segredos do coração humano, devemos concordar que elles podem,
por signaes externos, conjecturar o que ahi se passa cl'uma maneira mui-
to mais segura do que nós podemos (~). Esta sciencia conjectural tam-
bem abrange a ordem dos successos.
2. 0 Anjos maus. Os anjos não foram creados impeccaveis. Antes de
os confirmar na graça. submetteu-os Deus a uma proYa. Eis-aqui, segun-
do uma opinião fundamentada, qual foi esta prova : Deus deu~llies a e o-
(1) Hieron. Epist. 139. •
(2) Si quis dicit diabolum non fuisse primo angelum bonum a Deo creatum,
anathema . sit. Cone. Bracarense, can. V II.
(3) Prrescius renun ct cordimn cogn"itor est solns Deus: nec enim yel angeli
cordis abscondita aut futura videre possunt. Ath. qu::Best. 25 ad Autiochenos. -Dm-
mones possunt miracula simnlare et apparenter facere: prrescie11tiam autem futuro-
rum et prredictionem eviclentem nullas habet, neque angelus, et quanto minus dremo-
nes ! Theophilact. in cap. I, Joannis.
(4) Non debemus opiuari daemones oc.culta cordis rinrnri, set1 ex corporis ha~
bitu et gestibns mstimare qnicl Yersemns intcrin,;. Hir1·.

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DE PERSEVERA~ÇA. 199

nhecer a Incarnaçiío de seu Filho e a obrigação que tinham d'adorar nm


Homem-Deus. Adorar um Homem-Deas pareceu-lhes uma insnpportavel
humilhaç.ão. Indignados de que o Verbo Eterno não tivesse tomado an-
tes a natureza angelica para a unir á sua, revoltaram-se ( t ). Estava Lu-
ci fer á testa cl'elles; o qual, como o seu nome inculca, era quiçá o mais
bello dos archanjos (2). Outros theologos attribuem a desgraça dos mãos
anjos á imeja que tiveram do homem, que viam creado á imagem de
Deus, estabelecido como um ·pequeno deus sobre a terra; bem como á
soberba ou vangloriosa complacencia que de si mesmos e de suas perfei-
ções tír3ram, como se as não houvessem de Deus (3). Tão depressa cul-
pados como punidos, todos os anjos rebeldes foram precipitados no abys-
mo. Não lhes ficou a possibilidade do arrependimento, senão que, trans-
formados logo em horriveis demonios, foram immutavelmente fixos em
eterna miseria e punição. ·
Admiremos aqui, com humilde gratidão, a differença com que a divina
misericordia se houve entre nós e elles. Abre-se aos homens a porta da
penitencia, por todo o tempo da vida, em quanto que os anjos mãos fi-
caram logo depois da sua quéda no mesmo estado em que ficar~o os
reprobos depois da morte. (~) A condemnação eterna nos anjos pecca-
dores, como nos homens condemnados, consiste na privação da visão
intuitira de Deus, e na pena do fogo. E' inutil procurar outras provas
(1) Probat Joannes a S. Thoma nihil repugnare quod cum angelis in via re-
velatum esset mysterium Incarnaticmis saltem quoad substantiam, inter objecta ma-
terialia circa. qme eorum superbia ln primo peccato se explicuit, unum fuerit unio
hypostatica inordinate appetit& naturre angelicre, id est solum ratione proprire ex-
celleutire, ct quia se digniorem e1.'.istimavit illo summo bonore, indigne ferens eum
naturre lrnmanm sibi inferiori tog.ccdi : quod totum pertinet ad superbiam. Utrum
tamen ita de facto contigerit, fatetur rem esse incertam. Hrec pro opinione proba-
bili prmstantissimi theologi. Billuart, t. III, pag 473. __:__Veja-se tambein Suarez, lib
V, de Angelis, e. 6, e Syhius, art. V, q. 57, partis 1, D. Thomre.
(2) Haud solus cecidit, verum agmine septus ingenth Greg. Naz. carm. 6 .
.(3) Iren. lib. IV, cap. 78. - Aug. lib. II, e. 13, de Gen. ad litter.
(4) II Pedro II. - Solus homo inter creaturas intellectuales potuit poeniten-
tiam agendo venia dignus effici; nec enim Angeli, aut daemones pcenitentiam ágendo,
venia digni effici possunt. Greg. Nyss. lib. 1 phil. e. 5.
Qnod hominibns mors est, nngelis est casus. Joan. Damas. lib. II, e. 4.

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200 CATECISMO

quando temos estas palavras de Nosso Senhor aos reprobos : retirai-vos


de mim, malditos, ide para o fogo eterno, que foi preparado para o de-
monio e os seus anjos. Soffrem elles estas duas penas desde o instante
da sua quéda, assim como os reprobos as soffrem desde o instante da sua
morte. (3)

ORAÇÃO.

O' meu Deus t que sois todo amor, eu vos dou graç.as por terdes
cumulado nossos primeiros paes de tanta gloria e felicidade. Eu vos dou
graças de nos terdes feito tão grandes que, pela Religião, nos estabele-
ceis em communicação éomvo3co.; concedei-nos a graça de levar fielmen-
te o vosso amavel jugo.
Eu protesto amar a Deus sobre tod::is as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d' este amor, farei
cada dia um acto de lmmüdade.

(3) Aliqui dixerunt ad diem judicii differri poone.m sensibilem taro dremonum
quam animarum; et similiter beatitudinem sanctorum quod est erroneum. Tb. 1, q ·
64: art. IY, ad 3.

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XV.ª LIÇÃO.

Obra dos seis dias.


Halicia e poder dos auJo• mãos. - .4n~
Ji,im do 1'1exto dia. -
jos bons : seu numei·o. - Suas jerarcllia!ii. - Funcc;õel!f
dos anjos bons. - Louvam a neus. - Presidem ao go-
''erno do DJundo whih,· et e inwisivel; ''elam na guarda
e det'esa do ;;enero lluIDano. - Do~ imperios. - De cada
Igreja. -Da Igreja unive1·sal. -De cada um de nós.-
Grandeza do homem.

Lº Malícia e poder dos anjos máos. Invejos~ da felicidade àe nos-


sos primeiros paes, o demonio os perdea e não cessa de nos tentar para
tambem nos perder. O apostolo S. Pedro representa-nos o demonio corno
um leão rugindo que divaga noute e dia em torno de nós, procuran-
do a quem devore. Leva tão longe a sua insolencia, qne ousou approxi-
mar-se a Nosso Senhor no deserto, para o tentar 1
Uma parte d'estes anjos das tre\'as, andam pela terra e p~lo espêsso
ar que a circumda, o que Deus per;nitte para instrucção e exercicio de
seus escolhidos; mas a sua punição não é por isso menor; pois que por
toda a parte aonde vão lernm comsigo o inferno (1). «E' sentir de todos
os doutores, diz S. Jeronymo, que o ar existente entre o Ceo e a terra
está cheio d'anjos rnáos » (2). Santo Agostinho não receia dizer que esta

(1) Diabolus ubicumque sit, sive sub aerc, sive sub terra, secum tert tormenta
suarum flammarum. Glos. in cap. III Jacobi. S. Thomaz diz a mesma cousa: " Dffi-
monibus duplex locus prenalis debet~r: unu s quidem rntione sum cul pre, et hic est
inferus; alius autem ratione exercitationi1:; humanre, et hic est caliginosus aer. "
P. 1, q. 64, art. IV.
(2) Hrec omnium doctorum opinio est quod aer iste qui crelum et terram me-
dius dividit et ínane appellatur, plenus est contrariis fortitudioibns. Hie1·. in e. VI
ad Ephes.

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/

202 CATECISMO

doutrina· é apostolic·a (1). E' com muita razão que o diz, pois é constan-
te das Epistolas de S. Pedro, de S. Paulo, da de S. Thiago, e do Apoca-
Jypse. S. Paulo declara-nos expressamente que temos de lactar, não con-
tra a carne e o sangue, mas contra os principados e potestades, espiritos
de malicia espalhados pelo élr.
Por isso: a continua occupação dos demonios é tentar-nos. O demo-
nio, diz o apostolo S. João, é aquelle grande dragão, aquella antiga ser -
pente, que se chama Satanaz, e que seduz o universo inteiro. O odio que
estes espiritos reprobos teem ao homem é tão grande, que o que querem
é chegar-nos, ainda que lhes custe caro. « Atacam, diz S. Chrysostomo,
aquelles mesmos que nenhuma esperança teem de vencer; mas só pelo
motivo de fatigar, inquietar, perturbar, fazer todo o mal que po-
dem» (2).
Supposto que a intenção principal do demonio seja sempre perder
nossa alma pelo peccado, e privar-nos dos dons da graça, nem por isso
perde occasião do prejudicar-nos ainda no temporal.
Os excessos a que chegou contra Job ; as vexações corporeas com
que atormentava os possessos (3), e que são descriptas em varias partes
do Evangelho; os sacrificios cruentos e deshumanos, que de seus adora-
dores exige, como se prova da historia de quasi todas as nações ; suas
apparições a tantos santos solitarios, sob as mais horrendas fórmas; as
ameaças, que sempre realiza, se Deus lhe não suspende a furia; são ou-
tras tantas provas d'aquelle imeterado rancor, que, desde o principio do
mundo, se nos predisse e annunciou que sempre nos teria (4.).
Assim os demonios são cansa, em grande parte, dos males tempo-
raes que nos affiigem. Em todos os tempos, tem a Igreja estado vi\'amen-
te persuadida do poder, que permittiu Deus tivessem os demonios sobre
as creaturas, e do uso que d'este poder fazem, para clamnificar aos ho-
mens.
(1) ~ih. li, de Gen. ad litt.
(2) Homil. de Lazaro.
(3) Sobre os possessos, veja-se a Historia do povo Deus, 2."ª parte, t. l, pag.
199, edição de B(;sançon.
(4.) Gen. II.

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DE PEHSEYEHANÇA. 203

P'aqui as oraçõe , os exorcismos, as bençãos que a Igreja faz sobre


as creatura, , que devem ervir aos sacramentos e mais usos da Religião.
E' certo que o poder dos demonios, muito diminuído, geralmente fallan-
do, depois da Incarnação da Filho de Deus, é menor entre os christão~
que os idolatras. Esta di111inuição do poder demonstra-se maiormente no
que re._peita á apparições , en iveis, po. sessões, vexações corporeas, mui-
to mai ~ communs aonde a iqolatria reina ainda, como attestêtm as rela-
. çõcs mais fidedignas ('J ).
« A malícia pertinaz do tlemonio subsiste, diz S. Cypriano, até que
não chegam as aguas salutares do baptismo; mas perde sua força n'este
sacramento >> (2).
Concll!amos que o poder dos demonios muite excede as forças do
homem. Os extraorclinarios effeilos, que a Escriptura lhes attribue, ne-
nhuma duvida nos deixam sobre este ponto. As casas de Job derribadas,
seus rebanhos dispersos, seus filhos mortos no mesmo dia, já pelo fogo
do ceo, já pelos abalos da terra, já pela impetuosidade dos ventos; o que
nos está predicto do que ha de fazer o Antichristo no fim dos seculos; o
que lêmos no EYangelho dos differentcs possessos curados por Nosso Se-
nhor; são outras tantas provas de que o poder dos demonios é muito
superior a todas forças humanas. Tambem S. Gregorio não receou dizer
que, se bem perdeu o demonio a felicidade que desfructava, nem por is-
so perdeu a grandeza de sua natureza, cuja força excede muito a de to-
dos os homens (3).
2.º Anjos bons, seu numero, suas jerarchias. Se o poder e numero
dos Anjos máos vos amedronta, o que vamos dizer dos anjos bons será
de mais para ganhardes animo. Por numerosa que seja a multidão dos
demonios, o numero dos Anjos bons é. muito superior : assim o ensina

(1) Veja-se o P. Bonchet, Carta edif. Indi:;i.


(2) Sciat diaboli nequitiam pertinaccm usque ad aquam sa.lutarem vale1·e, in
Baptismo vero omnes naequitire sure vires amittere. Lib, ct. IV.
(3) Quamvi enim internre felicitatis beatitudinem pe,rdidit, naturre t~men
sme magfiltudinem nou amisit, cujus adhuc viribu omnia humana superat. Lib. 34,
moral e. 17.

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20i CATECISMO

expressamente Santo Agostinho (1). Demais, o que diz o Apostolo S. João


ácerca dos predestinados de todas as nações, isto é, que é innumeravel a
multidão d'elles, muito mais se póde dizer dos cspiritos ceJ~stes. Todos
concordam que o numero dos Anjos bons será muito maior que o dos
Santos. ·
Notam os thelogos, d'accôrdo com os Padres, que os termos milha-
res e milhões, de que a Escriptura se serve quando falia dos Anjos, não
significa numero determinado, mas que os authores sagrados emprega-
ram estas expressões, porque não acharam outras que melhor inculcas-
sem um numero maior, o qual póde considerar-se, d'alguma sorte, in-
finito (2). -
Por muito grande que seja este numero, não ha todavia desordem
nem confusão entre os Anjos. O poderoso Deus que mantém esta magni-
fica harmonia, entre milhões de soes suspensos sobre nossas cabeças, ro-
lando pela extensão do espaço, da mesma sorte mantém no exercito do
Ceo uma ordem admiravel e uma subordinação maravilhosa. Ha diversas
jerarchias entre os Anjos, das quaes cada uma encerra differentes córos,
desiguaes em dignidade, e subordinados uns aos outros.
A primeira jerarcbia comprehende os Th.ronos, Chernbins e Sera-
phins .
. A segunda, Potestades, Virtudes e Dominações.
A terceira, os Anjos, Archanjos e Principados.
E' o que ensinam, fundados na Escriptura, S. Diniz Areopagita, S.
Gregorio, S. João Damasceno, S. Thomaz, e com elle quasi todos os theo-
logos (3). j

(1) Bonorum longe major numerus, in ca:lestibus suae naturre ordinem ju-
vans. De Civ. Dei lib· II, e. 23.
(2) Non quod tanta solum csset multitudo, sed quia majorem dicere non po-
terat. - Cyril. Hieros. Catech. 15.
(3) Prima hierarchia, scilicet Seraphim ct Cherubim et Throni, inspicit ra-
tiones rerum h1 ipso peo; secunda vero, id est, Dominatfones et Virtute s et Potes·
tates, in causis universalibus; tertia vero, scilicet Principatus, Angeli et Archange-
li, secundum determinationem ad speciales eftectus. Et quia Deus est finis non so-
lum Angelicorum ministerforum, sed etiam totius creaturae, ad primam hierarchiam
pertinet consideratio finis; ad mediam vero dispositio tmi"versalis de agendis; ad ul-

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DE PERSEVERANÇA. .20~

3.° Funcçues dos Anjos bons. Lº louvam ao Senhor. E' de fé que


os Anjos bons gozam a visão beatifica. Nosso Senhor o affirma formal-
mente; o resplendor e magestadc divina r,ompenetra-os d'um respectuoso
temor. Prosternam-se e baixam os olhos, com mêdo que os deslumbre
esta luz inaccessivel ( 1). Isaias os viu circumdando o throno da ma ges-
ta de divina ; ouviu-os respondendo uns aos outros, e dizendo eterna-
mente: Santo, Santo, Santo é o Senhor, Deus dos exercitos, a terra está
cheia da sua gloria (2). S. João os viu da mesma sorte em derredor do
throno, e os ouviu clamar incessantemente noite e dia, dizendo: Santo,
Santo, Santo é o Senhor que era, que é, e que ha de ser (3).
2. 0 Presidem ao governo do mundo visivel. Houve sempre a per-
suasão de que a providencia divi!la governa este mundo pelo. ministerio
dos Anjos, e que este se estende aos elementos corporeos e creatura5
inanimadas. Os mesmos Pagãos conheceram esta verdade; a qual por ou-
tra parte nos é transmittida pelo testemunho unanime dos Santos Pa-
dres.
« Os Anjos, diz Origenes, presidem a todas as cousas visireis, á
terra, agua, fogo e ar, isto é, aos principaes elementos, animaes, e as-
tros do Ceo. Dividem-se os seus ministerios: uns são encarregados das
producções da terra, outros dos rios e fontes;· estes presidem aos ven-
tos~ aquelles ao mar » (4). Os outros Padres da Igreja não faliam em
termos menos expressos.
timam autem applicatio dispositionis ad effectum, quae cst operis executio. Tho;n
pag. 1, q. 108, art. VI. - Seguem-se admiravefs pormenores ácerca das funcções
proprias de cada jeearchia.
(1) Math. XVIII. Apoc. VII.
(2) !saias VII.
(3) Apoc. IV.
(4) Omnibus rebns Angeli praesident, tam. terr3e et aquac, qua.m aeri et igni,
id est praecipuis elementis, et hoc ordine peryeniunt ad 01nnia animalia, a.d ornue
germen, ad ipsa quoque astra Cooli. Orig. lwmil. VIII, in Jerem. - Virtutes c~ks­
tes hujus mundi ministeria ita suscepisse, ut illae terrae, vel arborum germin:~ti1j ­
nibus, illae fluminibus ac fontibus, aliae ventis, aliae marinis, aliae tcrreuis anima-
libus praesint. Id. homil. in Josué XXIII. - Divinas illas virtutes, quae smnwi Pa-
tris numiue orbi unh·erso praesideut, bonorum divisioni accomo<lat. Euseb . I'iYPpr1r .
Evang, lib. VII. -;- Pronaque acl obscqtLium pars altera su:stinet orbcm :iuxilioqnc
'.;!f

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CATECIS~IO

:J. º Presidem ao governo do mundo invisível. Espiritos aLlrnínistra-


dores, enviados em missão, para negociar a santificação dos escolhidos,
executam os Anjos em relação aos homens as determinações ele Deus.
E' certo que d'elles se tem Deus servido quasi sempre nas maravilhas
operadas, nas graças concedidas, nos justos juízos executados em favor
da sua Igreja, assim no Antigo como no Novo Testamento.
As suas celebres app~arições a Abrahão, a Lot, a Jacob, a Moysés, são
d'isto a prova. (i) Um Anjo livra os Hebreos da senidão dJ Egypto, (2)
precede o povo em o deserto, e o conduz á terra da promissão. (3) E' um
Anjo que incumbe a Geclião de livrar a Israel da servidão dos l\fadianitas;
que prediz .o nascimento de Samsão, (4.) e faz respeitar a lei durante o
captiveiro de Babilonia; (5) livra os meninos na fornalha ardente, e Daniel
das garras dos Leões ; (6) combate com os l\1achabeos ; (7) em summa é o
Anjo do Senhor quem salva o povo em todos os perigos e tribulações em
que se encontra. (8)
Em o Novo Testamento, tomaram parte em todas as circomstancias
do nascimento, infancia, vida, morte, resurreição e Ascenção de Nosso Se-
nhor. Predizem o nascimento de seu Precursor. (9) Um Anjo annuncia a
:Maria Santissima o grande mysterio que em seu ventre devia overar-se.
(to) Annunciam aos pastores que o Salvaqor lhes é nascido (11). Avisam
suo servat. Greg. Naz . carmen 6. - onn ulli eos A ngelos esse arbitrantur qui qua-
t ur elem ntis praesident, t rrae videlice t, aquae, igni, aeri. Hier. lib. XXII, in
Epist. ad Galat. - Unaquaque res visibilis in hoc mundo habet angelicam pote ta-
t em sibi praepositam, sicut aliquot locis Scripttu·a divina te tatm·. Aug. lib. 83,
qiu:eest. 56. -
(1) Gen: XVIII, XI.X, XXII, XXVIII, XXXI, XXXII, Exocl. III, Ia.
(2) Num. XX.
(3) Gen. XIV et XXIII.
(4) J ud. VI, 13.
(5) Dan. III.
(6) Ibid 6.
(7) Machab, VIL
(8) Isai. LXIII.
(~ ) Luc. V.
(10) Ibid.
(11) Id. IL

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DE PERSEVEGANÇA. 207

a José que fuja para o Egyto; (1) e d'alli o mandam voltar para a terra
d'lsrael. (2) Approxímam-se de Jesu-Christo para o servir no deserto. (3)
Fortificam-no em sua agonia. (4) Publicam sua resurreição; acompa-
nham-no em fim em sua Ascenção, e cumprem o que elle havia predito,
que se veriam os Anjos subir e descer sobre o Filho do Homem. (5)
Igualmente velam sobre os Apostolos da Igreja nascente. Quando es-
tes são encarcerados, um Anjo lhes abre as portas e os manda sahir. (6)
O diacono Philippe é enviado por um Anjo ao caminho, que conduz de Je-
rusalem a Gaza, a fim d'instruir e baptizar o enviado da Rainha de Canda-
ce, cuja conversão brevemente daria causa a tantas outras na Ethiopia.
(7) Um Anjo apparece ao Centurião Cornelio, e lhe ordena que chame o
Apostolo S. Pedro, de quem ha-de receber a instrucção e o baptismo. (8)
Seria inutil amontoar passagens <la Escriptora ; a cada pagina do Novo
Testamento se encontram factos, de que todos teem noticia.
4.º Velam na guarda do genero humano. Os differentes ministerios
dos Anjos, a respeito das creaturas, teem referencia, como as creaturas
mesmas, á salvação do homem ; por isso é da gnarda e cuidado do gene-
ro humano, que as intelligencias celestes estão principalmente encarrega-
das. Segundo Lactancio, Deus enviou seus Anjos para guardar e como que
cultivar o genero humano; (9) elles são nossos guias e tutores. (to)
5.º Entendem na gu:mla dos imperios. No capitulo X do Propheta

\ 1).Math. I, 3.
(2) Luc. IV.
(3) nfath. XX VII l.
(4) João. l.
(5) Act. V. '
(6) Ibid.
(7) Id VIII.
(8) Icl. X.
(~l) l\füsit Deus Angclos suos ad tntclain culttlllHfUC gcneris hmnani. Lib. II, d~
Insl. d1:1.J. e. 14.
(10) A11;·elis fanqnam proyidis tntoribns hmnani generis curam dcrnan(lavitDens
atl custodiam salutemquc humanam. Basil in cap. YIII Isai. - Ad tutelam nostram
constituit cxercitns A11geloram. Chvs.- Salus in rninisterio Angelornm qni ad pro~
tcctionem hominum à eputantur A 111b;·. i ll z1sal. XLIII.

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208 CATECISMO

· Daniel, fa1la-se do Arcbanjo S. :Miguel, como principe do reino <los Persas,


e d'um outro, principe dos Gregos. Todo o contexto não permitte duvidar
que estes principes não sejam Anjos. Tal é tambem commum a interpreta-
ção dos Commentadores e Padres. D'este lugar e d@ muitos outros con-
cluem todos, como cousa certa, que cada nação e cada reino tem seu Anjo
tutelar. S. Basilio distingue positivamente os Anjos qne guardam as nações
dos Anjcs da guarda particulares; e prova, pela Escriptura, ambos estes
ministerios angelicos. Isto mesmo ensinam os outros Padres da Igreja;
(t) um dos quaes declara que esta verdade se funda no testamento da Es-
criptura; (2)
6. º Guardam tambem cada Igreja. O que dizem dos reinos e nações
S. Basílio, S. Epiphanio, S. Jeronymo, e muitos outros auctores antigos,
assim dizem lambem de cada Igreja particular ; cada uma das quaes não
duvidam esteja debaixo da especial protecção d'um Anjo tutelar. Isto mes-
mo affirma Origenes em muitos lugares que seria pro1ixo citar. (3) Euse-
bio de Cesarêa não é menos explicito. «Deus quer, diz elle, qué cada,
Anjo vele na guarda da Igreja que lhe é comm~ttida. (4)
S. Gregorio de Nyssa não duvida que cada Igreja tenha seu Anjo pro-
tector. E' por isso que no admiravel discurso que fez ao sahir de Cons-
tantinopla, despedindo-se de tudo o que a esta Igreja dizia respeito, põe
na primeira ordem os Santos Anjos que eram d'ella protectores. (5) Todos
os Padres co.m S. Ambrosio se persuadiram que não se contentou Deus

(1) Angeli Oinnes, ut appellationem unam, ita etiam eamdom omnino inter se
babent naturam ; sed ex iia quidam prrefecti sunt gentibus, alii vero unicuique fi-
delium adjuncti sunt comites. Basil. lib. III, lueres. 51. - Angeli singulis pracsunt
gentibus. Hier. lib. XI, in cap. XV. Isai. ·
(2) Quin etiam cuique gcnti proprium Angelum pracsse affirmat Scriptura.
Theodoret. q. 3, in Gen.
(3) Homil. 12-13, in Ezech. in Lnc. XXV.
(4) V ult Deus Angelos singulos ccclesiarum sibi commissarum custodes esse.
ln psal. XL VIL
(5) Angelis hujus urbis cura commissa est. Ncc enim mihi clubium est qnin
f!lii aliarum ccclesiarum pracsides et patroni sint, riuemaclmodum in Apocalypsi
.Joannes me do<'C't . Orat. 32.

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DE PERSEVERANÇA. 209

com estabelecer um Bispo para cada rebanho, senão que tambem encar-
regou a um Anjo de o proteger e guardar. (t)
7.º Guardam a Igreja universal. Sa cada Igreja particular tem seu
Anjo da guarda, não devemos duvidar que com muita mais razão haja um
grande numero d'elles, que incessantemente velam no bem da Igreja uni-
versal. As Potestades celestes, diz Eusebio, guardam a Igreja de Deus.
(2) S. Hilario os representa cercando por toda a parte o aprisco tle Jesu-
Christo, e fazendo d'algum modo a seu respeito as funcções de soldados
destinados a guardar um2 cidade. (3) .
S. Gregorio de Nyssa compara-os áquella torre de que se falla no
Cantico dos Canticos, d'onde pendia grande numero d'escudos, pafa nos
dar a entender-que estes bemaventurados espiritos protegem e defendem
a Igreja na continua guerra que peleja contra as potencias das trevas. (4)
8. 0 Guardam a cada um de nós. Cada homem tem seu Anjo da
guarda destinado a o esclarec&, defender, conduzir por todo o decurso d' es-
ta vida. Esta tam consoladora verdade, apoz dos dogmas expressamente
definidos, é uma das mais bem fundadas na Escriptura e tradição; de sor-
te que, supposto não seja inteiramente expressa nos livros santos, nem
absolutamente .definida pela Igreja, segundo os the~logos, estã como re-
cebida pelo consenso unanime da Igreja universal. Demais, tem funda-
mento tam solido nos textos da Escriptura, entendidos segundo a inter-
pretação dos Santos Padres, que não é possivel negai-a sem grande te-
meridade e quasi sem err~. (5)

(1) Non solum a<l eumdem gregem Dominus Episcopos ordinavit, sed etiam
Angelos Lib. II, in Luc. et lib. I, de Pcenit. e. 21.
(2) Divinis potestatibus quae Ecclesiam Dei ejusque religiosum institutum
custodiunt. ln psal. XL VII.
(3) Acne leve -pracsidium in Angclis, qui Ecclesiam quadam custodia circum-
scpiunt, esse putarcmus. ln psal. XXIV.
(4) Existimo autem eam turrim multitudinc clypeorum sigificare angelicum
praesidiw11 quo circumsepti sumu .
(5) Assertio catholica st · quamvis enim uon sit expressa in Scripturis, vel
ab Ecclesia definjta, tanto comen u Ecclesiae universalis recepta ~st in Scriptura,
prout a pahibus int 11 cta cst, tam m gnum babet fundamentum, ut sine ingenti te-
meritate ac fere errore ucgari non pm:sit.

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210 . CATECISMO

Eis-aqui as palavras de Suares, que nota além d'isso como foi Cal-
Yino o primeiro que ousou pôr em duvida, e depois· rejeitar esta ver-
dade. (t)
((O Senhor, diz o Propheta-Rei, ordenou a seus Anjos que vos guar-
dem em todos os vossos caminhos.» Todos os Santos Padres entendem
esta passagem, não sómente de No3so Senhor, como tambem de todos
os homens, e mais particularmente dos ju~tos. Demais. o mesmo Jesu-
Christo diz estas palavras concludentes: ccOs Anjos dos meninos veem
sempre a face do Pai celeste.»
«Os Anjos, diz Origenes, cuidam de nossas almas, que lhes são con-
fiadas, como os tutores de seus pupillos. (2)» Sabemos da Escriptura,
diz Eusebio de Cesarea, que cada um de nós tem seu Anjo, qae Deus
lhe dá para o conduzir.» (3) «A dignidade de nossas almas é tam gran-
de, diz S. Jeronymo, que, desde nosso nascimento, tem cada um sua
guarda commettida a um Anjo.» (4.) «Cada alma. diz S. Anselmo, é con-
fiada a um Anjo no mesmo ponto que é unida a um corpo.)) (5) N'esta
parte, não é possível ser mais successiva, constante e unifonne a tradição.
~-º Beneficios dos Anjos da guarda. Supposto que a salvação de
nossas almas seja o principal objecto a que attendem os nossos Anjos tu-
telares, todavia estendem seus cuidados a nos procurar os bens da vida.
presente ; preservam-nos dos accidentes, a que todos estamos expostos,
e livram-nos dos males quando temos cabido n'elles. «Levar-vos-hão nas
mãos, diz a Escriptwra, por mêdo que não tropeceis na pedra. O Senhor
enviará seus Anjos para o redor d'aquelles que o temem, e os livrará de
suas tribulações.))
(1) O Catecismo dirá pois absoluta e simplesmente: Cada um de nós tem seu
Anjo da guarda.
(2) Angcli tenent curam animarum nostrarum, et eis ah infautia tanquam
tutoribus et curatoribus committuntur. Homil. VIII, in Gen.
(3) Angelum unicuique ad cústodiam divinitus datum ex Scriptura didicimus.
Euseb. 13, Prcepar. Euang. e. 7.
(4) Magna dignitas animarum ut unaquaeque ab ortu nativitatis habeat in
custodiam sui Angelum delegatum ln J.llatth. XVIII.
(5) Unaqua.eqne anima., dum in corpu;; mittitur, Ang~lo committitur. l1t eltc.-
cid.

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DE PERSEVERANÇA. 21 ·I
E' maiormente no tempo da infancia e durante as viagens, que mais
expostos andamos a perigos : é por isso que lambem os Anjos da guar-
da redobram então sua solicitude, como se exprime S. Agostinho. (1)
Os Santos Anjos ainda nos procuram bens temporaes, impedindo aos de-
monios de nos não tolher. «0 Senhor, diz Origenes, deu-nos Anjos por
caridosos tutores, a fim que os Anjos máos, e mais seu príncipe, que
tambem se chama principe d'este mundo, nada possam contra nós. (2)
(<Nossa fraqueza, diz S. Hilario, não poderia resistir á malicia dos
mãos Anjos, a não ser o soccorro dos Anjos da guarda.» (3) Com o au-
xilio de Deus, diz S. Cyrillo, nada temos que temer das potencias das
trevas; porque está escripto: o Anjo do Senhor campêa ao redor d'aquel
les que o temem, e elle os livrará.» (4) Os Anjos da guarda não se conten-
tam com nos fazer evitar os laços do demonio e desviar-nos do vicio, mas
lambem nos ajudam na prática de todas as virtudes. (5)
Offerecem a Deus nossas orações, e accrescentam as suas. «Apresen-
tei a vossa oração ao Senhor,» dizia o Anjo Raphael a Tobias. (6) Tam-
bem lemos no Apocalypse que deram ao Anjo que estava em pé diante do
altar um thuribulo d'ouro, com uma grande quantidade de perfumes, pa-
ra acompanhar com elle as orações de todos os Santos, offerecendo-as no
altar d' ouro, que está diante do throno; e o fumo dos perfumes, junto ás
orações dos Santos, e1evando-se da mão da Anjo, sobe diante de Deus. (7)
«Os Anjos da guarda, di(Origenes, offerecem nossas orações a Deus

(1) Soliloq. e. 17.


(2) Tutores pios acldit suos Angelos ut nec contrarii Angeli, nec eormn prin-
ccps qui et bujus saeculi priuceps dicitur, quidqnam valeat contra Deo dicatos ho-
1nines. On'.gen. contra Cels.
(3) Ncque enim infirmitas nostra nisi datis ad custodiam Angelis tot tant.isqno
spiritualium cceiestium nequitiis resisterct ln psaL CXXXIV.
(4) Dco omnipotente auxiliante, quod contra nos irascantur montes, id est
principatus et potestates rectores tenebrarum harmn, nihil est; scriptum cst enim:
Castrametabuntur Angeli circa timentes eum, ot eruet eos Lib. I in !sai. orat. 4.
(5) Angelicac virtntcs nobis ad optima qnaeque adjumcnto sunt.. Greg. Naz.
orat. 40.
(6) Tob. XII.
(i) Apoc. Vlll.

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212 CATECJS:\10

por .lcsu-Christo, e lambem oram por aquelJc, que lhes é confiado.» ('l)
E' uma verdade constante, diz Santo Hilario, que os Anjos presidem ãs
orações dos fieis.» (2) «Os Anjos, accrescenta S. Agostinho, não só nos
anmmciam os beneficios de Deus mas até lhe offerecem ~s nossas ora-
iJões; » e em outra parte diz, «não porque Deus o ignore; mas para ob-
ter mais facilmente os dons da sua misericordia, e alcançar-nos os be-
neficias da sua _graça.>) (3)
Muitos Santos Padres, cujo testemunho temos citado, esten1em ge-
ralmente a todos os homens a assistencia dos Anjos; de sorte que cada
um em particular e sem excepção tem o seu Anjo da guarda, que nunca
o abandona. Outros porém parece que restringem a assistencia dos An·
jos da guarda aos Justos, e sómente em quanto perseveram na justiça.
Esta contrariedade apparente facilmente se concilia. De facto os Anjos
são muito mais solicitos com os Justos, e isto em proporção de seu fer-
vor e virtudes; de sorte que o peccado parece afugental-os; por isso que
interrompe ou diminue mais ou menos o effeito de sua vigilancia. E' as-
sim que se explicam estes Santos Padres. <cÜ5 Anjos, diz S. Basílio, estão
sempre ao pé de cada familia, a menos que os não afugentem por más
acções.» (4) Quer elle dizer per ventura que abandonam ititeirarríente os
peccadores? Não ; isto só diz que não cuidam d'elles tanto como dos Jus-
tos. «Os Anjos da guarda, continúa o santo doutor, agsistem mais espe-
cialmente áquelles que se dão ao jejum.» (5) S. Thomaz ensina expres:-
samente que os Anjos da guarda não abandonam jámais inteiramente os
(1) Angelus christiani prepetuo faciem crelestis Patris aspiciens semper pre-
ces ejus in Crelum offert per unicum Pontificem summo Deo, ipse quoque pro sibi
commisso deprecans. Lib. VIII contra Cels.
(2) Fidelium orationibus praeesse Angelos absoluta auctoritas est. ln l.fat-
th. XVIII.
(3) Aununtiant Angeli non solum beneficia Dei, sed ctiam ipsi preces 'nostras.
Ep. l 20, ele Grafia no vi. Testamenti'.. - Gemitus nostros atque suspiria referentes
ad te, non quidem quod Deus illa ignoret, sed ut impetrent nobis facilem tuae be-
nignitatis pro:pitiationem, et referunt ad nçis tuae gratiae benedictionem. Soliloq. e. 7.
(4) Assidet Angelus cuilibet in Domino credenti, nisi operibus pravis abiga-
tur. ln psal. XXXIII.
(5) Vitae nostrae custodes Angcli diligentius adsnnt iis qni jejunio purga-
i ~ t,in habent. animam. Tlomi1. II, de J(i11nio.

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DE PERSEVERANÇA. 213

pectadores, (1) e o Catecismo dirá o mesmo. Em a quarta parte d'esta


obra, fallaremos dos nossos deveres para com os Santos Anjos.
Tal é o mundo invisível, que nos rodêa ; taes seus habitantes, e as
suas relações para comnosco.
Agora, ó homem ! ente sublime, mede, se podes, a grandeza da tua
dignidade. Collocado pelo corpo no cimo da escala dos seres materiaes,
vês abaixo de ti, e gravitando para ti, milhares de creaturas encadeadas
umas nas outras. Desde a hervinha do prado até o cedro do Libano, des-
de a perola do orvalho até a immensidade do oceano, do átomo ao sol,
do gozano ao elephante, toda a creação material se refere ª 'ti; rei da
terra, és vassallo do Ceo. Collocado por tua alma no primeiro degráo do
mundo espiritual, és o élo que enlaça os dous mundos. Abaixo de ti não
vês senão creaturas matcriacs ; acima de ti, substancias espirituaes ; e
estas mesmas, supposto que d'uma natureza superior, referem-se a ti.
Mede pois, se podes, ente sublime, a grandeza da tua dignidade. Que
espectaculo f Se corrido o véo se mostrar a teus olhos este mundo invi-
sível f A' esquerda milhares d'Anjos revoltados, agitando-se noute e dia
em redor de ti ; estendendo lí!ços a teus pés ; empenhando toda a força
e arte, para te attrahirem ao. seu partido ; á direita, innumeraveis le-
giões d' Anjos tutelares, empunhadas sempre as armas, para te proteger ;
acima da tua cabeça, do alto de seu tbrono, o Eterno te contempla ; com
uma :mão offerecendo-te a corôa, com a outra o amparo.
Para que é este grande combate entre o Ceo e o inferno? Para que
esta incessante lucta? E' porque tu has de ser o premio do vencedor.
Para que tantas orações da parte do mesmo Deus? Para que tantas so-
licitações da parte de Lucifer e dos seus anjos, como da parte de S. Mi-
guel e dos que o seguem? Porq~e só a tua vontade póde fazer pender a
balan~a e decidir a victoria. Comprehendes agora a mysteriosa delibera-
ção que Deus tomou antes de te crear? Comprehendes porque motivo,

(1) Cum custodia angelorum sit quaedam exsecutio diviae providentiae quae
nunquam hominem ex toto derelinquit, nec Angelus custos nunquam ex toto bomi-
uem deserit, licet permittat quandoque secundum ordination m divinorum ju icio-
rum, ycl pcenae, ycl culpae defecturn pati. D. Th. 1 V· q. 108) art. VI.

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CATECIS~IO

depois de te haver creado, este magnanimo Dens não te trata se não


com um profundo respeito? (1) Comprehendos em fim porque foste tu o
derradeiro acto da potencia creadora? Mede pois, se pódes, ó ente subli-
me, a grandeza da tua dignidade (2).
Tal foi pois a ultima e.reatura pela qual Deus terminou o sexto dia.
O homem coroou a obra da crt~ação.
Viu então o Senhor Deus todas as obras que linha creado, e achou
que eram boas. No fim de cada dia, Deus r,ontentava-se com dizer, de ca-
da obra separada, que erà boa. Mas hoje que as considera n'um só olhar, ho-
je qúe as compara com o eterno modêlo, de que ellas são a imagem, o Crea-
dor como que as admira, vendo como são excellentes em perfeição e belleza.
O universo diante de seus olhos é um mngnifico painel, que elle
.acaba de pintar; e ao qual deu a ultima demão. Cada parte tem seu em-
prego; não ha traço que não tenha sua graça e belleia; figura que não
esteja elegante e bem collocada ; todas as côres estão exactas e proprias ;
é maravilhoso o total effeito ; e as mesmas sombras lhe dão a perfeição
do relevo.
Talvez pergunteis porque motivo nos diz a Escriptura que Deus tan-
tas vezes appí·ovou e admirou as suas mesmas obras ? E' para nos ensi-
nar que admiração deveria causar-nos ; que estudo merecer-nos ; que re-
flexões inspirar-nos; é tambem para confundir d'antemão a nossa debil
razão ; que, em seu ignorante orgulho, crê achar defeitos e ociosidades
nas obras de· Deus. Em verdade, é engraçado qne o homem ache máo o
que Deus achou bom ! Finalmente, foi para nos reprehender da estupidez
que não pensa em nada ; da ingratidão, que nada lbe agradece ; e que
permanece sempre ignorante e imbecil; não obstant~ vivermos no meio
de prodígios os mais pasmosos; e sejamos nós mesmos os mais incom-
prehensiveis de todos elles. Evitemos d'or'ávante a reprehensão; consi-
deremos muitas vezes com reconhecimento e gratidão o espectaculo do
universo. E' isto por certo digno de nós, pois que o foi de Deus. Será
indigno da nossa admiração aquillo que o mesmo Deus admirou? Não

(1) Cmn nrn0·11a rcvereutia disponis nos. Sap. XII, 18.


.(2) O h0mo, tnntum no1Mn, f::t int.clligns te. TP,rfull. Apnlo,q. e. 48.

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DE PERSEVERANÇA. 2Hi
será capaz ue nos agradar o que foi para Deus objecto de complacencia e
alegria?
Apoz de ter concluido a sua obra descançou Deus no dia setimo.
Esta expre ssão descançoie Deus, não quer dizer que Deus cessou de
obrar, pois que todos os dias cria novos espiritos, que são as almas hu-
manas; e desde o principio do mundo não tem cessado de governar e
conservar por sua omnipotencia e sabedoria aquillo mesmo que creou .
.Meu pae, diz o Filho de Deus, não cessrJ. d'obrar até o presente dia, e eu
obro tambem incessantemente (1). O universo não é em relação a Deus,
como um palacio a respeito do architeeto que o edificou. Este, acabado
que seja, subsiste sem o soccorro do architecto, e lhe sobl'evive por es·
paços de seculos. Mas as obras de Deus não podem continuar a ser, se
a mesma vontade que ~ produziu não as conservar; creando-as, para
assim dizer, de novo a cada instante.
O descanço de Deus não é pois a cessação d'obrar, e muito menos
ainda um repouso similhante ao do obreiro depois da fadiga do trabalho.
Uma omnipotencia infinita não cansa nem se fatiga. Por jsso a expres-
são da Escriptura significa simplesmente que depois das obras do sexto
dia, cessou Deus de produzir novas especies de creaturas. Tinha elle de
alguma sorte sabido de si mesmo e do seu repouso eterno, para crear o
universo : tornou em si e no teu estado habitual; isto é, depois dos seis
dias, o seu poder cessou de tornar-se visivel pela creação de novas
obras.
E' por jsso que abençoou e santificou o setimo dia ; em memoria
d' este mysterioso repouso, em que Deus se ficou. Destinou elle parti -
colarmente para o seu culto o setimo dia da semana ; e quiz qoe fosse
para o homem um dia de descanço e acção de graças, no qual, livre dos
trabalhos mechanicos, que dissipam suas forças durante a semana, e ape-
nas lhe deixam curtos momentos para pensar em Deus, po_désse, por
occasião d'este .santo ocio, elevar a elle o espírito e o coração, meditar
em suas maravilhas, render-lhe graças por seus beneficias, expôr-lhe suas
precisões, estudar sua lei, e occupar~se, sobre tudo, do eterno repouso

(1) João V, 17.

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216 CATECISMO

a que é chamado. . e ao qual devem tirar toe.los seus pensamentos e de-


sejos (1 ).

ORAÇÃO.
O' meu Deus l que sois todo amor, eu vos dou graças por terdes
creado para mim o mundo e os mesmos Anjos, a quem encarregaes o
defender-me; não permittaes que eu faç~ cousa que seja indigna de
mim.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus; e. . em testemunho d' este amor, reza-
rei todos os dias ao Anjo da minha guarda.

(1) Sobre a obra dos seis dias, veja-se S. Thomaz, 1. 0 p. q. 65 e seguintes;


Strum., . Considerações sobre as obl'as de Deus,· Pluchc, Espectacido da natitreza;
Duguet, Obra dos seis dias; Carlos Bonnct, Contempla;ão da natureza; nossos au-
thores modernos, no que respeita ás explicações scientificas. S. Chrysostomo, Homi-
lias sobre o Genesis; S. Agostinho, do Genesis no sentido litteral; S. Gregorio Na-
zianzeno, Discursos 38 e 45; S. Gregorio de Nyssa, Mechanismo do homem; S. Am-
brosio, Hexa emeron ; S. Basilio, Hexaemeron. Esta ultima obra, sobre tudo, da qual
dizia S. Gregorio azianzeno : « Quando a tenho nas mãos, ou nos labios, transpor-
tado com ella ao throno ·do Creador, comprehendo toda a economia de suas obras;
aprendo a admirar o sublime author de todas as cousas, mais de que o houvera fei-
to contemplando-as. 11 - Ácerca dos Anjos em particular veja-se a sabia instrucção
pastoral de Mgr. de la Bastic, Bispo de S. Malo; e a Biblia de Vence, t. VII, pag.
260, e t. XII, p. 1. - O que deixamos dito não é mais que uma ligeira analyse de
todas estas obras.

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XVI.ª LIÇÃO.

Quéda do homem.

Astucia do demonio. -lmprudeucia d'Eva. - Fraqueza de


A.dão. - Bondade de Deus. - lnterro~ação dos culpados.
-8entença contra o demonlo. - Hisericordia, e justiça
para com os nossos primeiros paes. - Penitencia de
A.dão. - 8ua sepultura no monte Calvario.

Cumulados de honra e gloria, gozavam nossos primeiros paes, em o


paraizo terrestre, de tudo aquillo que póde satisfazer a creaturas racio-
naes: ao redor d'elles estava o mundo submisso a suas ordens; no por-
vir uma vida de delicias, e uma eternidade de gozos ineffaveis no Ceo;
acima d~elles um Pae que os velava e contemplava com amor.
Ah l mas não eram só estas vistas paternaes que se fitavam n'elles.
Tambem os olhava Lucifer. Este criminoso Anjo, que acaba,·a de perder
a sua felicidade, resolveu ter companheiros na sua ruína, fazendo a nos-
sos primeiros paes cumplices da sua revolta. Accommette o cruel estas
innocentes creaturas, a fim de perder, em seu tronco, a todo o genero
humano.
Pareceu-lhe a serpente idonea para a sua empreza. Apossou-se do
corpo d'este animal, o mais astuto, agil e destro de todos que o Senhor
tinha creado sobre a terra. N'esta figura, endereçou-se á mulher, da
qual conhecia o genio fraco, curioso e credulo. Primeiro a lisongeou
com o amor da liberdade, e com ar compassivo disse-lhe: « Porque vos
não permittiu Deus que comesseis indiffcrentemente de todos os fructos
d'este jardim? "
Era, em vez de repulsar esta envenenada voz, e nem mesmo a es-
cutar, para testemunhar quanlo era fiel a Deus, respondeu ao seductor:

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218 CATECISMO

« Nós temos liberdade para comer do fructo de todas as arvores do Pa-


raizo. Quanto áquella porém, que está no meio do Paraizo, prohibiu-nos
o Senhor que não comessemos, nem ainda lhe tocassemos, por mêdo que
talvez não viessemos a morrer. »
Era uma grande probabilidade de levar a cabo a tentação o começo
d'esta prática; tanto é certo que não convém jámais racior,inar com o ini-
migo da salvação! E tanto á vontade lhe sahiu esta entrada, que o ten-
tador dando mais um passo ousou dizer, como espirita de mentira, con-
tra a palavra formal de Deus, que isto não aconteceria. E levou a tanto
o atrevjmento que attribuiu a um vil ciume esta prohibição de Deu5.
«Sois bem nescios, lhe disse elle, em vos deixar assim intimidar;
Deus sabe que no dia que comerdes d'este fructo, vosws olhos se abri-
rão; e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal. ))
D'est'arte, a primeira falta que commetteu nossa mãe, foi entrar em
conversação com o tentador; a segunda, empregar os olhos no fmcto da
arvore prohibida. Em vez de o apartar da -vista como uma cousa interdi-
cta, recreou-se em olhar este perigoso objecto. O fructo era bello; pare-
cia que devia ter um gosto exquisito. As promessas do tentador eram
lisongeiras. A curiosidade, a vaidade e presumpção, trouxeram o esque-
~imento de Deus, e dissiparam o temor. A mulher, seduzida, lançou
mão do fructo prohibido, e comeu d'elle.
Regosijava-se o tentador, mas parecia-lhe que Adão não cahiria no
laço, e teria fineza bastante para se não deixar enganar tão grosseira-
mente (I ). Por isso não emprehendeu enganal-o, mas enfraquecêl-o.
Contava alcançar d'elle victoria, uma vez que podésse tentar sua compla-
cencia por valimento de sua esposa. Eva defendeu-se tão mal d'este se-
gundo ataque como do primeiro. Apresentou pois o fructo a Adão, o qual
não foi seduzido pelas promessas do demonio, mas por urna condescen-
dencia cobarde e mulheril.

(1) Cum homo in primo statu secundum intellcctum sic a Deo fuerit institu·
tus, quod nullum malnm in ipso incrat, et 01nuia inferiora superioribus subdebautur
nnllo modo decipi potuiL, ncc quoacl ca quac scivit, ncc r1noml ca quac ncseivit.
S. Tb. p. 1, <I· 94, aat. IV.

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DE PERSEVERANÇA.

Assim comeu do fructo fatal, que o àespojou da sua innocencia, e


lhe fez perder em um momento, a elle e seus de"cen entes, aquelles pri-
vilegies com que Deus o hnnrára para transmittir-lh'o , com o simples en-
cargo de se fazer a si mesmo orna pequenn violencia .
. Até aquelle momento, Adão e Eva andavam nos como foram creados.
Re\estidos como esta\am do manto da innocencia não e envergonhavam
da ua nudez. Despidos d'esta innocencia, seus olbo se abriram, e oco-
nhecimento de seu e tadu foi o primeiro effeito da sua prevaricação.
Taes foram as desgraçadas luzes que lhes trouxe seu crime: a ciencia
do bem e do mal, tam alardeada pelo tentador, não e estende a mais.
Para e cobrirem, apro ·eitaram-se como podera m da folhas da figueira;
das quaes fizeram cingidouros. Per j o não nos squeçamos jámais que
os no sos vestidos, quer sejam de linho, qner de purpura ou sêda, re-
cordam-nos o peccado e a vergonha de nossos primeiros pae . Que vai-
dade poderemos tirar d'elles?
Immediatamente ouviram a voz do Senhor, que passeava no jardim,
depois do meio dia. Estas palavras significam que o Senhor se apressou
em fazer sentir aos culpados a falta que tinham commettido, a fim de os
penetrar d'um vivo remor .. o. Bondada infinita 1 Depoi que nosso pri-
meiros pae transgrediram a lei que lhes ha ·ia dado, não cessa o Senhor
de se mostrar misericordioso para com elles ; senão que, sempre simi-
lhante a si mesmo, lembra-se de que é Pae e Medico. Como Pae, vê seu
filho aviltando sua nobreza e renunciando seu alto destino, para se rojar
no Iodo; e eis que, por sua ternura paternal, acode em soccorro do oul·
pado, te temnnhando-1 e ainda um campas ivo interes e para gradual-
mente o arrancar da so(! baheza, e restabelecêl-o DO.:> direitos que perdê-
ra. Como Medico, aco e apressurado para janto do doente, que jaz pros. .
trado no leito do soITrimento, quer elle reclame ou nã o soccorro de
sua arte. Foi assim que Deus tratou o primeiro homem. (i)
Entretanto, ouvindo a rnz do s~nhor, fugiram os culpados a escon-
der-se entre a folbagem do jardim: estranho delirio o de jclgarem poder
occultar-se aos olhos do Todo Poderoso, que em toua parte está presen-

( 1) Chrys. homil. :SYIII, i11 Gcn.

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CATECIS~IO

te! Dirieis que eram estes <lomesticos insolentes, que para fugirem da
Yista de seu amo irritado, vão esconder, por todos os cantos e. recantos
da casa, a sua- perturbação e mêdo. Assim Adão e Eva, não achando
asylo, correm a esconder-se na casa do mesmo amo que ultrajaram, en·
tre o arvoredo e a folhagem do jardim.
Apezar d' esta precaução, bem depressa os alcançou a soberana Jus-
tiça. Eil-os descobertos e em presença do Juiz. Attendamos, e ouçamos
com silencio e dôr o interrogatorio dos culpados : são nossos paes que
vão ser julgados; escutemos o que respondem os réos e a sentença pro-
nunciada, assim contra elles como contra o p~rfido instigador do crime.
Lembremo-nos primeiramente d'esta ameaça que Deus fizera a nossos
primeiros paes: «No ·dia qt::e comerdes do fructo da arvore do conheci-
mento do bem e do mal, morrereis.» (1) A morte do corpo e da alma,
tal devia ser a punição dos deliquentes. O que Deus fizera com os An-
jos rebeldes estabelecia um precedente terrivel: o genero humano mere-
cia desde !ogo ser precipitado na morte eterna, e :i justiça de Deus pare-
cia interessada em a rigorosa execução da sentença. Que fará este Deus
que é ao mesmo tempo Juiz e Pae? Como conciliará as reclamações da
sua ternura e os direitos da sua Justiça? Presenciemos este grande
processo.
O Senhor Deus chamou Adão, e lhe disse: «Adão, onde estás tu?»
Chamava-lhe pelo nome, a fim de o animar. Adão responde: «Eu ouvi a
vossa voz no jardim, ·e tive mêdo; porque estava nú, e escondi-me.» Tor-
. nou o Senhor: «Como sabes que estavas nú, senão porque comeste do
fructo prohibido ?»
Estas primeiras perguntas mostram-nos em toda a luz a inexhaurivel
clemencia do juiz. Elle podia n~o endereçar ao culpado uma só palavra;
mas pronunciar logo a sentença de morte, com que o tinha ameaçado.
Não o fez porém; antes comprime a sua justa indignação; interroga-o.
permitte-lbe que se defenda.
Que responderá o accusado? «A mulher que me déstes por compa-
nheira, respondeu Adão. offereceu-me do fructo d'esta arvore, e comi.»

(1) Geu. I, 16.

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DE PERSE\'ERANÇA. 22i
Não pôde o réo negar o crime ; mas em vez de se humilhar e recorrer
á clemencia do juiz, attribue o seu crime á mulher, que Deos lhe dera.
Parece accusar ao mesmô Deos de ser a primeira causa da sua ruina.
Similhante desculpa não era admissível. Por isso, nem o Senhor se dignou
attender-lhe. Convencido Adão de desobediencia, passa a interrogar o
outro culpado. Porque fizeste tu isto ? pergunta elle á mulher ; como se
1he dissera: tu ouves a queixa que teu marido faz contra ti, porque foste
o instrumento da tua e sua desgraça?
Eva respondeu : « A serpente me enganou, e comi do fructo. "
D'est'arte se não defende melhor que seu marido. Adão desculpa-
va-se com a mulher, esta com a serpente. Não insiste o Senhor no inter-
rogatorio ; pois o não faz para se instruir a si, que nada lhe é occulto ;
mas para dar uma prova de sua clemencia para com os culpados, e propor'-
cionar-lhe occasião de justificar-se, se lhes é possível.
Depois d'interrogados nossos primeiros paes, dirige-se ao provocador,
não para ouvir sua defesa, nem ainda interro 5al-o, mas para lhe pro-
nunciar a sentença. Sem lhe perguntar porque 'I como fez com Adão e
Eva, assim lhe diz logo : « Pois que fizeste isto, tu és maldita entre todos
os animaes e bestas dos campos; andarás de rajo sobre o ventre, e co-
merás terra todos os dias da tua vida. Porei inimizades entre ti e a mu-
lher, entre a tua descendencia e a sua. Esta descendencia te esmagará a
cabeça; e tu estenderás laços a seus pés. » (1)

(1) A historia da Serpente tentadora, por maravilhosa que seja, é inquestio-


navel. Esta nota não tem por fim explica.l-a, nem justificar Moysés; senão mostrar
a impossibilidade que o racionalismo tem de convencer de falsa a narração do Ge-
nesis. Para isso seiia preciso demonsti ar 1.0 que um ser e;;piritual, o demonio, go-
zando d'um poder cujos limites são mui largos, não póde mover os orgà.os d'uma ser-
pente de geito, que produza sons articulados; quando outro ser espiritual, a nos~a
alma, inferior em poder, serve-se com tam maravilhosa facilidade d'esta porção de
materia que lhe está unida, para articular sons e communicar-se com os seres que
a rodeam. 2.0 Quanto á maldição da serpente expressa n'estes termos: 1.0 Tn anda-
rás de rojo sobre o ventre; para negal-a seria preciso provar que antes do peecado,
todas as especies de serpentes se rajavam sobre o ventre; ou pelo menos que a es-
pecie amaldiçoada já d'antes se rajava como hoje se roja. Ora, isto é o que nunca se
ha-de provar; já porque ainda hoje ha.espccies de serpentes qnc \'oam; já porqnc é im-
22

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222 CATECISMO

Estamos impacientes por saber como foi punida a serpente e não o


demonio; o instrumento e não o author do crime? Aqui verêmos ainda
uma prova do terno amor com que Deos nos· ama.
Um pae a quem o ferro do assassino roubou seu filho, objecto de
sua ternura, começa por descarregar sua ira sobre o ferro homicida, que-
brando-o e fazendo-o em pedaços. Assim tambem obrou Deos, castiga a
serpente de que o demonio se servira em sua criminosa obra, inflingin-

possivel saLer <1ual é a especie de que se serviu o dcmonio, e sobre a qual a maldição
cahiu : 2.° Comerás lerm todos os dias da tuci vida; para negar esta segunda parte
da maldição, r~leva ainda provar que antes dv peccado todas as especiea de serpen_
tes já comiam terra, ou que ao depois, não á especie alguma de serpentes que se nu-
tram habitualmente de terra. Eetas duas }Jretenções estão desmentidas pela scien-
cia. A expressão comer terra póde tambem Pntender-se na linguagem da Escriptura'
como notaram Bullet e Bergier, no sentido de que a serpente, rojando-se para nu-
trir-~e, seus alimentos d'ordinario se misturam com a poeira e a terra. Demais, pó-
de-se dizer com os comment:ldorcs que antes do pecoodo a serpente anastava-se e
comia a terra; mas que estes habites que lhe eram naturaes converteram-se-lhe em
punição, desde que foi instrumento do clemonio ; que este modo de vh·er a faz odiosa
e despresinl, de sorte que nos causa horror; sendo que ao homem sobre tudo quiz
Dcos instruir puHinclo a serpente. Assim tambem, levar agua e lenha ao Templo do
Senhor, para o sacrificio é cousa honrosa, e não obstante era uma punição infligida
aos Gabaonitas, que recordava incessantemente sua criminosa astucia e os tornava
mais ou menos despresiveis: 3. 0 Porei inimizades entre ti e a mulher, e entre a tua
descendencia e a sua; para negar esta terceira parte ela maldição, cumpre demons-
trar 1.0 que não existe entre todos os povos um sentimento d'honor á serpente ; que
não é como a um ente malfazejo e inimigo do homem que certas nações lhe rende-
ram, e ainda rendem culto: ora o contrario é desmentido pelos factos: 2. 0 que o Filho
pol' excellencia da mulher não esmagou a cabeça da serpente ; isto é, que nosso Se-
nhor Jesu-Christo não destruiu o imperio do demonio derribando os templos e alta-
res erigido.s cm sua honra, e os não continúa a destruir todos os dias : 3. 0 que a ser-
pente nào m·ma la.r;os a seus pés; isto é, que o demonio não desencadeou contra a
humanidade santa de Nosso Senhor, no dia de sua Paixão, todas as potencias das
trevas ; que não usou todas as manhas ; nem armou quantas ciladas pôde para o fa-
zer morrer; e em fim, que o não ataca ainda todos os dias em seus ministros, etc.
Orn, esta victoria do :Filho da mulher sobre a serpente, e esta guerra da serpente
contra o Filho da mulher, são factos tam evidentes como a luz do sol ; e pois que
esta ultima parte da maldição se cumpriu, concluamos qne as outras tambem tiveram
(' continuam a ter seu cumprimento.

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DE l'EC\SEVEP.ANÇA. 223
do-lhe uma pena perpetua; para nos dar a entender, com esta imagem
sensi vel, quanto o demonio lhe é odioso; e pois que se infureceu com
tanto rigor, contra o que. foi um instrumenta, julgai que tratamento re-
cebe o mesmo author do crime. Ora, como a maldição pronunciada eon-
tra o demonio, encarcerado longe de nós, em os infernos,- não se mos-
trava a nossos olhos por aJgum effeito visível, quiz Deos por este modo
fazer-no-lo sentir pela punição da serpente, condemnada a rojar-se, e
comer o pó da terra em todos os dias da sua vida.
Pronunciada a sentença do demonio, voltou-se o juiz para nossos
primeiros paes. Mas, ó infinita misericordia 1 ainda antes de lhes inti-
mar a sentença, na mesma condemnação do tentador, fazia brilhar a seus
olhos raios de viva esperança.
A principio, dizendo que poria inimizades entre a descendencia da
mulher e a descenclencia da serpente, dava-lhes a entender que não sof-
freriam a morte no mesmo dia do peccado, como elles deviam e8perar.
Se são condemnados, terão ainda tempo para se preparar e tornar a mor-
te meritoria. Depois accrescentanclo que a descendencia da mulher esma-
garia a cabeça da serpente, significava-lhes que os males -de que eram
victimas seriam reparados.
Com estas duas asserções, deviam esperar no~sos primeiros paes,
sem inquietação, a sentença d'um juiz que se mostrava tam clemente.
Sua misericordia, em 't'erdade, tinha vencido; mas era preciso dar algu~
ma cousa á sua justiça.
O Senhor se voltou pois para a mulher ; menos culpada sim que o
demonio, mas d'alguma sorte mais culpada que o homem, (1) e füe dis-
se: Multiplicarei as tribulações, e os teus partos; (2) clar~ís ao mundo

(1) S. Th. 2 p. q. 163, art. IV.


(2) Multiplícabo acrumnas tuas, ct ccnceptus tnos. Gcn. III, 16. -Ar1ui
achamos que o qnc era uma henç.ão no estado d'innoccucia, tornou-se, pelo c•xce;:;so,
uma maldição do pcccado. Com cffeito, à snperabund:mcia de população, prodnzitla
ha 60 annos pelo desprezo da grande lei da contincncia, é hoje um facto tão eyi-
deutc, como assustador, pela sua rapida p1·ogressão. • E' uma questão d'cconomia
politica, diz a este rc;;:pcito o Padre Lacordairc, qnestào da primeira import:mcia, o
reg-ulal' o dcse11yolvi1w_.11to da populaçfw .... o;; recurso::; da natureza, por rna:rs eng-e-

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22.í CATECISMO

teus filhos com ' agudas dôres. Serás sujeita ao homem, que exercera so-
bre ti o seu dominio. » Notai a clemencia divina mesmo no rigor do cas-
tigo. Os trabalhos do parto serão compensados bem depressa por conso- ,
lações que os farão esqnecer ; e a mulher, por sua terna ·e paciente re-
signação, recuperará uma parte da sua dignidade, e suavisará a domina-
ção do homem. Restava ainda o pae do generó humano, rei do mundo
visi\'el e bem amado do seu Deos. O Senhor lhe endereça a palavra e
lhe diz: «Pois que preferiste ãs minhas ordens os conselhos de tua mu-
lher, e assim comeste do fructo prohibido, a terra, que até aqui produzia
de si mesma tudo o que precisavas, d'ora em diante será ingrata e mal-
dita. Todos os dias de tua vida exigirá de ti uma trabalhosa cultura, pa-
ra te produzir parcamente o pão que lhe tiveres confiado com o suor do
rosto; cobrir-se-ha d'espinbos e abrolhos, e por entre seus pungentes es-

nhosamente que se desenvolvam pela arte e o trabalho, não estão em proporção com
o augmento da população, abandonada qu~ seja aos seus instinctos. A Escriptura
nos diz que uma das maldições de Deos sobre a especie humana, depois do pecca-
do, foi esta: Eu multiplicarei os teus partos; e a realidade nos prova que existe de
facto Úm desequilibrio que precisa de correcçào. Corrigia este mal a escravidão e as
guerras d'exterminio da antiguidade; preveniu-o, na civilsaçào moderna, a doutrina
catholica, inspil'Rndo nas familias a reverencia, o respeito e a castidade. Que a Igre_
ja conseguia o seu fim, provam-no os economistas do seculo passado; pois a crimina-
ram de manter a popula~ão em um nivel destruidor do seu verdadeiro desenvolvi-
mento; e d'isto fizeram uma. arma para solapar a existencia das numerosas commu-
nidades votadas ao celibato. Hoje esta arma se voltou contra seus authores. As on-
das da população, cada 'Vez mais elevadas, a escacez de meios, a concorrencia e a
miseria, a.ssá.z advertem aos homens serios d'uma grande di:fficuldade social, diffi-
culdade que os mesmos bene:ficios da civilisação augmentam. D Ve}a-se as suas duas
excellentes Conferencias, 22.ª, e 23.•, sobre a Castidade.
Eis-ahi um facto para prnvar á evidencia-a quéda da natureza humana; por
quanto que será uma natureza que está em desequilíbrio comsigo mesma? Como re-
solver o problema da superabundancia de população? Será pela oppressão? pelo
morticinio·~ pela immoralidade? Nós sabemos como a superabundancia de certas es-
pecies, teudo um fim necessario, é equilibrada pela absorpçào d'outras. Mas tal su-
perabundancia na humanidade, é uma evidente desordem e uma maldição; porque
deixando de parte soluções vergonhosas, não tem correcção possível seuão pela con-
tinencia, isto é, por uma viulericia feita á natureza mesma.
(Nota do Traductor).

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DE PEUSEV~HANÇA.

trepes haverás de colher as her\'as, que serão parte do teu sustento. Tal
será tua condição até o momento em que Ci:lnçado de trabalhos e sujeito
á morte, tornarás á terra d'onde sahiste; pois que tu és pó, e volverás
ao pó'. »
Esta terrivel sentença fere o culpado em todo o seu ser; seu enten-
dimento ob~curecido, sua vontade inclinada ao mal; seu corpo flagellado
de dôres, eis d'ora'vante o que attestará assim a grandeza de seu crime,
como a severidade de Deus que o pune. Adão porém devia dar-se por
muito fel iz em ficar quite por tam pouco. Em meio d'estes males fica-lhe
o maior do bens, a esperança; isto é, o tempo e a possibilidade de re-
parar ua desgraça. N i ~to foi tratado bem melhor que os Anjos rebeldes ;
com quanto ameaçado do mesmo castigo, póde ainda reconquistar o Ceo,
o que niio poderão jámais aquelles. Ora, que são as perdas todas, uma
vez conservada a possibilidade d'alcançar o Ceo?
O Senhor Deos, que soffre no coração paternal os mesmos golpes
que sua insubornavel ju:stiça descarrega nos réos, se deu pressa em pa-
tentear a nossos primeiros paes um precioso signal de sua bondade ; pois
nas mais pequenas cou"as se mo tra a ternura mais tocante. Para lhes
poupar a vergonha de ua nudez, procurou-lhes elle mesmo pelles de fe-
ras de que lhes fez ' estidos.
1

Esta dolorosa scena do primeiro juizo de Deus teve por theatro o


me mo jardim onde se perpetrou o crime. A fim de mitigar a amargura
de sua de graça, veio ainda o Senhor consolar estas duas creaturas. A es-
te tempo rer.ebeu a prim~ira mulher de seu marido o nome d'Eva ou mãe
de todos os viventes; nome inspirado que, realçando a dignidade da mu-
lher, prophetisava a Santíssima Virgem, e reanimava a esperança no co-
ração dos culpados. Restava agora executar a sentença. O Senhor disse,
e nossos paes, sahiram tristes do Paraíso .terrestre, para nunca mais en-
trarem n'elle. Um Cherubim, armado de fulminante gladio, se colloca na
entrada, para defendêl-a ao primeiro homem e a todos os seus descen-
dentes.
Exilado d'este lugar de delicias, e reduzido á necessidade de culti-
var a terra, Adão passou a chorar seu peccado e fazer penitencia a lar-
ga vida de novecentos e trinta annos. Foi tam humilde esta s11a peniten-

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22G CATECISMO

eia, tam constante e submissa, que em vista do merito e pela graça do


Libertador que lhe fôra promettido, recuperou a amizade de seu Deus,
e morreu em seu amor. O pae do genero humano foi enterrado no mon-
te C()lrario. Quatro mil annos depois, a Cruz de Jesu-Christo foi planta-
da sobre a mesma sepultura d'Adão. Assim convinha que as primicias
da nossa vida se. collocassem onde o havia sido a origem da nossa
morte.
Vêde se não é adrniravel a relação que ha entre este lugar e a cruz
de Jesu-Christo '? Era mui justo que nosso Senhor, vindo resgatar o pri-
meiro Adão, esc_olhesse para soffrer o lugar onde elle foi inhumado; e
expiando seu peccado, assim tambem expiasse o de· seus descendentes.
Dissera Deus a Adão : tu és terra e tornarás á terra, (t) e é por isto
mesmo que Jesn-Christo veio procurai-o no lugar onde fora executada a
sentença; a fim de o livrar da maldição; e em vez d'aquellas palavras tu
és da terra e tornarás á terra, dizer-lhe : levanta-te, tu que dormes sa-
he do tunmlo. (2) D'est'arte, o nome de Calvario que significa chefe,
une em a mesma prophecia o sepulchro d'Adão ao tumulo de Jesu-Chris-
to ; e todos os sacrificios e mysterios da Lei antiga aos da Lei nova.
Eis-aqui uma das bellas harmonias com que deparamos a cada passo na
ordem da graça como da natureza, e que denunciam uma sabedoria á
qual nada escapa. (3)

(1) Gen. III, 19.


(2) Ephes. V, 14.
(3) Sobre a sepultura d' Adito, ouçamos os Padres da Igreja:
10 lugar onde a cruz de Jesu-Christo foi collocada correspondia dircctamente á
sepultura d'Adào, segundo nol-o asseguram os Judeos: e muito convinha na verda-
de que as primicias de nossa vida.fossem collocadas onde a' origem de nossa morte
o havia sido.)) Assim falia 8. Ambrosio.
Não era esta opinião particular do illustre Arcebispo de l\Iilão, pois que primei-
ramente cita o testemunho dos J udeos, entre os quaes era este sentir commum de
tempo immemorial. Elle o tinha lido em Origenes, que se funda em uma tradição
antiga e não contestada. «Ü lugar do Calvaria, diz elle, teve particular privilegio
para ser escolhido como thcatro da morte d'aquelle que devia morrer por todos os
homens; porque uma tradição, continuada até os nossos dias, ensina-nos que o corpo
do primeiro bonwrn, formado pe]a m~o d0 Dcns, havia i:<ido enterrado em o mesmo

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DF. PERSEVERANÇA. 227

ORAÇÃO.

O' meu Deus l que sois todo amor, eu vos dou graças por.não ter-
des abandonado o homem depois do peccado ; que digo, ó meu Deos,

lugar onde J esu-Christo tinha de ser crucificado.» E logo depois dá e ta razão,


igualmente adoptada pelo nosso Santo Bispo: A fim que, como todos monem em
Adão, tambem recebam todos a vida em Jesu-Christo; e o Chefe do genero huma no
tenha alli para si e sua posteridade, a resurreição e a vida pelo alvado1· que no
mesmo lugar morreu e resuscitou. Tract. in J.l1ath. Tertulliano não é menos expres-
so. ((E' o Calvario, diz clle, o lugar do Chefe; n'elle foi enterrado o primeiro ho-
mem; d'isto a tradição 11os conservou a memoria, e sobre e:;te mesmo lugar plantou
Jesu-Christo o estandarte da sua victoria.1> Mas S. Athanazio ainda é muito mais af-
:firmativo. Em um discurso sobre a Paixão e Crucifixão de Nosso Senhor exprime-se
n'estes termos: 1Jesu-Christo não .escolheu outro lugar para ser crucificado que o do
Calvario; o qual, segundo o sentir dos mais sabios d'entre os Judeos, é o lugar do
sepulchro d'Adão; pois affirmam que depois de seu anathema e condemnação, alli
norreu e se enterrou. Se assim é, quanto me não parece admiravcl a relação que
t.em este lugar com a Cruz de Jesu-Christo ! Pois era summamente conveniente qne
1\osso Senhor, vindo a buscar e chamar o primeiro Adão, escolhes8e para soffrer o
lugar onde fora inhumado; e expiando o peccado d'elle, tarnbem expiasse o de to-
da a sua prole. Dissera Deus a Adão: t,u, ,és terra e tornarás á terra; é por isso
mesmo que .Jesu-Christo o veio buscar no mesmo lugar onde a sentença foi executa-
da, a fim de que o livrasse da maldição; e, em lugar d'aquellas palavras: tu és ter-
ra · e tornarás á terra; dizer-lhe ((levanta-te, tu que dormes; e salie do tumulo, tu, que
estás morto, J esu-Christo te esclarecerá. • Em tempo de S. Basílio, esta tradição era
creuça universal entre os Christãos ; snpposto que ella mais se conservasse na me-
moria dos homens, que em seus escriptos; todavia, S. Epiphanio, natural de Pales-
tina, affirma ter visto liyros que o attestam. Haeres. XLV, n.º 5.
Uma opinião, fundada em tam respeitaveis monumentos, deve ser acceite a cora-
ções christãos; e admira tanto mais que S. Jeronyrho a combatesse. Finalmente, apoz
de ter discutido doutamente estas objecções, conclue um escriptor moderno com S.
CyrÍllo de Jerusalem, e Grocio nos seus cornrnentarios do Evangelho de S. Matheus,
que o nome de Calvaria, em Cyriaco Golcrotha que sig nifi ca Chefe, unia em uma
mesma prophecia o sepulchro de Adão ao tumulo de Jesu-Christo, e todos os sacri-
ficios e mysterios da Lei antiga aos da L ei noYa. Diiguet, explic. ela paixão, le'IJanta-
mento da cru~, cap. Y. Secc. VI; p. 137. Bibliotheca dos Padres, por M. Guillon, t.•
IX, p. 283.

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228 CATECISMO

por nos terdes promettido um Redemptor que nos restitue com supera-
bundancia os bens que perderamos.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus, e, em testemunho d'este amor, repul-
sarei a tentação logo que me perceber accommettido .


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- . /

XVII.ª LIÇÃO.

Concordancia da Justica e llisericordia Divina, em a Punição


e Transmissão do Peccado Original.

O rei das Indias. - Peccado ori;-inal em nossos primeiro•


pae11, e em nó•. - Seus eft'eito!!I e tranMmissão. - 4'osO~a e
Hi•eri~ordla para com nos110• primeiros paes. - Concor-
dancia da Justi~a e Hi'5erlcordia no my!literio da lnear-
nação e Paixão. - Doutrina de s. Leão e s. Tbomaz. - Ne-
ces8idade da f'é em o Redemptor.

Em recomp·ensa da attenção que prestastes ás lições precedentes,


vamos começar esta por uma historia.
Havia um rei das lnd.ias que um certo dia sahiu á caça com os prin-
cipaes da sua côrte. Chegados ao ponto de reunião, deixou o príncipe
a sua comitiva, e embrenhou-se por um espêsso bosque. Não tinha anda-
do muito quando ouviu a distancia uma acalorada conversação, e quiz sa-
ber sobre que versava. Chegou-se pé ante pé e escondeu-se por detraz
d'uma enorme palmeira. Era um carvoeiro e mais sua· mulher, que se
queixavam amargamente das miserias da vida; mórmente a mulher mur-
murava de Deus alto e bom som; e accusava nossos primeiros paes di-
zendo: ah! que se eu estivesse no lugar d'Eva nunca desobedeceria por
amor da gula e da curiosidade. (t)

(1) A não ser o peccado original (reparemos bem n'isto,) nasceriamos todos no
mesmo estado em que foi creado o nosso primeiro pae ; mas não em êstado melhor
que o d'elle. Pelo que, tambem seriamos postos á prova; tambem poderiamos perder
a graça e cahir no estado de peccado e morte. S. Thomaz, examinando ex professo
a questão : se os meninos nascidos em estado de innocencia teriam sido confirmados

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__....__
2~0 CATECIS~IO

Deixou o principe dizer, sem os interromper. Quando acabaram,


approximou-se, e fingindo nada ter ouvido disse-lhe assim: Sois bem des-
graçados, meus filhos; mas se quereis, melhor1rei a vossa sorte; não
tendes mais que acompanhar-me.
O ar, a ernphase, a boa presença do descor1heciclo, facilmente per-
suadiram os dous carvoeiros. E' tam facil persuadir-nos quando nos pro-
rnettem felicidades l Vinde comigo, lhe disse o príncipe; e sem mais demo-
ra, deixando seu trabalho e instrumentos, pozerarn-se a caminho com elle.
Depois de terem andado muito, cheg~ram á entrada d'um bosque ...
Alli estavam reunidos os officiaes e comitiva do principe. Sobe o monar-
cha para a sua carruagem ; e, com grande pasmo de todos, recebe den-
tro do mesmo coche os seus novos protegidos. Chegados a palacio, man-
dou-lhes dar vestidos e quartos convenientes á sua nova posição ; pôz ás
suas ordens numerosos creados; todos se esmeravam em agradar-lhes,
vendo n'elles os validos de seu amo.

em justiça, responde formalmente que não. Além d'um texto de S. Agostinho que
assim o inculca, dá elle esta razão : E' evidente que os meninos cm seu nascimento
não teriam mais perfeição que seus peas em o estado da geração. Ora, seus paes em
todo o tempo da geração, não teriam sido cQnfinnados em justiça ; e a prova é, que o
homem não é confirmado n'ella senão pela clara vista de Deus, o que não póde ser
na vida animal, em que só tem lugar a geração. Não podeis 'l:êr a miuha face, diz o
Senhor a Moysés: po1·que nenhum homem rne poderá vêr e vfrer. Exod. XXXIII, 20.
Logo tambem os meninos não nasceriam com esta confirmação. « Confirmatur homo
in justitia pei· apertam Dei visionem, quam cum pa1·entes, quamdiu generassent, non
habuissent, nec etiam in statu innocentiae nati, in jufltitia confirmati fuissent. • Sumrn.
p. 1. q. 100, art, II. Cumpre lembrar-nos d'isto; porque muitas vezes imaginamos
que, se nosso primeiro pae houvera sido fiel, nada teriamas que temer nem que fazer.
Mas a verdade é que, se este commum avoengo se conservasse fiel, nossos particu_
lares avôs póde ser o não fizessem ; e por conse quencia gerar-nos-hiam em peccado
original. Em fim, se todos nossos paes houveram sido fieis, poderiamos nós não o ser
e cahir em estado de peccado e morte. E n'este caso poderiamos contar com a mise-
riCordia que houve com nosso primeiro pae?
Pensemos bem n'isto ; e em lugar de murmurar, teremos que bem dizer. Si ali-
quis ex posteris Adam peccasset eo non peccante, morcretur quidem proptcr suum
peccatum a.ctuale, sicut Adam mortuus fnit, sed posteri ejus morerentur proter pec-
catum originale. •D. Th. q. 5. de ·Malo, art.-IV, ad 8. Tom. 8 ele suas obras, p. 28:).
Veja- se M. Rorhbacher. Da _qraçrl e da nafw'P'.W .

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DE PERSE\"ERANÇA. 231

Assim se passaram alguns dias em regalos e delicias ; e eis o car-


voeiro e sua mulher a dar-se o parabem e abençoar o príncipe. Porém,
um dia, chamou-os este e disse-lhes: bem sabei::; de que estado de mise-
ria vos tirei; agora sois felizes. Este bem-estar que desfructaes, está em
vossas mãos possuil-o sempre ; e se fordes fie.is ás minhas ordens, até
vossos mesmos filhos participarão d' esta fortuna. Uma só condição exijo
pelos favores que vos faço: comereis de todos os alimentos que cada dia
vos serão dado~ ; um sómente exceptuo, que será posto no meio da mesa,
em um rico vaso d'ouro, eng~stado de pedrarias e perfeitamente fechado.
O dia que lhe tocardes morrereis. Não vos esqueça; de vossa fidelidade
pende a vossa sorte, e de vossos filhos.
Dito isto, retirou-se o rei ; e eis os carvoeiros a exaltar a bondade
d'um principe que lhes dava a elles e seus filhos tam grandes bens de tam
barato preço.
Chegada a hora do jantar apparece o vaso d'onro. A sua fórma
elegante, as gravuras que o adornam, as perolas que o enriquecem, le-
vam os olhos dos dous carvoeiros que, em fim, estavam sós á mesa. So-
bre tudo a mulher não podia desprezar a vista de tam brilbante cousa;
mas, respeitando as ordens do príncipe, não passava d'aqui. No dia se-
guinte, trazem o vaso outra vez para a mesa. Quanto mais o olham, mais
bello lhes parece; nasce 'Uffi desejo no coração da nova Eva; o qual to-
davia não ousa manifestar.
Nos dias seguintes, repetia-se o espectaculo e com elle o desejo. Em
fim, passados dous mezes, ,venceu a curiosidade. A mulber disse para
seu marido: Desde que este vaso se pôz na mesa, nada me sabe do que
como. Tomara só vêr o que está dentro; que não é para comer d'elle.
Não te lembres d'isso, lhe disse o marido; o rei ·explicou-se bem : No dia
que lhe tocassemos morreriamos. Mas, torna a mulher, nós podemos to-
car-lhe sem que ninguem perceba. Eu vou só levantar um bocadinho da
tampa, espreitarei um instante, e com isto ficarei satisfeita. Não teve o
marido a coragem de descontentar sua esposa. Então espera, lhe diz el-
le, eu ajudo-te, para não ser tam grande o perigo.
A mulher, toda alvoroçada, estende o pesco00 para espreitar, em
quanto o marido levanta muito devagarinho a cobertura fatal do raso.

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232 CATECISMO:

Mas, ó desgraça 1 Um ratinho salta pela abertura ; a mulher aterrada dá


um grito, o marido deixa cahir a tampa, e o prísioneiro desapparece.
O rei, que estava n'uma camara contigua, acode ao ruido, e apanha
os réos em flagrante. E' assim, lhes diz com ar sevéro, que respeitaes mi-
nhas ordens 1 Ides soffrer o castigo com qne vos ameacei. E dize~do is-
to ordena que sejam justiçados. A este momento chegou o filho unico
do rei ; o qual, lançando·se aos pés de seu pae, exclama : Perdoai-lhes,
perdoai-lhes, meu pae; se é preciso uma viclima á vosscr justiça, eis-me
aqui ; eu vos offereço a vida. Acceita o rei a mediação de seu filho e o
condemna a morrer em lugar dos dois réos. E' conduzido ao patíbulo,
morre; e, por attenção a elle conservam os dois criminosos a vida e re-
cebem todos os meios de recuperar, para si e seus filhos, as vantagens de
que a si mesmos se privaram por sua culpa.
Sómente quero, lhes diz o rei, que não entreis de novo nos bens
que perdestes senão aproveitando-vos dos meios que meu bem amado
filho vos grangeou por sua morte. Esta a prova a que vos submetto. Ide
exercêl-a para longe do meu palacio; tomai vossos andrajos e o caminho
de vossa floresta. Se fordes fieis, e amardes a meu filho, tornar-vos-hei
a dar os bens que perdestes ; e ainda muito maiores. Todos os vossos fi-
lhos, até á ultima geração, poderão gozar d' elles depois de vós ; quanto
ao mais, de nada carecereis nem para o corpo nem para a alma. Se hou-
verdes necessidade de alguma cousa, pedi, e sereis satisfeitos.
Agora perguntaremos, ba no proceder d'este principe alguma som-
bra de crueldade ou injustiça? Pelo contrario, não vêmos em tudo isto
justiça e misericordia ?
Pois o que até aqui suppunbamos ter-se passado nas Indias, passou-
se de facto. no paraiso terrestre.
O proceder d'este rei representa-nos a todos os respeitos o mesmo
proceder. de Deos.
t. º Antes de · serem tirados do nada, eram nossos primeiros paes
muito menos que carvoeiros; porque eram nada ; e não tinham direito a
nada. Dando-lhes a existencia, bem podia Deos creal-os em um estado
inferior áquelle em q~1e estavam quando sahiram de suas mãos.
2. 0 O preceito que Deos lhes impôz depois de os ter cumulado de

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DE PERSEVERANÇA.

gloria e felicidade, sendo facil de cumprir-se, é de summa importancia ;


pois que da fidelidade de nossos primeiros paes tambem está pendente a
de sua prole.
' 3. º Este preceito é muito claro: no dia que comerdes do fructo da
arvore do conhecimento do bern e do mal, morrereis. Aqui não ba equi-
voco nem ambiguidade. Demais, Adão e Eva tinham todas as necessarias
graças para o cumprirem; e não podiam pretext~r -esquecimento ou igno-
rancia ; lembravam-se tam bem d'este preceito, do que significava e das
terríveis çonsequencias de sua infracção, que até a mulher disse á ser-
pente : No dia que comermos d' este fructo morreremos.
4. 0 E' de summa justiça. Deos tinha sem nenhuma duvida o direi-
to d'impôr esta prohibição a creaturas que tirára do nada, e fazer depen-
der de sua fidelidade a conservação, assim para elles como para nós, dos
privilegias com que os tinha enriquecido. Deos é senhor dos seus dons,
e assim os póde dar co::n as condições que quizer. Qual de nós julgará
dura a condição que impôz a nossos primeiros paes? Se vieram a preva-
ricar, não obstante as muitas razões e meios de perseNerarem, de quem
deverão queixar-se pelo castigo qne lhes é infligido?
5. 0 Executando as ameaças que lhes fizera, Deos continúa a ser per-
feitamente justo. Com effeito, qaaes foram as consequencias do peccado
original em nossos primeiros paes? Ellas dizem respeito á vida presen-
te e á futura. Na vida presente amas referem-se ao corpo, outras á al-
ma. ':1. º quanto ao corpo, os effeitos do peccado original em nossos pri-
meiros paes foram a morte e as miserias da vida. 2. 0 quanto ã alma, a
perda da gra~a santificante, isto é, a decadencia do estado sobrenatural e
do direito de vêr a Deos ém sua essencia, e poder merecêl-o; a concu-
piseencia, ·isto é, uma violenta inclinação ao mal; e a ignorancia, que
lhe obscurece as verdades de que antes tinham um claro conhecimento.
Em a vida futura, os effeitos do peccado original foram para nossos
primeiros paes o inferno, isto é, a pena de damno, que consiste na pri-
vação eterna de Deos ; . e a pena de sentido, que é o fogo eterno. Não
nos esqueçamos que em Adão e Eva, culpados pelo seu livre arbítrio e
de plena vontade, o peccado que chamamos original foi um peccado actual.
E' por isso que lhes mereceu os supplicios do inferno. Tal o ensina algre-

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23'1 CATECISMO

ja Catholica, orgão infalliYel da verdade. ((Se alguem, diz o Santo Conci-


. lio de Trento, não confessar que o primeiro homem, Adão, transgredindo
o preceito de Deos no paraiso terrestre, nâo perdeu logo a santidade e
justiça em que tinha sido creado, e por esta prevaricação incorreu na có-
lera e indignação de Deos, e por isso mesmo na morte, com que Deos o
tinha antes ameaçado ; e, com a morte, no captiveiro e poder d'aquelle
que te\'e depois o imperio da morte, isto é, do demonio ; e em fim, que
a pessoa inteira d'Adão não foi mudada e decahida em seu corpo, e em
sua alma, pelo effeito d'esta desobediencia, seja anathematizado. » ('I)
Vós pois, ó meu Deos, fost~s justo; perfeitamente justo em a punição
de nossos primeiros paes ; e não o sois menos a respeito de sua poste-
ridade.
Com effcito, quanto a nós, as consequencias do peccado original são
n'este mundo, no corpo, a sujeição aos soffrimentos e á morte; na alma,
a privação da graça santificante, e por consequencia do direito á beilla-
ventnrança eterna; a ignorancia do entendimento, e a conc.upiscencia da
vontade. Ouçamos ainda o oraculo da mesma verdade. «Se alguem pre-
tender, diz o Santo Concilio de Trento, que o peccado d'Adão não foi no-
civo senão a elle, e não á sua posteridade ; e que a justiça e a santidade
que recebêra de Deos não se perdêra senão para elle só, e não para nós
ao mesmo tempo; ou que, polluido pelo peccado da desobediencia, não
trammittiu ao genero humano senão as penas do corpo, e não o peccado
mesmo, que é a morte da alma, seja .anathematizado; porque contradiz
o Apostolo que ensina: que o peccado entrou no mundo por um só ho-
mem. e a morte passou a todos os homens por aquelle ern quem todos
peccamos. » (2) ·
Taes são os males que nos causa n'esta viela o peccado original. Ora,
os bens contrarios, isto é, a graça santificante, a união sobrenatural com
Deus, o direito á visão intuitiva no Ceo , o imperio absoluto sobre nossas
paixões, a isenção das dôres e da morte, não nos eram devidas; mas eram
sim outros tantos dons gratuitos da pura liberalidade do Creador. Tal é

(1) Scss. V, can. I.


(2) Ibir1. ean. 2.

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DE PEHSEVEBANÇA.

ainda a theologia catholica. S. Agostinho em particular, este tam habii e


seguro interprete da razão e da fé, assim o ensina fo1~malmente ; e toda
a Igreja applaudiu a condemnação de Baiu que ousára sustentar o con-
trario. (i)
Quanto ao effcito do peccado original em outra vida, em relação a
nós, é de fé que nos priva do Ceo, isto é, da visão intuitiva de Deos ; a
menos que não seja lavado pelo haptismo. A palavra de Nosso Senhor é
formal n'estes termos : Todo aquelle que não fôr regenerado pela agua e
o Espírito Santo, não póde entrar no reino dos Ceos.» (2)
Logo tambecn a nos o re peito D os foi ju to na punição do pecca-
do odginal. E de fa to, não é mais contrario á ju tiça divina que á ju -
liça tmmana o envolver os filhos na condemnação de seus paes, de po-
jando-os dos privilegias gratuitos de que teriam gozado se estes não fos-
sem criminosos.
Mas a priração do Ceo acaso traz comsigo a pena do inferno, por
tal arte qne o filho d'Adão, que morre com o só peccado original seja
necessariamente condemnado ao supplicio eterno? Sem entrar minuciosa-
mente pelas opiniões differentes sobre tal 2ssumpto, (a) citaremos aspa- •
lavras d'um dos mais celebres apologistas da Religii!o. Em Adão e Eva,
diz Bergier, e peccado original foi de propria vontade, e commettido com
reflexão; por isso é que os fez merecedores dos suppJicios eternos. Não
(1) Bergier, Tratadc da Religião, liv. III, 105. Agost. de Liber. Arbitr. lib
III, e. 20; Retract. lib. I, e, 9: de Bono persey. e. 11 e 12. Baius, Prop. 24, 55. 78:
- Primus creatus cst homo immortalis, quocl ei praestabatur de ligno vitae, non de
conditione natnrac.... mortalis ergo erat conditione corporis animalis, immortalis a
beneficio Crratoris. Aug. de Gen. ad Litt. e. 25 .
.Marúfestum est quod illa subjectio corporis ad animam ct inferiorum virium
ad rationem, non erat naturalis ; alioquin post peccatum mansisset, cum etiam in
daemonibus dona natura.lia post pcccatum permanserint. Unde manifesturn est qnod
ct illa prima subjectio qna ratio Deo subdebatur, non erat solum secundum naturam,
sed sccnndum supernaturale donum gratiac. D. T!i. Smnm. p. I, q. 95, art. 1.
A mesma verdade se estabelece pela condcmnação de muitas proposições de
Baio, entre outras as 2, 5, 26, 34, 65, 78, 79.
(2) J oào III, 5.
(3) F<-tfa-se M;;r. Boll\'Íer, t IV, 51U. - 'l\ur.JJcm o que dizemos ao expliear o
X. a:rtigo do 1:-:iymbolo.

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236 CATECISMO

succede o mesmo a nosso respeito. Póde-se dizer que Deos não condem-
na ao inferno as almas que não são culpadas senão d'este só peccado. E'
permittido crêr, com S. Thomaz, que Deos os priva sómente da Bema-
venturança sobrenatural, a que não teem nenhum direito. A Faculdade
de theologia de Paris, na censura de Emitia, declarou que este senti-
mento não se póde condemnar. » (t) Accrescenlaremos que, supposto não
possamos resolver com certeza esta grave questão, nem por isso é me-
nos certo que Deus não fará injustiça a ninguem, e suas acções nunca já-
mais poderão ser objecto d'alguma accnsação razoavel.
Qualquer que seja a explicação que o theologo catholico dê n'esta
materia, é sem duvida um mysterio a condemnação de todos em a pes-
soa e pela culpa d'um só ; mas este mystedo é tam certo, como inaba-
lavel.
Sim é desgraçadamente certo que o homem nasce decahido. Ora,
elle não está decahido senão porque cahiu, e não cahiu senão porque é
culpado. Todos os generos de provas se reunem para confundir os ím-
pios de nossos dias, que ousam negar a transmissão do peccado original.
A Biblia, este livro por excellencia, a cuja veracidade as sciencias
modernas rendem á porfia notorias homenagens, proclama incessante-
mente este terrivel mysterio. Quem está isento de nodoa? Exclama, do
seio da gentilidade, o Patriarcha do soffrimento. Ninguem, nem mesmo
o infante d'um dia. (2) E o Rei Propheta : Eu fui concebido na iniquida-
de e formado em peccado no ventre materno. (3) E -o mais sublime inter-
prete dos conselhos de Deos, o grande Apostolo diz : Assim como por um
homem entrou o peccado no mundo, e a morte pelo peccado, assim a mor-
te passou a todos os homens por aquelle em quem todas peccaram ... E da
mesma sorte que a condemnação é para todos pelo peccado d'um só, assim
a justificação e vida são para todos pela justiça d_'um só que é Jesu-
Christo. ( ii)

(1) Tratado da Rel1'gião liv. III, 104. Veja-se tambem - Piedosas recordações
das almas do Purgatorio, por l\Igr. Devie, Bispo de Belley, p. 14·
(2) Job. XIV, 4, segundo os Setenta.
(3) Psal. 1, 7.
(4) Rom. V, 12, e 18.

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DE PEl\SE\'ERANÇ.-\. 237
A esta voz tam magestosa ajuntam-se as de todos os grandes ho-
mens, glcria dos seculos christãos, Athanazio, Agostinho, Chrysostomo,
Thomaz d' Aquino. Podemos endereçar aos nossos ímpios modernos esta
interpellação de Cl8mente d' Alexandria aos hereges do seu tempo: «Se-
gundo a Escriptura, ninguem é isento de macula, ainda mesmo não vi-
vendo mais que um dia; que n0s digam pois onde peccou um menino re-
cemnascido, ou como cahiu na maldição d' Adão quem não praticou ainda
acção alguma.>> ('l) 1.tBaptizam-se os meninos, accrescenta o ceiebre Ori-
genes, para lhes perdoar os peccados. Que peccados? Em que tempo os
commetteram ~1 Que razão póde ha\'er para baptizar os meninos, a não
ser o sentido cl' esta passagem : Ninguem está isento da macula, ainda
quando não vivesse mais que um dia! Porque o baptismo apaga a
macula do nascimento, por iss.o é que os meninos se baptizam. » (2)
Resumindo esta importante tradição, a Igreja catbolica fere de ana-
thema todo aqnelle que ousar negar a transmissão do peccado n toda a pos-
teridade d'Adão. (3) Será preciso evocar dos tumulos as gerações pagãs,
ou chamar em testemunho os povos ainda jacentes nas sombras da mor-
te? · Do fundo dos sepulchros e do meb das selvas duas vozes se levan-
tam e gritam: Sim, nós nascemos culpados. «Ü vrimeiro homem, e a
primeira mnllter, dizem os Persas, a prindpio eram puros e submissos
a Ormuzd, seu author. Ahriman os viu e teve inveja de sua felicidade.
Chegou-se a elles na fórma d'uma cobra, offereceu-lhes fructos, e lhes
persuadiu que era ellc o author do homem, dgs animaes, das plantas e
d'este formoso universo que habitam. Crêram nelle; e para logo Ahri-
man se assenhoreou d'elles. Sua natureza corrompeu-se, e esta corrupção
infectou a toda a sua posteridade.» (~,)
Nada h2 mais celebre nas tradições Mexicanas que a mãe de nossa
carne, a mulher da serpente, decahida de seu primeiro estado de foli-
cidade e innocencia. (5)

(1) Strorn. lib. III, e. 16.


(2) Homil. XIV in Luc.
(3) Cone, Trid. sess. V.
(4) Vendidacl - Sade, p. 305 - 428.
(5) l\I. de I-Inmholdt; Vista das Cordilh. t. 1.", p. 237.

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238 CATEC1Sl\IO

Que significam os ritos expiatorios, para purificar o infante ao entrar


na vida, que deparamos entre todos os povos? Esta ceremonia fazia-se
ordinariamente no mesmo dia em que se punha o nom·j ao menino. Este
dia, entre os romanos, era o nono para os rapazes, e o oitavo para as
raparigas; (1) chamavam-lbe lustricus, por causa da agua lustral d6~ que
faziam uso para purificar o recemnascido. (2) Iguaes ritos se encontram
em todas as nações. Este facto é de tal sorte evidente, que o ímpio Vol-
taire não pôde deixar de o confessar. <<Notaremos, diz elle, que os Per-
sas tiveram sempre um baptismo. O baptismo é commum a todas as an- .
tigas nações do Oriente.» (3) E em outra parte diz : «A. quéd a do ho-
mem degenerado é o fundamento da theologia de todas as nações anti-
gas.» (4)
E demais, sem recorrer a todas estas authoridades estranhas, não
temos por ventura em nós mesmos a prova de nossa qoéda ? Pois que
é de onde nasce esta inconcebível mistura de desejos bons e inclinações
más, de grandeza e baixeza, de verdades e erros, de virtude e vicio, que
desde a infancia se manifestam em nós? Que são estes dous homens ini-
migos, que trazemos em nós mesmos, e fazem de nossa vida uma guar-
ra continua? Eis-aqui o que não haveis de negar, é o que nós somos to-.
dos; e seria por certo bem digno de lastima :iquelle, que não reconhecesse
que o homem, tal como está hoje, inclinado ao mal desde o berço, não
é senão uma grande ruina.
Isto é verdade; mas emfim, como é que o crime d'um só homem
pôde infectar toda a sua prole? Como podem os filhos carregar com a
pena de seus paes culpados, sem que n'isto haja uma injustiça? E' o qne
pergunta wm maior instancia do que nuni:a a razão soberba do nosso se-
culo. Para responder, traremos primeiramente á memoria as explicações
que deixamos feitas ácerea dos effeitos do peccado original ; depois des-

(1) Macrob. Satur. lib. 1. 0


(2) Festus, de Verb. signif.
(3) Observações sobre a hist. ger. §. IX, p. 41.
(4) Questão sobre a Encyclopedia. Veja-se tambem Zend-Aveste, lib. II; Virgis
2Eneid. lib. VI, V - 426 - 429. Creutzer, Religião da Antigitidade.

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. 239

cendo ao fundo dos mysterios da natureza humana, diremos com um phi-


losopho pagão: ((Ha seres collectiros que podem ser culpados de certos
crimes, tanto como os seres individnaes. Um estado por exemplo, é uma
mesma cousa contirrnacla, um todo, similhante a um animal que é sempre
o mesmo, e cuja identidade não se altera com os annos. O Estado pois
sendo um, em quanto que a associar;ão mantém a unidade, o merito e a
culpa, a recompensa e o castigo, para tudo aquillo que é feito em com-
mnm, lhe são distribuídos com justiça, como se fosse um só homem in-
dividual. Mas, se o Estado deve ser considerado debaixo d'estes pontos de
vista, o mesmo de,·e succeder a uma familia que provém d 'nma origem
commum, da qual conserva não sei que força occulta, que communicação·
d'essencia e de qualidades, que se estendem a todos os individuas ela mes-
ma linhagem. Os seres produzidos por via de geraçTio nada se parecem
com as producçõcs da arte. A respeito d'estas. logo que o obreiro as
acaba, ficam separadas da mão de seu author, e já lhe não pertencem:
são feitas sim por elle, mas não d'elle. Ao contrario, o que é gcrad o
provém da mesma substancia do ser gerador, de tal sorte que conserva
d' elle alguma cousa que é mui justamente punida ou recompensada por
causa d'elle ; porque esta tal coa3a é elle. » ( t) Tal é evidentemente a con-
dição do genero humano. «Que somos nós, diz S. Agostinho, que são to-
dos os homens? Senão uma prolongaçãn d' Adão, um só e mesmo ho-
mem perpetuando-se atravez dos seculos. com as suas qualidades e vi-
cias? Omnes nos unus Adam.>> Eis-aqui porque o mais profundo inter-
prete dos mysterios ua natureza e da graça, o Apostolo S. Paulo, não vê
senão dous homens em todos os homens : o primeiro Adão, do .qual, pe-
lo nascimento corporeo, somos todos a prolongação e reproducção pollui-
da; e o segundo Adão, Nosso Senhor Jesu-Ctiristo, do qu ai, pelo nasci-
mento espiritual, todos devemos ser a prolonga~3o, e reproducção san-
tificada. (2)
Estas consider3ções, que dão alguns clorõos de luz a este profundo
dogma, são idoneas para satisfazer um espirito recto e reflectido; bem

(1) Plutn.rcho. Observações sobre a justiça dfr. p. 48 - 50.


(2) Rom. V. - t.a Cor. XV. -Eph. IV.

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CATL\CISMO

como tapam a bôca aos ladradores vulgares, mostrando que o objecto de


seus ataques nada tem em si contrario á razão.
Por isso, nós o repetimos, d'um lado é certo o terrível mysterio da
transmissão do peccado original: d'outro lado, é inconcusso; por quatnto
provado que elle é certo, por isso que Deus é infinitamente bom, juso e,
santo, necessariamente havemos de concluir que a transmissão d'este pe,c- .
cado original não é nem póde ser contraria a uma bondade infinita. Em
summa, Deus é justo e somos punidos, eis-aqui o que é indispensavel
que saibamos; o resto não é mais que uma pura curiosidade. Não tema-
mos nada: Deus nunca fez nem fará injustiça a ninguem. Esta é que é
a grande resposta a todas as difficnldades que o nosso espírito, ou o dos
outros, possa suscitar sobre este mysterio, ou qualquer outro dos que se
encontram na religião. Gloriamo-nos de o dizer, esta é lambem a respos_
ta e o conselho do grande Mestre que nos serve de guia. <tAinda quando
eu não possa, diz Santo Agostinho, refutar todos os argumentos dos he-
rege~, conheço em todo caso que devemos estar pelo que a Escriptura nos
ensina claramente, a saber; que ninguem póde alcançar a vida e a salvação
sem estar .unido a Jesu-Christo, e que Deus não póde condemnar nin_
guem injustamente, nem privai-o injustamente da salvação e da vida.» (i)
Logo Deus foi justo, perfeitamente ju~to, em punir Adão e Eva, e
em nos envolver a todos em seu castigo. O que ha todavia bem tocante
é vêr n'este procedimento, ao parecer tam sevéro, uma bondade e mise-
ricordia infinita.
Com effeito, t .º em lugar de fazer morrer nossos primeiros paes no
mesmo dia do peccado, como tinba direito, Deus lhe concedeu o tempo e
os meios de fazer penitencia.
2.º Para os vingar do demo~io, promette á mulher que ella um dia
lhe esmagará a cabeça; que lhe dará todos os bens que perderam; qne vi-
rão a ser realmente similhantes a elle~ a fim de confunàir o orgulho de
Satanaz, cumprindo em toda a sua extensão a fementida promessa que lhe
fizera dizendo : vós sereis como deuses.
3. º Esta redempç.ão será de tal sorte abundante, tam superiores aos

(1) De Pcec:at. mcrit. et rcmiss. lib. llJ, e. ·4, 11. 7.

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DE PERSEVERANÇA.

males occasionados pela culpa original, os bens que por ella hrto de vir ao
genero humano, que a Igreja não receia exclamar fallando do peccado
d'Adão: Ditosa falta ! O' peccado verdadeiramrmte necessario ! pois que
nos mereceu receber um tal Redemptor. ('1)
4. º Depois do momento de sua quéda, Deus não terá outro pensa-
mento que o de reparai-a; salvar o homem será seu unico desígnio, o cen-
tro a que tenderão tod~s as suas tenções, o fim de todas as suas obras.
Cansa pasmo e assombro a-inconcebivel facilidade e prodigiosa mi-
sericordia com que Deus perdôa ao pae do genero humano. Procuremos
lançar alguma luz em este abysmo de sabedoria e bondade : o emprego
mais nobre da razão é conduzir o homem á fé.
«O homem tornou-se pelo peccado inimigo de Deus, e é preciso que
o odio reciproco de Deus e do homem se converta em mutuo amor, a
fim que Deus e o homem possam unir-se de DO\'O em verdadeira socieda-
de. Mas o homem não póde reconciliar-se com Deus sem ser perdoado;
nem Deus com o homem, sem ser satisfeito. São estas duas relações ne-
cessarias, que derivam do Ente infinitamente justo e bom.
«Mas Deus sempre infinitamente justo, não póde ceder dos direitos
da justiç.a; logo punirá o homem com um rigor infinito. Por outra parte,
sendo Deus infinitamente bom, e querendo salvar o homem, ha de perdoar-
lhe com uma bondade infinita. Como conciliar estas duas cousas? Punir
o homem com um rigor infinito, é fazêl-o morrer em meio d"horriveis tor-
mentos; e perdoar-lhe com uma bondade infinita, é conserval-o incolume
com todos os seus privilegias. Como poderá o mesmo Deus, por mais po-
deroso que seja, destruir e conservar o homem ao mesmo tempo?
«Pois elle o póde; sim, pócle destruir um homem em lugar de todos
os homens; conservar a todos os homens em consideração d'um homem
destruído. Como a culpa d'um só fez todos os homens peccadores, da mes-
1na sorte a justiça d'um só justifica a todos. (2) A ju5t iça humana dá-nos
a idéa e o exemplo d'uma compensação similhante. >> (3)

(1) Officio de Sabbado Santo.


°{2) Rom. V, 18, 19.
(3) Yeja-se M. de Bonald, Tlieoria do poder, p. 147 e seguintes.

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242 CATF.CISMO

Seja-nos testemunha, entre mil outros, este ta m celebre facto da his_


toria de França. Em i13l7 Eduardo III, rei d'lnglaterra, punha cêr-co á
cidade de Calais. Irritado pela teimosa resistencia d os cercados, apertou
com elles tanto que se riram reduzidos a pedir a paz. Eduardo recusou
conceder-lh'a sem que lhe entregassem seis dos principaes habitantes pa-
ra d'elles fazer o que quizesse.
Eustachio de Saint-Pierre offereceu-se para ser uma das seis victi-
mas; a seu exemplo se acharam outros cinco, que prehencheram o nu-
m~ro, e foram com a corda ao pescoço e vestidos d e sacco, levar as cha-
ves da cidade ao principe inglez. O orgulhoso conquistador queria abso-
lutamente mandai-os matar. Já tinha .o algoz para a execução, e foram
precisas as lagrimas e reiterados rogos de sua esposa para os salvar da
rna cólera.
A este exemplo poderiamas juntar muitos; e é por certo uma gran-
de misericordia, quando uma familia, um povo, o genero humano todo, é cul-
pado e digno.de morte, não fazer morrer por todos mais que um só homem.
«E' o que Deus fez. Destruiu um homem em lugar de todos os ho-
mens: este homem destruido em lugar de todos será pois infinitamente
odiado de Deus; pois que pesará sobre elle o crime infinito 4e todos os
homens. Ao mesmo tempo este homem, ao merilo do qual todos os homens .
deverão seu perdão, será infinitamente amatlo de Deus ; pois que merecerá
a todos os homens o perdão d'um crime infinito.
((Ora, Deus não póde odiar infinitamente senão o ser infinitamente
odioso, um homem carregado de peccados ; nem amar infinitamente senão
o ser infinitamente amavel. como elle mesmo, como Deus. Logo este ho-
'li em será Deus, será Homem-Deus.
«O Homem-Deus será pois destruído em lugar de todos os homens,
para satisfazer a justiça de Deus; e todos os homens serão perdoados e
conservados, pelos rneritos e consideração d'este Homem-Deus. Este Ho-
mem-Deus será pois o mediador, salvador, redemptor do genero humano,
e fundador d' uma noYa alliança entre o homem e Deus. ('1)
Assim, o redemptor reunirá em si dons grandes caracteres oppostos

(1) M. dr Bonald. Ibicl. p. 147 e seguinte~ ,

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IJF. PERSEVERANÇA. 2~3

um ao outro; será ao mesmo tempo um prodigio de grandeza e humilia-


ção; objecto do rigor e da complacencia de Deus. Por uma parte carre-
gado de todas as iniquidades do mundo, provará em sua vida e morte o
que ha de mais rigoroso; será o homem do soffrimento. Por outra par-
te, similhante a Daus, e Deus de si mesmo, gozará de toda a ternura de
Deus, que o glorifi~ará tanto quanto elle o demanda e merece.
Tal é pois o accôrdo da justiça e bondade de Deus na punição e
perd:-io do peccado original. Ser finito, era o homem incapaz de satisfa-
zer uma injuria infinita; não podia atar de nov" o vinculo sobrenatural
que o unia :i Deus ; vinculo que o peccado tinha quebrado : Deus esco-
lheu para si uma victima d'um merito infinito; immolada esta victima; é
expiado o peccado, restabelecida a união sobrenatural, e salvos todos os
homens.•
Agora é facil comprehender, ·1. 0 a admiravel facilidade com que Deus
perdôa a nossos primeiros paes. Desde toda a Eternidade, a Incarnação
do Verbo estava prevista ; Deus tinha incessantemente diante dos olhos a
immolação d'esta grande victima; o peccado do homem estava d'alguma
sorte expiado antes de commettido.
Realisou-se a fatal desabe diencia, offerece-se o Verbo Eterno a seu
Pae, mostra-se-lhe morrendo sobre o Calvaria. Sua mediação é acceite ;
e, satisfeita plenamente a justiça divina, manifesta-se aos culpados a mi-
sericordia infinita.
E' facH comprehender, 2. 0 .como se salvaram os homens que vive-
ram antes da vinda do Redemptor: salvaram-se em vista dos meritos do
Redemptor futuro. Supposto só houvesse de cumprir-se na plenitude dos
tempos, a oblação voluntaria do Cordeiro, immolado desde a origem do
mundo, tinha desarmado a ira de Deus e procurado aos homens o tempo
e os meios de recuperar sua graça.
«Não nos queixemos pois, diz admiravelmente S. Leão, do procedimen-
to que Deus teve na obra da Redempção. Não digamos que Nosso Senhor
tardou muito a nascer segundo a carne, como se os tempos que precede-
ram ao seu nascimento houveram sido prirados do frncto dos mysterios
que ello operou n::i derradeira idade do mundo. A Incarnação do Verbo,
resolvida desde a Eternidade nos conselhos de Deus, produziu antes do

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CATECIS:\IO

seu cumprimento os mesmos effeitos que produz depois. Nunc::i, desde a


mais remota antiguidade~ esteve sem effe:to o mysterio da salvaç.Jo dos
homens. O que os Apostolo3 prégaram, já o tinham os Prophetas predi-
to; e a obra do Salvador pócle não ter-se por demorada, pois que foi
sempre oujecto da fé.
«Não é pois por um novo plano d'acção, nem por compaixão tardia,
que Deus proveu á Redempção do genero humano, operando a Incarna-
ção de seu Filho unico. Mas, desde os pri!lleiros dias do mundo, estabe-
leceu uma só e rnesrn:t causa de salvaç.ão, para todos os homens e para
todos os seculos.
«E' verdade que a graça de Deus se nos deu com mais abundancia
depois do nascimento temporal de Jesu-Christo ; mas não foi só então que
principiou a se no3 communicar; pois qne por ella é qlle os S;H1tos r..e to-
dos os tempos foram santificados. O profundo mysterio do amor de
Deus, cuja fé é actualmente estabelecida por toda a terra, tem uma vir-
tude tam efficaz, que ainda mesmo quando só estara predito e figurado,
aquelles que pela fé esperaram na promessa de Deus. d'isso tiraram o
mesmo fructo qne aquelles que, dcpoi-.; do seu cumprimento, receberam
seus salutares effeitos. E' por esta fé que todos os Santos anteriores ao
Sah'ador foram justificados e feitos membros do corpo rnystico de Jesu-
Christo. » (1)
Por isso, a salvação nunca foi po3sivel senão por Jesu-Christo e pe-
la fé em Jesu-Christo. Todos os homens, sem distiucção de paiz, idade ou
nação, deveram crêr no grande mysterio da Redempção. Assim como to-
dos foram condcmnados em o primeiro Adão, por serem um com elle,
assim tambem, para se salvarem, devem todos ser um com o segundo
.Adão: e o laço essencial d'esta união é a fé em o mesmo Jesu-Christo.
Ouçamos o principe dos tlrnologos, S. Thomaz d'Aquiuo, faltando da
necessidade da fé em Jesu-Christo: ((Não ha, diz elle, segundo o Aposto-
lo, ontro nome debaixo do Ceo em que os homens possam ser salvos.
Por isso foi necessario que o mysterio da Incarnação do Verbo se crêsse

(1) De Nafo·. Srrm 1 20.

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DE PERSEYEIU~ÇA.

d'afguma maneira em todos os tempos e por todos os homens. Esta crén-


ça foi differente seguo o os tempo e as pe soas.
«Antes da qa quéda, tinha o homem a fé explicita da Incarnação do
Verbo, em tanto que e~ta Incarnação tinha por fim a con ummação da
gloria, mas não em quanto ao fim de livrar o homem ào peccado pela
morte e resurreição de Jesu-Christo.
«Depois do peccado, o mysterio da Incarnação foi crido, não só em
quanto á Incarn a ão · mas tambem em quanto á Paixão e Resurrei ,ão,
por on e o genero humano é libertado do peccado e da morte. Se assim
não fos e não teriam os homens d'antemão figurado a Paixão de Jesu-
Christo pelos sacrificios usados antes da lei e sub a lei. D'estes sacrificios,
os mais esclarecidos conheciam explicitamente a significação; os menos il-
lustrados, crendo n'estes sacrificios fignrafüos, estabelecidos por Deus,
n'elles achavam um conhecimento sacrc:mental de Jesu-Christo. Accre~ce
a isto, qoe conheceram o mysterio da Incarnação mais distinctamente, á
proporção que mais se avisinhava o cumprimento d'este grande facto.» (l)

(1) Non est aliud nomen sob coelo datum hominibus in quo oporteat nos salvos
ficri, et ideo mysterium Incarnationis Christi aliqualiter oportuit omni tempore esse
creditam apnd omncs: diversimodo tamen secundum diversitatem temporum ct per
sonarum. N am ante statum peccati, homo habuit Pxplicitam fide m de Christi Incar-
natione secundum quod ordinabatur ad consummationem gloriae; non :mtem secun-
dum quod ordinabatur ad Iiberationem a peccato per Passionem et Resurrectio-
nem ...... Post peccatum aute:rp., fuit explicite creditum mysterium Incarnationis
Christi, non solum quantum ad Incarnationem, sed etiam quantum ad Passionem et
Resurrectioncrn quibus humanum genus n peccato et morte liberatur; aliter enim
non pra~figurassent Christi Passionem quibusdam sacrificiis et aute legem et sub
lege. Quorum quidem sacrificiorum siguificationem explici~ majores cognoscebant,
minores antem sub velamine illorum sacrificiorum, credentes ea divinitus esse dis-
posita, de Christo venturo quodammodo habebant velatam cognition em : et sicut su- '
pra dictum est, ea qurn ad mysteria Christi pertinent, tanto disti nctius cognoverunt
quanto Christo propinqniores fuerunt. D. Th. 2, q. 2, art. VII Aug. lib. de Corrept.
et Gratfo. ·

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CATECJS'\10

ORAÇÃO·

O' meu Deus! que sois todo amor, eu adoro a justiça e bemdigo a mi-
sericordia de que usastes na punição do peccado original; e vos dou gra-
ças por nos terdes promettido o Salvador. Fazei pois, Senhor, que nos
aproveitemos de seus merilos.
· Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemuho d'este amor, renova-
rei todos os mezes as promessas do Baptismo.

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XVIIP LIÇÃO.

Historia de Job.

Consequencia da doutrina de 8. Leão e 8. Tl1omaz. - Os ho-


mens tiveraID sempre a graça nesscearia para crêr no
Bedemptor. - Provas da razão. - Testemunhos hiof.o rt-
cos. - dob, tesf.emonba e Propbeta do Redemptor. - Sua
historia. - Suas riquezas, "loria, adversidade e paciea-
cia. - Visita de seu• amigos. - '1ob just.it"icado e recom-
pensado.

Pois que a fé em o lledemptor foi sempre necessaria, deve concluir-


se que todos os homens, sem distincção de idade ou de paiz, sempre tive-
ram a graça sufficiente para· crêr no mysterio da Redempção. A razão
d'isto é, que Deus quer a salvação de todos os homens, e que Nosso Se-
nhor morreu por todos os homens, sem excepção. Logo deu e conser-
vou aos homens as luzes e graça necessaria para se salvarem; de maneira
que a salvação jámais foi impossivel a pes:;oa alguma.
Bem sabemos que os Judeus sempre tiveram o conhecimento suffi-
ciente para se salvarem pelo Redemptor futuro; acaso succede o mesmo
com os Gentios? Como tiveram elles, como conservaram, o conhecimen-
to e a fé necessaria do mysterio da Redempção ?
Não podemos por certo sondar o abysmo dos conselhos de Deus,
nem notar quantos meios tem de se communicar a sua bem amada crea-
tura; toda\'ia muitos ha que nos são conhecidos.
1. º Os Gentios eram, como os Judeus, filhos d' Adão e de Noé. Ti-
veram por tailto conhecimento do estado do ·primeiro homem, de sua qné-
da, das primeiras promessas d'um Reparador. Alongando-se do berço
commum, comsigo levaram estas mesmas tradições, e a sua historia dá

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248 CATECIS~IO

testemunho d'isto. ( J) Os vestigios da crença em o Redemptor deparam-


se nos mesmos oraculos das Sybil!as, e nos canticos populares. (2) E' es-
te sem duvida um dos dogmas fundamentar.s da Religião, de que os Bis-
pos de França disseram, em uma declaração recente, que se :ich;:im os
vestigios em as tradições dos di1Ierentes povos. (:3) «Aquel!,;s dentre
vós, dizia Tertulliano aos Pagãos do seu tempo, qne teem imagicm]o fa-
bulas para desacreditar a verdade, com um falso ar d'imitaç,Jo, sabiam
quanto ao essencial que o Christo devia vir.» (4)
O mesmo succede com os Gentios que predisseram a vinda do Mes-
sias ; como prova o Santo Job. S. Agostinho diz : que a Providencia per-
mittiu que este homem, posto que no meio da Gentilidade, pertencesse á
verdadeira Religião, para nos mostrar que lambem entre os Pagãos havia
homens que faziam parte d'esta santa e universal sociedade. (5) Seja ain-
da testemunha o famoso tumulo aberto a1guns seculos depois da vinda
do Messias, e no qual se encontrou uma lamina d'ouro collocada sobre o
peito do morto, com esta inscripção: O Christv nascerá da Virgem ; e
eu creio n' elle. O' sol ! Ttt me verás em o reinado de Constan tino e
d' Irene.
2. º S. Thomaz diz que a revelação do Messias se fizera a grande
numero de Pagãos. «Se todavia, accrescenta elle, alguns podéssem sal-
var-se sem esta revelação, nem por isso o foram sem a fé em o Media-
dor; porque supposto não tivessem uma fé explicita, tiveram comtudo
uma fé implicita em a divina Providencia, crendo que Deus salvaria os

(1) Todos conhecem os celebres testemunhos de Tacito e de Suetonio: nós os


citamos no principio do tomo terceiro d'esta obra.
(2) A' cerca das Sybillas, seu numero, e authenticidade de seus livros, T"eja.-se
Lactancio Div. lnst. S. Agostinho, Cidade de Deus; S. Justino, Apolf!f!·; e sob~e
tudo o sabio Padre Grisel, jesuita, em sua obra intitulada : O .llfysterio do Homem-
De1M.
(3) Libenter agnoscimus curn doctoribus Religionis apologistis vestigia primi-
tivro revelationis circa veritates qure basis et fundamenta sunt Rdigionis et morum'
in variorum traditionibus popnlorum deprehendi. Censnra das obras de 1Vl. de La
Mennais.
(4) Apol. XXI.
(5) S. Agost. Cidade de Deus, l. IH. e. 47.

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DE PEfi~EH.:UANÇA. 2rn
bomen pelos meios ql!o lhe convie ~em e conforme o eu Espiri to o ti-
nha revelado áquelles que conheciam a ' erdade.» (i ) •
Assi: que, nem os Pagãos nem os Judeus poderam jámais alvar-se
sem a fé, ao menos impli ita, segundo a explicação de S. Tbornaz, em o
mysterio da Redempção. c< Demais, diz um grande theologo, tendo os-
so Senbor morrido por todos os homens que tem existido e que hão de
exi tir, deYemos concluir que Deus sempre deu e dá ainda a todos o bo ·
roens, mesmo aos infieis, as graças de salvação que, por consequencia,
tendem, directa ou indirectamente, a conduzir estas infleis ao conhecimen-
to de Jesu-Christo. Se com docilidade correspondessem a estas graças,
certamente Deus lhes concederia mais abundantes; e por consequencia,
nenhum infiel é reprovado por falta de fé em Jesu-Christo; mas por ter
resistido á graça.>> (2)
O mais celebre de todos os prophetas uo Messias, em a Gentilidade,
é sem contradição o Santo Job. Sna vida, cheia de grandes instrucções
e uteis exemplos, tem aqui naturalmente eu lugar. l\fod ~ lo acabado de
paciencia, Yer adeiro heroe de adYersiuad , parece o escolheu Deus para
offerecer em ~ªª pessoa, a todos o~ seculo , o tocante cspectaculo do ho~
mem virtuo o, lactando com o infortnnio, mostrando-se firm~ no pen a-

(1) Dicendum quod multis Gentilium facta focrit revelatio de Christo ut pa-
tet per a qure pracdixerunt; nam Job 19 dic itur : Seio quod Reclemptor meus vi-
vit. Sybilla etiam prrenuntiavit de Chri to, ut Aug . dicit lib. 13 contra Fau t. e. 15.
Invenitur tiam in hi torii Romanorum quod temp re Constantini A ugusti et Ire·
nre roah'i ejus (•) fuit quoddam s pulcrum, in quo ja ebat homo auream lami1lfllll
h ben in pectore in q ua criptum erat : Chris u nascetur ex Virgine, et ego credo
in eum. O sol! sub 1 ene et Constantini temporib1 iterum me videbis. Si qui tamen
salrnti fuernnt quibu rev latio non fnit facta, non fueruot salvati absquc fide
Mediatori ; quia etsi non habuerun fidcm expli itam, habuerunt tamen fidem impli-
citam in divina Providentia; credentes Deum e se liberatorem hominum secundum
modos sibi placitos, et ecundum quod aliquibus ve ritatem cognosceutibus piritas
re,'elasset. D. Th. 2, q. 2, a.rt. VII.
(") Este não é Constantino o grande, mas o quinto ou sexto imperador d'este
nome, cuja mãe se chamara Irene. V cja-se Baronius, t. IX, ad annum 780, n.º 12,
que refere o mesmo facto.
(2) Dcrg-icr, art. Infidelidade. Veja-se tambem a excellente dissertação de S.
Ligorio, sobre o Jansenismo, em sua Refutaçàodas herc:;ia, :Jis.3ert. XIV.

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250 CATECISMO

mento do Ceo, superior ás vicissitudes e miserias da Yida presente.


, Eis-aqui a sua interes3ante historia.
Havia um homem na terra dos Hus, cujo nome era Job: simples e
recto, temia o Senhor, e eYitava o mal. Tinha elle sete filhos e tres fi-
lhas. Além d'esta bella e numerosa familia, possuia o genero de bens,
que n'aquelle tempo eram a fazenda e patrimonio das casas mais distin-
ctas. Sete mil ovelhas, tres mil camellos, quinhentas juntas de bois, qui-
nhentas jumentas, um numero proporcionado de servos e domesticas, eis
o que o tornava um dos mais opulentos principes do Oriente.
Tinha Job comsigo suas filhas; e a seus sete filbos estabelecêra em
casas e terras. Aba tado de tudo, viviam separadamente, cada um sobre
si. Um do maiores uidados d' este virtuoso pae era manter a paz e união
entre eus filhos ; por is o consentia gostoso que elles convidassem sua
familia, ao menos uma vez cada anno, no annivar ario de seu nascimen-
to. Então enviava snas tres filhas para casa de seus irmãos, e lhes per-
mittia gozassem da festa. Passaào este dia de banquete, que se renovava
sete ou dez vezes cada anno, reunia elle todos os seus filbos, instruia-os
em seus devere , e o dispunha, com soas santa liç-e , ao acrifi io que
offerecia ao enhor por cada um c1 elle ; porque emfim, dizia ell e, é gen:.
te moça, que bem podem cabir em palavra iodiscretas; e quem sabe
se terão offendido a Deus em .. eu cora_ ão"? N e te santo temor le\'anta-
va·se de madrugada; e, como entre as nações antigas eram os príncipes e
chefes de familia, que exerciam as funcções de padres para com seus sub·
ditos e filhos, immolava elle mesmo as victimas ao Senhor em holocan:;to

d' expiação.
Admira el e emplo, em um principe Gentio, de fé ingenua e vigilan·
eia verdadeiramente paternal; mas exemplo que, outr'ora commum em
todos os e tados do chri tiani ~ mo, e tá hoje qua i de todo esquecido-. To-
davia são estas virtude domesticas, estes,aLurado e ercicio de Religião,
que chamam as attenções de Deus, attrahem os njos, e de esperam os
demonios. Por este fiel cumprimento de todos os deveres d'um bo~ pa e
de familia, é que Job, em o sa er, preparava seu coração para trium-
phar de todos os esforços do ir1ferno.
Com effeito, os bemaventurados Anjos, interessados na salvação dos

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DE PERSEVERANÇA.

homens, appareceram um dia na presença do Senhor, para receberem


suas ordens e executai-as. O invejoso Satanaz, que sempre se enraivece
contra os homens de bem, tambem compareceu, solicitando a permissão
de tentar e perseguir os viventes. Satanaz, lhe disse o Senhor, d'onde
vens tu? Tenbo percorrido a terra, rodeado-a toda; respondeu elle.
O designio de Deus, em fazer esta pergunta, era honrar-se diante do
seu inirn~o com a fidelidade d'um homem virtuoso. O Senhor apraz-se
de ter gloria n'isto; o que deve ser, para as almas generosas, a mais to·
cante parte de sua recompensa.
Percorrendo o mundo, continuou o Senhor, não discerniste o meu
servo Job? Elle não tem igual na terra: é um homem simples e recto,
que teme a Deus, e aborrece o mal. N~o admira, tornou Satanaz, que
Job viva no temor de Deus. Acaso vos serve elle àe graça? fizestel-o
rico e poderoso; protegeis sua familia, seus bens, sua esposa; abençoais
suas emprezas: todos os dias augo:nnta sua fortuna á yista d'olhos. Tro·
cai com elle a mão ; carregai um pouco que seja ; dai-me pelo menos per-
missão que o faça ; bem depressa vereis para onde \'aí a su.a virtude ; e
se vos não ha-de maldizer cara a cara.
Pois vai, disse o Senhor a Satanaz, deixo-te os bens de Job ; mas pro-
hibo-te que não toques em sua pessoa. Sabiu o tlemonio; e, cm toda a
sua extensão, usou da liberdade que Daus lhe concedêra. Não contava
Job com o ataque, mas os santos sempre teem em sua fé sufficientes ar·
mas, e não ha para elles ataque inexperado.
Um dia, que o filho primogenito de Job, segundo o costume de que
acima faltamos, recebia em sua casa seus irmãos e irmãs, Yeio um men~;a­
geiro dizer a Job: andaYam lavrando vossos bois, e por alli pastavam Yos-
sas jumentas, e os Sabeos (povos ladrões e vagiibundos impeHiclos por Sa-
tanaz) vieram de salto e levaram tudo, e passaram ao f10 da espada vossos
domesticas, eu só escapei e vim dar-vos esta nova.
Não tinha bem acabado quando chegou segundo correio, e disse
a Job : o fogo do Ceo cahiu sobre vossos rebanhos e pastores ; o raio
os consumiu e reduziu as cinzas: salvei-me eu para \'OS trazer a no-
ticia.
Mal que disse isto já outro correio a dizer: vümun os Chaldeos

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CATECISMO

em tres grandes quadrilhas, deram em vossos Camellos, e levaram-os ;


mataram vossos serrns, e eu fui o unico que escapei ao morticinio. An-
tes que terminasse, chega outro e di~ a Job: vossos filhos estavam á
mesa em casa de seu irmão mais velho, quando de repente se levantou
do deserto um vento impetuoso que abalou os quatro angulos da casa,
e deu com ella em terra, esmagando nas ruínas todos os vossos filhos ;
morreram, e eu só escapei para vos dar parte d'esta desgraça.
A este ultimo golpe, levantou-se Job e rasgou seus vestidos; depois,
rapando a cabe~,a, cahiu com a face em terra e adorou o Senhor dizendo:
nú sabi do seio de minha mãe, e nú entrarei no seio da terra. O Senhor
me tinha dado tudo, o Senhor me tirou tudo. Nada ac~mteceu senão o
que lhe aprouve. Seja pois bemdito o nome do Senhor l
Até aqui, até este esforço heroico de fé e coragem, Job era digno
de lastima. Cessa porém de o ser desde que a Religião predominou em
sua alma. Se todos os afilictos seguissem um tal exemplo, poderiamos
vêr ainda grandes calamidades na terra, mas não veriamos inconsolaveis
desgraçados.
Todavia não tinha chegado ainda a derradeira prova de Job. Um dia,
continúa a Historia Sagrada, se apresentaram os Anjos diante do throno
do Deus. e tambem Satanaz compareceu. D'onde vens tu Satanaz ·? lhe
diz o Senhor co.no da primeira vez. Tenho percorrido a terra. rodeado-a
toda ; respondeu elle. Reparaste em meu servo Job ? Excitas-te-me
contra elle. Larguei-te seus bens e filhos. Acaso me tem agora menos
amor; conseguiste revoltai-o contra mim? ·
Não me causa espanto, tornou Satanaz, é facil consolar-se o homem
de Ludo, qnanto consena a saude e a vida. Apalpai-o em sua pessoa, fe-
ri-o na carne, e fazei-lhe entrar a clôr pelos ossos, e então V9reis se vos
não amaldiçoc~rá cara a cara.
Seja, respondeu o Senhor, eu t'o abandono; sómente prohibo que
attentes contra sua Yida. Era isto por certo largar as rédeas ao tentador.
Pôz-se elle em campo sem mais delongas. Havendo sabido de diante do Se-
nhor, fere a Job com uma horrenda chaga que se estende da planta dos
pés até á cabeça. Já empobrecido, e agora doente e asqueroso, vê-se
Job reduzido a jazer sobre um monturo, e a rnrvir-se d'urna telha que-

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DE PERSEVERANÇA. 253
brada para tirar a matcria que lhe escorre das ulceras. Tantos sofirimen-
tos porém não poderam causar nenhum abalo na alma do justo, nem sua
língua murmurou, nem profériu sua bôca palavra indiscreta. Então é que
o demonio empregou o derradeiro meio e o mais infallivel, a juizo seu,
para..fazer perder a paciencia ao infeliz mais resignado.
Tinha Job uma mulher, que devêra ter sido sua consolação. De fa-
cto, os cuidados, assiduidades e serviços d'uma esposa, penetrada de sen-
timentos de Religião, são os mais capazes de mitigar as penas d'um ho-
mem virtuoso e desgraçado. Mas esta vira-se rica, poderosa, honrada,
mãe de muitos filhos; e agora tinha perdido tudo. Por desgraça não se
contentou com as esperanças que lhe ficavam no Ceo. Job, bem ao con-
trario de sua mulher, continuava a bemdizer a Deus. Picada da cons-
tancia mais que talvez das graças de seu marido, disse-lhe com amarga
ironia: «continúa a louvar a Deus; bem merece elle a tua gratidão pelo
bem que te trata; dá-lhe ainda maffi algumas graças a este bemfazejo amo.
V!imos, bemdize-o pela derradeira vez e morre.» Job lhe respondeu
com uma tranquillidade capaz de converter, ou desesperar sua esposa :
«Eis-ahi o que tu dizes ; como uma mulher insensata a quem a dôr priva
do uso da razão. Se temos recebido bens da mão do Senhor, porque não
receberemos os males que nos affiigem ?»
Em meio de toda a sorte de soffrimentos, não proferiu este santo
homem uma só queixa, uma d'aquelJas palavras d'impaciencia, que tiram
ás affiicções passageiras do tempo todo o merito que ellas teem para a eterni-
dade. Foi então que a fé em o verdadeiro Deus deu ao mundo um es-
pectaculo digno de admiração dos Anjos e dos homens, isto é, um justo
luctando com a adversidade e superior a todos os seus golpes.
A fama das desventuras ele Job divulgou-se rapidamente pelas ter-
ras v'isinhas. Tres senhores ou regulos, seus particulares amigos, con-
cordaram em vir vêr e consolar seu commum amigo. Estes príncipes cha-
mavam-se Eliphaz de Theman, Baldad de Suhá e Sophar de Naamath.
Logo que o avistaram pozeram n'elle os olhos, mas não o reconhe-
ciam. Approximando-se, romperam em altos gritos; cabiam-lhe as lagri-
mas dos olhos; rasgavam seus vestidos; e cobriam a ~abeça tle cjnza. As-
sentados cm terra, por sete dias~ e sete noutes, guardaram um triste si~
. 2~

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CATECISl\10

lencio. Assim Job, por unica consolação, vê homens consternados; oom


o rosto abatido e os olhos cheios de lagrimas.
Emfim elle rompe o silencio. Submisso como era ás ordens de Deus,
começa por um discurso eloquente, bem proprio a fazer-nos conhecer o
que Deus permitte ou perdôa á dôr de seus amigos, quando suas _guei-
xas, se bem que vivas e amargas, são humildes e respectaosas.
Pereça o dia em que nasci! exclama elle, seja este dia mudado em
trevas! O mesmo Deus o não descubra mais 1 Não o torne a luz a alu-
miar! Respondem-lhe seus amigos; que os males, de que se quaiia, com
justiça cahiram sobre elle; que, se não fôra culpado d'algum cri-
me occulto, não o teria Deus aflligido. Job, replicando, sustenta que
está innocente, e que Deus algumas vezes prova o justo pela adversidade.
E' em uma d'estas respostas a seus amigos, para lhes provar que es-
tá innocente, que este santo homem deixa escapar a magnifica profissão
de fé em o Redemptor, que ha-de trazer á lui todos os segredos dos cora-
ções, e retribuir a cada um segundo suas obras, depois tle ter resusci&-
do a todos os homens e citado-os perante o seu tribunal.
Compadecei-vos de mim, compadecei"'.vos de mim, ao menos vós,
que sois meus amigos; porque me apalpou a mão de Deus. Para que
me perseguis tambem,. avidos do meu supplicio, exprobrando-me crimes
de que estou innocente? Mas já que me ultrajaes com exprobrações, e
pareceis cevar-vos em meus males, buscarei na minha fé o allivio que
me recusaes ; possam minhas palavras, e os sentimentos do meu coração
ser escriptos e conservados até á posteridade 1 Possam elles gravar-se
em chumbo com um ponteiro d'aço, esculpir-se em pedra eom um cin..
zel l Sim, eu sei que o meu Redemptor vive, e que eu resuscitarei da
terra no derradeiro dia, e serei de novo revestido da minha pelle ; em
minha propria carne verei o meu Deus, testemunha da minha innocencia;
eu mesmo o verei com os meus olhos; os meus olhos o contemplarão:
eu mesmo o verei e não outrem; esta esperança repousa em meu seio.
Que magnifica prophecia ! E' preciso que a crença do Redemptor futuro
fosse bem profunda n'aquelles remotos tempos, para que um Propheta
da Gentilidade, nas extremidades do Oriente, assim o proclamasse com
tanta exactidão.

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DE PERSEVERANÇA. 255
. Não obstante todas estas protestações d'innocencia, os amigos de
Job persistem em sustentar que elle está culpado, e que seus peccados
são causa dos males que o afilig.em. Deus que via estes corokltes e pre-
parava a Job a victoria, não tardou mais em declarar..se por elle e- con-
fundir a ealumnia.. Mas tinham escapado a Job algilmas pala~ras indis-
cretas ; paeiente em suas dôres, havia levado mui longe a viya,idade do
seu zêlo contra a cegueira de seus amigos, e a iniquidade de ·seus jw-
zes. p Senhor deu-lhe uma r eprehensão caridosa, que,: ~e bem diri•
gida ao santo ho.mem, tambem era uma lição para os prineipes seus
amigos~ .
Começa o Senhor por enumerar as maravilhas da natureza. Todas
as perguntas que endereça a J ob, e que, á primeira vista; parecem es-
tranha~ ao assumpto, ligam-se com eüe maravilhosamente. Eis-aqui o
raciocinio do Senhor : vós nâél: podeis romprehender a ordem da nature-
za, e .quereis sondar a da graça. Não conheceis as leis pelas: quaes a ~mi..
nba Pro.videncia dirige as e.reataras, que vos são inferiores, e quereis ex-
plicar e julgar d'aquella~ pefas quaes dirijo o mundo superio~. Racioci-
nio, realmente divino, que, humilhando a curiosiàade e orgulho· dff oo~
mem:, abre seu coração ás virtudes proprias da sua fuaqueza, que. são a
humildade e a fé.!
O Senhor, endereçando-se po~ ·a Job, do meio d' uma nuvem tene~
brosa, disse-lhe: cinge teus rins como um ·guerreiro; eu vou interragar_
te, responde-me. Onde estavas tu quando eu lançava· os fundamentos da
terra? Quem lhe: determinou o tamanho, por ventura o sabes ft: : ~em
estenden o cordel sobre ella? Em. que assentam as suas bases 't 'Quem
encerrou o mar em seu leito, quando elle rompia seus diques como: oin-
fante que sahe do· ·ventre de sua mãe, e eu o inrnlvia em nuvem. como em
seu vestido, e o cercava de trevas, como das mantilhas da infaocia? · És
tu que envias a estrella da manhã? e mostras á aurora o lugar onde deve
nascer'! Qual é a vereda da luz, e a habitação das trevas? Sabias tu se
devias nascer? Conhecias o numero de teus dias ? Por onde é que se
derrama o dia? Qual é o caminho por onde o aquilão desce sobre a ter-
ra?' Quem traçou os sulcos ao raio ? Serás ta que o envias, e elle, indo
e tornando, te dírá : eis-me-aqui? És tu que preparas ao corvo seu sus-

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!õ6 CATECISMO

tento, quando seus filhos divagam aqui e alli, e apertados da fome gri·
tam chamando ao Senhor?
As chuvas, a neve, a geada, o calor e o frio, os trovões, os tempos
todos, as propriedades e instinctos dos animaes ; as causas, os recursos
e harmonias ·da Providencia, no gov.erno do mundo pbysico, são as ma-
terias em que aprouve ao Senhor entreter a curiosidade de Job, e redu-
zir a extremos os seus conhecimentos. Job, humilhado, confessou inge-
nuamente que não sabia que responder ao seu Creador.
Tal é a confissão a que são reduzidos, como Job, todos os homens
rectos e sensatos, apezar das descobertas que os nossos sabios quotidia-
namente fazem dos segredos da natureza.
Deus, contente com seu servo, reprebendeu aos tres príncipes a
temeridade de seu juiio, e a amargura de suas palavras. Exigiu que lhe
offerecessem um sacrificio d'expiação. Job, accrescentou o Senhor, or.a-
rá por vós ; e por seu respeito vos perdoarei. Com effeito, o sacrificio
offereceu-se; Job o acompanhou com suas orações. O Senhor as atten-
deu -; e os tres reis, devedores a seu amigo da su~ reconciliação .com
Deus, voltaram para suas terras. ·
E' n'este momento que se operam os prodigios do restabelecimento:e
cura de Job. O Senhor lhe tornou a sande, deu-lhe o mesmo numero de
filhos, redobrou as grandes riquezas que o demonio lhe arrebatárá. Cu-
mulado de bens, cercado dos respeitos de todo o Oriente, Job viveu ain-
da cento e quarenta annos; viu ~eus filhos e os filhos de seus filhos até
a quarta geração, e morreu mui ancião e cheio de dias .
• Assim terminou a vida d'este santo homem, para edificação de todos
os justos provados, e poderoso motivo de consolação a todos. os affiictos,
submissos e pacientes.

ORAÇÃO.
O' meu Deus 1 que sois todo amor, eu vos dou graças por haverdes
concedido a- todos os homens a graça necessaria para conhecer o l\e-

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DE PERSEVERANÇA. 257
dcmptor; permitti que d'ella todos nos aproveitemos, e a exemplo de Job
snpportemos corajosamente os trabalhos da vida, na esperança de nossa
resurreição, e recompensa futura.
Eu protesto amar a Deus sobre todas as cousas, e ao proximo como
a mim mesmo por amor de Deus; e, em testemunho d'este amor, quero
associar-me á empreza da propagação dá Fé.

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---
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J1 E

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INDEX
DAS

MATERIAS CONTIDAS NO PRIMEIRO VOLUME.

Pag.
INTRODUCÇÃO . . . • . . . • . • • . • • • . . • • • • . • • • . • • • • • . • • • • • • • • • IX

I.ª LIÇÃO.

ENSINO VOCAL DA RELIGIÃO.

O antigo Pastor. - Necessidade do Catecismo de Perseverança. - Significação


da palavra Catecismo. - Recordações que encerra. - Os Patriarchas e os
primeiros Christãos. - Motivos do ensino vocal da Religião.............. t

II.ª LIÇÃO.

ENSINO ESCRIPTO.

Antigo Testamento. - Seu fim. - Partes de que consta. - Intenção de Deus


com o seu povo e com todas as nações, fazendo escrever o Antigo Testamento.
- Tradição. - Novo Testamento. - Partes de que se compõe. - Tradi-·
ção. - Inspiração, authenticidade e integridade do Antigo e Novo Testa-
mento............................................................. 13

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260 INDEX

IIP LIÇÃO.
CONHECIMENTO DE DEUS. - DEUS CONSIDERADO EM SI MES.MO.

Hua existencia. - Provas. - Trechos historicos. - Perfeição de Deus. - Sua


Eternidade, Independencia, Immensidade, Unidade, Immutabilidade, Liber-
dade, Espiritualidade, Intelligencia. - Providencia. - Provas.. . . . . . . . . . 27

IV.ª LIÇÃO.
CONHECIMENTO DE DEUS. - DEUS CONSIDF.RADO EM SUAS OBRAS.
OBRA DOS SRIS DIAS.

Primeiro dia. - Explicação d'estas palavras; No principio creou Deus o Ceo


e a terra. - Esta primeira palavra é a base da sciencia - Às trevas co-
briam a face do abysnw. - Explicação. - E o espirito de Deus era levado
sobre as aguas. - Explicação. - Imagem do Baptismo. - Creação da luz.
- Rapidez da sua propagação. - Côres. - Suas vantagens. . . . . . . . . . . . . . 53

V.ª LIÇÃO.
OBRA DOS SEIS DIAS.

Segundo dia. -Creação do Firmamento. - Sua extensão. - Sua côr. -Aguas


superiores e inferiores. - Ar. - Suas propriedades. - Pêso. - Invisibilida-
de. - Utilidade. - Crepusculos. - Cheiros. - Som.-Chuva.-Respiração. 69

VP LIÇÃO.
OBRA DOS SEIS DIAS.

Terceiro dia. - O mar. - Seu leito. - Movimento. - Sal. - Extensão. -


Navegações. - A terra. - Côr da herva. - Fecundidade das plantas. -
Sua propagação. - A raiz. - A folha. - A semente, e o fructo. . . . . . . . . . 81
VII.ª LIÇÃO.
OBRA DOS SEIS DIAS.
Continuação do 3. dia. - Creação e variedade das arvores fructiferas. - Pro-
0

priedades dos fructos. - Arvores que não dão fructo. - Sua utilidade. -
Utilidade e magni:ficencia das florestas. - Riquezas encerradas no interior
da terra. - Os metaes. - O ouro. - O ferro. - Quarto dia - Creação
do sol. - Sua distancia da terra. - Seu movimento. - O nascer do sol. -
Sua luz............................................................ ~3

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DAS MATERIAS. 26t
VIII.ª LIÇÃO.
OBRA DOS SEIS DIAS

Continuação do quarto dia. - A Lua. - Sua belleza. - Sua utilidade. - As


estrellas. - Seu numero. Movimento. - Utilidade. - Beneficios da noute.
- A instrucção. - O repouso. - O somno. - A conservação da nossa vida.
- Ultima commissão do sol e da lua. - A primavera. - O estio. - O ou-
tono. - O inverno. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
IX.ª LIÇÃO.
OBRA DOS SEIS DIAS.

Quinto dia. - Os peixes. - Sua creação. - Conservação. - Grandeza d'al-


guns. - Sua ~tilidade. - Os passaros. - Structura de seu corpo. - Sua
coi;iservação. - Seq.s ninhos. -. Seu instincto. . . . . . . • • • . . . . . . . . . . . . . . . . 121
X.ª LIÇÃO.
OBRA DOS SEIS DIAS.

Continuação do quinto dia. - Trata-se ainda do instincto dos passaros. - Suas


emigrações~ - Cuidados maternaes da Providencia. - Sexto dia. - Ani-
maes domesticos. - Sua docilidade. - Sobriedade. - Serviços. - Os inse-
ctos. - Seus enfeites. - Armas. - Astt.1cia. -Orgãos ................• 135
XI.ª LIÇÃO.
OBRA DO SEIS DIAS.

Continuação do sexto dia. - As formigas. - As abelhas. - Os bichos da sêda.


- Os reptis e animaes bravos. - Harmonias do mundo. - O mundo é
um livro .................................................•....•.... 149
XII.ª LIÇÃO.
OBRA DOS SEIS DIAS.

Continuação do sexto dia. - O homem. - Explicação d'estas palavras, faça-


mos o homem. - O homem em seu corpo. - Em sua alma . ....:....Espiritualida-
de, liberdade, immortalidade. - O homem, e sua similhança com Deus.~. . . 163
Xiita LIÇÃO.
OBRA DOS SEIS DIAS.

Continuação do sexto dia. - O homem rei do universo. - Usufructuario do


universo. - Pontífice do universo. - Coração do homem.. . . . . . . . . . . . . . . . 177

• /

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l\'DF.X

XIV.ª LIÇÃO.
OBRA DOS SEIS DIAS.

Continuação do sexto dia. - Felicidade do homem innocente. - Creação da


mulher. -Sociedade do homem com Deus. - Creação dos Anjos. . . . . . . . . 189

XV.ª LIÇÃO.
OBRA DOS SEIS DIAS.

Fim do sexto dia. - Malicia e poder dos Anjos máos. - Anjos bons, seu nume-
ro. - Suas jerarchias. - Funcções dos Anjos bons. - Louvam a Deus. -
Presidem ao governo do mundo visivel e invisivel; velam na guarda e defe-
sa do genero humano. - Dos imperios. - De cada Igreja ......... Oa Igreja
Universal.~ De caooum de nós. - Grandeza do homem •............... 201

XVP LIÇÃÕ.
QUÉDA DO HOMEM.
Astucia do demonio. - Imprudeneia d'Eva. - Fraqueza d'Adão. - Bondade de
Deus. -- Interrogação dos culpados. - Sentença contra o demonio~ -- Mise-
ricordia, e justiça para com nossos primeiros paes. - Penitencia d'Adào. -
Sua sepultura no monte Calvario. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
XVIP LIÇÃO.
CONCORDANCIA DA JUSTIÇA E l\IISERICORDIA DIVINA, El\I A PUNIÇÃO E
TRANSl\USSÃO :bO PECCADO ORIGINAL.,
O rei das Indias. - Peccado original dos nossos primeiros paes, e em nós. -
Seus effeitos e transmissão. - Justiça e Misêricordia para com nossos pri-
meiros paes. - Concordancia da Justiça e Misericordia no mysterio da In-
carnação e Paixão. - Doutrina de S. Leão e S. Thomaz. - Necessidade da
fé em o Redemptor .................................................• 229
XVIIP LIÇÃO.
HISTORIA DE JOB.
Consequencia da doutrina de S. Leão e S. Thomaz. -- Os homens tiveram sem-
p1·e a graça necessaria para crêr no Redemptor. -- P1·ovas da razão. -- Tes-
temunhos historicos. -- Job, testemunha e Propheta do Redemptor. - Sua
historia. - Suas riquezas, gloria, adversidade e paciencia. -- Visita de seus
amigos. -- Job justificado e recompensado ............................. 247


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OBRAS
publicadas pelo mesmo editor
E QUE SE ACHAM Á VENDA :
No Porto, na Travessa da Picaria n. º 32 e na rua de Bellomonte em
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MEmrAçõEs, orações e exercicios para todos os dias do anno. . . 360
RESUMO do Catecismo de Perseverança, 2 volumes. . • . . . . . . . . . 400
PEQUENO RESUMO do Catecismo de Perseverança. . . . . . . • . . . • . . . 120
As TRES ROMAS, pelo Abbade Gaume, 7 volumes. . . . . . . . . . . . . . 1h680
o CATECISMO DE PERSEVERANÇ! desde o t. () vol. até ao 7. º.. . . . . . 46200
MARIA Estrella do mar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • • . . . . . 100
O OFFICIO da Immaculada Conceição da SS. Virgem. . . . . . . . . . . 40
Os JESUITAS, por Victor Joly. . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . • . . . . . . 200
MEMORIAS d'além do tumulo de um choupo, morto ao serviço da
republica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . 40
UNDE Salus? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100
D. RODRIGO, poema epico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
ANEcnorAs ou segredos do marquez de Pombal, 2 volumes. . . . . 400
PENSAMENTOS sobre o christianismo provas da sua verdade . . . . . . 60

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II

A DEFEZA do jornal a Patria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . mo


DEvoçxo das Dôres da Virgem Mãe de Deus. . . . . . . . . . . . . . . . . t 20
CONFERENCIAS pronunciadas na igreja de Jesus em Roma em 1857,
por o padre Passaglia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . t 00
PIEDOSAS meditações ..............................• . . . . . . . . i 00
A IMPIEDADE combatida por confissão dos mesmos impios ... ·. . . . t 00
Obras de José Agostinho de Macedo :
0 ORIENTE • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 480
A NATUREZA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . 300
A VIAGEM extatica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300
A MEDITAÇÃO. • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 240
Ü NEWTON.................. ...... ........ .............. 260
A SUA BIOGRAPHIA. • • • • • • • • • • • • • • • . • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 1. 00

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